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Ser ‘trans’ é cruzar uma fronteira

política
O filósofo transgênero Paul B. Preciado relata
sua experiência como viajante entre a
feminilidade e a masculinidade e denuncia que
estas transições ainda são consideradas
heresias
Paul B. Preciado 10 abr 2019 - 18:39 BRT

Cartaz desenhado pela artista Peregrine Honig para banheiros mistos, nos EUA.Jonathan Drake
(Reuters)

Eu me atrevo a dizer quais são os processos de cruzamento que


melhor nos permitem compreender a transição política global que
estamos enfrentando. A mudança de sexo e a migração são as duas
práticas de travessia que, ao porem em xeque a arquitetura política e
legal do colonialismo patriarcal, da diferença sexual e do Estado-
nação, situam um corpo humano vivo nos limites da cidadania e até
do que entendemos por humanidade. O que caracteriza as duas
viagens, para além do deslocamento geográfico, linguístico ou
:
corporal, é a transformação radical não só do viajante, mas também
da comunidade humana que o acolhe ou rejeita. O antigo regime
(político, sexual, ecológico) criminaliza todas a práticas de travessia.
Mas onde a travessia é possível, o mapa de uma nova sociedade
começa a ser desenhado, com novas formas de produção e de
reprodução da vida.

No meu caso, o cruzamento começou em 2004, quando comecei a


me administrar pequenas doses de testosterona. Durante alguns
anos, transitando por um espaço de reconhecimento de gênero que
oscilava entre o feminino e o masculino, entre a masculinidade
lésbica e a feminilidade King [ou feminilidade masculina],
experimentei a posição que agora é chamada de gênero fluido. A
fluidez das encarnações sucessivas se chocava com a resistência
social para aceitar a existência de um corpo fora do binário sexual.
Essa "fluidez" foi possível durante os anos em que me administrei
uma dose de testosterona que chamamos de "limiar", porque
desencadeia a proliferação no corpo dos chamados "caracteres
secundários" do sexo masculino.

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Paradoxalmente, renunciei à fluidez porque desejava a mudança. A


decisão de "mudar de sexo" é necessariamente acompanhada disso
que Édouard Glissant chama de "um tremor". A travessia é o lugar da
:
incerteza, da não-evidência, do estranho. E tudo isso não é uma
fraqueza, mas um poder. "O pensamento do tremor", diz Glissant,
"não é o pensamento do medo. É o pensamento que se opõe ao
sistema ". Em setembro de 2014, iniciei um protocolo médico-
psiquiátrico de redesignação de gênero na Audre Lorde Clinic, em
Nova York.

A mudança de sexo e a migração são as duas práticas de


cruzamento que situam o corpo nos limites da cidadania

“Mudar de sexo” não é, como quer a guarda do antigo regime sexual,


dar um salto para a psicose. Mas também não é, como pretende a
nova gestão neoliberal da diferença sexual, um mero trâmite
médico-legal que pode ser completado durante a puberdade para
dar lugar a uma normalidade absoluta. Um processo de
redesignação de gênero em uma sociedade dominada pelo axioma
científico-mercantil do binarismo sexual, onde os espaços sociais,
trabalhistas, afetivos, econômicos e gestacionais estão
segmentados em termos de masculinidade ou feminilidade, de
heterossexualidade ou homossexualidade, é cruzar aquela que
talvez seja, juntamente com a raça, a mais violenta das fronteiras
políticas inventadas pela humanidade. Cruzá-la é ao mesmo tempo
saltar uma parede vertical interminável e caminhar sobre uma linha
desenhada no ar. Se o regime heteropatriarcal da diferença sexual é
a religião científica do Ocidente, então mudar de sexo só pode ser
um ato de heresia.

À medida que aumentava a dose de testosterona, as mudanças se


intensificavam: o pelo facial é um mero detalhe em comparação com
a força com que a voz precipita uma mudança de reconhecimento
social. A testosterona provoca uma variação da grossura das cordas
vocais, um músculo que, ao ter sua forma modificada, varia o tom e o
registro da voz. A mudança de voz é experimentada pelo viajante de
:
gênero como uma posse, um ato de ventriloquia que o força a se
identificar com o desconhecido. Sem dúvida, essa mutação é uma
das coisas mais bonitas que já vivi. Ser trans é desejar um processo
de crioulização interior: aceitar que só somos nós mesmos graças
à — e através da — mudança, da mestiçagem, da mistura. A voz que
a testosterona impulsiona em minha garganta não é uma voz de
homem, é a voz do cruzamento. A voz que treme em mim é a voz da
fronteira. Como diz Glissant, “entendemos melhor o mundo quando
trememos com ele, porque o mundo está tremendo em todas
direções”.
:
Junto com a mudança de voz veio a mudança de nome. Durante
algum tempo, desejei que meu nome feminino fosse declinado em
masculino. Ou seja, quis me chamar Beatriz e ser tratado, segundo
as gramáticas, com pronomes e adjetivos masculinos. Mas aquela
torção gramatical era ainda mais difícil que a fluidez de gênero.
Decidi então procurar um nome masculino. Em maio de 2014, o
subcomandante Marcos anunciou, em uma carta aberta enviada “da
realidade zapatista”, a morte do personagem Marcos, que tinha sido
:
inventado como um nome sem rosto para dar voz ao processo
revolucionário de Chiapas. Naquele mesmo comunicado, o
subcomandante afirmou que deixava de se chamar Marcos para se
chamar Galeano, em homenagem a José Luis Solís López, conhecido
como Galeano, assassinado em maio de 2014. Pensei então em me
chamar Marcos. Queria usar o nome de Marcos como uma balaclava
que cobrisse meu rosto e meu nome. Marcos seria uma forma de
desprivatizar meu antigo nome, de coletivizar meu rosto. Minha
decisão foi denunciada imediatamente nas redes pelos ativistas
latino-americanos como um gesto colonial. Afirmavam que, sendo
branco e espanhol, eu não podia usar o nome de Marcos. A ficção
política durou poucos dias. Esse nome, enxerto político fracassado,
existe apenas como um traço efêmero inserido na assinatura do
artigo do Libération de 7 de junho de 2014. Sem dúvida, eles tinham
razão. Havia naquele gesto arrogância colonial e vaidade pessoal,
mas também uma busca desesperada de proteção. Quem se atreve
a abandonar seu nome para adotar um nome sem história, sem
memória, sem vida? Aprendi duas coisas, aparentemente
contraditórias, com o fracasso do enxerto do nome Marcos: eu teria
de lutar por meu nome e, ao mesmo tempo, meu nome teria de ser
uma oferenda, teria de ser presenteado a mim como um talismã. (…)

A ciência, a tecnologia e o mercado estão redesenhando os limites


do que é e será um corpo humano vivo. Esses limites são definidos
hoje não só em relação à animalidade e às formas de vida
consideradas até agora subumanas (os corpos não brancos,
proletários, não masculinos, trans, com deficiência, doentes,
migrantes…), mas também frente à máquina, frente à inteligência
artificial, frente à automatização dos processos produtivos e
reprodutivos. Se a primeira Revolução Industrial foi caracterizada
pela invenção da máquina a vapor, pela aceleração das formas de
produção, a revolução industrial atual, marcada pela engenharia
:
genética, pela nanotecnologia, pelas tecnologias de comunicação,
pela farmacologia e pela inteligência artificial, afeta em cheio os
processos de reprodução da vida. O corpo e a sexualidade ocupam
na atual mutação industrial o lugar que a fábrica ocupou no século
XIX. Há, ao mesmo tempo, uma revolução dos subalternos e
apátridas em andamento e uma frente contrarrevolucionária lutando
pelo controle dos processos de reprodução da vida. Em cada canto
do mundo, de Atenas a Kassel, de Rojava a Chiapas, de São Paulo a
Johannesburgo, é possível sentir não só o esgotamento das formas
tradicionais de fazer política, mas também o surgimento de centenas
de milhares de práticas de experimentação social, sexual, política,
artística... Fazendo frente ao aumento das forças edípicas e fascistas
surgem, por toda parte, as micropolíticas do cruzamento.

Paul B. Preciado é um filósofo transgênero feminista, autor, entre


outras obras, de ‘Manifesto Contrassexual’ (N-1 Edições). Este texto
é um fragmento de seu novo livro ‘Un Apartamento en Urano’,
lançado nesta quarta-feira na Espanha pela editora Anagrama.
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