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4/15/2021 PrintWhatYouLike on Uma masculinidade necropolítica – Resista!

Observatório de resistências plurais

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6 DE AGOSTO DE 2019 RESISTAORP

Uma masculinidade necropolítica


Sayak Valencia, lósofa mexicana transfeminista, visitou a cidade convidada pela
Secretaria de Direitos Humanos da Universidade Nacional de Rosário para
participar do Simpósio “Cuerpo y território. Impacto de las doctrinas de seguridade
em Latinoamérica”. A autora de Capitalismo Gore (2016), além de performer, poeta e
ensaísta, relacionou – com uma habilidade que não deixa de surpreender – os
efeitos da necropolítica[i] das novas direitas, a alternativa aos feminismos e a
gura do empreendedor como o “camicase” da era atual.

Sayak Valencia é uma e muitas ao mesmo tempo. Mexicana (nascida em Tijuana),


doutora em Filoso a, poeta, ensaísta, exibicionista, performer e transfeminista.
Sayak Valencia não teme a diversidade de rótulos. Nem lhe preocupa se ater a uma
única classi cação. Ela tem prazer em não saber muito bem quem é e diz que se
reconhece fazendo isso. Sayak Valencia é especialista em criar categorias novas
para aquilo que necessita expressar e que ainda não tem denominação.

Quando chegou à Argentina, a primeira coisa que fez foi cumprimentar apertando
a mão. Em seguida, perguntaram a ela se isso era comum no México, porque aqui

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as mulheres trocam um beijo. “Chamo isso de tecnologias do uso do espaço.


Apertar as mãos resultou me dizerem que era muito masculino. A verdade é que
não é masculino, nem feminino, mas está carregado de signi cação. Por que os
homens se apertam as mãos? Porque nesse cumprimento há um pacto de
horizontalidade, um cumprimento entre pares. Uma autoridade que não é
outorgada às mulheres”, diz. Esses gestos mínimos ou os objetos com os quais
topamos diariamente servem para Valencia tecer pontes, construir relações, fazer a
arqueologia que depois se cristaliza através de seu variado trabalho.

Em 2016, ela publicou Capitalismo Gore, um livro no qual re ete sobre a violência
que se usa quase cotidianamente em certas cidades para obter ganhos
econômicos. O termo “gore” remete ao gênero cinematográ co mais sangrento e a
autora o usa para revelar a maquinaria e as rami cações violentas dos “atores” do
poder, em cujas engrenagens as estruturas capitalistas, o Estado e o narcotrá co
se envolvem em um cerco de domínio econômico.

No capitalismo gore, os novos modos discursivos das violências organizadas


intervêm na produção do capital. Os corpos das vítimas são ostentados, enquanto
a narcocultura participa na conformação de um mercado global que oferta os
sonhos e desejos a seguir.

“A palavra gore descreve situações de violência extrema, incluindo crueldade,


desmembramentos, derramamento injusti cado de sangue. Para mim, serve como
metáfora para falar do capitalismo neoliberal nos circuitos fronteiriços, onde não
só se produzem mercadorias, mas também mortos. É uma crítica aos sistemas
econômicos que imperam na atualidade, que são neocoloniais e exigem que a
gente, para poder sobreviver, realize práticas atrozes”, diz.

Do trabalho de Valencia se destaca uma categoria à qual se deve prestar atenção


especial: “sujeito endríago[ii]”. Embora Sayak a explique a partir de certas
particularidades mexicanas, sobretudo vinculadas a narcotrá co, ela nunca pensou

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que esse termo se estendesse a outras sociedades que o lessem com certa
identi cação.

“O endríago é esse sujeito masculino cartografado pela classe, cuja marca racial
está associada com estigmas e estereótipos da colonialidade. É um sujeito
obediente à masculinidade mais hegemônica, aquele que despreza todo tipo de
fraqueza, que acredita que o papel do homem é ser provedor, corajoso, violento e
que o Estado luta pela posse da violência. Mas também é aquele que entendeu
que a masculinidade dos corpos biologicamente masculinos tem o poder
necropolítico de levar a morte aos outros. Esse poder de exercer violência contra
os mais fracos: mulheres, crianças, dissidentes sexuais, pobres”, explica.

Para a autora, essa máquina necropolítica é masculinista, e a resposta tangível


está nas identidades minoritárias ou nos transfeminismos. “Os corpos em aliança
para que a resistência seja possível. Desobedecer ao gênero, ao consumo, à
nacionalidade, ao sexo como política para desmasculinizar os olhares”, postula.

O que é transfeminismo?

O transfeminismo não é uma coisa, mas um diálogo constante. Há muitos


transfeminismos, mas o importante é que têm que estar localizados in situ, isto é,
o transfeminismo que funciona para as pessoas em Rosário nem sempre é o que
funcionará para as pessoas de uma comunidade rural do México ou para o
feminismo comunitário boliviano. É um movimento social, mas também uma
epistemologia. Um deslize entre corpos, sexualidades, status de migração,
nacionalidades, raças e classes que articulam como algo potente o corpo das
mulheres, não os corpos essencialmente femininos, mas os corpos que transitam,
que migram, que não são escritos, que estão marcados pela interseccionalidade de
raças, de classes, de gêneros. Há uma parte importante da sexualidade, porque o
transfeminismo incorpora os corpos trans, travestis, transexuais, que transitam
mais além do gênero. Outros corpos que não podem ser inscritos no masculino ou
no feminino. A ‘descorpocolonialidade’ dos corpos não padronizados, que não são
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nem magros, nem altos, nem delgados, nem brancos. Há uma insurgência pela
recuperação de outros imaginários corporais, de corpos sem padrões. No caso
mexicano, que é o transfeminismo com o qual me sinto compelida ou identi cada,
não há a intenção de sexualizar, nem de moralizar a sexualidade, mas de utilizar
os aparatos críticos da representação da pornogra a e da pós-pornogra a para
fazer reivindicações feministas.

Qual é o desa o dos transfeminismos latino-americanos?

Construir uma ideia de sustentabilidade da vida. Que não brutaliza, nem puri ca,
nem hierarquiza uma vida sobre as outras. Que faça um trabalho de constituição
do comunitário através da desnecropolitização do pensamento e de nosso
contexto. Que seja um transfeminismo que vá de mãos dadas com a luta das mães
dos desaparecidos, com as mulheres que pedem justiça para os crimes de ódio
contra suas lhas, com os movimentos ambientais contra a exploração das minas,
com aqueles que lutam pelos direitos reprodutivos e sexuais como a legalização
do aborto, ou a legalização do trabalho sexual. É necessário pensar o trabalho
sexual como uma tarefa de cuidado e não a partir da abolição, já que um dos
trabalhos das mulheres casadas muitas vezes é fazer sexo com seus maridos. Que
se pense o corpo trans como um corpo digno, como parte do feminismo, com
pessoas dentro do movimento cujas histórias podem ser tremendamente
inspiradoras e com as quais possamos, sobretudo, ter alianças para transformar o
contexto em que vivemos.

Que lugar o performático tem no transfeminismo?

A performance é uma ferramenta, um dispositivo, que muitas vezes serve para


traduzir o conceito. Ela me interessa porque o corpo trabalha no espaço e faço
coisas com a indumentária e os gestos que permitem questionar os limites da
inteligibilidade do gênero. Faço uma performance de drag king que é a mais
conhecida, em que interpreto a mulher barbada. Não busco uma dimensão
espetacularizante, mas como utilizar uma disrupção visual no ambiente cotidiano.
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Então, quando coloco a barba, exagero os elementos digamos femininos e os


contraponho a uma espécie de jogo com o sujeito pensante, homem barbado, das
esquerdas. Vou à universidade e dou aula com a barba. Para muitos, pareço um
show de horrores porque uma mulher, supõe-se, não pode ter barba, mas faço
questionar esses arquétipos que te dizem o que você é e o que não é. Uma
pequena ruptura com a legibilidade do gênero instaurado no próprio corpo. Alguns
homens me veem com repulsa, outros com morbidez, alguns tentam ertar
comigo, outros riem. Em troca, as mulheres se aproximam fazendo perguntas, e
aprendo com elas porque são perguntas que abrem ao diálogo e questionam esse
olhar de que uma mulher não pode ter barba. Por isso o faço: para colocar
perguntas no espaço público e para o espectador.

Você está trabalhando em um livro sobre transfeminismo, mas sobre as


masculinidades brancas e heterossexuais. Como você decidiu se concentrar nisso?

É algo que me preocupa atualmente. Parecemos conscientes da opressão das


mulheres, das dissidências sexuais e das minorias raciais; entretanto, a violência
contra esses grupos persiste, e mesmo em contextos de campanhas políticas
parece somar votos. Às vezes, parece que os homens são cada vez menos
masculinos, mas é um efeito cosmético porque ao mesmo tempo não reduzem os
números de feminicídios e trasvesticídios.

Os transfeminismos latino-americanos e mexicanos podem dar uma resposta?

Enquanto não repensarmos a construção dos gêneros, que são termos binários,
imóveis e imobilizadores, isso vai continuar desestruturando. Acho muito
interessante o lugar de agência. Temos que aprender com o tornar-se das
identidades minoritárias, porque têm potência revolucionária se fazem aliança. Na
lógica do machismo mexicano, a vida não vale nada, como diz a canção. Nem sua
vida, nem a dos outros vale nada. Para demonstrar que é macho, você deve
sacri car sua vida e a dos outros. O México tem um capital social machista não
apenas para os homens, mas também um ethos social que se instala através de
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tecnologias de gênero que se reproduzem a partir dos muralistas, da literatura, dos


meios de comunicação. O Estado é necropatriarcal, é um Estado macho. A pátria
mexicana está construída com base no arquétipo pós-revolucionário do macho. A
estratégia estatal foi reproduzir um símbolo heroico, mas despolitizado. No
endríago, tomamos o político, mas lhe deixamos o heroico, e então o
embelezamos. Há aqueles que são destinados a corpos heroicos do massacre e
aqueles destinados ao sacrifício. Há uma masculinidade necropolítica que tem
capacidade de matar e car impune. Se não somos homens, não somos nada, ou
somos homossexuais, ou somos homens fracos – essa é a armadilha da
masculinidade. Assim como parece que o capitalismo abarca tudo, aqui parece que
a masculinidade abarca tudo. Mas há muita desobediência a esses regimes, e o
que nos interessaria é que essas pessoas se deem conta que estão desobedecendo.

Há aqueles que chamam o empreendedorismo de “venda do mal”. Por acaso esse


fenômeno é uma fase do capitalismo “gore”?

O empreendedorismo é a cristalização das lógicas do neoliberalismo. O


empreendedor tem que assumir sua precariedade e evitar as consequências
adversas como em um videogame. É um rótulo muito cosmético que soa bem e tem
boa impressão, mas o que ele está dizendo é que você se exploda, se desvincule
de sua comunidade, que sozinho. É um conceito muito a nado nessa lógica de
direcionar a subjetividade para que alguém se sinta vencedor enquanto
desmantelam o sistema de trabalho e o precarizam constantemente. Além da
precarização econômica, há a existencial, que passa pela desvinculação da
comunidade. A gura do free lance parece supercool porque trabalha em sua casa,
mas isso não quer dizer que você trabalhe menos. Quer dizer que trabalha mais,
que às vezes você nem sai de sua casa e que é prisioneiro de si mesmo em seu
próprio espaço. É como impedir que eles nos prendam porque já nos trancamos
sozinhos. O empreendedor não oculta suas contradições, mas as celebra e exibe
sua renda; é a versão mais destilada do sujeito obediente do neoliberalismo. Tem
uma genealogia com o necro, a morte, o militar. Porque a gura do free lance vem

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do século XVIII e XIX e era a “lança livre”, soldados sem convicção que se
alugavam aos exércitos para matar. O free lance é um mercenário do ‘cognitariado’,
que articula uma dimensão sacri cial, um camicase que se aniquila a si mesmo e
faz o trabalho daquele que o oprime. Encurta a vida porque tem que ter cinco
empregos, não tem tempo para nada, não tem parceira, nem relações sociais,
apenas por meio da rede.

Você não se diz negativa, mas descritiva; entretanto, existe uma saída possível?

Embora pareça que o capitalismo copiou tudo, que não haja alternativa, que seja
um desastre, que quase temos que aceitá-lo, há outras formas e devemos torná-las
visíveis. Assim como eles tornam universal um caso excepcional, devemos utilizar
essas estratégias para a valorização do comunitário, do regional, sem cair em
nacionalismos. Potencializar a resistência comunitária e os novos espaços de
vinculação social como uma possibilidade.

Entrevista de Sayak Valencia para Virginia Giacosa, publicada em Revista Rea em


2018. Disponível em: <http://revistarea.com/una-masculinidad-necropolitica/>

Tradução: Luiz Morando.

[i] Para o conceito de necropolítica, Valencia retoma e contextualiza o trabalho de


Achille Mbembe – baseado na biopolítica de Michel Foucault – para explicar a
violência no México. Como Mbembe, Valencia acredita que é a morte e não a vida
o que hoje em dia se encontra no centro da biopolítica, transformando-a em
necropolítica. No entanto, ela sustenta que sua interpretação de necropolítica é
geopolítica e contextualmente especí ca: a necropolítica em sociedades

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hiperconsumistas, em particular a fronteira norte-mexicana. Se a biopolítica


controla os processos vitais, as exigências capitalistas transformam em mercadoria
a vida e todos os processos associados, tais como a morte. Nas sociedades
hiperconsumistas, os corpos se convertem em mercadoria, e seu cuidado,
conservação, liberdade e integridade são produtos relacionados. Como mercadoria
cada vez mais valorizada, a vida é mais valiosa se for ameaçada, sequestrada e
torturada. (Nota da jornalista)

[ii] Endríago se refere a um monstro fabuloso, resultando do cruzamento da hidra


com o dragão, combatido pelos cavaleiros errantes por devorar mulheres virgens.
(Nota do tradutor)

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