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Estruturas
e Fundamentos
do Texto Literário
Autoras
Marta Morais da Costa
Silvana Oliveira
2009
© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor
dos direitos autorais.
200 p.
ISBN: 978-85-7638-814-2
CDD 801.95
O conto
Uma das primeiras características que sobressaem nas definições do subgênero conto é a de que
se trata de uma narrativa de curta extensão que não é suficiente de, por si só, constituir um volume
impresso (BALDICK, 2004, p. 236). No entanto, esse critério distintivo não é capaz de esclarecer o que
seja um conto. Torna-se necessário investigar melhor sua origem histórica e as alterações que ele vem
sofrendo ao longo do tempo para só então obter um quadro mais claro sobre sua natureza.
152 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário
Um dos elementos distintivos dessa forma narrativa consiste no caráter sintético do texto: uma
ação simples, com poucas personagens, uma ambientação social sucinta. A economia do conto é uma das
suas maiores virtudes e um fator de diferenciação, mas essa economia não impede a qualidade literária
ou as múltiplas interpretações. Esclarece Eickenbaum (1971, p. 162):
Short story é um termo que subentende sempre uma estória e que deve responder a duas condições: dimensões redu
zidas e destaque dado à conclusão. Essas condições criam uma forma que, em seus limites e em seus procedimentos, é
inteiramente diferente daquela do romance.
A migração desses contos – seja enquanto transmissão oral, por meio dos contadores de histórias,
seja por escrito, em publicações e traduções – atesta a intercomunicação entre as regiões do Oriente e
do Ocidente, causada pelo reconhecimento da importância dessas narrativas.
A origem remota e seu desenvolvimento posterior também permitem separar o conto em duas
grandes categorias:
::: o conto tradicional ou popular;
::: o conto erudito ou literário (essa última denominação é encontrada em Massaud Moisés).
Os contos de fadas,
com ou sem a presença de fadas (mas sempre com o maravilhoso) [...] desenvolvem-se dentro da magia feérica (reis,
rainhas, príncipes, princesas, fadas, gênios, bruxas, gigantes, anões, objetos mágicos, metamorfoses, tempo e espaço
fora da realidade conhecida etc.) e têm como eixo gerador uma problemática existencial. (COELHO, 1987, p. 13)
Os contos maravilhosos
são narrativas que, sem a presença de fadas, via de regra se desenvolvem no cotidiano mágico (animais falantes, tempo
e espaço reconhecíveis ou familiares, objetos mágicos, gênios, duendes etc.) e têm como eixo gerador uma problemá-
tica social (ou ligada à vida prática, concreta). (COELHO, 1987, p. 14)
O pesquisador alemão André Jolles escreveu, em 1930, uma obra importante para tratar dessas
formas iniciais de conto popular. O livro se intitulou em português Formas Simples, de que a primeira
tradução no Brasil data de 1976. Nessa obra, o escritor trata da lenda, da saga, do mito, da adivinha, do
ditado, do caso, do memorável, e do chiste. São formas populares de narrar histórias. Quando estuda
o conto, ele dá como espaço de seu surgimento o livro Contos para as Crianças e a Família (1812-1822),
dos irmãos Grimm.
Esses contos maravilhosos, recolhidos pelos filólogos Jacob e Wilhelm Grimm, têm fontes muito
remotas, como informa Nelly Novaes Coelho (1987): a narrativa egípcia Os dois Irmãos, de Anana, ou
Setna e o Livro Mágico (ambos de aproximadamente o século XIV a.C.); os indianos Pantshatantra (séc. V)
e Calila e Dimna (com texto em sânscrito desaparecido, mas reescrito a partir de narrativas orais entre
os séculos IX e XIII da era cristã); As mil e uma Noites (final do século XV), de origem persa e árabe. Dos
celtas, da região das atuais França, Itália e Espanha, em período anterior à era cristã, vieram as fadas que
irão povoar os contos maravilhosos do Ocidente.
A partir do século XVII e da obra de Charles Perrault, Os Contos de Mamãe Gansa (1697), baseada par
cialmente em O Conto dos Contos (1634), do italiano Giambattista Basile, a publicação de narrativas curtas
destinadas ao público infantil e adulto aumentou progressivamente, demonstrando a atração exercida
sobre o público leitor. Entre os autores, destacam-se Madame d’Aulnoy e seus Contos de Fadas (1698), os já
citados irmãos Grimm, e também Hans Christian Andersen em Contos (Eventyr), de 1835 a 1872. Ao longo
do século XIX, esse tipo de narrativa já apresentava uma evolução com a Condessa de Ségur em Novos
Contos de Fadas (1856), Lewis Carroll em Alice no País das Maravilhas (1865) e Collodi em Pinóquio (1883).
Essa tradição não se esgotou, pois nos dias de hoje essas narrativas são retomadas nas escolas,
que muitas vezes as utilizam pelas características moralistas e instrutivas, presentes em boa parte
dessa produção.
Porém, foi no século XIX que essa forma literária alcançou autonomia e esplendor (MOISÉS, 1997,
p. 100), tanto pela quantidade de escritores e obras quanto, sobretudo, pela qualidade literária das nar
rativas. O crescimento da produção de contos eruditos se deveu à descoberta dos intensos recursos
expressivos dessa forma literária, aliada ao modo de ler histórico: a rapidez da vida nas cidades e as
novas profissões e seus exercícios levam à escassez de tempo para o lazer e a leitura. O texto curto e
com unidade favorece o encontro com o leitor. Grandes contistas podem ser nomeados nesse período:
Edgar Allan Poe nos Estados Unidos, Guy de Maupassant na França, Machado de Assis no Brasil, Anton
Tchekov na Rússia, Eça de Queirós em Portugal. A riqueza de assuntos, efeitos e discurso literário do
conto também trouxe reflexões teóricas sobre ele, como as realizadas por Poe e Machado de Assis, que
indagam sobre as qualidades de síntese e rapidez na narração das ações e da construção de persona
gens, concluindo que se trata de uma forma narrativa de grande riqueza literária.
No século XX e nos tempos atuais, o conto continua sendo um subgênero de prestígio. Grandes
contistas renovaram recursos e modos de expressão, obtendo crescente diversidade, sempre provocan
do o interesse dos leitores. Entre os muitos contistas, podem ser citados Katherine Mansfield e Virgínia
Woolf na Inglaterra, o irlandês James Joyce, o tcheco Franz Kafka, os argentinos Julio Cortázar e Jorge
Luís Borges.
A novela
A novela, entretanto, apresenta algumas dificuldades de conceituação, dado que inicialmente ela
foi confundida com o conto e que, até hoje, diferentes línguas e culturas entendem e denominam tex
tos como novelas sem o mesmo significado que damos a essa palavra em língua portuguesa:
Para alguns, a novela vem do italiano novella, ou seja, pequenas histórias. Em Boccacio, a novella era breve, não mais de
dez páginas, se opondo ao romance medieval, forma mais longa e difusa, que desenvolvia uma intriga amorosa com
pleta. E Bocaccio chama seus textos indistintamente de “histórias, relatos, parábolas, fábulas”. (GOTLIB, 2000, p. 15)
Essa confusão terminológica durará alguns séculos, pois a noção de literatura e de estudos teóri
cos a respeito da literatura surgiram apenas no século XIX.
O termo novel passa para o espanhol. Cervantes escreve suas Novelas ejemplares, em 1621, e estas experimentam já um
processo de extensão. E Lope de Vega escreve então novelas que são, segundo ele, anteriormente chamadas cuentos.
[...] Atualmente, romance é novela . Novela é novela corta. E conto é cuento. (GOTLIB, 2000, p. 15)
Em francês ocorre algo semelhante: o escritor La Fontaine, autor das hoje denominadas fábulas,
no século XVII, usou indistintamente nouvelle e conte. Guy de Maupassant, no século XIX, denominou
suas nouvelles como contes. O século XX criou formas híbridas e podemos encontrar contos em verso
(mais próximos dos comportamentos narrativos e poéticos da epopéia).
Nas literaturas de língua inglesa, registra-se novamente um desencontro terminológico com os ter
mos em português:
Novel, usada do século XVI ao XVIII, como prosa narrativa de ficção com personagens ou ações representando a vida
diária, diferenciava-se do romance, forma mais longa e mais tradicional. No século XIX, com o declínio do romance anti
go, de reminiscências medievais, a novel preencheu o espaço disponível, perdeu as associações originais, deixou de ser
breve, virou romance. Hoje, novel, em inglês, é romance. Só no século XIX surge um termo específico para a estória curta,
a short story. Há ainda a long short story para a novela. E o tale para o conto e o conto popular. (GOTLIB, 2000, p. 14-15)
O período do Romantismo foi muito fértil na produção de novelas, dado que sua natureza fa
vorecia a expressão da cosmovisão romântica: o sentimentalismo, o estilo derramado e a preferência
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por uma narrativa de peripécias e reviravoltas. Segundo Massaud Moisés, “a novela tornou-se um dos
entretenimentos mais caros à burguesia, porventura em razão de oferecer-lhe alimento à imaginação
e preencher-lhe as largas horas de ócio” (MOISÉS, 1997, p. 362). No século XVIII, Goethe usou o termo
novelle para classificar Os sofrimentos do Jovem Werther, uma das obras mais influentes da época. Foi a
época de Camilo Castelo Branco, Garrett e Herculano em Portugal, Eugène Sue e Alexandre Dumas pai
na França; Joaquim Norberto e Teixeira e Sousa no Brasil. Os autores no século XX continuaram produ
zindo novelas, como se pode verificar na obra de Erico Veríssimo e Jorge Amado. A famosa obra Morte
em Veneza (1912), de Thomas Mann, é considerada uma novela, assim como O Coração das Trevas (1902),
de Joseph Conrad, e O Velho e o Mar (1952), de Ernest Hemingway.
No conto
Para tratar desse tópico, convém primeiramente esclarecer o que será entendido como ação. Para
tanto, servimo-nos da definição exposta por Nádia Gotlib (1999, p. 93):
[...] atos praticados por um sujeito, ou atitudes e caracteres que, em conjunto, compõem o enredo; este agir, fazer ou
acontecer se desenvolve em processo, organizando-se numa seqüência, que compõe a linha de ação; se a ação é forte e
predominante entre outros elementos de construção do conto, este é chamado conto de ação.
espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o pro
blema. De repente, disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão. (MACHADO DE ASSIS,
1975, p. 161)
A representação espacial metonímica da cidade do Rio de Janeiro e a época em que se passa a ação
fazem parecer um relato biográfico. No entanto, há a vagueza e a omissão de dados mais característicos
(o sobradinho e apenas grade de pau; a rua, o morro e o campo nominados não situam melhor o leitor; a
comparação entre o tempo atual e o passado serve-se apenas de, novamente, uma metonímia). É impos
sível reconstituir essa paisagem, porque a intenção do narrador não está nela verdadeiramente. Dirige-se
à escola. Mas o trecho citado serviu para qualificar a personagem: criança (“onde iria brincar a manhã”),
narrador adulto (“esse parque atual, construção de gentleman”) que inverte o tempo da ação, começando
no meio dela (a razão é anterior à escolha do caminho da escola; depois irá até ela e viverá alguns aconte
cimentos). O modo de narrar, com omissões e mudanças temporais, representa um fazer do narrador, um
modo de compor o texto que visa ao efeito do suspense e, posteriormente, da surpresa.
Portanto, mesmo um texto curto como o conto abriga modos de dizer/escrever literários. Existem
outros modos que tornarão mais específico o texto do conto, e dirão respeito à ação narrativa. Nádia
Gotlib, servindo-se de boa bibliografia, apresenta e discorre sobre essas idiossincrasias do conto.
O conto tradicional
Um estudo relevante que trata dessa forma de conto é o realizado por Vladimir Propp em Morfo-
logia do Conto (1928). O pesquisador toma como base os contos do ciclo da Baba Yaga, espécie de fada
má da literatura folclórica russa, e estabelece, a partir deles, um conjunto de qualidades reiteradas e que
formam um padrão. Assim, trata em seu estudo das ações constantes e das personagens, em número
de sete. Os esquemas obtidos serão quase integralmente mantidos em estudos posteriores, aplicados a
gêneros literários diferentes (como o dramático) e a romances, novelas e contos eruditos, estudos esses
de A. J. Greimas, Claude Brémond e Etienne Souriau.
Propp dividiu as ações constantes em 31 funções, que podem ser realizadas por personagens di
ferentes, de modos diferentes e nem todas estão juntas em um mesmo relato. A passagem entre as fun
ções provoca os movimentos do conto (GOTLIB, 2000, p. 21). Entre essas funções estão “o afastamento
de um membro da família”, “a interdição”, “o herói abandona sua casa”, os obstáculos em número de três,
“o agressor desmascarado”, “a tarefa cumprida”, “o agressor punido”, “o casamento”. Na medida em que
lemos essa lista incompleta, já a podemos entender e preenchê-la com alguma história conhecida – o
que confirma a pertinência da categorização de Propp.
Quanto às personagens, Propp identificou sete – o antagonista ou agressor, o doador, o auxiliar,
a princesa e seu pai, o mandatário, o herói e o falso herói –, cada uma delas atuando em sua esfera de
ação, que corresponde às funções que cumpre cada personagem. Posteriormente, nos anos 1960, A. J.
Greimas criou o que denominou sistema actancial, com vinte funções e seis personagens agrupados
por oposição: sujeito versus objeto, destinador versus destinatário e adjuvante versus oponente. Essa
compreensão das personagens, de seus papéis e funções, extrapolou o conto tradicional e se estendeu,
como método analítico, para as demais narrativas, como os romances, os contos eruditos e as novelas.
A estrutura da narrativa: conto e novela | 157
O conto erudito
Para estabelecer uma teoria do conto, Nádia Gotlib apresenta diferentes perspectivas em seu li
vro: a unidade de efeito de Poe, efeito e contenção em Tchekhov, o enredo em Maupassant, a epifania
em Joyce, a simetria na construção de Brander Matthews, e o excepcional em Cortazar. Vamos abordar, a
partir da apresentação de Nádia Gotlib, cada um desses enfoques no tocante à ação e à representação.
Intitulado “Review of Twice-told tales”, o texto de Edgar Allan Poe que embasa a sua teoria sobre o
conto é o seu prefácio para uma reedição de obra de Hawthorne. Nesse prefácio, ele afirma que:
No conto breve, o autor é capaz de realizar a plenitude de sua intenção, seja ela qual for. Durante a hora da leitura
atenta, a alma do leitor está sob controle do escritor. Não há nenhuma influência externa ou extrínseca que resulte de
cansaço ou interrupção. (POE apud GOTLIB, 2000, p. 34)
Em outras palavras, a brevidade do texto leva à rapidez da leitura, mantendo concentrado o po
der da narração para realizar determinados efeitos no leitor: “em quase todas as classes de composição,
a unidade de efeito ou impressão é um ponto da maior importância”, insiste ele (POE apud GOTLIB, 2000,
p. 32). Conclui Nádia Gotlib (2000, p. 32): “logo, é preciso dosar a obra, de forma a permitir sustentar esta
excitação durante um determinado tempo. Se o texto for longo demais ou breve demais, esta excitação
ou efeito ficará diluído”.
Seguindo o mesmo pensamento da brevidade do conto, Tchekhov acrescenta como elementos ca
racterizadores a condensação, a concentração ou compactação, além da tensão unitária: “para conseguir
compactar os elementos do conto, ou apresentá-los com concisão, o autor tem de controlar a tendência
aos excessos e ao supérfluo” (GOTLIB, 2000, p. 43). O exemplo do início do conto machadiano exposto aci
ma aponta insistentemente para essa concisão: a descrição da dúvida da personagem entre um espaço
ou outro é econômica, daí o uso da metonímia e apenas os nomes dos espaços, sem longas descrições.
Em Guy de Maupassant, o objetivo central do conto é a narração natural do acontecimento. Nele,
o interesse pela representação da realidade supera a contenção, sem que o conto se estenda demasia
do. Em sua obra de muitos contos, predomina o enredo: “sua imensa produção, de cerca de trezentos
contos, traz uma fácil fluência natural do acontecimento, com precisão e descontraída firmeza, produto
de uma intensa elaboração, seguindo os conselhos de seu mestre Flaubert” (GOTLIB, 2000, p. 46).
Joyce trouxe mais um componente para a composição do conto: para ele, o conto deveria ter como
momento especial a epifania – “Epifania, tal como a concebeu James Joyce, é identificada como uma es
pécie ou grau de apreensão do objeto que poderia ser identificada com o objetivo do conto, enquanto
uma forma de representação da realidade [...] é uma ‘manifestação espiritual súbita’.” (GOTLIB, 2000, p. 51).
Tal atributo não ocorre em qualquer contista, mas apenas entre aqueles que entendem a escrita literária
como forma de acesso a interioridades e a revelações espirituais, como Clarice Lispector.
Em ensaio de 1901, Brander Matthews trouxe mais uma forma de conceber o conto enquanto um
subgênero especial. Para ele,
[...] existe uma diferença entre conto e romance que não é só de extensão, mas de natureza; o conto tem uma unidade
de impressão, que o romance obrigatoriamente não tem. E por que tal unidade ocorre? Por causa da singularidade dos
elementos que compõem a narrativa do conto: o conto é o que tem unidade de tempo, de lugar e de ação. O conto é o
que lida com um só elemento: personagem, acontecimento, emoção e situação. (GOTLIB, 2000, p. 59)
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Adotamos essa concepção até os dias de hoje para distinguir o conto das demais narrativas lite
rárias, como a novela e o romance.
Por último, temos a contribuição de Júlio Cortazar, um contista extraordinário, que também pen
sou o fazer literário e sua recepção, e lançou a idéia do conto excepcional, assim definido por ele no
estudo “Alguns aspectos do conto”, publicado na obra Valise de Cronópio (1974):
O excepcional reside numa qualidade parecida à do ímã: um bom tema atrai todo um sistema de relações conexas,
coagula no autor, e mais tarde no leitor, uma imensa quantidade de noções, entrevisões, sentimentos e até idéias que
lhe flutuavam virtualmente na memória e na sensibilidade: um bom tema é como um sol, um astro em torno do qual
gira um sistema planetário de que muitas vezes não se tinha consciência até que o contista, astrônomo de palavras, nos
revela sua existência. (GOTLIB, 2000, p. 66)
Sobressai, portanto, acima de todas as qualidades de extensão, unidade e efeito, a marca da lite
ratura, da estética do texto, da capacidade de criação do excepcional, que transcende a escrita cotidiana
e se torna insubstituível.
Na novela
A ação na novela é essencialmente plural, porque é constituída por células narrativas e de ação,
apresentadas em um entrelaçamento e cada uma com independência de temporalidade, isto é, cada
uma tem unidade de tempo, com começo, meio e fim. Essa independência não significa que cada célula,
espécie de conto, não faça parte de uma unidade maior, para a qual contribui com uma parcela de sen
tido. Se aproximarmos essa noção caleidoscópica da novela das narrativas das telenovelas brasileiras,
podemos relacionar essas células ao núcleo de personagens/acontecimentos existente na teledrama
turgia: o núcleo burguês, o núcleo cômico, o núcleo dos operários etc. Os acontecimentos são primor
diais: eles propiciam a dinâmica da narrativa, além de justificar as reviravoltas do enredo.
Embora múltiplo, o espaço também se torna convergente, o que por vezes leva a alguns encon
tros artificiais de personagens vindos de diferentes regiões do país ou da cidade e, coincidentemente,
encontrando-se na mesma praça, no mesmo restaurante, na mesma casa. A variedade e o grande nú
mero dos espaços acompanham a quantidade de personagens e ações – e, muitas vezes, esse espaço
toma formas exclusivamente fictícias, com a função de servir de cenário para a preocupação central da
novela: os acontecimentos.
Entre os processos de narração, sobressaem os diálogos (acompanhando o grande número de
personagens) e a narração, cujo papel é o de orientar o leitor intensamente, resumindo, explicando,
qualificando a ação. Para tanto, a linguagem se caracteriza por um registro quase oral, de entendimento
rápido pelo leitor.
As personagens são numerosas para atender a todos os enredos e células da ação, com um gran
de número de coadjuvantes, muitas vezes existindo apenas para dar aos espaços uma atmosfera social.
São personagens pouco densos, até pelo grande número e a impossibilidade de o narrador deter-se
demoradamente para construir uma figura com nuances e contradições. Como resultado, os processos
de aglutinação das diferentes
[...] células dramáticas [...] podem ser de dois tipos: 1) ou as personagens mantêm-se ao longo da novela, servindo de elo [...]
entre as suas várias unidades e de elemento catalisador para as peripécias que se sucedem; 2) ou vão sendo substituídas
a cada episódio: a passagem de uma célula a outra dá-se pelo acaso ou pela morte do protagonista da fração dramática, e
pela conseqüente substituição por uma personagem anteriormente colocada em segundo plano. (MOISÉS, 1997, p. 367)
A estrutura da narrativa: conto e novela | 159
A ação das novelas tem um ritmo rápido, de vez que se apóia no enredo, sem descrições, disserta
ções e episódios de lentidão. Na verdade, cada célula acaba repetindo a mesma estrutura de:
E “assim a carga dramática da novela vai avultando paulatinamente, à proporção que os episódios
se sucedem” (MOISÉS, 1997, p. 367). O final da novela desvenda o enigma ou os mistérios dispersos ao lon
go da narrativa, como se verifica na novela policial. A existência desses mistérios cria no leitor a expectati
va por conhecer o desenlace, que nem sempre é definitivo, porque a novela pode admitir sua continuação
em outros livros, como ocorre com os textos em série: Harry Potter, de J. K. Rowling, as novelas policiais de
George Simenon (com o detetive Maigret) ou de Agatha Christie, com Miss Marple ou Hercule Poirot.
[...] o epílogo da novela articula-se estreitamente à sua macroestrutura: evoluindo numa linha horizontal, a novela exem
plifica à perfeição o que poderia se chamar de obra “fechada”, na medida em que as células dramáticas parecem bastar-
se a si próprias, não estabelecem com a vida senão vínculos indiretos. [...] Todavia, mostra-se estruturalmente “aberta”:
colocado o ponto final na sucessão de episódios, outros poderiam ser acrescentados, bastando chamar à cena aconte
cimentos posteriores, ou personagens secundárias, cuja existência não se completara no correr da fabulação. (MOISÉS,
1997, p. 368)
Verifica-se, portanto, que a novela é uma forma de intensa atração para leitores em busca de narra
tivas ágeis, de média extensão e com uma estrutura narrativa tradicional, que possa ser imediatamente
apreendida.
1 Metaficcional diz respeito à narrativa que chama a atenção do leitor para a própria ficcionalidade, isto é, que tem como assunto o próprio
fazer narrativo, a própria feitura do texto.
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Texto complementar
Teses sobre o conto
(PIGLIA, 1944)
Num de seus cadernos de notas Tchekhov registrou este episódio: “Um homem, em Monte Carlo,
vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida.” A forma clássica do conto está condensa
da no núcleo dessa narração futura e não escrita.
Contra o previsível e convencional (jogar–perder–suicidar-se) a intriga se estabelece como um
paradoxo. A anedota tende a desvincular a história do jogo e a história do suicídio. Essa excisão é a
chave para definir o caráter duplo da forma do conto.
Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias.
O conto clássico (Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a história 1 (o relato do jogo) e cons
trói em segredo a história 2 (o relato do suicídio). A arte do contista consiste em saber cifrar a histó
ria 2 nos interstícios da história 1. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de um
modo elíptico e fragmentário.
O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na superfície.
Cada uma das duas histórias é contada de maneira diferente. Trabalhar com duas histórias signi
fica trabalhar com dois sistemas diversos de causalidade. Os mesmos acontecimentos entram simul
taneamente em duas lógicas narrativas antagônicas. Os elementos essenciais de um conto têm dupla
função e são utilizados de maneira diferente em cada uma das duas histórias.
Os pontos de cruzamento são a base da construção.
No início de “La muerte y la brújula”, um lojista resolve publicar um livro. Esse livro está ali por
que é imprescindível na armação da história secreta. Como fazer com que um gângster como Red
Scharlach fique a par das complexas tradições judias e seja capaz de armar a Lönrot uma cilada mís
tica e filosófica? Borges lhe consegue esse livro para que se instrua. Ao mesmo tempo usa a história
1 para dissimular essa função: o livro parece estar ali por contigüidade com o assassinato de Yar
molinsky e responde a uma causalidade irônica. “Um desses lojistas que descobriram que qualquer
homem se resigna a comprar qualquer livro publicou uma edição popular da Historia secreta de los
hasidim. O que é supérfluo numa história, é básico na outra. O livro do lojista é um exemplo (como
o volume das Mil e uma Noites em “El sur”; como a cicatriz em “La forma de la espada”) da matéria
ambígua que faz funcionar a microscópica máquina narrativa que é um conto.
O conto é uma narrativa que encerra uma história secreta. Não se trata de um sentido oculto
que depende da interpretação: o enigma não é senão uma história que se conta de modo enigmá
tico. A estratégia da narrativa está posta a serviço dessa narrativa cifrada. Como contar uma história
enquanto se está contando outra? Essa pergunta sintetiza os problemas técnicos do conto.
Segunda tese: a história secreta é a chave da forma do conto e suas variantes.
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A versão moderna do conto que vem de Tchekhov, Katherine Mansfield, Sherwood Anderson, o
Joyce de Dublinenses abandona o final surpreendente e a estrutura fechada; trabalha a tensão entre
as duas histórias sem nunca resolvê-las. A história secreta conta-se de um modo cada vez mais elusi
vo. O conto clássico a Poe contava uma história anunciando que havia outra; o conto moderno conta
duas histórias como se fossem uma só.
A teoria do iceberg de Hemingway é a primeira síntese desse processo de transformação: o mais
importante nunca se conta. A história secreta se constrói com o não dito, com o subentendido e a
alusão.
“O grande rio dos dois corações”, um dos textos fundamentais de Hemingway, cifra a tal ponto
a história 2 (os efeitos da guerra em Nick Adams) que o conto parece a descrição trivial de uma excur
são de pesca. Hemingway utiliza toda sua perícia na narração hermética da história secreta. Usa com
tal maestria a arte da elipse que consegue com que se note a ausência da outra história.
O que Hemingway faria com o episódio de Tchekhov? Narrar com detalhes precisos a partida e o
ambiente onde se desenrola o jogo, a técnica utilizada pelo jogador para apostar e o tipo de bebida
que toma. Não dizer nunca que esse homem vai se suicidar, mas escrever o conto como se o leitor já
soubesse disso.
Kafka conta com clareza e simplicidade a história secreta e narra sigilosamente a história visível
até transformá-la em algo enigmático e obscuro. Essa inversão funda o kafkiano.
A história do suicídio no argumento de Tchekhov seria narrada por Kafka em primeiro plano e
com toda naturalidade. O terrível estaria centrado na partida, narrada de um modo elíptico e ame
açador.
Para Borges, a história 1 é um gênero e a história 2 sempre a mesma. Para atenuar ou dissimular
a monotonia essencial dessa história secreta, Borges recorre às variantes narrativas que os gêneros
lhe oferecem. Todos os contos de Borges são construídos com esse procedimento.
A história visível, o jogo no caso de Tchekhov, seria contada por Borges segundo os estereóti
pos (levemente parodiados) de uma tradição ou de um gênero. Uma partida num armazém, na pla
nície entrerriana, contada por um velho soldado da cavalaria de Urquiza, amigo de Hilario Ascasubi.
A narração do suicídio seria uma história construída com a duplicidade e a condensação da vida de
um homem numa cena ou ato único que define seu destino.
A variante fundamental que Borges introduziu na história do conto consistiu em fazer da cons
trução cifrada da história 2 o tema principal.
Borges narra as manobras de alguém que constrói perversamente uma trama secreta com os
materiais de uma história visível. Em “La muerte y la brújula”, a história 2 é uma construção delibera
da de Scharlach. O mesmo ocorre com Acevedo Bandeira em “El muerto”; com Nolan em “Tema del
traidor y del héroe”; com Emma Zunz.
Borges (como Poe, como Kafka) sabia transformar em argumento os problemas da forma de
narrar.
O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a bus
ca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca da vida,
162 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário
uma verdade secreta. “A visão instantânea que nos faz descobrir o desconhecido, não numa longín
qua terra incógnita, mas no próprio coração do imediato”, dizia Rimbaud.
Essa iluminação profana se transformou na forma do conto.
Estudos literários
1. Procure lembrar de um conto infantil ouvido na infância. Escreva-o ou copie o texto de um livro
ou da internet. Aplique as características do conto tradicional. Comente o resultado.