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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

VITOR MENDONÇA TORRES

FESTIVAL FORTALEZA CIDADE MARGINAL: MICROPOLÍTICAS E


SINGULARIZAÇÃO NA CENA UNDERGROUND FORTALEZENSE (2015–2018).

FORTALEZA - CEARÁ
2019

1
VITOR MENDONÇA TORRES

FESTIVAL FORTALEZA CIDADE MARGINAL: MICROPOLÍTICAS E


SINGULARIZAÇÃO NA CENA UNDERGROUND FORTALEZENSE (2015–2018).

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Graduação
em Licenciatura em História do
Centro de Humanidades da
Universidade Estadual do Ceará,
como requisito parcial à obtenção do
grau de licenciado em História.

Orientador: Prof.° Dr.° Alexandre


Almeida Barbalho

FORTALEZA - CEARÁ
2019

2
VITOR MENDONÇA TORRES

FESTIVAL FORTALEZA CIDADE MARGINAL: MICROPOLÍTICAS E


SINGULARIZAÇÃO NA CENA UNDERGROUND FORTALEZENSE (2015–2018).

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Graduação
em Licenciatura em História do
Centro de Humanidades da
Universidade Estadual do Ceará,
como requisito parcial à obtenção do
grau de licenciado em História.

Aprovada em:

BANCA EXAMINADORA

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AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus pais, Milton e Eliene, por todo suporte dado, sem vocês essa
pesquisa não seria possível.
À Larissa, irmã com quem compartilhei sorrisos, compartilhei a vida.
Aos aliados Luiz Henrique e Agno César, pessoas que tornam a existência mais feliz,
melhor de ser vivida.
À Amanda, que muito me ensinou sobre compreender o outro em suas falas e silêncios.
Ao professor Alexandre Barbalho pela orientação e as diversas trocas de ideia.
Aos marginais entrevistados: André Moura, Jorge Matagato, Frank, Juliana Pessoa e
Marcus Au. Obrigado pelas ricas conversas.
Aos grandes colegas de curso: Teo Nascimento, Pedrim, Alisson Bruno, Larissa Daniel,
Pablo Santiago, Saviola, Cleilson Carvalho, David Quiroz, Davi Lost, Rômulo Iuri,
Daniel Castro, Bruno Rorigues, Lorena, Leo Silva.
Aos professores que me ajudaram e ensinaram (n)os diversos caminhos para se buscar
conhecimento: Alexandre Barbalho, Damasceno, Carlos Jacinto, Zilda Lima e Gisafran.
Aos enfants terribles do CH. Bruni, Coelho, Caúla, Pedrão, Djibril. Leozin.
Aos artistas que compuseram todas as edições do Festival Fortaleza Cidade Marginal.
À Jonnata Doll, que por meio de sua arte nos inspira a construir outros jeitos de viver.

4
RESUMO
Esta pesquisa pretende expor e analisar os processos de construção coletiva
desenvolvidos na realização do Festival Fortaleza Cidade Marginal. Evento integrante
do cenário de roque underground Fortalezense, o FFCM, que teve cinco edições entre os
anos de 2015 e 2018, reuniu músicos, poetas e performers de Fortaleza, tendo sua
produção viabilizada partir de uma rede de sociabilidades construídas na trajetória
desses artistas nas cenas que compuseram. As principais fontes utilizadas na discução
são oriundas de entrevistas semiestruturadas realizadas com um dos idealizadores e
artistas participantes do Festival. Integram-se a elas publicações feitas na página virtual
do evento e meus diários de campo. Logo, as metodologias utilizadas na pesquisa foram
a história oral e a observação participante. Já as perspectivas conceituais utilizadas
dialogam com a filosofia da diferença de Félix Guattari, mais especificamente seus
livros “Micropolíticas: cartografias do desejo”, “Revoluções Moleculares: pulsações
políticas do desejo” e “Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia”; os dois primeiros foram
escritos em parceria com Suely Rolnik e o terceiro com Gilles Deleuze. Assim, foi
concluído que na construção do Festival foram priorizadas ações que viabilizaram a
ocorrência do evento, sendo secundarizados modos de fazer hegemônicos do mercado
musical. E que essas políticas desenvolvidas na produção dos Eventos atravessam os
territórios musicais, mas não estão restritos a eles, integram zonas subjetivas que são
trazidas a partir das figuras sociais marginais presentes nas experiências artísticas lá
compartilhadas.

Palavras-chave: Festival Fortaleza Cidade Marginal. Cenas musicais. Subjetividade.

5
RESUMÉN
Esta investigación pretende exponer y analizar los procesos de elaboración colectiva
desarollados en la realización del Festival Fortaleza Cidade Marginal. Festivo integrante
de la escena rock underground de Fortaleza, lo FFCM, que tuvo cinco ediciones
mientras los años 2015 y 2018, reunió músicos, poetas y performers de Fortaleza,
teniendo su producción viable a partir de una red de sociabilidad construida em la
trayectoria de los artistas involucrados en la escena. Las principales fuentes utilizadas
en la discusión provenien de entrevistas semiestructuradas realizadas con los creadores
y artistas participantes del Festival. Junto a ellas publicaciones hechas en la página
virtual del festivo y los diarios de campo. Esto puesto, las metologias elegidas en la
investigación fueran la historia oral y la observacion participante. Las perspectivas
conceituales dialogan com la filosofia de la diferencia de Felix Guattari, en particular
sus libros “Micropolíticas: cartografias do desejo”, “Revoluções Moleculares: pulsações
políticas do desejo” e “Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia”; los primeros se han
escritos junto a Suely Rolnik y el tercer com Gilles Deleuze. Entonces, si concluyó que
en la contrucción del Festival han sido priorizadas acciones que posibilitaron el hecho
del evento, se rechazando las maneras hegemónicas del mercado de la música. Y que las
politicas desarolladas em la construccion del festival atraviesan el terreno musical, pero
no se lo terminan ahí, incluyen zonas subjetivas traídas en las personalidades sociales
marginales presentes en las experiencias artísticas compartidas allá.

6
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Flyer do FFCM Primeira edição.…………………………. 33


Figura 2 - Fachada do Casarão do Benfica..................................... 36
Figura 3 - Flyer do FFCM Segunda edição...................................... 39
Figura 4 - Flyer do FFCM Terceira edição....................................... 46
Figura 5 - Flyer FFCM Quarta edição............................................... 48
Figura 6 - Alguns Implicantes........................................................... 51
Figura 7 - Show Jonnata Doll e os Garotos Solventes……………. 76

7
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................. 09
2 ENTENDENDO OS AGRUPAMENTOS MUSICAIS E AS NOÇÕES
DE CENA UNDERGROUND.................................................................... 13
2.1 RESSONÂNCIAS GLOCAIS............................................................ 13
2.2 DO FENÔMENO AOS SABERES, LITERATURA E MÉTODOS DE
PESQUISA........................................................................................ 17
2.3 O UNDERGROUND E SUAS RELAÇÕES (DES)CONSTRUTIVAS
OU AVÔ REBELDE, NETO MARGINAL.......................................... 21
3 OS FESTIVAIS FFCM...................................................................... 31
3.1 PRIMEIRA EDIÇÃO......................................................................... 32
3.2 CASARÃO MARGINAL.................................................................... 35
3.3 SEGUNDA EDIÇÃO: UMA ECONOMIA NO UNDERGROUND......... 38
3.4 RESSONÂNCIAS MARGINAIS: A CRIAÇÃO DO SELO................. 43
3.5 APARECEM NOVOS MARGINAIS COM DIFERENTES
LINGUAGENS.................................................................................. 46
3.6 DOBRAS NO TEMPO PUNK........................................................... 48
3.7 QUINTA EDIÇÃO. A DESPEDIDA DO MARGINAL?........................... 52
4 O FFCM ENTRE TERRITÓRIOS ARTÍSTICOS E SUBJETIVOS... 56
4.1 CENA MUSICAL EM CRISE. MICROPOLÍTICAS DO FLUXO-
FUGA............................................................................................... 56
4.2 ÉTICA MARGINAL: SUBJETIVIDADES NÃO
MODELIZADAS............................................................................... 65
4.3 DIA DE MARGINAL......................................................................... 71
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS PARA NUNCA CONCLUIR............... 77
REFERÊNCIAS............................................................................... 79
6 APÊNDICE....................................................................................... 81

8
1 INTRODUÇÃO
Só uma sociedade exaurida e acriticamente imersa na lógica do trabalho
pode associar um domingo vazio de afazeres com um dia de tédio. Foi num dia como
esse que se iniciaram meus primeiros contatos com o que posteriormente norteou os
escritos que culminaram nesse trabalho. Eu, recém chegado na cidade de Fortaleza e na
sua universidade estadual, buscava, naquela tarde, alguma coisa pra fazer, e ao sair para
uma caminhada nos arredores do bairro Benfica, um bom encontro com um amigo
desaguou no Casarão do Benfica, onde segundo ele “tava tendo um gera!”, era a
primeira edição do Fortaleza Cidade Marginal.
Envolvido, na época, com outros objetos de estudo, aquele evento significou
pouco mais que a descoberta de uma nova festa, mas que pelo seu modo inusitado de
acontecer me fez ficar alerta para as próximas edições. Esse meio tempo foi, também,
um importante espaço para minha a incursão nas produções escutadas naquele domingo,
e a descoberta da existência de um território artístico operante fora dos grandes circuitos
que indústria musical produz.
A ida para as edições posteriores, a progressão dos saberes acadêmicos
adquiridos também no curso de História, mas não só nele, e principalmente o contato
com os escritos sobre a cena musical e as fases do movimento Punk, do professor
Damasceno, possibilitaram conhecer estudos acerca de grupos sociais juvenis
historicamente fora dos estudos historiográficos tradicionais. Já as leituras dos trabalhos
e as conversas com Barbalho tornaram palpáveis a possibilidade de estudo das
dinâmicas socio-históricas envolvidas nas formações de coletivos juvenis e as
produções culturais oriundas deles.
Estava formado um esboço, descaminhos para um entendimento de como se
possibilita o fazer disso que se chama cena underground, e junto a esse entendimento,
as novas perguntas que surgiam acerca dela. Dissolvida nessa monografia está a história
de como simples andares perdidos pela cidade potenciam conhecer intensas
movimentações menores que nela ocorrem.
O presente trabalho tem como intuito explicitar os modos de organização
coletiva desenvolvidos na realização dos festivais Fortaleza Cidade Marginal, bem
como compreender a temática comum a todas as produções artísticas ali compartilhadas.
Evento integrante da cena rock undergound de Fortaleza, os festivais Fortaleza Cidade

9
Marginal tiveram cinco edições, a primeira se deu no ano de 2015 e a quinta última em
2018, delimitando assim o espaço temporal desta pesquisa.
Idealizado e organizado por Jonnata Araújo e André Moura, a partir de
métodos diferentes do circuito artístico mercadológico, o Marginal, em suas cinco
edições reuniu um total de 37 bandas, 22 poetas e 8 performers, indicando assim, a
existência de uma rede de sociabilidades em processo nesse cenário artístico
subterrâneo, o do rock underground. A noção da existência de uma rede cujo elemento
aglutinador é a música, e que sua construção é possibilitada pelos próprios atores sociais
nela presentes, perpassa fortemente os dois capítulos iniciais, unindo assim, um
conceito a uma teoria: Cenas musicais e Teoria Ator-Rede. Aqui separados, com o
intuito didático para o breve entendimento de cada um.
Tomando como Cenas musicais espaços onde pessoas se reúnem e trocam
experiências sensoriais a partir da música, sua produção, reprodução e
compartilhamento, essas sociabilidades, por ela mediada, envolvem outros territórios,
como a elaboração de uma ética, conduta, espaços, eventos e organizações por parte
desses grupos para o compartilhamento de materiais e sensíveis. Vemos o espaço
citadino contemporâneo como lugar em que se multiplicam essas relações, tendo em
vista o espalhar do consumo musical globalizado em todos os grupos do corpo social,
principalmente a partir dos últimos 20 anos do século XX, com ampliação das técnicas
de pirataria, e a democratização do meios de gravação, sobretudo na metade da primeira
década dos anos 2000, onde a produção de materiais locais tomou proporções até então
não observadas.
Já a teoria nos promove uma ampliação dos componentes de uma cena. Essa
noção, ancorada na perspectiva da Teoria Ator-Rede, desenvolvida por Latour (2012),
enxerga as cenas musicais como composições sociais, e logo, coletivas, que não tem
nem um início, nem um fim demarcados, ao contrário, sua existência é constantemente
reafirmada pelos atos e rastros produzidos pelos seus atores, podendo em diferentes
momentos se ampliar ou reduzir o número de participantes. Ou seja, é priorizada uma
observação do vibrátil em detrimento de uma identificação grupal de caráter estável, daí
o que se constrói e se produz se torna mais importante que análises acerca do grupo e
suas hierarquias. Entendo como atores: os fatores humanos e não-humanos que
atravessam esses agrupamentos, seus espaços de atuação, infraestrutura de eventos e a
cidade que rodeia e inspira suas produções. Tornam-se parte integrante direta dessas
construções coletivas tudo aquilo que as afetam.

10
Com o propósito de entender a constituição do Evento e as práticas sócio
históricas de um grupo aglutinado a partir da música, recorri a metodologia da História
oral. Por meio de entrevistas semiestruturadas foi possível coletar dos interlocutores
mais detalhes que vão desde a produção até a relação dos artistas com os organizadores.
Em busca de produzir fontes e responder as problemáticas que surgiram foram
realizadas cinco entrevistas, com os seguintes realizadores: André Moura (2), Juliana
Pessoa (1), Marcus Au Coelho (1), Jorge Matagato e Frank Carvalho (1). Todos
participantes do Festival, seja na organização, se apresentando artisticamente ou como
público, posições estas que nas observações de campo se mostraram bastante flexíveis.
Somei as fontes orais, os flyers1 das cinco edições, alguns registros
fotográficos do Evento e várias apresentações que lá ocorreram. Além disso, trouxe
memórias e anotações de campo, agregando as fontes históricas traços das observações-
participante ocorridas em quatro das cinco edições, estabelecendo assim uma sincronia
histórico-etnográfica onde os modos que os sujeitos históricos desenvolvem seus
processos sociais se relacionam com, mas não são determinados pelos contextos espaço-
temporais que vivem.
Para análise desses diferentes modos de fazer trazidos pelos realizadores do
Marginal, que se exercem no Festival, mas não são limitados a ele, excedendo o
território da cena e se relacionando com a vida cotidiana desses entrevistados, tomo as
perspectivas acerca da diferença desenvolvidas por Gilles Deleuze e Felix Guattari
(2012) e Suely Rolnik e Félix Guattari (1985, 1996), onde os conceitos de
micropolíticas e singularização disparam a discussão de como foi produzido e qual
temática uniu as diferentes propostas artísticas desenvolvidas nos FFCM.
O primeiro capítulo buscou compreender o que são os cenários musicais,
suas difusões iniciais e características em diferentes espaços e tempos. Trazendo o
assunto para a cidade de Fortaleza e sendo o Festival aqui estudado parte integrante de
uma cena, como afirmei acima, na segunda parte do primeiro capítulo me encarreguei
de deixar claro como se deu o envolvimento dos idealizadores e organizadores do
Marginal na cena rock undergound fortalezense, bem como as suas produções anteriores
ao Festival nela, fator fundamental para a formação da rede de sociabilidades operada
posteriormente.

1
Material de divulgação do evento, no qual consta data, local, horário e atrações que estarão presentes.

11
O segundo capítulo relata como se constituiu o Festival Fortaleza Cidade
Marginal, passando pelas sociabilidades envolvidas desde o aluguel do espaço, em que
as festas ocorreram, o convite das bandas, poetas e performers, atravessando as cinco
edições, – onde destaco as apresentações por mim elencadas como mais importantes – a
ampliação da rede e incorporação de novos coletivos que resultou na formação de um
selo homônimo ao evento, chegando até a última edição, ocorrida em 2018.
No terceiro e último capítulo desenvolvo as discussões não mais a partir
diretamente modos de fazer do Festival, busco analisar o porquê deles, como esse modo
de organizar se relaciona com as concepções dos organizadores. Trazendo então a noção
de micropolíticas para afirmar que em sua produção são priorizadas relações e decisões
que promovem a liberdade de escolhas temáticas e curatoriais, e que esses modos outros
de realização são trazidos como uma proposta alternativa para um cenário musical que
era visto em situação de crise, nos idos de 2015. Logo após esse entendimento, trabalho
o conceito de singularização subjetiva, como processo que dá sentido comum às
diversas apresentações artísticas ali expostas, onde sustento, a partir de 5 performances
músicais apresentadas no Festival, que uma marginalidade afirmativa dispara propostas
de fuga aos modos de viver normatizados e modelizados.
Encerro o capítulo com uma colagem de momentos das distintas edições do
Marginal, onde são aglomeradas memórias e passagens dos diários de campo das
minhas idas ao Festival.

12
2 ENTENDENDO OS AGRUPAMENTOS MUSICAIS E AS NOÇÕES DE CENA
UNDERGROUND.
Com o intuito de desenvolver uma pesquisa acerca dos festivais Fortaleza
Cidade Marginal, suas políticas de construção/realização e os processos subjetivos
operados nele a partir de sua temática central, as figuras e éticas marginais do corpo
social, concordo que, por se tratar de um evento integrante da cena artística
underground, é imprescindível uma explanação básica sobre o espaço e o tempo em que
eles aconteceram, mais do que isso, o espaço tempo que eles compuseram, criaram. A
cidade é Fortaleza, cada vez mais extensa não se comporta mais numa conceituação de
cidade enquanto centro, espaço fixo e sedentário, ao contrário disso se mantem
funcionando, em grande parte, pelos corpos que diariamente adentram, atravessam e
depois a abandonam, deixando e levando resquícios de suas trajetórias num movimento
ao mesmo tempo rotineiro e efêmero, é nesse ambiente múltiplo e inconstante que o
evento é produzido e produz. É sobre a pesquisa cultural no ambiente citadino
contemporâneo, com seus grupos e cenários mediados pela música; e fazendo uma
incursão aos modos de produção da Cena Underground a partir do Motel 90, evento de
organização dos mesmos produtores do Cidade Marginal e anterior a ele, que
iniciaremos a caminhada.

2.1 RESSONÂNCIAS GLOCAIS


Organizações juvenis a muito estão presentes nas sociedades ocidentais, porém é
a partir do século XX, principalmente nos anos pós segunda guerra, que essas
“comunidades” crescem em quantidades e variações de motivos. O período pós guerra é
fortemente marcado pela ampliação da noção de juventude e a introdução dela nos
planos mercadológicos a nível mundial (HOBSBAWN, 1995), a criação de uma cultura
de conduta e consumo “juvenil” esparramada nas camadas sociais por filmes como
Rebel Without a Cause de 1955, e a captura e embranquecimento da música Rock pela
indústria fonográfica são exemplos do que foi planejado para a modelação e
incorporação do grupo social juvenil em um nicho econômico.
Concomitante a explosão de uma homogeneizadora cultura de massa
voltada para os jovens, a introdução desses mesmos atores sócio históricos no mercado
de trabalho e a massificação cada vez maior do gênero musical Rock, principalmente
pelo rádio, grupos juvenis disparados por afinidades musicais se formaram em vários
centros europeus e americanos, produzindo a partir de suas experiências uma cultura

13
glocal, pois mesclavam elementos musicais presentes na indústria fonográfica
internacional e hibridizavam com suas questões e condições de produção locais. Em um
misto de não acesso às tecnologias do período e incorporação de ritmos às éticas,
condutas e desejos de um grupo ainda não garantido num sistema de consumo em
desenvolvimento, faziam eles suas próprias musicalidades.
Alguns desses grupos, estranhados e marginalizados pelos grupos sociais
estabelecidos, se formaram, em sua maioria, por jovens oriundos das camadas
populares, que não encontravam espaços ou assimilavam a dinâmica de produção
capitalista do período. Habitantes de um espaço citadino que vivia um processo de
complexificação e forte avanço das práticas capitalistas, ou seja, um processo de
mudança constante e que normatizava modos de vida e conduta, esses jovens criavam
espaços em que além de uma partilha de sensibilidades comuns e à priori estéticas,
ocorriam elaborações coletivas de modos de se vestir, de se portar, de organizar seus
pensamentos, de viver.
Reunindo-se em points, locais em que se predominava a presença dos
componentes do grupo, ou simplesmente festas e bailes que abriam espaços para suas
manifestações culturais, essas “tribos” foram aos poucos se organizando e aumentando
em número. Das sociabilidades praticadas surgiam novas redes, que desembocaram em
novos grupos musicais e uma maior e mais consistente produção de diversos materiais,
como novas músicas, bandas e zines, onde além das músicas e danças, sistematizavam e
deixavam mais claras suas ideias e posicionamentos.
A partir de suas produções e coletividades esses grupos se revelaram um
potente espaço para pesquisas e análises, pois ali se evidenciavam relações sociais,
modelos organizativos e formas de compreensão da realidade diferentes das já
consolidadas pelo establishment do mesmo espaço-tempo que esses jovens viviam, ou
seja, nessas coletividades seus componentes expõem interpretações do que vivem, às
quais sucedem e precedem posicionamentos e atos políticos (KEMP, 1993).
O hemisfério sul não estava alheio à essa realidade, jovens músicos e
artistas já nos anos 1960 e 70 se reuniam em grupos para a troca de conhecimentos
artísticos e produção de arte, em sua maioria voltados para ritmos e modos de expressão
mais comuns e consumidos no brasil2, porém sem muitas similaridades com as práticas
e modelos organizativos das cenas juvenis aqui abordadas. Existindo semelhanças, essas

2
Os Novos Baianos e o movimento Tropicalista são os expoentes mais famosos. Já em Fortaleza tivemos
o “Pessoal do Ceará”, nele se destacaram nomes como Belchior e Ednardo.

14
viam na esfera da crítica a certos padrões culturais, e episódios políticos – como se
notabilizaram os movimentos artísticos contra a ditatura militar3. Já as diferenças vão
desde os ritmos, cujo subgêneros mais agressivos do Rock são os principais
aglutinadores musical da cena artística aqui pesquisada, até os métodos de organização
e sociabilidade dos eventos promovidos por esses grupos, tema sobre o qual pensarei
posteriormente no trabalho.
Já nas estruturas semelhantes as cenas atuais4 esses grupos só iniciaram sua
formação no cenário nacional a partir dos anos 80, com o aumento da chegada de
materiais das bandas estrangeiras, em sua maioria discos e fitas, do exterior, e a inicial
democratização dos métodos de reprodução, como as técnicas de pirataria5 dos álbuns
de bandas nacionais e internacionais, o que facilitou o compartilhamento cada vez maior
de material.
Desse consumo, troca e difusão de sons e das ideias ali contidas, vários
novos grupos surgiram, os Punks de São Paulo6 são um dos mais conhecidos à nível
nacional, mas processos de sociabilidades disparados a partir da música se
desenvolveram e grupos se formaram em diferentes partes do Brasil.
Dentre os diversos estudos desenvolvidos acerca desses grupos, aqui no
Brasil, a pesquisa de Kenia Kemp (1993) intitulada “Grupos de Estilo Jovens: O Rock
Underground e as práticas (contra) culturais dos grupos “punk” e “thrash” em São
Paulo” analisa as práticas culturais desenvolvidas por essas coletividades juvenis
disparadas a partir da afinidade musical. Além disso, nos traz uma conceituação que
consegue abarcar muito bem essas coletividades em seu espaço-tempo. Ela as denomina
como Grupos de Estilo.
Por grupos de estilo, me remeto, portanto, à formação de coletividades –
marcadamente juvenis – que tomam como referência para condição de pertencimento ao
grupo um estilo, que se reúnam com frequência constante ou moderada, que elabore
além de uma proposta estética, um modelo de comportamento. (KEMP, 1993. p. 13)
Nesses agrupamentos, em seus pontos de encontros e seus eventos, se criam
formas de organização coletivas que permitem a viabilização de suas sociabilidades.
Partindo muitas vezes de péssimas situações materiais, esses espaços são construídos a

3
Exprimindo essas contestações através das letras musicais, mas também nas suas condutas.
4
Com uma maior capacidade de produção de materiais próprios, a troca e distribuição deles.
5
Cópia, reprodução e venda de álbuns, sem o conhecimento/autorização dos proprietários legais.
6
Sobre o assunto ver/ler: Botinada: a história do movimento Punk (2006). DAMASCENO, José. Sutil
diferença: o movimento punk e o movimento hip hop em Fortaleza (2011).

15
partir de fazeres coletivos proporcionados entre e pelos aliados de afinidade e
convivência (GORCZEVSKI, 2017), tensionado, assim, práticas e divisões de trabalho
majoritárias, mercadologicamente consolidadas, criando assim cenários underground.
Desenvolvido no contexto temporal dos grupos de estilo citados acima, o
underground – palavra inglesa cujo significado mais adequado é: subterrâneo – remete
muito mais a uma forma ética-organizacional do que realmente um grupo ou estilo
musical. Podendo estar presente em diversos gêneros musicais e formas de arte, não só
na música.
O underground é um herdeiro do “Do it yourself”, que surgiu junto ao
movimento punk dos anos 1970, e pode ser traduzido como “faça você mesmo”, ou
seja, as produções underground são realizadas por meio de grupos que não recorrem a
patrocinadores, apoios institucionais ou quaisquer meios que possam resultar em uma
relação hierarquizada e de controle sobre os interesses dos organizadores (MEDEIROS,
2008). Além disso, o underground também desenvolve métodos diferenciados para a
produção, divulgação e troca de seus conteúdos, se utilizando geralmente do boca à
boca, divulgação em zines7, plataformas virtuais e indo a diversos espaços em que os
eventos da cena ocorrem e lá comercializando seus conteúdos. Apesar de recusarem as
dinâmicas do mercado musical, da cultura de massa, e criarem outras formas de
realização, como as supracitadas, o underground não é um espaço sem transições
monetárias, nele ocorre a venda dos materiais produzidos pelos seus realizadores 8, que
vão de discos e materiais de banda, até comidas, bebidas, flyers e ingressos das “gigs”9.
Por meio desses sujeitos e suas afinidades estético-políticas se
desenvolveram um vasto número de grupos de estilo juvenis, que como observa Kemp
(1993) não se limitam ao ritmo rock, nem mesmo à música, pois adentram também
campos como o esporte. É a profusão dos grupos de estilo musicais que nos leva ao
território que se encontra o objeto da presente pesquisa, as Cenas.
Os grupos de estilo são por vários aspectos importantes para
compreendermos as relações que ocorrem nas cenas underground. Entre esses vários

7
Abreviação de Fanzine. O termo se refere a revistas (Magazine) criadas por fãs de um determinado
assunto (Hq’s, ritmos musicais, poesia). Tendo um caráter não oficial e de baixo custo de produção,
essas revistas tem como característica a liberdade criativa, sendo totalmente escrita, editada e montada
pelo autor/coletivo.
8
O significado de realizadores que desenvolvo ao analisar a cena underground diz respeito a todos as
pessoas envolvidas na cena, sejam cantores, público, organizadores e produtores de evento. Isso se dá
pois é observável nesses espaços uma menor fronteira entre essas funções, revelando assim uma
característica pós-industrial que alguns desses cenários possuem.
9
Nome dado a eventos nos quais se apresentam bandas que compõem a cena.

16
destacam-se: o pioneirismo desses grupos, por inaugurarem diversos novos cenários,
que apesar do semelhante disparador, as identidades e afinidades musicais, expressam
especificidades nos diferentes locais em que são produzidos (DAMASCENO, 2011);
Foram, em consequência de seu pioneirismo, os primeiros grupos analisados nos
estudos acerca das sociabilidades musicais juvenis, e continuam a fomentar espaços de
convivência e práticas de compartilhamento sensório-materiais até hoje.
Porém, com algumas mudanças sócio históricas, em destaque o
aprofundamento da globalização com o advento da massificação da internet, foi
perceptível que essas neotribos, como nomeou Maffesoli (1998), fluidificavam cada vez
mais suas fronteiras. Essas fronteiras fluidas não significavam apenas visitas a outros
grupos, se restringindo ao escutar uma música diferente, mais que isso, a aproximação
dos grupos de estilo culminou em misturas musicais – as décadas de 90 e 2000 são
marcadas pela aumento quantitativo de bandas que mesclam subgêneros do rock, o o
estilo musical nomeado Crossover10 – e possibilitou que os próprios componentes
desses grupos conhecessem outras tribos com semelhantes visões de mundo e modos de
produção, divulgação e circulação de materiais. Essa mistura entre diferentes sub-
gêneros do rock não significou o fim dos grupos de estilo que se baseiam em apenas
um, como os Punks ou os Góticos, ampliou suas possibilidades de mistura e composição
de novos estilos.

2.2 DO FENÔMENO AOS SABERES, LITERATURA E MÉTODOS DE PESQUISA


Ao buscar pesquisas sobre as produções desses grupos na cidade de
Fortaleza, encontramos nos trabalhos de DAMASCENO (2011), MEDEIROS (2008),
LIMA FILHO (2016), que os agrupamentos rockeiros11 apesar de marginais em relação
ao principal ritmo consumido em Fortaleza, o Forró, existem em bom número na
cidade12, e que seus integrantes, em sua maioria jovens, criam espaços e eventos, redes
de sociabilidades, materiais palpáveis e sonoros, ou seja, deixam rastros em suas
atuações, que possibilitam a busca pela compreensão organizativa deles, de suas
perspectivas acerca da sociedade que vivem e compõem, e o entendimento de que

10
São assim denominadas bandas que mesclam dois ou mais segmentos musicais, podendo ser ou não
do mesmo gênero. Escutar: Ratos de Porão, Kohbaia, Diagnose.
11
São assim denominados por serem oriundos do gênero musical Rock, apesar de se organizarem em
subgêneros, como os: Punks, Góticos, Metaleiros (Heavy Metal).
12
A pesquisa intitulada Em tudo que eu faço, eu procuro ser muito Rock and Roll: rock estilo de vida e
rebeldia em Fortaleza (2010). O autor, Lima filho, lista 411 bandas de Rock em Fortaleza entre ativas e
inativas.

17
apesar das hegemonias de consumo cultural existentes, as sociedades atuais são
múltiplas, complexas.
A multiplicidade desse espaço urbano também integra os poderes nele
exercidos. Não limitados à uma figura central, como a do estado, mas atravessados nas
diversas relações constituintes da sociedade, esses poderes exercidos pelo e entre os
iguais em suas composições coletivas delimitam a aceitação de atitudes e condutas, logo
esse grau de aceitabilidade de ações é variante entre os diversos grupos urbanos, apesar
da existência de um código central de leis (CANCLINI, 2000).
Pensando o espaço citadino contemporâneo e as possibilidades de reflexão
dentro e acerca dele, VELHO (1994) se utiliza do termo “sociedades complexas”. Nela
os recortes sócio e antropológicos produzidos na modernidade, como classe, raça e
nacionalidade, ao mesmo tempo que permanecem válidos não são suficientes para uma
análise satisfatória dos fenômenos ocorridos nas metrópoles, pois uma característica
dessa complexidade é a multiplicidade de sujeitos com trajetórias e trilhas sociológicas
e culturais que se cruzam constantemente (VELHO, 1994). Essa heterogeneidade
potencializa fenômenos culturais inéditos e consequentemente a necessidade de novos
conceitos que buscam interpretá-los.
O pesquisador do tempo presente que toma como objeto de análise essas
dinâmicas sociais, se depara com alguns desafios próprios dessas sociedades, esses
desafios se misturam com os novos discursos, ou não tão novos assim, trazidos pelos
sujeitos que experienciam o objeto concomitantemente com o pesquisador, “no calor do
momento”, muitos deles com uma extraordinária novidade que faz ofuscar pontos de
permanência ali presentes. Lidar com brilho do novo e furtividade do passado recente é
de fundamental importância não apenas para evitar um possível anacronismo na análise
das dinâmicas sociológicas e temporais, mas para a própria viabilidade de uma hipótese
condizente com a natureza dessas dinâmicas.
Ao concordar com a perspectiva de sociedades complexas, como foi
supracitado, corroboro com a afirmação que as diferentes trajetórias e referentes
simbólicos coexistentes num mesmo espaço desembocam em modelos distintos de
percepção da realidade. Assim, a análise da realidade em que vivem os sujeitos que
compõem os FFCM, evento integrante do cenário de rock underground de fortaleza, a
partir deles mesmo, demonstra uma polifonia que é claramente atravessada pelas
tradições transmitidas pela família (grupo em que se desenvolveu primariamente); pelas
vivências ocorridas em outros espaços que não o familiar (trabalho, grupo de amigos,

18
experiências traumáticas, etecetera); e pelos constantes atravessamentos comunicativos
diários, inesgotáveis e sufocantes, que chegam à nós pela televisão, rádio e internet,
fluxos característicos de uma sociedade que propaga cada vez mais informações, não
importando sua veracidade ou utilidade.
Percebendo essa polifonia e na busca pela compreensão de como uma rede
de sociabilidades juvenis urbanas propicia a criação de eventos culturais em cenários
musicais que existem fora da tradicional indústria musical e de sua lógica de
investimentos e lucro, recorri a metodologia da história oral. Nela tornasse possível uma
compreensão de processos ocorridos a médio e curto prazo, como é o caso dos festivais
Fortaleza Cidade Marginal que ocorreram de 2015 a 2018, acessando os partícipes e
trabalhando com suas memórias, expostas a partir das narrativas conseguidas por
entrevistas, são abertos campos que se estendem desde a formação dos eventos e
atravessam também linhas subjetivas desses sujeitos, relacionando assim suas atuações
no cenário social com suas produções artísticas (se artistas), e de lazer (se público).
A produção artística também não está alheia a esse processo heterogêneo e
complexo, ao contrário, grita as fusões, resiste e se altera no mar de incertezas do tempo
presente. Os estudos de Becker (2010) sobre as sociabilidades e autonomia dos grupos
artísticos, o levaram a compreensão de que na arte se desenvolvem espaços sociais, ou
seja, produções culturais nunca são de autoria e realização exclusiva de apenas uma
mente, para a sua possibilidade de existência diferentes corpos são envolvidos – seja
pelos métodos contratuais da indústria cultural, seja pelas micropolíticas de criação
desenvolvidas no underground – afetados e afetando o conteúdo criado, exprimindo
durante esses processos criativos seus capitais simbólicos que se misturam com suas
trajetórias e gostos, formando um espiral infinito de relação entre as sociedades
complexas e o que é desenvolvido sobre ela e nela (BECKER, 2010).
Em um movimento de inconstância, assim como o social que as cercam,
observamos as subjetividades em constante mutação e a coexistência de dimensões
estruturais e existenciais nas narrativas desses indivíduos (KOSELLECK, 2014). Logo,
os lugares sociais dos quais esses sujeitos falam não podem ser ignorados pelo
pesquisador, além da necessidade de uma interpretação coesa do tempo estudado e que
ainda está em curso, pois o pesquisador, vivendo nesse mesmo espaço tempo, é
influenciado por opiniões do momento e necessita de uma certa cautela em sua análise,
evitando assim reproduzir conclusões fáceis, ou que julga saber apenas por ser
contemporâneo do objeto estudado.

19
Essas sociedades, complexas, são o lugar, por excelência, das misturas
culturais, dos hibridismos, eles se deixam evidentes nas vestimentas, nos corpos, no
linguajar e nas sociabilidades. A constante mistura de fluxos que alternam entre o local
e o global, o tradicional e o moderno, o mainstream e o underground, longe de serem
opostas, essas aparentes polarizações se comportam com cada vez mais
interdependência e são necessárias umas às outras em um movimento que nunca se
estagna. Seria complicado negar isso ao me debruçar sobre um festival underground de
rock que mescla estéticas oriundas de diversos locais e épocas, sendo produzido por
jovens cearenses.
Sobre a cena Rock de Fortaleza e seu relativo tamanho, cabe acrescentar que
as redes e sociabilidades nela formadas não ocorreram rapidamente. A frequência
constante de eventos e surgimento de novas bandas, é herdeira da cultura Rock iniciada
na década de oitenta, onde o aumento de consumidores e produtores do ritmo e seus
subgêneros, ainda que divididos em grupos de estilo identitários, proporcionou espaços
e lugares para essas práticas (DAMASCENO, 2011).
O foco de análise dessa pesquisa, portanto, abre mão da tipificação de
identidades grupais. Apontando o Festival como parte da Cena Rock por esse ser o
gênero musical mais consumido nele, e pelo fato da maioria de seus realizadores já
participarem dessa cena anteriormente à produção do evento. Será, então, priorizado
entender as dinâmicas que envolvem os atores sócio históricos envolvidos nos processos
formativos e organizacionais nos cenários que se propõem a construir, tendo o foco nos
FFCM, os festivais Fortaleza Cidade Marginal.
Em Fortaleza, espaço na qual essa pesquisa se realiza, são facilmente
encontrados os diversos grupos13 citados acima, mas o objeto aqui estudado está para
além do território identitário. Os Fortaleza Cidade Marginal, foram festivais que
reuniram diversos artistas, públicos e grupos de estilo, sendo isso um dos pontos
facilmente visualizáveis no festival, ao qual me aprofundarei posteriormente. Logo o
conceito mais apropriado para analisar o modo de sociabilidade que as cinco edições do
evento compõem é o de cena musical. Sá, desenvolve um conceito de cena que
consegue abranger os diversos pontos componentes dessas “organizações”, ela afirma
(...)entendemos que a noção de cena refere-se: a) A um ambiente
local ou global; b) Marcado pelo compartilhamento de referências
estético-comportamentais; c) Que supõe o processamento de
referências de um ou mais gêneros musicais, podendo ou não dar

13
Ver os trabalhos de DAMASCENO (2011), BENEVIDES (2006), MEDEIROS (2008).

20
origem a um novo gênero; d) Apontando para as fronteiras móveis,
fluidas e metamórficas dos grupamentos juvenis; e) Que supõem uma
demarcação territorial a partir de circuitos urbanos que deixam rastros
concretos na vida da cidade e de circuitos imateriais da cibercultura,
que também deixam rastros e produzem efeitos de sociabilidade; f)
Marcadas fortemente pela dimensão midiática. (Sá; 2011, pg.157)

Dos seis pontos abordados na conceituação de Sá, os FFCM compõem


todos, sendo um ambiente que reuniu artistas em sua maioria de alcance local (com
algumas exceções), onde a dimensão ético-estética das figuras subjetivas marginalizadas
nortearam o evento; cujo o ritmo rock e suas diversas vertentes predominaram entre os
artistas que formaram o line-up, mas também circularam nele apresentações de artistas
de rap, bem como poesias e performances; ocorridos no Casarão do Benfica, casa que
reúne diversas cenas (que será abordado posteriormente); e que teve como lugar
principal de divulgação a página Fortaleza Cidade Marginal, presente na rede social
Facebook, mas também ocupou outras mídias, como algumas colunas de jornais
impressos da cidade nos dias antecedentes aos eventos14.
Com essa compreensão do conceito, analiso os FFCM como um festival que
integra e reúne a cena underground de Fortaleza, não em sua totalidade, logicamente,
mas um exercício de identificação de cada grupo de estilo presente nas cinco edições,
além de não fazer parte da proposta de análise, seria enfadonho e estéril.
Após compreender um pouco do que foram e são os cenários musicais
juvenis, bem como o ter a noção de que os festivais aqui analisados têm referências
diretas com os grupos de estilo formados a partir de similaridades ético e musicais e as
cenas que eles desenvolveram/volvem, adentraremos no processo de formação das
sociabilidades que posteriormente dispararam os FFCM, a construção dessa rede é
visível e indissociável da trajetória de seus criadores.

2.3 O UNDERGROUND E SUAS RELAÇÕES (DES)CONSTRUTIVAS OU AVÔ


REBELDE, NETO MARGINAL.
Idealizado inicialmente em 2015, por Jonnata Araújo e André Moura, os
FFCM foram criados inicialmente como mais um evento fruto da amizade dos dois
nomes citados acima, que já tinham, construindo, organizando e participando de
eventos, uma considerável trajetória na cena de rock fortalezense.

14
www.diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/caderno-3/cidade-marginal-investe-no-peso-
do-autoral-1.1563889 (Acessado em 23/01/2018).

21
“...como eu conheci o Jonnata, assim, porque é interessante porque ele
também é meu parceiro do Festival Fortaleza Cidade Marginal[...] ...
Aí a gente foi pro Padang, eu fui pro Padang pra ver o Vea Cava e o
Cuspe na Sola[...] De uma hora pra outra eu vejo uma banda Kohbaia,
começo a ouvir, aí eu, “ Porra, a melhor banda que eu acho da noite”,
aí eu “Porra, do caralho”, aquela coisa meio post, pós punk[...] ele
sabia meio que entrar nas duas coisas, não era só rock nacional que ele
sabia fazer [...] Uma coisa que eu sempre falo do Jonnata é que ele
sabia cantar na pegada como um Inglês canta, cantando em português,
isso é muito difícil, é o fetiche do rock dos anos 80. [...] Aí isso me
encantou, né, aí quando ele chegou eu fui conversar com ele, a gente
pivete, eu tinha 17 e ele tinha 16, aí eu falando “Ei, Jonnata, pô cara,
isso é muito massa, num sei quê e tal...” aí ele... porque a gente
começou a falar “Pô, é muito Joy Divison, muito Love Will Tear Us
Apart...” aí segundos depois começa a tocar Love Will Tear Us Apart,
aí ele a imitar o, o, o Ian Curtis tendo um ataque de epilepsia, e mau
me conhecia, aí eu olhei assim: “eu conheci uma pessoa interessante”.
(Entrevista, André Moura Lopes, Fortaleza, 09.02.2018)

Os estudos sobre cenas musicais nos mostram que um ponto fundamental na


formação e continuidade dos cenários musicais citadinos é a criação de uma rede de
sociabilidades, que se forma, entre outros motivos, pelas afinidades semelhantes de
diferentes sujeitos acerca de uma música ou conduta. Aqui fica claro uma potência
presente na música e na arte, de produzir, a partir dela, afetos comuns, como o de
admiração por um determinado estilo/artista, no caso Ian Curtis15 e o estilo post-punk16,
ponto inicial da troca de ideias dos futuros amigos André e Jonnata. Assim, percebemos
que as cenas e as sociabilidades criadas nelas são atravessadas por uma estilística na
qual identidades individuais são construídas e partilhadas, renegadas ou valorizadas
(GUERRA & QUINTELA, 2016).
A cena cearense do início da década de 2000 se faz presente nas memórias
referentes ao encontro dos dois, narrado por André, que ocorre em uma casa famosa no
meio do rock underground da cidade no período, a Padang Padang, que foi localizada
em um dos vários galpões da Rua José Avelino17, próximo ao Centro Cultural Dragão
do Mar. Esse entorno do Dragão é um lugar da cidade caracterizado pela intensa
dinâmica comercial, onde os diversos bares e outras empreitadas abrem e fecham
rapidamente, frente a especulação imobiliária e altos preços de aluguel18.

15
Compositor e vocalista da banda inglesa Joy Division.
16
Vertente do Rock criado e difundido nos anos 80, que mistura referências do Punk Rock com a
desilusão ideológico/material vivida naquele período. Tem como principais expoentes: Joy Division e
Siouxsie and the Banshees.
17
Mais precisamente na Rua José Avelino, 563, Centro.
18
Sobre as dinâmicas desse espaço citado espaço ler: GADELHA, Kaciano. Um barulho na cidade:
culturas juvenis e espaço urbano. UFC. Dissertação, Fortaleza 2007.

22
Mas não foi logo de imediato que se iniciaram as ações criativas de eventos
por parte dos dois, André e Jonnata prosseguiram cada um em suas rotinas, um na área
musical, Jonnata, que na época era cantor do grupo Kohbaia, e o outro na área de
produção áudio visual, André, que estudava e trabalhava produzindo materiais como
clipes e outras produções artísticas.
Apesar de se encontrarem com frequência nos eventos de rock promovidos
em diversas partes da cidade, foi em 2003, com o objetivo de produção do clipe da
banda Kohbaia, que os dois se reuniram novamente. O desdobramento desse encontro
resultou além do clipe da Kohbaia, lançado em 200419, gravado num tradicional bordel
da cidade, o Motel 90. Dali passou a ser desenvolvida uma série de trabalhos com outras
bandas de rock underground fortalezense do período, como a Volúpia, Bonecas da
Barra, Velocípede, K-Waves etc.
Podemos conceber o underground também pelas suas características de
ações grupais (CAMPOY, 2008), ou seja, a entrada de um indivíduo nesse meio não se
dá apenas por um gosto musical, ou a presença em eventos assim caracterizados, mas se
faz pelas suas ações e construções com outros indivíduos. No caso de André foi possível
ver que apesar de uma constante aparição em eventos do gênero, e até mesmo um
encontro e conversa rápida com Jonnata, só a partir do estreitamento do contato com o
cantor da Kohbaia, e a posterior direção do clipe, é que se abriram espaços de
convivência e produção com outros grupos ativos no cenário musical roqueiro de
Fortaleza.
O desenrolar das produções de André com várias bandas, e a consolidação e
familiaridade de Jonnata com a cena do período, pois sua banda já era conhecida no
rock underground de Fortaleza, possibilitou para os dois o início das produções de
alguns eventos, sendo o mais marcante o Motel 90, como nos conta André
Rolava o Motel 90, mas o Motel 90 era uma coisa bem esporádica, era
de 6 em 6 meses e tudo mais, mas era nosso festival, era o nosso
festival... é o avô do Fortaleza Cidade Marginal, porque foi ali que a
gente pegou a pegada de desenvolver, errou, acertou... (Entrevista com
André Moura Lopes, Fortaleza, 09 de fevereiro de 2018)

Destaco aqui essa série de eventos pois eles aparecem nas falas de André
como um ponto de amadurecimento, ali se produziram e partilharam

19
O clipe intitulado Prostituta Adolescente, da banda Kohbaia e produzido por André Moura, foi lançado
em 2004. Tomou proporção nacional ao ser introduzido na grade de exibição da MTV Brasil. Disponível
em https://www.youtube.com/watch?v=Obf1EJEdmoQ. Acessado em 27/05/2019.

23
experiências estéticas que resultaram no aprendizado organizacional para produção
futura do Marginal, bem como estreitou-se a relação de amizade e suas
potências produtivas entre André e Jonnata.
Dessa entrevista, muitas outras questões acerca do Motel 90 surgiram. O
que foi esse evento e por qual motivo ele influenciara tanto o Marginal eram apenas as
primeiras. Após colher mais depoimentos, em uma segunda entrevista, percebi que a
pesquisa carecia de mais informações e análises acerca desse evento propulsor do objeto
central do trabalho.
Funcionando, em termos organizacionais, de forma muito semelhante ao
Marginal, em que bandas autorais da cidade, de diferentes vertentes do Rock, tem um
tempo curto de apresentação, em média 45 minutos, os eventos realizados no Motel
9020 movimentaram a cena de 2004 a 2010, segundo André, a motivação desse evento
vem
[...]dessa crônica, dessa visão de mundo do Jonnata, e ele ter essa
crônica do olhar dele dos freaks, e aí, as vezes o que pejorativo pro
senso comum, é como se fosse tipo um gueto pra ele. É uma coisa
elevada, no sentido que ele exalta, isso. E aí o Jonnata, como ele foi
sempre um grande cronista da cidade, e ele utiliza a música pra
expressar essa forma de crônica, ele compunha sobre os travestis,
sobre os pedófilos, sobre as prostitutas, pro bem ou pro mal, sobre os
marginalizados. E entre os marginalizados, como em todos os meios
humanos, o bem e o mal ele está entrelaçado. (Entrevista com André
Moura, 03/01/2018)

Os eventos produzidos no Motel 90, pelos dois, tiveram o mesmo nome do


local onde ocorriam. Numa matéria exibida na coluna Vida & Arte do Jornal O Povo,
do ano de 2006, que tive contato a partir do trabalho de LIMA FILHO (2010), intitulada
“Da esquina ao cabaré”, Jonnata (Doll) Araújo conta um pouco do funcionamento dos
eventos, afirmando que “paralelo ao show o espaço continua suas atividades
tradicionais”, apesar de que o aumento do movimento que as festas de rock
proporcionam, que gira em torno de 300 pessoas por evento, “não significava um
proporcional aumento das atividades ligadas a prostituição.
Em consonância com a fala de Jonnata na referida matéria, André afirma
que seu amigo já conhecia o Motel e “tinha uma grande vontade de realizar eventos
naquele espaço, mas faltava a ele o “traquejo de produtor, que na época, ele não tinha
nenhum”. Então, as conversas com o dono do local na época, chamado de Jean, e os

20
Bordel situado na Avenida Tristão Gonçalves, 90. No Centro de Fortaleza.

24
métodos de organização e negociações pelo espaço couberam a André, que ao se referir
a amizade dos dois afirma ser “o mais racional, o mais apolíneo” em relação a
organização dos eventos.
Os Motel 90 são muito simbólicos para a afirmar o que gira em torno da
concepção de Rock extrapola a conceituação de um ritmo musical. Ele traz consigo
agenciamentos que são deslocados do território musical para o da vivência. O Rock traz
em toda sua história uma relação de proximidade, mais que isso, de indissociabilidade
entre música e postura, isso é claramente perceptível nos grupos de estilo, que foram
abordados acima. Nesse evento, essa inadequação aos padrões sociais estabelecidos foi
bastante explorada pelos organizadores, pois um ambiente que para o senso comum é
visto como degradante, marginal, para esses roqueiros marginais se fizera um espaço
onde ao mesmo tempo que se faz a cena rock – como pode ser praticada em uma série
de outros espaços – cria uma recusa afirmativa dos códigos sociais, que traz ao evento a
característica de ser frequentado por aqueles que não comungam com as perspectivas
socialmente aceitas, faz pensar o underground como o gueto que ele é (LIMA FILHO,
2010).
Relembrando alguns momentos lá ocorridos, André fala que “ali existia um
clima, você está ali entre uma banda de rock, strippers e filmes pornô. Era meio que
uma libertinagem que ali ficava solta”. Ao mesmo tempo que esse ambiente propiciava
a libertinagem, e o desapego à normas, ao senso comum, o que traduz muito do ideal
contracultural que alguns agrupamentos jovens desenvolvem (ROSZACK, 1981), esse
mesmo espaço, o cabaré, reforça perspectivas tradicionais e machistas, como a
transformação de corpos femininos em mercadoria e exclusividade da liberdade sexual
masculina. Ao questionar André sobre a relação das mulheres atuantes na cena com esse
evento ele responde que “existia uma democracia nesse senso de libertinagem [...] e as
mulheres entraram no puteiro sem esse estigma, cantaram e dançaram rock e saíram de
lá, enfim, com todo o respeito que uma festa de rock tem.” (Entrevista com André
Moura, 03/01/2018)
Os agrupamentos roqueiros, como vemos aqui a partir do caso do Motel 90,
estabelecem regras e comportamentos próprios, que coexistem com as leis estatais e
normas sociais amplamente aceitas e, nos momentos em que esses sujeitos estão
reunidos, são mais importantes de serem seguidos. Sendo aceitável uma festa no local
socialmente renegado e que historicamente tem âmbitos e práticas que subjugam o
corpo feminino, e concomitante a ela são reafirmados os espaços da cena para as

25
mulheres e o “devido respeito” que os homens da cena devem ter para com elas. Ao
entrevistar Juliana Pessoa, artista participante do Motel 90 com a banda Volúpia, que
era vocalista no período, ela afirma que
“antigamente a gente não tinha essas discussões de corpo como
mercadoria [...] nem mesmo sobre as mulheres na cena [...] e aquilo
pra mim era muito uma relação empírica, que eu podia ter com algo
que eu só conhecia na literatura (marginal). Até porque em momento
algum, se não tivesse show, eu iria pro Motel 90. A gente tinha muito
a ideia de ser uma coisa fantasiosa, de conhecer. Hoje não, hoje com
certeza levantaria bastante discussões[...] Era um lugar de violência,
mas por que a gente nunca percebeu isso? Porque não se tinha uma
discussão aberta sobre essas coisas! Que bom que a gente hoje pode tá
vendo as coisas com outros olhos. Talvez até por conta dessas
situações e vivências é que hoje nós temos esse espaço pra tá falando,
entendeu!?” (Entrevista com Juliana Pessoa, 24/01/2019)

O evento, “inspirado nos desajustados” permaneceu fazendo parte da cena


até 2009, tendo cerca de duas edições por ano, e totalizando 10 edições “a gente pegava
o final do ano, e o período de férias” (Entrevista com André Moura, 03/01/2018).
Nesses cinco anos que as edições do evento se dividiram passaram por lá uma série de
bandas locais: Plastique Noir, Dago Red, Velocípede, Veida, K-Wave, Bonecas da
Barra.
A adjetivação de “Avô do Cidade Marginal”, posta por André ilustra os
primeiros passos dele e de Jonnata no underground enquanto uma dupla articuladora.
Denomino-os de primeiros passos porque ali foram desenvolvidos os “traquejos de
produtor” que são extremamente necessários a uma cena que se propõe a usar espaços
comerciais mesmo sendo pouco lucrativa, e a experiencia do clipe possibilitou a
formação de uma sociabilidade vital para a cena: a rede. Táticas e sociabilidades que
serão importantes para os FFCM.
Os escritos de Lima filho (2013) sobre o que ele chama de “agrupamentos
roqueiros”, apontam que o que a priori une diversos sujeitos e um determinado local
para partilhar sensibilidades, a música, não é suficiente para consolidar e manter em
funcionamento uma cena. Além de várias outras coisas envolvidas, como similaridades
de pensamento, vestimenta, conduta e rebeldia, a formação de uma rede de relações
entre os realizadores21 desses eventos é de vital importância. Pois, a partir dela se
articulam bandas, equipamentos, público, locais para as festas, novos organizadores,

21
Ao escrever “realizadores” me refiro a todos os participantes das cenas. Pois nas experiências de
campo nos FFCM e em outros eventos foi observado uma interdependência entre esses corpos na
composição delas. Público, artista e organizador estão sempre presentes e diluídos.

26
noção de qualidade de novas bandas, etc. Sendo, na maioria dos casos muito tênue e
variante a função de cada sujeito nessa rede.
Essa rede, formada a partir dos Motel 90 e das vivências anteriores a ele
será posteriormente importante para a construção dos Cidade Marginal, que além da
“temática central” ter muito em comum com os eventos realizados na Major Facundo,
várias bandas que lá tocaram reaparecem no FFCM. Já os “traquejos” também
reaparecem, mas dessa vez para as negociações com o proprietário do espaço Casarão.
As negociações entre organizadores de festas e proprietários de espaços
onde elas acontecem, que podem soar como uma relação comercial simples de
agendamento de datas e transição monetária, nos eventos da cena underground
fortalezense apresentam uma dinâmica menos mecânica. Muito em virtude da baixa
lucratividade desses eventos, entram em jogo diferentes lógicas, a do comerciante, que
busca um lucro pelo aluguel e consumo em seu espaço, e do organizador cujo principal
objetivo é que ocorra o evento, secundarizando as questões que são mais importantes
para o primeiro. Daí são propostos acordos e condições de pagamento diferentes e que
por muitas das vezes, pelo desagrado de um ou dos dois lados, impossibilitam a
continuidade desses eventos.
Os eventos no Motel 90 foram encerrados, entre outros motivos, por
questões de desentendimento dos organizadores com o proprietário do local. A lógica
comercial, que visa o balanceamento desigual entre pouco investimento e muito lucro,
inviabilizou as festas naquele espaço. Mesmo com os lucros, o proprietário sempre se
queixava de que o trabalho realizado para montar a infraestrutura não compensava,
“isso foi dificultando a realização de novas edições, e eu não sou uma pessoa que gosta
de insistir, eu acho que a gente tem que fazer as coisas porque a gente quer” (Entrevista
com André Moura, 03/01/2018).
Após o encerramento das atividades no Motel 90, André
e Jonnata permaneceram realizando eventos, em outros locais da cidade, mas com
propostas similares.
Mas aí a gente começou a fazer as festas em cantos aleatórios, aí a
gente achou nossa segunda casa, o Mocó. Só fazendo um adendo,
desculpe, o Mocó ele foi na verdade nossa terceira casa, o Motel 90
foi a primeira e a gente, por um período, também teve a Místico, a
Místico.
Aí a terceira casa foi o Mocó, a gente começou a fazer o
Agulha Sounds lá, a gente fez várias festas com essa tutela de
Agulha Sounds, é... e aí comecei a parar, assim, sabe, dei uma parada
mesmo, nessa coisa de evento, tal, não sei porquê. Tava começando

27
também a dar tempo nessa questão, nesse período comecei a dar
tempo nas coisas mais pesadas, e tal, e centrar mais no cinema, enfim,
que era sempre, é... eu sou cineasta, não sou produtor cultural, isso aí
é um hobby. (Entrevista, André Moura Lopes, Fortaleza, 09.02.2018)

Benevides (2008) em sua pesquisa, enfoca sua reflexão acerca dos


nomadismos da cena rock cearense, ele nos mostra um nomadismo que ocorre no
constante movimento das bandas entre underground e holofotes, citando por exemplo,
algumas bandas presentes também nos FFCM, como a Plastique Noir, porém, outro
nomadismo também ocorre, no significado mais clássico do termo, referente aos
espaços que ocorrem as festas. Se enfocarmos as dinâmicas da cena rock nas regiões
centrais22 de Fortaleza, essa dinâmica se intensifica ainda mais, pois nessas regiões a
constante gentrificação23 e busca dos comerciantes por lucros que valham a pena o
alto investimento destinado ao local inviabilizam a ocorrência ou a continuidade de
eventos underground, que em sua maioria levantam pouco ou quase nenhum
lucro24. Essa trajetória resumida, aqui exposta, nos dá uma fiel ilustração dessa
dimensão incerta da cena de rock underground, casas que se fecham rapidamente e cada
vez mais bandas “sem teto”.
A pausa realizada por André, ocorrida em decorrência de sua escolha em se
focar mais na sua profissão, de cineasta, esfriou a sua produção de eventos na cena, a
qual ele considera apenas como um hobby, mas nesse período as produções musicais de
Jonnata tomam uma proporção que nunca haviam chegado antes. Com o fim da
Kohbaia, Jonnata elaborou o projeto chamado Jonnata Doll e os Garotos Solventes,
banda presente em quatro dos cinco FFCM e que será analisada posteriormente.
Com o álbum homônimo lançado de 2014, produzido por Yuri Kalil,
integrante da Banda Cidadão Instigado, e produtor de algumas bandas cearenses que
nomadicamente integram os percursos dos subterrâneos e aos holofotes, Jonnata Doll e

22
Me refiro a região central o espaço dos bairros: Centro, Praia de Iracema e Benfica. Áreas da cidade
com forte assédio comercial, e que reúnem a maioria dos eventos culturais de grande porte. Já que em se
tratando de eventos culturais de pequeno porte as regiões periféricas da cidade desenvolvem muitos.
Basta lembrarmos que bairros com forte tradição roqueira de Fortaleza se localizam em regiões
periféricas. Dentre eles estão: Barra do Ceará, Antônio Bezerra, Maracanaú.
23
Gentrificação é o nome dado ao processo de ocupação de lugares das cidades por estabelecimentos
comerciais cujo padrão de consumo é superior ao da população que ali vive, transita. Esse processo altera
dinâmicas comunitárias e práticas de sociabilidade das áreas envolvidas e a cena Underground vem,
ultimamente, perdendo espaços para esses empreendimentos.
24
Talvez isso possa explicar um movimento que já era desenvolvido e que vem em constante
crescimento na cidade, as tentativas e realizações de eventos de rock em polos de lazer e praças de
diferentes bairros da cidade, seria mais uma vez o DIY, se mostrando a partir dos eventos de rua, uma
potente fuga desses processos de gentrificação?

28
os Garotos Solventes conseguiram espaço nos holofotes, o que resultou na ida da banda
para a cidade de São Paulo, onde, entre mudanças de integrantes e composição de novos
sons e trabalhos residem lá até hoje.
Jonnata, mesmo morando em São Paulo, durante seus períodos de férias, ou
para realizar shows vem a cidade de Fortaleza, e numa dessas vindas é que ocorreram as
movimentações para a idealização e realização dos FFCM, André conta que
[...] porque ele (se referindo a Jonnata) que criou o Fortaleza Cidade
Marginal, ele que deu a palavra, ele que tirou a palavra da música do
Catatau, e criou o conceito, a direção. Eu ajudei a criar o conceito, aí
ele chegou pra mim e falou assim, ele tava em Fortaleza, né, já tava
morando em São Paulo, tava em Fortaleza, ia passar tipo uns três
meses “ Quero fazer um festival e tal”... até o Jonnata chegar e falar
“Vamo fazer essa história”, aí como eu vi que o Casarão foi um
parceiro e tal, existia uma facilidade, o Jonnata já deixou a festa em si,
a primeira festa, já deixou uma marca, já deixou um cartão de visitas,
aí eu olhei assim, vou continuar. (Entrevista, André Moura Lopes,
Fortaleza, 09.02.2018)

Assim, nesse relato, fica evidente uma facilidade, uma familiaridade com a
organização de eventos, quando em uma conversa aparentemente efêmera, resolvem
iniciar a organização de ideias, e o desenvolvimento dos conceitos que pretendem usar
na próxima festa a realizarem juntos, o Festival Fortaleza Cidade Marginal.
Com essa trajetória aqui narrada fica possível compreender um pouco dos
descaminhos que os dois principais realizadores dos FFCM percorreram, entre
encontros e desencontros, até a emergência da criação de um festival que unisse grupos
musicais e artistas de diferentes épocas do cenário underground de Fortaleza. A
evidente característica que os FFCM carregam consigo, de trazer fortes influências de
eventos mais antigos da cena underground de Fortaleza, que podem ser vistas em
aspectos que vão desde os organizacionais (se inspirando muito no ForCaos) e
atravessam também a estética do evento, ressaltam essa bagagem trazida na mochila de
vivências de cada um dos idealizadores, ao mesmo tempo que possibilitam identificar,
nas cinco edições do evento, diálogos desse passado com as novidades de uma cena que
sempre se altera, se dobra, se desterritorializa.
Ao serem apresentadas as noções básicas acerca dos agrupamentos cuja
música se apresenta como principal elemento aglutinador: as sociabilidades disparadas
inicialmente na partilha de sensibilidades sônicas, com o aprofundamento dessas
convivências, ultrapassam o território originário, mesclando para com ele modos de se
vestir, condutas e posicionamentos frente questões sociais. Ou seja, se sobrepõem os

29
territórios da arte e da política. Com o entendimento prático dessas relações, a partir dos
eventos Motel 90, de como se constituiu uma rede de produção artística na cena de
Rock underground fortalezense, temos as ferramentas iniciais para analisar os FFCM
em suas várias edições e múltiplos estilos, todos ligados pelo elemento marginal.

30
3. OS FESTIVAIS FFCM.
As discussões do capítulo primeiro introduziram alguns conceitos que formam
as esferas sócio-temporais aqui trabalhadas. A exposição dessa espacialidade e as
práticas ali desenvolvidas respondeu o que circunda o estudo dos Festivais Fortaleza
Cidade Marginal: O ambiente citadino das sociedades complexas, seus grupos de estilo
agrupados pela música e os espaços que eles constroem: a cena underground de Rock; e
o mais importante, a rede de sociabilidades construída nela, sociabilidades essas, que
são as chaves para a idealização e realização, enfim, criação coletiva dos eventos onde a
arte aglutinadora é a música, mas as dimensões desses agrupamentos alcançam
territórios além dela. Porém, contando apenas a trajetória dos seus organizadores, André
e Jonnata, o capítulo não adentrou o objeto aqui analisado, o FFCM. Posto isso, o
capítulo a seguir tem como objetivo elucubrar como foram realizados e organizados os
Festivais, em suas cinco edições, integrando músicos, poetas, performers e os espaço
em que as edições foram realizadas. Os conceitos utilizados anteriormente estarão
presentes, mas agora diluídos na especificidade do Marginal.
Mas afinal, o que é o Festival Fortaleza Cidade Marginal? Idealizado e
concretizado no ano de 2015, os festivais Fortaleza Cidade Marginal, cuja última edição
se deu no ano de 2018, foram eventos que uniram vários nomes da produção artística
underground da cidade de Fortaleza, e tiveram como principais expressões artísticas
música, poesia e performance.
Ocorridos no Casarão do Benfica, que no período era um espaço de eventos,
e hoje permanece funcionando, mas com o nome de Havana 1984, localizado na
Avenida Carapinima, número 1884. Os festivais, em todas as cinco edições, seguiram
um esquema similar de cronograma, no qual as bandas, sempre com músicas autorais,
tiveram cerca de quarenta minutos de apresentação, e foram seguidas, com exceção das
bandas que encerraram os eventos, por apresentações poéticas, Dj’s, performances e
momentos de palco aberto25.
Durante os eventos, espalhados ao redor do espaço destinado ao público,
geralmente próximos as paredes, postas em cima de pequenas mesas cobertas por
toalhas, ou em varais, eram comercializadas zines de diversos coletivos, comidas, e
materiais de bandas, tanto das que participavam diretamente do evento, quanto de outras
bandas locais e internacionais, populares entre o público que por lá transitou.

25
Nome referente ao momento do evento em que o palco fica disponível para manifestações do público
presente. Geralmente nesses momentos são declamadas poesias e outras formas de intervenção.

31
Dia 13 de setembro, domingo, no Casarão Do Benfica vai rolar o I
Festival Fortaleza Cidade Marginal”, que contará com oito bandas da
cidade: Jonnata Doll e os Garotos Solventes, A.s.s.a.l.t.o Ao Céu,
Plastique Noir, Máquinas, Dago Red, Januei, Intuición, Monquiboy-
boo e Dj’s.
O festival designasse em mesclar novas e velhas bandas na tentativa
de renovar e estimular uma cena musical em crise. O ingresso vai
custar 5 reais para os 100 primeiros, depois fica a 10 reais, e vai das
16Hrs até as 22:00.
Apresentações performáticas das bandas, poesias, Brechó e comidas
do Sergio Fujiwara e da galera do Bike Vegan tb vão rolar.26

Caracterizados pela periodicidade constante e por terem temáticas centrais


que norteiam as festas, os festivais são eventos com uma multiplicidade de bandas
maior que um show comum, o número de grupos musicais, no caso dos FFCM,
variaram entre seis e oito por edição, superior a shows, que em sua maioria tem dois ou
três grupos. A curadoria, feita pelos mesmos dois produtores que idealizaram o
Marginal, nos faz lembrar da importância de suas trajetórias anteriores ao evento aqui
abordado, tendo em vista que em suas cinco edições, o Marginal reuniu um total de 38
bandas, sendo quase todas integrantes da cena rock fortalezense em seus vários
subgêneros, com exceção do Coletivo Maloqueria, grupo de Rap e da Eletrofone, banda
do ritmo Funk27, que se apresentaram juntos na terceira edição.
A primeira edição do Marginal foi realizada no Casarão do Benfica, num
domingo 13 de setembro, o festival veio com um Line-up que fez total jus a publicação
feita na página, afirmando “mesclar novas e velhas bandas na tentativa de renovar e
estimular uma cena musical em crise”. Algumas bandas que se apresentaram nas cinco
edições serão abordadas, bem como a suas trajetórias e aspectos de suas apresentações
nas edições que participaram, elas nos ajudarão a entender a atmosfera dos festivais e as
sociabilidades envolvidas para que fosse possível sua realização.

3.1 PRIMEIRA EDIÇÃO


O flyer da primeira edição, com setas apontando para o nome do evento,
espalhado nos extremos da imagem, não evidencia muita coisa além das bandas que irão
participar, mas uma vivência mais longa nos agrupamentos roqueiros fortalezenses, ou

26
Chamada virtual para o I FFCM.
https://www.facebook.com/events/1674680012763709/permalink/1674786402753070/. Acessado em
26/10/2018.
27
Ritmo de origem Afro americana, difundido inicialmente nos anos 60, nas comunidades negras de
Detroit (Michigan) e Memphis (Tennessee), cujo maior expoente é James Brown.

32
ao pesquisá-los, se torna mais simples perceber a multiplicidade de subgêneros do rock
apresentados no Festival. O evento coloca, lado a lado, bandas de públicos e períodos
diferentes, mas que em muitos momentos encontram similaridades. Essa multiplicidade,
aqui ressaltada não diz respeito apenas à diversidade de bandas e estilos, ou seja, não é
uma multiplicidade que se opõe a uma unidade estilísticas, ou que se caracteriza por
diferentes identidades sonoras, mas que espalha pelo evento diferentes intensidades que
variam em fluxos não só rítmicos, se fazendo visíveis nas reações dos que ali partilham
essas sensibilidades sonoras.

Flyer do primeiro Fortaleza Cidade Marginal. (LINK DE ACESSO)

Uma banda da primeira edição que destaco é a Plastique Noir. Formada em


2005 com Ayrton S., Márcio Mazela, Daniel Noir e Max Bernardo, esse grupo, que
transita no estilo pós-punk gótico, é uma das maiores bandas brasileiras do subgênero,

33
tendo notoriedade até mesmo fora do país. Durante sua trajetória lançaram três álbuns28
e dois EP’s29, sendo o último álbum, 24 Hours Awake, de 2015. Eles se apresentaram
no Marginal com uma diferente formação, em relação à original, composta por Ayrton
S., nos vocais, Deyverson Teixeira, no contrabaixo, e Daniel Noir, na guitarra.
O tom noir deixado pela banda no evento, com músicas como Imaginary
Walls e Welcome to the Freak Show, logo foi alterado com o fim do show, entraram em
cena os poetas, e o festival mostrou ali o constante trânsito que nele ocorre, como
afirma André
Porque já de antemão ele tem essa ideia, que é a ideia do não parar.
Geralmente quando você tá em algum evento, uma festa, sempre tem
aquele corte brusco, e que com o digital foi preenchido pelo DJ [...]
Eu falei: “Jonnata, vamo colocar os poetas, pra dá uma marca, assim,
a gente dá uma, uma... como é marginal, e existem muitos poetas
marginais, a gente pode dar, ceder esse espaço e criar uma amplitude
no festival, de sair da música...” [...] E o Jonnata topou, assim, [...] aí
quando eu fui ver... bicho, pode ser além de poeta, pode colocar um
teatro, um teatro como performer que pode combinar mais ali do que
botar [...] talvez um performer, uma dança... (Entrevista, André
Moura Lopes, Fortaleza, 09.02.2018)

Entre as declamações de Ayrton Uchôa, Maria Eli, e outros poetas


marginais, o evento não dava espaço para pausas e momentos de calmaria. Alguns
desses poetas, acompanhados por bandas, como a leitura de Ayrton de um trecho do
romance de sua autoria, Crônicas de uma Província em Chama30, que junto aos Garotos
Solventes, fazendo uma trilha sonora ao vivo precederam os instantes iniciais do show
de Jonnata Doll e o punk rock trazido por ele e os GS, momento em que o festival
atingira grande euforia, com rodas de dança, lotação do espaço e invasão de palco.
As artes exibidas na primeira edição, não se alternaram apenas entre bandas
e poetas. Os dj’s também tiveram seus momentos, auxiliando principalmente nas
transições entre bandas, devido as variações rítmicas que ocorriam. Não tão fixos
quanto nas outras edições, onde os dj’s compunham o flyer e o cronograma do evento,
nessa primeira experiência Marginal, as discotecagens31 tiveram um espaço menor, e
ficaram por conta de Jonnata, e alguns integrantes do público, que por serem mais
próximos dos organizadores subiam ao palco e reproduziam músicas de suas escolhas.

28
Dead Pop (2008), Affects (2011) e 24 Hours Awake (2015).
29
Urban Requiens (2006), Those Who Walk By The Night (2008).
30
Livro Lançado em 2012 pela Editora La Barca, de Fortaleza.
31
Expressão referente ao ato de reproduzir uma lista de músicas pré-escolhidas.

34
Outra prática ocorrida na primeira edição era a realização de uma trilha
sonora ao vivo, feita pela banda que iria dar sequência ao poeta, como no caso de
Ayrton Uchôa, que declamou ao som dos Garotos solvente, Elisabeth Magalhães
apresentou suas poesias acompanhada pela banda de Assalto ao Céu, onde Paulo Raziel,
guitarrista e vocalista da banda, junto a Alan Soares e Jean Morais, baixista e baterista,
respectivamente, colocaram em transa essas duas artes tão próximas, mas com recepção
e consumo tão diferentes na sociedade.

3.2 CASARÃO MARGINAL


Poucos meses após a primeira edição, quatro, para ser mais preciso, o segundo
FFCM, foi realizado, o lugar, mais uma vez o Casarão do Benfica. Mas por que o
Casarão?
[...]vi a facilidade do Casarão, como parceiro, enfim, e a facilidade, do
Sinval no som, peguei uma química com eles que é tipo uma questão
do “não prejuízo”, isso é muito importante, no sentido da confiança,
qual é? É que “porra, essa festa não deu quase nada”, ninguém, só
consegui os 200 reais do som, pô foi mal véi. “Aí, pô, essa festa foi do
caralho, tá aqui ó, 800” [...] a média é 400, 500, mas já deu até 300
reais a mais [...] O bar, o Casarão é o dono do bar, e Sinval é do som,
eu tenho que lidar com esses dois elementos. Que é a casa e o som.
(Entrevista, André Moura Lopes, Fortaleza, 09.02.2018)

Com uma localização central, e um acesso relativamente fácil, pois se


localiza próximo a duas avenidas de grande circulação da cidade32, o espaço onde
ocorreram os eventos marginais, localizado no bairro do Benfica, como o próprio nome
indica, apresentou, a partir de seu proprietário, uma flexibilidade em relação aos
incertos lucros e prejuízos que o Festival e as demais festas desenvolvidas pelo selo
Fortaleza Cidade Marginal, que foi desenvolvido posteriormente à primeira edição do
festival homônimo, poderiam gerar.
Na fala exposta acima, se expressa um jogo de interesses aparentemente
antagônicos, o desejo de realização dos eventos, sempre com baixos custos e incertezas
acerca do público, e a “necessidade” de rentabilidade, exposta por Tiago Braga
(conhecido também como Tiago Casarão) responsável pelas negociações e aluguéis do
espaço. Na busca de contornar possíveis negativas ou desentendimentos, André conta

32
Avenida 13 de maio, que corta a avenida onde se localiza o espaço Casarão. E avenida da
Universidade, principal via de acesso para o centro de Fortaleza, essa sendo paralela a Carapinima, com
distancia de dois quarteirões.

35
que a estratégia desenvolvida, e possivelmente a única capaz de suprir minimamente as
exigências de cada lado, é uma “garantia de não prejuízo”.
“ó, Thiago, não vou pagar esse, vou deixar pro outro, por que tal...” ou
então ele mesmo deixa, porque já há essa parceria, há esse
movimento, assim, eu digo isso não porque ele tenha que fazer isso
pra todas as pessoas, porquê, você tem que ter uma sequência, porque
ele também precisa sobreviver, né!? Assim, quando eu falo pra galera
que ele facilita, é nesse sentido...
(Entrevista, André Moura Lopes, Fortaleza, 09.02.2018)

A flexibilidade nas negociações pelo espaço não se dá por uma identificação


do local com os eventos rock, ou apenas por um envolvimento de seus proprietários na
cena, ela é fruto de um histórico de eventos da cena lá realizados, junto a compreensão
do proprietário de que uma linha dura em relação aos pagamentos inviabilizaria alguns
desses eventos. Ao contrário do que acontece desde o começo de 2019, quando o
Casarão passou a ser chamado Havana 1984 e realizar apenas eventos ligado ao Rock e
seus subgêneros, a casa de eventos que sediou os FFCM era também espaço de outros
grupos sociais. Lá ocorriam com frequência bailes de Reggae, conhecidos como Terça
do Reggae, e Sexta Roots e festas voltadas aos públicos LGBT, onde o enfoque artístico
orbitava sob a música pop e suas divas33.

Fachada do Casarão do Benfica, numa tarde de Fortaleza Cidade Marginal. (autor desconhecido)

33
Adjetivo dado às artistas que fizeram grande sucesso na música pop norte americana. Madonna, Cher,
Beyoncé, Lady Gaga e Barbra Streisand são exemplos de artistas que receberam a alcunha de “Diva”.
Foram mapeadas algumas festas: Vale dos Homossexuais e Neon Party. Apesar das festas “LGBT” serem
frequentes, os nomes dos eventos não permaneciam periodicamente, como ocorria nos eventos de Rock e
Reggae.

36
O que pode parecer estranho para aqueles que imaginam a cena de rock
underground com casas de show totalmente ligadas ao ritmo e “estilo de vida” roqueiro,
a casa aqui observada, em seu funcionamento alheio às identidades rítmicas,afirma a
pragmática do espaço, ou seja, o lugar pronto e dado tem sentido apenas físico,
enquanto que o espaço é feito pelos corpos que ali transitam, o codificam e realizam
suas atividades. Seja no Marginal, nas Terças do Reggae ou nas várias festas LGBT, o
Casarão alterna suas diferentes temáticas ao momento que as perspectivas e usos feitos
naquele lugar se diferenciam, mesmo que separadas por um efêmero dia da semana.
Existem, neste lugar, tantos espaços quanto existências espaciais distintas. (DE
CERTEAU, 2009)
Aplicado para a realização de diversos eventos no Casarão, o dinheiro
“separado” para o seu aluguel, possibilita a continuidade das festas. A quantidade de
público, que nos eventos da cena underground está em constante variação torna difícil
uma previsão financeira, mas André deixa claro que no caso específico do Marginal os
números, a “grande”34presença de público, que quase lotou o espaço em todas as
edições, sanaram mais que minimamente os custos básicos.
Outro importante ponto acerca do Casarão é a série de mudanças que ele
atravessou no decorrer dos eventos Cidade Marginal. Ainda que superficialmente
citadas nos diários de campo e nas análises de cada edição do evento, essas mudanças
merecem alguma atenção. Mais bem visualizadas a partir da terceira edição, as
mudanças estruturais ocorridas no Casarão foram influentes para o objeto central dessa
pesquisa, pois o lugar onde se desenvolvem manifestações culturais é também um ator
integrante dessas manifestações, suas características estético-espaciais afetam os atores
humanos que compõem aquele momento e as interações imanentes a ele. O “ao redor”,
o local transfigurado em espaço integra o agrupamento musical nele desenvolvido desde
a assimilação ou reprovação dos atores sócio históricos presentes, até a memória dos
que viveram momentos nele, e percebem nas suas mudanças estruturais, o constante
movimento das produções sociais underground. (LATOUR, 2012)
As reformas iniciais se deram no piso do lugar. Inicialmente o piso de terra
batida, com alguns pequenos espaços cobertos por um cimento que apresentava mais
rachaduras e falhas do que um pavimento bem firmado, as duas primeiras edições do
Marginal tinham ainda um palco descentralizado, com uma localização entre a direita e

34
Segundo André, a média de público dos FFCM gira em torno de 300 pessoas.

37
o centro, em relação ao espaço ocupado pelo público. Era ausente também qualquer
escada lateral que facilitasse o acesso a ele, cuja altura tinha cerca de 70 centímetros em
relação ao restante do piso da casa. Uma mesa de sinuca que ficava posicionada em
frente ao bar, no fundo da pista de dança, lado oposto ao palco, também marcava o
espaço, aglomerando alguns virtuosos praticantes do jogo, outros nem tanto.
A partir da terceira edição do evento, que teve um hiato de 6 meses da
segunda, o chão, já completamente preenchido por concreto, e sem falhas, evidenciava,
junto as paredes que agora tinham uma camada de tinta branca, diferente do simples
chapisco áspero e de cor cinza que apresentava anteriormente, que houveram algumas
reformas no espaço. A mudança ocorrida na estrutura e coloração das paredes
possibilitou a pintura feita pelo artista Tom, na terceira edição, e que será melhor
detalhada posteriormente.
André me conta que as mudanças no local não têm ligação direta ou
consulta com os organizadores do evento
Não, são coisa deles, dos proprietários. Tem umas coisas que eu acho
massa, que eles fizeram, outras coisas que eu não curto, achei meio
brega e tal, até falo pra eles, mas assim, tudo é questão deles. É, o
Casarão, é porque ele tem uma coisa meio que ele não consegue ter
uma definição, né!? A gente tem a nossas festas, mas assim, eles têm
outras...
(Entrevista, André Moura Lopes, Fortaleza, 09.02.2018)

Por último, e de maior importância no que diz respeito ao evento, o palco


foi totalmente repaginado, seu espaço útil aumentou consideravelmente tomando quase
todo o fundo a ele destinado, uma escada lateral foi posta e a profundidade do palco
também foi alterada, aumentando a capacidade de equipamentos sobre ele, e também de
pessoas, que frequentemente o invadiam em momentos de êxtase dos shows.

3.3 SEGUNDA EDIÇÃO: UMA ECONOMIA NO UNDERGROUND


O Marginal, veio em sua segunda edição com diversas bandas e poetas, mas
a marca deixada pela primeira tornou o festival mais esperado e visado. Com o ingresso
custando cinco reais, para os cem primeiros a chegar, e dez reais a partir do centésimo
primeiro, a festa reuniu, o que na época eram as duas maiores bandas da cena, com
visibilidade para além do estado, Verônica Decide Morrer e Jonnata Doll e os Garotos
Solventes, somando ainda ao seu line-up a banda Fóssil, de Victor Colares, que no final
do anos 90 e início dos 2000 figurou no mainstream, participando até mesmo de
programas de televisão em rede nacional.

38
Flyer da segunda edição.

Se cruzando sempre com bandas de menor expressão e ainda em seu início,


como Black Knight Frequency, que traz um ritmo ligado ao Dark Wave e Synth Pop, e
os veteranos do Kazane Blues, banda dos anos 90 com uma longa trajetória, mas que
não tem muito alcance fora da cena fortalezense. Embaralhando mais uma vez públicos,
ritmos e sensações que ignoram uma semântica normativa, restrita a semelhanças, vista
por exemplo, em grandes festivais da indústria musical, o Marginal criava dobras de
sentido.
Outra estreante era a banda Ouse, mas ao contrário das demais estreantes
esta tinha um longo envolvimento com os organizadores do evento. Formadas por
alguns dos antigos integrantes da Volúpia35: a vocalista Juliana “July” Pessoa, a baixista
Suyane “Su” Pessoa, o guitarrista Ícaro Manfrinni, e o baterista Rony. A banda cuja
apenas a baixista não participou dos eventos no Motel 90, demonstrou constância nas
parcerias com André e Jonnata, com quem mantém uma amizade proporcionada pelas
afinidades musicais desde os anos 2000.

35
Banda presente e ativa na cena dos anos 2000.

39
Outra banda que destaco nessa segunda edição, é a Verónica Decide Morrer.
“Vindos da efervescente Fortaleza (CE), a banda Verónica Decide Morrer é um achado.
Um suspiro de criatividade na pasmaceira do rock nacional”36, que por meio do seu som
híbrido de Punk e New Wave traz as vivências dela e de seus músicos que vagam por
guetos e não-guetos.
A formação que atuou no festival trazia Verónica Vallentino e Jonaz
Sampaio, nos vocais; Marcelo Denis Dead, na bateria; Léo BreedLove, na guitarra; e
Marcus Au Coelho, no contrabaixo. Cantaram músicas como Testemunha de Trava e
Aqui Jazz Você, que junto da performance sinuosa dos corpos de Jonaz e Verónica
puseram em transe o público presente, o que resultou em moshs37, e participação do
público que em vários momentos cantavam no microfone e dançavam com a cantora.
Dessa segunda edição se destaca também a importância que o Festival vai
ganhando no decorrer de sua trajetória, figurando até mesmo na grande imprensa. A
partir da tomada de novos territórios, como o da grande mídia38, podem ser
desenvolvidas questões acerca de como um festival, que se alega Underground, agrega
em seu line-up bandas com certo renome, e como essas bandas, que junto a uma
crescente de reconhecimento poderiam cobrar valores para tocar. Mas ao contrário de
questionar por que organizações underground aceitam e viabilizam o transitar dos
artistas que a compõem o incerto caminho entre os holofotes e esses espaços marginais,
questionei a alguns artistas participantes do Evento: como se deu o convite e as
negociações monetárias na organização do Marginal, como funcionam questões
econômicas no Festival, se elas realmente existirem?
Ao perguntar a André, sobre como é estabelecida a relação de convite da
banda para participar do evento, e sobre a existência de algum pagamento feito a elas,
ele afirmou
Até esqueci de falar, porque, você paga o som, você paga a casa, você
paga o segurança, aí depois disso ela (a grana) é dividida pra produção
e as bandas, aí vai depender, assim, geralmente eu pago as bandas.
Geralmente eu tento fazer o seguinte, eu pego o valor que sobra, aí são
seis banda, eu divido em sete [...] o sétimo, no caso, sou eu, então, aí
vou dividindo, aí também dou quarenta, cinquenta reais pra minha

36
Descrição da Banda “Verônica Decide Morrer” na rede social Bandcamp.
https://veronicadecidemorrer.bandcamp.com/ Acessado em 09/07/2019.
37
Termo referente ao ato de pular do palco em direção ao público e ficar alguns momentos flutuando
sobre os braços dos presentes.

40
mãe, que fica na bilheteria, mas geralmente, por exemplo, as festas
que dão grana são o Synth Punk e o Marginal[...] o que é a grana?
Média de cinquenta a cento e cinquenta reais pras bandas.
(Entrevista, André Moura Lopes, Fortaleza, 09.02.2018)

Logo, o que fica explícito na fala de André é que, a organização dos FFCM,
ao mesmo tempo que não nega o uso do dinheiro, como alguns eventos underground,
depende de acordos de não prejuízo, no caso dos donos de estabelecimentos, e constrói
com seus músicos, poetas e performers políticas que possibilitam a ocorrência do evento
mesmo sem uma garantia de cachê ou ajuda de custo para esses grupos.
Os FFCM se mostram, então, como uma das poucas festas da cena
underground que geram algum dinheiro para bandas e organizadores, mas ainda assim
em baixíssimas quantidades se entrarmos nas lógicas de lucro ou rentabilidade sobre as
produções culturais. Ao questionar Jorge Matagato, vocalista do grupo Diagnose e
Marcus Au Coelho, baixista da Casa de Velho, que participaram do FFCM em sua
quinta edição, sobre as condições financeiras de tocar no Marginal e em outros eventos
da cena, eles respondem
tudo muito corrido, com muito sacrifício, mas acaba dando tudo muito
certo. Se a gente fosse viver disso, de barulho, Grindcore, Crust, Punk
e Hardcore, seja lá o que for visando grana, a gente tava tudo fudido.
[...]a gente sempre tocou sem ter essa visão de visualizar grana, nos
eventos que a galera faz, os undergrounds, que a moçada ainda
descola alguma grana, os caras tem uma preocupação muito bacana de
querer nos ajudar, como foi o que aconteceu com o André, ele fez o
evento, foi muito bacana, o evento deu uma galera legal e ele acabou
dando uma grana pra cada banda, a gente falou “não, velho, não
precisa”, mas ele disse “Não, faço questão!”. Pra gente foi bacana ter
pegue essa grana e ter feito investimento em tela, camisa, gravação de
demo. (Entrevista com integrantes da banda “Diagnose”. Jorge
Matagato e Frank. 10/03/2018.)

[...] eu acho que tem é que rolar mesmo, mesmo não rolando aqueles
cachês, geralmente não rola, rola mais ajuda de custo [...] a gente já
sabe todos os esquemas como é que é, meio precário e a galera da
organização tem que também tirar o deles, da produção, acho justo. É
assim mesmo, e isso faz ter mais eventos em mais lugares.
(Entrevista com Marcos Au Coelho. 07/02/2018)

A fala de Matagato, Marcos Au39 e os acordos de não prejuízo entre André e


o proprietário do Casarão do Benfica, e as recorrentes discussões entre Jean, dono do

39
Produtor musical e baixista. Participou dos FFCM em três edições, tocando com: Jonnata Doll e os
Garotos Solvente (Primeira Edição) e Casa de velho (Quinta edição).

41
Motel 90, e André para a viabilização do evento no antigo espaço, deixam evidente a
existência de uma economia dentro do cenário underground.
Essa economia, que perpassa todos os envolvidos no Festival é fundamental
para que ele ocorra. Porém, a relação que cada agente desenvolve nessa economia se dá
de forma distinta. Para alguns personagens envolvidos, como o proprietário do espaço,
as artes ali veiculadas são secundárias, sendo o aluguel do espaço o assunto primário de
seu interesse. Já para outros, como artistas e organizadores, os números se mostram
menos determinantes, pois a prioridade é que aconteça o evento, aceitando apenas uma
ajuda de custo que cubra o transporte dos instrumentos até o espaço da festa.
O público, a partir da compra de ingressos, que variam entre cinco e dez
reais em todas as edições do evento, é a principal fonte do fluxo monetário aqui
apresentado (entre organizadores e proprietários do espaço), o comércio de comidas e
bebidas também aparece como outra fonte de renda, mas essa não será aqui analisada,
pois no FFCM o bar era de propriedade do espaço, e as comidas eram vendidas de
forma autônoma pelos agentes divulgados nos flyers: Sergio Fujiwara, Bike Vegan,
Pãoesia, etc.

E, outra questão, que além da gente tocar no evento do André, dele ter
convidado, antes, nos eventos anteriores, a gente já foi como público,
a gente sempre teve lá, acho que desde o primeiro Fortaleza Cidade
Marginal, a gente sempre frequentou e viu assim essa diversidade,
exatamente, que é o que mais encanta, nessa ideia do André [...] de
chamar bandas que são do underground da cidade, que tá na correria,
assim como a gente, penando pra poder fazer material pra mandar sua
ideia, se expressar através da arte, enfim, de uma forma bem sincera e
é massa assim, essa diversidade, a gente poder tá tanto como público,
né. (Entrevista com integrantes da banda “Diagnose”. Jorge
Matagato e Frank. 10/03/2018.)

[...]o Jonnata ficava convidando a gente pra participar do Fortaleza


Cidade Marginal, e eu fala “Jonnata, não a gente não tá pronto”... Aí
acabou que de tanto convite, de tanto o Jonnata falar, eu falei “gente,
vamo, essa banda nunca vai tá pronta pra se apresentar, vamo
nessa”[...]Pra mim foi muito importante tocar lá, pela pessoa que é o
André, pela representação que ele tem, no cenário tanto musical como
artístico, audiovisual, pelo Jonnata também, acho que assim, não
poderia ter sido melhor nosso retorno. (Entrevista com Juliana
“July” Pessoa, Vocalista da Banda OUSE, dia 24/01/2019)

Já entre as bandas e produtores, observamos que predomina, muito por


causa da rede construída, uma parceria, onde outros episódios vivenciados na cena são
os legitimadores da aceitação do convite, e o montante destinado a banda, além de

42
incerto – dependente da quantidade de pessoas presentes no evento – é percebido menos
como uma obrigação dos organizadores do que uma gratidão a participação no evento,
sendo lembrado pelos artistas participantes como um comportamento positivo, mas
atípico do Marginal em relação a outros eventos do underground. São flexibilizadas,
então, associações que no tempo presente são em grande parte naturalizadas, a
economia capitalista, que tem a modelização total das relações sociais como parte
basilar de seu projeto, essa é aqui posta de lado, e são desenvolvidas táticas de uma
“economia underground” livre, ainda que momentaneamente, do clássico tripé
investimento, renda e lucro (CAMPOY, 2011).
Apesar da afirmativa de André que o Marginal sempre quita os custos e
chega até “dar grana” que segundo ele é R$150, após divisão entre as bandas, essa não
avidez ao lucro, é parte, sem dúvidas, das políticas produzidas que possibilitam, antes
de tudo, a ocorrência dos FFCM. O que parece aqui estabelecido é a ressonância de uma
longa trajetória na cena, que já fez desenvolver nos indivíduos participantes dela uma
mentalidade que prioriza a realização dos eventos, mesmo que para isso a banda tenha
que não receber nada, ou até mesmo gastar dinheiro para tocar. Seria essa alguma das
heranças deixadas pelo DIY e os movimentos contraculturais do século XX? Acredito
que sim, e isso fica mais transparente no momento que o “fazer” é priorizado em relação
aos custos do fazer, e que bandas que estão no circuito, ou seja, gerando renda a partir
de sua arte, aceitam participar do Marginal, evento pouco monetizado.

3.4 RESSONÂNCIAS MARGINAIS: A CRIAÇÃO DO SELO.


O primeiro FFCM demonstrou ao público lá presente as potências afetivas
da arte, afetando os que ali estavam, transitando sempre nas bordas dos ritmos e, sem
dúvida, ocupando como uma memória perturbante, a mente dos undergrounds40.
Após o sucesso da primeira edição, “bem maior do que a gente esperava”,
nas palavras de André, ocorre um ponto de virada. Apesar de não alterarem o Marginal
propriamente dito, que continuou ocorrendo de formas semelhantes, houve uma
ampliação da rede de organização dos Fortaleza Cidade Marginal. André nos conta que
O Jonnata já deixou a festa em si, a primeira festa já deixou uma
marca, já deixou um cartão de visitas, aí eu olhei assim, “vou
continuar a fazer, tipo através de um selo, as diversas festas e tudo
mais”. (Entrevista, André Moura Lopes, Fortaleza, 09.02.2018)

40
Me refiro ao público presente no geral, não a um grupo de estilo específico, pois os FFCM, em todas
suas edições reuniram Punks, Góticos e outros grupos citadinos. Isso se deve muito à variedade rítmica
das bandas presentes nas edições do festival.

43
Com sucesso do primeiro evento, André, junto a Jonnata e suas idas e
vindas de São Paulo, agregaram mais pessoas de Fortaleza para compor o que agora eles
denominavam um selo, que teria como objetivo produzir uma maior quantidade de
eventos na cena underground.
A partir do selo homônimo, surgiram outras festas, algumas criadas por
André, outras que apenas se inspiram no modelo organizativo do Festival, mas com
menos bandas. Essas festas fizeram parte da cena rock de fortaleza até o ano de 2018,
como a Synth Punk Party41, Garantia de Alegria42, Chicago Lisérgica43, Entre Ruídos e
Distorções44.
Um dos motivos de formação desse selo vem de um momento crítico do
qual o corpo organizativo do festival passou, inicialmente composto apenas por Jonnata
e André. Com a ida de Jonnata para São Paulo e o aumento de seus trabalhos lá, ele foi
aos poucos estabelecendo novas relações e produções artísticas. Essas atividades,
juntamente à produção do seu segundo Álbum, de nome Crocodilo45, aumentaram sua
estadia em São Paulo, que se mantém até hoje.
Com o intuito de continuar a produção de eventos, novos integrantes se
juntaram a organização. O selo criado após a segunda edição do evento, teve a página
virtual iniciada em março de 2016, poucas semanas após a segunda edição. Outros
motivos de sua criação, como nos conta André foi uma mudança de foco em sua
profissão, e o desejo de continuar fazendo festas
Tava começando também a dar tempo nessa questão e centrar mais no
cinema, enfim, que era sempre é... eu sou cineasta, não sou produtor
cultural, isso aí é um hobby, até uma coisa que me questiono é até
quando devo fazer isso, mas enfim... é uma coisa que eu prezo, assim,
pelo Marginal assim [...] eu estou chamando uma parceira, a Joyce
que é do coletivo Girls do the Front, pra também me ajudar, porque o
Jonnata também mora só, enfim, então assim pra ela me ajudar e dar
sequência e tudo, até quando eu não puder, enfim, dá sequência a
marca, ao conceito. Mas aí sim, aí, veio, acabou isso, veio, e como eu

41
Festa cuja temática enfoca bandas que se utilizam de teclados sintetizadores e efeitos sonoros
eletrônicos. Nesse evento predomina bandas do estilo Dark Wave, variação rítmica do pós punk, com
características mais sombrias e lúgubres.
42
Festa com enfoque em bandas de Punk rock, e Protopunk, subgêneros do Rock, marcados por suas
acelerações rítmicas.
43
Festa cujas bandas são em sua maioria do ritmo Blues e suas variações contemporâneas.
44
Evento que conta com bandas que se utilizam de aparelhagens eletrônicas para produzir um estilo
“sujo”, com forte presença de ruídos e barulhos misturados à música.
45
O álbum Crocodilo, de Jonnata Doll e os Garotos Solvente, foi gravado em sua maioria em Fortaleza,
estúdio Magnólia e em São Paulo, assim como seus processos de mixagem e masterização, também
divididos entre as duas cidades, dessa vez no Totem Estúdio (Yuri Kalil) e em São Paulo no Estúdio El
Rocha (Fernando Sanches).

44
te falei, né!? O Jonnata chegou, num belo dia, falando “Vamos fazer”
aí depois, dois três meses depois ele chegou, “Tô voltando, vamo fazer
outra festa”, aí a gente... “Garantia de Alegria”, aí de repente eu olhei
assim, aí, “Bixo, vou começar a fazer uma ou outra, esporadicamente”
(Entrevista, André Moura Lopes, Fortaleza, 09.02.2018)

Entendendo melhor o processo de formação do Selo, percebemos que as


cenas musicais são organizações de atores sociais em constante movimento, elas não
apresentam um início pontual, muito menos um fim, tem a todo instante suas redes
diminuídas, ou estendidas conforme demandam os novos acontecimentos, desejos e
necessidades (LATOUR, 2012). O caso do Selo, alavancado pelo sucesso das edições
do Festival, fez se alastrar por outros lugares da cena rock underground a estética e as
ideias envolvidas na sua produção, e esses novos aliados se farão presentes no Marginal
a partir do contato de André com outros artistas que ele, anteriormente a formação dessa
organização, não estabelecia, como os saraus de poesia e outros coletivos.
E agora a gente vai começar a fazer essas parcerias, nesses próximos
meses, a gente vai fazer umas novas coisas, parcerias com outros
movimentos, por exemplo, a gente vai ajudar o coletivo Girls to the
Front a fazer o documentário [..] gente vai fazer em abril também um
evento com a nuvem produções, que é um estúdio e tal, que eles tão
fazendo agora um edital com bandas da periferia e tudo mais, e a ideia
é fazer um evento com eles, como se fosse um evento, ele vai trazer,
tipo, quatro bandas da cena do movimento deles lá, que eles fazem, lá
no Conjunto Esperança [...] vai ter o Facada, a gente fez uma parceria
com o Facada, e a gente vai trazer mais cinco bandas [...] e a bilheteria
vai ser toda revestida pro Facada, fora som e casa, e vai ser revestida
pro Facada, pro cd deles. (Entrevista, André Moura Lopes,
Fortaleza, 09.02.2018)
.
A criação de um selo underground homônimo aos eventos FFCM, nos
permite analisar um processo de formação de uma comunidade. Comunidade essa, não
forçada ou imposta, mas construída, a partir de desejos coletivos de ampliar os
territórios ocupados pelo Marginal, trazendo mais bandas, iniciantes, em formação, ou
que apenas estejam desenvolvendo um trabalho diferente, e com pouco espaço em
outras cenas. Ao mesmo tempo em que cria eventos mais “despretensiosos”, como na
fala de André, que muitas vezes resulta em festas com pouco público, o selo integra
diferentes bandas da cena, formando em sua página virtual um espaço de divulgação de
diversas outras movimentações artísticas que acontecem pela cidade.
As culturas underground, por meio dessas organizações de co-criação (selos
e coletivos) e ferramentas virtuais, promovem possibilidades de divulgação e de
diálogo, que assim como a ética de vivência dos seus realizadores, manobram e refazem

45
estratégias que margeiam o mercado da propaganda e do marketing, promovendo
agenciamentos veiculados à outra lógica de produção e compartilhamento além da
capitalística, apesar de trazer traços dela (KEMP, 1993; MEDEIROS, 2008). Essa
ampliação da rede de aliados se observa também nas novidades que aparecem na
terceira edição.

3.5 OUTROS MARGINAIS APARECEM E COM DIFERENTES LINGUAGENS

Flyer da terceira edição do FFCM.


O terceiro FFCM, ocorrido em 12 de junho de 2016, manteve as
características organizacionais das antigas edições, mas uma novidade ocorrida nele o
marcou e continuou nas demais edições posteriores.
Com bandas que já tinham se apresentado em outras edições, como Dago
Red e Intuicón, o Marginal abriu espaço, em sua terceira edição, para outro tipo de arte,
que até o momento não tinha aparecido no evento e que, a partir desse fechou o tripé
artístico dos festivais: a performance ou intervenção.
Num momento em que o rock parava, novas intensidades surgiram, se
apresentou no Marginal o Índio Buriti. Sentado ao chão, sobre um tapete de palha, com
vestimentas e instrumentos de povos indígenas que vivem em seus territórios ancestrais,

46
que hoje estão dentro das fronteiras estado do Ceará, Buriti interveio no evento
emitindo sons e intensidades desconhecidos pela maioria das pessoas lá presentes, isso
resultou numa estranheza por parte de alguns, enquanto outros “respondiam” os sons
emitidos por Buriti e seus artefatos, gritando e fazendo outros ruídos com o corpo. Esse
momento me fez lembrar a peregrinação feita por Castanheda a mando de Don Juan,
que na busca de encontrar um lugar não parava de se mexer sem sair do canto. “Ali se
abriam territórios diferentes, que subjetividades sedentárias logo foram espetadas, e
inquietas saíram à procura de novos territórios de existência.” (Diário de campo do
Terceiro Fortaleza Cidade Marginal, escrito em 13/06/2016)
Ao integrar artes que são pouco consumidas e que, por vezes, quebram uma
possível semântica do festival, André afirma que o intuito é
Estranhamento, pra dá estranhamento mesmo, pra tirar o público do
rock da zona de conforto, tentativa mesmo, assim, de educação
mesmo assim, educação não no sentido pedante da coisa[...] E também
é muito a questão, a galera da performance, os poetas nem tanto, os
poetas tem convite, mas muita gente chega: “Ei, tô afim de fazer uma
coisa”, pois vamo! [...] e quando é teatro, quando é performance eu
tenho essa simpatia, essa coisa da galera chegar e “vamo, vamo”.
(Entrevista, André Moura Lopes, Fortaleza, 09.02.2018)

Com a introdução e a mescla desses diferentes tipos de arte, o Marginal


nunca para, entre o vai e vem de artistas e público a festa proporcionou poucos instantes
de um vazio e produziu constantes zonas de experimentação intensas e furtivas.
Além das performances do Índio Buriti tivemos, nesse FFCM, uma pintura
de mural feita pelo artista Tom, durante o festival, e que persistiu na parede lateral do
Casarão por algum tempo. Mais precisamente até a reforma que o espaço sofreu em
2017. Outra novidade, dessa edição foi a introdução de grupos de outros ritmos
musicais, além do rock e suas variações.
Houve pela primeira vez nos Marginais, grupos de Rap e Funk, como o
show do Coletivo Maloqueria com participação da banda Eletrofone, provocando o
estranhamento do público presente e ampliando as sensibilidades partilhadas. Um
acontecimento marcante e ilustrador dessa mistura rítmica foi a fala de André GDS,
integrante do Coletivo, que nos momentos finais do show gritou “Satisfação total, valeu
galera do Rock!” enquanto fazia o conhecido símbolo manual de recolhimento dos
dedos anelar e médio e enrijecimento dos dedos indicador e mínimo, clássico símbolo
roqueiro.

47
3.6 DOBRAS DO TEMPO PUNK.

Flyer da quarta Edição


Realizada dia 8 de Janeiro de 2017, a quarta edição do FFCM, trouxe uma
surpresa para a maioria das pessoas que participam da cena fortalezense. Entre bandas já
conhecidas, como a Lascaux, Oco do Mundo, e o hardcore dos Malditos Remains,
aparecia Zé Agulha e os Garotos Paregóricos.
Dentre os diversos Shows, Vitor Colares, que já tocou em outro Marginal,
mas com sua banda “Fóssil”, dessa vez se apresentou num projeto solo, em que junto
aos sons e distorções de sua guitarra, era desenvolvida uma performance por Andreia
Pires. Essa mistura artística, que havia sido apresentada em edições anteriores, onde se
mesclavam bandas e poetas, se manteve na quarta, mas dessa vez a trilha sonora
improvisada compunha um espaço incerto, onde Andreia o cartografava com seus
movimentos expressivos.
Jonnata, ao contrário dos outros festivais, supostamente teria sua atuação
resumida à de DJ, onde, em certos momentos colocaria sua playlist, chacoalhando o
público mesmo com o palco vazio.

48
Outro fato que chamou a atenção, durante a divulgação da quarta edição, foi
a exposição de um cronograma. Colocado na descrição do evento, esse quadro de
horários aparentemente “fixava” os momentos das bandas, poetas e performers. Ao
conversar com André, acerca de como se dá as escolhas de horários e as táticas
desenvolvidas para evitar atrasos, pois a localização do Casarão em área residencial
impede que as festas lá ocorridas tenham horário o estendido para a madrugada,
diminuindo consideravelmente flexibilidades acerca de um possível cronograma
estabelecido, ele afirmou
[...]eu tenho que ser disciplinado, porque o Marginal tem que ter a
disciplina certa, porque ele usa um limite, porquê como ele não pode
parar, como a ideia é aquela coisa em sequência, então acaba que o
tempo a mais de um pode prejudicar quem tá ali no final. Então eu
preciso ter sempre um certo controle, tem que tá avisando “ei galera,
isso aqui”, aí eu sempre utilizo de meia a uma hora de limite ali, de
atraso e tudo mais, mas ele sempre tem que tá ali dentro daquela coisa.
(Entrevista, André Moura Lopes, Fortaleza, 09.02.2018)

Ao apresentar uma cena alternativa, independente de financiamentos, e que


conta com uma estrutura de que flexibiliza relações comerciais em prol do
acontecimento dos eventos, podem soar estranhas, falas acerca de disciplina e controle,
mas ao papel de organizador, como nos conta André, cabe a tarefa de delinear,
estabelecer, ainda que maneira flexível, as direções e interrupções dos fluxos
produzidos pelas artes e pelos afetos do público. Durante as entrevistas, argumentando a
criação do cronograma e algumas indisposições que se criaram entre ele e alguns
artistas por causa do “controle” do horário, ele conta um episódio ocorrido

Por exemplo, a banda pode passar daquele horário, as vezes [...] eu


tive até um problema com um coletivo lá [...] mas foi tranquilo, a
gente conversou, mas tipo, eu chamei poetas, aí quando eu fui ver, o
coletivo chamou uma banda [...] aí eu olhei, assim, e disse “só uma
música!”, aí eu falei “não, não pode, é só uma música!”, os cara
ficaram putos, então. Mas, porra, ali era o tempo do poeta, num era o
tempo da banda, enfim. Porra, era pra ter vindo o poeta, ali é o espaço
do poeta, mas enfim, de boa, tranquilo[...] Aí, por conta dessa
disciplina as vezes eu sou mal interpretado, enfim, há atritos, há
choques, que são naturais, mas eu utilizo muito ali de uma
concentração muito rígida, eu tento ser o mais chato, nesse sentido, eu
sou o disciplinado daqui, eu sou o disciplinado pra todo mundo pirar.
Eu preciso ser disciplinado pra dar vazão a piração alheia e pra deixar
tudo nos conformes. (Entrevista, André Moura Lopes, Fortaleza,
09.02.2018)

49
O cronograma, mesmo que pouco flexível no início, pelo horário que
começa o evento, e no fim por conta dos entornos residenciais do Casarão, não se
mostra o único motivo da “rígida concentração” adotada pelo organizador, a
necessidade de uma sequência de acontecimentos que também é integrante da proposta
do evento46, e o sentido e forma deles, é outra justificativa dessa conduta. Essa
semântica ininterrupta é marca e motivo da maneira de organização do Evento, dando
pouco espaço para grandes atrasos e paralizações de atividades.
Outro ponto de necessário destaque dessa Quarta edição, foi o lançamento
do documentário “Tudo que é Belo é Podre”, de Flor Fontenele e Fábio Gomes. O
filme, de média metragem, 26 minutos, mostra a trajetória, a potência e a atualidade do
movimento Punk de Fortaleza a partir da trajetória de seu mais icônico participante,
Dedé Podre. Produzindo um momento em que se misturavam as emoções dos 26 anos
de morte de Dedé e a nostalgia dos que viveram o movimento daquele período47. Sendo
encerrado, o lançamento, com o show da Banda Implicantes, formada pelos integrantes
do movimento Punk em sua fase inicial em Fortaleza, nessa apresentação Flor
Fontenele, Jomar Hendrix, Jorge Pixote, Simão e Jorge AP cantaram músicas da época,
que animaram os ali presentes com um Punk “velha guarda”, mas atual e longe da
caduquice.

46
Fala localizada no início do capítulo, onde é trazida a proposta do “não parar” do festival. (Página)
47
Sobre o nascimento e desenvolvimento do movimento punk em fortaleza, ver: Damasceno, José. Sutil
diferença: o movimento punk e o movimento hip-hop em Fortaleza. Fortaleza, EdUECE. 2011

50
Iniciando da esquerda: Robério Sacramento, Flor Fontenelle, André Moura, Jonnata “Doll” Araújo,
George Frizo, Alexandre Gato e outros presentes na quarta edição.

Outro reencontro ocorrido nessa edição foi o show da banda Velouria.


Banda muito importante para cena dos anos 90, a Velouria, com sua mistura de rock
clássico e punk rock cantou músicas que construíram sua trajetória. Essa reunião, após
um hiato de vinte anos foi feita com: Regis Damasceno (guitarra e vocais), Júnior
(bateria), Roberto Damasceno (baixo) e Robério Sacramento (guitarra) 48 guitarrista da
Dago Red, cuja importância marcou a geração dos anos 90.
Mas a banda que deixava dúvida em todos, a começar pelo nome, era o Zé
Agulha e os Garotos Paregóricos. A tensão aumentava, pois, a banda seria a última a se
apresentar naquela quarta edição. No momento de subir ao palco, Zé Agulha e os
Garotos paregóricos eram Jonnata Doll e os Garotos Solventes, que naquele show
cantaram as músicas do álbum recém lançado Crocodilo. Com Edson Van Ghog e Léo
BreedLove nas guitarras, Louro Sujo no contrabaixo e Felipe Maia na bateria, todos
dançaram e se bateram49 ao som que apesar de mais melódico do que no primeiro disco,
não deixava de mostrar a agressividade e acidez característica dos trabalhos de Jonnata.
Houve também, a participação de Tia Zú, tia de Jonnata e personagem central na vida
48
Formação da banda retirada da matéria: Uma Picada de Nostalgia.
http://www.sapotisoundz.com.br/2017/02/02/uma-picada-de-nostalgia/ Acessado em: 29/11/2018.
49
Expressão referente à dança de origem Punk, onde os participantes da festa fazem um círculo onde
correm e empurram uns aos outros. Também chamada de Roda de Pogo.

51
do cantor, ela interpretou a música Rua de Trás, música que Zú participou desde a
composição até o vídeo clipe50.

3.7 QUINTA EDIÇÃO. A DESPEDIDA DO MARGINAL?


Quase um ano depois, dia 14 de janeiro de 2018, acontecia o que até o
momento foi a última edição do FFCM, ela veio com o seguinte cronograma.
Vem ai a 5ª edição do Festival Fortaleza Cidade Marginal! Atrações:
15:00 Abre a casa.
15:30 Cuspindo pra Cima
16:00 Okupação
16:15 Terceiro Olho de Marte
16:45 Sarauda B1
17:00 Natália Cohel
17:15 Casa de Velho
17:45 O corpo sem órgãos: Sarau-Rizoma
18:00 Diagnose
18:30 Betten Helxs
18:45 Okupação
19:00 Plastique Noir
19:30 Sarau da B1
19:45 Daniel Peixoto & os Héteros Cearenses
20:15 O corpo sem órgãos: Sarau-Rizoma
20:45 Glamourings
ingressos: 10 reais (50 primeiros pagam 5 reais)51

A quinta edição foi, sem dúvida, a mais plural de todas, trazendo em seu
line-up bandas antigas e novas, e que figuram no Main Stream e underground. Duas
bandas que apresentaram no Marginal expressam essa diferença que se conecta e
percorre todas as edições.
A primeira, a Diagnose, é uma banda de Grindcore, Crust Punk e Hardcore,
que tem mais de 20 anos na cena e diversas formações. Com um repertório extenso de
músicas anticapitalistas e contraculturais, tendo lançado em sua trajetória cinco
trabalhos gravados,52 Jorge Matagato (vocal), Dejane Grrrl (contrabaixo), Frank
Carvalho (guitarra) e Alisson Mick Harris (bateria), colocaram o público para se bater,
nas várias rodas de dança formadas. Nas pausas entre músicas como: Massacrados Pela
Mídia, Império do Medo e Fútil Rotina; reforçavam suas identidades proletárias, e como
suas vidas dialogam com a arte produzida – assunto que será retomado no capítulo

50
Ver vídeo clipe Jonnata Doll e os Gatoros Solvente: Rua de Trás
https://www.youtube.com/watch?v=NGBq_yfLKF8&t=64s Acessado em 12/04/2019.
51
Publicação de André Moura Lopes, na página do evento Fortaleza Cidade Marginal (5ª Edição).
https://www.facebook.com/events/1925392497722051/ Acessada em 18/11/2018.
52
Desordem Capital (1996), Organicamente (1998), Colapso Vermelho (2001), Neurose XXI (2005), Fútil
Rotina (2011),

52
terceiro. Sempre habitando o underground, a Diagnose fez inúmeros eventos fora do
estado53, sendo conhecida entre os públicos que compõem cenas de estilos musicais
semelhantes.
Mas instantes antes do barulhento “caos” promovido pelos corpos
insubmissos da Diagnose, tivemos no palco uma das bandas cearenses da atualidade que
mais figuram nos holofotes. Formada em 2014, a Casa de Velho, banda que mistura
MPB, rock e ritmos componentes da cultura popular cearense como o Maracatu, é
composta por Mateus Mesmo (vocal), Marcus Au Coelho (Contrabaixo), Plínio Câmara
(guitarra), Rami Freitas (bateria). Sempre acompanhada por performances, figurinos e
características estéticas que remetem ao Teatro Pobre54, e ao circo, a Casa fez seu show
no Casarão mesclando algumas músicas do primeiro EP, homônimo de 2005 e singles
lançados separadamente, alternando momentos de músicas rápidas e dançantes com
momentos mais calmos e igualmente intensos.
A edição contou ainda com um conhecido artista e produtor cultural, Daniel
Peixoto, que além de apresentar as bandas nessa edição, cantou com seu projeto Daniel
Peixoto e os Héteros Cearenses, onde mistura música eletrônica com algumas
características do rock, afirmando ser o ritmo Eletropunk, as músicas cantadas foram:
Amigo do Tempo, Dont Give Up e Viva o Louco. A trajetória de Daniel ilustra muito
bem à tese exposta na dissertação de Benevides, onde ele afirma que o território entre
undeground e holofotes é muito mais liso do que se convencionou pensar (enquanto
opostos), e que o ir e vir desses artistas não significa a pretensa perda de uma
identidade, mas movimentos de maior alcance de público, que podem perdurar ou não
(BENEVIDES, 2008).
Participando do Grupo Montage, na primeira década dos anos 2000, Daniel
alcançou espaço na mídia nacional, onde, apesar de suas músicas que abordavam
assuntos pouco aceitos ou tratados na grande mídia, como o abuso de medicamentos e
temáticas de liberdade homossexual55, fizeram uma participação no quadro Central das
Favelas, do programa da Rede Globo “Fantástico”, onde cantaram a música Ginastas
Cariocas. Uma cena caótica e icônica, sem dúvidas.

53
Na entrevista realizada, Matagato, membro mais antigo da banda, lembra shows em Teresina (PI),
Recife (PE), Mossoró (RN) etc...
54
Proposta de experimentação teatral desenvolvida por Grotowski. Nela são priorizados os recursos
corporais do autor e seu envolvimento com o público, secundarizando estruturas físicas e materiais
como figurino e cenário.
55
Ver o primeiro álbum da Montage, intitulado I trust My Dealer.

53
As performances de Natália Cohel e as poesias do Sarau da B1 e coletivo
Rizoma, que ao final de sua apresentação bradaram fortes gritos de guerra antifascista
fecharam o que foi a última Edição do Marginal.
Ao pensar esse momento onde os poetas gritaram, motivados
principalmente pela recente agressão ocorrida no Benfica semanas antes do Marginal,
onde integrantes de grupos nazifascistas espancaram um jovem negro nas proximidades
da Praça da Gentilândia. O assunto retornou a mim, enquanto realizava uma conversa
com Matagato e Frank, integrantes da banda Diagnose, nela Matagato expressou:
Na verdade a gente só tem uma preocupação, é a de não tocar com
bandas fascistas, nazistas, homofóbicas, sexistas, que pregam isso aí, a
gente não toca [...] de trocar ideia sobre essa questão dos carecas, que
sempre fizeram um monte de merda, e com o tempo ficaram sumido,
mas depois apareceram. Quer dizer, eles aparecem, somem, e agora
fizeram essa parada com os dois homossexuais, são extremamente
preconceituosos, e a galera hoje em dia não tá mais aceitando. Eu acho
que quem tem consciência hoje em dia, por mais que você comece
numa cena hoje, ou já tem um certo tempo, você tem que ir pra frente
mesmo, pra cima, contestação mesmo, total. (Entrevista com
integrantes da banda “Diagnose”. Jorge Matagato e Frank.
10/03/2018.)

O posicionamento “antifascista” de Jorge, que se recusa se relacionar com


bandas de caráter fascista, reafirma as políticas criadas entre os agrupamentos rockeiros,
que ao serem expostas nas artes ali compartilhadas extrapolam os territórios musicais,
se tornado assim condutas de vida. (DAMASCENO, 2011; GORCZEVSKI, 2017)
Com o fim da quinta, e até agora última edição, ocorreram mudanças.
Algumas cruciais para o evento, como a mudança de proprietário do Casarão, que agora
se chama Havana Bar. Isso, somado à maior fixação de Jonnata em São Paulo, onde está
gravando seu próximo álbum e realizando eventos, o Marginal passa por um momento
de incerteza sobre futuras edições, fica o desejo de se reencontrar com o Festival e as
memórias afetivas e perturbantes, que entre outras coisas foram os motivos de
realização dessa pesquisa.
Eu acho que não deve parar, por conta da perda de um local físico[...]
e por ser mais um lugar pra que as bandas estejam tocando, um outro
lugar também de manifestação cultural. Mas também por ser as
figuras do André e do Jonnata, que são pessoas abertas, que tem uma
experiência no cenário, são pessoas que conseguem fazer articulações
e trazer um horror de gente massa. (Entrevista com Juliana “July”
Pessoa, Vocalista da Banda OUSE, dia 24/01/2019)

54
Neste capítulo foram abordados com maiores detalhes os acontecimentos
dos FFCM em todas suas cinco edições, alguns dos artistas que lá se apresentaram e as
articulações que tornaram viáveis os Festivais. Essas ocorrem a partir de relações
flexíveis entre os organizadores, proprietários do espaço em que ocorreram o evento, e
pela aceitação e desejo dos artistas de participarem desses festivais que não geram uma
renda considerável, mas abrem espaços de veiculação artística e de partilha de
sensibilidades, estéticas e políticas de vida expressas nas suas produções culturais.
Sendo essas políticas de subjetividade e devires constituintes do Marginal os assuntos
que serão discutidos no terceiro capítulo.
O que mais mantêm os eventos Marginais vivos é seu inacabamento.
Inacabamento, pois, as temáticas ali levantadas a partir da arte, não ficaram restritas a
datas ou espaços, estão marcadas naqueles que lhe vivenciaram, e independentemente
de suas mensagens e vivências libertárias serem adotados ou rejeitados pelos vários
atores que movimentam ela isso só reafirma a vivacidade daqueles episódios. É sobre
esse devir marginal, que em seu trânsito atravessa os territórios das artes e os espaços
físicos dos eventos que discutiremos no capítulo terceiro.

55
4. O FFCM ENTRE TERRITÓRIOS ARTÍSTICOS E SUBJETIVOS.
Após um certo entendimento de como se viabilizou a ocorrência dos
Festivais Fortaleza Cidade Marginal, a partir de relações e do desejo coletivo dos
envolvidos, que resultou em um equilíbrio de interesses, o não prejuízo dos
comerciantes proprietários do espaço Casarão do Benfica, e a rede de sociabilidades
construída entre organizadores e artistas no decorrer de suas respectivas trajetórias, me
vi frente a outras perguntas acerca do porquê do festival e de sua forma de ser feito, são
elas: Quais lógicas e concepções acerca da cena e das produções artísticas permeiam o
pensamento dos realizadores do Marginal e como isso afeta a construção do Festival?;
Se a ligação semântica entre os diversos artistas que tocaram no Festival não é rítmica,
qual será a ligação entre estes, e como os artistas participantes, em suas produções,
expõem esse elemento que os liga? O capítulo será finalizado com a exposição de uma
Catarse/Colagem etnográfica feita a partir dos diários de campo, onde se misturam
observações e vivências.

4.1 CENA MUSICAL EM CRISE, MICROPOLÍTICAS DO FLUXO-FUGA.


Na busca de uma satisfatória resposta para a pergunta elencada acima,
acerca das lógicas e concepções dos idealizadores do Marginal sobre as produções
artísticas que constroem o Festival e a cena que ele está inserido, separei, a partir das
entrevistas e postagens na página virtual do evento, alguns pontos que fundamentam a
escolha pelo método de organizativo do evento. Esses pontos, que são: a perspectiva de
uma cena em crise; a proposta heterodoxa de curadoria; e a negação do auxílio das
políticas públicas de cultura para a produção do evento, ajudarão não só a saber mais
dessa forma peculiar de organização do Marginal, mas também a conceituá-la
adequadamente.
A divulgação do primeiro Festival Fortaleza Cidade Marginal na rede social
Facebook, fonte exposta no início do segundo capítulo56, traz em seu conteúdo que uma
das motivações da realização do evento é “[...] renovar e estimular uma cena musical
em crise.”.
Mas antes de se tomar essa afirmação como um pressuposto, é preciso
observar o lugar ao qual fala o escritor da postagem. Participante ativo da cena, desde os
anos 90, André teve, como foi discutido acerca dos eventos Motel 90, uma participação

56
Página 25.

56
mais ativa nos anos 2000. Esse período em questão, a primeira década dos anos dois
mil, é marcada como um tempo onde uma enorme agitação da cena rock pode ser vista.
Ao falar de festas, se destacam o ForCaos, que apesar da sua primeira edição ser em
1999, se consolidou na cena e ampliou seu porte nos 2000. E o próprio Motel 90, cujas
edições ocuparam os anos de 2005 à 2010. Mas não só as festas se proliferaram, no
âmbito institucional associações foram fundadas, além da mais conhecida e até hoje
ativa ACR, criadora do ForCaos, fundada em 1998, o CUNDER57 e o MIRC58, fundadas
respectivamente em 2005 e 2006, tiveram importantes papeis no fomento de eventos de
rock (LIMA FILHO, 2010).
A bibliografia acadêmica produzida sobre cena rock fortalezense desse
período é vasta se compararmos com as décadas anteriores, MEDEIROS (2008, 2008),
BENEVIDES (2008) e LIMA FILHO (2010), são alguns exemplos de importantes
pesquisas sobre as dinâmicas roqueiras. Destaco a de LIMA FILHO (2010) por trazer,
em seus dados uma lista de 411 bandas e 73 espaços componentes da rede cujo
elemento aglutinador é o rock e seus subgêneros.
Ao questionar André sobre esse período, ele afirma que se nos anos 90:
você tinha uma variação e uma grande circulação, por incrível que
pareça, das bandas, porque elas tinham onde tocar. Tudo bem, elas
estavam centralizadas ali, mas tinha muitas bandas que vinham dos
vários cantos pra essa centralização [...] Nos anos 2000, em relação ao
profissionalismo é um período áureo. É o período das vacas gordas,
bem maior do que agora até, por sinal. Começou a ter edital, grana,
dinheiro lá, o povo tem investido mesmo e tal [...] um monte de
evento, mas o que acontecia, tudo dependia, a gente agora, o músico
ele precisava passar no funil do edital, como é hoje ainda.[...]mas, por
conta de várias burocracias, fiscalizações e exigência de alvarás, foi
nesse período que as casas começaram a murchar, num tinha casa,
meu irmão, a galera ia pro Fafir ouvir música e tal, o Noise tinha
acabado, porque o Noise acabou em 2008, o Hey ho também depois
vai murchando, minguando e acabando por sequência as casas.
(Entrevista, André Moura Lopes, Fortaleza, 09.02.2018)

Ao pensar sobre crise, Guattari (1996) a interpreta enquanto uma saturação,


um esgotamento, pontos referenciais que antes estabelecidos, em certo momento e por
certos motivos, expressam falhas e insuficiências, necessitando assim algo que os
rompa, que fuja, que afirme diferentes, direções e modos de fazer. Ou seja, a crise diz
respeito então, modelos de vida e de relações sociais. Seria então a metodologia de
organização de festas e festivais que se consolidou nos anos 2000 – onde eram

57
Cooperativa Underground do Bom Jardim.
58
Movimento Independente Rock e Cultura.

57
selecionadas as melhores bandas de um gênero, em comum, via edital – carente de
mudanças?
Buscando alterar esses pontos, André e Jonnata puseram em prática
diretrizes de organização que acreditam terem mais potência para “movimentar” essa
cena em crise, ou seja, fluidificá-la, nas quais se encaixam os dois outros aspectos
levantados no parágrafo primeiro. O primeiro é acerca da curadoria.
Os FFCM, tem em todas a suas edições, a prática de unir em seu line-up,
bandas novas e antigas, mesmo que as primeiras ainda estejam fora dos constantes
eventos produzidos pela rede formadora da cena, ou participe apenas de eventos
“menores”. Analiso esse direcionamento de curadoria tomado por Jonnata e André
como parte de uma fuga da lógica de escolhas e organização de eventos na qual se
prioriza artistas e bandas “prontos” em detrimento dos novos, tornando estático um
espaço caracterizado por seus nomadismos59, a cena underground, e resultando em sua
“crise”.

[...]eu acho massa, acho interessante ter mais e mais festivais, porque
vão sempre, sempre vai ser o lance de reunir a galera e botar quem tá
trampando, quem tá fazendo na cidade e não necessariamente tá em
edital, ou tá vendendo show. (Marcus “Au” Coelho, Baixista do
grupo Casa de Velho, participante do quinto FFCM)

[...]serve pra utilizar, colocar bandas ruins, as bandas que precisam,


por que também, gente, num é toda banda que é boa, num é toda
banda que é ruim, pô, a banda tá começando, mas você precisa
lapidar, a banda não nasce pronta, aí o curador precisa ter essa
sensibilidade, essa coisa de “não, essa banda ela não tá boa, mas ela
pode virar, ela pode ser”, ou “não, ela tá precisando de um negócio lá,
talvez isso...”, “Não, mas ela tá aqui e ela com essa banda ao lado ela
pode dar um efeito maior...” e o próprio palco, o próprio show as
vezes... enfim, eu percebo as vezes que se você toca numa
determinada hora, com outras bandas ao lado, já muda o clima, mas
assim, falei alguma besteira? Porque é tanta coisa, que você tem que
falar, que tem que tá com um pouco de dedo no chão, né! (Entrevista,
André Moura Lopes, Fortaleza, 09.02.2018)

O que essas falas tornam perceptíveis é que se estabelece, no Marginal, uma


relação, expressa também nas escolhas dos artistas que ali se apresentaram, que se
desloca dos quesitos de outros festivais. Funcionando não como uma oposição, é
expressa uma lógica diferente, que tenciona o modo de curadoria já consolidado em
vários festivais, que se em uma grande maioria dos eventos artísticos são priorizadas

59
Discutimos os diversos nomadismos da cena no capítulo anterior.

58
qualidades técnicas e de execução, no Marginal é priorizada a autonomia pela escolha
de bandas que dialoguem ético/esteticamente à proposta do festival, sendo menos
determinante o desempenho ou profissionalismo, abre-se espaço aos novos grupos e
suas propostas e experiências musicais pouco conhecidas.
O segundo ponto abordado nas entrevistas, que se relaciona diretamente
com o modelo organizativo do Marginal, é a relação com o edital.
Conforme vimos no final do segundo capítulo, a quinta última edição do
Marginal deixou uma enorme incerteza acerca de sua continuação. Isso se deu menos
por uma questão de artistas e público presentes, do que uma sucessão de acontecimentos
que afetaram muito a forma de realizar o evento, destaco três como os principais: a
sedentarização de Jonnata na cidade de São Paulo, onde lá, a partir de novos aliados
constrói eventos da cena local e desenvolve novos projetos de gravação 60; As mudanças
ocorridas no espaço Casarão do Benfica, que agora se chama Havana 1884 e pertence a
novos proprietários, perdendo, assim, a flexibilidade de negociação que André
desenvolvia com os antigos donos; e o afastamento de André da produção de eventos,
por considera-la “apenas um hobby”.
Uma recorrente temática que percebi durante as entrevistas, que tem total
relação com a forma que os Marginal foram organizados, é da dificuldade de realizar o
evento com uma margem de gasto reduzida, tendo em vista que os FFCM tem como
uma de suas marcas organizacionais a existência de uma economia, mas com o uso de
pequenas quantias de dinheiro, isso se mostrou presente ao discutirmos, no capítulo 2, a
questão do “não prejuízo” como um requisito central para que o espaço (Casarão do
Benfica) fosse disponibilizado por seus antigos donos, e o pagamento feito aos artistas,
que na maioria das vezes funcionam apenas como uma ajuda de custo para o transporte
deles e dos instrumentos que são usados nas apresentações.
Frente as possibilidades de sanar essas complicações orçamentárias, uma
prática que se faz fortemente presente em muitos eventos musicais de Fortaleza é a
integração de editais governamentais de fomento à cultura, esse recurso que viabiliza
uma série de eventos se estende hoje até mesmo aos cenários undergroud da produção
musical.

60
A partir de vídeos em sua página no site de financiamento coletivo Catarse indicam o lançamento de
um novo álbum para o segundo semestre de 2019. https://www.catarse.me/jonnatadoll Acessado em:
15/06/2019.

59
Os editais, são dispositivos das políticas culturais, os quais atualmente tem
como funções mais claras possibilitar a ocorrência de práticas culturais cujos agentes do
mercado não se interessam pelo investimento, tendo em vista a relativa pequena
quantidade de público e lucro. Outra ação dessas políticas é a promoção de eventos que
sem este financiamento público seriam cobradas taxas de ingresso, limitando,
consequentemente, a participação de alguns sujeitos sociais. (BARBALHO, 2016)
Abda Medeiros, pesquisadora da cena Heavy Metal de fortaleza e uma das
principais membras ativas da ACR61, discute em um de seus artigos essa dinâmica entre
underground e políticas culturais62. Assim, o Faça Você Mesmo, orientação principal da
ética underground, ao passar pelo crivo do edital e suas exigências perde seu sentido?
Deixa-se de ser underground ao recorrer às políticas culturais? Concordando com Abda,
penso que não, pois as culturas underground dizem muito mais respeito às
sociabilidades e dinâmicas que envolvem seus participantes (como a troca de materiais
de bandas, zines, sensibilidades etc.), e as éticas e condutas ali desenvolvidas, do que as
mudanças de modos produtivos de seus eventos (MEDEIROS, 2008).
Ao questionar André sobre a possibilidade do uso de editais no Marginal, é
observada uma negação, mas que não se opõe às noções expostas acima, o problema
principal visto por ele é que
(estamos) no melhor das situações que já foram apresentadas, que é ter
a possibilidade de ter esse aparato público como opção, mas você
também tem que ter uma autonomia, uma cena independente, e livre
de, de qualquer braço. E o próprio Marginal, ele é esse
conceito[...]Assim, o Jonnata ele vem querendo “Vamo fazer um
edital ali”, mas eu ainda sou meio romântico pra isso, eu falo: “não, a
gente pode fazer outras coisas, até mesmo como o Marginal, mas não
o Marginal, ele tem que ser feito pra gente mesmo, daquele jeito,
pronto e nada mais.” Porque a gente coloca dinheiro público, aí vai
vim um cara encher o saco, e vai perder todo o espírito... E vai perder
todo o espírito, você perde a essência, a forma, o fluxo. Eu acho que
toda vez quando tem uma parada de governo e tal [...] entra um Apolo
ali que murcha o Dionísio. (Entrevista, André Moura Lopes,
Fortaleza, 09.02.2018)

Assim, apesar da possibilidade de uso dessas políticas, é evidente no


discurso dos realizadores do Marginal um desencontro frente a qualquer controle de
terceiros e outros órgãos de fomento desses eventos. Isso faria o evento “perder seu
61
A Associação Cultural Cearense de Rock, fundada em 1998, é a maior organização musical do gênero
Rock em Fortaleza, reúne várias bandas e é produtora de importantes festas da cena underground da
cidade, dentre eles se destacam o festival ForCaos, e Dragão do Metal.
62
A ACR enfoca fortemente sua participação e apoio às políticas culturais, tendo como parceiros
constantes em seus eventos a Secretarias estaduais e municipais de cultura.

60
espírito”, e vai de total encontro com algumas propostas que caracterizam o Festival,
dentre elas a presença de bandas recém-criadas, com pouco ou nenhum material
produzido e com “erros” de execução que custam muitas vezes a participação em
eventos com “controle de qualidade” menos flexíveis.
Em entrevista com Juliana “July” Pessoa, vocalista da banda Ouse, que se
apresentou na segunda edição do Marginal e participou enquanto público nas outras,
fica expresso alguns desses problemas frente aos requisitos que envolvem a adequação
de grupos musicais underground às modelizações das políticas artísticas culturais
Pois é, assim, eu digo como Ouse, né!? Eu acho assim, que tá cada vez
mais difícil, a questão do edital, a documentação, é algo muito
burocrático. Eu acho complicado, a gente precisa sobreviver de
música, mas é muito difícil e a gente acaba tendo que ter outro tipo de
profissão pra que a gente consiga fazer música[...]Esse ano eu não sei
como é que vai ser, por que você vê que teve abertura de algumas
chamadas, né, de lugares públicos, de centros culturais públicos sem
cachê [...] É foda, entendeu, porquê aí como é que tu vai fazer tua
banda se movimentar, vai lançar um EP legal, como é que tu vai tocar
nas casas muitas vezes sem pedir cachê, se tu num tá ganhando
dinheiro nenhum!? E o mercado cada vez mais quer uma coisa
profissional. Pra tu tocar no Maloca, tu tocar na Feira da Música, sei
lá, num Garage, tu tem que ter um material profissional, tá
entendendo, então assim, isso é muito complicado. Eu vejo assim,
como é que isso tá acontecendo com bandas menores, as vezes não tá
dentro desse circuito porque não tem grana pra se profissionalizar. Eu
acho até ridículo esse nome “Profissionalizar”, mas infelizmente hoje
essa é a palavra, é um Marketing, é uma assessoria de imprensa, que
tu tem que pagar, eu acho muito escroto isso, porque eu venho de uma
geração que a galera era um Faça Você Mesmo e conseguia tá dentro
da cena. Mas agora não, tu tem que fazer uma coisa muito bonita,
porque tu tem que fazer uma coisa que venda prum mercado, prum
edital. (Entrevista com Juliana “July” Pessoa, Vocalista da Banda
OUSE, dia 24/01/2019)

Vemos expressa mais uma vez, agora na fala de uma artista cuja banda participa das
dinâmicas das políticas de fomento à cultura, alguns dos requisitos necessários para ter
êxito nesse meio, a profissionalização.
O que logo chama a atenção nas falas de July e André, é que um movimento
de entrada no circuito das políticas públicas pressupõe uma série de condições de
gerenciamento do autor com sua arte, gerenciamento que consiste em direcionar o
trabalho artístico à uma lógica mercadológica, essa lógica traduz-se numa gestão dos
grupos musicais enquanto profissionais, ou seja, com uma série de materiais elaborados
– release, músicas gravadas e boas técnicas de execução, impossibilitando a

61
participação de bandas que por dificuldade financeira ou discordância com esses termos,
não tenham em mãos essas competências exigidas.
Assim, duas características paradoxais das políticas públicas de fomento à
cultura foram levantadas. A primeira, pelo autor do texto, que as fundamentou como
ações estatais para viabilizar manifestações culturais não absorvidas na lógica
mercadológica da arte. A segunda, levantada por Juliana Pessoa e André Moura,
ressaltou o lado modelizador que essas políticas, a partir dos editais, trazem consigo.
Buscando entender melhor as concepções que guiam as políticas culturais e seus
mecanismos que ao mesmo tempo misturam produção cultural, acesso e controle,
recorri à discussão de BARBALHO (2016) acerca das relações entre as políticas
culturais e modos de governar, interligando-a com as questões levantadas por meus
interlocutores.
Associadas aos modelos temporalmente contemporâneos de estado, as
políticas culturais trazem consigo traços e diretrizes referentes aos métodos de
governánce. Estando o atual modo de governo em escala mundial operando, numa
perspectiva foucaultiana, em uma política sobre a vida (bios), onde o controle do corpo
populacional por vias positivas se torna o método hegemônico, sendo o permitido e o
não permitido flexibilizados dando lugar a uma escala mais plural, mas ainda assim
controlada, de ações ótimas, aceitáveis e inaceitáveis, os poderes são trabalhados numa
perspectiva de produção de modos de vida, o que o mesmo autor citado, conceitua de
subjetivação. Promovendo, a partir de táticas e instrumentos diversos fins oportunos aos
governados, que em suas próprias vivências desejariam esses fins aceitáveis
(BARBALHO, 2016).
Mas onde se encontram as políticas culturais nesse meio? Interpretando-as
enquanto práticas desse governo, essas políticas se incluiriam dentro dos métodos de
subjetivação, ou seja, seriam ferramentas para os fins oportunos, daí o uso da palavra
“positiva” no parágrafo acima, projetos dos poderes centrais, mas que não se
concentram neles, que possibilitam maneiras de viver “corretas” sem a necessidade de
dispositivos de negação, castração. (BARBALHO, 2016)
Assim, essa superficial relação aqui exposta, que de modo algum encerra ou
invalida a importância dessas políticas, explicam melhor que, junto as possibilidades
trazidas por ela, espaços de controle são desenvolvidos. É ao chegar nessas esferas do
que deve ser “aceitável” – que aqui são expostas pelos referentes a “profissionalização”
levantada por Júlia e ao “cara que vai vim encher o saco e tirar todo o espírito da coisa”

62
suscitado por André – que o festival se mostra incompatível à adoção das políticas
públicas para sua realização, mesmo que isso ponha em risco a ocorrência de novas
edições.
As cenas musicais, lugares de sociabilidade, experiências sensíveis, reunidas
a partir de um gosto comum (afinidades eletivas), apesar de criarem éticas que, algumas
vezes, fogem aos padrões comportamentais estabelecidos63, são parte integrantes do
corpo social e ao se localizarem nele também absorvem traços e linhas referenciais do
mesmo, e dos projetos de poder político nele desenvolvidos. Daí se cria uma pergunta,
seria a integração da lógica do edital, e todo os mecanismos de controle que ele carrega,
na cena underground um dos causadores de sua crise? Essa pergunta não tem como
função se colocar contra esses fomentos, mas o mais importante aqui é analisar as linhas
de fuga elaboradas no Marginal para fugir dessa tendência, ou melhor de uma
dependência.
Entendo então que os realizadores do Marginal necessitaram, para a
ocorrência livre do festival, operar nas dimensões micropolíticas, se desvinculando de
quaisquer braços e métodos que trouxessem impedimentos às prioridades elencadas:
liberdade de curadoria e fluxo livre das artes lá apresentadas.
Em busca de uma conceituação para essa política de construção coletiva do
Festival, acredito que o conceito de micropolítica seja fundamental para entendermos a
escolha/necessidade elaborada na sua produção.
Porém, falar de micropolítica, enquanto uma análise de processos criativos,
requer um espaço de melhor desenvolvimento explicativo acerca da mesma, tendo em
vista que surgem dúvidas que envolvem aspectos iniciais, como a própria nomenclatura
do termo. Pensado por Guattari (1996), esse termo se refere, de maneira clara, mas
superficial, a uma lógica política. Entendendo por política nada mais do que modos de
construção, processos – e por isso todos os atos humanos trazem consigo políticas – a
micropolítica é da ordem da analítica das formações de desejo no campo social.
No entanto, para aclarar à noção da micropolítica é necessário um breve
entendimento acerca de outros termos trazidos presentes na literatura desse autor, são
eles: molar e molecular.

63
Damasceno (2010), Abda (2008), Benevides (2004), Kemp (1998).

63
Termos utilizados mais frequentemente nos domínios químicos e
farmacológicos64, o Molar e o Molecular dizem respeito a duas segmentaridades, níveis
dos conjuntos sociais. O molar diz respeito aos grandes conjuntos sociais estruturadores
do indivíduo, como raça, sexo e classe; já o molecular se direciona às instancias sociais
mais fluidas, como afetos, linguagem e percepções. Mas mais importante que as
divisões citadas acima é saber que em momento algum essas noções aparentemente
opostas de fato são. Ao contrário, elas estão existencialmente entrelaçadas, pois se uma
noção como o sexo é binária, são cada vez mais vistas na sociedade relações com a
sexualidade que extrapolam o masculino e o feminino; ou se a língua, apesar de sua
estruturação gramática, demonstra uma profusão de expressões e gírias de acordo com
aqueles que a falam, ela também é passível de captura e modelizações, a Novilíngua de
Orwell65 e o trabalhos de Faye (2009) demonstram como essas segmentaridades,
molares e moleculares, se entrecruzam sem parar, mais do que isso, só existem
entremeadas (DELEUZE & GUATTARI, 2012).
Entendendo então que a micropolítica opera no detalhe, trazendo traços
molares, mas buscando se desgarrar deles, se afirma que a relação molar molecular se
dá em uma oposição e ligação permanente (NETO, 2015). O que Guattari traz, a partir
do desenvolvimento dessas segmentaridades é a primazia do âmbito micropolítico, que
como expressa na suas Cartografias do Desejo, a potência do molecular consiste em
criar territórios de intensidade, que vibram, alteram e fluidificam a estruturações postas
pelo macropolítico. Cria novos agenciamentos (crença e desejo) coletivos e individuais,
que quebram o sentido do estabelecido, criando relações outras que, experimentadas
naquela determinada experiência podem se expandir pelo campo social, já que
acontecem nesse mesmo campo (ROLNIK & GATTARI, 1996).
Enxergo a priorização da dimensão micropolítica nas relações que
proporcionam a ocorrência do Festival, elas se mostram nos modos flexíveis e com
agenciamentos distintos com que são realizados os processos de curadoria, e a negação
de fomentos governamentais, pois são esses identificados como modelos cristalizados,
que não renovam, nem fluem as produções artísticas, ou seja são parte da crise da cena,
identificada por André.

64
Guattari explica, ainda que superficialmente, que esse uso se deve a uma “mania” oriunda de seus
estudos no curso de Farmácia, quando jovem. (GUATTARI & ROLNIK, 1996)
65
ORWELL, George. 1984.

64
O desejo coletivo de realização do Marginal e de sua potência criadora de
outros possíveis transborda as concepções formuladas para “realizar um evento de
sucesso” e as práticas mais ocorrentes que trazem lógicas primordialmente econômicas
para a existência de um festival.
A profusão de construções coletivas moleculares, a micropolítica
desenvolvida no Marginal é, assim, determinante para torna-lo uma zona de autonomia
artística, onde o modelo da gestão do artista com sua arte pouco importa, e a atitude e
potencialidade de criar novas óticas acerca do que se vive é realçada.

4.2 ÉTICA MARGINAL: SUBJETIVIDADES NÃO MODELIZADAS.


Buscando compreender o que liga as experiências artísticas ocorridas nas
edições do Festival – já que apesar de serem eventos integrantes da cena rock
fortalezense o aspecto rítmico se mostra insuficiente para explicar uma possível coesão
artística – pois a música não foi a única arte lá apresentada, e houveram outros gêneros
musicais além do rock, outros aspectos se mostram mais satisfatórios para essa
compreensão. Se tratando de um festival que tem como tripé artístico música, poesia e
performance, decidi atravessar as entrevistas, misturando-as com as artes lá
apresentadas, para melhor fundamentar e expor o que aglutina a profusão de sentidos
expostas nos FFCM: as figuras sociais marginais.
Um aspecto primário grita ao longo de toda a pesquisa e sua exposição, o
uso de termos como: “marginal”, “desviantes”. Esses termos se mostram presentes
desde o nome do Festival e também aparecem nas falas de Jonnata e André acerca de
eventos mais antigos criado pelos dois (o caso do Motel 90). Discutiremos agora a
concepção de marginalidade, o que é esse “marginal”, que nomeia, direciona e tematiza
os FFCM? Como ele é mostrado nas apresentações do festival?
Por que a premissa toda vem dessa crônica, dessa visão do Jonnata ver
o mundo, e ele ter essa crônica do olhar dele, dos freaks, né. E aí, as
vezes o que é pejorativo, pro censo comum, é como fosse um gueto
pra ele, é uma coisa elevada pra ele, elevada no sentido de exaltação
da coisa, e aí como o Jonnata sempre foi um grande cronista da
cidade, né, e ele utiliza a música pra expressar essa forma de crônica
[...] ele compunha sobre os travestis, sobre os pedófilos, sobre as
prostitutas, sobre o que pro bem ou pro mal é, sobre os
marginalizados. (Entrevista, André Moura Lopes, Fortaleza,
09.02.2018)

Tendo o olhar para as figuras sociais marginalizadas em seu mote principal,


compreendendo o Marginal enquanto uma experiência artística, como ficou abordado
65
no capítulo segundo do trabalho, e observando suas micropolíticas de realização e
autonomia, que afeta o público envolvido e cria novas sociabilidades dentro da cena, ao
unir antigas e novas bandas, direcionarei meu olhar às apresentações ali desenvolvidas,
pois se uma concepção marginal atravessa todos os corpos presentes no evento é
também nos conteúdos expostos pelos artistas que ela se manifesta de forma mais
intensa, e esses que “pro bem ou pro mal” são postos à margem, naquelas performances
são (en)cantados, trazidos à tona.

Dizem como deve ser/ Como comportar-se/ Até mesmo como


pensar/ Massacrados pela mídia/ Fomos dotados da
racionalidade/ Aos poucos perdemos nossa liberdade/ Ao
deixar-nos dominar/ Por ícones líderes e falsos profetas/ [...]
(Diagnose. Massacrados Pela Mídia. 1996)

De casa para o trabalho, do trabalho para casa/ Essa é minha


fútil rotina/ Que cria uma existência inautêntica/ De casa para o
trabalho do trabalho para casa/ Doente de uma praga moderna/
Não consigo parar de respirar/ A corrida dos ratos é incansável/
Lucrar e lucrar cada vez mais/ De casa pro trabalho do trabalho
para casa/ Passar toda uma vida/ Correndo atrás do consumo
desenfreado/ Pra ter uma velhice derrotada e frustrada/ E só vim
perceber no leito de morte.
(Diagnose, Minha Fútil Rotina. 2011)

Das artes expostas no marginal, a música traz em suas letras, ritmos e


performances algumas dessas percepções marginais das relações sociais e dos discursos
veiculados pelos grupos detentores da “verdade”, como a grande mídia, que entre outros
grupos que compõem e direcionam o modo “correto” de viver, aqui são questionados a
partir da criação artística. Em conversa com dois integrantes do grupo Diagnose,
busquei entender melhor como sua arte se relaciona com suas vidas na cidade de
Fortaleza, suas óticas acerca do que vivemos.
[...] é a questão de cada um sentir na pele, todos nós quatro moramos
na periferia, eu e Alisson a gente mora lá na periferia do Maracanaú,
na Pajussara, ele é meu vizinho, vizinho de parede mermo, a Dejane
mora no Maracanaú também, Novo Maracanaú, Jorge mora lá no
Genibaú, Conjunto Ceará. E todo mundo sente, desde que nasceu, a
gente sente na pele como é viver no perrengue, ter dificuldade, sentir o
peso de como esse sistema monta nas costas da gente, e todo mundo
tem seu trampo, é proletário mesmo, e trabalha por um salário. E isso
que a gente expressa através do som, que escreve enquanto letras e tal,
a gente expressa o que sente na vida real, a forma opressora, por mais
sutil que seja, mas a opressão que o seu patrão passa pra você,
opressão que essa relação trabalhista coloca na sua vida, a gente sente
à flor da pele todo dia, 8 horas por dia. A gente tava até conversando
isso essa semana com a Dejane e tal, sobre como a gente tem uma

66
rotina que a gente perde todo dia oito horas de vida útil pra satisfazer
uma lógica que é tudo que a gente pensa o contrário, né, mas
infelizmente a gente se submete a isso por necessidade, né bicho, por
necessidade mesmo, a gente precisa pagar conta. Eu sustento minha
família, agora vou ter um pivete, também tenho que sustentar o pivete
também, Matagato tem a família dele também, Alisson do mesmo
jeito e Dejane também, e é correria assim, o rolê da banda é uma
forma que a gente encontra, assim, uma válvula de escape, uma rota
de fuga, né, como Deleuze e Guattari falam, as rotas de fuga que a
gente traça, né, pra dar vazão ao que a gente sente, ao que a gente
pensa e tal. (Entrevista com integrantes da banda “Diagnose”.
Jorge Matagato e Frank. 10/03/2018.)

De uma análise acerca de suas próprias vidas, das atividades que tem que
desenvolver para a sobrevivência material, Jorge e Frank desenvolvem em sua arte um
processo que foge a produção de uma subjetividade imbricada ao trabalho, a relação do
homem com a máquina, onde suas habilidades humanas de servir e repetir gestos sem
pensar, movimentos servo-mecânicos, não se restringe ao espaço fabril, o acompanha no
social, em todo seu tempo de vida. Essa percepção de prisão numa fútil rotina se
evidencia no estilo de canto do grindcore, gênero musical da banda, que por meio de
gritos quase incompreensíveis, alternam um sentimento de consciência da exploração
que sofrem e agonia pela perpetuação dessa condição.
Pensando a produção de subjetividade no pós-fordismo, Guattari (1996)
afirma que as subjetividades são do âmbito do corpo social, ou seja, elas não se
encerram no indivíduo – cada indivíduo, uma subjetividade – mas, assim como são
produzidas em série as mercadorias também são as subjetividades e os modos de viver.

Em sistemas tradicionais, por exemplo, a subjetividade é


fabricada por maquinas mais territorializadas, na escala de uma
etnia, de uma corporação profissional, de uma casta. Já no
sistema capitalistico, a produção é industrial e se dá em escala
internacional. Esquematicamente falando, eu diria que, assim
como se fabrica leite em forma de leite condensado, com todas
as moléculas que lhe são próprias, injeta-se representações nas
mães, nas crianças, como parte do processo de produção
subjetiva. (GUATTARI & ROLNIK, 1996. p. 25)

Concordando então que o triunfo do neoliberalismo e sua constante situação


de crise trazem consigo uma mudança social e antropológica, esse sistema, a partir de
seus dispositivos constrói jogos de subjetivação nos conjuntos sociais (NEGRI, 2016), e
essas subjetividades por ele criadas podem até se diferir, mas são caracterizadas como

67
“modelizadas” por agirem e promoverem a continuação do modo de vida que ele impõe,
sendo por ele mesmo (a partir de seus dispositivos) fabricadas.
Essa perspectiva, desenvolvida nos estudos foucaultianos, principalmente os
de 1977 – 197866 e 1978 – 197967, onde o autor intenta compreender os mecanismos
operados na população para transformação da mesma de sujeito produtor para sujeito
produtivo, e continuada nas análises de Guattari (1985, 1996), trazem à noção de sujeito
e subjetividade características processuais, ou seja, totalmente relacionadas às relações
de produção e de poder (se for possível trata-las em separado), nas palavras de Negri a
obra foucaultiana, a partir de agora, trata-se de aprofundar a transformação dos corpos
produtivos e dos modos e vida, afirmando definitivamente que os modos de vida se
tornaram meios de produção. (NEGRI, 2016)
É justamente esse caráter formativo processual do campo subjetivo que abre
espaços de resistências e linhas de fuga.
A subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes
tamanhos: ela é essencialmente social, e assumida e vivida por
indivíduos e suas existências particulares. O modo pelo qual os
indivíduos que vivem essa subjetividade oscilam entre dois extremos:
uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à
subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de
criação, na qual o indivíduo se apropria dos componentes da
subjetividade, produzindo um processo que eu chamaria de
singularização. (GUATTARI & ROLNIK, 1996. p. 33)

Conceituado como singularização, esse processo de desvio da subjetividade modelizada,


mas que também traz traços desses modelos, – deve ser lembrada, que assim como na
perspectiva micropolítica, traços do majoritário também estão inscritos no corpo
daqueles que elaboram fugas da normalidade – não tem relação com a singularidade,
pois essas construções de processo de singularização se dão em construções coletivas, o
corpo social é coletivo.
Dentro deste mesmo sistema (que modeliza) são produzidas coletivamente
subjetividades não adequadas, recepções rebeldes dessas subjetividades padrões que a
nós são colocadas. As dinâmicas sociais de construção coletiva, em suas
heterogeneidades, fazem pulular acontecimentos que fogem à lógica da figura social
majoritária e o Marginal integra esse movimento.

66
Segurança Território e População.
67
O Nascimento da biopolítica.

68
Eu ontem fui na igreja, e não vi nada, nada demais/ Sentada
ouvindo um papo, de quem não sabe nada nada demais/ Meu
lado Verônika, cobrava nossa felicidade/ Ei, bonito, porque a
gente não se vê mais tarde?/ Minha cama é sua e você sabe
aonde me encontrar/ Montada todo dia e nem a morte vai me
desmontar/ Ei man, todos os guetos e não guetos esperam por
mim.
(Testemunha de Trava. Veronika Decide Morrer, 2016)

Abordando também instituições com grande presença na sociedade, e que


ganham cada vez mais espaço e voz entre a população brasileira nos últimos anos,
trazendo consigo discursos de ódio e enfrentamento às figuras sociais minoritárias e
suas lutas, as músicas de Veronika, participante da segunda edição do FFCM, trazem as
percepções de uma travesti sobre “esses símbolos de repressão em um mundo onde não
se pode mais ser livre”68.
Esse movimento, trazido por Verônika, mas presente em outras
performances artísticas, nos ajuda a entender o que se opera no Festival aqui estudado.
Ao considerarmos a subjetividade enquanto uma produção corrente nas diversas
dimensões sociais, como foi afirmado acima, grupos sociais majoritários69 investem,
produzem e fabricam essas subjetividades modelizadas, produzem indivíduos
deslocáveis ao sabor do mercado (GUATTARI, 1985). Assim, os movimentos de
singularização são práticas coletivas – pois a própria ideia do sujeito que constrói só,
voltado para sua individualidade já é um processo formador e perpetuador do modo de
produção individualista que conhecemos – formadoras de maneiras diferentes de
pensar/viver frente as tendências sociais, podendo ser opositoras diretas a elas ou apenas
divergentes, e traçando ações de abandono.
Lá na escola ninguém fala comigo/ todo mundo me acha muito
esquisito/ eu sou afim da garota do lado/ mas ela tá afim do carinha
ricaço/ sinto mal mas tudo bem/ na saída da escola vou passar no
armazém/ vou cheirar cola até me acabar (3x)/ ouvindo punk rock/ [...]
você diz que isso me faz mal/ derrete o cérebro coisa e tal/ se a
destruição é meu final/ nada importa se o mundo tem destino igual.
(Cheira cola. Jonnata Doll e os Garotos Solventes, 2016)

Além de personagens sociais excluídos pelas regras majoritárias de gênero e


comportamento, como a travesti e o usuário de cola, nas apresentações do marginal,

68
Fala de Verônika em entrevista ao programa Cultura Livre.
https://www.youtube.com/watch?v=Wj8hXlaWXO4&t=1324s Acessado em 12/03/2019
69
Me refiro a majoritário não no sentido quantitativo, mas na relação de espaço de fala, ação e
influência nos jogos sociais. Aqueles que são os sujeitos das verdades instituídas.

69
vemos emergir figuras esquecidas pelas próprias sociedades que a produzem, tomando
casos veiculados comumente na grande mídia, como o do pedófilo Walber, que é
exposto de maneira ácida, numa levada punk rock.
Senhor Walber tem uma esposa/ E dois filhinhos afetados/
Sempre no meio da madrugada/ Senhor Walber trata os filhos
como um tarado/ Senhor Walber gosta de crianças/ [...] Senhor
Walber muito simpático/ Senhor Walber muito sorridente/ As
mães nunca percebem/ Que o senhor Walber é um grande
demente.
(Senhor Walber. Jonnata Doll e os Garotos Solventes. 2014)

Após expor o processo de singularização operado no Marginal, onde seus


artistas, trazendo para as luzes do undergroud figuras sociais excluídas e invisibilizadas,
reconhecem ao viver essas vidas outras, que as formas modelizadas de que nos fazem
desejar o que os poderes desejam, despotencializam enormes espaços para compreender
aqueles que vivem próximos de nós e que podem ser nós, os marginais.
Numa de suas viagens ao Brasil, incursão essa que virou livro, Guattari
(1996), em uma de suas entrevistas, afirma sua noção de marginalidade. Segundo ele as
pessoas-margens, são vítimas de uma segregação cada vez mais controlada, e o são por
não entrarem nos enquadramentos dominantes. Portanto, há processos de
marginalização na medida em que a sociedade se torna mais totalitária e circunscreve a
subjetividade dominante a qual cada um deve se conformar (ROLNIK & GUATTARI,
1996).
Trazendo uma perspectiva que envolve a modelização subjetiva, cujo
escritos acima já atestam a minha concordância com o autor, essa fala deixa alguns
pontos que o estudo, a vivência e a semântica do Festiva Fortaleza Cidade Marginal
mostram outras características da tal “marginalidade”.
A concepção de marginalidade exposta pelo autor francês traz consigo uma
passividade, sendo fruto de processos sociais externos a ela e cujo aqueles que atrelados
a pecha de marginal, restam o escape aos dispositivos de controle que lhes oprime.
Porém, nos Marginal, e isso é o que liga as performances artísticas – sejam
da música, poesia e performance – do evento é firmada uma marginalidade afirmativa.
Essa operação ética, aqui nomeada marginalidade afirmativa, é observada no momento
em que, nas artes apresentadas, seus autores mostram ciência dos processos de
pauperização e marginalização das classes trabalhadoras, e posto isso, reafirmam a
recusa da corrida contra essa marginalização, mais que isso, afirmam a vida marginal e

70
suas múltiplas perspectivas como necessárias para a gritar suas diferenças, e viver seus
eternos processos de singularização.

4.3 DIA DE MARGINAL


Depois de mais um almoço normal de domingo, a ansiedade já começava a
aparecer, tinha conversado com Henrique pela manhã e já estava marcado de se
encontrar aqui em casa e depois sair. Durante o dia já tinha visto e revisto vídeos de
outras edições, ouvido Jonnata Doll e os Garotos Solventes, Lascaux, New Model e
Plastique Noir, pensando o tempo todo no que iria acontecer, afinal, era dia de
Marginal.
Pegamos o ônibus sentido centro, que nos deixaria próximos do Casarão do
Benfica, mas resolvemos descer antes, na praça da Gentilândia, para lá comprar cigarros
e bebidas mais baratas, de lá, fomos a pé, cruzando a avenida 13 de maio e a avenida da
Universidade, até chegar na Carapinima. Chegamos cedo, pouco antes das 15 horas,
horário marcado para o início do evento, aproveitamos que poucas pessoas tinham
chegado e compramos os ingressos, que por serem um dos primeiros vendidos custou 5
reais, o flyer já avisava, “R$5 para os 100 primeiros R$10 após”. A bilheteira do evento,
que só depois, durante as entrevistas com os organizadores do evento descobri que se
chamava Dona Clara, confirmava “ainda tá cinco!” e após o pagamento pintava o dedo
mindinho de esmalte amarelo, identificação para entrar e sair do espaço.
Com um certo fluxo de entrada e saída, percebi que estavam nos últimos
toques da organização dos instrumentos das primeiras apresentações, resolvemos dá um
tempo lá fora, bebendo, observando os que viam chegando, o movimento dos ônibus na
avenida, que vez por outra, no abrir as portas desciam pessoas em direção ao evento.
Aos poucos chegavam os corpos que dariam forma àquela experiência
artística, punks, góticos, outras tribos urbanas ou só pessoas com afinidades artísticas
semelhantes, em sua maioria jovens, cuja característica mais comum era estar vestidos
com roupas escuras, que variavam entre coletes, camisas, coturnos e chinelos e
materiais de bandas locais. Iam pouco a pouco entrando no Casarão, enquanto outros
entre conversas, bebidas e cigarros, ficavam ali pela calçada.
Ainda do lado de fora, assim como a maioria das pessoas ali, começamos a
encontrar amigos e víamos chegando alguns artistas que iriam se apresentar, Jonnata,
última apresentação do evento, e por mim a mais esperada, entrava e saía o tempo todo,

71
por ser um dos organizadores. Com o som montado e após alguns ruídos, que supus que
fossem testes de som, um Dj começou a “discotecar”, então entramos.
O espaço físico do local tinha mudado um pouco em relação às outras
edições, o chão estava todo cimentado, os pequenos buracos e partes de terra, assim
como a mesa de sinuca que ficava perto do bar tinham sumido. O Casarão 70, por ser um
espaço de eventos de muitos grupos sociais diferentes, ia aos poucos, a partir de seus
donos, fazendo mudanças estruturais, algumas legais, como a reforma e ampliação do
palco, outras um pouco inviáveis para o Marginal, como a disposição de cadeiras e
mesas no espaço em frente ao palco.
Nas laterais do espaço e perto do bar, que ficava no fundo, lado oposto ao
palco, estavam montadas estruturas, basicamente compostas por mesas e varais, ali nas
mesas comercializavam zines, lanches, camisas de bandas da cena local e bandas
conhecidas internacionalmente, enquanto nos varais também se alternavam camisas,
livros, zines de coletivos e lambes. No bar, já se formava a fila, de onde cada um saía
com sua bebida, na maioria das vezes vinho.
Mas dessa vez, o Marginal, já conhecido no underground em virtude do
sucesso das edições anteriores atraía mais públicos e artistas. Em meio aos sons pós-
punk e New wave que o Dj Sombra dava o play, uma atmosfera “Dark” se misturava a
pessoas que transitavam de maiô, com o corpo coberto com creme branqueador de
pelos, conhecido como “Blondor”, em uma mescla de performance/bronzeamento, no
sol da tarde que já não ardia como mais cedo.
No vai e vem de conversas e danças é a vez dos poetas, a poesia marginal,
trazida pelo integrantes da B1, coletivo que organiza sarais de poesia nas regiões
periféricas da cidade, como Jangurussu e Pici, debate e expõe os “poetas de lugar
nenhum”, abordando suas relações com a cidade, artes e os poderes que buscam
captura-las, e os sujeitos marginalizados das periferias de Fortaleza, mas expressam um
movimento global de marginalização e exclusão
A vida continua/ Porém, a poesia pausa, pesa, pisa, pousa e pulsa em
cada um de nós/ Escute minha voz/ Pois, pela paz tirei o pino da
granda carregada de amor e joguei/ Para ver quem se joga no amor/
Para ver quem ouve o clamor da saberdoria/ Ou quem compreende a
dor da periferia/ Dona Maria, eu também preferia/ Ver os seus, ver os
meus/ Entupindo as bibliotecas, e ocupando as cadeiras/ Do que
entupindo as cadeias e ocupando as algemas/ Literatura, te tira do tiro
da viatura [...].

70
O capítulo II aborda um pouco dos grupos que ali transitam e criam no Casarão sempre um novo
espaço a partir de suas práticas.

72
(Jardson Remido, Integrante da B1, A Literatura te tira do tiro da
viatura.)

Com efervescência constante, porque o marginal não para, logo se inicia a


apresentação da primeira banda da noite, Lascaux, que se pronuncia como a constante
expressão por aqui utilizada “Lascou”, Jorge Alexandrez, vocalista da banda, em meio à
um rock sincopado e com marcações cadenciadas, que logo geram no em alguns
participantes do Festival uma dança sinuosa, fala dos “garotos do Magueiral”,
Trenzinho e Riacho, lugares conhecidos por serem pontos de venda de drogas, mais
uma vez, sujeitos externos às dinâmicas do trabalho “honesto e de bem”, mas que
interagem, a partir do que comercializam, com vários grupos sociais, estabelecidos ou
outsiders (ELIAS, 2010), saem de seu anonimato que todos conhecem, mas fingem não
ver, e vem à cena, por meio da arte (en)canta-os.

Garotos do Mangueiral/ Trenzinho e Riacho/ Mary Jane do Jardim/


Aquilo que você desenterrou/ Negão, eu guardo seu segredo/ Com
amor/ Porque você é o rei do crime, sim/ Fortaleza nights are dead/
Got to legalize it/ Don't be scared/ Lets smoke a toco dancing 'round
the square/ Vá em frente/ Siga o canal/ O cheiro é sinistro/ A vida é
real/ Vida real/ Boca quente/ Bairro vertical/ Entre sem ser visto/ Pra
não dar moral/ Não dar moral [...]
(Garotos do Mangueiral, Lascaux, 2017)

Continuando uma proposta presente e basilar do Marginal, a próxima banda


que se apresentou, foi Daniel Peixoto e os Héteros Cearenses. Com a longa trajetória de
Daniel, cujo trabalho mais lembrado foi o duo de eletro punk Montage, a proposta de
mesclar “novos e antigos”, apesar dos antigos sempre apresentarem novos trabalhos,
impedindo a estagnação e a mesmice que parece não ter lugar nesse evento nômade.
Com o decorrer do evento, aumentavam o número de pessoas no espaço,
mesas e cadeiras já não eram possíveis, todos em pé, agora, curtiam aquele momento de
piração, que como me falou André Moura “eu sou o disciplinado pra todo mundo pirar.
Eu preciso ser disciplinado pra dá vazão a piração alheia e pra deixar tudo nos
conformes”.
Resolvi sair um pouco, pensando em ver as dinâmicas ao redor do evento,
ao chegar lá fora, a concentração de pessoas estava maior que no começo do Festival,
ali alguns grupos conversavam, enquanto outros negociavam com Dona Clara preços
mais baratos para o ingresso, que na maioria das vezes apesar de uma resistência inicial
dela, eram feitos acordos e esses corpos insubmissos entravam e curtiam a festa. Ao

73
perceber esse movimento, lembrei dos trabalhos de (KEMP, 1996) e (DAMASCENO,
2011) que mostram que as relações desenvolvidas nos cenários underground tem uma
flexibilidade e que as configuram como uma ética, que nela se envolve menos uma
prestação de contas econômicas rígidas, e é priorizada a satisfação das partes
envolvidas, para assim tornar possível essas experiências artísticas e compartilhamentos
de sensibilidades.
Na volta ao espaço interno do Festival, ocorria outro momento de poesia,
agora pelo coletivo Okupação, entre poesias, se apresentaram 3 integrantes com
números distintos, mas que se ligavam ao tratar de temáticas do direito a cidade, a livre
criação de novos espaços libertários dentro dela e a constante repressão das forças
policiais ocorridas nas tentativas de criação de dessas zonas autônomas. Ao término
dessas apresentações, um de seus integrantes fez uma fala acerca dos Carecas do
Brasil71, alertando as últimas ameaças e ataques sofridos e convocando o público
presente a não temerem e não aceitarem manifestação desse grupo fascista, onde no
final todos gritaram palavras de ordem contra os “Carecas”.
Encerrando mais apresentações de poesia e performance, a música
continuou, agora ao som dos Dj’s, que mantinham a animação do espaço enquanto se
posicionava a próxima banda. Com a identificação de quem ia tocar, muitas pessoas
logo foram se aproximando do palco, a Diagnose, banda presente na cena desde anos 90
seria a próxima a se apresentar, com um grindcore ensurdecedor. Não foi diferente do
que o público imaginava, a guitarra com som sujo e a bateria freneticamente rápida
despertava um ânimo indescritível e logo se formou a roda de pogo, conhecida como
roda punk, cuja origem vem das danças protagonizadas pelos punk de 70. Os corpos
sem ritmo claro, assim como a música, se alternavam entrando e saindo, se empurrando,
se divertindo, me lembro de ter perdido meu chinelo, que só fui recuperar no final do
show.
Durante as pausas entre as músicas, Matagato, vocalista da banda, fazia
falas acerca das opressões sofridas pelos trabalhadores e demais grupos das camadas
sociais mais baixas e excluídas, reafirmando várias vezes seus lugares sociais de
trabalhador, tanto ele como os demais membros da banda, desenvolviam suas falas

71
Grupo de extrema direita que prega e age contra pessoas negras, contra homossexuais, moradores de
rua e outros grupos minoritários e vulneráveis. Assim como são intolerantes, para eles, as opiniões e
grupos políticos contrários as suas visões, como comunistas, anarquistas, punks e etc.
https://www.opovo.com.br/noticias/fortaleza/2018/01/dossie-contra-suposto-grupo-skinhead-
cearense-e-entregue-ao-ministerio.html

74
numa crítica ao sistema de trabalho atual, que suga do trabalhador para produzir coisas
totalmente alheias à ele, e falas contra a política institucional “Se fosse esperar pela
merda dessa política, que existe nessa merda de país, desse bando de corruptos filho da
puta aí que só levanta pra fuder com a gente, a gente tava tudo fudido, cara”. As falas,
em sua maioria, eram “respondidas” por gritos de apoio do público participante, o que
aumentou ainda mais a energia e disposição das rodas de dança no show, e muito me
lembrou as falas e a estética dos punks do Ceará da década de 90, cartografados por
Damasceno (2011), talvez, a trajetória do grupo, que se inicia em 89, os fazem trazer
características não tão comuns hoje, mesmo a banda tendo alterado várias vezes seus
componentes.
Logo com o dispersar das pessoas mais próximas ao palco, em virtude do
fim do show, se inicia de uma de maneira repentina uma performance, Natália Coehl,
artista presente no Line-up do evento, traz uma performance que faz o corpo, em seus
movimentos e paradas, fluxos e cortes, falar diferentes linguagens, que de maneira
distinta das músicas apresentadas, compostas por ritmos e letra, ampliam as
interpretações e significados desenvolvidos pelos que ali assistiam. Ocorrendo no meio
do público, um círculo logo se formou, e lá a artista desenvolveu diversas possibilidades
do corpo, sem falas e acompanhada de uma trilha sonora, e uma cadeira como cenário,
na qual ela interagia.
O fim da performance, foi seguido mais uma vez por um Dj. Jonnata,
passava de vez em quando pelo público, e numa dessas passagens perguntei pra ele “tu é
o próximo?”, ele respondeu que sim, e saiu na direção oposta ao palco. Pouco tempo
depois Jonnata Doll e os Garotos Solvente iniciam seu show, e ocorre a hora de maior
êxtase do Festival. Cantando as músicas do seu primeiro disco, homônimo, de 2014, o
idealizador e realizador do festival, trouxe ao palco suas músicas de temática cambiante,
indo de casos de romance adolescente autobiográficas,
Numa tarde de novembro/ Eu resolvi ir, ir até lá/ Eu pus a minha calça
jeans/ Chamei um amigo para me encorajar/ Ah karine pits/ Ah karine
pits/ Imitando um pássaro louco/ Vagandas prendas de jo ken pô/
Ajoelhado no asfalto quente/ Ah Karine porquê não me aceitou/ Ah
Karine pits/ Ah Karine pits.(Jonna Doll e os Garotos Solvente, Karine
Pits. 2014)

até casos e causos do “submundo” social, onde as figuras subjetivas marginais aparecem
e mostram que rexistem reinventando o existir.

75
Já faz muito tempo que eu não vou para o cinema/ Eu tenho gastado
tudo lá na rua de trás/ Já faz muito tempo que eu não vou à
lanchonete/ Eu tenho gastado tudo lá na rua de trás/ Minha casa está
vazia tão espaçosa/ Eu tenho vendido tudo lá na rua de trás/ Eu sei que
a longo prazo isso tudo não me satisfaz/ Mas quando eu vejo você
entrando pela porta/ Eu sinto alguma coisa cutucando a minha nuca
por trás/ Meu nariz coça gostoso enquanto eu penso no mundo/ Eu sei
que estou sorrindo enquanto ele se desfaz.
(Jonnata Doll e os Garotos Solvente. Rua de Trás. 2014)

É trazendo através nas artes o trabalhador que não aguenta mais sua fútil
rotina, o testemunho da travesti que cria e vaga por guetos e não-guetos, ou
simplesmente discutindo sobre o pai de família que abusa de seus filhos, e outras
inúmeras figuras que não tem lugar, não devem ser lembradas, que precisam estar
mortas para que a vida normal e civilizada continue intacta, que os realizadores do
Marginal fazem gritar o que vai muito além de uma concepção de marginalidade, são
processos de singularização que negam uma identidade única, seja ela de gênero
musical, artístico ou de modos de vida, são éticas e experiências marginais e desviantes
que criam e dialogam com experiências de “novos” que já passaram.
O Show vai se encerrando com uma multidão encima do palco, tomando por
vezes o microfone do artista e cantando sua música, ou fazendo o mosh, o pulo do palco
em direção ao público onde são carregados por alguns instantes. A “piração” termina
com a música Cheira Cola, que é cantada por quase todos os presentes em grande

76
animação e empurra empurra. Ao final do show, vários corpos suados e felizes pedem
mais músicas, mas o André agradece a presença de todos e, com a música sendo agora
comandada pelo Dj, um ar de despedida vai dispersando o público, que por volta das
22:30 da noite, vai aos poucos saindo do Casarão, alguns indo curtir em outro local,
outros indo pras paradas de ônibus em direção suas casas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS PARA NUNCA CONCLUIR.


Ante o que foi discutido nesse trabalho foi possível entender as relações que
possibilitaram a realização dos Festivais Fortaleza Cidade Marginal, seus modos de
organização e o elo de coesão das ações artísticas lá ocorridas.
Entendeu-se, então, que uma rede de sociabilidades formada por Jonnata
Araújo e André Moura, a partir das vivências na cena roqueira fortalezense em tempos
anteriores, possibilitou o contato com bandas mais experientes e bandas em estágio
inicial de formação, proposta essa, presente desde a primeira edição do Evento. Os
poetas que lá se apresentaram são, também, frutos dessa rede, que não se restringe à
música, apresar dela ser o elemento aglutinador da cena vivenciada pelos idealizadores
do Festival. Após as primeiras edições e a ampliação dessa rede, dada ao seu relativo,
foram ampliados os contatos artísticos, sendo possível, da terceira edição em diante, a
inclusão de artistas do âmbito performático na programação do festival, formando seu
tripé artístico.
Foi possível constatar, posteriormente, que os modos de organização
utilizados se deram em uma mistura que trazia características das formas normais de
promoção de evento, como o uso de dinheiro e aluguel do espaço para ocorrência do
mesmo, mas essa forma se deu de maneira bastante diferente, pois foi priorizada a
viabilidade de ocorrência da experiência artística. Para isso, foram negociados
flexivelmente preços e até mesmo o pagamento do aluguel do espaço, do som, e as
bandas, que quando mostravam a impossibilidade de tocar de graça receberam apenas
uma ajuda de custo para suprir gastos de transporte.
Se esse método organizativo limitou, economicamente, o Festival, por outro,
garantiu a elaboração dele por meios não cristalizados de produção, como o uso de
editais de fomento à cultura, que segundo seus organizadores, trazem uma série de
controles e impedimentos da liberdade que a experiência artística do Marginal necessita.
Essa liberdade se efetuou na livre curadoria, onde o profissionalismo das bandas se
secundarizou e a temática artística coerente com o evento se tornou o ponto primordial

77
de escolha. Sendo essa lógica de criação coletiva conceituada no âmbito das
micropolíticas.
O entendimento dos modos de fazer desses sujeitos históricos, e o interesse
em responder uma das perguntas iniciais de minha problemática, qual seria o elo de
coesão de um evento multirrítmico e multiartístico, fez com que fosse necessário
deslocar as cenas musicais para os territórios subjetivos.
Desta maneira, com a análise das artes lá apresentadas, sintetizadas nas
canções de Jonnata Doll, Verônica Decide Morrer, Diagnose e outras performances
exibidas na etnografia feita no último capítulo, foi possível cartografar que a
semelhança do Festival ocorre na afirmação da diferença, exposta nas figuras sociais
marginais lá apresentadas. O processo de afirmação de diferentes modos de viver
marginal, conceituei, em uma conversa com os escritos de Guattari (1996, 1985) como
um processo de singularização subjetiva, processo esse que ocorre na medida em que os
sujeitos sociais, ao perceberem suas existências modelizadas pelo modo de
produção/relação dominante, traçam, a partir de criações de desejo coletivo, fugas,
desvios de todo tido, afirmando novas percepções do que vivem/são.
Assim, o Marginal traça uma linha na qual os desvios sociais, singularidades
de todo tipo, devires do não-ser, se mostram potências, expoentes que saem daquele
espaço e podem se reterritorializar no tecido social em novas relações (GUATTARI &
ROLNIK, 1985), afetos e formas de produção não só artísticas, mas da vida como um
todo, em seus infinitos e inconclusos cenários.
Fica claro, nessa pesquisa, a tentativa de cortar as cercas do território
historiográfico, trazendo para análise dos modos de fazer dos sujeitos sociais comuns,
processos que alteram relações no corpo social, ainda que em pequenos espaços e
momentos. Assim, o uso da antropologia, filosofia e psicologia, se tornaram
fundamentais para dar conta da complexidade do acontecimento ocorrente em
sociedades contemporâneas (complexas). Por que não historiografar rompendo o fino
arame que cerca a disciplina histórica, e assim transitar entre terrenos diversos do
conhecimento, se perdendo e se achando neles, embaralhando-os?

78
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80
ARTISTAS PARTICIPANTES DO FESTIVAL FORTALEZA CIDADE MARGINAL.
Bandas (Separadas por Edição).
Primeira Edição.
Assalto Ao Céu
Dago Red
Intuición
Januei
Jonnata Doll e os Garotos Solventes
Máquinas
Monquiboy – Boo
Plastique Noir
Segunda Edição.
Black Knight Frequency
Catholic Youth
Fóssil
Glauco King and The West Wolves
Kazane Blues
Jonnata Doll e os Garotos Solvente
Ouse
Verônica Decide Morrer
Terceira Edição.
Arturo
Alysson dos Santos
Cocaine Cobras
Catatau
Coletivo Maloqueria
Dago Red
Eletrofone
Intuición
Jonnata Doll e os Garotos Solvente
New Model
Quarta Edição.
Alguns Bocados
Implicantes

81
Jonnata Doll e os Garotos Solvente
Lascaux
Malditor Remanis
Oco do Mundo
Velouria
Vitor Colares
Quinta Edição
Betten Helsex
Casa de Velho
Cuspindo pra Cima
Daniel Peixoto e os Héteros Cearenses
Diagnose
Glamourings
Plastique Noir
Terceiro Olho de Marte

Poetas
Primeira Edição
Airton Uchôa
Elizabeth Magalhães
Maria Eli
Segunda Edição
Ayla Andrade
Augusto Azevedo
Geisa Salgueiro
Manolo Fuentes Andante
Raul ávila
Thiago Arrais
Terceira Edição
David Alencar
Gabriel Peixe
Jardson Remido
Jesuana Prado
Layza Falcão

82
Samuel Denker
Quarta Edição
Ayla Andrade
Coletivo Baticum e o Esbravejo
Dedé Calixto
Ediane Soares
Quinta Edição
Coletivo B1
Coletivo O Corpo Sem Órgãos
Coletivo Okupação

Performers/ Intervenções
Terceira Edição
Baculejo Poético
Da Crise ao Porvir
Índio Buriti
Lucas Vasconsellos
Marcelle Louzada
Varal da Poeticagem
Quarta Edição
Andreia Pires
Pierrot Almeida
Quinta Edição
Marcelle Louzada
Nathália Coehl

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