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The Last Of Us - Como Hollywood usa o audiovisual como propaganda da indústria de

armas.

“Ellie, a jovem menina, está sozinha, numa sala cheia de entulho, parece se tratar de um
porão. Ela está escondida de Joel, seu pai adotivo, e está checando sua recém apropriada
Beretta modelo 70.380 que tomou do espólio do falecido Bill. A pequena arma que tanto
buscou nos episódios anteriores. A câmera foca nela, em silêncio a menina conta a
munição, segura as balas em sua mão. Ela recarrega, engatilha, sente o peso, a textura do
metal, movimenta pelas mãos, observa os detalhes com admiração, depois se coloca em
frente a um espelho sujo e quebrado, de arma em punho, mira para frente e aprecia a
própria imagem detendo agora o poder de uma arma de fogo que cabe em sua mão.”
(E4S1)

No primeiro semestre de 2023, despontou no mercado mais um produto da indústria cultural


estadunidense: "The Last of Us" ("Os Últimos de Nós", em tradução livre), uma série de
televisão que adapta a narrativa de um jogo de videogame homônimo. Nesta trama, somos
imersos em mais um apocalipse zumbi, distinto dos demais pela peculiaridade da origem
dos monstros a partir de uma infecção por fungos. A narrativa, diferentemente de outras do
gênero, concentra-se menos em imagens catárticas sanguinolentas e mais no drama de um
homem e uma menina em sua busca por reconstruir laços afetivos e superar cada um seus
respectivos dramas familiares do passado.

Os nove episódios que compõem a primeira temporada da série desenvolvem muito bem os
personagens, apresentam qualidades técnicas notáveis e um roteiro que adapta bem a
série de jogos, e amplia a história original com acréscimos bem dosados de drama e
comédia, terror e romance. No entanto, ao nos depararmos com um expoente de um
subgênero de narrativa, já consolidado, que fixou seus clichês no cânone cinematográfico,
somos levados a confrontar invariavelmente a própria história desse gênero, e a capacidade
da série de estabelecer suas próprias formas de identificação.

A pergunta que perpassa esta resenha, e norteia os comentários que a compõe, advém de
uma atenção voltada ao subtexto implícito nas cenas, não tanto através de diálogos, mas
principalmente pela composição das cenas, é a seguinte: por que, em narrativas desse tipo,
onde situações limites são apresentadas, a primeira necessidade associada à segurança é
a posse de armas de fogo? A resposta a esse problema será analisada à luz de uma
perspectiva de enquadramento desenvolvida por Judith Butler em alguns ensaios de seu
livro Quadros de Guerra. Outras tentativas de interpretação das cenas partiram de reflexões
sobre fotografia de guerra, com Susan Sontag em "Diante da Dor dos Outros".

Diversas abordagens conceituais, sejam históricas ou sociológicas, poderiam ser utilizadas


para essa especulação; no entanto, a urgência maior a ser elencada, conforme destacam
essas autoras, num pensamento filosófico particular de um ethos das imagens, é o por que
de nos ter sido concedida essa associação.

A origem da criatura zumbi, retirada do folclore haitiano e afastada de seu contexto original
para estabelecer novas relações, responde à demanda da indústria cinematográfica por
novas histórias de monstros, um segmento de grande sucesso nos anos 1930. Em diversas
variações ao longo das décadas, essa criatura passou a simbolizar as mais variadas
alegorias, desde a simplicidade de um corpo magicamente reanimado com intenções
maléficas, apenas para gerar medo no espectador, até a personificação da fúria vingativa
da natureza diante das mudanças climáticas.

Na série em questão, é a esse último exemplo que nos voltamos para acompanhar a
narrativa. Introduzida como preâmbulo, a explicação para a origem desses seres não
sustenta mistério algum, de forma bastante gratuita vemos um antigo programa de auditório
entrevistando dois cientistas, o bem humorado apresentador pergunta a um deles o que
poderia nos destruir numa pandemia, gripe ou algo do gênero, a resposta que gera a
estranheza de todos “fungos”, mas não é sobre isso que a história trata, sabemos disso por
sermos tão logo uma explicação é dada para a ocorrência dessa provável
contaminação ser enunciada, somos conduzidos a um drama familiar, que retrata o
bom relacionamento de um pai solo em seu aniversário, que está prestes a perder sua filha,
e seu mundo.

Antes da metade do primeiro episódio conhecemos o passado desse homem, que seguirá
na narrativa após um salto temporal para a sua atual condição, antes de encontrarmos a
protagonista e a empreitada dos dois no final do episódio, uma consideração em relação a
adaptação do videogame para a tela, o Joel é o personagem jogável, sendo a Ellie o motor
da história durante todo o primeiro jogo.

Dada a premissa, cabe destacar que, numa série ou filme, não necessariamente
deveríamos nos preocupar com o que faríamos na vida real, usando lógica ou algo do tipo,
coisas como a busca por sobrevivência não importariam a trama a menos que essa não
fosse posta em xeque na tela, segundo um script. As consequências são decisões do
roteiro, poderia muito bem tratar da busca comida e água bem como da procura por afeto
em meio ao desespero. Esse tipo de decisão, o desenrolar de uma realidade distópica, da
anuência ao tipo de enquadramento específico em operação: a segurança como autodefesa
armada. Contudo, desatar essa associação é essencial para enxergar além do que é
orientado para nosso olhar.

A filósofa estadunidense Judith Butler argumenta que, desde pelo menos o 11 de setembro
de 2001, o jornalismo em seu país está sujeito a uma certa censura autoimposta. O que ela
denomina como "jornalismo comprometido" é a forma como a permissão de jornalistas em
missões de guerra é concedida para que o que seja enquadrado na composição das cenas
dos noticiários privilegie certos tipos de interpretação, ao mesmo tempo em que invisibiliza
outras. Esse diagnóstico segue a linha argumentativa que reconhece a efetividade das
imagens fotográficas em apresentar à nossa consciência as condições de possibilidade de
apreciá-la, assume a imagem como detentora do poder de circunscrever uma norma.

O problema real da ampla difusão de armas de fogo na sociedade, a violência e o horror


que manifestam, é anulado pela imagem, todas as vezes que elas aparecem, as condições
se repetem: São a alternativa definitiva para toda e qualquer ameaça à vida, seja nas
mãos do exército americano ou em posse de civis, para a auto defesa, ou mesmo
para dar cabo da própria vida. Isso é percebido perceptível nos noticiários, mas é
especialmente notável na narrativa cinematográfica.

Em outra perspectiva, em seu último livro, Diante da Dor dos Outros, Susan Sontag destaca
que as narrativas perduram na consciência mais do que as fotos. O que a autora enuncia é
que as imagens fotográficas, embora dotadas do poder de nos assombrar ao serem
evocadas, sempre as mesmas como sumárias dos eventos históricos, carecem do contexto
e da legenda, com o que então deteriam a real eficácia normativa de estabelecer seu
sentido.

A forma como as imagens são sucedidas em fluxo constante, aliadas à narrativa, é o que
chamamos de cinema. O dispositivo que faz a conversão entre o anseio de suprir uma
necessidade para o desejo de adquirir um produto é denominado propaganda.

Quero propor que os sentimentos de proteção, defesa, vingança e justiça, capacitados


pelas armas, sejam supridos nessas narrativas de ficção pelas demandas do próprio
roteiro, são intencionais. Observemos de perto o caso de Ellie, a protagonista da série em
análise que será nosso avatar para uma reflexão mais ampla. Uma jovem é entregue à
responsabilidade de um ex-militar para ser levada ao outro lado do país na tentativa de ser
estudada e desenvolver uma cura para a infestação de esporos que são responsáveis pelo
apocalipse zumbi.

Durante toda a viagem pelo país, observamos a resistência de Joel, seu protetor, em lhe
conferir agência e autonomia quanto à própria segurança, apresentando-se como seu
responsável e tomando as decisões quanto a esconderijos, paradas, rotas, etc.

O que é algo normal, do senso comum; um adulto não deveria dar armas a crianças. Mas
essa situação vai mudar, e não só Ellie terá a sua própria arma, que se adapta às suas
necessidades de manuseio enquanto uma adolescente de 14 anos, como será instruída no
uso de fuzis de alto calibre por Joel. O que aconteceu em cena para justificar essa
mudança?

“Joel e Ellie param numa clareira, a caminho de seu destino o homem e a garota têm um
breve descanso, uma cena com uma bela fotografia nos apresenta uma imagem clara de
relacionamento pai e filha, o que se desenrola é o treinamento militar, que antes era
implícito, agora é apresentado na prática, a menina é instruída a atirar bem com um rifle de
caça .308 WIN. O seu pai adotivo/tutor dá dicas e truques, eles trocam sorrisos, se
divertem, mesmo que a menina erre um pouco os alvos, a cena é descontraída, e a
demonstração de habilidade técnica de manuseio do rifle com a precisão agregada graças
a mira telescópica, é tratada como uma competência admirável, os olhos da garota
brilharam com a destreza de Joel em acertar em cheio, constroem laços entre si e conosco
pela tela, e depois vão embora.” (E7S1).

Adotando narrativas inclusivas de forma bastante respeitosa e natural, a série em questão


aborda demografias que tradicionalmente sofrem com a violência armada: pessoas
racializadas, mulheres, crianças e pessoas LGBTQIAP+. As tirando do papel de vítimas e
realocando no papel de portadoras das armas. As imagens apresentam enquadramentos ao
deliberadamente fazer das diversas cenas formas de demonstrar como as armas servem de
instrumento ideal de defesa. À luz dessas imagens, devemos ver os tipos de situações em
que mesmo uma criança pode deter uma arma de fogo.

Poderíamos buscar na história do subgênero dos filmes de zumbi se este tipo de discurso
acompanha estas histórias desde a gênese. White Zombie (1932) é frequentemente citado
como o primeiro filme de zumbi, e mesmo 36 anos depois, com The Night of the Living
Dead (1968), um dos precursores da popularidade do gênero, não é assim que armas
aparecem. O foco não está em seu uso, e nestes dois filmes em especial, pouco aparecem.
Não queremos dizer que essa prática começa com TLOU, nem que se restringe a filmes do
tipo, mas sim comunicar que já algum tempo o discurso liberal pró-armas tem uma
estética, se apropriou da linguagem da cinematografia e desempenha sua retórica de
forma a estruturar nossa percepção cognitiva pela fruição.

Nos aproximamos bastante com esses argumentos da posição de Adorno (1944) em seu
conceito de Indústria Cultural, nos filiamos a isso para destacar a forma como as armas
aparecem em cena para suprir a necessidade de proteção, cedem as armas como produto,
são simulacros de armas reais, com modelos e fabricantes. Os EUA são o maior fabricante
de armas do mundo.

“Depois de encarar o destino derradeiro de Ellie e que a encaminhou até este momento,
Joel Reage a seus captores que o escoltaram para fora do hospital onde a menina está
internada, aguardando a cirurgia que a mataria, mas possivelmente encontraria uma cura
para o vírus cordyceps que destruiu a humanidade. Na sua fúria, rouba a arma que o fazia
de refém um rifle M4A1, e atira contra os dois homens que o levavam, em seguida
empreende uma operação de assalto, muito impressionante, deixando um rastro de sangue
por onde passa, executando habilmente todos os vagalumes (milicianos) que guardavam o
hospital, e consegue resgatar Ellie da sala de cirurgia onde estava para ser dissecada.
Numa cena final, onde deve escolher entre salvar a civilização, ou viver com a filha adotiva,
Joel escolhe a garota, e mesmo tendo rendido completamente a sua contratante, nosso
herói executa a mulher com um tiro de seu revólver pessoal Taurus .357 que estava
escondido durante a negociação, logo após justificar que não queria ser perseguido e ter
alguém que pudesse vir a separá-los.”

O ponto de partida desta resenha foi uma provocação. A pergunta que norteou a análise, a
saber, a associação de segurança a armas de fogo neste seriado, foi sustentada por duas
filósofas que centraram seus escritos na reflexão de imagens reais de guerra e o poder
político-social destas imagens. Nossos desdobramentos envolvendo a transposição dessas
reflexões para a ficção se apoiam na margem de aplicação que as mesmas deixam em
aberto em seus escritos. Elencar o conceito de Indústria Cultural denota o aspecto
publicitário do cinema, especialmente para o caso da indústria bélica, o que, por fim,
fundamenta as considerações apresentadas ao longo do texto.

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