Você está na página 1de 12

farol

ARtE-MíDIA-CIêNCIA-tECNOLOGIA: NOVOS MODOS DE


PRODUçãO ARtíStICA
Art-MEdIA-SCIENCE-tECHNoloGy: NEW ModES of ArtIStIC
ProdUCtIoN

Ernandes Zanon Guimarães


Faculdade Estacio de Sá

Resumo: Hoje, cada vez mais, os artistas visuais lançam mão de equipamentos tecnológicos como
câmeras e computadores para produzir imagens. O artigo investiga a relação arte-mídia-ciência-tec-
nologia que se coloca como a forma mais atual da criação artística. Os dispositivos, as técnicas e os
efeitos utilizados pelos artistas para produzir e exibir seus trabalhos não são apenas equipamentos
inertes, ao contrário, eles estão carregados de significados, e colocam os artistas diante do desafio
de ultrapassar o determinismo tecnológico embutido nas máquinas e aparelhos.

Palabras-chave: Arte; Mídia: Ciência; tecnologia.

Abstract: Today, more and more, visual artists use technological equipment such as cameras and com-
puters to produce images. the article investigates the relationship between art, media, science and te-
chnology, which is the most current form of artistic creation. the devices, techniques and effects used by
artists to produce and exhibit their works are not just inert equipment, on the contrary, they are loaded
with meanings, and pose artists to the challenge of overcoming the technological determinism embed-
ded in machines and devices.

Keywords: Art; Media: Science; technolog.

164
Introdução e de conexões artísticas, diante de um mundo
As novas mídias percorreram caminhos nos cada vez mais complexo.
últimos tempos, penetrando fortemente nas
artes, ocupando espaço nas sociedades, e exer- Galáxia eletrônica
cendo influência na cultura das pessoas. A revo- Na nova era eletrônica, profetizada por Mar-
lução tecnológica ampliou o conhecimento e a shall McLuhan (1972), assistimos a uma explo-
visibilidade das artes para o mundo. Os artistas são de todos os sentidos, a uma reação contra
tiveram na tecnologia uma forma de diversifica- o domínio absoluto da razão instrumental, atra-
ção e disseminação da arte por meio dos veícu- vés da tecnologia e dos novos meios, que, en-
los de massa, como a TV, fotografia, cinema, e tendidos como uma extensão dos nossos sen-
mais recentemente a internet. tidos, do humano, anunciam um envolvimento
Arte e ciência sempre estiveram intrinsica- total do receptor, buscando uma sensorialidade
mente ligadas. Essa colaboração criativa e pura.
interdisciplinar, existe desde quando o mun- Para se compreender o conceito de McLuhan
do ocidental passou a distinguir a razão do sobre os meios de comunicação como exten-
misticismo. Atualmente, várias instituições de sões do homem, é necessário destacar o fas-
pesquisas, como as Universidade de Harvard, cínio humano pela extensão de si mesmo em
Oxford e Sorbonne, Instituto de tecnologia de qualquer material, produzindo uniões híbridas
Massachusetts (MIt), Universidade da Califórnia que geram liberação de energia e mudança. “As
em Los Angeles (UCLA), entre outras, fomentam novas tecnologias e os novos meios pelos quais
projetos integrando arte e ciência. cada um se amplia e prolonga-se, constituem
Os resultados dessa ligação são diversos, ações com repercussão na sociedade como um
como a criação de obras artísticas com concei- todo” (MCLUHAN, 1996, p. 82).
tos totalmente científicos que chegam a museus As ferramentas de extensão como, por exem-
e galerias de arte contemporânea. Neste caso plo, a palavra falada, a palavra escrita, palavra
existem trabalhos que vão desde a visualização impressa, vestuário, habitação, telefone, ci-
de dados até a criação de inteligência artificial, nema, rádio, televisão, computador, com que
e à robótica. convivemos cotidianamente, se estendem do
Neste artigo, abordaremos o quanto a arte nosso corpo, como na tela touch e no apare-
está cada vez mais se convergindo com a ci- lho smartphone, que está constantemente em
ência, seja pela complementariedade ou pela nossas mãos. Sodré (2002) descreve a vivência
influência recíproca, fazendo surgir um campo nessa nova realidade como o “quarto bios”, uma
extremamente amplo para a criação e a pro- nova existência; domesticação, onde o homem
dução artística contemporânea. A partir de tra- se situa também em um novo tipo de “casa”, um
balhos de artistas que desenvolvem suas obras espaço virtual onde existe como uma extensão
focalizando áreas tecnocientíficas, os avanços da realidade.
da computação e dos meios de comunicação, Na segunda metade do século XX, e com a in-
a biologia e a engenharia genética, são identifi- tensificação nas últimas décadas da globaliza-
cadas possíveis interações entre arte e ciência, ção irreversível da economia e das culturas, um
que são ilimitadas, e vão gradativamente se es- novo ciclo histórico tem início, no qual o regime
palhando com o desenvolvimento de técnicas de simultaneidade e visibilidade, produzido pe-

165
farol

los meios de comunicação eletrônica, ocupa um ços na genética e na vida artificial, leva a uma
lugar central. A conhecida hipótese de que che- reavaliação dos modos de produção artística
gamos ao fim da história e das utopias, como tradicionais e abre novas possibilidades. As
disse Francis Fukuyama (1992) pode ser enten- novas mídias introduzem diferentes problemas
dida como a ideia de que a humanidade teria de representação, exigem a reformulação de
chegado ao “fim da história” pelo fato de que o conceitos estéticos. As principais implicações
modelo de democracia liberal teria se tornado estéticas da arte com recursos tecnológicos,
hegemônico e definitivo, já que, com o colapso interagidos cientificamente, vieram reafirmar
do comunismo, a procura por um modelo mo- noções e práticas de interatividade, simulação
derno de sociedade havia chegado ao fim. e inteligência artificial.
A questão é que o “fim da história” e, a “pós Pierre Lévy (1993) pode ser considerado um
história” se entrelaçam. Para Vilém Flusser, a dos principais teóricos desta nova cultura vir-
“pós-história” não é o final de toda história, mas tual. Inicialmente, sua reflexão engloba a ima-
tão somente o final de um conceito particular de gem, a escrita e o fenômeno da codificação da
progressão histórica linear. Flusser, em seu livro linguagem e do ruído como produtores de com-
“A escrita” (2010) diz que “escrever” resultava plexidade. Lévy dá ênfase às noções de “Virtual,
em “riscar”, e que esse gesto implicava um risco Espaço do Saber” (ou ciberespaço) e “Inteligên-
incisivo sobre uma superfície e necessitava de cia Coletiva”. O “Virtual” é a desterritorialização
uma ferramenta. Atualmente, se faz o uso de um do espaço físico e da materialização do imaginá-
computador com um teclado e uma tela, onde rio. O “Ciberespaço”, de acordo com Lévy:
aparece o que foi escrito. Para finalizar o gesto [...] é o terreno onde está funcionando a hu-
de escrever, se utiliza de uma impressora para manidade hoje. É um novo espaço de intera-
mandar imprimir, que joga a tinta sobre o papel. ção humana que já tem uma importância pro-
funda principalmente no plano econômico e
A escrita, funcionando como repositório de
científico, e, certamente, esta importância vai
uma memória social objetiva, marca não so- ampliar-se e estender-se a vários outros cam-
mente o surgimento da própria ideia de história, pos (LÉVY, 2000, p. 13).
mas também a formação de um legado científi-
co, características que a sociedade ocidental
atribui a si mesma. tudo o que circula no campo O “Ciberespaço” é um estágio avançado
da escrita, se liga aos textos impressos, à leitu- de auto-organização social ainda em
ra sequencial, ao campo científico e filosófico, desenvolvimento, em que o conhecimento seria
à racionalidade. com o advento das novas mí- o fator determinante e a produção contínua
dias eletrônicas, entramos em um novo modelo de subjetividade seria a principal atividade
cultural, que combina o paradigma histórico da econômica. Lévy define ciberespaço como o
escrita com a percepção imagética da simulta- quarto espaço antropológico, sobrepondo-se à
neidade do universo. No entanto, se trata de um terra, ao território e ao Mercado. Os territórios
retorno a um estado que era normal, porque são virtualização da terra; a Mercadoria é uma
antes da invenção da escrita, as imagens foram virtualização dos territórios; e o saber, uma vir-
fundamentais na comunicação. tualização das Mercadorias.
A complexidade do mundo contemporâneo, A relação entre arte, comunicação e tecnolo-
cercado pelos meios eletrônicos, e pelos avan- gia foi se intensificando e, gerando um estágio

166
de convergência. O que ocorre hoje é uma oni- constante modificação e agregação simultânea
presença da tecnologia se expandindo e se hi- às novas mídias. O fenômeno visual, composto
bridizando, afetando, de forma radical, o campo de imagem-movimento-som e uma avalanche
das artes. de novidades apresentadas pela publicidade,
Nos anos 1960, os artistas começaram a uti- provocou profundas mudanças nos comporta-
lizar o audiovisual, incorporando elementos mentos culturais.
como o ambiente em que a intervenção era rea- As confluências entre a cultura de massa, os
lizada, a temporalidade e o próprio espectador. produtos midiáticos de entretenimento e as for-
Os filmes foram realizados como parte integran- mas de expressão em diferentes práticas artísti-
te de happenings, performances, peças concei- cas, que emergiram nas décadas de 1960 e 70,
tuais, filmes estruturais ou poemas visuais. Es- fizeram um percurso de interseções artísticoco-
tas experiências exploravam recursos próprios municativas e hoje estão focados no cruzamen-
da linguagem cinematográfica, como o slow mo- to de linguagens artísticas. Com esse cruzamen-
tion ou efeito de câmera lenta; a filmagem qua- to de linguagens, emergiu um espaço reflexivo
dro a quadro, onde cada fotograma é registrado no qual o artista coloca em questão a própria
separadamente; o contra plano; e a manipula- linguagem que utiliza, e, ao mesmo tempo, rom-
ção direta, aplicando letraset ou pingando tinta pe com modelos preestabelecidos.
sobre a película. Alguns destes filmes apresen- Segundo Lúcia Santaella (2005), as matrizes
tam uma única imagem ou um mesmo tipo de não são puras. Não há linguagens puras. Quan-
imagem do princípio ao fim. Artistas como Nam do se trata de linguagens existentes, manifestas,
June Paik, Woody Vasulka, Dennis Oppenheim, a constatação imediata é a de que todas as lin-
entre outros, souberam combinar de maneira guagens, uma vez corporificadas, são híbridas.
inventiva muitos destes recursos às suas perfor- Quanto mais cruzamentos se processarem den-
mances e instalações. tro de uma mesma linguagem, mais híbrida ela
Segundo Popper (1997), a experimentação será. Para Santaella, o conceito de hibridismo se
com as novas tecnologias coincide com a par- tornou onipresente nas análises socioculturais
ticipação do espectador na obra. Esse proces- contemporâneas.
so teve início na década de 1960 com o grupo De fato, não poderia haver um adjetivo mais
Fluxus, que passou a usar as novas tecnologias ajustado do que “híbrido” para caracterizar
associadas aos happenings e às performances. as instabilidades, interstícios, deslizamen-
tos e reorganizações constantes dos cená-
A produção de Nam June Paik é outra referên-
rios culturais, as interações e reintegrações
cia artística. Suas Instalações e performances, dos níveis, gêneros e formas de cultura, o
envolviam o público, que participava como se cruzamento de suas identidades, a trans-
fosse um jogo. nacionalização da cultura, o crescimento
Outros artistas perceberam inúmeras possi- acelerado das tecnologias e das mídias co-
municacionais, a expansão dos mercados
bilidades nas novas tecnologias audiovisuais,
culturais e a emergência de novos hábitos
bem como seu amplo campo de significados. de consumo ( SANtAELLA, 2008, p. 20).
Michael Rush (2009) aborda questões referen-
tes à arte na era tecnológica apontando a difi-
culdade de traçar a história e a caracterização Nos anos 1960, a Pop Art foi o espaço que se
dos novos meios de expressão em arte, visto sua abriu para essas experimentações hibridizadas,

167
farol

Figura 01 - Outer and quando os artistas começaram a utilizar espe- bal de conexão da humanidade. Embora ainda
Inner Space (still), cialmente a fotografia e a repetição de imagens, seja considerada uma tecnologia em processo e
Andy Warhol, filme
em P&B, de 16 mm,
bem características da época, mas foi na déca- distante para a maioria dos artistas, a realidade
transferido para da de 1970 que essas novas formas se tornam virtual está entrando rapidamente na vida coti-
arquivos digitais, mais concretas. O popismo trouxe humor, inte- diana, principalmente por meio do consumo, do
som, tela dupla, 33
ligência e uma outra narrativa à arte, e influen- entretenimento e da comunicação.
minutos. EUA, 1965.
Fonte: https://www. ciou a publicidade, numa época que ainda era O termo “Novas Mídias” se tornou necessário
artnews.com/art dominada pelas estruturas rígidas de um deca- para dar conta dos trânsitos, hibridismos, multi-
-news/reviews/video
dente modernismo. plicidades. A cultura midiática se revela, assim,
-art-at-50-at-broad
-art-museum-5828/ O Pós-Modernismo ou período Pós-Industrial, como uma dinâmica de aceleração de tráfego
de acordo com Santaella (2003), tem como ca- das trocas e misturas entre múltiplas formas,
racterística as inovações tecnológicas, como a estratos, tempos e espaços, podendo ser hete-
informática, a globalização e o apelo consumis- rogênea, pluritemporal, espacial, efêmera.
ta. É o período que agrega todas as profundas Por volta do início dos anos 80, começaram a
modificações que se desenrolavam nas esferas se intensificar cada vez mais os casamentos e
científica, artística e social desde os anos 1950, misturas entre linguagens e meios, misturas
essas que funcionam como um multiplicador
atingindo o auge nos anos 1980, com o surgi-
de mídias. Estas produzem mensagens híbri-
mento de novas formas de consumo cultural, das como se pode encontrar, por exemplo,
propiciadas pelas tecnologias do disponível e nos suplementos literários ou culturais es-
do descartável como: fotocópias, walkman, fita pecializa dos de jornais e revistas, nas revis-
magnética, gravador de áudio, videocassete tas de cultura, no radiojornal, telejornal etc.
(SANtAELLA, 2003, p. 23).
(aparelho de reprodução e gravação de vídeo),
videoclipe, videogame, controle remoto, disque-
te, seguido pela indústria dos CDs, tV a Cabo e A era das “Novas Mídias”, com a cultura de
DVD;ou seja, tecnologias para demandas simbó- massa imposta pela televisão, apareceu na obra
licas, heterogêneas, efêmeras e mais personali- de Andy Warhol. O artista incorporou a relação
zadas. da arte com o mercado e a indústria cultural, e
A criação de imagens digitais encontrou o seu ainda produziu filmes alternativos e vídeos. Ele
espaço na Internet, que no início era um subes- foi um dos primeiros artistas a exibir publica-
paço periférico, e depois se tornou o centro glo- mente um vídeo como expressão artística.

168
Figura 02 - Exibição
de Zen for Film, Nam
June Paik, 16mm,
P&B, silencioso, 20
min, EUA, 1962 e
1964. Fonte: https://
filmow.com/zen-for-
film-t94097/

Enquanto os popistas provocavam uma re- representação plástica (a brancura da tela, a


volução artística na primeira metade dos anos transparência da luz, a postura ereta do corpo),
1960, Nam June Paik criava a Videoarte. Paik a matéria fílmica (o pó, riscos do próprio mate-
começou apresentando experimentações com rial de que é feita a imagem) instigam um aspec-
os filmes, como em Zen for Film (1962-1964), que to desconstrutivo e performativo no contexto
consistia em três elementos formais: o projetor, da projeção, e Paik liberta o espectador.
a tela em branco e o espaço circundante. A radicalidade de Paik levou para o vídeo uma
A ausência de imagens e som torna o filme estética de desconstrução das imagens ele-
um espaço sem manipulações e livre para inter- trônicas. Ele redefiniu as percepções da imagem
pretações de quem o assiste. “Acrescentados a eletrônica através de uma produção vertiginosa
cada projeção, pó, riscos e outros acontecimen- com aparelhos de tV manipulados, performan-
tos provocados pelo acaso, tornaram o filme, de ces ao vivo, transmissões globais de televisão,
certa maneira, novo” (RUSH, 1999, p. 25). vídeos de canal único e instalações de vídeo, e
Ele integrava a projeção ao se colocar de cos- se juntou a uma nova geração de artistas que
tas para o filme e, iluminado pela luz do proje- estava alterando a maneira como se interage
tor, se tornava parte do enquadramento, trans- com a imagem em movimento.
formando a projeção em uma performance. A Paik se tornou um membro proeminente do

169
farol

Figuras 3 e 4 - Char-
lotte Moorman com
o tV Cello na Bonino
Gallery, em Nova
Iorque, 1976. Fon-
te:https://artrianon.
com/2019/12/10/
obra-de-arte-da-
semana-tv-cello-de-
nam-june-paik/

“Fluxus”, que emergiu como um movimento na intervenção com a vídeo-escultura “tV Ce-
multimídia que procurava envolver o especta- llo” (1976), com a artista performática Charlotte
dor como um participante ativo em suas perfor- Moorman, ele desestrutura o objeto-vídeo e o
mances e instalações, e muitas vezes introduzia insere como parte da obra, rompendo o seu des-
elementos de surpresa e de estranhamentos. tino primário puramente comercial. Paik sinaliza
Foi um precursor da arte da mídia. Ele estava uma arte em sua relação com a eletrônica.
sempre se confrontando com a utilização mera- “tV Cello” foi criado para que a Charlotte
mente comercial da tecnologia. Quebrava a tV, Moorman tocasse em suas performances, en-
distorcia ou manipulava as imagens de alguma quanto vídeos dela e de outros musicistas
forma, ao contrário, Paik usava a tV exatamen- eram exibidos sem som nas telas do “instru-
te para exibir imagens, puras imagens, no lugar mento”. O som emitido era bem diferente dos
dos conteúdos dos canais de tV comerciais, e o violoncelos tradicionais e causava estranha-
vídeo era muito editado com efeitos para impe- mento no espectador.
dir sua naturalidade e o excesso de narcisismo. Ao criar uma linguagem sob a ótica moder-
Nas performances e instalações, Paik utilizava na dos diálogos tecnológicos e o automatismo,
vários recursos de efeitos visuais para demostrar Paik lançou as bases para uma nova geração
como a tecnologia afetava as relações humanas de artistas. No final dos anos 1980, Lynn Her-
e como estas se conectavam no mundo con- shman Leeson transferia as proposições críticas
temporâneo. Ao humanizar a tecnologia, como de videoarte para uma realidade digital. Ativa

170
Figuras 5 e 6 - Cyber-
Roberta, Lynn Her-
shman Leeson, Ins-
talação com boneca,
câmera de vídeo,
webcam, conexão
à Internet, software
personalizado, EUA,
1996; detalhe do the
Infinity Engine, EUA,
2014. Fonte: https://
www.theartnewspa-
per.com/interview/
lynn-hershman-lee-
son-cool-science

desde os anos 1960, Hershman Leeson foi uma plicou que, ao entrar na instalação, “os espec-
das pioneiras das novas formas de mídia e, no tadores vestem um jaleco ‘para que o visitante
decorrer dos anos, explorou a relação com as se torne o investigador de laboratório à medida
tecnologias. Hershman Leeson trabalhou com que passa por essas várias salas’, disse ela, que
fotografia, vídeo, instalação, interativos e vários exploram tudo, desde bioprinting, ética e modi-
formatos digitais. Ela fez “Lorna”, o primeiro dis- ficação genética até dNA”.
co a laser, em 1984, uma peça interativa e contri- Os artistas são, há muito, os primeiros a aces-
buições iniciais para a arte na Internet. Nos anos sar o mundo digital, ampliando o seu potencial
1990, ela começou a trabalhar com tecnologias tecnológico, estético e crítico. A arte dos anos
de inteligência artificial. 1990 foi a primeira a aderir e popularizar total-
Um dos trabalhos mais conhecidos da artista mente essas novas mídias em um contexto ar-
é uma performance privada, envolvendo a sua tístico com a criação de imagens digitais, com
criação em detalhes minuciosos de Roberta artistas como Haroon Mirza, Pipilotti Rist, Cory
Breitmore, uma boneca telerobótica que, du- Arcangel e Cécile B. Evans.
rante cinco anos, desenvolveu uma existência Mirza é conhecido por suas instalações escul-
real e documentada, e, prenunciou obras de turais que geram composições sonoras. Rist cria
mídia social com temas de identidade do século vídeos experimentais e instalações com autor-
XXI. Em sua mais recente exposição multimídia, retratos e cantos. Seu trabalho é frequentemen-
“Anti-Bodies” (2018), ela discute sua paixão pela te descrito como arte surreal, íntima e abstrata,
biotecnologia. A instalação “The Infinity Engine” tendo uma preocupação com o corpo feminino.
(2014) incluiu oito salas, que se assemelhavam Arcangel toma como modelo a constância da
a um laboratório. Em entrevista de 2018 a Ben cultura da Internet, adotando disjunções ra-
Luke, do site “the Art NewsPaper”1, a artista ex- dicais, sensibilidade aberta e um diálogo que

1 URL: https://www.theartnewspaper.com/interview/lynn -hershman-leeson-cool-science.

171
farol

Figuras 7, 8, 9 e
10 - Instalação ããã
- Medo do remix des-
conhecido, Haroon
Mirza, Lisson Gallery,
Nova York, EUA, 2016.
Fonte: https://www.
lissongallery.

Instalação de áudio e
vídeo Homo sapiens
sapiens, Pipilotti
Rist, Igreja de San
Stae, Veneza/Itália,
2005. Fonte: https://
makingarthappen.
com

Instalação Old
Friends, Cory Arcan- incorpora história da arte, literatura e música. ros, programadores e artistas.
gel, projeção a partir Evans leva temas tradicionalmente humanistas, As formas de sentir do virtual tecnológico
de uma fonte digital, são integrantes de uma nova estética, a cibe-
como amor, memória e consciência, a um futu-
Londres/Inglaterra, restética e nos colocam em pleno pós-bioló-
2005. ro especulativo, impulsionado pela tecnologia,
gico, onde o corpo age, pensa e sente aco-
Fonte: https://www. onde wetware, software e hardware se mistu-
plado a corpos sintéticos de computadores
pinterest.ru ram, e pela crescente influência que as novas cujos dispositivos de acesso nos permitem
Instalação Um
tecnologias têm sobre como nos sentimos e agi- entrar nas informações. Neste sentido, de-
vazamento, Cécile mos. O trabalho de Cory Arcangel cruza uma va- vemos compreender a forte dimensão com-
B. Evans, trabalho riedade de mídias, sendo um dos mais famosos portamental das tecnologias e a presença
multidimensional dos artistas que podem com sua imaginação
os cartuchos Nintendo modificados, resultando
com dois robôs propor mundos com “vida própria” em que a
humanóides e um em apresentações visuais esteticamente altera- imprevisibilidade, a complexidade, a reorde-
cão robô, explora das dos videogames Super Mario Clouds (2002). nação caótica a partir de circuitos lógicos di-
o movimento de
A arte funciona como um campo de explo- gitais, interconectados, fazem emergir situ-
dados, inteligência
ração sinalizando mudanças de paradigma ações imprevisíveis e indeterminadas, logo
artificial e a relação
presentes nas relações humanas. Algumas mu- ampliam a dimensão estética em um mundo
entre humanos e
máquinas, tate tecnologizado (DOMINGUES, 2000, [n.p.]).
danças começaram a ocorrer no fim do século
Liverpool, Inglaterra,
2016.
XX, e são percebidas só agora, anos depois, pois
Fonte: https://www. estamos permanentemente submersos no flu- As tecnologias eletrônicas são referências
youtube.com/ xo de acontecimentos do tempo presente; não importantes na constituição de um novo ima-
nos atentamos ao além. A relação entre arte, ginário. O olhar no século XXI está diretamen-
tecnologia e, cada vez mais, com a ciência nos te ligado a questões da ciberarte e sob seus
leva para o desenvolvimento de novas formas efeitos sobre as percepções oculares, ópticas
de viver e se posicionar nesse mundo, onde os e óptico-eletrônicas. As imagens computa-
limites entre o corpo e o mundo se rompem, se dorizadas, sintéticas, geradas por modelos e
perdem e se contagiam. Nas artes visuais, es- programas, nos permite viver na total virtua-
ses rompimentos se materializam nas diversas lidade, sem qualquer relação com a realidade
obras criadas a partir da relação entre engenhei- reapresentada.

172
As tecnologias da imagem em suas hibridiza- sistemas midiáticos.
ções constroem um imaginário mergulhado Entre as décadas de 1960 e 1980 a produção
inconscientemente em conceitos como sín- artística foi sacudida com a introdução de
tese, imaterialidade, heterogeneidade, simu-
aparelhos de TV, câmeras, computadores e
lação, instabilidade, dissipação, multiplicida-
de, flutuação, turbulência, caos, catástrofe e de fluxos de imagens e sons da TV e do cine-
outros conceitos científicos que permeiam o ma que foram apropriados e ressignificados.
texto artístico (DOMINGUES, 1993, [n.p.]). Ocorreu um rompimento entre o suporte téc-
nico e a estética, e o acesso fácil a hardware
O artista se dispersa em redes, sistemas e e software, é apenas uma das características
terminais, como prolongamento de nossos que marcou tais transformações.
sentidos e como fenômeno estético da atuali-
dade, e altera significativamente as instâncias Considerações finais
de produção e de recepção. Os artistas, cada A atualidade nos oferece uma aproximação
vez mais, procuram um envolvimento maior com novas mídias em um processo irreversí-
com as inovações tecnológicas, alterando a vel. O ciberespaço se torna, a cada dia, senão a
história da imagem para um outro imaginário cada minuto, uma incrível ferramenta do fazer
eletrônico. artístico contemporâneo. O tempo e o espaço
A iconografia, que alimenta a produção artís- são vividos em outra perspectiva, como se es-
tica contemporânea, é marcada por imagens tivéssemos em um outro mundo virtual. A visão
de diferentes procedências, que se hibridiza desse mundo também se modifica quando pas-
com uma iconografia científica e tecnológica. samos a ter umas novas imagens produzidas ou
A utilização de dispositivos, tais como câme- levadas a esse novo ambiente.
ras, computadores e outros recursos eletrôni- Atentos a este contexto, a partir dos anos
cos, promovem uma dissolução de fronteiras 1980, os artistas começaram a ampliar as formas
entre arte, ciência e tecnologia, trazendo uma já conhecidas e praticadas pelos vanguardistas
visualidade ficcional, que diferente do real, dos anos 1960 e 70, utilizando novas possibilida-
não se localiza necessariamente na realidade, des tecnológicas que emergiram naquele mo-
mas de uma criação ou uma imaginação a par- mento. Uma das mudanças mais importantes
tir desta. desta proposta é a relação e a interação entre
A arte contemporânea tem apresentado múl- obra e espectador que foi ficando cada vez mais
tiplas formas de experimentações estéticas, intensa, e o que para muitos significava algo in-
que possibilitam uma obra com a participa- compreensível, e até mesmo devastador, foi se
ção, interação e colaboração do público. Esse ampliando indefinidamente e se abrindo para
processo se estende desde o Dadaísmo, pas- novas potencialidades artísticas.
sando pelo Fluxus, Pop Arte e Arte Conceitual, As interações que estas práticas e estes ar-
Artistas desses movimentos perceberam o tistas estabeleceram com um repertório for-
potencial dos aparelhos industriais, como mado por câmeras, projetores, telas e espaços
Nam June Paik, que deixou de lado a simples de projeção, que formavam a base de trabalho
utilização instrumental desses aparelhos in- para muitos artistas até a década de 1980, foi
dustriais, e começou a intervir internamente ampliado significativamente pelas tecnologias
nos circuitos eletrônicos e na organização dos de pós-processamento, conexão em rede e in-

173
farol

terfaceamento interativo introduzidas pela base questões referentes justamente às relações que
técnica digital, que se reconecta a um cenário estas práticas e estes artistas estabelecem com
ainda ambíguo na interação entre arte e ciência. essas novas convergências na arte.
A arte contemporânea enfatiza conceitos e Por fim, a reflexão que fica permeando todo
tendências que antes faziam parte de campos esse processo artístico que envolve softwares,
de conhecimento particulares, com métodos e hardwares e a criação de obras artísticas inspi-
modos de produção próprios, como o da ciên- radas pela ciência, tem influenciado as práticas
cia. Hoje, o ciberespaço é capaz de proporcio- artísticas nos colocado diante de algo novo que
nar o poder para quem melhor obtiver o seu surge, expandindo o campo formal da arte, pro-
controle, e a capacidade de manipulá-lo. Dada vocando uma ruptura com as formas artísticas
a amplitude da arte, da tecnologia e da ciência, hegemônicas, como a pintura e a escultura.
as possíveis interações entre essas áreas são ili- A constituição de outros paradigmas relacio-
mitadas. É o momento do ciberespaço, de um nados à experiência artística contemporânea,
presente transitório e possibilidades ilimitadas encontra-se manifestamente perpassada por
em que sistemas operacionais de rede e termi- iniciativas sem precedentes, sinalizando o sur-
nais inteligentes, fazem com que o computador gimento de novos modos de produção artística.
penetre ainda mais no mundo das coisas, tor-
nando sua presença cada vez menos evidente. Referências
A relação entre artistas, tecnologia e cientis- DOMINGUES, Diana. CIBERARTE: fronteiras
tas é complexa, mas, há bastante tempo vem complexas do sentir em ambientes de pes-
produzindo resultados interessantes e permi- quisas artísticas e científicas.
tindo descobertas significativas. A realidade Disponível em:<artecno.ucs.br/livros_textos/
virtual já demonstrou que é possível fazer com textos_site_artecno/3_catalogos%20org/sib-
que as pessoas se sintam em outro corpo que grapi 2 000_diana_port.rtf>. Acesso em: 23 jun.
não o seu, com a utilização de diferentes supor- 2020.
tes e também com a utilização de recursos das ___ Como pensar a visualidade nesse final
tecnologias digitais. de século? Disponível em:<
No atual campo abrangente da arte, a maneira ht tps://w w w.academia.edu/501141/Co -
de pensar o lugar da produção artística contem- mo_ pens ar_ a _visualidade _ ne s se _ f inal _
porânea sem levar em consideração suas con- de_s%C3%A9culo>. Acesso em: 23 jun. 2020.
vergências com a tecnologia, mídias e ciência, GOMES, M. B. A Convergência das Mídias.
e seus aspectos estéticos e políticos provocam Disponível em: <www.bocc.ubi.pt/pag/gomes
reflexões diversas. Por muito tempo essas con- -marcelo-a-convergencia-das-midias.pdf>Aces-
vergências foram circunscritas às áreas conside- so em: 23 jun. 2020.
radas como guetos, como o da arte cibernética, LÉVY, Pierre. A Inteligência Coletiva: por
da bioarte e da media art. Essa reflexão nos co- uma antropologia do ciberespaço. São Paulo:
loca diante de um novo cenário, onde o artista é Edições Loyola, 1998.
chamado a repensar suas práticas e a si mesmo. ___ Tecnologias da Inteligência–o futuro
Repensar o lugar assumido pelo artista, seus mo- do pensamento na era da informática. Rio de
dos de operação e a maneira como suas práticas Janeiro: Editora 34, 1993.
se desdobram no mundo, leva a frente algumas ___ árvores do Conhecimento. São Paulo:

174
Editora Escuta, 1995. Ernandes Zanon Guimaraes
___ O que é o virtual? Coleção trans. São Graduação em Comunicação Social - Jornalis-
Paulo: Editora 34, 1996. mo pela Universidade Federal do Espírito Santo,
___ Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1994. Mestre em Estudos em História, Crítica e
1999. KERCKHOVE, D. A pele da Cultura. Lisboa: teoria da Arte do Programa de Pós Graduação
Relógio d’água Editores, 1997. em Artes, da Universidade Federal do Espírito
MACHADO, Arlindo. Arte e Mídia: aproxima- Santo. Pós-Graduação em Planejamento Educa-
ções e distinções. cional, Universidade Salgado de Oliveira, Rio de
Fonte: Disponível em: <https://www.resear- Janeiro /RJ. 1997. Professor titular. Faculdade
chgate.net/publication/50361451_Arte_e_Mi- Estácio de Sá do Espírito Santo.
dia_aproximacoes_e_distincoes >. Acesso em:
25 jun. 2020.
MACLUHAN, Marshall. Os meios de comuni-
cação como extensões do homem. tradução
de Décio Pignatari. São Paulo: Editora Cultrix,
1979.
___ A Galáxia de Gutenberg. tradução de
Leônidas Gontijo de Carvalho e Anísio teixeira.
São Paulo: Ceneusp, 1972.
POPPER, Frank. Art of the Electronic Age.
New York: thames & Hudson, 1997.
SANtAELLA, Lucia. Por que as comunicações
e as artes estão convergindo? São Paulo: Pau-
lus. 2005.
SANtOS, Cesar Augusto Baio. Máquinas de
imagem: arte, tecnologia e pós-virtualidade.
São Paulo: Annablume, 2015.

175

Você também pode gostar