A priori, é importante considerar que — assim como no filme anterior, Cisne
Negro — esse filme também é narrado a partir da perspectiva de um personagem que está enfrentando sofrimentos psicológicos. Portanto, os acontecimentos devem ser considerados do ponto de vista fenomenológico, não julgados a partir da “realidade”.
Adiante, é curiosa a abordagem da trama situar-se em uma “ilha”, o que
aparenta caracterizar a ilustração de uma existência significativamente distante do mundo social, do convívio com a civilização. Além deste pressuposto, a ilha é apresentada através de uma disposição fotográfica e teatral extremamente “claustrofóbica”, contando com uma luminosidade muito escura, na maior parte do tempo — até mesmo nas dependências do hospital — assim como a disposição de cenários frequentemente caracterizados pelo abandono e isolamento, lugares descuidados, precários e sem manutenção. Em conjunto com a premissa de que trata-se de uma prisão psiquiátrica, para onde seriam enviados todos os detentos considerados “inaptos” e “perigosos”, esta configuração simboliza muito bem a ideia de uma fronteira de contato extremamente afastada e fortemente protegida, que impede o contato com o mundo em ambos os lados.
Há, na verdade, a dúvida, sobretudo no final do filme, a respeito de que esta
ilha exista de fato. Ou, ao menos, exista da forma exata com a qual é narrada. Considerando que, conforme é apresentado ao paciente Edward Daniels, ao final do filme, as experiências vivenciadas por ele tratavam-se, na realidade, de uma encenação que fazia parte do seu tratamento — cuja êxito era esperado, na expectativa de salvar Edward do procedimento de lobotomia — e considerando, também, as frequentes “falhas” visuais e teatrais consistentes no filme, que inclui peças sumindo, pessoas agindo de maneira estranha, conversa com “pacientes” aleatórios que estranhamente conheciam Andrew Laeddis, como se fosse um assunto extremamente popular na ilha inteira, é possível indagar-nos a respeito da sua apresentação. Arrisco dizer que, talvez, o protagonista estivesse apenas em um hospital psiquiátrico ou prisão quaisquer, e todas essas características sejam fruto da sua própria narrativa. Somos apresentados a uma ilha fenomenológica.
A respeito dos sintomas e das demandas de Edward, notamos consecutivas
alucinações, sonhos e percepções contraditórias e invasivas ao seu próprio Self, que o perturbam e o confundem conforme vêm à consciência. Isto deve-se ao fato de Edward ser, na verdade, uma segunda identidade do paciente, concebida na tentativa de ajustamento criativo que lhe permitisse lidar com o sofrimento pelo qual passou após o episódio que levou à morte sua esposa e filhos. A confusão entre ambas as identidades aparenta ter-se enraizado a ponto de deturpar a narrativa entre os personagens: Por um lado, Edward está buscando por Laeddis como um criminoso desconhecido, por outro lado, eventualmente propõe falas como “Laeddis era o construtor da minha casa, e também era incendiário. Ele foi o responsável pelo incêndio que destruiu a minha família”. Os sintomas desse sofrimento caracterizam a tentativa desesperada de um Self que busca pela integração do personagem com a sua história, com o lado de si mesmo ao qual não quer compreender.
Tocando no assunto da integração, por fim, o final do filme é também
marcado por muitas dúvidas. Dentre elas, a questão a respeito de que o processo de tratamento enfrentado pelo protagonista realmente tenha surtido efeito, ou de que ele tenha sido conduzido à lobotomia, dada a falha do método. Há dúvidas, na realidade, a respeito do processo de lobotomia em detrimento da localização do suposto “laboratório onde seria feito o procedimento”, uma vez que a estrutura de um farol náutico, contido na ilha, não corresponda a um ambiente ideal para o exercício de atividades médicas, além da ideia simbólica contida na associação da lobotomia com um farol (lugar onde se encontra a luz que guia os navegadores perdidos). O grande questionamento é, portanto, se o paciente realmente obteve melhora no seu quadro clínico ou se, ao final das contas, a tentativa do seu Self de ajustar-se frente ao contato com o problema tenha culminado na consumação completa da sua identidade “original” em detrimento da outra, que mantém a sua estrutura segura e protegida, na qual ele morre como Edward, um herói de guerra, afastado de tudo e de todos, inclusive de si mesmo:
“O que poderia ser melhor? Viver como um monstro ou morrer como um
homem bom?” Últimas palavras ditas pelo personagem, antes do fim.