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CIBERCULTURA

AULA 1

Prof. Ivan Bomfim


CONVERSA INICIAL

Estamos iniciando a disciplina de Cibercultura. Nesta primeira aula,


faremos uma introdução ao universo cibercultural para começarmos a entender
essa nova etapa da história humana. Qual o contexto de seu surgimento? Como
podemos entender suas estruturas? Como a perspectiva da cibercultura impacta
a sociedade?
A relação homem-máquina, que está na base das tecnologias de
comunicação, representa a transformação da espécie humana. Atuar sobre o
ambiente a partir de ferramentas (inicialmente adaptadas, depois projetadas) foi
fundamental na moldagem das culturas, desde as mais antigas. Ao mesmo
tempo, a comunicação – principal elemento que caracteriza o homem,
justamente por possibilitar a sociabilidade e a percepção de si mesmo e dos
outros – tem no desenvolvimento tecnológico o trampolim para conectar as
pessoas além do contato face a face, com o advento da mídia. Depois da
imprensa, vieram o telégrafo, a fotografia, o telefone, as ondas de rádio e TV. Na
última etapa dessa linha do tempo, o surgimento do computador e sua
popularização com a microinformática, que permitiu a constituição de uma rede
mundial feita de outros incontáveis conjuntos de nós e conexões, amparados por
interações e laços (cada vez mais) sociais.
Ao longo dessa fantástica trajetória, nós também mudamos. O universo
se tornou infinito, e a imaginação humana também, mesmo que ainda não
saibamos se há um futuro utópico ou distópico à frente.

CONTEXTUALIZANDO

Nossa relação com as novas tecnologias de comunicação é cada vez mais


íntima. A preponderância que smartphones, notebooks, tablets, TVs digitais e os
mais diversos gadgets adquiriram na sociedade trouxe consigo a era das redes
sociais, na qual também existimos como perfis e avatares, dando nossas
opiniões sobre qualquer assunto, organizando-nos coletivamente com fins
políticos, compartilhando vídeos com familiares e amigos. As redes sociais
envolvem e modificam a percepção de espaço-tempo dos indivíduos, o que tem
impacto na sua própria noção de realidade.
Reflita, no decorrer desta aula, sobre a questão da vida nessa nova
configuração histórica e sociocultural metaforizada na cibercultura. Levando em

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consideração a relação entre seres humanos e tecnologia desde a ideia grega
de tekhnè, analise por que não faz mais sentido separar a vida em on-line e off-
line.

TEMA 1 – COMUNICAÇÃO E TECNOLOGIA (A RELAÇÃO HOMEM-


MÁQUINA)

Para entendermos a relação entre comunicação e tecnologia, é essencial


ter em vista que ela contém, em seu âmago, a ancestral dinâmica homem-
máquina. Desde que os primeiros seres humanos aprenderam a manejar
instrumentos (que foram ficando, gradativamente, mais complexos), dominaram
o fogo e iniciaram a agricultura, a técnica é inseparável do âmbito cultural: cada
nova civilização produziu ações aliando ferramentas e imaginação,
verdadeiramente integrando elementos materiais ao âmbito do pensamento,
criando significados que integram objetos inanimados à dimensão que nos define
como seres humanos.
De acordo com Lemos (2010, p. 25), os antigos gregos buscaram
entender o fenômeno técnico a partir de uma concepção filosófica; o termo é
derivado de tekhnè, palavra que designa artes, saberes práticos. Em sua origem,
designa todo ato humano – que, para os gregos, implica a produção de uma obra
–, opondo-se ao princípio de geração das coisas pela natureza, a physis. Porém,
esse entendimento não contempla o conceito de logos, ou razão, termo grego
referente a sentidos de racionalização sobre algo ou fundamento cósmico da
verdade, de ordenação do mundo.
As definições dos filósofos gregos são herdadas e adaptadas pela Europa
cristã, mantendo-se com poucas diferenças até o final da Idade Média. Mas as
mudanças trazidas pelo Renascimento e, principalmente, pela Idade Moderna
implicam novas formas de compreensão da realidade, com o início da separação
entre pensamento mítico/religioso e pensamento científico. O desenvolvimento
da ciência como área autônoma se dá na reinterpretação da dimensão técnica
expandida pelos renascentistas, observa Rüdiger (2011). No século XVII, em
meio a acontecimentos como a expansão mercantilista europeia e a
consolidação dos Estados monárquicos, o filósofo Francis Bacon apresenta as
bases para a instituição do método propriamente científico. Bacon defende uma
mudança nas formas de construção do conhecimento, de maneira a superar as

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noções que perduram desde a Grécia Antiga, que tinham em Aristóteles sua
principal referência.
O filósofo defendia que a ciência deve servir ao homem, permitindo-o
controlar a natureza a partir da constituição do imperium hominis, ou “império do
homem”. Ele busca sistematizar as formas de investigação científica por meio de
tratados que compõem a obra Instauratio magna (Grande Restauração), que não
chegou a ser completamente terminada. Em 1620, publica Novum organum sive
Indicia de interpretatione naturae (Novo método ou Indicações sobre a
interpretação da natureza), considerado seu principal trabalho, no qual lança as
bases do método indutivo, que consta, basicamente, de comparação entre casos
diferentes, interpretação, construção de uma hipótese e experimentação.

Figura 1 – Francis Bacon

Fonte: Shutterstock.

Pensadores contemporâneos de Bacon, como René Descartes, e


posteriores, como Gottfried Leibniz e David Hume, levam à frente o divórcio entre
metafísica e ciência. Nesse processo, a relação entre homem e máquina se
modifica; com a Revolução Industrial e o surgimento das máquinas, emerge o
conceito de “tecnologia”, a união entre o saber técnico e o princípio racionalista.

[...] o campo da técnica passou a ser outro. As técnicas industriais ou artes


mecânicas serviam até então sobretudo para a fabricação de utensílios. O
aparecimento da expressão tecnologia foi concomitante ao surgimento da
máquina. [...] O pensamento mecanicista foi desde o início maquinístico,
e a sua justificativa prática e discursiva buscada no mesmo modo de

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conhecimento científico que, então, começava a se expandir pelo
Ocidente. (Rüdiger, 2011, p. 91)

A concepção tecnológica arquitetada ao longo da Idade Moderna resulta


no distanciamento entre indivíduos e máquinas; o homem começa a operar
sistemas maquínicos sem a manipulação direta de ferramentas, passando a
considerar a tecnologia como algo distante e fora da cultura (Lemos, 2010). A
racionalização e a objetividade pretendidas pelo positivismo acabam por
instaurar uma compreensão de oposição entre humanos e tecnologia – a
racionalidade puramente instrumental, que se distancia claramente da
concepção de tekhnè pensada pelos gregos.
Dentro do período de desenvolvimento que transforma a técnica em
tecnologia encontra-se a evolução dos meios de comunicação. A popularização
do uso da prensa de tipos móveis por Johannes Gutenberg, em 1439, permitiu o
surgimento dos periódicos, revolucionando a difusão de informações por meio
da comunicação sem a necessidade de copresença, como aponta Thompson
(1998). As notícias passam a fazer parte do dia a dia das pessoas em toda a
Europa e, posteriormente, no mundo, alterando a percepção de tempo-espaço e
impactando fortemente as sociedades, visto que as informações midiáticas são
formas simbólicas, produzidas em determinado âmbito sociocultural.
A difusão de formas simbólicas se aproveita cada vez mais dos avanços
tecnológicos. Assim, a comunicação midiática compõe-se como elemento de
destaque no processo de instituição da Modernidade, possibilitando a expansão
de ideias e, ao mesmo tempo, alterando a percepção de tempo dos indivíduos,
pois os fluxos comunicacionais, comerciais e culturais aumentam
exponencialmente. A partir do século XIX, invenções como a transmissão de
dados via telégrafo e cabos submarinos, a fotografia, o cinema, o rádio e a
televisão interconectam todo o globo, fazendo crescer a oferta de informações
acerca de povos, locais, processos e fenômenos. Como veremos à frente, a
popularização da internet, na passagem do século XX ao XXI, constitui-se como
uma nova revolução.
A relação homem-máquina que compõe o entrelaçamento entre
comunicação e tecnologia foi tema de reflexão de diversos pensadores. Um dos
principais foi, sem dúvida, o teórico canadense Marshall McLuhan. Em sua
perspectiva, os meios tecnológicos constituem extensões dos sentidos
humanos, o que ele nomeará de próteses técnicas – sua importância é tal para

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o estabelecimento da interação que o pesquisador chega a afirmar que “o meio
é a mensagem” (uma de suas frases mais conhecidas). Com essa ideia,
McLuhan defende que o “meio” – efetivamente, o elemento técnico – é tão
importante quanto a informação que se quer comunicar: não é apenas uma
ferramenta, em sentido simplista, mas um âmbito complexo, ativo na formação
de sentidos. Nesse encadeamento, a tecnologia tem o poder de influenciar no
conteúdo, visto que diferentes meios implicam distintas formas de recepção da
mensagem pelos indivíduos; meio e mensagem contêm um ao outro, e o
conteúdo se converte em mensagem do meio que o transmite. Assim, o avanço
tecnológico significa também novos horizontes de interpretação, forjados na
relação entre as dimensões social e técnica.
McLuhan define quatro fases da história humana: Agrícola, Mecânica,
Elétrica e Tecnológica, sendo esta última o momento contemporâneo. A
tecnologia, na consideração do pesquisador, compreende de forma geral toda
produção humana: linguagem, ferramentas, dinheiro etc. Ao longo dos séculos,
as tecnologias constituíram-se como sistemas fechados que permitiam
experiências localizadas. Todavia, com a fase elétrica, as experiências se
entrelaçam, tornando-se coletivas. A simultaneidade dessas ações atingiu níveis
globais, modificando parâmetros individuais e sociais de racionalidade. O teórico
concebe que a comunicação cumpriu três etapas ao longo da humanidade: o
estado tribal, quando o meio de comunicação é puramente a língua falada; o
estado de destribalização, erigido pela abstração, separação tempo-espacial e
constituição de símbolos relacionados ao desenvolvimento da escrita; e o estado
de retribalização, instituído pelo surgimento, no espectro comunicacional, dos
meios tecnológicos – que, para McLuhan, emulam os sentidos humanos (o rádio
como extensão do ouvido, a TV da visão etc.). Ao mesmo tempo em que
recuperam a possibilidade do contato oral imediato que caracterizava a interação
comunicacional no estado tribal, os meios tecnológicos têm a possibilidade de
extrapolar as limitações espaço-temporais, fazendo surgir aquilo que o filósofo
denomina de aldeia global, a interconexão e trocas culturais entre todas as
partes do planeta.
A concepção de McLuhan é, com efeito, uma das metáforas mais
conhecidas sobre o atual panorama da realidade social mundial. Um dos
elementos que compõem a ideia de que nos encontramos em uma vivência tribal
globalizada é a constituição das chamadas redes, fenômeno de grande destaque

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na contemporaneidade. Vamos abordar esse conceito no segundo tema desta
primeira aula.

Saiba mais
Assista ao vídeo com a entrevista de Marshall McLuhan:
<https://www.youtube.com/watch?v=fvRMpS-aGLE>.

TEMA 2 – SURGIMENTO DAS REDES

A “aldeia global”, como imaginou McLuhan décadas antes do surgimento


da internet, é o local de conexão e interação possibilitado pelos meios de
comunicação. O estabelecimento das redes pode ser considerado a melhor
representação da ideia do teórico canadense na atualidade.
Como pontuam pesquisadores como Alex Primo (2007) e Raquel Recuero
(2009), a internet trouxe diversos impactos às sociedades ao redor do mundo, e
esse conjunto de modificações (sociais, culturais, econômicas, políticas etc.) tem
no desenvolvimento e popularização das ferramentas de Comunicação Mediada
por Computador – CMC – sua mais visível expressão. A expressão do impacto
da CMC pode ser dimensionada pelo espantoso crescimento e popularização
das redes.
Mas como podemos definir o que são redes? Nas palavras de Recuero,

Uma rede, assim, é uma metáfora para observar os padrões de


conexões de um grupo social, a partir das conexões estabelecidas
entre os diversos atores. A abordagem de rede tem, assim, seu foco
na estrutura social, onde não é possível isolar os atores sociais nem
suas conexões. (Recuero, 2009, p. 24)

As redes são definidas pela combinação entre atores e conexões. O


primeiro grupo é composto justamente pelas pessoas, organizações e/ou grupos
que perfazem o papel de nós (ou nodos) da rede. Por meio da interação e da
formação de laços sociais, a ação dos atores acaba por delinear as estruturas
sociais presentes na rede. No âmbito do ciberespaço – dimensão espacial da
cibercultura, como veremos posteriormente –, esses atores devem ser
entendidos como representações de atores sociais, “espaços de interação,
lugares de fala construídos pelos atores de forma a expressar elementos de sua
personalidade ou individualidade”, define Recuero (2009, p. 25). Os atores
procuram instituir espaços de expressão na ambiência de rede, de maneira a se
tornarem visíveis e distinguíveis, o que permite a socialização com outros atores

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nessa dimensão. Como a presença no ciberespaço se dá por existência
virtualizada, modificando a lógica da interação comunicacional face a face, os
sentidos expressos pelos atores por meio verbal adquirem grande importância
na percepção de seus interagentes, sendo esta construída a partir de referências
que eles apreendem: ideias, ideologias, traços físicos (expostos por meios
audiovisuais e imagéticos) etc.
Assim, a identificação do ator é de grande importância para sua existência
no entremeado das redes, sendo constituída a partir de perfis em sites de redes
sociais, como Facebook, Twitter ou Instagram, mas também das informações e
textos publicados em blogs e sites próprios, ou da atuação em perfis e páginas
relacionadas a causas, interesses, empresas etc.
O segundo conjunto – conexões – é formado pelos laços e interações
sociais entre os nós. Podemos dizer que as interações propiciam o
estabelecimento dos laços e, por acontecerem em um espaço de CMC,
constituem registros digitais, existindo até serem apagadas. Tendo em
perspectiva o horizonte da comunicação midiática, Jensen (1998, p. 201) afirma
que a interatividade pode ser compreendida como “a medida de uma habilidade
potencial de uma mídia em permitir que o usuário exerça uma influência sobre o
conteúdo e/ou forma da comunicação mediada”. É essencial ter em mente que
o processo interativo é sempre de natureza comunicacional, devendo ser
entendido em âmbito social. Nesse sentido, Primo (2007) adverte que a
interatividade não deve ser abordada por um viés tecnicista, que privilegia as
características tecnológicas em lugar das relações humanas, algo muito comum
no estudo das interações no ciberespaço. Para o autor, essas interações se
constituem no que ele denomina como Interações Mediadas por Computador
(IMC). As IMC são os contatos estabelecidos por interagentes fora da situação
comunicacional de face a face, tendo o meio computacional como elemento
possibilitador.
Partindo de uma perspectiva teórica sistêmico-relacional, Primo (2007)
apresenta dois grandes tipos de interações mediadas por computador: a
interação mútua e as interações reativas. A interação mútua é marcada pelo
interesse dos interagentes em torno de determinadas problematizações, visando
acertos constantes dentro do sistema do qual fazem parte. Constitui um “todo”
global, calcado na interdependência entre as partes, propiciando a criação de
um fluxo dinâmico. Exemplificando: quando um indivíduo interage com outro

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indivíduo via interface computacional, não há garantias acerca das ações que
serão realizadas por este – como no caso de uma postagem no Facebook,
quando uma opinião é exposta e pode ser parabenizada ou rechaçada (ou, como
é comum, os dois casos). A postagem pode ser compartilhada, amplificando os
sentimentos de apoio e/ou indignação, e as consequências desses processos se
tornam imprevisíveis.

A própria relação entre os interagentes é um problema que motiva uma


constante negociação. Cada ação expressa tem um impacto recursivo
sobre a relação e sobre o comportamento dos interagentes. Isto é, o
relacionamento entre os participantes vai definindo-se ao mesmo
tempo que acontecem os eventos interativos (nunca isentos dos
impactos contextuais e relações de poder). Devido a essa dinâmica, e
em virtude dos sucessivos desequilíbrios que impulsionam a
transformação do sistema, a interação mútua é um constante vir a ser,
que se atualiza através das ações de um interagente em relação à(s)
do(s) outro(s), ou seja, não é mera somatória de ações individuais.
(Primo, 2007, p. 229)

Já as chamadas interações reativas acontecem em acordo com situações


e processos predeterminados, que condicionam a natureza da relação entre os
interagentes. Sendo concebida no âmbito de um sistema fechado, apresenta
viés automatista, unilateral e linear, remetendo a uma concepção de estímulo-
resposta (ou ação-reação), com ações de alcance limitado. Pode-se entender
esse tipo de interação a partir das ações que um indivíduo realiza ao usar um
computador: no âmbito da interface homem-máquina, o usuário utiliza um mouse
para, na tela, clicar em links que se revertem em ações predefinidas. Há um
controle das consequências da ação, que acontece em uma lógica relacionada
ao próprio sistema. Vale dizer também que Primo (2007) aponta a não
exclusividade dessas formas de interatividade, dando como exemplo a
combinação das interações na forma de uma multi-interação (ações reativas e
mútuas acontecendo conjuntamente). Além de poder migrar de uma plataforma
a outra na rede – do Twitter ao Facebook, por exemplo –, as interações também
têm potencial de gerar relações sociais complexas e, como consequência, até
mesmo laços sociais.

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Figura 2 – As relações sociais na internet

Fonte: Shutterstock.

Recuero (2009) classifica em dois tipos as redes sociais na internet: redes


emergentes e redes de filiação ou associação, sendo que existe a possibilidade
de as duas formas estarem presentes em uma mesma rede. As redes
emergentes são perceptíveis com base nas interações entre atores sociais,
tendo as conexões entre seus nós constituídas no entremeio de trocas sociais
possibilitadas pela interação e pelo estabelecimento de conversações por meio
da mediação do computador. Centradas nos processos interativos e com pouca
quantidade de nós, costumam ser pequenas e ter como base interações mútuas,
erigindo laços de pertencimento relacional. Já as redes de filiação ou associação
são definidas na perspectiva de um conjunto de eventos que engendram um
determinado ator. São consideradas redes de “dois modos”, pois sua análise
demanda a atenção a duas variáveis: atores-indivíduos e acontecimentos. “Cada
um desses eventos é, ainda, um elemento de conexão de um conjunto de atores.
As redes de filiação seriam, assim, constituídas de dois tipos de nós: os atores
e os grupos” (Recuero, 2009, p. 97), com os nós se relacionando a partir de
conexões de pertencimento.
A conformação das redes, ao representar a aldeia global preconizada por
McLuhan, dependeu de um grande avanço tecnológico. Essa situação é
percebida com a irrupção das chamadas “novas tecnologias de comunicação”,
as quais veremos a seguir.

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Saiba mais
Assista ao vídeo de Augusto de Franco no TEDx, em quefalou sobre
redes sociais: <https://www.youtube.com/watch?v=7ofxZHuWz9Q>.

TEMA 3 – NOVAS TECNOLOGIAS DA COMUNICAÇÃO

Para começarmos a entender a importância dos processos relacionados


às redes na contemporaneidade, é imprescindível ter em vista que nos
encontramos em uma nova etapa da humanidade, com origem no
desenvolvimento tecnológico que se fez presente a partir da segunda metade do
século XX, mas cujos impactos puderam ser amplamente notados nas
sociedades mundiais das décadas de 1980 e 1990 até a atualidade. Desse
momento em diante, as chamadas Novas Tecnologias de Comunicação (NTCs)
passaram a ser elemento cada vez mais comum, mudando para sempre a
maneira pela qual nos comunicamos – e sentimos, aprendemos, nos divertimos,
trabalhamos, viajamos, vivemos. Entre as NTCs, podemos elencar sistemas de
transmissão e dispositivos, como computadores de uso pessoal e seu conjunto
de elementos relacionados (dos antigos disquetes aos cartões de memória e
discos rígidos atuais), aparelhos e redes de telefonia fixa e móvel, câmeras para
registro de imagens fixas ou em movimento, videogames, televisão a cabo e por
antena parabólica, tecnologia para envio de dados sem fio e a própria internet.
A irrupção do conjunto de tecnologias relacionadas ao domínio das
telecomunicações e da mídia teve grande influência das tensões políticas,
militares e econômicas que caracterizaram o mundo no pós Segunda Guerra
Mundial. O desenvolvimento da tecnologia atômica pelos Estados Unidos e pela
União Soviética assim como a disputa ideológica entre as duas superpotências
fomentou avanços com vistas à conquista da hegemonia mundial: nesse intuito,
os meios de comunicação, tanto no sentido de sistema de troca de informações
quanto no de difusão de mensagens de maneira ampla, constituem-se
importantíssimo recurso de poder.
Contudo, as motivações não foram apenas bélicas. O movimento de
expansão do capital depois de 1945 representou uma aceleração do sistema
capitalista, com a atuação das empresas multinacionais tomando vulto. Nessa
dinâmica, a estrutura dos sistemas de comunicação se viu privilegiada, já que a
necessidade de transmissão de informações aumentou dinamicamente – o
sistema financeiro mundial é um domínio que depende intrinsecamente da
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velocidade dos fluxos de informação. O processo de globalização tanto permitiu
quanto foi incentivado pelo aprimoramento das redes telemáticas –
infraestruturas de envio, recebimento, armazenamento e processamento de
dados resultantes da combinação de tecnologias das áreas de telecomunicação
e informática que possibilitaram o surgimento das NTCs.
Uma considerável parte dessa transformação, talvez a mais visível
inicialmente, deu-se com o incremento dos artefatos analógicos. A transmissão
via satélite permitiu larga difusão dos sinais de televisão e rádio – estes
aparelhos, inclusive, foram tomando várias formas e tendo suas funções
reestruturadas pela introdução de novidades, como as fitas VHS e K7, que
incentivaram o uso de apetrechos como o videocassete e o walkman. Todavia,
a combinação entre meios analógicos e digitais (como a modernização dos
parques gráficos para a impressão de produtos criados em computadores) se
estabeleceu como uma tendência irreversível. Amparadas nos progressos da
microeletrônica, as novas gerações de sistemas e dispositivos digitais foram se
tornando menores e mais acessíveis, sendo inicialmente consumidas por
instituições dos setores público e privado e, algum tempo depois, pelos
indivíduos em geral.

Figura 3 – A famosa casa com a garagem onde Steve Jobs e Steve Wozniak
montaram seu primeiro computador

Fonte: Shutterstock.

Ao final da década de 1970, os estudantes universitários Steve Jobs e


Steve Wozniak criaram a empresa Apple e desenvolveram o primeiro
microcomputador de uso pessoal, batizado de Apple II. No início dos anos 1980,
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a fabricante IBM passa a investir no ramo dos microcomputadores, utilizando o
sistema operacional criado pela Microsoft. O lançamento dos computadores
pessoais (personal computers, ou PCs) popularizou as outrora grandes e
complexas máquinas de processamento de dados, e representou o início da era
das grandes empresas de informática. Seu uso começou a ser difundido,
principalmente nos EUA, Europa Ocidental e Japão. O país asiático, vale notar,
percebeu que o investimento nesse setor constituiria uma oportunidade
econômica, tornando-se referência produtiva em áreas como a de jogos
eletrônicos e aparelhos digitais.
Os anos 1990 trazem a liberação do uso comercial daquilo que se tornaria
o principal marco de uma nova época: a internet. O sistema que interliga redes
de computadores em escala mundial pode ser tomando como a principal
consequência da Sociedade da Informação, pois revolucionou o acesso a um
universo virtualmente infinito de dados e informações e possibilitou o
estabelecimento de fluxos comunicacionais entre pessoas, empresas,
organizações e governos a partir de qualquer ponto da Terra. Impactando
profundamente os hábitos, costumes e valores das pessoas, a internet implicou
novas formas de interação e sociabilidade. Os reflexos dessa dimensão
sociotécnica podem ser vistos em quase todas as áreas de atividade humana:
organização política, mobilização social, temas ambientais, educação, consumo,
entretenimento, sistema financeiro etc.
A origem da internet encontra-se no projeto Arpanet (Advanced Research
Projects Agency Network), iniciado pelo Departamento de Defesa dos EUA, no
contexto da Guerra Fria com os soviéticos. A ideia era criar um sistema de trocas
de dados descentralizado e sem fluxo de direção pré-definido. Embora seja
comum pensar no empreendimento como uma tática de defesa em caso de
ataque militar, Castells (2010) comenta que, na realidade, a rede surgiu mais
pelo interesse de pesquisadores em construir uma estrutura de troca de dados;
sua aplicabilidade por parte dos militares seria uma temática secundária. A Arpa,
agência que coordenava a empreitada, possuía significativa autonomia. Não à
toa, a primeira experiência com a estrutura, em 1969, conectou quatro
computadores localizados em centros de pesquisa universitários nas cidades de
Los Angeles, Stanford, Santa Bárbara e Salt Lake City.
No início da década de 1970, foi permitido o acesso de instituições
universitárias à Arpanet, sendo que, em 1975, quando já contava com cerca de

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uma centena de sites, foi considerada “operacional”. Na passagem aos anos
1980, a rede adotou o chamado protocolo de comunicação TCP/IP, o que
possibilitou sua expansão. Em 1989, o britânico Tim Berners-Lee cria a World
Wide Web (em português, “Teia Mundial”), um espaço informacional que permite
o acesso a diversos tipos de documentos e recursos digitais localizados em
páginas (websites), o que é realizado por meio de softwares denominados
navegadores. Berners-Lee precisou desenvolver três padrões tecnológicos que,
combinados, possibilitaram o funcionamento da web: URL (Uniform Resource
Locator), sistema de unificação global dos recursos espalhados nas redes (os
endereços das páginas); HTTP (Hypertext Transfer Protocol), protocolo de troca
de dados entre navegadores e servidores de transmissão de dados da rede; e
HTML (HyperText Markup Language), linguagem utilizada para codificar e exibir
as informações. Os dois últimos padrões são baseados em ligações
hipertextuais. Veremos profundamente esses conceitos mais à frente.

Figura 4 – Tim Berners-Lee

Fonte: Shutterstock.

Com a internet em cena, a tecnologia digital passa a ser um elemento


cada vez mais cotidiano, abarcando diversas formas de interação e incorrendo
na constituição dos significados da contemporaneidade. Para Manuel Castells
(2010), a rede mundial não é apenas uma tecnologia, mas um meio de
comunicação que acabou por constituir a organização das sociedades na
atualidade.

A internet é o coração de um novo paradigma sociotécnico, que


constitui na realidade a base material de nossas vidas e de nossas
formas de relação, de trabalho e de comunicação. O que a Internet faz

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é processar a virtualidade e transformá-la em nossa realidade,
constituindo a sociedade em rede, que é a sociedade em que vivemos.
(Castells, 2010, p. 287)

A reflexão do teórico catalão não estipula se a internet é boa ou má,


conservadora ou libertária por si só, mas avalia que pode ser tudo isso ao mesmo
tempo – e que, principalmente, é uma realidade da qual não se pode fugir. Esse
panorama é essencial para compreender que as NTCs e a internet deram forma
a uma conformação sociocultural totalmente nova: a cibercultura.

TEMA 4 – A EVOLUÇÃO DA CIBERCULTURA

A cibercultura tem suas raízes ainda na década de 1960, segundo André


Lemos (2010), quando novas configurações de relação social orientadas por
lógicas pós-modernas se entrecruzam às mudanças impressas pelo avanço da
digitalização. Porém, o pesquisador situa o nascimento dessa conformação
sociocultural no surgimento da microinformática, na metade dos anos 1970,
refletindo o espírito da época: o potencial tecnológico se combina às ideias da
contracultura norte-americana em uma postura antitecnocrática (ou seja, de uma
sociedade dominada pelo poder da tecnologia): “A microinformática é uma
invenção de radicais californianos [...], tendo por meta lutar contra a
centralização e a posse da informação (e, consequentemente, do destino da
sociedade informatizada) pela casta científica, econômica, industrial e militar [...]”
(Lemos, 2010, p. 105).

A microinformática vai acentuar a democratização do acesso à


informação. Na sociedade de comunicação e redes telemáticas, deve
ser garantido o direito à liberdade de expressão e privacidade. O
radicalismo californiano, que deu origem a essa nova configuração
sociotécnica, era então uma mistura de esoterismo Zen, ecologia e
ficção científica (Lemos, 2010, p. 105).

As lógicas ciberculturais têm como base histórica as formas de


compreensão dos indivíduos sobre a tecnologia – o imaginário instituído pela
relação homem-máquina ao longo dos séculos levada a seu extremo. O avanço
tecnológico representa possibilidade de libertação ou de dominação dos seres
humanos? Seremos “mastigados” pelos sistemas digitais ou nós os utilizaremos
para concretizarmos os ideais de uma existência em sociedade mais igualitária
e justa? A irrupção de uma “nova era” traduziu-se na mistura entre a admiração
(por vezes entusiasmada, por vezes amedrontada) diante das novidades da
tecnologia e de formas bastante comuns à história dos grupos humanos, como

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a constituição de imaginários, representações, interpretações míticas e estéticas
próprias – nesse sentido, certamente o melhor exemplo é o chamado movimento
cyberpunk, um caldeirão que mescla elementos das narrativas de ficção
científica, psicodelia, visões políticas (especialmente anarquistas), distopia,
entre outras referências.
De toda forma, a cibercultura não deve ser pensada como uma forma de
substituição das culturas originadas pelas interações entre grupos humanos
localizados geograficamente, mas como um âmbito distinto que interage com as
culturas institucionalizadas. Para Lemos, o traço fundamental da cibercultura é
o predomínio das tecnologias digitais, presentes no dia a dia de qualquer pessoa,
e sua dimensão comunicacional incorre na flexibilização do contexto espaço-
temporal. Não é exagero pensar a emergência do cibercultural como uma nova
narrativa de significação, um farol de orientação aos homens em meio a um
mundo no qual as referências ainda não são completamente compreendidas.
A construção dessa esfera cultural de experiência acontece
dialeticamente: implica e, ao mesmo tempo, é implicada a/pela constituição de
lógicas próprias, que sustentam o entendimento da realidade. Esse processo de
conhecimento, segundo Lemos (2010), é possível a partir do ciberculturalismo
em decorrência de três de suas prerrogativas, denominadas por ele de “leis”: a
lei da reconfiguração (as práticas e modelos são transformados, não aniquilados
e descartados), a lei da liberação do polo emissor (a pluralização das vozes,
tornadas visíveis) e a lei da conectividade (possibilidade de contato de indivíduos
entre si, destes com máquinas e de máquinas entre si, modificando a relação
espaço-tempo). A universalidade dos paradigmas que compõem a noção de
cibercultura, em geral baseada na interconexão e suas consequências, põe em
marcha alguns dos ideais iluministas, como o avanço tecnológico, permitindo a
concretização da liberdade. Na definição de Lévy,

[…] a cibercultura dá forma a um novo tipo de universal: o universal


sem totalidade. E, repetimos, trata-se ainda de um universal,
acompanhado de todas as ressonâncias possíveis de serem
encontradas com a filosofia das luzes, uma vez que possui uma relação
profunda com a ideia de humanidade. Assim, o ciberespaço não
engendra uma cultura do universal porque de fato está em toda parte,
e sim porque sua forma ou sua ideia implicam de direito o conjunto dos
seres humanos (1999, p.119).

A cibercultura pode ser vista como o encontro entre a alta tecnologia e o


universo dos valores sociais, o que fomenta novos contextos de relações entre
indivíduos e destes com as instituições. Sob essa perspectiva, apontamos a
16
irrupção de tecnologias que ampliam a integração entre os próprios dispositivos
eletrônicos, repercutindo transformações de hábitos, costumes e valores da
sociedade. Lemos (2010, p. 259) exemplifica essas modificações sob a
concepção de uma “atitude social de apropriação criativa” da cibercultura, visto
que ela se identifica por ser “presenteísta, hedonista e vitalista” – essas
características permitem a explosão de distintas associações e processos
econômicos e sociais relacionados às novas tecnologias, como uma gama de
formas de ativismo político e a conformação de novas atividades comerciais, tais
como o extremamente lucrativo ramo de jogos eletrônicos.
É importante observar que a era cibercultural também desperta visões
menos otimistas. Partindo do horizonte histórico-filosófico, Rüdiger comenta que
a cibercultura deve ser entendida como uma “formação prática e simbólica, que
expressa e, às vezes, articula para o homem comum as circunstâncias e
antagonismos humanos e sociais que vão surgindo agora”, sendo frutos da
“progressiva informatização da era maquinística que nasce no século XVII”
(Rüdiger, 2011, p. 285). O ciberculturalismo marca a conquista de um “novo
patamar, mais cotidiano e generalizado” para o pensamento tecnológico (2011,
p. 286), o que é visto com reservas pelo pesquisador, que sustenta a
necessidade de encarar os sentidos e o contexto da cibercultura tendo em vista
os movimentos sociais, históricos e econômicos que guiam a constituição dessa
nova época.
A postura crítica de Rüdiger traz elementos que ajudam a compreender
as três macro correntes de pensamento acerca do entrelaçamento da existência
humana às novas tecnologias: as visões tecnoutópica, tecnoapocaliptica e
tecnorrealista. Analisaremos cada uma no último tema desta primeira aula.

Saiba mais

A cibernética
A denominação cibercultura vem da junção das palavras cibernética e
cultura. Mas o que significa cibernética? Esta é uma ciência de caráter
transdisciplinar que tem como objeto de pesquisa as estruturas e processos
relativos a sistemas autorregulatórios. Conforme o matemático norte-americano
Norbert Wiener (1968), que cunhou o termo na década de 1940, a origem está
no grego κυβερνητική (kubernetes), cujo significado inicial, “piloto”, implica,
contextualmente, o poder de controlar a navegação e origina a designação
“governador”. Platão utiliza a palavra com referência à possibilidade de
“autogoverno”, uma governança exercida pelo povo. Porém, o próprio Wiener

17
comenta que a palavra havia sido usada pelo físico francês André-Marie Ampère,
no século XIX, em seu sentido contemporâneo.
Os estudos que conformariam a área se iniciam no século XVIII, tendo a
invenção do motor a vapor por James Watt como um de seus principais marcos.
Todavia, é o contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que molda o
surgimento da cibernética delineada por Wiener; à época, o desenvolvimento de
autômatos (máquinas e sistemas de funcionamento autônomo, ancestrais dos
computadores) era uma das principais metas de governos das potências
mundiais (especialmente os EUA). Com a obra Cybernetics: or control and
communication in the animal and the machine, de 1948, o matemático norte-
americano introduz a concepção cibernética como uma forma de entendimento
acerca do funcionamento estrutural de máquinas, seres vivos e da sociedade em
geral. Esses sistemas complexos seriam autorregulados por meio de
mecanismos de feedback (ou retroalimentação) de informações, que permitiriam
o cálculo de probabilidades diante de novas situações – esta medida é
denominada de “entropia”. O objetivo dos estudos cibernéticos é compreender e
produzir tecnologias que reproduzam os sistemas ou sirvam como forma de
controlá-los.
Embora a concepção funcionalista da cibernética tenha caído em desuso
nas ciências sociais e nas humanidades, é importante destacar que as
investigações de Wiener tiveram enorme peso no avanço das tecnologias
eletrônicas e digitais, como os atuais sistemas computacionais e redes. É válido
trazer um excerto “profético” do cientista, parte de seu livro Cibernética e
sociedade: o uso humano de seres humanos, publicado originalmente em 1950
(e revisado em 1954):

[...] a sociedade só pode ser compreendida através de um estudo das


mensagens e das facilidades de comunicação de que disponha; e de que,
no futuro desenvolvimento dessas mensagens e facilidades de
comunicação, as mensagens entre o homem e as máquinas, entre as
máquinas e o homem, e entre a máquina e a máquina, estão destinadas
a desempenhar papel cada vez mais importante (WIENER, 1968, p. 16).

Vídeo
Assista ao vídeo “Arte cibernética”:
<https://www.youtube.com/watch?v=TZu9cfH_pDs>.

TEMA 5 – TECNOUTOPIA, TECNOAPOCALIPSE E TECNORREALISMO

Aquilo que é novo ou diferente sempre causa sensações de ansiedade,


medo e excitação nos seres humanos. Esses sentimentos não são diferentes no
que tange à obra tecnológica criada pelo próprio homem. Estudiosos dividem-se
entre tecnofilia, tecnofobia e a postura (auto)considerada realista diante dos
avanços tecnológicos. Vamos entender cada posição mais de perto.

18
5.1 Tecnoutopia

Conforme Lemos (2010), os teóricos tecnoutópicos consideram que os


novos sistemas tecnológicos fomentam uma revolução na área, visto que
reestruturaram por completo as formas de conexão, comunicação, acesso a
informações etc. Para os pensadores da tecnoutopia, esse fator por si só já
implicaria mudanças na organização das sociedades contemporâneas: “As
novas tecnologias de comunicação (digital, multimodal e imediata) causam uma
reestruturação e descentralização das estruturas de poder vigentes (mediático,
político, social), descentralizando-o” (2010, p. 248).
Em seu viés crítico, Rüdiger (2011) diz que a vertente tecnoutópica é
caracterizada por pesquisadores que acreditam piamente no potencial redentor
da tecnologia para a humanidade, sob uma ótica cuja esperança extrapolaria as
lições históricas. Para ele, a maior referência dessa corrente é Pierre Lévy,
principalmente a partir de sua crença no conceito de inteligência coletiva –
constituída no compartilhamento, via redes, de conhecimentos dos sujeitos, a
partir da concepção de que os saberes de todos se complementam. Apesar da
discordância com as principais ideias de Lévy, Rüdiger entende que o teórico
não defende uma visão tecnicista, mas que seu posicionamento liberal
humanista acaba por ignorar os problemas relacionados ao desenvolvimento
tecnológico, em particular os interesses da reestruturação capitalista que se
encontram no cerne da temática enfocada.
Rushkoff (2002) sintetiza sete prerrogativas percebidas no pensamento
tecnoutópico:

1. A tecnologia reflete e encoraja os melhores aspectos da natureza


humana.
2. A tecnologia aperfeiçoa nossa comunicação interpessoal,
relacionamentos e comunidades.
3. A tecnologia democratiza a sociedade.
4. A tecnologia, inevitavelmente, progride.
5. Impactos imprevistos da tecnologia são positivos.
6. A tecnologia aumenta a eficiência e as possibilidades de escolhas do
consumidor.
7. A nova tecnologia pode solucionar problemas criados pela tecnologia
antiga.

19
Tomados simplesmente como realidade, nenhum desses pressupostos
pode ser considerado verdadeiro aprioristicamente (quer dizer: antes de
acontecerem ou de serem percebidos). De maneira geral, a visão tecnoutópica
tem no chamado wishful thinking sua principal questão: o termo em inglês é
utilizado para expor a formação de crenças e tomadas de decisões guiadas por
aquilo que se deseja ter como resultado, deixando de lado evidências em
contrário. Ou seja, os teóricos dessa vertente, em nome do idealismo na relação
entre sociedade e tecnologia, deixam de perceber aspectos fundamentais que
estruturam ou são consequência das NTCs em seu entrelaçamento à existência
humana.

5.1 Tecnoapocalipse

Em 1964, o semiólogo italiano Umberto Eco publicou um livro no qual


debatia a influência da cultura de massa e da chamada indústria cultural na
sociedade. O título da obra, Apocalípticos e integrados, dividia a comunidade
dos pesquisadores entre otimistas (os integrados), que viam um potencial
inovador na amplitude que os fenômenos culturais forjados na lógica da
comunicação massiva adquiriam globalmente, e pessimistas (os apocalípticos),
que se mostravam descrentes e preocupados diante dos novos cenários
instaurados pela irrupção da mídia de massa. De forma ampla, o autor criticava
uma visão considerada ingênua, relacionada às ideias de Marshall McLuhan
sobre os potenciais da tecnologia no que tange à sociabilidade humana, e um
posicionamento demasiadamente negativo sobre os fenômenos
comunicacional-midiáticos, correlacionados ao que se considerava a
degradação dos valores da alta cultura, visão defendida por alguns teóricos da
chamada Escola de Frankfurt.
Embora tratasse mais especificamente de discussões acerca da
dimensão que os meios de comunicação adquiriam à época, a distinção
delineada por Eco acabou sendo incorporada também em perspectivas acerca
do desenvolvimento tecnológico nas décadas seguintes. Dessa maneira, em
polo oposto aos tecnoutópicos, observamos teóricos que apresentam
concepções negativas sobre a ampliação da presença das NTCs na vivência
social. Os tecnoapocalípticos sustentam que, com o avanço das áreas de
inteligência artificial e biotecnologia, por exemplo, os indivíduos estão em um

20
processo de perda de controle da técnica, o que deverá levar a terríveis
consequências para a humanidade.
O pessimismo tecnológico é representado por diversos autores. Os
filósofos franceses Jean Baudrillard e Paul Virilio, por exemplo, trazem
preocupações acerca da própria realidade diante do real construído pela
tecnologia, principalmente pelo excesso de informações veiculadas pelos meios
de comunicação, o que dificulta a compreensão das pessoas diante desse novo
mundo. De maneira bastante resumida, podemos dizer que, segundo
Baudrillard, a cultura de massa se reverte em institucionalização da virtualização,
de uma realidade virtual, e esta se forma como simulação da realidade entendida
como verdadeira; o excesso de informação leva à não comunicação/interação,
visto que é criado um efeito de saturação. Como resultado, tem-se a produção
de simulações de interação, o que o teórico denomina de “simulacros”: do latim,
simulacrum (similaridade) seriam as cópias de elementos que nunca realmente
existiram, em um mundo regido por signos. As reflexões de Baudrillard
adquiriram grande visibilidade após o lançamento do filme Matrix (1999), visto
que os diretores disseram ter se inspirado na obra Simulacros e simulação.
Virilio, por sua vez, observa que passamos a viver em um sistema
dromológico – dromos, em grego, significa corrida –, no qual a velocidade se
torna a medida de todas as coisas, a lógica que guia a humanidade. As NTCs,
atreladas ao movimento de globalização, reformularam a experiência do espaço-
tempo e, nesse panorama, a velocidade se torna riqueza, potência de ação. Ao
mesmo tempo, para o filósofo, cada tecnologia resulta na programação de uma
nova forma de acidente, o que sublinha o caráter destrutivo do desenvolvimento
técnico. É necessário apontar que a velocidade é um processo violento, contrário
ao tempo de reflexão, e uma sociedade baseada nessa perspectiva termina por
deixar de lado a razão ao dar primazia ao reflexo instantâneo. Uma das principais
consequências dessa formulação, para Virilio, é a irrupção do pensamento
transpolítico, no qual não há espaço para discussão ou debate racional sobre as
temáticas políticas (que demandam análise profunda). Substitui-se razão por
rapidez, borrando a percepção da realidade. Assim, para Virilio, de acordo com
Lemos (2010, p. 73), “com os computadores, é a informação que é transportada,
mas não as sensações”.

21
5.2 Tecnorrealismo

O interesse por encontrar um equilíbrio entre as posições dos


tecnoutópicos e tecnoapocalípticos provocou o desenvolvimento do movimento
tecnorrealista. Em 12 março de 1998, um grupo formado por 12 escritores,
jornalistas e pesquisadores em Nova Iorque publicou o manifesto Princípios do
Tecnorrealismo, no qual constam oito prerrogativas básicas:

1. A tecnologia não é neutra.


2. A internet é revolucionária, mas não utópica.
3. Governo desempenha importante papel na fronteira eletrônica.
4. Informação não é conhecimento.
5. Interconectar as escolas não as salvará.
6. A informação quer ser protegida.
7. As ondas transmissoras de informação são de domínio público, e o público
deve se beneficiar de seu uso.
8. Compreender a tecnologia deve ser um componente essencial da
cidadania global.

Apesar de supostamente buscar uma visão equilibrada da relação entre


indivíduos e novas tecnologias, o conjunto de princípios foi criticado por alguns
pesquisadores. Lemos pontua que o tecnorrealismo tenta estabelecer uma
concepção hegemônica sobre o significado da realidade sociotécnica,
apontando ideias distintas como pontos de vista extremados (nomeando-os
como otimistas ou pessimistas) e rejeitando “o que há de visionário ou de
desmesura, desabonando opiniões divergentes, neutralizando-as no seu
suposto excesso teórico” (Lemos, 2010, p. 254).
Todas essas interpretações e opiniões divergentes constituem a essência
das análises sobre a nova dimensão sociocultural representada pela
cibercultura. Para entender melhor as concepções expostas pelos
tecnoutópicos, tecnoapocalípticos e tecnorrealistas, iremos, na próxima aula,
aprofundar nossos conhecimentos acerca das Teorias da Cibercultura.

22
Saiba mais
Vamos entender um pouco mais sobre as ideias de utopia e distopia, que
são apropriadas na cibercultura pelos tecnoutópicos e tecnoapocalípticos?
Assista ao vídeo: <https://www.youtube.com/watch?v=ryW0sFHK3_4>.

NA PRÁTICA

Vamos realizar uma análise sobre as visões dissonantes acerca da nova


realidade representada pela cibercultura. A seguir, temos um parágrafo de Pierre
Lévy, no qual ele aborda algumas características da era cibercultural – Lévy é
um dos autores emblemáticos da corrente tecnoutópica.

A cada minuto que passa, novas pessoas passam a acessar a internet,


novos computadores são interconectados, novas informações são
injetadas na rede. Quanto mais o ciberespaço se amplia, mais ele se
torna ‘universal’, e menos o mundo informacional se torna totalizável.
O universo da cibercultura não possui nem centro, nem linha diretriz. É
vazio, sem conteúdo particular. Ou antes, ele os aceita todos, pois se
concentra em colocar em contato um ponto qualquer com qualquer
outro, seja qual for a carga semântica das entidades relacionadas
(Lévy, 1999, p. 113).

Incorporando o pensamento dos teóricos tecnoapocalípticos vistos nesta


aula, analise os argumentos do filósofo no trecho reproduzido.

FINALIZANDO

Terminamos aqui a primeira aula da disciplina Cibercultura. Realizamos


uma introdução geral à essa ampla temática, trazendo inicialmente as
perspectivas da relação entre homem e máquina, a transformação do conceito
de tekhnè em tecnologia, a conformação de um universo comunicacional junto
ao desenvolvimento tecnológico e as implicações que essas mudanças tiveram
em nossos horizontes socioculturais, como a irrupção de distintos imaginários
marcados pela esperança e pelo medo.
Ao cabo, é imprescindível ter em mente que, se a tecnologia se transforma
(e cada vez mais rápido), a humanidade também se reinventa. É anacrônico
separar vida on-line e off-line, pois a tecnologia se incorporou quase
integralmente ao dia a dia das pessoas: utilizamos os sistemas digitais e redes
para realizar das tarefas mais prosaicas às mais complexas. Nos processos de
comunicação, nossa principal característica enquanto seres humanos, pode-se
dizer que a tecnologia já é imprescindível.

23
Nesse sentido, a cibercultura é uma forma de pensar a nossa existência
em um mundo no qual quase tudo é instantâneo, fugaz, virtualizado, automático,
e que as limitações parecem quase não existir. Apesar desse painel, ainda
somos homens e mulheres guiados por sentimentos como paixão, ódio, tristeza,
alegria, indiferença, ansiedade. Parece ser a mistura dessas duas dimensões (a
tecnológica, que inventamos, e a pessoal, que não conseguirmos controlar
completamente) que alimenta sonhos e pesadelos.
No próximo encontro, vamos abordar temas como os conceitos básicos
relacionados à cibercultura, além das principais teorias sobre a área e questões
como interface e convergência.

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REFERÊNCIAS

CASTELLS, M. Internet e sociedade em rede. In: MORAES, D. (org). Por uma


outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro:
Record, 2010.

LEMOS, A. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea.


Porto Alegre: Sulina, 2010.

LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999.

PRIMO, A. Interação mediada por computador: comunicação, cibercultura,


cognição. Porto Alegre: Sulina, 2007.

RECUERO, R. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2009.

RÜDIGER, F. As teorias da cibercultura: perspectivas, questões e autores.


Porto Alegre: Sulina, 2011.

RUSHKOFF, D. Renaissance Now! Media Ecology and the New Global


Narrative. Explorations in Media Ecology, p. 41-57, 2002.

THOMPSON, J. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia.


Petrópolis: Vozes, 1998.

WIENER, N. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. São


Paulo: Cultrix, 1968.

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RESPOSTAS

a. Leitura do caso.
b. Identificação do que deve ser feito.

A questão apresenta um excerto no qual Lévy basicamente diz que a


cibercultura é uma dimensão completamente democrática, que aceita a todos
sem diferenciação entre as pessoas. Essa universalidade é baseada na falta de
um centro localizável, no qual tudo e todos podem se interconectar.
É necessário analisar a lógica exposta pelos argumentos do autor, que
considera que a simples conexão das pessoas à rede mundial de computadores
torna todos iguais. Nessa concepção, a cibercultura anularia as diferenças
estruturadas social, cultural, histórica e economicamente.

c. Identificação da teoria/conteúdo que resolve o problema.

O conteúdo indicado são as críticas empreendidas por autores como


Baudrillard e Virilio, que afirmam que o aumento dos fluxos de informação por si
só não implica automaticamente liberdade e democracia para os indivíduos. Para
os tecnoapocalípticos, o resultado é justamente o contrário: inserindo-se na
ambiência cibercultural, as pessoas são jogadas em realidades distintas,
coordenadas por meio de tecnologias que elas não controlam.

d. Apresentação da solução do problema

A resolução da questão precisa contrapor os argumentos de Lévy às


ideias dos autores tecnoapocalípticos citados. Assim, importa citar as ideias de
Paul Virilio ou Jean Baudrillard, ou mesmo dos dois.
Para Virilio, a velocidade dos processos e fenômenos acarreta a perda da
capacidade reflexiva diante dos acontecimentos, e tornar-se mais um na corrente
da rapidez digital acaba por se instituir como objetivo primeiro dos seres
humanos – sublinha-se, aqui, o caráter destrutivo da tecnologia e a desigualdade
no controle da velocidade em um sistema dromológico.
Tomando o horizonte de Baudrillard como referência, a ampliação das
informações (louvada por Lévy) é a instituição da não comunicação, pois a
interação é cessada diante da saturação informativa. Dessa maneira, a
constituição de um espaço sem “centro nem linha diretriz” é a concretização do
conceito de simulacro, com a conformação da simulação de interações

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verdadeiras amparadas na realidade virtual, sem base na verdadeira realidade
– substancialmente, a esfera humana.

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