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 –  Sociedade  Brasileira  de  Estudos  Interdisciplinares  da  Comunicação  


XXXIX  Congresso  Brasileiro  de  Ciências  da  Comunicação  –  São  Paulo  -­‐  SP  –  05  a  09/09/2016

Arqueologia de interface. Warburg, memoria e imagem1


José Geraldo de OLIVEIRA2
Universitat Autònoma de Barcelona, Espanha

Resumo
A conexão entre imagem e interface já está colocada. O que se pretende é o estudo de um
elemento novo que é a memória. Aby Warburg é a chave já que as imagens são memórias sociais.
O Atlas Mnemosyne se configura como um conjunto de elementos (sintomas) criando um
“dispositivo mnemônico” que gera conhecimento. A ideia é estudar a arqueologia da interface
através dos vários dispositivos de memória onde é possível perceber a interferência do homem na
memória cultural que culminaria nas ideias contemporâneas de Arquivo. A partir dessa
arqueologia contrapor com o que hoje podemos chamar de interface tecnológica mediada pelos
novos dispositivos narrativos audiovisuais.
Palavras-Chaves: Aby Warburg. Interfaz. Imagem. Memória. Novas Narrativas audiovisuais.

Neste ensaio pretendo realizar uma pequena incursão ao que passo a chamar de “proto interface”,
a partir da perspectiva da Arte da Memória, que buscou, a partir da mnemotécnica, se associar a
uma representação ou visão de mundo em seus respectivos períodos. Podemos, assim, detectar a
utopia da busca do conhecimento através das imagens mentais e representações que se
materializam em dispositivos que futuramente se tornaram aparatos de representações coletivas e
que nos levaram à formulação de modelos mentais de pensamento, como o teatro grego e a
câmara escura até chegarmos à interface.
A chegada da internet e a sua rápida implementação nos leva a detectar a aparição de um novo
“modelo mental”, a interface, apontada por Josep M. Català como o surgimento de uma
plataforma que busca o funcionamento e tensão entre a técnica, indivíduo e sociedades e em que
essas inter-relações se desenvolvem de maneira mais associadas com as novas realidades. Para o
autor o conceito de interface está além da simples relação entre a máquina e o usuário, pois tem
um alcance transcendental para compreender a nova situação híbrida que se produz na natureza
sociotécnica em que nos encontramos. A sua fenomenologia da interface tem um enfoque mais
amplo e pode ser considerada como o projeto de uma compreensão mais completa do mundo.
Assim, a ideia da interface vai além de um neologismo da revolução digital e passa a atuar como
“agente modelador da percepção”, situado entre o real e o virtual, um espaço tecnológico e ao
mesmo tempo cognitivo em que acontece o processo de “interação”.

1
Trabalho apresentado no GP Comunicação, Imagem e Imaginários XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa em
Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2
Doutorando na Universitat Autònoma de Barcelona sob a orientação do professor Josep M. Català Domènech .
Zooliveira@uol.com.br.

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A MEMÓRIA E A REPRESENTAÇÃO DO MUNDO


Mnémosyne rege desde o início dos tempos as relações entre memória e criação, conhecimento e
poesia, ciência e artes. Sobre a sua égide há 2.700 anos se iniciam as Artes da Memória na
Grécia, abrindo caminho para uma arte global combinando, pela primeira vez, o lugar e a
memória, o espaço e o tempo, a representação e o movimento, a imagem e o pensamento. Da
aventura de Mnémosyne e Zeus nascem as nove musas que passam a inspirar a criação artística e
científica e se consolidam os diversos modelos de conhecimento, entre eles a ideia de um
pensamento visual. Os relatos de Cícero em De oratore, revela como Simônides inventou essa
arte associando-a como uma das cinco partes da retórica (inventio, dispositio, elocutio, memoria,
pronunciatio). Outras descrições podem ser encontradas no anônimo AdC. Herennium libri IV e
em Institutio oratoria, de Quintiliano.
O Ad Herennium de ratione dicendi (86-82 A.C.) é o único documento remanescente da
antiguidade grega e latina. Nele o autor define a memória como um atributo importante para o
orador e a distingue entre natural e artificial. A primeira é inserida na alma no nascimento, junto
com o pensamento e as outras faculdades. A segunda é fortalecida pelo treinamento técnico de
imprimir “lugares” e “imagens” na memória, o que poderia ser uma “rede exocerebral” ou
“circuitos externos de memórias”, de que Roger Bartra, em Antropología del cérebro (2007),
destaca a “avassaladora complexidade com que essas sustentam a memória coletiva”.
Hoje detectamos que a nossa memória foi transferida para dispositivos externos – os desktops
(mesa de trabalho), os laptops (em cima do colo) ou os smartphones –, diferentemente do que
ocorria antes da invenção Gutenberg. Então, uma memória treinada era fundamental, já que a
articulação das imagens na memória implica em certa medida a psique como um todo, pois ocorre
uma apropriação da “arquitetura da época” para a elaboração dos “lugares de memória” e do
“repertório figurativo”. A associação entre o pensamento, o lugar e a imagem talvez seja o
primeiro “dispositivo” criado pelo homem para armazenar e organizar a memória. É também
onde podemos encontrar a ideia de uma paisagem mental que já não está mais separada do lugar,
uma vez que as artes da memória expõem a ligação entre pensamento, lugares (loci) e imagens
(imagine). Isso se torna uma criação humana, inseparável do lugar, e uma nova maneira de
expressar ideias por meio de imagens, que não é mais efêmera, mas constitui uma ferramenta no
exercício do pensamento. O “vagar” coloca em movimento um dispositivo mnemônico e
imagético que possibilita ao homem que entra no percurso reduzir o seu nível de consciência,
deixar livre a imaginação criativa e assim produzir conhecimento. O percurso é divido em
sequências onde são armazenados em uma ordem específica cronológica ou lógica os itens a

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serem lembrados. Cada sequência cria uma imagem mental que será projetada em lugares quando
revisitado mentalmente pelo vagar. Esse vagar e a construção de imagens mentais podem ser
associados à interface.
A interface utilizaria, portanto, os registros correspondentes ao imaginário para expressar tanto o
imaginário como as outras formas de conhecimento. Nesse sentido, seu funcionamento se
equipararia ao dos outros meios que também gestionam o conhecimento geral através das
linguagens específicas daquelas regiões mentais das que são diretos representantes. O teatro
gestiona o simbólico e o imaginário através do real; a literatura processa o real e o imaginário
através do simbólico; e, finalmente, a interface se ocuparia do real e do simbólico através das
formas do imaginário (CATALÁ, 2010: 158).
A arte da memória prenuncia a chegada das imagens em movimento. Nestes espaços físicos ou
criados artificialmente é possível encontrar, numa proposta arqueológica, “acoplamentos
dialéticos” de lugares-imagens que se tornam uma inteligência emotiva a partir de narrativas
mentais criadas durante o percurso. Da mesma forma que revela um marcador (sintoma), um
lugar (loci), individualizado e intimista dos antigos palácios da memória que hoje se tornam
porosos e coletivos com a chegada das novas tecnologias, eles permitem a passagem para a
construção de um grande número de possibilidades e dispositivos com infinitas combinações que
renovam o conceito de “labirinto”. Um vagar significativo entre enigmas simbólicos com um
percurso ligado pela “realidade expandida” das novas paisagens virtuais e formado por links e
hiperlinks.
Esses “dispositivos”, atualmente, são elevados ao status de “enigmas simbólicos narrativos”,
como podemos perceber nos videogame como Dear Esther3. Assim, as metáforas visuais se
inserem na criação de “mundos possíveis” por ocorrer uma ruptura dinâmica entre a imaginação e
a realidade, e nos leva a entender a visualidade nos processos de interatividade incorporada
tecnologicamente.

RAYMOND LLULLE E O MOVIMENTO DAS IMAGEM


Na era medieval, pelas mãos do filósofo catalão Ramon Llulle (1272-1316), encontramos a arte
da memória baseada na alegoria da Arbor Scientiae [figura 1]. Ali se estrutura um conjunto de
conhecimentos agrupados em florestas, sendo a imagem da árvore uma metáfora para o
crescimento da natureza e do saber e “ilustra um fenômeno central em história cultural, a
naturalização do convencional, ou a apresentação da cultura como se fosse natureza; da invenção

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The Chinese Room for Microsoft Windows, Mac OS X and Linux, 2012

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como se fosse descoberta” (BURKE. 2003: 82).

Figura 1. Raymond Llulle, Arbor Scientiae, 1515; e o Sistema


detalhado do conhecimento humano, da Encyclopédie, de Diderot
e d’Alembert, 1751-1765.

Llulle também concebe um modo diferente de representar o mundo, buscando na origem


cabalística uma representação alfanumérica. Ao mover os mecanismos imaginários, cria-se uma
combinatória de letras que recriam o mundo. O llullismo se espalha rapidamente pela Europa até
o século XVII, apesar da perseguição implacável do inquisidor catalão Nicolau de Eymerich
(1320-1399), no século XIV. Suas ideias alcançam dimensões extraordinárias no Renascimento,
sobretudo por causa de seus seguidores, entre eles Nicolau de Cusa. Llulle introduz o movimento
nas imagens e a abstração (imaginação) na especulação mental. Diferentemente da arte clássica,
não exigia o esforço de incitar a memória por meio de similitudes corporais dramáticas e
emocionais, mas levava à criação de uma frutífera interação entre a arte da memória e as artes
visuais. Ele concebeu uma máquina lógica [figura 2], constituída por círculos concêntricos
contendo palavras que, dispostas em uma certa ordem, formavam perguntas e respostas. Ao
mover os mecanismos imaginários, cria-se uma combinatória de letras que recriam o mundo. Isso
dá ao llullismo um caráter quase algébrico ou cientificamente abstrato. Essas combinações não-
figurativas são uma forma de alcançar o conhecimento por meio de dispositivos simbólicos. O
pesquisador André Lemos, em As estruturas antropológicas do ciberespaço, afirma que
Da mesma forma, a metáfora da teia (o WEB), que liga todas as informações disponíveis
no planeta, serve hoje como imagem para o ciberespaço. As interfaces gráficas são
também metáforas e alegorias para a busca de informações. Manipular os ícones revela a
essência da manipulação mágica. Dessa forma, a manipulação mágica do mundo, como a
manipulação de dados no ciberespaço, se situam na mesma dinâmica (LEMOS, 2008,
Online).

Esta transição para uma arte “combinatória” é um momento chave na mecanização do


conhecimento.

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Figura 2. Reprodução de uma das máquinas de Llulle na tradução francesa de


Ars Brevis (1901). O disco central e os dois anéis são móveis.

Teatro das ideias e da memória de Giulio Camillo


A arte da memória teve o seu apogeu na Itália, entre os séculos XV e XVI, e muito se deve ao
conceito de “Teatro da Memória”, de Giulio Camillo. O filósofo da renascença propõe o modelo
de um espaço teatral composto por 49 degraus, onde estariam presentes textos e imagens
baseados em mitos e arquétipos, filosofia, número, estrelas e planetas, cuja posição no teatro
determina o significado de cada imagem [figura 3]. O praticante da arte da memória [usuário], ao
penetrar no fluxo e movendo-se nas múltiplas direções em que as informações suscitavam,
ingressaria num mundo de transformação interior [imersão], no sentido de um aperfeiçoamento
crescente que num primeiro momento seria de ordem retórica, para posteriormente evoluir ao
“espiritual, mágico, divino”, um espetáculo “imitável e memorável”.
L’idea del Teatro pode ser considerado uma “tessitura” por entre textos, imagens, ideias
que remetem à imagem de um “grande teatro da memória e da sapiência, no qual textos e
imagens se cruzam a todo instante, enquanto revelam sentidos e partem novamente (...)
numa cintilação momentânea, momento em que a imagem tornar-se-ia signo do divino,
ligar-se-ia à essência celeste que ela encarna e tornar-se-ia intercambiável com essa
essência (ALMEIDA, 2005: 27-46).
O teatro de Giulio Camillo forjou a visão de um sistema universal de armazenagem e recuperação
da memória, e da mesma forma um sistema ou um dispositivo simultaneamente aberto e fechado,
sempre passível de atualizações. Nesse sentido, o teatro se torna um dispositivo interfásico, uma
vez que propõe ao usuário uma atuação e ao mesmo tempo a possibilidade de mudar de
plataforma ou de passar a outro nível.
A construção de seu teatro marca o momento em que a memória se desloca do interior da mente
para o mundo exterior. A memória natural, por mais elaborada que fosse sua organização – graças
às técnica da memória artificial –, não deixava de ser um lugar mental, um mecanismo ou uma
capacidade, que se escondia nas profundezas da estrutura da mente humana. Camilo a retirou
desse poço, antecipando-se em uns 400 anos à revolução dos computadores, que constituiria um
segundo, e bastante mais afortunado, intento nesse sentido.
É um teatro que buscava representar o mundo, e não transformá-lo. O “usuário”, ao penetrar
nesse espaço de representações, entrava também em um processo de busca de

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conhecimento.

Figura 3. Teatro da memória, de Giulio Camillo.

O Homo nexus de Giordano Bruno


A Ars Magna pensada por Llulle foi elevada por Giordano Bruno ao status de link: onde
“aprender pensamentos” se transforma em “aprender a pensar” para nutrir hoje a cultura digital.
Segundo François Boutonnet (2013), Bruno tenta uma síntese corajosa da arte clássica da
memória de Llulle, ao animar imagens combinatórias e passar a utilizar os dispositivos de
engrenagens em cenas marcantes e seres estranhos do antigo Palácio da Memória4.Giordano
Bruno (1548-1600) luta desde os meados do século XVI para romper as fronteiras inabaláveis que
separam, ainda hoje, a ciência da consciência e a imaginação. Seus dispositivos (Rodas da
memória) antecipam a importância das interações no desenvolvimento da Cibernética [figura 4].
Inspirado por Raymond Llulle e seu antecessor, Nicolaus Copernicus, Bruno cria o que seriam os
links no conceito contemporâneo. Ou seja, janelas que se abrem para novas conexões no centro
do seu trabalho. Bruno estava interessado na natureza das ideias e no processo associativo
operante na mente humana, incorpora elementos da Cabala e do neoplatonismo para impulsionar
uma revolução global no modo de pensar que, “comparado a Giulio Camillo, utiliza de forma
mais audaciosa imagens e signos notoriamente mágicos, dentro da tradição da memória oculta
(YATES, 2007: 261).

figura 4 – Rodas da memória, de Giordano Bruno

Giordano Bruno emprega as cenas marcantes das antigas arte da memória, que são arquiteturas
reais e imaginárias, mas em suportes totalmente desmaterializados, engrenagens impulsionadas
por mecanismos complexos. Estes dispositivos funcionam como instrumentos heurísticos que
procuram criar e encontrar, a partir de um procedimento simplificador (não simplista), respostas
variáveis, menos que imperfeitas, para um determinado problema e que podem atualizar a
4
Alain Montess, A arte da memória on line (2002), disponível em http://recherche.univ-lyon2.fr/grimh/ (acessado
em 06/05/2015).

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infinidade de combinações que compõem um quadro da realidade.


Em uma época de escuridão, Bruno propõe a ideia do homo nexus5, para o que Alfred Elton van
Vogt cunha, em Voyage of the Space Beagle (1950), o termo “nexialismo”, referindo-se a uma
ciência que não seria a simples soma de disciplinas que compõem o conhecimento humano, mas
uma ciência em que houvesse uma interligação ou nexus entre todas. Uma oposição à visão atual
de um universo de especialização, onde o importante é ter uma visão do todo ou pensar “out of
the box”. Se na Idade Média a oratória perdia sua força, no Cristianismo ela reaparece:
A arte da memória era um sistema que comunicava o mundo cultural com o microcosmos
interior. E não só abria um canal de comunicação: permitia que com os artifícios da
cultura se manifestassem as esferas da alma. Essa introdução forçada dos poderes da
imaginação em elevadas partes racionais da alma foi um desafio para a escolástica cristã
(BARTA, 2007: 190).

Jacques Le Goff , em História e memória (1990), lembra dos homens-memória dessas sociedades
ágrafas, desde os funcionários da memória, os mnemon (arquivista), e revela um período em que
se “venerava os velhos, sobretudo porque se via neles homens-memórias, prestigiosos e úteis”,
similar ao que acontece no romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, adaptado ao cinema por
François Truffaut (1966).
Para “o acadêmico de nenhuma academia” Giordano Bruno, a relação entre memória, linguagem
e imagem é uma ciência como magia. Em Tratado da Magia (2008), define que “Magos” seriam
“homens sábios com capacidade de agir”. Da mesma maneira que podemos observar que no
centro de sua filosofia está a ideia de que há uma “continuidade entre as ideias, as palavras, os
símbolos e as coisas concretas, os objetos, as substâncias e os seres vivos”, ou seja, o pensador
procura estabelecer uma “ligação” com o todo e criar uma verdadeira antropologia dos links. No
final do século XVI, Giordano Bruno irá representar uma espécie de clímax dessas interações.
Depois da Reforma (início do século XVI) e da criação da imprensa por Gutenberg (meados do
século XV), se cairá um longo silêncio sobre a arte da memória, sobretudo após a morte de Bruno
na fogueira, em 17 de fevereiro de 1600.

PALÁCIOS DAS MEMÓRIAS E OS MIND MAP


A “técnica de lugares” usada até o Renascimento em muitas variações. A abadia, com suas
dependências e os objetos a serem colocados em diferentes lugares do espaço, será útil como
âncora mnemônica (memórias artificiais) para as diferentes etapas do discurso, como técnica para
lembrar os elementos representados [ figura 5].

5
Do latim Nexus. Ligação; conexão.

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Figura 5. Sistema de memória de uma abadia e imagens para serem usadas no Sistema
Mnemônico. Johannes Romberch, Congestorium Artificiose Memoriae, Veneza, 1533.

No antigo Palácio da Memória, o percurso mental ativa a


máquina de memória que estimula a máquina de imagem. O deslocamento cria imagens que
geram pensamento. Na Idade Média, o deslocamento torna-se físico nos caminhos da oração ou
nos passeios pelos jardins renascentistas. O caminhar convida à mobilidade do olhar e ao mesmo
tempo convida à mobilidade das imagens. Hoje, vagar nas potencialidades digitais torna-se um
percurso divertido, interativo e imersivo. Os Mind Map (mapas mentais) criam novas ferramentas
de conhecimento.
Até aqui tentei realizar um percurso de recuperar a arte da memória, mas buscando localizar nesse
processos elementos do que denomino “protointerface”, tentando identificar o que Josep Català
desenvolve como modelo mental. Já em 2005, o pensador catalão efetiva que a interface se
apresenta como um espaço epistemológico que funciona por meio de um procedimento
hermenêutico. Ele sublinha a ideia do interativo de “caráter temporal, dialético que, através do
movimento, da fluidez e das transformações que alcança a própria plataforma de atuação, revela a
instabilidade de todo o conjunto”(CATALÀ, 2005: 574). Essa aparência de um paradoxo de
pensamento, ao meu ver revela ou demonstra uma grande simplicidade. A interface é um espaço
que gera conhecimento: “Visto que a interface pretende resolver, em sua própria constituição,
alguns confrontos contemporâneos entre o saber e a arte, entre o que é científico e o que é senso
comum, entre o mundo real e o mundo do pensamento” (CATALÀ, 2005: 574).

PENSAMENTO VISUAL OU PENSAMENTO POR IMAGENS


No início do século XX, Aby Warburg foi um dos primeiros exploradores da readaptação das
artes da memória e continuará com suas pesquisas. Inicia o Atlas Mnémosyne, nome dado a um
ambicioso projeto inconcluso: um atlas iconográfico que iria catalogar e reconstruir a memória
visual do Ocidente, em sua cadeia de Pathosformeln. Nesse projeto podemos encontrar
semelhanças com o Teatro de Giulio Camillo, buscando e redescobrindo, nas origens das
invenções vanguardistas, dispositivos de vários milhares de anos de artes antigas da memória.

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O pensador alemão centrou a sua atenção nas representações de figuras em movimento, fez do
desfile das imagens um instrumento de análise e o seu projeto, durante a década de 1920, seria
consagrado à elaboração de uma metodologia da montagem. Warburg alterou a própria ideia de
representação, que deve ser entendida, a partir daí, não como forma de pensar, mas como
“comparecimento”, ou seja, já não se trata apenas de compreender, mas de produzir efeitos.
Warburg entra na história da arte pela porta do Renascimento – ou “sobrevivência” da
Antiguidade. No Nascimento de Venus e a Primavera, obras de Sandro Botticelli, que foi o
corpus da tese de doutorado do jovem Warburg, aparece pela primeira vez a preocupação pelas
continuidades e a sobrevivências da Antiguidade Clássica. Gesto e movimento por um lado e a
relação entre a mentalidade primitiva e a expressão corporal violenta foram os principais temas de
interesse de Warburg. Sobretudo as “sobrevivências” desses conceitos desde a antiguidade
clássica. Ele continuou a analisar as imagens que são transferidas de uma cultura para a outra em
diferentes espaços de tempo sem, no entanto, permanecerem inalteradas. Interessava-se pela
análise das relações complexas entre o artista e o seu meio, com destaque para os aspectos como
o papel do comitente (quem encomenda) na produção artística e a relação dos artistas com os
modelos literários circulantes, especialmente no que diz respeito ao exame dos mecanismos de
transmissão e sobrevivência cultural da Antiguidade.

O SOPRO DE BOTICELLI COLOCA A VELA EM MOVIMENTO


Em 1903, Warburg envia uma carta a sua esposa após assistir a uma apresentação da bailarina
americana Isadora Duncan6, que durante a sua estadia em Florença ficou impressionada com a
Primavera de Botticelli e criou a coreografia Tanzidyllen em que utilizou várias figuras da pintura
na tentativa de repetir e reelaborar os gestos da famosa tela. Warburg se interessou pela
apresentação, porque a dança era uma disciplina artística diretamente envolvida nas suas
elaborações teóricas do Pathosformel (forma do patético) que vinha amadurecendo naqueles
anos. Conceito que, como concebido pelo pesquisador, não é apenas um gesto ou uma posição,
mas um movimento que envolve todo o corpo e investe em um Pathos intensamente expressivo e
de “sobrevivência” das formas antigas e de gestos expressivos, através do Renascimento até os
tempos contemporâneos. A atenção à dança de Isadora Duncan mostra que as suas pesquisas
também estavam em constante movimento e que não era limitada apenas aos estudos das formas
do Renascimento, mas a um método que poderia ser expandido sempre.

6
  Linda Selmin. “L'americana scalza.Un inedito di Aby Warburg su Isadora Duncan”. Disponível em
http://www.engramma.it/engramma_v4/warburg/fittizia1/34/duncan.html Acessado em 21/05/20015.

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O Museo Cartaceo, conhecido como “museu de papel”, modelo de catalogação fornecido pelo
mecenas e colecionador italiano Cassiano Dal Pozzo (1588-1657) no início do século XVII foi
uma das origens de Mnemosyne, “mas a exegese warburgiana permaneceu estranhamente muda
sobre essa origem” (MICHAUD, 2013). Muito antes da descoberta da fotografia, do Atlas de
Warburg e do Museu Imaginário de André Malraux, o trabalho de Cassiano Dal Pozzo,
constituído por milhares de gravuras ou desenhos que abarcam os campos da zoologia, da
botânica e da geologia, assim como da arte e da arquitetura, já existira. O “museu de papel”
pretendia tornar visível e classificar, às vezes por princípios iconográficos, o saber universal dos
homens sobre a natureza e sobre a história. A construção do Atlas Mnemosyne – tributário do
nascimento das primeiras agências fotográficas (Alinari, Anderson, Braum etc.), que, a partir do
fim do século XIX, procuraram montar um inventário sistemático das obras de arte que faziam
circular não mais sob a forma de gravuras ou desenhos, mas sobre a forma de cópias fotográficas
– parece inscrever-se na linhagem direta dos musei cartacei. No entanto, o Atlas não constitui a
versão contemporânea deles (MICHAUD, 2013: 319).
Observando a prancha C [Figura 7], podemos perceber que o Atlas foi concebido como uma
sucessão de mapas diacrônicos, destinado a acompanhar a migração das imagens ao longo da
história das representações, mas não se limita em apenas descrever estas migrações: ela as
produz, ou seja busca produzir um efeito, inclusive nas camadas mais prosaicas da cultura
moderna. A Prancha C aborda a epistemologia e a prática da criação de símbolos. Podemos
perceber as polaridades que Warburg frequentemente traçava entre uma visão de mundo
astrológico-demoníaca e uma visão matemático-racional. O que se torna visível com o foco na
concepção inicial do sistema solar de Johannes Kepler e a forma como ele é construído com os
cinco sólidos platônicos e a sua posterior descoberta de que os planetas têm órbitas elípticas. A
figura exemplar de Marte é representada em formas míticas e matemáticas. Enquanto isso, o
domínio do céu do Graf Zeppelin sugere a promessa da tecnologia7.
Assim, Warburg pensa a imagem como uma estrutura cinemática, dentro da problemática do
movimento, isto é, da montagem. As cadeias de imagens são dispostas como ideogramas, de
maneira a produzir uma nova linguagem na história da arte que se aparenta com a sintaxe visual
de Serguei Eisenstein, ou seja, uma imagem é sempre um organismo complexo, não natural e o
resultado de uma montagem de espaços heterogêneos (MICHAUD, 2013: 325-326). Assim,
Warburg pensava com imagens consteladas e montagens que envolviam a questão do movimento

7
Claudia Wedepohl - http://warburg.library.cornell.edu . Acessado em 5 de junho de 2015

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como fundamento da reflexão e também como uma nova dimensão nas disposições
bidimensionais do Atlas.
A montagem – pelo menos no sentido que aqui nos interessa – não é a criação artificial de
uma continuidade temporal a partir de “planos” descontínuos agenciados em sequências.
É, pelo contrário, um modo de desdobrar visualmente as descontinuidades do tempo da
obra em toda a sequência da história (DIDI-HUBERMAN, 2002: 474).
Assim, a memória oferece sustentação decisiva para a análise desses movimentos, com o que
retornamos ao engrama. As imagens para Warburg são tanto objetos materiais como formas de
pensamentos, modos de conceber, de pensar com imagens. De tal modo as imagens produzidas
pela interferência do homem na cultura se vinculam com sua capacidade de simbolização, ou seja
a “cultura” é o resultado dessa interferência na realidade social, e ao mesmo tempo na memoria
social, que poderá culminar com as novas ideias de “arquivo”.

Figura 7. Prancha C. Evolução da ideias sobre Marte. Superação da concepção antropomórfica de


imagens – Sistema Harmônico – Signo.

Assim, a memória oferece sustentação decisiva para a análise desses movimentos, com o que
retornamos ao engrama. As imagens para Warburg são tanto objetos materiais como formas de
pensamentos, modos de conceber, de pensar com imagens. De tal modo as imagens produzidas
pela interferência do homem na cultura se vinculam com sua capacidade de simbolização, ou seja
a “cultura” é o resultado dessa interferência na realidade social, e ao mesmo tempo na memoria
social, que poderá culminar com as novas ideias de “arquivo”.
Para Warburg, as imagens são sempre formas de uma memória social, elementos do imaginário,
memórias artísticas e emocionais. Na Introdução à Mnemosyne, de 1929, ele afirma que
Tanto a memória da personalidade coletiva como a do indivíduo vêm socorrer de modo
todo peculiar o homem artístico, que oscila entre a visão de mundo matemática e a
religiosa: ela não o faz criando prontamente o espaço de reflexão, e sim atuando junto aos
polos limítrofes do comportamento psíquico, de modo a reforçar a tendência à
contemplação serena ou à entrega orgiástica. Ela aciona mnemicamente a herança
indelével, não com uma tendência primariamente protetora, mas com a inserção na obra de
arte, formando o estilo, o ímpeto pleno da personalidade crédula, tomada pelo phóbos
passional e abalada pelo mistério religioso – assim como, por outro lado, a ciência, ao
fazer seus registros, grava e transmite a estrutura rítmica na qual os monstros da fantasia
se tornam os condutores da vida que determinam o futuro (WARBURG, 2015: 365).

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O referencial dialético das construções warburgianas se transforma no choque dos conceitos de


Jacob Burckhardt, de onde vem o Ethos apolíneo, que seria uma inteligência organizada e na
contramão do Pathos dionisíaco de Friedrich Nietzsche, ou a energia natural, instintiva e pagã.
Aliás, a relação de Warburg e Nietzsche tem também como ponto comum a psicose que leva à
curiosidade científica, não atoa Warburg mantinha um retrato do autor de A gaia ciência enfermo
colado na parede de seu quarto. Essa inequívoca identificação com o filosofo.
“É certo que o bom Deus está presente em todas partes?”, perguntou uma menina à sua
mãe: “acho que isto não está bem”. Uma advertência para os filósofos! Deveria honrar o
pudor com que a natureza se oculta nos enigmas e nas incertezas heterogêneas. “O bom
Deus se esconde nos detalhes” será a resposta de Warburg à criança, e o seu modo velado
de honrar ao mesmo tempo a advertência e a memória de Nietzsche (STIMILLI, 2005:
22).
A resposta à menina de Nietzsche, “Deus está nos detalhes”, demonstra não apenas a sua
necessidade de olhar a história nos entremeios das tramas da análise iconográfica, mas uma
construção antropológica do homem e dos seus vestígios sem enigma. Olhar os detalhes não é
uma solução do dilema, mas a abertura para novos dilemas que surgem nas “histórias de
fantasmas para gente grande”, ou seja, uma expansão metodológica da Kunstwissenschaft (ciência
da cultura) que “abre caminho, conserva e dá curso a uma estrutura rítmica na qual os monstros
da fantasia se transformam em guias da vida que decidem o futuro”(WARBURG, 2015: 365).
Giorgio Agamben diria que a cultura é um processo de Nachleben, ou seja, de transmissão,
recepção e polarização. Isto abre o horizonte para compreendemos por que o pensador
concentrava a sua atenção no problema dos símbolos e da existência na memória social8. A sua
preocupação principal com as imagens era quanto ao seu uso na interpretação da história, ou seja,
seu valor sintomático. Assim, se reconstruirmos o seu cenário original colocando-as no meio
cultural em que surgiram, se descobrirmos os laços que as vinculam aos seres humanos do
passado, elas irão revelar algo do quadro psicológico de sua época e de seu estado e atitudes
dominantes, ou seja a memória como uma construção humana, a capacidade do colecionista de
retirar o objeto de um contexto a fim de redimir e criar uma nova constelação.
É uma metodologia anacrônica de compreensão de documentos e imagens, também sugerida por
Benjamin, como uma “história lida no contrafluxo”, aflorando evidências da ação do homem em
espaço e tempo diferentes. A esse olhar de uma periodização histórica criado pelo desfazer,
Warburg chamou de “evolucionismo geral”. Ele prefere a ideia de uma iconologia do intervalo,
que seria um método historiográfico das imagens a partir de determinados gestos, que é percebido

8
Dossiê Warburg. Organização Cezar Bartholomeu. Revista Arte&Ensaios nº 19. PPGAV-EBA/UFRJ. 2009.
Disponível em http://www.ppgav.eba.ufrj.br/wp-content/uploads/2012/01/ae22_dossie_Cezar-Bartholomeu_Aby-
Warburg_Giorgio-Agamben1.pdf. Acessado em 20 de Abril de 2015.

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por um olhar atento aos detalhes. As possíveis lacunas, entre um campo e outro do Atlas, podem
ser preenchidas pelas indicações que a própria memória faria emergir e onde os conceitos de
“sobrevivência” e “Pathos-formeln” enxertariam à história da arte uma perspectiva impregnada
de afetos e distante de uma objetividade espaço-temporal linear. O Atlas inacabado de Warburg, e
não poderia ser de outra forma já que se ele fosse finalizado iria contrariar a própria essência do
método, se configura como um sistema mnemotécnico “interfásico” de uso privado, no qual o
erudito e psicótico Aby Warburg projetou e procurou resolver seus conflitos psíquicos pessoais.
Em Mnemosyne, constatamos que o destino das imagens também só pode ser apreendido
em termos de montagens, desmontagens e remontagens perpétuas. Daí que toda a teoria
warburguiana da memória tenha acabado por se organizar em torno da noção operatória de
intervalo (DIDI-HUBERMAN, 2013: 236).
Assim, esse dispositivo ou aparato revela uma maneira de encarar o estudo da tradição das
imagens e a interpretação do problema histórico, tornando-se um “diagnóstico” do “homem
ocidental lutando para se curar de suas contradições e para encontrar, entre o antigo e o novo, sua
própria moradia vital” (DIDI-HUBERMAN, 2013: 236).
Esse método mnemônico, ao abranger toda uma construção social que ele faz ressurgir, pode ser a
raiz da construção de uma espacialidade para as imagens. Ao dispor essas imagens em uma
prancha, tal qual as mesas de rituais, “uma forma visual do saber, uma forma sábia de ver” (DIDI-
HUBERMAN, 2013: 236), revela a exposição de um pensamento. É um modo de tentar dar
“dimensionalidade” a um aparato ou dispositivo do exercício do conhecimento ou, como se refere
Català ao falar de interface, expor o pensamento. E, a partir disso, construir o conhecimento
baseado nos deslocamentos propostos pela mnemônica warburguiana. Essa ideia dos
deslocamentos é algo que o conceito da interface também propõe: “Um pensamento complexo de
caráter multidimensional especialmente preparado para produzir conhecimento multi, inter e
transdisciplinares”( CATALÀ, 2011:22).

DISTOPIA X REALIDADE
Com o surgimento da “multimídia”, o retorno das artes da memória será ainda mais espetacular.
Esse trabalho de recuperação que estivemos fazendo do antigo conceito de armazenamento de
conhecimento e a imaginação manipulada através de “imagens ativas”, posicionadas em lugares
reais ou imaginários, em arquiteturas mentais da nossa própria memória hoje acontece através de
ícones dinâmicos na arquitetura dos computadores. Os inúmeros locais criados pelas Artes da
Memórias ao longo de 2500 anos, ao mesmo tempo muito concretos e também muito fluidos, terão
sido como o Palácio da Memória, os jardins dos saberes, as cidades solares ou cósmicas, os montes
sagrados, o teatro do mundo, as lanternas mágicas, os teatros cinematográficos e – a partir de agora

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– os teatros virtuais, estes novos espaços de representação com seus ícones, suas janelas, seus
portais, seus laços e os seus hipertextos.
A Arte da Memória, que foi assimilada de maneiras distintas em cada época ao longo dos séculos,
passou por várias transformações, mas conservou em sua essência a questão da interrelação de
imagens e de lugares, como base para estruturar processos de concepção e o próprio sistema em
que usuários, espaços e imagens são partes em um todo organizado para estruturar e permitir o
acesso a conteúdos. As múltiplas possibilidades do ciberespaço surgem como uma forma
contemporânea de uma construção mnemônica: uma memória ampliada do teatro para a dimensão
de toda a humanidade. O melhor, a memória é uma parte acessível e passível de manipulação.
No final de 1997, o francês Christian Francois Bouche-Ville-Neuve (Chris Marker) lançou
Immemory, produzido pelo Centro Pompidou de Paris. Seduzido pela antiga arte da memória, ele
organiza as suas memória como geografia, em que diferentes temporalidades e lembranças
coabitam espaços, territórios e topografias. A força de seu trabalho está numa ideia simples: “a
consciência de uma imagem que constrói a memória permanece um campo aberto de significados,
afetado de modo intenso pela linguagem com que se confronta”. O crítico francês Raymond
Bellour aponta que “toda a tecnologia de computador pode aparecer como as dos teatros gigantes,
como artes e como equivalentes à memória da Antiguidade, da Idade Média e do Renascimento”9.
Chris Marker se apropria da concepção do que é ser contemporâneo proposta por Agamben
(2009), sendo o homem “que concerne o escuro de seu tempo, que não cessa de interpelá-lo que
recebe em seu rosto o facho de trevas que provém do seu tempo” e mostra um modo particular de
relacionar-se com o passado através das imagens que se tornam uma forma de relacionar-se com o
presente: refletir sobre os escombros do seu próprio tempo.
Pensar em uma proposta de uma “arqueologia da interfaz” é ir do entendimento de que são
ferramentas para o uso e movimento em um sistema de informação, seja ele material ou virtual. É
pensar como um dispositivo que atua numa zona de interstício onde o conhecimento se concretiza
através de um novo modelo mental composto por múltiplos espaço de potência imagética. E isso se
situa muito além da relação entre o usuário e a máquina, proporcionada pelas novas tecnologias.
Pois, embora sejam um “produto da técnica, esta por si só não pode compreendê-la porque ela
mesma é o produto de uma imaginação estruturada segundo os parâmetros da interfaz” (CATALÀ,
2005: 640).
A proposta de uma formulação do conceito de “arqueologia da interface” se converte em um
“metadispositivo”, em que a história e a memória se sobrepõem. E desta articulação móvel, o
9
Trata-se do artigo “Le Livre, Aller, Retour (apologie de Chris Marker)”. Originalmente Publicado em 1998 e depois
incluído na coletânea de Raymond Bellour, “L’Entre-Images 2”, em 1999.

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conhecimento a respeito da memória, considerada ativa e emocional, ultrapassa o valor


testemunhal e de simples lembrança, passando a gerar conhecimento. Nas sucessivas camadas que
se abriram durante o percurso deste ensaio foi possível verificar que a memória sempre esteve
vinculada à ideia de imagens, conhecimento e lugares, da mesma forma que o “vagar” possibilitou
organizar simbolicamente as imagens acopladas ao suporte de uma arquitetura virtual.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Milton José. O teatro da memória de Giulio Camilo. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2005.
AGAMBEN, Giorgio. O Que é o Contemporâneo? E Outros Ensaios. Santa Catarina: Argos, 2009.
BARTRA, Roger. Antropología del cerebro. La consciencia y los sistemas simbólicos. México:, FCE, 2007.
BOUTONNET, Francois. Mnémosyne. Une histoire des arts de la mémoire de l’antiquité à la création
multimídia contemporaire. Paris: Éditions dis Voir, 2013.
BRUNO, Giordano. De la magia de los vínculos en general. Bueno Aires: Cactus, 2007.
CATALÀ, Josep M. La Imagen Compleja. La Fenomenología de las Imágenes en la Era de la Cultura
Visual. Bellaterra: Servei de Publicacions, 2005.
_________________. La imagen interfaz. Representación audiovisual y conocimiento en la era de la
complejidad. Bilbao: Servicio Editorial D. L., 2010.
COLOMBO, Fausto. Arquivos imperfeitos. São Paulo: Perspectiva, 1991:124.
CRARY, Jonathan. Las técnicas del observador. Visión y modernidad en el siglo XIX. Murcia: Cendeac,
2008.
DERRIDA, Jacques. Mal de archivo. Madrid: Trotta, 1997.
DIDI-HUBERMAN, George . La imagen superviviente: Historia del arte y tiempo de los fantasmas según
Aby Warburg. Madrid: Abada, 2009.
GÓMEZ LIAÑO, Ignacio. Giordano Bruno. Mundo. Magia. Memoria. Madrid: Biblioteca Nueva, 2007.
GUASCH, Anna Maria. Arte y Archivo. 1920-2010. Genealogías, tipologías y discontinuidades. Madrid:
AKAL, 2013.
MANOVICH, Lev. El Software toma el mando. Barcelona: Editorial UOC, 2013.
MALRAUX, André. O museu imaginário. Lisboa: Edição 70, 2014.
MICHAUD, Philipe-Alain. Aby Warburg e a imagem em movimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
SAMAIN, Etienne. Como pensam as imagens. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2012.
YATES, Frances A. A arte da memória. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2007.
WARBURG, Aby. Atlas Mnemosyne. Madrid: Akal, 2010.
____________. Histórias de fantasmas para gente grande, escritos, esboços e conferências. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015.

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