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Resumo
A conexão entre imagem e interface já está colocada. O que se pretende é o estudo de um
elemento novo que é a memória. Aby Warburg é a chave já que as imagens são memórias sociais.
O Atlas Mnemosyne se configura como um conjunto de elementos (sintomas) criando um
“dispositivo mnemônico” que gera conhecimento. A ideia é estudar a arqueologia da interface
através dos vários dispositivos de memória onde é possível perceber a interferência do homem na
memória cultural que culminaria nas ideias contemporâneas de Arquivo. A partir dessa
arqueologia contrapor com o que hoje podemos chamar de interface tecnológica mediada pelos
novos dispositivos narrativos audiovisuais.
Palavras-Chaves: Aby Warburg. Interfaz. Imagem. Memória. Novas Narrativas audiovisuais.
Neste ensaio pretendo realizar uma pequena incursão ao que passo a chamar de “proto interface”,
a partir da perspectiva da Arte da Memória, que buscou, a partir da mnemotécnica, se associar a
uma representação ou visão de mundo em seus respectivos períodos. Podemos, assim, detectar a
utopia da busca do conhecimento através das imagens mentais e representações que se
materializam em dispositivos que futuramente se tornaram aparatos de representações coletivas e
que nos levaram à formulação de modelos mentais de pensamento, como o teatro grego e a
câmara escura até chegarmos à interface.
A chegada da internet e a sua rápida implementação nos leva a detectar a aparição de um novo
“modelo mental”, a interface, apontada por Josep M. Català como o surgimento de uma
plataforma que busca o funcionamento e tensão entre a técnica, indivíduo e sociedades e em que
essas inter-relações se desenvolvem de maneira mais associadas com as novas realidades. Para o
autor o conceito de interface está além da simples relação entre a máquina e o usuário, pois tem
um alcance transcendental para compreender a nova situação híbrida que se produz na natureza
sociotécnica em que nos encontramos. A sua fenomenologia da interface tem um enfoque mais
amplo e pode ser considerada como o projeto de uma compreensão mais completa do mundo.
Assim, a ideia da interface vai além de um neologismo da revolução digital e passa a atuar como
“agente modelador da percepção”, situado entre o real e o virtual, um espaço tecnológico e ao
mesmo tempo cognitivo em que acontece o processo de “interação”.
1
Trabalho apresentado no GP Comunicação, Imagem e Imaginários XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa em
Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2
Doutorando na Universitat Autònoma de Barcelona sob a orientação do professor Josep M. Català Domènech .
Zooliveira@uol.com.br.
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serem lembrados. Cada sequência cria uma imagem mental que será projetada em lugares quando
revisitado mentalmente pelo vagar. Esse vagar e a construção de imagens mentais podem ser
associados à interface.
A interface utilizaria, portanto, os registros correspondentes ao imaginário para expressar tanto o
imaginário como as outras formas de conhecimento. Nesse sentido, seu funcionamento se
equipararia ao dos outros meios que também gestionam o conhecimento geral através das
linguagens específicas daquelas regiões mentais das que são diretos representantes. O teatro
gestiona o simbólico e o imaginário através do real; a literatura processa o real e o imaginário
através do simbólico; e, finalmente, a interface se ocuparia do real e do simbólico através das
formas do imaginário (CATALÁ, 2010: 158).
A arte da memória prenuncia a chegada das imagens em movimento. Nestes espaços físicos ou
criados artificialmente é possível encontrar, numa proposta arqueológica, “acoplamentos
dialéticos” de lugares-imagens que se tornam uma inteligência emotiva a partir de narrativas
mentais criadas durante o percurso. Da mesma forma que revela um marcador (sintoma), um
lugar (loci), individualizado e intimista dos antigos palácios da memória que hoje se tornam
porosos e coletivos com a chegada das novas tecnologias, eles permitem a passagem para a
construção de um grande número de possibilidades e dispositivos com infinitas combinações que
renovam o conceito de “labirinto”. Um vagar significativo entre enigmas simbólicos com um
percurso ligado pela “realidade expandida” das novas paisagens virtuais e formado por links e
hiperlinks.
Esses “dispositivos”, atualmente, são elevados ao status de “enigmas simbólicos narrativos”,
como podemos perceber nos videogame como Dear Esther3. Assim, as metáforas visuais se
inserem na criação de “mundos possíveis” por ocorrer uma ruptura dinâmica entre a imaginação e
a realidade, e nos leva a entender a visualidade nos processos de interatividade incorporada
tecnologicamente.
3
The Chinese Room for Microsoft Windows, Mac OS X and Linux, 2012
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conhecimento.
Giordano Bruno emprega as cenas marcantes das antigas arte da memória, que são arquiteturas
reais e imaginárias, mas em suportes totalmente desmaterializados, engrenagens impulsionadas
por mecanismos complexos. Estes dispositivos funcionam como instrumentos heurísticos que
procuram criar e encontrar, a partir de um procedimento simplificador (não simplista), respostas
variáveis, menos que imperfeitas, para um determinado problema e que podem atualizar a
4
Alain Montess, A arte da memória on line (2002), disponível em http://recherche.univ-lyon2.fr/grimh/ (acessado
em 06/05/2015).
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Jacques Le Goff , em História e memória (1990), lembra dos homens-memória dessas sociedades
ágrafas, desde os funcionários da memória, os mnemon (arquivista), e revela um período em que
se “venerava os velhos, sobretudo porque se via neles homens-memórias, prestigiosos e úteis”,
similar ao que acontece no romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, adaptado ao cinema por
François Truffaut (1966).
Para “o acadêmico de nenhuma academia” Giordano Bruno, a relação entre memória, linguagem
e imagem é uma ciência como magia. Em Tratado da Magia (2008), define que “Magos” seriam
“homens sábios com capacidade de agir”. Da mesma maneira que podemos observar que no
centro de sua filosofia está a ideia de que há uma “continuidade entre as ideias, as palavras, os
símbolos e as coisas concretas, os objetos, as substâncias e os seres vivos”, ou seja, o pensador
procura estabelecer uma “ligação” com o todo e criar uma verdadeira antropologia dos links. No
final do século XVI, Giordano Bruno irá representar uma espécie de clímax dessas interações.
Depois da Reforma (início do século XVI) e da criação da imprensa por Gutenberg (meados do
século XV), se cairá um longo silêncio sobre a arte da memória, sobretudo após a morte de Bruno
na fogueira, em 17 de fevereiro de 1600.
5
Do latim Nexus. Ligação; conexão.
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Figura 5. Sistema de memória de uma abadia e imagens para serem usadas no Sistema
Mnemônico. Johannes Romberch, Congestorium Artificiose Memoriae, Veneza, 1533.
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O pensador alemão centrou a sua atenção nas representações de figuras em movimento, fez do
desfile das imagens um instrumento de análise e o seu projeto, durante a década de 1920, seria
consagrado à elaboração de uma metodologia da montagem. Warburg alterou a própria ideia de
representação, que deve ser entendida, a partir daí, não como forma de pensar, mas como
“comparecimento”, ou seja, já não se trata apenas de compreender, mas de produzir efeitos.
Warburg entra na história da arte pela porta do Renascimento – ou “sobrevivência” da
Antiguidade. No Nascimento de Venus e a Primavera, obras de Sandro Botticelli, que foi o
corpus da tese de doutorado do jovem Warburg, aparece pela primeira vez a preocupação pelas
continuidades e a sobrevivências da Antiguidade Clássica. Gesto e movimento por um lado e a
relação entre a mentalidade primitiva e a expressão corporal violenta foram os principais temas de
interesse de Warburg. Sobretudo as “sobrevivências” desses conceitos desde a antiguidade
clássica. Ele continuou a analisar as imagens que são transferidas de uma cultura para a outra em
diferentes espaços de tempo sem, no entanto, permanecerem inalteradas. Interessava-se pela
análise das relações complexas entre o artista e o seu meio, com destaque para os aspectos como
o papel do comitente (quem encomenda) na produção artística e a relação dos artistas com os
modelos literários circulantes, especialmente no que diz respeito ao exame dos mecanismos de
transmissão e sobrevivência cultural da Antiguidade.
6
Linda Selmin. “L'americana scalza.Un inedito di Aby Warburg su Isadora Duncan”. Disponível em
http://www.engramma.it/engramma_v4/warburg/fittizia1/34/duncan.html Acessado em 21/05/20015.
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O Museo Cartaceo, conhecido como “museu de papel”, modelo de catalogação fornecido pelo
mecenas e colecionador italiano Cassiano Dal Pozzo (1588-1657) no início do século XVII foi
uma das origens de Mnemosyne, “mas a exegese warburgiana permaneceu estranhamente muda
sobre essa origem” (MICHAUD, 2013). Muito antes da descoberta da fotografia, do Atlas de
Warburg e do Museu Imaginário de André Malraux, o trabalho de Cassiano Dal Pozzo,
constituído por milhares de gravuras ou desenhos que abarcam os campos da zoologia, da
botânica e da geologia, assim como da arte e da arquitetura, já existira. O “museu de papel”
pretendia tornar visível e classificar, às vezes por princípios iconográficos, o saber universal dos
homens sobre a natureza e sobre a história. A construção do Atlas Mnemosyne – tributário do
nascimento das primeiras agências fotográficas (Alinari, Anderson, Braum etc.), que, a partir do
fim do século XIX, procuraram montar um inventário sistemático das obras de arte que faziam
circular não mais sob a forma de gravuras ou desenhos, mas sobre a forma de cópias fotográficas
– parece inscrever-se na linhagem direta dos musei cartacei. No entanto, o Atlas não constitui a
versão contemporânea deles (MICHAUD, 2013: 319).
Observando a prancha C [Figura 7], podemos perceber que o Atlas foi concebido como uma
sucessão de mapas diacrônicos, destinado a acompanhar a migração das imagens ao longo da
história das representações, mas não se limita em apenas descrever estas migrações: ela as
produz, ou seja busca produzir um efeito, inclusive nas camadas mais prosaicas da cultura
moderna. A Prancha C aborda a epistemologia e a prática da criação de símbolos. Podemos
perceber as polaridades que Warburg frequentemente traçava entre uma visão de mundo
astrológico-demoníaca e uma visão matemático-racional. O que se torna visível com o foco na
concepção inicial do sistema solar de Johannes Kepler e a forma como ele é construído com os
cinco sólidos platônicos e a sua posterior descoberta de que os planetas têm órbitas elípticas. A
figura exemplar de Marte é representada em formas míticas e matemáticas. Enquanto isso, o
domínio do céu do Graf Zeppelin sugere a promessa da tecnologia7.
Assim, Warburg pensa a imagem como uma estrutura cinemática, dentro da problemática do
movimento, isto é, da montagem. As cadeias de imagens são dispostas como ideogramas, de
maneira a produzir uma nova linguagem na história da arte que se aparenta com a sintaxe visual
de Serguei Eisenstein, ou seja, uma imagem é sempre um organismo complexo, não natural e o
resultado de uma montagem de espaços heterogêneos (MICHAUD, 2013: 325-326). Assim,
Warburg pensava com imagens consteladas e montagens que envolviam a questão do movimento
7
Claudia Wedepohl - http://warburg.library.cornell.edu . Acessado em 5 de junho de 2015
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como fundamento da reflexão e também como uma nova dimensão nas disposições
bidimensionais do Atlas.
A montagem – pelo menos no sentido que aqui nos interessa – não é a criação artificial de
uma continuidade temporal a partir de “planos” descontínuos agenciados em sequências.
É, pelo contrário, um modo de desdobrar visualmente as descontinuidades do tempo da
obra em toda a sequência da história (DIDI-HUBERMAN, 2002: 474).
Assim, a memória oferece sustentação decisiva para a análise desses movimentos, com o que
retornamos ao engrama. As imagens para Warburg são tanto objetos materiais como formas de
pensamentos, modos de conceber, de pensar com imagens. De tal modo as imagens produzidas
pela interferência do homem na cultura se vinculam com sua capacidade de simbolização, ou seja
a “cultura” é o resultado dessa interferência na realidade social, e ao mesmo tempo na memoria
social, que poderá culminar com as novas ideias de “arquivo”.
Assim, a memória oferece sustentação decisiva para a análise desses movimentos, com o que
retornamos ao engrama. As imagens para Warburg são tanto objetos materiais como formas de
pensamentos, modos de conceber, de pensar com imagens. De tal modo as imagens produzidas
pela interferência do homem na cultura se vinculam com sua capacidade de simbolização, ou seja
a “cultura” é o resultado dessa interferência na realidade social, e ao mesmo tempo na memoria
social, que poderá culminar com as novas ideias de “arquivo”.
Para Warburg, as imagens são sempre formas de uma memória social, elementos do imaginário,
memórias artísticas e emocionais. Na Introdução à Mnemosyne, de 1929, ele afirma que
Tanto a memória da personalidade coletiva como a do indivíduo vêm socorrer de modo
todo peculiar o homem artístico, que oscila entre a visão de mundo matemática e a
religiosa: ela não o faz criando prontamente o espaço de reflexão, e sim atuando junto aos
polos limítrofes do comportamento psíquico, de modo a reforçar a tendência à
contemplação serena ou à entrega orgiástica. Ela aciona mnemicamente a herança
indelével, não com uma tendência primariamente protetora, mas com a inserção na obra de
arte, formando o estilo, o ímpeto pleno da personalidade crédula, tomada pelo phóbos
passional e abalada pelo mistério religioso – assim como, por outro lado, a ciência, ao
fazer seus registros, grava e transmite a estrutura rítmica na qual os monstros da fantasia
se tornam os condutores da vida que determinam o futuro (WARBURG, 2015: 365).
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Dossiê Warburg. Organização Cezar Bartholomeu. Revista Arte&Ensaios nº 19. PPGAV-EBA/UFRJ. 2009.
Disponível em http://www.ppgav.eba.ufrj.br/wp-content/uploads/2012/01/ae22_dossie_Cezar-Bartholomeu_Aby-
Warburg_Giorgio-Agamben1.pdf. Acessado em 20 de Abril de 2015.
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por um olhar atento aos detalhes. As possíveis lacunas, entre um campo e outro do Atlas, podem
ser preenchidas pelas indicações que a própria memória faria emergir e onde os conceitos de
“sobrevivência” e “Pathos-formeln” enxertariam à história da arte uma perspectiva impregnada
de afetos e distante de uma objetividade espaço-temporal linear. O Atlas inacabado de Warburg, e
não poderia ser de outra forma já que se ele fosse finalizado iria contrariar a própria essência do
método, se configura como um sistema mnemotécnico “interfásico” de uso privado, no qual o
erudito e psicótico Aby Warburg projetou e procurou resolver seus conflitos psíquicos pessoais.
Em Mnemosyne, constatamos que o destino das imagens também só pode ser apreendido
em termos de montagens, desmontagens e remontagens perpétuas. Daí que toda a teoria
warburguiana da memória tenha acabado por se organizar em torno da noção operatória de
intervalo (DIDI-HUBERMAN, 2013: 236).
Assim, esse dispositivo ou aparato revela uma maneira de encarar o estudo da tradição das
imagens e a interpretação do problema histórico, tornando-se um “diagnóstico” do “homem
ocidental lutando para se curar de suas contradições e para encontrar, entre o antigo e o novo, sua
própria moradia vital” (DIDI-HUBERMAN, 2013: 236).
Esse método mnemônico, ao abranger toda uma construção social que ele faz ressurgir, pode ser a
raiz da construção de uma espacialidade para as imagens. Ao dispor essas imagens em uma
prancha, tal qual as mesas de rituais, “uma forma visual do saber, uma forma sábia de ver” (DIDI-
HUBERMAN, 2013: 236), revela a exposição de um pensamento. É um modo de tentar dar
“dimensionalidade” a um aparato ou dispositivo do exercício do conhecimento ou, como se refere
Català ao falar de interface, expor o pensamento. E, a partir disso, construir o conhecimento
baseado nos deslocamentos propostos pela mnemônica warburguiana. Essa ideia dos
deslocamentos é algo que o conceito da interface também propõe: “Um pensamento complexo de
caráter multidimensional especialmente preparado para produzir conhecimento multi, inter e
transdisciplinares”( CATALÀ, 2011:22).
DISTOPIA X REALIDADE
Com o surgimento da “multimídia”, o retorno das artes da memória será ainda mais espetacular.
Esse trabalho de recuperação que estivemos fazendo do antigo conceito de armazenamento de
conhecimento e a imaginação manipulada através de “imagens ativas”, posicionadas em lugares
reais ou imaginários, em arquiteturas mentais da nossa própria memória hoje acontece através de
ícones dinâmicos na arquitetura dos computadores. Os inúmeros locais criados pelas Artes da
Memórias ao longo de 2500 anos, ao mesmo tempo muito concretos e também muito fluidos, terão
sido como o Palácio da Memória, os jardins dos saberes, as cidades solares ou cósmicas, os montes
sagrados, o teatro do mundo, as lanternas mágicas, os teatros cinematográficos e – a partir de agora
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– os teatros virtuais, estes novos espaços de representação com seus ícones, suas janelas, seus
portais, seus laços e os seus hipertextos.
A Arte da Memória, que foi assimilada de maneiras distintas em cada época ao longo dos séculos,
passou por várias transformações, mas conservou em sua essência a questão da interrelação de
imagens e de lugares, como base para estruturar processos de concepção e o próprio sistema em
que usuários, espaços e imagens são partes em um todo organizado para estruturar e permitir o
acesso a conteúdos. As múltiplas possibilidades do ciberespaço surgem como uma forma
contemporânea de uma construção mnemônica: uma memória ampliada do teatro para a dimensão
de toda a humanidade. O melhor, a memória é uma parte acessível e passível de manipulação.
No final de 1997, o francês Christian Francois Bouche-Ville-Neuve (Chris Marker) lançou
Immemory, produzido pelo Centro Pompidou de Paris. Seduzido pela antiga arte da memória, ele
organiza as suas memória como geografia, em que diferentes temporalidades e lembranças
coabitam espaços, territórios e topografias. A força de seu trabalho está numa ideia simples: “a
consciência de uma imagem que constrói a memória permanece um campo aberto de significados,
afetado de modo intenso pela linguagem com que se confronta”. O crítico francês Raymond
Bellour aponta que “toda a tecnologia de computador pode aparecer como as dos teatros gigantes,
como artes e como equivalentes à memória da Antiguidade, da Idade Média e do Renascimento”9.
Chris Marker se apropria da concepção do que é ser contemporâneo proposta por Agamben
(2009), sendo o homem “que concerne o escuro de seu tempo, que não cessa de interpelá-lo que
recebe em seu rosto o facho de trevas que provém do seu tempo” e mostra um modo particular de
relacionar-se com o passado através das imagens que se tornam uma forma de relacionar-se com o
presente: refletir sobre os escombros do seu próprio tempo.
Pensar em uma proposta de uma “arqueologia da interfaz” é ir do entendimento de que são
ferramentas para o uso e movimento em um sistema de informação, seja ele material ou virtual. É
pensar como um dispositivo que atua numa zona de interstício onde o conhecimento se concretiza
através de um novo modelo mental composto por múltiplos espaço de potência imagética. E isso se
situa muito além da relação entre o usuário e a máquina, proporcionada pelas novas tecnologias.
Pois, embora sejam um “produto da técnica, esta por si só não pode compreendê-la porque ela
mesma é o produto de uma imaginação estruturada segundo os parâmetros da interfaz” (CATALÀ,
2005: 640).
A proposta de uma formulação do conceito de “arqueologia da interface” se converte em um
“metadispositivo”, em que a história e a memória se sobrepõem. E desta articulação móvel, o
9
Trata-se do artigo “Le Livre, Aller, Retour (apologie de Chris Marker)”. Originalmente Publicado em 1998 e depois
incluído na coletânea de Raymond Bellour, “L’Entre-Images 2”, em 1999.
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