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Caderno Seminal Digital – Vol. 8 – Nº 8 – (Jul/Dez-2007). Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.

ISSN 1806-9142
Semestral
1. Lingüística Aplicada – Periódicos. 2. Linguagem – Periódicos. 3. Literatura -
Periódicos. I. Título: Caderno Seminal Digital. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

CONSELHO CONSULTUVO
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Publicações Dialogarts é um Projeto Editorial de Extensão Universitária
da UERJ do qual participam o Instituto de Letras (Campus Maracanã) e a ÍNDICE:
Faculdade de Formação de Professores (Campus São Gonçalo). O objetivo
deste projeto é promover a circulação da produção acadêmica de qualidade,
com vistas a facilitar o relacionamento entre a Universidade e o contexto
sociocultural em que está inserida.
AS INTERTEXTUALIDADES NO ROMANCE A MULHER QUE
O Projeto teve início em 1994 com publicações impressas pela ESCREVEU A BÍBLIA ............................................................................... 6
DIGRAF/UERJ. Em 2004, impulsionado pelas dificuldades encontradas no ADRIANA APARECIDA DE FIGUEIREDO FIUZA - UNESP-ASSIS /
momento, surgiram, com recursos e investimentos próprios dos coordenado- UNIOESTE
res do Projeto, as produções digitais com vistas a recuperar a ritmo de suas
publicações e ampliar a divulgação. ONOMATOPÉIA: FENÔMENO SUI-GENERIS? ............................... 21
ALEXANDRE MELO DE SOUSA - UFAC
A ANATOMIA DA PERDA:THE SNOW MAN, DE WALLACE
STEVENS .................................................................................................. 32
ANDRÉ CECHINEL - UFSC

Visite nossa página: UM RELATO DE TRABALHO COM LEITURA/REDAÇÃO EM


LÍNGUA PORTUGUESA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E
ADULTOS (EJA)...................................................................................... 44
http://www.dialogarts.uerj.br
AYTEL MARCELO TEIXEIRA DA FONSECA - UERJ
REFLEXÕES SOBRE A OBJETIVIDADE NA MÍDIA IMPRESSA: O
APAGAMENTO DA FONTE EM NOTÍCIAS DE JORNAL.............. 61
BRUNO DEUSDARÁ - UERJ
O MISTÉRIO DA LIBÉLULA OU UM PERCURSO PARA A
PROGRESSÃO COGNITIVA DO SIGNO............................................ 77
CLÁUDIO LUIZ ABREU FONSECA - UFPA-MARABÁ / UERJ
A ARTE E O REAL DE PASSAGEM, O CINEMA ............................. 94
CRISTIANO DE SALES - UFSC
CIBERMÃE: UMA VIAGEM TECNOLÓGICA ATRAVÉS DA
LITERATURA........................................................................................ 108
DANIELLE DE PAIVA LOPES - USP
FONOLOGIA E LETRAMENTO: SUPORTE SEMIÓTICO PARA O
ENSINO DA LÍNGUA MATERNA...................................................... 121 AS INTERTEXTUALIDADES NO ROMANCE A
DARCILIA SIMÕES - UERJ / PUC-SP MULHER QUE ESCREVEU A BÍBLIA
MARIA SUZETT BIEMBENGUT SANTADE - FIMI / FMPFM / UERJ
AIRA SUZANA RIBEIRO MARTINS - UERJ / CPII Adriana Aparecida de Figueiredo Fiuza
SEMIÓTICA: EXTRAPOLANDO AS FRONTEIRAS DO LÉXICO UNESP-Assis / UNIOESTE
.................................................................................................................. 134
DULCE HELENA PONTES-RIBEIRO -UERJ RESUMO:
A mulher que escreveu a Bíblia está narrado em primeira pessoa, apresen-
MADAMA SUI: MEMÓRIA E EROTICIDADE COMO FORMAS DE
tando um narrador autodiegético. Conta a historia da suposta escritura da
RESISTÊNCIA AO PODER ................................................................. 156
Bíblia por uma mulher extremamente feia, intercalando episódios religiosos
ELIANE MARIA DE OLIVEIRA GIACON - UEMS e sexuais em um tom satírico e paródico. O objetivo deste estudo é revelar
como o narrador reescreve a história da Bíblia sob o código do humor e da
UM VERÃO ARDENTE: UMA LEITURA DO ROMANCE DE
ironia, utilizando a intertextualidade como artifício de escritura.
ISABEL RAMOS.................................................................................... 173
PALAVRAS-CHAVE:
ELISABETE CARVALHO PEIRUQUE - UFRGS Literatura Brasileira, romance contemporâneo, intertextualidade.
O EROTISMO EM CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: O
AMOR COMO SAGRADO RITUAL POÉTICO OU COMO MERO
RITUAL SAGRADO.............................................................................. 184
Os livros falam sempre de outros
MARIA ALCIENE NEVES - UFSJ livros e toda história conta uma
ADELAINE LA GUARDIA RESENDE - UFSJ história já contada.
(ECO, 1985: 20)
ROMANCE DO OLHAR DANDI DE CLARICE LISPECTOR ....... 201
MÁRIO GUIDARINI - UNISUL
DUAS FORMAS DE INTERTEXTUALIDADE EM CARTAS AO Introdução
EDITOR EM NEWSWEEK ................................................................... 210
MAURÍCIO MOREIRA CARDOSO - UECE A menção a Umberto Eco possibilita o início da discus-
são para a compreensão do processo de intertextualidades que
O ENSINO DO TEXTO EXPLICATIVO ............................................ 231
se estabelecem no romance A mulher que escreveu a Bíblia,
VANILDA SALTON KÖCHE - UCS publicado em 1999. Esta obra de Moacyr Scliar nada mais é do
ADIANE FOGALI MARINELLO - UCS
ODETE MARIA BENETTI BOFF -UCS
que aquilo que nos definiu Julia Kristeva (1974: 64) ao estudar
a obra de Bakhtin: “um mosaico de citações” que ajudam a
construir o discurso da narrativa, criando um efeito de colcha
de retalhos marcado pela fragmentação e presença dos mais
variados textos e discursos que se inserem no discurso da fic-
ção.

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As citações principais, como o próprio título da obra so, peculiaridades que podem ser encontradas também na per-
sugere, pertencem à Bíblia, possivelmente um dos livros mais sonagem da feia de Scliar.
importantes para a civilização ocidental no sentido de referir-se Ao levantar a hipótese de que a primeira versão da Bí-
à cosmogonia e às crenças religiosas. Nas mais variadas religi- blia teria sido escrita por uma mulher, proporcionou o mote
ões, o discurso bíblico é sempre visto como o discurso da ver- para Scliar escrever seu romance, que inverte todo o sentido
dade, paradigmático às condutas humanas. Talvez por esse das regras sociais presentes no livro sagrado, pois a escritora da
motivo, por sua cultura judaica e pela inspiração do Livro de J. ficção não estaria de acordo com a versão oficial dos textos
(1992) de Harold Bloom, Scliar tenha aderido à idéia de escre- bíblicos. Por tal razão, procurará mostrar ao leitor uma versão
ver um romance que pudesse contestar, sob o recurso da paró- mais humanizada, portanto, menos mítica da história bíblica.
dia e da carnavalização, as passagens das escrituras sagradas. A narrativa inicia-se relatando no tempo atual a história
O objetivo deste estudo é revelar como o narrador rees- de uma mulher feia, que se submete a uma terapia de vidas
creve a história da Bíblia sob o código do humor e da ironia, passadas com um charlatão, ex-professor de História, para de-
utilizando a intertextualidade como artifício de escritura. O cifrar o enigma de sua solidão, concluindo que em outra encar-
título da obra juntamente com a epígrafe, uma citação dos dois nação, há três mil anos, ela teria escrito a primeira versão da
primeiros parágrafos do Livro de J., marcam o início dos ecos Bíblia. Enfim, o falso terapeuta acaba por apaixonar-se pela
intertextuais no romance, que no desenrolar da narrativa ex- personagem, sendo trocado por outro amante pela mesma. Para
pandir-se-ão a outros autores e textos. a compreensão de sua história, a feia atual deixa um livro para
o historiador, que rememora suas aventuras da vida passada,
O romance como um encaixe de histórias quando pertencia ao harém de Salomão.
Utilizando aqui também a técnica da mise en abyme, o
Utilizando a técnica da mise en abyme, o romance de narrador encaixa a experiência da feia atual à história da feia do
Scliar se encaixa no Livro de J. de Bloom que se encaixa na passado, propiciando ao leitor um salto temporal para a época
Bíblia, assim sendo, A mulher que escreveu a Bíblia traz refe- do rei bíblico. Esta segunda parte do romance é o relato da tra-
rências destas obras, constituindo uma relação de intertextuali- jetória dessa personagem, filha de um pastor de cabras do de-
dade com elas. serto, que vai a Jerusalém para torna-se uma das setecentas
No Livro de J., a partir da tradução de David Rosem- esposas do rei Salomão. Por ser a única letrada do harém, o
berg do antigo hebraico para o inglês, Bloom examina os textos soberano a encarrega de escrever a história do povo judeu, ain-
de J., autor das mais antigas histórias da Bíblia judaica, postu- da que para isso ela entre em choque com os circunspetos es-
lando uma identidade feminina para este autor. Para o crítico cribas oficiais da corte. Porém a personagem enfrenta um pro-
norte-americano, J é um escritor, do ponto de vista estético, da blema muito grande, sua condição de feia.
altura de Homero, Shakespeare e Tolstoi, e do ponto de vista O enredo, porém, supera a mera aventura amorosa da
psicológico e literário, feminino, possivelmente uma mulher da feia, com momentos de reflexão sobre a meta-narrativa presen-
corte do rei Salomão (p. 15). A maior criação de J. é o perso- te na obra, seu sentido, razão de ser e a conflitante relação com
nagem Yahweh, que Bloom caracteriza por exuberante e genio- a vida, onde se destaca a perspectiva dos marginalizados: da

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mulher dos tempos bíblicos, feia e pertencente a uma tribo do Que tudo seja belo e inesperado (...)
deserto, representando, portanto, uma situação periférica. A A presença desta antítese de um autor contemporâneo
obra se constrói a partir de dicotomias como a beleza e a feiúra, para enfocar um texto que aparentemente abordará como tema,
a sabedoria e a ignorância, o antigo e o contemporâneo, o sa- o livro mais antigo do mundo comprova que os grandes clássi-
grado e o profano, que vão dar o tom carnavalizado ao roman- cos da humanidade, no caso a Bíblia, estão em constante enlace
ce. com os temas atuais. Além disso, demonstra logo de início o
No romance de Scliar como se pode observar são várias tom irônico, a inversão da beleza pela feiúra já implanta na
as relações intertextuais que se estabelecem, sendo as passa- obra um matiz paródico que estará presente em todo o roman-
gens bíblicas as que mais se sobressaem. Levantar-se-á aqui as ce.
mais relevantes para o estudo da obra. Diferentemente do poema de Vinícius, na narrativa a
feiúra é fundamental porque ela é a porta de entrada para o
Com Vinícius de Moraes conhecimento e para a tomada de consciência da personagem.
A feia só aprende a ler e escrever porque o escriba de sua tribo,
A narrativa inicia com a seguinte afirmativa: “A feiúra também medonho, sente pena da mulher que nunca se casaria e
é fundamental, ao menos para o entendimento desta história” constituiria família devido à sua aparência. Então, em uma ati-
(SCLIAR, 2002: 19). Tal frase nos remete ao poema “Receita tude transgressora, posto que as mulheres da época não eram
de mulher” de Vinícius de Moraes: alfabetizadas por questões culturais e sociais, como forma de
Receita de mulher oferecer-lhe outra possibilidade de viver, introduz-lhe nas le-
tras.
As muito feias que me perdoem Esta inserção abre-lhe o caminho para um outro mundo,
Mas beleza é fundamental. É preciso o do conhecimento que a retirará da solidão, visto que a leitura
Que haja qualquer coisa de dança, qualquer coisa e a escrita proporcionarão momentos de comunhão com o sa-
de haute couture grado, e posteriormente, sua elevação ao posto de grande escri-
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize elegantemente em azul,
ba na corte do rei Salomão, da mulher que escreverá a história
como na República Popular Chinesa). da humanidade. Nestes termos afirma a feia:
Não há meio-termo possível. É preciso Bastava-me o ato de escrever. Colocar no perga-
que tudo isso seja belo. É preciso que súbito minho letra após letra, palavra após palavra, era
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas algo que me deliciava. Não era só um texto que
pousada e que um rosto eu estava produzindo; era beleza, a beleza que re-
Adquira de vez em quando essa cor só encontrá- sulta da ordem, da harmonia. Eu descobria que
vel no terceiro minuto da aurora. uma letra atrai outra, que uma palavra atrai outra,
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se essa afinidade organizando não apenas o texto,
reflita e desabroche como a vida, o universo. O que eu via, no perga-
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente minho, quando terminava o trabalho, era um ma-
preciso pa, como os mapas celestes que indicavam a po-

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sição das estrelas e planetas, posição essa que não atenuara consideravelmente. Eu agora era... fei-
resulta do acaso, mas da composição de misterio- nha. Uma condição perfeitamente suportável e
sas forças, as mesmas que, em escala menor, gui- que, comparada ao que eu passara, representava
avam minha mão quando ela deixava seus sinais até um estado de inesperado bem-estar, de felici-
sobre o pergaminho. dade, quase.
(SCLIAR, 2002: 41) (SCLIAR, 2002: 39)
A leitura e a escrita possuem no romance um simbolis- Aqui o narrador expressa a elevação que sofre a feia
mo relevante já que podem representar a comunhão com o di- devido à sua nova condição, que a colocará em vantagem em
vino e, no caso da feia, a superação de sua inferioridade em relação às outras mulheres do harém de Salomão e até mesmo
relação ao mundo. Segundo Chevalier (2002: 385), “a escrita de sua irmã, considerada bela. No palácio do rei é a capacidade
surge a imagem de Deus, tem uma origem sagrada, depois i- de narrar da feia que a põe em evidência. Salomão a considera
dentifica-se com o homem. É o sinal visível da atividade divi- mais que as outras mulheres, dando-lhe inclusive um quarto
na, da manifestação do Verbo. Desta forma, pode-se ressaltar a fora do harém, ao lado do seu nos aposentos reais, embora a
importância que o ato de ler e escrever adquire na narrativa. paixão que a feia sentisse por ele não fosse correspondida.
Para alguns estudiosos mulçumanos as letras do alfabe- A beleza da irmã não se compara ao conhecimento ad-
to são consideradas elementos constitutivos do próprio corpo quirido pela personagem, pois trata-se de uma situação efême-
de Deus (CHEVALIER, 2002: 385), o que poderia explicar os ra, a beleza perde-se com o passar do tempo enquanto a sabe-
sentimentos da feia ao traçar seus primeiros esboços: doria permanece para a eternidade. Esta dicotomia está
Quando dei por mim, estava traçando a primeira presente no texto de Scliar, sendo revelada pelo espelho, que
letra do alfabeto – o alef, que é o começo de tudo. constitui o leitmotiv da obra.
Que emoção. Deus, que emoção. Eu olhava aque- O espelho, do latim speculum, segundo Chevalier
les vacilantes traços com a satisfação de um artis- (2002: 33-34), “reflete a verdade, a sinceridade, o conteúdo do
ta contemplando sua obra-prima.
coração e da consciência, é a revelação da verdade, é o instru-
(SCLIAR, 2002: 39)
mento da iluminação, símbolo da sabedoria e do conhecimen-
De acordo com a tradição judaica o “alef” ou “aluf” é a
to”. No caso da feia, o cristal revela duas realidades, a da feiú-
primeira letra do alfabeto hebraico, possuindo três significados:
ra, até então desconhecida pela personagem que nunca tinha
mestre, professor e maravilhoso. A letra indica o início de tudo,
visto sua imagem refletida, e a da sabedoria, porquanto esta
pode ser comparada ao “alfa” do alfabeto grego. Simbolica-
transparece a partir da identificação da feiúra ancestral da mu-
mente na cultura hebraica significa que há um criador, Deus é o
lher e de sua simbologia como elemento de iluminação do sa-
mestre do universo, o que remete à idéia de que o domínio das
ber. É importante notar como na obra a imagem do espelho
letras é o encontro com o sagrado, a unidade entre o homem e o
reflete também a imagem da própria estrutura do recurso da
universo. Por tal razão a personagem sente-se quase feliz e me-
mise en abyme, na projeção de uma narrativa na outra.
nos feia ao delinear suas primeiras letras:
Naquele curto espaço de tempo eu mudara. Já não
me sentia tão feia. Meu rosto continuava o mes-
mo, mas a sensação da fealdade intrínseca [...] se

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 11 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 12
Passagens bíblicas Um outro relato que há no romance é o famoso julga-
mento de Salomão a causa de duas mulheres que disputam um
Aparecem no decorrer de toda a narrativa várias passa- bebê recém nascido. Na Bíblia o episódio encontra-se no Pri-
gens do Antigo Testamento com uma roupagem “nova”, paró- meiro Livro dos Reis, fragmento que narra o reinado de Salo-
dica, que subverte a versão oficial da Bíblia. Os episódios rela- mão. A narrativa bíblica relata a história de duas prostitutas
tados são aqueles mais clichês, de cunho popular, que deram à luz praticamente juntas, entretanto, uma das crian-
principalmente os do livro de Gênesis, que narram o início da ças morre porque uma das mães ao dormir junto ao filho sufo-
criação do mundo e da existência humana na terra e os da épo- ca-o sem querer. À noite, esta mulher troca o filho morto pelo
ca de Salomão, uma vez que o tempo do romance é justamente filho vivo da outra mãe. Ambas comparecem ao palácio real
o do período da corte do rei. para que Salomão, considerado o rei da sabedoria e da justiça,
Uma das primeiras alusões às escrituras sagradas refere- julgue o caso.
se à condução dos israelitas por Moisés à terra prometida. Na O desfecho é largamente conhecido, o rei manda cortar
Bíblia, o livro do Êxodo, cuja autoria é dada a Moisés, relata a a criança ao meio, mas a verdadeira mãe roga que não se cum-
fuga dos israelitas do Egito, conduzidos pelo patriarca, à terra pra às ordens do monarca, doando o filho vivo para a outra
prometida, passando por muitas dificuldades, entre elas a tra- mãe. Sabiamente, Salomão percebe aquela mulher como a ver-
vessia do Mar Vermelho e a peregrinação pelo deserto. dadeira mãe, capaz de abdicar do filho para preservar seu bem
Na obra, há uma menção à empreitada de Moisés, que estar.
no romance é representado pelo pai da feia. Esta quando domi- No romance de Scliar a mesma cena é relatada em tom
na a arte da escrita relata a história do próprio pai, o patriarca paródico e mais dramático que na Bíblia. Nestes termos:
de sua tribo no deserto: Pára! – ordenou ao soldado, que se deteve, como
Falava de meu pai; um homem bonito e vigoroso, que congelado. Dirigindo-se à mulher que havia
um líder que conduzia sua gente pelo deserto até gritado, proclamou: - És a verdadeira mãe, o grito
o oásis junto à montanha: aqui construiremos que ouvimos foi o da tua maternidade. O filho é
nossas casas, aqui fundaremos uma grande cida- teu, podes pegá-lo.
de. (SCLIAR, 2002: 61)
(SCLIAR, 2002: 41) O discurso das escrituras sagradas é visivelmente mais
O texto bíblico também faz referências a passagens por contido, menos afetado que o discurso do romance. Tal proce-
oásis no deserto e elucida a origem de Israel, o que possibilita dimento é explicado pela construção hiperbólica do mito de
estabelecer uma relação com o romance. O discurso bíblico Salomão que se realiza na narrativa scliariana. Como na Bí-
está inserido pela voz do pai da feia “aqui construiremos nossas blia, a imagem do rei é edificada sobre a égide do homem a-
casas, aqui fundaremos uma grande cidade”, estas são as pala- bençoado por Deus com o dom da sabedoria e da justiça, bens
vras de Moisés iluminado para encontrar o local da terra santa. maiores que se pode querer na terra. Portanto, como homem
É um discurso que já está no imaginário popular seja por meio sábio e justo, julgar era uma de suas atividades prediletas, em-
da leitura da Bíblia ou pela refração destes textos no cinema. bora esta pudesse acarretar-lhe algum trabalho.

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Dos episódios reconstruídos de Salomão, o que mais se riqueza proporcionam-lhe poderes suficientes para portar-se de
destaca é a visita da Rainha de Sabá, constituindo um ponto modo transgressor para a época, viajar sozinha com uma comi-
forte de intertextualidade, uma vez que os textos do Cântico tiva para conhecer Salomão e render-lhe homenagens por meio
dos Cânticos estão citados literalmente no romance e a presen- de oferendas, que lhe possibilitariam momentos apaixonados
ça da rainha representa o ápice dos conflitos da narrativa, devi- com o rei de Israel.
do à sua beleza e ao interesse que despertou no rei. O texto do Cântico dos Cânticos escrito pelo rei de Isra-
Na Bíblia a passagem está no Primeiro Livro dos Reis. el é o escolhido para referir-se ao tipo de diálogo refinado que
Reconta a visita da rainha que apresenta três enigmas para os amantes (Salomão e a Rainha de Sabá) estabeleciam durante
comprovar a sabedoria do rei Salomão, que responde todas as o ato sexual. Nota-se que há uma reescritura de quase todos os
perguntas sem deixar nenhuma dúvida. Como recompensa de fragmentos do livro bíblico, mas de forma paródica e carnava-
seus conhecimentos, o monarca recebe uma doação: lizada. O discurso do Cântico sai do contexto das escrituras
Presenteou o rei com cento e vinte mil talentos de sagradas para o de uma relação sexual, subvertendo seu signifi-
ouro e grande quantidade de perfumes e pedras cado sagrado, ainda que o suposto texto de Salomão tenha um
preciosas (...). A frota de Hirão, que trazia o ouro caráter visivelmente sensual e erótico, como se constata:
de Ofir, trouxe também grande quantidade de Ah!, Beija-me com os beijos de tua boca!
madeira de sândalo e pedras preciosas. Porque os teus amores são mais deliciosos que o
(p. 379-80) vinho,
Na obra de Scliar a personagem da Rainha de Sabá O teu nome é como um perfume derramado:
também está construída a partir do mito da beleza e da riqueza. Por isto amam-te as jovens.
Considerada a mulher mais bela entre todas as mil mulheres do (BÍBLIA, 1989: 826)
harém, visita o rei para conhecer sua sabedoria e riqueza, ao Os versos do Cântico apresentam um campo semântico
mesmo tempo em que desfruta de suas qualidades masculinas, (“beija”, “beijos”, “boca”, “amores”, “deliciosos”, “vinho”,
como a beleza, o sexo e a sabedoria para seduzir, hiperbolica- “perfume”, “amam”, “jovens”) que insere o leitor em uma am-
mente enfatizadas no romance na criação do mito de Salomão. biente de voluptuosidade, contrariamente a todo o discurso da
Nestes termos: Bíblia. O leitor certamente é surpreendido quando se depara
Tratava-se da soberana de um lendário país cuja com a beleza erótica dos versos sagrados.
localização ninguém sabia ao certo: ficava na A- Na obra de Scliar a mesma sensualidade e erotismo são
rábia, segundo uns, na África, segundo outros. recriados por meio da citação entre aspas de fragmentos do
Era famosa, essa mulher, pela beleza e pela audá- texto bíblico e da intervenção do narrador, que rearranja o dis-
cia e pela riqueza. De há muito desejava conhecer curso para o contexto do casal, como se comprova:
Salomão, cuja fama de sábio chegara até ela.
Para minha surpresa, e profunda inveja, o diálogo
(SCLIAR, 2002: 171)
deles era refinadíssimo – e em versos. “Tua boca
O caráter mítico da personagem está presente no discur- cubra-me de beijos”, dizia ela, no hebraico que
so do narrador que não sabe precisar a localização de seu país, aprendera especialmente para a viagem, e conti-
remontando a um espaço mítico, a uma época em que não ha- nuava: “São mais suaves que o vinho tuas carícias
via registros de lugar ou do tempo. A beleza juntamente com a

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e mais aromático que perfumes é o teu nome, por Faremos para ti brincos de ouro
isso as jovens de ti se enamoram”. (E depois fi- Com glóbulos de prata.
cam no harém, curtindo a raiva, acrescentaria (BÍBLIA, 1989: 826)
eu.). Mais uma vez o narrador interroga sobre a conduta do
(SCLIAR, 2002: 184) mito por meio dos parênteses, ironicamente julgando-o por
Contudo, o elemento paródico se faz presente também “cretino”. É conveniente perceber como ocorre o embate entre
pelo comentário que entre parênteses estabelece a feia. Aqui o a voz do Salomão bíblico e a do narrador, que se faz ouvir co-
narrador mostra-se irônico ao revelar a condição de segundo mo o off do teatro. Esta intromissão proporciona a subversão
plano das mulheres do harém, disputando entre si as atenções do texto bíblico, ainda que a voz do narrador seja uma voz es-
de Salomão, agravada com a chegada da nobre viajante. tranha ao discurso bíblico.
No romance, poder-se-ia questionar a contribuição da Outras alusões às passagens bíblicas também poderiam
ironia para a manifestação da voz do autor na narrativa ao con- ser exploradas no romance, como as diversas vitórias do rei
siderar-se este recurso não apenas como um tropo retórico, mas Davi narradas no Primeiro Livro das Crônicas, a criação do
também como forma de demonstração de posicionamento ideo- homem, a história de Caim e Abel e o dilúvio que Deus envia
lógico, ou “uma estratégia discursiva que opera ao nível da como forma de castigo aos homens relatados no primeiro livro
linguagem (verbal) ou da forma (musical, visual, textual)” do Pentateuco. Todas estas narrativas estão recriadas dentro da
(HUTCHEON, 2000: 27). narrativa que a feia se vê obrigada a escrever, contando a histó-
Ainda segundo Linda Hutcheon, tal procedimento signi- ria da humanidade até chegar ao tempo da corte de Salomão. A
fica que “a ironia é a transmissão intencional tanto da informa- princípio ela é convidada para relatar as histórias de seu povo,
ção quanto da atitude avaliadora além do que é apresentado no entanto, é censurada por contá-las sob um outro viés, um
explicitamente” (2000: 28). Portanto, é por meio da ironia que olhar feminino que modifica a versão do texto bíblico original.
se deflagra o autor implícito que julga as atitudes de Salomão, Nota-se que a reescritura que a feia estabelece é contes-
como se observa no seguinte fragmento: tatória, pois critica e coloca em dúvida o discurso da verdade
Às parelhas dos carros de faraó eu te comparo, impetrado pela Bíblia oficial, assim como toda a tradição de
minha amada. Graciosa é tua face, gracioso é o culpa que as escrituras sagradas postulam desde as origens com
teu pescoço. Faremos para ti brincos de ouro,
a “culpa original” de Adão e Eva até o último livro do Antigo
com filigranas de prata. (Ouro fornecido por ela.
Prata fornecida por ela. Que cretino.)
Testamento, revogada na Bíblia cristão apenas no Novo Tes-
(SCLIAR, 2002: 184) tamento. Desse modo:
Assim, me vi, no dia seguinte, escrevendo a histó-
Como no trecho anteriormente examinado, embora aqui
ria tal como eles queriam. A mulher sendo fabri-
sem as aspas há a inserção de fragmentos do Cântico dos cânti- cada a partir de uma costela de Adão. A mulher
cos: dando ouvidos à serpente. A mulher provando do
A égua dos carros do Faraó fruto da árvore do Bem e do Mal. Em suma: a
Eu te comparo, ó minha amiga; mulher cagando tudo. E aí vinha aquela história
Tuas faces são graciosas entre os brincos, do Caim e do Abel, os dois filhos do casal (dois
E o teu pescoço entre os colares de pérolas.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 17 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 18
filhos: nenhuma filha. Ou seja, não teriam chance nas sociedades antigas? A obra de Scliar é muito simbólica
de se reproduzir, nem por incesto). O Abel pastor neste sentido de explicitar a superioridade da feia pelo domínio
(de ovelhas, não de cabras), o Caim agricultor; os da arte da escritura.
dois brigam, em vez de optar por um empreendi- Por fim, poder-se-ia avaliar que tanto a polifonia, como
mento agropastoril conjunto, o que seria mais ló-
a carnavalização e a paródia formam um conjunto no processo
gico e rendoso.
(SCLIAR, 2002: 138)
de intertextualidades que se estabelecem na obra de Scliar pos-
O narrador discorda claramente da versão oficial da cri- to que são estratégias discursivas que enriquecem o texto literá-
ação da mulher a partir da costela de Adão, de sua fragilidade rio.
diante da serpente, da história de Caim e Abel como dois ir-
mãos sem oportunidade de reprodução da espécie humana, ou Referências Bibliográficas:
seja, a feia parece questionar a inverossimilhança que a narrati-
va bíblica apresenta. Por fim, conclui de forma irônica que me- BÍBLIA Sagrada. Tradução dos originais mediante a versão dos
lhor negócio teriam feito os irmãos se tivessem optado por um Monges de Maredsous (Bélgica) pelo Centro Bíblico Católico.
“empreendimento agropastoril conjunto”, inserindo no discurso 67 ed. São Paulo: Claretiana, 1989.
antigo das escrituras sagrados o discurso da contemporaneida- BLOOM, Harold. O livro de J. Tradução de Monique Balbue-
de do mundo business. na. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de
Considerações finais símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.
ECO, Umberto. Pós-escrito ao Nome da rosa. Rio de Janeiro:
A mulher que escreveu a Bíblia é uma releitura das es- Nova Fronteira, 1985.
crituras sagradas, ou seja, do discurso da “verdade”. O narrador HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia: ensinamentos
questiona essa suposta “verdade”, interrogando sobre uma su- das formas de arte do século XX. Tradução de Teresa Louro
posta identidade cultural cristã, ocidental, branca e masculina. Pérez. Lisboa: Edições 70, 1989.
Agora é uma voz feminina quem narra a história da humanida- KRISTEVA, J. Introdução à Semanálise. São Paulo: Perspec-
de. Esse outro olhar inverte a versão oficial das escrituras sa- tiva, 1974.
gradas, questionando os fatos históricos narrados, como a miti- SCLIAR, Moacyr. A mulher que escreveu a Bíblia. 7ª reim-
ficação de Salomão e da Rainha de Sabá. pressão, São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Além desta questão, caberia a interrogação acerca de
um dos temas do romance, o da feiúra, que é enfaticamente
mencionado ao longo da narrativa. No contexto atual da ditadu-
ra da beleza (juventude, magreza), onde o parecer está acima
do ser, não seria a obra de Scliar uma forma de questionamento
destes valores que a sociedade de consumo nos impõe, quando
o conhecimento e a sabedoria perderam o valor que possuíam

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 19 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 20
ONOMATOPÉIA: FENÔMENO SUI-GENERIS? Embora demos maior destaque ao aspecto estilístico,
mais exatamente fonoestilístico, não deixamos de salientar ou-
Alexandre Melo de Sousa tros aspectos: um deles é a relacionar o referido fenômeno de
UFAC
imitação sonora com a noção de arbitrário do signo, para isso
assinalaremos algumas considerações a respeito do liame que
RESUMO: se estabelece entre som e sentido.
Este trabalho apresenta alguns enfoques sobre a onomatopéia: fenômeno Outro aspecto consiste em mostrar o tratamento do fe-
lingüístico que consiste na imitação ou reprodução aproximada de ruídos nômeno na lingüística estrutural, mais especificamente na Mor-
por meio dos sons da linguagem. São apresentadas algumas discussões de
base teórica, a saber: a relação som – sentido, o tratamento da onomatopéia
fologia, no tocante à formação de palavras.
no âmbito morfológico, a manifestação onomatopaica em outras línguas, a
onomatopéia como recurso estilístico, entre outras; baseadas nas quais, 1 - A relação som – sentido
concluímos que a onomatopéia é melhor apreendida na esfera fonoestilísti-
ca. Inicialmente queremos traçar uma discussão sobre o elo
PALAVRAS-CHAVE: que se estabelece entre som e sentido. Para tanto, faz-se neces-
Onomatopéia, fonologia, formação de palavras, estilística. sário tecer algumas importantes considerações sobre a natureza
do signo lingüístico, já que este reúne em si a relação entre
conteúdo e expressão: mecanismo no qual se baseia a lingua-
Considerações iniciais gem humana.
De acordo com Jakobson (1969), a relação entre conte-
A onomatopéia (termo de origem grega onomatopoiía – údo e expressão constitui, desde a Antiguidade, um constante
criação de palavras – que foi transferido para o Latim onoma- problema para a ciência da linguagem, mas que foi retomado,
topoeia – invenção de palavras) tratada, simultaneamente, co- após longo período de esquecimento por parte dos lingüistas,
mo um fenômeno lingüístico e uma figura da retórica, é carac- por Ferdinand de Saussure, que retomou a concepção e a ter-
terizada, comumente, como a semelhança, por meio da minologia da teoria apresentadas pelos estóicos:
imitação ou da reprodução que se estabelece entre o som de Essa doutrina considerava o signo (sêmeion) co-
uma palavra e a realidade por ele representada, seja de fenôme- mo uma entidade constituída pela relação entre o
significante (sêmainon) e o significado (sêmai-
nos naturais, seja de ruídos de animais, entre outros. Para
nomenon). O primeiro era definido como "sensí-
Grammont (1971: 377), a onomatopéia é sempre uma aproxi- vel" (aisthêton) e o segundo como "inteligível"
mação, jamais uma reprodução exata. (noêton), ou então, para utilizar um conceito mais
Este artigo, cujo escopo é a onomatopéia, tem por obje- familiar aos lingüistas, "traduzível”.
tivo precípuo apresentar, panoramicamente, alguns enfoques a (Jakobson, 1969: 98-9).
respeito do referido fenômeno lingüístico, com vistas a locali- Segundo Saussure (1995), a linguagem une a expressão
zá-lo num dos âmbitos dos estudos da linguagem. ao conteúdo por convenção, não por natureza. De acordo com a
teoria saussureana, o signo lingüístico não estabelece relação

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 21 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 22
entre uma coisa e uma palavra, mas entre um conceito (signifi- convencional das mesmas, mas simplesmente relativizá-lo, na
cado) e uma imagem acústica (significante), como explica o medida em que a associação som-sentido depende de fatores
autor: nitidamente culturais e não universais. Quer dizer: a relação
O laço que une o significante ao significado é ar- som/sentido é “sentida” como motivada pelos falantes, mas, no
bitrário ou então, visto que entendemos por signo contexto de uma análise científica, vemos que esta relação é
o total resultante da associação de um significante puramente intuída, mas isto não garante focos de universalida-
com um significado, podemos dizer mais sim- de à relação sígnica. A motivação, pois, existe, mas não é tão
plesmente: o signo lingüístico é arbitrário.
universal que destrua o arbitrário do signo, ainda que, no seio
Assim, a idéia de "mar" não está ligada por rela-
ção alguma interior à seqüência de sons m-a-r que
de uma cultura, a motivação onomatopaica seja maior que para
lhe serve de significante; poderia ser representada signos como mesa e cadeira.
igualmente bem por outra seqüência, não importa Rigorosamente, há dois tipos de subtrair:
qual (...) a) aqueles determinados pelo sistema, como arbi-
(SAUSSURE, 1995: 81-82) trário relativo: a exemplo dos derivados e com-
De acordo com Saussure, “arbitrário” quer dizer que o postos, no plano da expressão, e da metáfora e
significante não possui nenhum vínculo natural com a realida- da metonímia, no plano do conteúdo
de. Podemos dizer, então, que o significante é "imotivado" em (Cf. GUIRAUD, 1980);
relação ao significado. Para o autor, tal constatação é aplicável b) aqueles determinados pela relação som/ sentido,
até mesmo no caso das onomatopéias, cujas imitações aproxi- mediados pelo referente: é o caso da imitação
mativas de certos ruídos naturais poderiam relacionar, equivo- sonora, que consiste numa aproximação dos
cadamente, significante e significado. Então, apresenta os se- sons físicos através de sons lingüísticos; a ilus-
guintes argumentos em defesa de sua posição: tração sonora, que consiste no aproveitamento
a) as onomatopéias, como uma "imitação aproxi- da linha melódica para dar sugestão de que os
mativa" de ruídos, são criadas a partir de sons fonemas estão expressado algo inerente à natu-
vocais padronizados na língua, portanto, são reza do que se comunica. “Assim, a sibilante /s/
convencionais; participa dos exemplos de imitação sonora
b) as onomatopéias tendem a adquirir característi- quando se fala dos assobios, dos sussurros. Se
cas dos demais signos à medida que se integram porém transmite um apelo de silêncio ou sua
ao léxico da língua, sofrendo, por exemplo, alte- impressão de suavidade tem-se uma ilustração
rações morfológicas; sonora”.
c) as onomatopéias tornam-se de importância se- (Cf. MONTEIRO, 1991: 109)
cundária, já que se apresentam um número bem Como vemos a abstração sonora está ligada às sensa-
reduzido na língua. ções naturais, táteis, visuais, excluído as auditivas. Para nos
A despeito das conclusões do mestre genebrino sobre a valermos de Jakobson (1969), neste caso, prepondera a função
natureza das onomatopéias, não há por que demolir o caráter conativa da linguagem.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 23 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 24
Do ponto de vista semântico, há que se fazer a distinção 3 - A onomatopéia nas diversas línguas
entre a onomatopéia primária, que consiste na imitação do som
pelo som e a onomatopéia secundária, que evoca não uma ex- Decorrente do seu valor imitativo, mas dependente da
periência acústica, mas um movimento. cultura, o que torna a imitação sonora onomatopéia um fenô-
Por fim, é o caso da sugestão rítmica, que resulta da meno intermediário entre o arbitrário absoluto e o arbitrário
tensão do relaxamento e da distensão prosódicos de que resulta relativo, há que se enfatizar o caráter relativo do fenômeno
o ritmo (Cf. MASSINI-CAGLIARI, 1992). Mas não vamos nos onomatopaico. Lopes (s/d) exemplifica com os seguintes ver-
deter neste aspecto relacionado à motivação sonora. Voltemos bos relativos a “miau”:
ao nosso interesse central: a imitação sonora ou onomatopéia. Francês – miauler
Inglês – mew
2 - A onomatopéia na formação de palavras Alemão – miauen
Outros exemplos poderiam ser aduzidos aqui, mas cre-
A onomatopéia ou imitação sonora é um fenômeno mos que é o suficiente para mostrar que a onomatopéia não
marginal em morfologia, porque não segue a nenhuma sistema- fere o principio da arbitrariedade do signo, mas também não se
tização. Não parte de constituintes mórficos, sendo antes uma circunscreve a pura comunalidade de que fala Saussure (1995).
formação ex nihilo, de modo que não tem tratamento especial Nem é particular o suficiente para contribuir specimen de arbi-
em morfologia, que trata dos processos regulares e sistemáticos trário absoluto, nem universal o suficiente para ilustrar a tese
de formação de palavras. Representativo desta concepção é naturalista.
Rocha (1998: 99), que caracteriza o fenômeno como assistemá- Visto que a onomatopéia exige uma afinidade entre o
tico e imprevisível. Reporta-se a Melo (1975: 225-6), que se nome e o sentido, seria de esperar que esses itens fossem os
refere à onomatopéia ou imitação sonora nestes termos: mesmos em todas as línguas. No entanto, como foi mostrado,
outros processos de formação vernácula difíceis cada língua convencionou a onomatopéia a seu modo. E, acres-
ou impossíveis de sistematizar: obscuras analogi- cente-se que, mesmo quando traduzidas graficamente, forma-
as, "intuição poética, espírito chistoso, vivacidade ções reconhecidamente onomatopaicas têm poucas semelhan-
de imaginação dão nascimento a novas palavras, ças nos diferentes idiomas. Para alguns estudiosos da
que não se podem enquadrar nos processos clás-
linguagem, o efeito onomatopaico depende da situação em que
sicos, ou ao menos não obedecem aos planos e
normas habituais. Quem explicará satisfatoria-
se pronuncia uma palavra, assim “uma palavra não é uma o-
mente palavras como maçaroca, serelepe, bagun- nomatopéia se não for sentida como tal (GRAMMOND, 1971:
ça, ganzepe, beldroega, bigorrilhas, desmilingui- 380).
do, borocoxô, saçaricar, chinfrim, fuzarca,
pilantra, ranzinza, fuzuê, esbregue, calhorda, sa- 4 - A onomatopéia como fenômeno estilístico
lafrário, bisbórria, safardana, I mazorro, sala-
bórdia, engazopar, et similia. A nosso ver a onomatopéia, no âmbito de uma cultura
(apud ROCHA, 1998: 99) de uma língua se caracteriza mormente como num fenômeno

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estilístico e expressivo. Faz parte do que Troubetzkoy (1970) Como acrescenta Câmara Jr (1978: 29), a Fonoestilísti-
denominou forma expressiva, que pode ser assim definida: ca aproveita traços fonéticos "que não estão sistematicamente
Ces difficultés peuvent être résolues au mieux si utilizados nas oposições e nas correlações dos fonemas e dos
I'on attribue I'étude dês procedes phoniques d'ex- grupos fonêmicos". Cabe a ela, portanto, destacar o valor ex-
pression et d'appel à une branche scientifique par- pressivo das vogais e das consoantes, as ilustrações e os simbo-
ticuliere, à savoir Ia phonostyfistique. On pourrait lismos sonoros, as sugestões rítmicas entre outros recursos so-
Ia subdiviser d'une part em stylistique expressive
noros. Dá-se destaque ao critério acústico a fim de detectar as
et em stylistique appellative, et d'autre part em st-
ylistique phonétique et em stylistique phonologi-
impressões auditivas que despertam os fonemas.
que. Si dans Ia description phonologique d'une Aqui nos aproveitamos da proposta de Herculano de
langue on doit étudier Ia stylistique phonologique Carvalho (1974) a respeito da qual fala Martins (2000: 48-49) e
(aussi bien au point de vue de Ia fonction expres- assim que tipifica as onomatopéias:
sive qu'à celui de Ia fonction d'appel), Ia tache a) como sons imitativos produzidos acidentalmente
propre de cette description doit toutefois rester pelo homem, possuem caráter momentâneo e
I'étude phonologique du "plan représentatir. La individual; são uma imagem intencional do som
phonologie n'a done pás à être subdívisée em natural. Têm a possibilidade de repetir-se em si-
phonologie expressive, appellative et représente- tuação semelhante e valer como sinal (natural e
tive. Lê nom de "phonologie" peut comme aupa- intencional). As onomatopéia criadas por escri-
ravant être reserve à I'étude de Ia face phonique
tores ficam geralmente restritas a um único ou a
de Ia langue, de valeur représentative, tandis que
\'étude dês éléments de Ia face phonique de Ia
poucos empregos.
Jangue, de valeur expressive et de valeur appella- b) como objeto sonoro de configuração definida e
tive, será faite par Ia "stylistique phonologique", valor significativo constante, dentro de uma de-
qui de son cote ne serait qu'une partie de Ia "pho- terminada comunidade lingüística, constituído
nostylistique". por uma combinação de sons correspondentes
(TRUBETZKOY, 1970: 29) aos fonemas da língua dessa comunidade: zás,
Dessa forma, segundo o autor, apenas os elementos fô- pum, pimba, dlim-dlão, tlim-tlim, tic-tac, etc. –
nicos de caráter expressivo e apelativo têm valor para a Estilís- são as onomatopéias propriamente ditas.
tica, já que esta atenta para a manifestação expressiva da lin- Os dois tipos onomatopaicos, referidos anteriormente,
guagem. Como Câmara Jr. (1978) observou, ao dedicar espaço não se integram ao sistema léxico-gramatical da língua, uma
à Fonoestilística, em seu estudo, Trubetzkoy pretendia, na ver- vez que não constituem verdadeiras palavras; “são sinais quase
dade, mostrar que não deveriam ser incluídos no conceito de totalmente destituídos de valor denotativo próprio e represen-
fonema os traços expressivos nos quais se revelam "a manifes- tam globalmente uma situação e não desempenham função na
tação psíquica ou o apelo", já que o fonema está exclusivamen- frase”. Cada uma delas, assim como as interjeições, tem valor
te relacionado com a função representativa. de toda uma frase (cf. MARTINS, 2000: 49):

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a) como significante que desempenha um papel fala cotidiana quanto na criação poética, haja vista o conhecido
sintático na frase e recebe uma categoria grama- “Sinos de Belém”, de Manuel Bandeira e “Incêndio em Roma”,
tical, temos uma forma lexicalizada e não uma de Olavo Bilac. Em abordagem imanente-fenomenológica, do
onomatopéia propriamente dita. É comum a o- polonês Roman Ingarden, (Cf. CEIA, 2005), os itens onomato-
nomatopéia tornar-se substantivo ou verbo. O paicos fazem parte do estrato fônico, portanto, possui tratamen-
signo onomatopaico é uma verdadeira palavra; to mais adequado no âmbito da Fonoestilística.
seja qual for o seu valor conotativo, denota o Contudo, por não ser universal para as línguas naturais,
objeto que significa e desempenha função na não fere o princípio da arbitrariedade do signo. Apenas relati-
frase, como os substantivos pio, uivo, estalo, ri- viza o princípio.
bombo, ou verbos como tilintar, bimbalhar,
zumbir, etc. “Estas palavras estão ligadas ao seu Referências Bibliográficas:
significado em razão de convenções e, indepen-
dentemente de seu valor conotativo, exercem CÂMARA Jr. J. M. Contribuição à estilística portuguesa. Rio
função representativa”. de Janeiro: Ao Livro Técnico. 1978.
(MARTINS, 2000: 49) CARVALHO, J. H. de. Teoria da linguagem. Coimbra: Atlân-
tida, 1974.
Considerações finais CARVALHO, N. O que é neologismo. São Paulo: Brasiliense,
1984.
Pelo exposto, conclui-se que a onomatopéia é um fe- CEIA, C. “Crítica fenomenológica”. In: Carlos Ceia. E-
nômeno marginal em lingüística, em especial na morfologia, Dicionário de termos literários, 2005. (Disponível em
em que recebe o inexpressivo nome de criação ex nihilo http://www.citadel.edu/faculty/leonard/ISER.html)
(CARVALHO, 1984: 22). GRAMMONT, M. Traité de Phonétique. Paris: Delagrave,
Para Lopes (1961: 20), no entanto, as onomatopéias não 1971.
existem apenas para acudir à falta ou ao desconhecimento de JAKOBSON, R. Lingüística e comunicação. São Paulo: Cul-
certos termos abstratos (como, por exemplo, acontece na cria- trix, 1969.
ção de alguns termos infantis: popó, pipi, memé). São, na ver- LOPES, E. Fundamentos da lingüística contemporânea. São
dade, um recurso expressivo para transmitir um som ou um Paulo: Cultrix, s/d.
movimento contido numa frase, a fim de torná-la mais viva, LOPES, M. T. R. Motivação poética: onomatopéias e palavras
mais comunicativa, portanto, segundo a autora, trata-se de uma impressivas. Lisboa: Estampa, 1961.
“palavra motivada que se mantém em relação com a realidade MARTINS, N. S. Introdução à estilística. São Paulo: T. A.
que exprime – ou por imitação de um som, ou por sugestão de Queiroz, 2000.
um movimento, ou ainda por simultaneidade dos dois”. MASSINI-CAGLIARI, G. Acento e ritmo: fonética do portu-
O raio de ação da onomatopéia, como vimos, é mais a- guês – elementos musicais da fala, sílaba, duração e acento.
preendido na estilística da expressão, tendo alcance tanto na São Paulo: Contexto, 1992.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 29 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 30
MONTEIRO, J. L. A estilística. São Paulo: Ática, 1991. A ANATOMIA DA PERDA:
ROCHA, L. C. de A. Estruturas morfológicas do português. THE SNOW MAN, DE WALLACE STEVENS
Belo Horizonte: UFMG, 1998.
SAUSSURE, F. de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cul- André Cechinel
UFSC
trix, 1995.
TROUBETZKOY, N. S. Principes de phonofogie. Paris:
Klincksieck, 1970. RESUMO:
A poesia de Wallace Stevens parece assombrada pelo embate entre consci-
ência e realidade. Em outras palavras, o poeta trabalha a distância entre
percepção e realidade, com o intuito principal de expor as inevitáveis atribu-
ições adjetivantes operadas pela mente - nunca podemos, pois, ver as coisas
como elas de fato são. Em The Snow Man, entretanto, Stevens nos mostra os
eventos que decorreriam de uma hipotética visualização absoluta da nature-
za das coisas. A presente investigação se propõe, finalmente, a investigar
justamente esse momento de contato “puro”, em que a mente incide intei-
ramente sobre as coisas que a cercam.
PALAVRAS-CHAVE:
Wallace Stevens; poesia; percepção; imaginação; realidade.

A disputa entre consciência e realidade talvez seja o


grande tema de Wallace Stevens – ao menos tanto seus ensaios
literários quanto a crítica acerca de sua obra assim apontam.
Em seu famoso texto intitulado “The Noble Rider and the
Sound of Words” (1942), por exemplo, Stevens atesta que “it is
not only that the imagination adheres to reality, but, also, that
reality adheres to the imagination and that the interdependence
is essential” (STEVENS, 2005: 644). Em outras palavras, lon-
ge de favorecer qualquer dualismo opositivo, o poeta demons-
tra que a relação entre imaginação e realidade somente pode ser
compreendida a partir da interdependência dos termos, uma
vez que qualquer tentativa de isolá-los resulta automaticamente
na própria dissolução do par. Nesse sentido, se a consciência é
por vezes produtora do real, a essência da natureza nunca pode
ser inteiramente apreendida, fato que atesta a parcialidade e a

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 31 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 32
temporalidade daquilo que entendemos como verdade. Ora, por orientar a poesia moderna, expressos de modo geral nos se-
não estar em total sintonia com o que é visualizado, a consci- guintes versos: “It has to be living, to learn the speech of the
ência situa-se em movimento de perpétua ordenação do real, place. / It has to face the men of the time and to meet / the
isto é, atribuir sentido à natureza significa, também, afastar-se women of the time”. O segundo, publicado por sua vez no con-
dela como verdade inequívoca. junto Transport to Summer (1947), traz novamente à tona a
As premissas acima poderiam ser facilmente acionadas idéia de um código estético para a poesia, anunciado dessa vez
através da leitura do célebre The Man with the Blue Guitar, por uma tríade fundamental: “It Must be Abstract”, “It Must
publicado por Stevens em 1937. Em poucas palavras, o poema Change” e, por fim, “It Must Give Pleasure”. Seja como for, o
aborda, ao longo de 33 seções, a questão da produção do real e importante é notar que a discussão relativa à representação da
seu estreito envolvimento com a consciência que o concebe. A realidade certamente permeia os dois poemas:
primeira seção do poema abre com a imagem de um homem Two things of opposite natures seem to depend
curvado sobre seu violão azul: “The man bent over his guitar, / On one another, as a man depends
A shearsman of sorts. The day was green. / They said, ‘You On a woman, day on night, the imagined
have a blue guitar, / You do not play things as they are’”. Apa-
On the real. This is the origin of change.
rentemente, para os que acompanham a cena, a tarefa do músi-
Winter and spring, cold copulars, embrace
co seria a de “tocar as coisas como elas são”; no entanto, o ho- And forth the particulars of rapture come.
mem que toca, consciente de sua atividade, sabe que as coisas Conforme visto até o momento, para Stevens, o real en-
se modificam justamente no momento em que são percebidas contra-se em um processo contínuo de constituição, ou seja,
pelo violão, seguindo disso a impossibilidade de atender ao nossa percepção da realidade é sempre intermediada por uma
pedido de seu público: “The man replied, ‘things as they are / consciência inevitavelmente participativa, e, portanto, o que
Are changed upon the blue guitar.’”. Muito mais que constatar tomamos por verdade está sempre preso a condições temporais.
a realidade despida de seus adornos, o músico recodifica aquilo Em suma, produzimos verdades para posteriormente descartá-
que canta – a própria cor azul de seu instrumento assim o suge- las, atestando assim uma indispensável insuficiência que dá
re. Resumidamente, o discurso nunca incide totalmente sobre movimento ao par consciência e realidade. Todavia, embora
seu objeto, ou melhor, ao selecionar canto e instrumento, o cônscio do impossível alinhamento completo entre o real e a
homem do violão já delimita seu escopo, transformando-o con- mente que o apreende, o poeta não deixa de apontar a experi-
tinuamente. ência de choque que decorreria de um desnudamento absoluto
A bem da verdade, The Man with the Blue Guitar é a- do primeiro. Colocado de outra maneira, Stevens tenta repre-
penas uma das possíveis referências ao tema percepção / reali- sentar, em alguns de seus poemas, a situação hipotética de uma
dade em Stevens. Dentre outros casos, poderíamos citar Of visualização absoluta das coisas como ela são, ainda que, de
Modern Poetry e Notes Toward a Supreme Fiction, poemas modo geral, sua obra se mostre conhecedora dos limites da
igualmente conhecidos pela auto-reflexividade de seus versos. experimentação. A questão por ele proposta parece ser a se-
O primeiro, presente no livro Parts of a World (1942), esta- guinte: o que aconteceria se, de fato, pudéssemos obter uma
belece, como o título indica, os fundamentos que deveriam

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precisa equivalência entre o que vemos e as coisas tal como mas ela nada diz. “Il vivra désormais dans le secret. Il ne pleu-
são? rera plus” (BLANCHOT, 1980: 117). Essa visão singular, de
Sem adentrar as questões heideggerianas acerca da poe- exposição total ao que é reconhecido, funde completamente o
sia de Hölderlin – questões essas que não somente influencia- interno e o externo, e, dessa forma, impede a identificação de
ram Stevens, mas que também dizem respeito ao que até aqui um campo de imanência interior ao “eu”. Em suma, corpo e
foi dito –, este ensaio se propõe, finalmente, a trabalhar a per- linguagem se desfazem perante a prova do real, pois só a falta
gunta acima formulada a partir do poema The Snow Man, pu- ali resta.
blicado pelo poeta primeiramente em 1921 e a seguir incluído Com efeito, os versos de Stevens assemelham-se ao e-
em Harmonium (1923), seu primeiro livro de poesia. Em linhas vento descrito por Blanchot exatamente pelo registro da reação
gerais, The Snow Man discute mais uma vez o principal assun- de um corpo que, após deparar-se com a concretude do real,
to eleito por Wallace Stevens, a saber, a estreita ligação entre a torna-se estranho a si mesmo. Na esteira dos preceitos imagis-
mente e a cena por ela percebida. Contudo, diferentemente de tas expostos por Ezra Pound no ensaio-prospecto “A Retros-
seus outros experimentos, esse poema tenta dar conta do exato pect”, segundo os quais a poesia deveria visar um “direct tre-
momento em que a percepção esvazia-se por completo para atment of the ‘thing’ whether subjective or objective”
ceder lugar a uma aparição “pura” do real, experiência essa que (POUND, 2004: 84), Stevens escreve uma espécie de poema
resulta inevitavelmente no aniquilamento do “eu” convergente. em fuga, ou melhor, dada a absoluta condensação e impessoa-
Diante da captação da verdade, do cenário em si, qualquer i- lidade dos versos, The Snow Man se oferece como um poema
dentidade fechada se desfaz, e a sensação de perda é inevitável. que intenta, a todo instante, retirar-se da linguagem. Como dito
*** anteriormente, o texto de Stevens pode ser lido, em poucas
A “cena primitiva” é por todos conhecida: Blanchot pe- palavras, como um retrato momentâneo e imaginário da mente
de para imaginarmos uma criança por volta de sete, oito anos, na ocasião precisa em que ela capta a natureza em sua essência.
abrindo uma das cortinas de sua casa e olhando através da jane- Tendo em vista a concisão do poema, cabe citá-lo integralmen-
la. Dentre as coisas que avista, o jardim, as árvores e o muro – te:
a princípio, um episódio corriqueiro. Após cansar-se do que One must have a mind of winter
observa, a criança volta seu olhar para o céu ordinário, de luz To regard the frost and the boughs
cinzenta; “le jour terne et sans lointain” (BLANCHOT, 1980: Of the pine-trees crusted with snow;
117). Eis o que se passa em seguida: esse mesmo céu cotidia-
no, carregado de seus significados passados, abre-se subita- And have been cold a long time
To behold the junipers shagged with ice,
mente, revelando para a criança uma ausência que ela nunca The spruces rough in the distant glitter
antes havia sentido, como se o vidro – seu espelho diário – ti-
vesse quebrado para lhe liberar o significado final de tudo o Of the January sun; and not to think
que existia por trás. À medida que a cena se desvenda, a sensa- Of any misery in the sound of the wind,
ção de destituição parece aumentar progressivamente, até que, In the sound of a few leaves,
enfim, a criança desperta em lágrimas. Procura-se consolá-la,

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 35 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 36
Which is the sound of the land va a cena não alcança uma precisão descritiva, associando-a
Full of the same wind sempre à negatividade, à “miséria ao som do vento” (misery in
That is blowing in the same bare place the sound of the wind), aqueles que ambicionam a verdade de-
vem, por sua vez, deixar a cena falar por si, reduzir suas esco-
For the listener, who listens in the snow,
lhas lexicais a um grupo meramente constatativo. Ora, as con-
And, nothing himself, beholds
Nothing that is not there and the nothing that is.
tradições aqui são, vale lembrar, absolutamente propositais; as
Os versos iniciais do poema descrevem, como se pode impossibilidades afirmam-se a todo momento e, ainda assim, a
ver, uma paisagem de inverno, ou melhor, descrevem a sensa- “mente de inverno” insiste em se insinuar. O “homem de neve”
ção de um espectador perante cenário dominado pela ação da deve falar ocultando-se, precisa anunciar retirando-se; deve,
neve. Na verdade, faz-se necessário aqui chamar a atenção pre- enfim, se possível, pensar pouco: “and not to think / Of any
cisamente para o fato de que a cena contemplada recebe toda misery in the sound of the wind”. Não é casualmente que esse
uma carga avaliativa, que pode ser percebida através de ima- sujeito é referido no poema através do impessoal “one” – “One
gens como spruces rough e distant glitter (“abetos ásperos” e must have a mind of winter”. “One”: qualquer um, ninguém em
“luz distante”). Parafraseando, a imagem do inverno que nos é particular.
retratada passa, pois, por um filtro que pretende qualificar de De qualquer forma, os versos finais de The Snow Man
antemão os efeitos da neve sobre o espaço que ocupa. Esse nos levam a um ponto limite, instante em que revelam o que
ponto é de extrema relevância, principalmente por estar inti- essa “mente de inverno” captaria, então, se sua existência fosse
mamente relacionado à principal proposição do poema. O pri- possível. A situação que temos até aqui é a seguinte: de um
meiro verso de The Snow Man inaugura uma questão que, a lado, a descrição do cenário é feita de modo avaliativo, pois
bem da verdade, só será inteiramente formulada em suas linhas registrar significa, necessariamente, impor uma significação; de
finais, a saber: para o observador presente no poema, apenas outro, a sugestão de uma improvável mind of winter que, após
uma “mente de inverno” (a mind of winter) seria capaz de cap- neutralizar-se, conquistaria o cenário, integrando-se a ele, logi-
tar a cena em pauta tal como ela de fato é, e não como está camente. A questão, entretanto, parece inevitável: o que detec-
sendo por ele representada. Ou seja, para o nosso intermedia- taria a “mente de inverno” em seu estado de pura conexão? O
dor, somente uma mente que se confunda com a própria neve que lhe aconteceria? Como já suspeitávamos, equivaler espec-
pode dar conta do episódio em sua, digamos, essência. Segue tador e cenário significa, ao mesmo tempo, sacrificar o primei-
disso, aliás, o título The Snow Man, alusão ao estado exigido ro para preservar intocadamente o segundo. Finalmente, o ou-
para a apreensão da imagem em si. vinte que “escuta na neve” (listens in the snow), sendo nada ele
Isso que pode ser entendido como um paradoxo funda- mesmo (nothing himself), contempla “nada que não está lá”
mental – confundir-se com o que é observado para melhor per- (nothing that is not there); logo, contempla somente o que está
cebê-lo – constitui o centro de articulação do poema. Em opo- – percebe o “nada” que lá está (the nothing that is). Colocado
sição aos já mencionados adjetivos presentes nas estrofes de outra forma, o snow man não admira nada que não esteja lá;
iniciais, The Snow Man segue em direção a uma sorte de eco- admira sim – e exclusivamente – o “nada” que lá está. O verbo
nomia da linguagem. Em outras palavras, se aquele que adjeti-

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 37 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 38
behold é, aliás, bastante sugestivo para esse ponto de total per- viável, não menos relevante para a compreensão do modo co-
cepção, tendo em vista a precisão por ele próprio sugerida. mo o snow man se porta frente ao cenário. Paralelamente ao
A rigor, a hipótese defendida nas linhas finais de The “nada ele mesmo”, pode-se ler o nothing de nothing himself
Snow Man vem acompanhada de uma notável auto- como um verbo, muito embora tal apreensão esteja gramati-
referencialidade, isto é, se a abertura do poema adjetiva-se para calmente equivocada. Ao invés de um sujeito que não é nada
mostrar a dificuldade de uma correspondência plena entre per- teríamos, então, um sujeito que, na verdade, “esvazia-se” ao
cepção e imagem, os versos finais visam aproximar-se formal- defrontar-se com a aridez do real. Nothing himself – “esvazian-
mente de uma expressão ideal do “nada”, para assim sustentar do-se”, pois. Em poucas palavras, privilegia-se, nesse caso, a
a perspectiva do “homem de neve”. Opondo-se aos efeitos vi- simultaneidade dos eventos; ver e perder-se são agora forças
suais da abertura, as três estrofes finais do poema são marcadas análogas.
por uma circularidade entediante, acentuada principalmente ***
pela repetição dos itens lexicais. Palavras como sound, wind e No livro intitulado L’Intrus, Jean-Luc Nancy aborda a
nothing são reiteradas exaustivamente com o intuito de indicar questão do transplante de órgãos como intrusão indelével na
o vazio constitucional do cenário perante o espectador perfeito. própria identidade do paciente. Partindo de sua experiência
Com efeito, se a linguagem da natureza deve sobressair-se à pessoal – transplante de coração –, o autor equipara o recebi-
presença do espectador, ou melhor, se a paisagem precisa con- mento de um órgão “estrangeiro” à perda dos sinais que até
quistar sua independência, os versos requerem um discurso que então orientavam a vida subjetiva do sujeito. Ora, se o órgão
é “pura natureza” e, portanto, as palavras necessitam permane- vem de outra pessoa, pode-se facilmente pressupor toda uma
cer no limite do inumano. Para tanto, a sonoridade ganha articulação externa ao corpo do paciente, que dele independe e
espaço, o barulho do vento faz-se ouvir: “Of any misery in the é, ao mesmo tempo, responsável pela manutenção de sua vida.
sound of the wind, / In the sound of a few leaves, Which is the Nesse sentido, dada a alienação inevitável perante essas trans-
sound of the land / That is blowing in the same bare place”. ferências exteriores, como sustentar a idéia de um sujeito indi-
Tudo que transcende o vácuo deixado pelo vento corrompe o vidualizado? Como acreditar na completude de um programa
“nada” que ali está realmente manifesto. fisiológico que, curiosamente, depende de algo que lhe é total-
O ponto capital para o presente ensaio continua a ser, mente alheio para se conservar? Esses são alguns dos pontos
todavia, a consumação do encontro entre sujeito e realidade. Se levantado por Nancy no livro:
em Blanchot o vidro quebrado compõe o quadro de destituição Dès le moment où l’on me dit qu’il fallait me
da identidade fechada, em Wallace Stevens, como visto, o pro- greffer, tous les signes pouvaient vaciller. (...)
cesso não se dá de modo muito diferente, fato que pode ser Simplement, la sensation physique d’un vide déjà
deduzido a partir da dualidade da expressão nothing himself. A ouvert dans la poitrine, avec une sorte d’apnée où
princípio, o penúltimo verso de The Snow Man poderia ser tra- rien, strictement rien, aujourd’hui encore, ne
pourrait démêler pour moi l’organique, le
duzido como “Sendo nada ele mesmo, contempla”, sinalizan- symbolique, l’imaginaire.
do-se dessa forma a rejeição de qualquer traço identitário. No (NANCY, 2000: 14–15)
entanto, essa tradução afasta-se de uma segunda interpretação

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 39 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 40
Acrescenta-se a isso a angústia sentida diante de uma não ocorreu; há em mim uma morte que, por sua vez, remete a
vida que, a rigor, teve seu decurso “natural” severamente inter- uma sobrevida originária de outro lugar.
rompido. Como podemos inferir, sem o transplante de coração A mind of winter de Wallace Stevens em The Snow
o corpo seguiria tranquilamente seu rumo em direção ao fim Man não é senão essa intrusão que confunde os limites entre o
programado; contudo, essa suspensão imposta pela cirurgia cria que é interno e externo. Essa mente, que sugere a substituição
um descompasso entre a idade do corpo e aquela do coração gradativa da consciência adjetivante, suspende totalmente a
recebido, alterando significativamente, é claro, a duração da identidade antes fechada do espectador. Como visto, esse mo-
vida do paciente. Essa sobrevida estrangeira, fruto de uma in- vimento é percebido no poema através de sua progressiva cir-
trusão, dificulta a crença de que o corpo que sofre o transplante cularidade, pois o encontro entre cenário e sujeito só pode ser
realmente me pertence. Afinal de contas, como coloca Nancy, representado pela própria isenção da linguagem. A mente
se meu coração me abandona, se ele sai do meu corpo para “transplantada” perde seu desejo de atribuir significado, e seu
somente assim restituir a vida que se encontra ameaçada, até estrangeirismo é notado pelo modo como o observador se au-
que ponto devo referir-me a ele como “meu” órgão? Após o senta para deixar o cenário falar por si. Com efeito, a imagem
transplante, aquilo que bate dentro de mim opera como um tipo já não se diferencia mais daquele que a percebe, e o que ocorre
de mecanismo estrangeiro, transformando-me em uma espécie é sim um processo de equivalência absoluta – dessa equivalên-
de alien para mim mesmo. “C’est donc ainsi moi-même qui cia resta apenas o som repetitivo do vento. Em poucas palavras,
deviens mon intrus, de toutes ces manières accumulées et o poema de Stevens parece nos dizer que, em suma, o real só
opposées” (NANCY, 2000: 36). pode ser captado através de uma experiência alienante. Tal
Segundo Jean-Luc Nancy, finalmente, a força da intru- como em Nancy, o sujeito se perde perante as trocas que o
são está no fato de que, na realidade, ela não pára de ocorrer, e transcendem.
é por isso que nos impede de pensar em termos dicotômicos. Para finalizar, vale citar um poema que, publicado um
Sendo invadido continuamente por algo que me é externo, sou ano antes da morte de Wallace Stevens, mostra um pouco mais
também essa invasão, também aquilo que, a princípio, ainda do tipo de alienação vivida pelo “homem de neve”. Em A Clear
não me pertence, que nunca dominarei por inteiro. O transito é Day and No Memories, o poeta escreve versos que se apóiam
infindável, e minha identidade sempre por vir. Sou estrangeiro inteiramente na própria negação daquilo que apresentam, como
porque sou a invasão que em mim se faz. Ou seja, a morte que se a voz que nos fala procurasse fugir completamente de toda e
era iminente não se apaga inteiramente após a cirurgia; pelo qualquer forma de memória autoconsciente. Novamente, inter-
contrário, “différer la mort, c’est aussi l’exhiber, la souligner” no e externo se confundem em decorrência de uma mente que
(NANCY, 2000: 24). O coração transplantado é registro de se afasta de possíveis relações associativas. Não pertencendo a
uma vida excedente, muito embora solidária a um corpo que nada e também não sentindo nada, a consciência deixa de exis-
ainda está ali e lhe é anterior. “Il y a l’intrus em moi, et je tir, dando lugar a uma percepção exata dessa idéia de ausência
deviens étranger à moi-même” (NANCY, 2000 : 36). Há em absoluta. Tal como em The Snow Man, a mente retira-se para
mim uma vida que, acima de tudo, aponta para uma morte que se unir à imagem do vazio. Nada se conhece, exceto o nada.
Nunca estivemos aqui antes, e nem agora estamos:

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 41 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 42
No soldiers in the scenery, UM RELATO DE TRABALHO COM
No thoughts of people now dead, LEITURA/REDAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA
As they were fifty years ago, NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Young and living in a live air, (EJA)
Young and walking in the sunshine,
Bending in blue dresses to touch something, Aytel Marcelo Teixeira da Fonseca
Today the mind is not part of the weather. UERJ

Today the air is clear of everything.


It has no knowledge except of nothingness RESUMO:
And it flows over us without meanings, O presente artigo é o relato de um o trabalho com leitura / redação desen-
As if none of us had ever been here before volvido com alunos do Centro Supletivo de Ensino Fundamental e Ensino
Médio (InvestUERJ). Tive como objetivo a superação de três obstáculos:
And are not now: in this shallow spectacle,
dificuldade dos alunos em leitura e redação, trabalho artificial com o texto,
This invisible activity, this sense. e escassez do tempo. Para tanto, desenvolvi um curso que articulasse o
“circuito do livro” com a avaliação pautada no portfólio. O “circuito do
Referências Bibliográficas: livro” caracteriza-se pela livre circulação dos livros entre os alunos. O port-
fólio possibilita uma avaliação individual e paulatina. Os estudantes regis-
BLANCHOT, Maurice. L’Ecriture du Désastre. Paris : tram as experiências com os livros. Em sala, esses relatos são trocados, o
que intensifica a interação entre os sujeitos da aula.
Éditions Gallimard, 1980.
NANCY, Jean-Luc. L’Intrus. Paris: Éditions Galilée, 2000. PALAVRAS-CHAVE:
Circuito do livro, portfólio, diálogo, trajetória de leitura.
POUND, Ezra. “A Retrospect”, em John Cook (ed.). Poetry in
Theory – an anthology. Oxford: Blackwell Publishing Ltd,
2004.
STEVENS, Wallace. Poemas / Wallace Stevens (Tradução e Introdução
introdução de Paulo Heriques Britto). São Paulo: Companhia
das Letras, 1987. Em uma época em que o livro compete de forma desi-
STEVENS, Wallace. “The Noble Rider and the Sound of gual com outras fontes de informação e entretenimento, muito
Words”, em Lawrence Rainey (ed.). Modernism – an antho- se discute sobre possíveis “estratégias” de aproximar o estu-
logy. Oxford: Blackwell Publishing Ltd, 2005. dante do mundo da leitura e da escrita.
Como bolsista de Iniciação à Docência, sob o auxílio
dos meus coordenadores, estou tendo a chance de refletir e de
pôr em prática idéias de incentivo à leitura e à produção textu-
al.
Desde março de 2006, dou aulas de Redação para tur-
mas de EJA no Centro Supletivo de Ensino Fundamental e En-
sino Médio (InvestUERJ), que é desenvolvido pela Superinten-

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 43 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 44
dência de Recursos Humanos, através do Departamento de Se- Fonseca e Geraldi (2004), desde 1981, desenvolvem um
leção e Desenvolvimento de Pessoal, na Universidade do Esta- projeto de leitura em parceira com 31 professores de quarta a
do do Rio de Janeiro. oitava série do ensino fundamental, que atuam em 18 escolas
Do InvestUERJ participam docentes, que orientam e da rede pública, em Aracaju. Os 3729 alunos assistidos têm a
supervisionam os bolsistas na preparação das aulas; graduan- oportunidade de escolher, dentre os livros de narrativas longas
dos, que têm a chance de obter experiência regendo turmas de (romances, novelas, peças teatrais) adquiridos ou retirados da
ensino fundamental e médio; e servidores, que são liberados do biblioteca da escola, os títulos de sua preferência. A leitura não
trabalho por três horas, de segunda a sexta, para freqüentarem se limita ao tempo de aula, dado que os alunos podem levar a
as aulas. obra para casa. Adota-se o sistema de rodízio: para cada em-
Nas páginas seguintes, pretendo explanar o trabalho préstimo, o professor faz um registro no caderno de controle.
com leitura e produção de texto desenvolvido por todo um pe- Sem muita burocracia, o livro circula com muita facilidade
ríodo letivo, de 25 de outubro de 2006 a 08 de fevereiro de entre os alunos, formando um “circuito”.
2007, com dezenove alunos do ensino médio, distribuídos em Trabalhando com números bem mais modestos, levei o
quatro fases (Fase A: 10; Fase B: 5; Fase C: 1 e Fase D: 3), “circuito do livro” para as minhas aulas de Redação, no Inves-
tendo como principal objetivo a superação de três obstáculos: tUERJ. Na verdade – diferentemente do objetivo de Fonseca e
dificuldade dos alunos em leitura e redação, que, obviamente, Geraldi (2004), que consistia em destinar, para as leituras de
não é exclusivo ao InvestUERJ; trabalho artificial com o texto, narrativas, um quinto das horas-aula (uma aula por semana) – o
ainda muito presente na tradição escolar; e escassez do tempo, “circuito do livro” ocupou todo o tempo de que dispunha para
visto que à disciplina Redação é reservado apenas um tempo o trabalho em sala de aula (um tempo semanal de 45 minutos),
semanal de quarenta e cinco minutos. sendo, portanto, o centro, a base do curso.
O desenvolvimento do artigo dá-se em dois momentos. Não recorri a bibliotecas públicas para montar o acervo.
No primeiro, detalho o planejamento, estabelecendo relações Optei pela compra e pela doação. No total, reuni 41 títulos, dos
com os textos que me serviram de base. No segundo, relato as quais 14 foram doados, espontaneamente, pelos estudantes.
experiências de sala de aula. Por fim, há a conclusão, cujo títu- Para escolher as 27 obras restantes, baseei-me em conversas
lo é auto-explicativo: Primeiros resultados e últimas considera- informais que travei com meus alunos no semestre anterior.
ções. Tive a preocupação de fazer uma lista bem diversificada, abar-
cando vários gêneros (poesia, crônica, conto, romance, ensaios,
Do planejamento livro de auto-ajuda, peça teatral). Pensei da seguinte forma: se
a obra for do interesse do aluno, se fizer parte da sua trajetória
Com base nos trabalhos de Fonseca e Geraldi (2004), de leitor, não há “pecado”, não há “crime” em trazê-la para sala
Moulin (2001) e Villas Boas (2005), decidi organizar um curso de aula. Um outro cuidado foi não dividir as leituras por séries
articulando o “circuito do livro” com a avaliação pautada no (obra “A” para a primeira fase; obra “B” para a segunda etc.),
portfólio. visto que considero essa classificação de “adequado” e “inade-
quado”, no mínimo, dúbia e, quase sempre, injusta.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 45 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 46
No momento do planejamento, dividi o curso em três O trabalho planejado, portanto, baseia-se em três partes
etapas. O objetivo da primeira é discutir a importância do ato indissociáveis: leitura, produção de texto e análise lingüística.
de ler, considerando o “mapa de leitura” já traçado pelos alu- Acredito que tenha ficado bem claro o caráter dialógico
nos dentro ou fora da escola, e trabalhando composições de do trabalho planejado. Isso porque
diversos gêneros (poesia, letra de música, conto, crônica, do- É próprio da linguagem seu caráter interlocutivo.
cumentário). Trata-se da introdução do projeto. A língua, como se sabe, é o meio privilegiado de
A etapa seguinte é a mais importante. Através de sinop- interação entre os homens. Em todas as circuns-
ses, críticas, adaptações, relatos informais, os livros seleciona- tâncias em que se fala ou se escreve há um inter-
locutor.
dos são apresentados às turmas, para que o aluno possa esco-
(BRITTO, 2004: 118)
lher os de sua preferência. Nesse segundo momento, as
O interlocutor, por sua vez, interfere diretamente na
“regras” são detalhadas: não há tempo máximo para a leitura,
construção do texto. O autor, ao fazer escolhas, tomar decisões,
respeitando-se a caminhada do leitor; caso o livro não agrade, é
baseia-se na imagem que tem do seu ouvinte/leitor. Na escola,
possível interromper a leitura e partir para outro; o único con-
no entanto, a forte presença do interlocutor torna-se um obstá-
trole é uma lista, atualizada semanalmente e exposta no mural,
culo à produção de texto, visto que, quase sempre, escreve-se
com os nomes dos alunos e dos textos que estão lendo.
para um leitor exclusivo: o professor, que com a caneta verme-
A aula, nessa perspectiva, passa a ser um espaço tanto
lha em punho, não deixa passar um erro sequer. Tal onipresen-
para a troca de opiniões, impressões sobre os livros, quanto
ça do interlocutor acaba por artificializar o ato comunicativo
para o trabalho específico com determinado texto – momento
intencionado pela escola (Cf. BRITTO, 2004).
de se explanar o conteúdo programático da ementa (centrado
Na proposta de produção de texto planejada, o leitor
nos três modos textuais básicos: narração e descrição para as
não é apenas o professor, dado que tanto os relatos orais, quan-
fases A e B, e dissertação para as fases C e D).
to os registros por escrito das experiências de leitura são com-
Ressalto apenas que o destaque é para os relatos de lei-
partilhados por todos da turma, sendo um fomentador do diálo-
tura, para o circuito. As aulas expositivas são conseqüência do
go. Na interação, o texto, antes visto como “acabado”, é
diálogo, da troca de experiências entre os alunos. Essa constan-
reformulado, revisado, repensado, tornando-se, de certa forma,
te discussão em sala de aula, por seu turno, leva à produção
uma produção coletiva.
textual, que é ponto de partida para análises lingüísticas. Enfa-
Após decidir pelo trabalho com o “circuito”, selecionar
tizo, assim, a idéia da leitura ser o centro, a base do curso, o
os livros, dividir o curso em três etapas, indaguei-me: como
elemento que desencadeia todo o trabalho com o texto.
avaliar? A resposta partiu da pedagoga Márcia Taborda, ex-
A última etapa é a apresentação de algum trabalho pro-
coordenadora do InvestUERJ, que, após ler a primeira versão
duzido pelos alunos no decorrer do curso. Pode ser uma ence-
do Plano de Curso, sugeriu-me o uso do portfólio, processo de
nação, um sarau, um círculo de leitura – a decisão cabe a eles.
avaliação continuada, o qual:
Como a leitura é essencialmente interdisciplinar, outros profes-
consiste na sua essência de uma pasta individual,
sores podem participar do evento de culminância. onde são colecionados os trabalhos realizados pe-
los alunos, no decorrer dos seus estudos de uma

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 47 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 48
disciplina, de um curso, ou mesmo durante alguns A questão passou a ser: como articular portfólio ao
anos, como ao longo de um ciclo de estudos. “circuito do livro”? Não foi difícil achar respostas. Como a
(MOULIN, 2001: 01) construção da trajetória de leitura é paulatina, constante e indi-
Moulin (2001), além de enfatizar a adequação do port- vidual, a avaliação deve seguir o mesmo ritmo e ser igualmente
fólio aos propósitos do Ensino a Distância (EAD), cujas carac- particular. Surgiu, então, a idéia da pasta Diário de Leitura: um
terísticas são a aprendizagem independente e a auto-avaliação, espaço para o estudante registrar explicações dadas pelo pro-
relata o uso do portfólio na disciplina “Avaliação e Educação a fessor; o grau de interesse pelo assunto estudado; dúvidas, de-
Distância”, do curso de especialização em avaliação educacio- sejos e sugestões; impressões sobre o livro; trechos que lhe
nal, promovido pela UERJ e UFRJ. Os alunos, após a leitura de chamaram a atenção nos livros; textos de sua própria autoria;
um texto, discutiram e definiram um roteiro para a elaboração opiniões sobre o andamento do curso e sobre a forma de traba-
da coletânea de documentos. Destaca-se, pois, o caráter partici- lhar do professor etc.
pativo do processo. Um ponto muito importante: não tira maior nota o aluno
Dos pontos positivos, Moulin (2001) ressalta a possibi- que ler mais livros. Não se trata de uma avaliação quantitativa,
lidade de se traçar, a partir do registro diário que o aluno faz na o que está em jogo não é o número, mas sim a qualidade, a
pasta, o seu perfil, que será o principal instrumento para o pro- profundidade da leitura. Mas como avaliar a qualidade, a pro-
fessor refletir, em parceria com os discentes, sobre o ritmo do fundidade da leitura? Através da troca de experiência em sala
aprendizado, o andamento do curso, as maiores dificuldades e de aula e do registro no diário, deixando-se de lado questioná-
inseguranças, os temas mais interessantes para as próximas rios padronizados que, dentre tantos equívocos, ignoram que a
aulas, etc. Adotar o portfólio significa, então, trazer o aluno leitura é tanto mais multifacetada quanto mais numerosos e
para o centro do processo avaliativo. diferentes os leitores.
Outro trabalho no qual me baseei foi o de Villas Boas Se há o Diário de Leitura, nada mais justo em existir um
(2005). A professora apresenta os resultados de uma pesquisa diário do professor, nomeado Relatos de Aula, para o registro
realizada durante o ano de 2003, no Curso de Pedagogia para de minhas autocríticas, interpretações das respostas dos alunos
professores em exercício no início da escolarização (PIE), da dadas às aulas, receios quanto ao planejamento das aulas, ao
Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB). andamento do curso etc.
Participaram do projeto 2000 professores diplomados no Curso Vários pontos de vista sobre a mesma realidade: a aula.
de Magistério em nível médio, que vivenciaram a experiência – Os alunos, com toda a diferença de opiniões, crenças, expecta-
vista, no início, com certa insegurança – de construírem seus tivas, redigem o diário. O professor, que exerce um outro papel
portfólios. O resultado foi muito positivo: o portfólio passou a social na escola, escreve seus relatos. Inevitável é a troca: edu-
ser o eixo organizador de todo o trabalho. candos e educador compartilham experiências. Com dia mar-
Moulin (2001) e Villas Boas (2005): duas professoras, cado, os diários e os relatos viram o assunto da aula.
duas experiências bem distintas com o portfólio. Pensei em O curso, portanto, como ficou evidente, é uma articula-
contribuir também: optei pela adoção da avaliação continuada ção – e não justaposição – do “circuito do livro” com o portfó-
na Educação de Jovens e Adultos, um público muito diferente lio. Não é nem um, nem outro; são os dois, interpenetrados.
dos assistidos pelos dois trabalhos supracitados.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 49 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 50
Acredito também estar contribuindo ao reuni-los em um curso desenho da capa tiveram maior importância. Uma aluna, ao
cujo público-alvo difere-se das crianças e adolescentes do ensi- explicar os motivos da opção por determinado livro, fez um
no fundamental, do trabalho de Fonseca e Geraldi (2004), e dos relato, emocionada, sobre a perda – creio que recente – de pes-
professores-aluno, com nível médio ou superior, da pesquisa de soas próximas e sobre outros problemas familiares que estava
Moulin (2001) e de Villas Boas (2005). enfrentando no momento.
É da natureza do planejamento certa idealização (o que, Outras conversas pouco freqüentes nas escolas (mas
no entanto, não tira sua importância). Por isso, no tópico a se- nem por isso irrelevantes) foram motivadas pela leitura, pelos
guir, vamos sair da teoria e entrar na prática; ver o quanto o livros. Um outro livro despertou uma discussão sobre adultério,
planejamento se modificou quando confrontado com o dia-a- o que não estava previsto no plano de aula. Na medida do pos-
dia da sala de aula; saber se os objetivos lançados na introdu- sível, tentei mediar o debate.
ção foram atingidos. Se por um lado, essa “fuga” do planejamento é um pon-
to positivo, já que se trata de uma contribuição do aluno para a
Do trabalho em sala de aula aula; por outro, pode ser motivo de crítica. Um estudante, no
nosso terceiro encontro, perguntou-me quando iriam começar
As maiores alterações no planejamento foram conse- as aulas de Redação.
qüências da escassez de tempo e não da falta de interesse dos A terceira etapa do curso, que consistia na promoção de
alunos, que aceitaram, sem restrições, o desafio de estudar a um evento de culminância interdisciplinar, não foi posta em
disciplina Redação de uma forma que lhes era totalmente des- prática. Com o tempo era reduzido, priorizei o relato de experi-
conhecida. ências e o estudo do conteúdo da ementa. Mais uma alteração,
A primeira etapa do projeto, que consistia na discussão portanto, no planejamento.
da importância do ato de ler, foi muito reduzida. Dos gêneros Quanto à minha experiência com os Relatos de Aula,
previstos no planejamento (poesia, letra de música, crônica, confesso que, no início, achei tudo muito superficial, forçado,
reportagem, conto e documentário), analisamos apenas dois: piegas até; mas, com o desenrolar do projeto, percebi o quanto
assistimos a um documentário e lemos uma reportagem sobre a são importantes minhas anotações auto-avaliativas sobre as
trajetória de Evando dos Santos (fundador da biblioteca comu- aulas, dado que, mesmo após o término do curso, tenho infor-
nitária Tobias Barreto, no Rio de Janeiro), que, gentilmente, mações precisas para redigir o presente artigo.
aceitou meu convite para visitar o InvestUERJ e compartilhar A seguir, para dar uma dimensão maior do curso e e-
com os alunos sua paixão pelos livro. xemplificar a dinâmica das aulas, transcrevo e comento trechos
A apresentação dos livros (a segunda etapa) deu-se da retirados dos diários dos alunos.
seguinte forma: espalhei as obras na mesa e solicitei aos estu- Os autores dos diários permitiram a transcrição dos tex-
dantes que escolhessem o título que mais lhes interessassem. tos, que não foram alterados em momento algum. A identifica-
Logo em seguida, discutimos os possíveis motivos de escolher ção será feita pelas inicias dos dois primeiros nomes. Além
um livro e não outro. Muitos confessaram que a quantidade de disso, informarei a qual das quatro fases do ensino médio o
páginas foi o primeiro critério; outros disseram que o título e o estudante pertence.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 51 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 52
As primeiras anotações no diário confirmam a hipótese Quando comentava o planejamento, insisti nas expres-
de que grande parte dos discentes tem pouco ou nenhum conta- sões “trajetória do leitor” e “mapa de leitura”, diretamente li-
to com os livros, preferindo os meios de comunicação em mas- gadas às escolhas feitas pelos alunos-leitores. Como exemplo
sa, como a televisão: de trajetória, veremos os registros da aluna V.L., da Fase B:
De um modo geral, eu não lia com freqüência. Hoje apanhei o livro “Venha ver o pôr-do-sol”
Hoje tenho lido nos ônibus, no trajeto de casa pa- são vários contos mas eu só consegui ler o pri-
ra o serviço ou escola pois tenho alguns trabalhos meiro. Falei com o professor se eu poderia ler um
em casa e de um modo geral eu prefiro televisão e livro que não era da coleção que estamos lendo, e
rádio. ele respondeu que sim aproveitei o feriadão e es-
(V.S., Fase D) tou lendo “O Imperador da Ursa Maior”.
Não costumo ler com freqüência porque minha A aluna V.L. foi a primeira a perguntar se era permitido
mente não se desenvolve com leitura e sim atra- trazer outros livros para o curso, o que fez com insistência e
vés de explicações. Tenho facilidade de entender com algum remorso.
através de rádio, televisão, fitas de vídeo, figuras V.L., depois de ler o primeiro livro, fez novas tentati-
ou manifestações.
vas:
(A.N., Fase A)
Eu peguei o livro “Memórias de um sargento de
Outros motivos apontados pelos estudantes para o dis- milícias”, comecei a ler mas não consegui dar
tanciamento da leitura estão relacionados a possíveis proble- prosseguimento a minha leitura pois me dava so-
mas de saúde ou ainda à falta de referência na família: no fiquei cansada e parei de ler. O clássico da li-
Espero que no futuro venha a gostar de ler inten- teratura não é um livro ruim eu é que não tenho o
samente porque no momento minha vista não a- hábito de ler, do mesmo clássico comecei a ler “A
juda minha saúde não ajuda. escrava Isaura” sem sucesso pois não continuei a
(W.S., Fase A) ler.
Gostaria de poder ler mais, só que o sistema ner- Eu estou lendo “Dom Casmurro” mais parei na
voso não ajuda, mas eu faço na medida do possí- página 27 pois não consegui ler mais, eu espero
vel. voltar a lê-lo pois a história é interessante eu é
(A.N., Fase A) que sou um pouco preguiçosa, e só deixo de ga-
A leitura, acho eu, que vai muito das oportunida- nhar só perco deixando de ler bons livros.
des e da criação, pois na juventude eu lia gibi de Nesses relatos, fica evidente a dificuldade da aluna em
super-heróis, brasileiro, mas não tive oportunida- ler as “melhores” obras, os “clássicos”. Mesmo insistindo, não
de de ler grandes livros ou até livros instrutivos. conseguia chegar ao final. Nos momentos de interação em sala
Meus pais não tinham costumes com a leitura
nem jornais quando liam jornais era só a parte
de aula, eu dizia-lhe que deveria ler o que mais lhe interessas-
criminal. Por isso, eu espero muito deste curso se, por mais que precisasse iniciar, sem terminar, várias leitu-
para soltar a minha escrita e me acostumar com a ras.
leitura “sadia”. Influenciada por Evando dos Santos, V.L., menos presa
(V.S., Fase D) à obrigação de ler determinados títulos, obteve êxito:

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 53 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 54
Hoje eu apanhei o livro “O triste fim de Policarpo seando-me em suas palavras – ter aprovado o trabalho com o
Quaresma” e que foi citado no encontro com E- “circuito do livro” associado ao portfólio.
vando, o pedreiro, apanhei também o livro de po- Um outro aspecto muito positivo do registro diário foi a
emas “Arca de Noé”, que são poemas infantis de aproximação do trabalho feito no InvestUERJ com o cotidiano
Vinícius de Moraes.
do estudante, com a sua vida fora da escola, o que contribuiu
Eu gostei muito de ler os poemas sei que tenho
que ler outros livros mais no momento estou que-
para dar mais sentido ao nosso trabalho:
Eu neste fim de semana não pude ler o livro por-
rendo ler poesia pois não estou conseguindo ir até
que teve muita gente em casa no sábado e domin-
o final das histórias que leio.
go até a noite porque foi o aniversário da minha
Consegui terminar de ler o livro de Policarpo
filha então não pude ler, mais vou começar tudo
Quaresma foi até o fim. Estamos no mês de feve-
de novo ler no final de semana.
reiro e eu estou lendo o livro “O Fantástico misté-
(M.A., Fase C)
rio de Feiurinha”, sei que é história de crianças
mais eu estou gostando de ler e estou chegando Houve também espaço para reflexões sobre fatos da a-
ao final. tualidade que muito incomodaram os estudantes, como os su-
Cheguei ao final de feiurinha, história de Pedro cessivos ataques violentos no final do ano passado, no Rio de
Bandeira. Janeiro:
A trajetória de V.L é um ótimo exemplo para validar a Estou muito triste com o que aconteceu no final
idéia de que quanto mais a escola exige, limita, mais difícil é o do ano, a tragédia que se deu aqui no Rio. Eu
cumprimento da tarefa pelo aluno. Em muitos programas de pensei assim com meus botões: “se todos esses
baderneiros tirassem uma duas ou três horas por
Língua Portuguesa/ Redação/ Literatura, o professor limita a
dia sentassem para ler eles não fariam esta coisa
leitura de todo o ano letivo a pouquíssimos títulos, excluindo muito triste matando gente inocente que não tem
do discente a possibilidade de escolher. A conseqüência, quase nada a ver com o que eles fazem”.
sempre, é o afastamento do aluno da leitura, que passa a ser (M.A., Fase C)
uma obrigação, uma tarefa indispensável para não tirar uma No entanto, nem todos os alunos compreenderam a pro-
nota baixa. posta do registro diário. Um aluno apenas transcreveu, ininteli-
No relato de V.L., o peso da tradição escolar fica evi- givelmente, trechos de livros:
dente. No último registro do diário, não obstante minha condu- João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco anos,
ta de não impor leituras, o que se destaca é o remorso: empregado de um vendeiro que enriqueceu entre
Professor me desculpe pois eu não consegui ler os as quatro paredes de uma suja e obscura taverna
livros que o senhor com maior boa vontade nos nos refolhos do bairro Botafogo.
cedeu, mais agora tenho a certeza que poderei ler (J.Q., Fase B)
com mais atenção e prazer um bom livro. Apesar de falhas como essa, as últimas anotações nos
A aluna, após fracassos e êxitos em leituras que ela diários comprovaram a superação de obstáculos, apontados
própria escolheu, sem minha interferência direta, parece – ba- pelos alunos na primeira aula:

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 55 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 56
Aprendi a gostar de ler todo lugar que estou tenho Primeiros resultados e últimas considerações
um livro na mão e sempre leio tudo que está ao
meu redor. Anoto todas as dicas sobre leitura para O curso abrangeu o período de 25 de outubro de 2006 a
cada vez melhorar ainda mais. 08 de fevereiro de 2007. Para definir o número de alunos parti-
(W.S., Fase A)
cipantes, usei o critério da freqüência: entraram na pesquisa os
Gostaria de afirmar que, ao ler o livro “A MPB na
Era do Rádio”, notei que através da leitura a men-
estudantes que compareceram a, pelo menos, 50% das aulas. O
te humana se desenvolve de uma tal maneira ca- número final foram 19 discentes.
paz de quebrar qualquer obstáculo que impede a Ao término do curso, os alunos preencheram uma ficha,
leitura. Confesso que, essa barreira, eu já quebrei em que eram solicitados os livros lidos parcial ou integralmen-
e estou pronto para desafios. Pretendo ler mais li- te. A partir desses dados, foram feitas as estatísticas detalhadas
vros! a seguir.
(A. N., Fase A) No total, registrei 53 empréstimos. Os títulos mais pro-
Tal avaliação comparativa – ao final do trabalho, resga- curados: O Alienista, de Machado de Assis; A importância do
ta-se o início para se notar o progresso – é uma das principais ato de ler, de Paulo Freire; Memórias de um sargento de milí-
características do portfólio. cias, de Manuel Antônio de Almeida; Meu livro de cordel, de
Com a intenção de revisar os objetivos lançados no pla- Cora Coralina; Para gostar de ler: crônicas, de vários autores; e
nejamento e enumerados na introdução, faço uma auto- Proezas do João Grilo, de João Ferreira de Lima.
avaliação de todo o trabalho desenvolvido no período letivo. Dentre os livros que não foram solicitados, menciono:
Dentre os pontos positivos, destaco: incentivo à leitura Assassinato no campo de golfe, de Agatha Christie; Livro de
e à produção de texto, constante interação entre alunos e entre ocorrências, de Rubem Fonseca; e Reinações de Narizinho, de
aluno e professor, avaliação continuada e otimização do tempo. Monteiro Lobato (o livro com o maior número de páginas e em
Dos pontos que exigem revisão, menciono: ausência de pior estado de conservação).
um trabalho mais profundo com o conteúdo programático, Esse resultado desfez um preconceito: leitores iniciantes
pouco uso das variadas mídias (filmes, músicas, documentários preferem obras simples, tidas como integrantes da subliteratu-
etc), ausência de uma correção intensa dos textos do diário e ra. Títulos como Bianca: uma garota especial, de Dorian Kelly,
poucos momentos de interação entre Diários de Leitura e Rela- e Sabrina: razão ou paixão, de Caroline Clemmons, nem de
tos de Aula (não digo que não houve diálogo, apenas afirmo longe, figuraram entre os mais procurados.
que os relatos escritos não tiveram o mesmo peso que os orais). Outros números: 30% dos alunos leram dois livros,
20% leram três e 15% leram quatro; o número máximo de lei-
turas foi oito. Vale dizer que considerei tanto as leituras inte-
grais quanto as parciais.
Por fim, resta informar que a média foi de 2,78 livros
por aluno, incluindo as leituras parciais, que corresponderam a
40% do total.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 57 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 58
Considero um ótimo resultado, visto que quase todos os MOULIN, Nelly. A utilização de portfólio na avaliação do
alunos tinham uma trajetória de leitura incipiente; outros tantos ensino a distância. Trabalho apresentado no VIII Congresso de
ficaram, por anos, longe das salas de aula. Educação a Distância da ABED. Brasília, Agosto,
Não podemos supervalorizar as estatísticas, como se 2001(disponível no site www.abed.org.br/congresso2001).
fossem as únicas evidências do êxito do projeto. Mais impor- VILLAS BOAS, Benigna Maria de Freitas. O portfólio no cur-
tantes que os números foram os relatos, nos diários e em aula, so de pedagogia: ampliando o diálogo entre professor e aluno.
da satisfação ao abrir um livro e lê-lo até a última página. Educ. Soc. Campinas, vol. 26, n. 90, Jan./Abr. 2005.
Sem muita pretensão, deixo claro que, da mesma forma
que os trabalhos já mencionados me motivaram a planejar o
curso de leitura / redação concretizado no InvestUERJ, espero
que esse meu relato contribua para a elaboração de outros tan-
tos projetos, com diferentes metodologias. Isso porque vejo o
professor como um sujeito ativo, que faz da sua prática não
somente um espaço para a aplicação de conhecimentos já cons-
truídos, mas, antes de tudo, um espaço para a produção de no-
vos saberes, mais próximos à sua realidade. Em síntese, com-
partilho da opinião de que “o professor desenvolve e produz
teoria da sua própria ação” (Cf. TARDIF apud VILLAS
BOAS, 2005: 294).

Referências Bibliográficas:

BRITTO, Luiz Percival Leme. Em terra de surdos-mudos (um


estudo sobre as condições de produção de textos escolares). In:
João Wanderley Geraldi (Org.). O texto na sala de aula. São
Paulo: Ática, 2004.
FONSECA, Maria Nilma e GERALDI, João Wanderley. O
circuito do livro e a escola. In: João Wanderley Geraldi (Org.).
O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2004.
GERALDI, João Wanderley. Prática de leitura na escola. In:
João Wanderley Geraldi (Org.). O texto na sala de aula. São
Paulo: Ática, 2004.
MANGUEL, Alberto. Uma história de leitura. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 59 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 60
REFLEXÕES SOBRE A OBJETIVIDADE NA MÍDIA da voz do enunciador, produz-se como resultado a impressão
IMPRESSA: O APAGAMENTO DA FONTE EM NOTÍ- de que a alteridade se restringe a essa ocorrência de discurso
CIAS DE JORNAL relatado.
Nosso foco de análise aqui recai sobre essa dimensão
Bruno Deusdará “mostrada” da heterogeneidade, para fazer referência às refle-
UERJ
xões de Authier-Revuz (1990), por meio das marcas que se
imprimem nos enunciados. Para tanto, faremos inicialmente
RESUMO: uma caracterização do gênero notícia de jornal, privilegiando
Discutimos a questão da heterogeneidade na linguagem, com enfoque para alguns dos seus aspectos que melhor se relacionam com o de-
o discurso relatado como forma de apreensão da alteridade. Tais contribui- bate concernente ao discurso relatado. Em seguida, retomare-
ções fundamentam-se na idéia de que a linguagem é polifônica por constitu-
ição (Bakhtin, 2000). Acrescentam-se discussões em torno do discurso
mos os elementos fundamentais das reflexões sobre discurso
relatado (Authier-Revuz, 1990; Maingueneau, 2001). Ressaltamos ainda a relatado, fazendo referência especialmente aos trabalhos de
categoria de discurso narrativizado, elaborada por Sant´Anna (2002), que Authier-Revuz (1990) e Maingueneau (2001). Para as nossas
possibilita acesso às formas mais apagadas de atribuição de um dizer a ou- análises, privilegiaremos a categoria de discurso narrativizado,
tro. As reflexões aqui propostas nos têm permitido analisar os efeitos de elaborada por Sant’Anna (2004), considerando as contribuições
sentido que se produzem a partir das diferentes formas de apresentar outras
vozes.
que a delimitação da referida categoria pode oferecer à discus-
são relativo ao funcionamento discursivo do gênero notícia de
PALAVRAS-CHAVE: jornal. Optamos ainda por demonstrar alguns exemplos de pos-
Análise do discurso, enunciação, notícia de jornal, discurso relatado.
sibilidade de articulação do discurso narrativizado com outras
formas de relato, procurando evidenciar, no plano enunciativo,
a construção da objetividade em notícias de jornal não como
1 - Considerações iniciais uma característica própria a esse gênero, mas como efeito de
Neste artigo, pretendemos discutir as contribuições ofe- sentido relacionado a certos procedimentos.
recidas pelos estudos enunciativos à temática da heterogenei-
dade na linguagem, com enfoque para o discurso relatado como 2 - Tensão entre informar e opinar: caracterizando o gêne-
forma de apreensão da alteridade. Tais contribuições funda- ro notícia de jornal
mentam-se na perspectiva assumida pelos estudos enunciativos
segundo a qual as práticas de linguagem assumem um caráter Neste item, pretendemos oferecer ao leitor uma caracte-
polifônico por constituição (Bakhtin, 2000). Nesse sentido, rização da notícia de jornal como gênero discursivo. Com o
deve-se ressaltar que as formas da alteridade que se mostram intuito de nos mantermos nos limites propostos para este texto,
como tais – o discurso relatado entre elas – produzem como evidenciaremos alguns aspectos que definem a notícia de jornal
efeito de sentido a ilusão de que a heterogeneidade lingüística a partir de uma perspectiva própria às teorias da enunciação,
se mantém restrita a essas formas, pretendendo apagar a di- com ênfase para as diferentes formas de apropriação da voz do
mensão heterogênea que a integra. Ou seja, ao apresentar a voz outro. Nesse sentido, ressaltaremos dois aspectos que nos pare-
do outro através de certas estratégias que parecem distanciá-la

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 61 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 62
cem mais relevantes para uma posterior compreensão do fun- Não é difícil encontrarmos propagandas de jornais e re-
cionamento discursivo do referido gênero: (i) a suposta ativi- vistas de grande circulação reafirmando que o periódico anun-
dade de transmissão de informação não seria uma característica ciado apresenta-se mais imparcial e, portanto, confiável que os
inerente aos textos midiáticos, mas sim um efeito de sentido demais. Vemos nesse tipo de material as pistas que nos apon-
garantido por certos mecanismos lingüístico-discursivos; (ii) tam para o fato de que o projeto de imparcialidade mostra-se
em decorrência disso, a produção de sentido desses textos e da explicitamente como um objetivo a ser alcançado pelos jornais
notícia, em particular, se constitui a partir da tensão entre in- e revistas na atualidade e, por conseqüência, apagam-se as di-
formar e / ou opinar. mensões sociais, econômicas e culturais que constituem a rela-
Veríamos nos aspectos explicitados anteriormente pos- ção mídia e sociedade. Desse modo, entendemos que seja atra-
sibilidades de enfoque para uma análise necessária da relação vés desse projeto de imparcialidade que jornais e revistas
entre mídia e sociedade. A esse respeito, Sant’Anna (2004) pretendem instituir lugares para si e para seus leitores.
afirma o seguinte: Do ponto de vista discursivo, se considerarmos que os
Aprimorar as relações entre mídia e sociedade sentidos são sempre parciais e provisórios, porque inseridos na
envolve o entendimento de que compreender o dinâmica da história, podemos afirmar que a suposta imparcia-
que se lê articula-se no cotejo entre textos e na lidade não seria uma qualidade a ser atingida por um dado pe-
capacidade de produzir comentários, e de que os riódico, antes se trataria de um efeito de sentido que se produz
discursos se constroem em cenas institucionais
a partir de procedimentos muito diversificados.
complexas, marcadas pela assimetria, empírica e
discursivamente considerada, entre os que detêm
A título de ilustração do que estamos sustentando acer-
o conhecimento e a informação – os quais, por- ca da constituição de uma “vontade de imparcialidade” na mí-
tanto, escolhem o que e como passar esse conhe- dia brasileira, colocaríamos lado a lado as notícias, os editoriais
cimento a quem não o detém. É bem verdade que e as colunas assinadas, redigidas por colaboradores dos jornais.
a imprensa deseja diminuir ao máximo tal assime- Nessas colunas, a presença da assinatura cria um efeito de afas-
tria, pois radicalizá-la significa criar maior difi- tamento da opinião expressa naquele texto frente à linha edito-
culdade na venda dos seus produtos informativos, rial do jornal, como se se tratasse de uma grande citação em
que se diferenciam de outros da cadeia de consu- discurso direto. No editorial, a autoria expressa, embora não
mo, já que a imprensa escrita tem papel relevante explícita, também parece nos indicar que se trata de um texto
na (re)criação e na divulgação de valores sociais, em que uma opinião está sendo posta em questão. Em contra-
bem como na produção de identidades. Mas, ao posição aos textos em que haveria uma autoria expressa, a no-
mesmo tempo, um jornal não é somente um pro-
duto, como também permite a venda de um públi-
tícia parece reivindicar o estatuto de texto não opinativo, tão
co aos anunciantes. Essa forma de constituição desejado pela mídia, como é possível perceber através de seus
abre a imprensa escrita a estudos das transforma- manuais de redação.
ções socioculturais e também das relações entre Assim, podemos afirmar que, hoje, na sistemática
produção discursiva e formas genéricas de ex- de organização de um jornal diário que pretende
pressá-las. atingir um grande público, existe a preocupação
(Sant’Anna, 2004: 119) de apresentar textos não opinativos – nos quais a

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 63 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 64
informação é recriada discursivamente, mas pre- ligadas a um nível superior de discurso jornalístico, no
tende-se apresentada como relato do fato tal como qual se constata uma separação muito clara entre in-
ocorreu – e textos opinativos, nos quais o leitor formar e opinar;
sabe que encontrará pontos de vista, que tanto ele • o plano dos textos em estudo, os gêneros notícia, edi-
poderá identificar com os do jornal, ou seja, o
torial e artigo –, isto é, as atualizações efetuadas, por
editorial, quanto os de alguém devidamente auto-
rizado a se identificar, a saber, o artigo.
meio do suporte, como a forma concreta de operacio-
(Sant’Anna, 2004: 144) nalizar as coerções da ordem abstratas do nível superi-
Ao discutir as formas de apropriação do empírico pela or, nas quais se constata que a separação entre opinar
imprensa escrita, Sant’Anna (2004) destaca a existência de e informar não se dá de modo tão óbvio como se pode-
tensão entre informar e/ou opinar, o que levaria a um cruza- ria esperar.
mento dos atos de fala que a integram. Por outro lado, ao tratar (Sant’Anna, 2004: 135)
o jornal como suporte, é possível notar diferentes posições e- É interessante notar, portanto, que a referida autora irá
nunciativas sendo assumidas, o que, do ponto de vista macro, definir notícia em contraposição ao artigo e ao editorial, como
se caracterizaria como marca de heterogeneidade (Sant’Anna, “textos informativos em sentido lato (...), que não se pretendem
2004). opinativos, podendo ter ou não autoria definida” (Sant’Anna,
A autora passa, a partir dos aspectos levantados anteri- 2004: 147).
ormente, a procurar diferenciar o jornal de outras práticas lin-
guageiras. Para isso, chama a atenção para a discussão de defi- 3 - O relato em notícias de jornal: a heterogeneidade enun-
nição do jornal como gênero ou não. ciativa em questão
As restrições que a empiria impõe na caracteriza-
ção do enunciador, do público-genérico, das for- No item anterior, discutimos uma caracterização da no-
mas de circulação, do suporte – bem como da dis- tícia como um gênero discursivo, a partir de uma perspectiva
tribuição interna que o organiza, definindo a enunciativa. Tecemos considerações acerca do projeto de
paginação, os temas, os recursos verbais e não- transmissão de informações, tão reivindicado na atualidade
verbais –, fazem-nos retornar à questão anterior, pela mídia na tentativa de mostrar-se como imparcial e, por
de saber se o jornal é um gênero. conseqüência, confiável. Dissemos então que a imparcialidade
(Sant’Anna, 2004: 134) não é uma qualidade de um jornal que pudesse ser medida de
Essa discussão acerca da existência de um gênero jorna- modo a assegurar que um fosse mais ou menos imparcial que
lístico leva à consideração de que, quando se pretende informar outro. A partir da perspectiva aqui adotada, preferimos consi-
ou opinar, esse gênero se atualiza de forma independente. A derar que essa “vontade de imparcialidade” seria antes um efei-
autora considera ser possível identificar as coerções genéricas to de sentido a ser garantido por certos procedimentos.
em dois planos: Neste item, discutiremos um desses procedimentos: o
• as características do suporte, que determinam uma discurso relatado. A citação de um discurso por outro será en-
certa organização de qualquer elemento que venha a tendida aqui não em termos de tentar compreender qual seria a
ser atualizado num determinado veículo, e que estariam

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forma mais fiel às palavras do outro ou a menos fiel, como ten- como exemplo. Ao lermos uma notícia, as diversas posições
taram mostrar as gramáticas tradicionais. Trata-se de problema- enunciativas que ela abrange explicitam-se de diferentes mo-
tizar as relações de embates que se manifestam nos diferentes dos, entre eles o discurso relatado. No entanto, ao marcar a
modos de introdução da voz do outro, compreendendo os efei- presença de uma outra voz através do relato, o que se cria como
tos de sentido dela decorrentes. efeito é a ilusão de que as outras vozes trazidas pela notícia
Inicialmente, explicitaremos o lugar do discurso relata- restringem-se àquelas que se encontram marcadas. Teríamos
do nas reflexões sobre a heterogeneidade enunciativa, bem co- então a impressão de que todo o restante é atribuído à voz do
mo os critérios para sua identificação. Em seguida, faremos EU que enuncia tal texto, supostamente eliminando a dimensão
uma discussão acerca dos efeitos de sentido criados por algu- constitutiva da heterogeneidade.
mas das formas de relato. Tradicionalmente, os estudos sobre língua compreende-
A discussão em torno do discurso relatado como forma ram o discurso relatado (DR) deixando-se convencer por aque-
de apreensão da alteridade integra um conjunto de reflexões les que seriam seus efeitos de sentidos, não fazendo menção ao
acerca do caráter heterogêneo da linguagem. A esse respeito, DR como forma de inscrição da alteridade e, portanto, como
poderíamos fazer menção aos trabalhos de Authier-Revuz modo de produção de sentido.
(1990), em que a autora apresenta tais reflexões como forma de Tal equívoco levou a que se pensasse que a distinção
problematizar a questão do sujeito na linguagem. entre o discurso direto e o discurso indireto seria a do acesso
Segundo Authier-Revuz (1990), o sentido de um enun- mais ou menos fiel à voz do outro. A esse respeito, Authier-
ciado se produz não apenas a partir das palavras efetivamente Revuz (2001) afirma que a insuficiência dessa interpretação
ditas, mas remete sempre a outras palavras. Na linearidade da tradicional do DR, por ela denominada “vulgata”, teria o in-
cadeia, imprimem-se marcas que nos deixam entrever esse diá- conveniente de afirmar que o DD é a representação mais obje-
logo. O esforço da análise residiria exatamente em buscar nes- tiva e séria das palavras do outro. A referida autora argumenta
sas marcas indícios da remissão inconclusa a outros discursos. dizendo que “reproduzir a materialidade exata de um enuncia-
Operacionalizando as reflexões a respeito da alteridade do não significa restituir o ato de enunciação – do qual o e-
na linguagem, Authier-Reuvz (1990) propõe dois planos da nunciado é (apenas) o ‘núcleo” (Authier-Revuz, 2001, p. 134).
heterogeneidade enunciativa: a heterogeneidade constitutiva, A respeito da escolha do DD e dos efeitos de sentido
que remete ao princípio teórico do dialogismo bakhtiniano, correlatos, Maingueneau (2001) afirma:
segundo o qual as práticas de linguagem são, por constituição, Mesmo quando o DD relata falas consideradas
heterogêneas, e a heterogeneidade mostrada, que aponta para como realmente proferidas, trata-se apenas de
as materialidades apreensíveis da heterogeneidade, criando a uma encenação visando criar um efeito de auten-
ilusão de que a presença do outro se restringe a essas entradas. ticidade: eis as palavras exatas que foram ditas,
O discurso relatado integra essas entradas. parece dizer o enunciador. O DD caracteriza-se
com efeito pelo fato de supostamente indicar as
De acordo com tal ponto de vista, podemos dizer que próprias palavras de enunciador citado: diz-se que
haveria um embate constante entre essas duas dimensões da ele faz menção de tais palavras.
heterogeneidade, a que faríamos menção citando as notícias (Maingueneau, 2001: 141)

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 67 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 68
4 - Apagamento do relato: o discurso narrativizado fissionais de educação do estado do Rio de Janeiro, instituído
desde 2000.
No item que segue, discutiremos algumas formas de a- O diretor se preocupa com o provão. Ano passa-
propriação do relato nas notícias de jornal, com ênfase para do, 78% dos alunos da unidade alcançaram pon-
uma categoria de DR que parece pôr em análise o apagamento tuação satisfatória. ‘Foi um ótimo resultado, mas
de vozes em relato, o discurso narrativizado (DN) é claro que, com questões de Ciências e outras
matérias, a prova ficará mais difícil. Não houve
A categoria DN deve sua elaboração inicial ao trabalho
preparação, nem tivemos acesso às provas passa-
de Sant’Anna, em que a autora problematiza a constituição de das’, comenta.
sentidos do trabalho em notícias sobre o Mercosul. No referido No fragmento anterior, as aspas constituem-se como
trabalho, que corresponde à publicação inspirada na tese de marcas tipográficas que apontam para a existência de DR. Há
doutorado da autora, defendida no LAEL/PUC-SP, em 2000, outras pistas como a quebra na estrutura sintática e ainda a pre-
ao observar o funcionamento do intertexto como DR, a referida sença de um verbo que indica ter havido um ato de fala. Nesse
autora compreende a necessidade de pressupor um conjunto de caso, o verbo comentar. A voz trazida é a de um diretor de es-
implicações, como o contato do jornalista diretamente com os cola da rede pública estadual do Rio de Janeiro, comentando o
textos citados, ou indiretamente, através de outras pessoas, que resultado e algumas das dificuldades encontradas para a reali-
forneceriam as informações necessárias. Nesse contexto de zação de uma prova promovida pela Secretaria de Estado de
reconfiguração de critérios para o DR, Sant’Anna identifica a Educação do Rio de Janeiro. Tal prova é parte dos critérios
abertura para a elaboração de uma outra categoria de DN, aque- para o pagamento da gratificação prevista pelo Programa Nova
la que corresponde à “forma mais apagada de atribuição do Escola.
discurso a outro e, ao confundir-se com a idéia de ‘informar Gostaríamos, no entanto, de chamar a atenção do leitor
objetivamente’, corresponde a uma forma narrativizada máxi- para o seguinte trecho do fragmento anterior: “O diretor se pre-
ma de um possível discurso indireto” (Sant’Anna, 2004: 180). ocupa com o provão.”
Nessa obra, teríamos a seguinte definição de DN: “e- A partir desse trecho, seria possível questionar: como o
nunciados cuja existência é apresentada pelo enunciador- jornalista teria tido acesso à preocupação do diretor? Teria sido
jornalista como um dizer que este capta e transforma, apagan- o próprio diretor o responsável por essa declaração ou outra
do a fonte do relato de forma decisiva” (Sant’Anna, 2004: pessoa, por exemplo, no momento da apresentação do diretor
181). ao jornalista? Poderíamos considerar ainda um conjunto de
Explicitaremos agora alguns fragmentos para análise, outras hipóteses, como imaginar que essa preocupação não
que nos permitam, em um primeiro momento, compreender de tenha sido dita, mas sim interpretada pelo jornalista.
que modo o relato em DN se articula, nas notícias de jornal, Diríamos assim que no trecho anterior há um relato que
com as demais formas de citar um discurso em outro discurso. não ganha visibilidade como tal, seja através de marcas tipo-
Vejamos o seguinte fragmento, extraído de uma notícia gráficas, seja pela introdução de um verbo dicendi. Estaríamos
que tematiza o Nova Escola, programa de gratificação aos pro- assim no terreno das ocorrências de DN, cujos critérios de i-

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 69 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 70
dentificação apresentamos a seguir, tal como aparece em Deus- A partir dos critérios explicitados anteriormente, opta-
dará e Sant’Anna (2007): mos por constituir o seguinte quadro, que colabora no sentido
i) apagamento da fonte: este critério remete à definição de dar visibilidade ao encadeamento de situações de enuncia-
de DN elaborada por Sant’Anna (2004), apresentada ção como elemento fundamental para o reconhecimento do
anteriormente. No DN, o relato caracteriza-se pela au- relato.
sência de marcas que nos permitissem atribuir o dito Vejamos o quadro:
em questão a outro enunciador que não seja o próprio
jornalista; Quadro 1 – Encadeamento de situações de enunciação a partir do
exemplo 1
ii) encadeamento das situações de enunciação: o relato Ocorrência:
em DN implica, além da situação em que o enunciador- O diretor se preocupa com o provão.
jornalista se dirige ao leitor do jornal, duas outras: Situação de enunciação atual
uma, a situação de enunciação original, aquela em que • enunciador: jornalista • co-enunciador: leitor
o dito relatado é originalmente proferido, outra, a situ- • tempo: data do jornal
• marca lingüística: se preocupa
ação de enunciação intermediária, aquela em que al-
Situação de enunciação intermediá- • co-enunciador: jornalista
guém relata o dito da situação original ao jornalista. ria
Esse critério fora estipulado, como desdobramento dos • enunciador: fonte desconhecida
trabalhos de Sant’Anna (2004), por Arias (2003). • tempo: anterior à situação de enunci-
iii) Concepção não restrita do elemento dicendi: para ação atual
• conteúdo do dito: preocupação com a
identificação do relato em DN, é preciso ultrapassar a
prova do Programa Nova Escola
concepção tradicional de verbo dicendi, de modo que Situação de enunciação original
se possam compreender as situações em que uma outra • enunciador: diretor • co-enunciador: indefinido
voz emerge, considerando tanto elementos introdutó- • tempo: anterior à situação de enunci-
rios de natureza verbal, quanto de natureza nominal. ação atual
Tal critério remete igualmente ao trabalho de Arias • tipo do dito que poderá ser emitido:
conversa informal ou entrevista
(2003);
iv) Grupos de elemento dicendi: em consonância com os
Com o intuito de prosseguir com as análises que vimos
critérios ii e iii, trabalhamos em nossa dissertação de
realizando, traremos um outro fragmento:
Mestrado (Deusdará, 2006) no intuito de colaborar na
Mendonça pensou em baixar para 3 o conceito
operacionalização do elemento dicendi. Percebemos máximo a ser obtido por essas escolas: ‘No fórum
assim ser possível organizá-los em três grupos que a- de diretores, houve a contraproposta de uma ava-
brangeriam os verbos e locuções verbais, verbos asso- liação especial. Resolvi acatar.
ciados a grupos nominais, ou ainda grupos nominais Nesse fragmento, à semelhança do que vimos no anteri-
apenas. or, a ocorrência de um relato em DD, sendo antecedida de um
DN. A voz trazida em DD é a do então secretário de Educação

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 71 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 72
do Rio de Janeiro, um dos responsáveis pelas políticas de grati- A partir dos dois fragmentos analisados, é possível
ficação, que tem, desde então, aprofundado a precarização das compreender um dado funcionamento discursivo do relato em
condições de trabalho dos profissionais da rede pública estadu- DN, nas notícias de jornal. Considerando que se trata de uma
al. forma apagada de acesso a outras vozes, o relato em DN articu-
Se atentarmos para o trecho “Mendonça pensou em bai- la-se de maneira particular com outras formas de DR. Nos dois
xar para 3 o conceito máximo a ser obtido por essas escolas”, fragmentos analisados, a seqüência que apresenta um relato em
poderemos fazer questionamentos semelhantes aos que fizemos DD precedido de um outro em DN parece evidenciar uma arti-
nas análises do fragmento anterior: como o jornalista teve aces- culação sobre a qual caberia uma reflexão mais detida.
so ao que o secretário teria pensado? Ao afirmar que “o diretor se preocupa com o provão”,
A partir desse fragmento, compusemos o seguinte qua- sem explicitar a fonte, ou seja, a partir de que relato, em que
dro: circunstâncias, alguém teria feito referência à preocupação do
diretor, tal relato apresenta-se de um determinado modo que o
Quadro 2 – Encadeamento de situações de enunciação a partir do aproxima de uma “informação objetiva”. O relato em DD evi-
exemplo 2
Ocorrência:
denciado em seguida parece constituir-se em um comentário à
Mendonça pensou em baixar para 3 o conceito máximo a ser obtido por informação anterior.
essas escolas: “No fórum de diretores, houve a contraproposta de uma A partir dessa articulação dos relatos em DN e DD, o
avaliação especial. Resolvi acatar”. apagamento da fonte no primeiro caso e sua explicitação no
Situação de enunciação atual segundo parece conferir estatuto diferenciado a ambas as ocor-
• enunciador: jornalista • co-enunciador: leitor
• tempo: data do jornal
rências, construindo assim a objetividade como efeito dessa
• marca lingüística: pensou articulação.

Situação de enunciação interme- 5- Considerações finais


diária
• enunciador: fonte desconhecida •co-enunciador: jornalista Oferecemos ao leitor, ao longo deste texto, algumas
• tempo: anterior à situação atual de
enunciação discussões relativas à heterogeneidade enunciativa, privilegi-
• conteúdo do dito: redução do ando o discurso relatado como entrada para análise. Ao optar
conceito máximo de algumas esco- pela notícia de jornal como material de análise, centramos a
las, na avaliação do Programa Nova caracterização do referido gênero do discurso questionando a
Escola pretensa tarefa de transmitir informações não como algo que se
Situação de enunciação original
• enunciador: Cláudio Mendonça • co-enunciador: provavelmente, efetivaria, mas sim como um dos aspectos que comporiam seu
• tempo: momento de realização do os presentes no fórum de direto- “projeto de dizer”.
fórum res Assim sendo, vimos sustentando neste texto a idéia de
• tipo do dito que poderá ser emiti- que a objetividade não poderia corresponder a uma característi-
do: proposta levada ao fórum de ca atribuída à mídia. Não caberia assim procurar identificar que
diretores

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 73 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 74
jornal seria mais ou menos objetivo. A nosso ver, é preciso Trajetórias em Enunciação e Discurso: conceitos e práticas.
considerar a objetividade como uma construção que vai se São Carlos: Claraluz, 2007.
dando a partir de certos procedimentos que passam a integrar o DEUSDARÁ, Bruno. Imagens da Alteridade no Trabalho Do-
funcionamento discursivo. cente: enunciação e produção de subjetividade. Dissertação de
Entre os aspectos aqui discutidos, ressaltaríamos as aná- Mestrado, Rio de Janeiro: UERJ, 2006.
lises efetuadas acerca das articulações possíveis entre as dife- MAINGUENEAU, Dominique. A gênese dos discursos. Curi-
rentes formas de relato. Vimos então que o apagamento da fon- tiba: Criar Edições, 2005.
te ou sua explicitação conferem estatuto distintos a cada uma _______. Análise de Textos de Comunicação. São Paulo: Cor-
dessas ocorrências, oferecendo como leitura possível a idéia de tez, 2001.
que os relatos em DN mais se aproximariam das “informações SANT’ANNA, Vera Lúcia de Albuquerque. O Trabalho em
objetivas”, enquanto as formas que explicitam a fonte, como o notícias sobre o Mercosul: heterogeneidade enunciativa e no-
DD, apareceriam como comentários a essas “informações”. ção de objetividade. São Paulo: Educ, 2004.
As reflexões aqui propostas nos têm permitido analisar
os efeitos de sentido que se produzem a partir das diferentes
formas de apresentar outras vozes, bem como mapear, através
da categoria do discurso relatado, o funcionamento enunciativo
do gênero notícia de jornal e os efeitos da suposta neutralidade
que esse gênero pretende instituir.

Referências Bibliográficas:

ARIAS, Sandra di L. A enunciação do espanhol como língua


estrangeira: vozes da notícia. Dissertação de Mestrado, Rio de
Janeiro: UERJ, 2003.
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Palavras incertas: as não-
coincidências do dizer. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
_______. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Caderno de Estu-
dos Lingüísticos 19. Campinas: Unicamp, julho-dezembro,
1990.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
DEUSDARÁ, Bruno; SANT’ANNA, Vera. Narrando para não
explicar: mídia e sentido do trabalho dos profissionais de edu-
cação. In: SANT’ANNA, Vera; DEUSDARÁ, Bruno (orgs).

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 75 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 76
O MISTÉRIO DA LIBÉLULA OU UM PERCURSO em sua citação, entre nós, em “A cartomante”, de Machado de
PARA A PROGRESSÃO COGNITIVA DO SIGNO Assis.
Em uma palavra, o tema da (in)credulidade tem sido
Cláudio Luiz Abreu Fonseca objeto de reflexão em muitas obras, pois a dialética de que re-
UFPA-Marabá / UERJ
sulta esse tema ou isotopia, gnosticismo vs. ceticismo ou sensi-
tividade vs. racionalidade, provoca no ser humano desde sem-
RESUMO: pre o questionamento sobre aquilo que não se pode explicar
O presente artigo tem por objetivo empreender uma análise semiótico- através da razão, da legibilidade convencional dos signos do
discursiva de um texto fílmico, O mistério da libélula (2002), a fim de que campo da ciência.
se possa compreender como se desenvolve a progressão cognitiva do signo,
segundo os postulados peirceanos sobre a aplicação da teoria geral dos
Procura-se fazer aqui, contudo, uma leitura que busque
signos (SANTAELLA, 2005). Para tanto, tomar-se-á o texto fílmico como apreender não a reiteração de uma temática universal que as-
um investimento metateórico para uma compreensão de como se processa a sombra igualmente ainda o homem comum ou o artista, mas
semiose, mediante o trabalho de leitura. Considerar-se-á, nesse sentido, o uma leitura circunscrita a um investimento teórico, cujo resul-
filme como um discurso sobre o processamento da significação, que se tado é uma compreensão da própria teoria geral dos signos e do
inscreve no escopo da interação verbal (BAKHTIN / VOLOCHINOV,
1992).
processamento da semiose do texto-discurso, de que resultam
temas ou isotopias possíveis.
PALAVRAS-CHAVE: Nesse sentido, propõe-se considerar o texto em análise
Signo, texto, discurso, significação, leitura.
como um objeto metateórico que leve o analista-espectador a
compreender como se processa cognitivamente a significação
do texto-discurso e dos signos verbais e não-verbais que o
Introdução compõem, de acordo com a perspectiva da semiótica peirciana,
bem como dos postulados relativos a tema e significação, de
A fim de compreender os postulados básicos que devem base bakhtiniana.
nortear a análise semiótica peirciana, propõe-se proceder à lei-
tura de um texto fílmico (O mistério da libélula), a partir do 1 - O percurso teórico
qual se pretende refletir sobre a natureza do processo cognitivo
de apreensão do signo e do texto-discurso, consoante o cami- A partir de uma concepção fenomenológica de mundo e
nho percorrido pela personagem principal da trama para a sua de conhecimento, Peirce concebe a linguagem como represen-
interpretação. tação da realidade, em que os signos constituem a maneira pela
Em princípio, pode se dizer que O mistério da libélula qual a penetramos e a compreendemos. (Cf. SANTAELLA,
reitera um tema clássico não só da literatura mundial como 2005)
também das artes em geral, da filosofia, cujo signo mais famo- Nesse sentido, os fenômenos são percebidos em sua
so tenha sido estampado na célebre frase de Hamlet: “Há mais configuração sígnica, por meio do que nos sugerem, indicam e
coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia” ou simbolizam. Esses três aspectos que orientam a nossa percep-

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 77 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 78
ção cognitiva dos signos estão ligados à concepção triádica de não-verbal, que se realiza num dado contexto de interação, tan-
signo e os seus modos de representação: como ícone, índice e to o imediato como o mais amplo, em virtude do qual se pro-
símbolo. cessa a significação.
Os ícones se caracterizam pelas qualidades que sugerem Aliás, o problema da significação tem sido abordado, no
e evocam, pelas similitudes que entretêm com os objetos a que âmbito da pesquisa semântica e lingüística, ou como um fenô-
remetem. Os índices indicam a sua existência, apontando para meno circunscrito à imanência do sistema formal de uma lín-
os objetos que lhes conferem sua concretude. Os símbolos são gua e, nesse caso, ligado à tradição estruturalista, ou como um
de natureza mais complexa, geral e abstrata e são apreendidos fenômeno relacionado à natureza enunciativo-discursiva da
pela lei que ensejam, fruto das convenções sociais. linguagem, dos sujeitos e do contexto que a atualizam, configu-
No processo de apreensão do signo, intervêm as opera- rando-se, pois, o estudo da significação em duas perspectivas,
ções de significação, objetivação e interpretação, consoante a ou como asseveram Bakhtin/Volochinov:
sua natureza triádica: signo, objeto e interpretante. A investigação da significação de um ou outro e-
A interpretação do signo pressupõe um percurso que vai lemento lingüístico pode (...) orientar-se para du-
da sua configuração mais concreta, em relação ao objeto a que as direções: para o estágio superior, o tema; neste
se refere ou evoca, à sua natureza mais abstrata e geral, decor- caso tratar-se-ia da investigação da significação
contextual de uma dada palavra nas condições de
rente de sua legitimação social como signo, dado o contexto de
uma enunciação concreta. Ou então ela pode ten-
sua produção. der para o estágio inferior, o da significação: nes-
A nossa hipótese é a de que o processo cognitivo de te caso será a investigação da significação da pa-
percepção do signo, consoante a teoria semiótica, passa pelas lavra no sistema da língua, ou em outros termos a
suas qualidades, evocadas pelo objeto, transformando-se em investigação da palavra dicionarizada.
indício que remete à sua própria existência, para se configurar, (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992: 131)
por fim, como um símbolo que se legitima em virtude, seja das Neste trabalho, nos limitaremos, pois, a tratar da pro-
convenções sócio-culturais que o integram ao seu quadro de gressão cognitiva do signo fílmico, de caráter inter-semiótico,
referências, seja das mudanças dessas convenções que reorga- já que atravessado tanto pela linguagem verbal como pela não-
nizam e ressignificam as concepções internalizadas, mediante o verbal, vinculada ao problema da compreensão da totalidade do
processo interpretativo. texto e, portanto, integrada à enunciação concreta, do seu pro-
Nesse sentido, por ser uma teoria muito abstrata, a se- cessamento pelo leitor, que em um dado contexto de interação,
miótica permite apreender, pois, as linguagens nos seus aspec- mobiliza uma série de conhecimentos lingüísticos, textuais,
tos mais gerais, o que impõe um diálogo com outras teorias semânticos, pragmáticos e discursivos, que lhes permite apre-
mais específicas, ligadas ao objeto de investigação. (Cf. ender o(s) tema(s) ou a(s) isotopia(s) do texto-discurso, em
SANTAELLA, 2005) relação com outros discursos com os quais dialoga.
Não se trata aqui de mobilizar, contudo, uma teoria so-
bre a linguagem cinematográfica, já que concebemos o objeto
de nossa análise como um texto-discurso, seja ele verbal e/ou

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 79 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 80
2 - Desvendando a progressão cognitiva da significação: do que levam à construção da semiose do texto: uma fase em que
signo ao texto os signos sugerem, outra em que indicam e, por fim, uma em
que os signos simbolizam.
A leitura de O mistério da libélula pode levar o espec- Em princípio, uma cruz torta, desenhada por pacientes
tador a fazer uma interpretação ancorada em estereótipos já da ala de oncologia em que sua mulher trabalhara, constitui um
consagrados, uma vez que sua produção faz emergir significa- possível signo a ser desvendado pelo protagonista. Esses paci-
dos com os quais o espectador de massa se identifica, reiteran- entes teriam vivenciado uma experiência de quase-morte, dada
do uma perspectiva cultural ligada à lógica do mercado cine- a interrupção momentânea de suas vidas, e no retorno ao estado
matográfico, de fácil assimilação. Trata-se da construção de de consciência relataram ter encontrado de alguma forma com
imagens que referendam a percepção do sobrenatural, consoan- a doutora Emily, que lhes comunicou a necessidade de interagir
te um efeito de suspense, que reitera uma visão saturada e ba- com Joe. Esses relatos, somados aos desenhos da cruz torta,
nalizada do morto que reaparece na imagem do reflexo da jane- que insistentemente povoam as paredes dos quartos desses pa-
la ou da movimentação espontânea de objetos, que cientes, desencadeiam no protagonista a necessidade de inter-
condicionam a expectativa do espectador para o esperado, não pretá-los. Talvez haja algo a ser comunicado pela mulher, que
causando, pois, o estranhamento pelo inesperado e, assim, não estaria, afinal, morta ou viva? Aquelas duas linhas onduladas,
modificando a percepção consagrada do fenômeno. entrecruzadas na vertical e horizontal, só poderiam evocar na-
Ainda que a história se oriente pela reiteração de este- quele momento uma cruz, ainda que estranha, devido às seme-
reótipos, o filme de Tom Shadyac pode se prestar a uma leitura lhanças icônico-pictóricas com o símbolo cristão, ou com ou-
que se norteie pela trajetória percorrida pelo protagonista na tras referências que não faziam parte do acervo cultural de Joe.
busca de interpretar a semiose produzida pelos signos verbais e Diante de um signo, cujo objeto que evoca é insondável, o pro-
não-verbais, que lhe querem transmitir uma mensagem. tagonista só pode contar com os pacientes, que funcionam co-
Joe Darrow (Kevin Costner) é um médico norte- mo mediadores de uma interação quase impossível, para quem
americano que perde sua mulher grávida, Emily Darrow (Su- está imerso no mundo da razão cartesiana.
sanna Thompson), num acidente de ônibus na amazônia vene- As possibilidades de comunicação com uma interlocu-
zuelana, em que fora desenvolver um trabalho humanitário tora que presumivelmente está morta, pois os rituais sociais,
junto à uma tribo Yanomami. A partir daí, o protagonista co- religioso e jurídico, assim sentenciaram, levam o protagonista a
meça a se ver diante de uma série de acontecimentos que sua supor que talvez a sua mulher ainda estivesse viva, já que se
razão médica não consegue explicar. realizara uma cerimônia fúnebre em que o corpo estava ausen-
Interessa aqui, o percurso que o protagonista percorre, e te. Tal hipótese, plantada como pista falsa para a interpretação
a que o espectador é também convidado a trilhar, para decifrar seja do texto fílmico, seja do texto fragmentado que o protago-
os signos de uma quase mensagem, cujo autor é em princípio nista tem diante de si, constituirá temporariamente uma expli-
desconhecido. cação plausível para uma interação que teima em ser efetivada,
Este percurso de apreensão cognitiva dos signos se di- ainda que contrariando o mundo social que cerca o protagonis-
vide, segundo nossa leitura, em três fases interdependentes e ta e, porque não alguns espectadores, cujas referências se coa-

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 81 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 82
dunam com a razão cética. Para o protagonista, pois, alimentar contendo um móbile de libélulas, para ser montado no quarto
uma esperança dessa natureza condiz melhor com as suas con- da filha que estava para nascer, e o peso de papel transparente
vicções, que são explicitadas, por exemplo, na recusa ao aten- contendo uma representação de libélula em seu interior, guar-
dimento de uma vítima de tentativa de suicídio. O diálogo que dariam semelhanças com o possível ícone desenhado pelas
trava com a personagem reitera suas convicções sobre haver crianças do setor de oncologia. Essa hipótese, no entanto, é
somente vida quando se está vivo ou na asserção dirigida à descartada seja em função da explicação dada por um dos paci-
vítima: “(...) por pior que isto aqui seja, é só o que existe”. entes, para quem a cruz seria um índice, a representação de um
A montagem do texto a ser decifrado cabe ao protago- lugar, no qual haveria um arco-íris, seja em relação à pesquisa
nista, cuja autoria desconhece ou presume ser uma comunica- que o protagonista realiza em dicionário de símbolos não en-
ção de alguém que ainda está vivo. Não há em seu círculo soci- contrar similar com as representações de cruz de outras refe-
al pessoas com quem possa dividir suas inquietações diante de rências culturais.
novas peças de um quebra-cabeça, que vão abalando pouco a Na verdade, esses signos só começam a fazer sentido,
pouco suas crenças. Quando o faz, é tomado como louco. Ra- na medida em que participam de acontecimentos, que lhes dão
zão e loucura, aliás, constituem fronteiras muito nítidas para o origem. Quando ainda se espraiam como signos isolados e está-
seu círculo familiar, de amizades e de trabalho. A cada novo ticos, descolados e não articulados a um contexto, funcionam
evento que se vai acrescentando à comunicação que se pretende como signos desorientadores do processo cognitivo de constru-
efetivar, Joe o relata ao seu círculo ou age de modo intempesti- ção da semiose.
vo, movido que é pelo desejo de desvelar os sentidos da men- Nesse sentido, as inferências construídas pelo protago-
sagem. Avaliado como tendo um comportamento incompatível nista, decorrentes dos acontecimentos que se sucedem, em que
com sua função social de médico, é desacreditado por todos os signos ganham um encadeamento sintáxico-semântico em
que o rodeiam. processos enunciativos inusitados, passam a possibilitar uma
O texto que se vai forjando aos poucos, diante dos olhos progressão de sentido coerente. No processo de interação, em
incrédulos do protagonista, mediante o trabalho cognitivo que que se vai configurando o texto, Joe se define como co-
realiza, orienta-se ora pelo descarte de hipóteses interpretativas produtor de sentido em relação à enunciação realizada por sua
ora por sua assunção, em relação aos signos que constituem a mulher, ainda que em outra instância de enunciação. Para Ba-
tessitura dos eventos. Para van Dijk, as hipóteses interpretati- khtin/Volochinov, “compreender a enunciação de outrem signi-
vas, “dada uma estrutura textual e contextual, permitem supo- fica orientar-se em direção a ela, encontrar o seu lugar no con-
sições sobre possíveis significados e intenções mesmo que se- texto correspondente.” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992:
jam rejeitadas depois” (DIJK, 1996: 81). 131-132).
A cruz torta poderia ser, pois, um ícone que remeteria Como se trata de comunicação, cuja efetivação depende
aos atributos da libélula, marca corpórea de identidade de sua do contato de duas dimensões, normalmente incomunicáveis,
mulher, já que as enunciações subseqüentes referendariam pro- as interações entre Joe e Emily se processaram, de início, no
visoriamente tal sentido. O recebimento de um pacote postal, plano material, por assim dizer.
decorrente de uma compra feita por sua mulher pela internet,

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 83 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 84
A casa do casal constitui espaço privilegiado para al- que não-científico, sobre graus profundos da consciência hu-
gumas das enunciações, de que participam os signos, cujos mana poderem operar uma descendência a dimensões quase
objetos que os representam, manifestam-se como se alguém ou inescrutáveis, saber este que o levaria a prosseguir na busca de
uma força os fizessem se movimentar, já que sua materialidade decifrar o enigma da cruz torta, malgrado as tentativas de seu
e sua condição de inanimados os definissem pelo princípio da círculo de dissuadi-lo a fazê-lo.
inércia. Esse movimento, no entanto, como o do peso de papel, No entanto, as convicções do protagonista são ainda su-
encadeia-se com a lembrança do protagonista, de que a mulher ficientemente fortes para resistir aos fatos. Depois de ser con-
tinha cravado em seu dorso um ícone, cujos traços evocavam vencido por seu círculo a vender sua casa e sair em viagem
uma libélula, forma escolhida por Emily para retornar, depois para recobrar a consciência e bom senso, o protagonista se vê
de morta, numa outra vida. A historicidade do discurso do ca- diante de acontecimentos que lhe fazem retomar a sua busca. O
sal, presentificada através de flash backs e recuperada pelo retorno espontâneo das roupas da mulher ao armário, do peso
protagonista, possibilita que se articule, consoante a sintaxe de papel à mesinha de cabeceira, depois de empacotados, as
fílmica, seus nexos com as manifestações da libélula, seja no luzes que se queimam espontaneamente, fazem com que o pro-
móbile, no peso de papel, no dorso da mulher, seja em sua apa- tagonista irrompa para fora da casa, da qual se preparava para
rição como ser vivente diante da janela da casa, como símbolo mudar, e vislumbre do lado de fora, que as respostas que pro-
da companheira desaparecida. curava se encontrariam em seu interior. Depara, então, com a
Se o signo libélula indica e mesmo simboliza uma locu- cruz torta em um mapa de viagem. Não uma, muitas! Desco-
tora que efetivamente quer comunicar alguma coisa, faltava, no bre, ao consultar o amigo que o acompanharia em viagem por
entanto, decifrar ou, mais precisamente, identificar o que signi- um rio com corredeiras, que se tratava de um símbolo indicati-
ficaria a cruz torta, a fim de que o quadro textual pudesse ter vo de cachoeira, legível aos olhos de quem sabe interpretar a
mais uma de suas peças colocada, agora por um índice, que linguagem de um mapa. Bastava, pois, articular esse dado, com
levaria o protagonista ao contexto de interação com Emily. uma fotografia, em que Emily aparece em primeiro plano, uma
As manifestações que se seguem são cruciais para que cachoeira ao fundo, bordada por arco-íris.
se opere no protagonista as mudanças necessárias, para que de É importante observar que os signos que o levariam en-
fato acredite na possibilidade de interagir com sua mulher. No fim ao encontro com Emily, reúnem dados significativos para
entanto, Joe ainda oscila entre credulidade e incredulidade, que tome a decisão de fazer uma outra viagem, não aquela re-
diante da imagem da mulher, no reflexo da janela, ou da tenta- comendada por seu círculo, para que recobrasse a razão perdi-
tiva de comunicação de um homem com morte cerebral, usado da, mas aquela que o levaria ao lugar indicado pela foto, que o
presumivelmente por Emily para tentar uma interação, no en- transportaria também para as profundezas de sua consciência.
tanto, mal sucedida. Viajar, pois, para a amazônia venezuelana, a fim de lo-
Se o seu círculo social não o ajuda a resolver o dilema, calizar os objetos a que os signos indiciais remetiam, significa-
que o faz oscilar entre uma pretensa loucura e uma razão coer- ria para o protagonista fazer uma outra viagem, interior, ao
citiva, o protagonista apela para uma freira, cujas investigações mundo da consciência insondável.
sobre os casos de quase-morte, conferem-lhe um saber, ainda

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 85 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 86
No local em que acontecera o acidente que vitimou sua nina, a que se refere metonimicamente como Libélula, cuja
esposa, Joe localiza a cachoeira, referência da cruz torta, reite- marca de nascença, tatuada em seu tornozelo, justifica a deno-
rada pelo símbolo cartográfico. Dirige-se para lá, parecendo minação.
ainda acreditar que sua esposa estaria viva, pois um dos dois Naturalmente, o enigma da libélula se resolve a partir
índios, que o recebera juntamente com o piloto do avião, que o do entrelaçamento dos signos icônicos e indiciais, cujos senti-
transportara para a área indígena, reconhecera sua mulher na dos são recuperados, quando se completa o quadro interacional
foto que lhes mostrara, como “a doutora da Cruz Vermelha”. e enunciativo, por meio do qual é possível compreender a sig-
Num impulso, depois de avistar o ônibus, que transportara sua nificação do texto como um todo. Para tanto, o protagonista,
mulher no dia do acidente que a vitimou, semi-imerso nas á- bem como o leitor, que assimila sua trajetória interpretativa,
guas do rio onde caíra, atira-se do alto da cachoeira, num mer- são levados a compreender a significação dos signos verbais e
gulho que o levaria para o interior do ônibus, no afã talvez de não-verbais, por meio de um processo cognitivo, que mobiliza
verificar com os próprios olhos as possíveis pistas deixadas por mecanismos inferenciais, referências culturais e de mundo,
sua companheira. cujas hipóteses interpretativas, quando válidas, são referenda-
O fluxo intenso das águas, somado ao movimento do das pelo contexto interacional, que as legitimou, ou como en-
protagonista no interior do ônibus, levam o veículo a se deslo- tendem Simões e Dutra que,
car abruptamente, ocasionando a prisão de um de seus pés nas Na consideração dos conhecimentos prévios de
ferragens do ônibus. Imerso totalmente nas águas que tomam o mundo e histórico-social necessários para se res-
interior do ônibus, o protagonista como que desiste de lutar gatar o sentido do texto (...) a identificação de í-
para se desprender. cones e índices na superfície dos textos depende
não só do repertório do leitor, mas também de seu
É, pois, no meio aquático que se vai operar a interação
conhecimento enciclopédico.
entre Joe e Emily, mediante o contato entre as duas dimensões (SIMÕES e DUTRA, 2002: 4)
em que se localizam. O entrelaçamento das mãos do casal pos-
sibilita que a comunicação se processe, consoante imagens que 3 - O diálogo interdiscursivo entre temas ou isotopias
recobram as circunstâncias que envolveram o acidente, bem
como o rumo que tomara o corpo de Emily pelas águas, em Tal como propusemos de início, a leitura que estamos
direção à aldeia dos Yanomamis, que o resgataram. Trazido à empreendendo toma o texto fílmico como um discurso sobre
tona pelas mãos do piloto, o protagonista recobra a consciência como se processa a significação. No tópico anterior, tentamos
e se dirige à aldeia, a fim de completar a mensagem tecida por demonstrar que a trajetória percorrida pelo protagonista para a
sua mulher. interpretação dos signos verbais e não-verbais, a que o especta-
A comunicação que se dá entre o protagonista e os ín- dor também é convidado a percorrer, condiciona-se às hipóte-
dios é mediada pela foto de Emily, cuja imagem é reconhecida ses válidas que constrói para o processamento da significação
pelos membros da aldeia. Uma velha índia, depois de dizer ao da totalidade do texto.
protagonista que a alma de sua mulher sobrevivera, toma-lhe Nesse sentido, O Mistério da libélula pode ser concebi-
pelas mãos e o conduz a uma tenda, onde lhe entrega uma me- do como um metatexto, cuja reflexão nos permite compreender

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 87 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 88
que a significação dos signos só se efetiva em ligação estreita Na verdade, como dissemos, o conflito interior e exteri-
com o contexto imediato e mais amplo de interação, no qual a or que vive o protagonista, em relação às crenças e valores que
enunciação completa se constitui. É nessa dimensão da lingua- o identificam e, posteriormente, o diferenciam de seu círculo
gem que os conhecimentos lingüísticos, experienciais e de social, resultam de uma mesma formação discursiva, uma vez
mundo vão ser mobilizados pelo leitor, a fim de que co- que
produza os sentidos de uma mensagem forjada por um autor, Uma formação discursiva não é um espaço estru-
em uma dada instância de enunciação. tural fechado, já que ela é constitutivamente ‘in-
Assim, o metatexto configura-se como um investimento vadida’ por elementos provenientes de outros lu-
metateórico, por meio do qual é possível compreender os pos- gares (i.e., de outras formações discursivas) que
nela se repetem, fornecendo-lhe suas evidências
tulados básicos da teoria semiótica peirceana, bem como rela-
discursivas fundamentais.
cioná-los a uma concepção de significação, inscrita na intera- (Pêcheux apud CHARAUDEAU e
ção verbal, concebida como realidade fundamental da língua e MAINGUENEAU, 2004: 241)
do discurso. (Cf. BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992) O discurso científico, pois, que referenda as convicções
Em vista disso, é que propusemos, neste trabalho, pro- racionalistas do médico, legitimado por seu círculo social, é
ceder a uma análise semiótico-discursiva, com intuito de com- atravessado por “elementos provenientes de outros lugares”,
preender como se dá o processamento cognitivo do signo. cujos signos e os eventos que lhes dão origem se ligam ao
Importa, pois, conceber o signo na sua dimensão textu- mundo religioso e espiritual. A experiência de quase-morte,
al-discursiva, consoante o paradigma dialógico bakhtiniano, em vivenciada no espaço da medicina de tradição ocidental, mate-
que os discursos são entendidos como resultantes de um pro- rializada pelo hospital, requer uma explicação, um discurso,
cesso histórico-social, em virtude do qual se confrontam ou oriundo de um outro lugar, não propriamente do discurso reli-
convergem em direção a tema(s) ou isotopia(s), que a análise gioso oficial, mas de uma instância discursiva que está à mar-
do signo textual possibilita. gem deste, mas que com ele encontra convergências, entre as
Nesse sentido, pode-se perceber, mediante a leitura que quais a de que existe vida após a morte, evidência que, no en-
vimos propondo, um confronto entre dois discursos, o científi- tanto, não constitui um objeto de investigação canônico. A a-
co e o religioso, que coexistem, de início, como vozes disso- ceitação de uma crença não implica necessariamente para o
nantes no interior de uma mesma formação social, a que per- mundo mítico-religioso uma explicação científica sobre as evi-
tence o protagonista. Charaudeau e Maingueneau entendem dências que tornam essa crença possível. Pelo contrário, uma
formação social dentro do quadro teórico do marxismo althus- tal convicção é assumida muitas vezes como dogma que não
seriano, caracterizando-a como investida de “uma certa relação pode ser refutado, porque investido de um discurso que não
entre as classes sociais”, o que implica a coexistência de posi- deve ser objeto de indagação e questionamento. Nesse sentido,
ções políticas e ideológicas, “que mantêm entre si relações de o discurso da freira, ainda que marginal aos postulados oficiais
antagonismo, de aliança ou de dominação”, tendo em vista di- da igreja, como que constrói uma ponte entre uma convicção
ferentes formações discursivas (Cf. CHARAUDEAU e inquestionável e a pesquisa científica que empreende sobre os
MAINGUENEAU, 2004: 241). casos de quase-morte, cujos signos referendam a crença tradi-

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 89 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 90
cional, bem como permitem que a razão médica redimensione sobre o processamento da significação do texto-discurso, pos-
suas convicções. sibilitou-nos refletir sobre alguns dos postulados da análise
Não se trata, pois, de opor absolutamente o mundo cien- semiótico-discursiva, que intervêm na construção do significa-
tífico e religioso, mas de perceber que coexistem nessas forma- do do texto como um todo. Esse fato nos permitiu pensar tam-
ções discursivas confrontos e convergências, que fazem com bém sobre alguns dos conhecimentos lingüísticos, textuais,
que as convicções da razão médica, materializadas pelo itinerá- semânticos, pragmáticos e discursivos que são mobilizados no
rio percorrido pelo protagonista, sejam ressignificadas, permi- processo de leitura de textos, sejam verbais e/ou não-verbais,
tindo que o protagonista afirme em off, ao final do filme, que por meio dos quais a interpretação do texto-discurso se eviden-
sua esposa, além de ensinar-lhe em vida, a ter fé e a sempre cia como atividade verdadeiramente complexa.
acreditar, também lhe ensinou na morte a mesma lição, que “só Resta, pois, apostar que a reflexão que realizamos sobre
acreditando chegamos lá”. a progressão cognitiva do signo, dentre outras possíveis, possa
Diante disso, pode-se afirmar que o interdiscurso, com- contribuir com o debate em torno da questão da leitura no âm-
preendido como “um conjunto de dizeres já ditos e esquecidos bito do ensino de língua materna, já que se inscreve numa con-
que determinam o que dizemos” (ORLANDI, 2005: 59), evi- cepção de significação, que considera a heterogeneidade como
dencia-se pelas inter-relações entre o mundo científico e o reli- constitutiva da linguagem e do discurso, o que implica que a
gioso, conferindo ao texto-discurso analisado uma atualidade, leitura de textos se realiza em confronto ou em convergência
na medida em que o diálogo entre os temas ou isotopias de com outros textos, com os quais dialoga. Isso se aplica também
cientificidade e religiosidade, ainda constituem objeto de deba- aos discursos sobre a leitura, cujo debate se faz necessário para
te e não deixaram de sê-lo no decurso da história. a qualificação do ensino de língua materna.
Ao propor o tratamento do tema da (in)credulidade, por
meio do discurso fílmico, o diretor Shadyac se conforma a uma Referências Bibliográficas:
visão de que ciência e religião devem interpenetrar-se numa
espécie de casamento, em que uma não exclua a outra, mas que BAKHTIN, M. e VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia
sirvam aos mesmos propósitos, quais sejam, o de compreender da linguagem. 6 ed. São Paulo: Hucitec, 1992.
e admitir a existência dos fenômenos que transcendem a reali- CHARAUDEAU, P. e MAINGUENEAU, D. Dicionário de
dade ou na atribuição simbólica que confere a Joe e Emily, em análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.
que esta representaria a emoção, este a razão, formando um DIJK, T. A. van. “Contexto e cognição”, in: Cognição, discur-
casamento perfeito. so e interação. São Paulo: Contexto, 1996.
ORLANDI, E. P. Discurso e texto: formulação e circulação de
Considerações quase finais sentidos. 2 ed. Campinas, SP: Pontes, 2005.
SANTAELLA, L. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira
Não se trata aqui de fechar a discussão sobre a progres- Thomson Learning, 2005.
são cognitiva do signo, em virtude da qual a semiose se cons- SHADYAC, T. O mistério da libélula (Dragonfly). EUA,
trói, mas antes admitir que o estudo parcial que empreendemos 2002.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 91 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 92
SIMÕES, D. M. P. e DUTRA, V. L. R. “La iconicidad en la A ARTE E O REAL DE PASSAGEM, O CINEMA
unidad textual: un análisis”. Escritos 27 Revista Del Centro de
Ciencias Del Lenguaje Puebla México, Univ.Aut.de Puebla - Cristiano de Sales
UFSC
México, v. 27, p. 91-104, 2003.

RESUMO:
A crítica cinematográfica se ocupa da imagem em movimento a partir de
diferentes métodos: ora se desenvolvem análises numa perspectiva psicoló-
gica, ora sob o prisma do formalismo, ou ainda os argumentos procuram
relacionar essa prática artística a alguma intervenção política. Por sua vez, o
ensaio apresentado aqui sugere um olhar sobre essa prática, que é acima de
tudo estética, a partir da fenomenologia, mais precisamente da fenomenolo-
gia de Merleau-Ponty. O recurso a este filósofo se dá pela necessidade de se
pensar o que há de real nessa linguagem artística que aparentemente é a arte
da realidade por excelência.
PALAVRAS-CHAVE:
Cinema, fenomenologia, real.

1 - Uma chave de leitura

A noção de Real é algo de que vem se ocupando signi-


ficativamente a crítica das diferentes artes no ambiente acadê-
mico. Em se tratando, porém, de pensar um conceito (ou ape-
nas uma noção) e os diferentes campos epistemológicos dos
quais se ocupa a estética, quem estaria mais autorizado a con-
duzir a discussão que não a filosofia?
No entanto, levando-se em conta que o campo episte-
mológico-estético enfocado aqui para pensar o Real é o cine-
ma, resistamos um pouco antes de entregarmos a responsabili-
dade do assunto à filosofia. Pois, tendo-se em mente os três
séculos e meio em que a ciência do pensamento vem se ocu-
pando explicitamente da estética, ou – sejamos mais radicais –
tendo-se em mente que a filosofia já se ocupa dessas discussões
desde os escritos de Platão, e considerando, enfim, a pouca

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 93 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 94
idade dessa que é a sétima das artes, atribuamos essa responsa- neira eisensteiniana, em que se ultrapassa a técnica rumo ao
bilidade, ao menos nesse primeiro momento, aos críticos cine- efeito), pois veremos adiante que na impossibilidade de se a-
matográficos. preender alguma verdade, ou realidade, seja no cinema ou em
Em A Experiência do Cinema, uma antologia organiza- qualquer outra linguagem, um caminho possível para a com-
da por Ismail Xavier, em que se encontram ensaios críticos de preensão de algo é nos ocuparmos do ‘como’ e não do ‘o que
cinema numa perspectiva do olhar, da poesia e da psicanálise, é’ esse algo que nos escapa ao mesmo tempo que nos prende, e
nota-se um esboço daquilo que Deleuze reivindicava numa que chamamos de Real.
entrevista de 1985: conversa em que o filósofo fala de uma Façamos então um recuo epistemológico a fim de com-
necessidade de se teorizar o cinema, e não apenas descrevê-lo. preendermos melhor esse exercício de pensar o Real a partir do
O cinema precisa, segundo ele, de seus próprios conceitos, e cinema. Tentemos não nos lançar imediatamente ao encontro
estes não se reduzem à linguagem técnica cinematográfica, mas das críticas cinematográficas já ensaiadas desde o início do
sim devem se constituir a partir de suas próprias linguagem e século para evitarmos, ao menos de início, o risco de não fa-
capacidade de revelar limites. Ou seja, a crítica cinematográfi- zermos mais que metacrítica (No sentido que Compagnon em-
ca deve, pensa o filósofo, elaborar sua própria episteme, para pregou o termo em O Demônio da Teoria).
então revelar suas próprias incompreensões, pois “a técnica não Partindo-se da hipótese que a sétima arte é uma lingua-
é nada se não serve a fins que ela supõe e que ela não explica” gem – embora cientes de que Pasolini e Deleuze não concorda-
(DELEUZE, 1992: 76). riam com isso, haja vista o capítulo 2 de A Imagem-Tempo –
Voltemos, porém, ao livro organizado por Ismail Xavi- pensemos nas demais linguagens artísticas para começarmos a
er. Nele encontramos ensaios que exercitam sim a crítica des- responder as seguintes perguntas: qual a dificuldade do cinema,
critiva apontada por Deleuze (é o caso explícito de Pudovkin, quando comparado às demais artes, em fazer perceber o Real?
que ensina como montar um filme, ou até mesmo o caso de E que Real é esse?
Eisenstein, que, embora subordine a descrição das técnicas à Deixemos claro que não estamos nos opondo a Deleuze,
criação de efeitos, não deixa de situar o argumento no nível dos pois não acreditamos numa linguagem cinematográfica de a-
aparatos técnicos, que é o nível da composição tratando-se de cordo com a perspectiva lingüística, dado que se assim proce-
cinema); mas encontramos também algumas entradas no cam- dêssemos cairíamos na lógica imagem-enunciado; estamos
po reivindicado pelo filósofo do virtual: é o caso de Balázs, que apenas pensando que há uma linguagem própria do cinema,
reflete acerca da linguagem gestual antes de seu olhar focar a que é da ordem da própria forma de manifestação artística, as-
câmera, bem como o caso de Bazin, que reflete sobre o poten- sim como as cores para o pintor trazem seu próprio ser e não
cial de retenção da imagem e libertação do artista proporciona- devem ser reduzidas a enunciados propostos por alguma análi-
das pela fotografia, ou ainda o caso de Metz que esboça uma se lingüística.
reflexão sobre o discurso trazendo à baila a psicanálise. Se estivéssemos pensando nas correntes realistas, pode-
Entretanto, diferente de Deleuze, este artigo não enten- ríamos começar respondendo as perguntas acima de forma bas-
de essa recorrência das descrições técnicas como algo que pos- tante objetiva: quando comparado às demais artes, o cinema
sa estagnar a crítica cinematográfica (se pensadas, claro, à ma- tem a grande vantagem de evocar a realidade, ou seja, de re-

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 95 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 96
produzir fielmente, por meio da retenção da fotografia, os obje- quanto o trabalho do artista que propõe significações pela lin-
tos da vida real. Assim sendo, o cinema seria por excelência a guagem cinematográfica se distancia do trabalho dos demais
linguagem artística da realidade. artistas. Não estamos aqui ignorando o trabalho de Antonioni,
No entanto, estamos lidando com uma linguagem que que se deixava surpreender com a atuação dos corpos para de-
se consolida por meio de uma experiência estética, por isso, pois partir para as montagens cinematográficas, estamos apenas
apostar numa leitura realista não consiste, no nosso entender, afirmando que essa surpresa não toma o artista (cineasta) no
numa boa chave de leitura. Aceitar a idéia de apreensão da rea- momento da exibição do filme, no nosso entender, momento
lidade, tratando-se de uma linguagem que, mais explicitamente em que o filme se faz arte. Eis mais um motivo para abdicar-
que qualquer outra, só existe na passagem, consiste numa ne- mos, o quanto possível, da crítica pré-concebida.
gação do próprio cinema como campo epistemológico possível Não sejamos, porém, negligentes a ponto de propormos
(e passível) de diferentes teorias – conforme pedia Deleuze. uma falta de atenção à crítica cinematográfica, pois, já mencio-
Sendo assim, que Real é esse que poderíamos pensar a namos acima, encontramos em Bazin, Balázs, Eisenstein, Metz
partir do cinema? e outros uma reflexão crítica que ultrapassa as descrições do
O recuo sugerido acima tem por preocupação nos de- artesanato. E mesmo não pensando nesses autores não poderí-
sarmarmos o máximo possível dos conceitos já estabelecidos amos, da mesma maneira, acusar Pudovkin e outros de reduzi-
acerca do assunto antes de escolhermos o que chamamos de rem a crítica à descrição, pois, como já antecipamos, a busca
chave de leitura. Seria o momento, talvez, de fazermos como por um Real que não se pode apreender está mais próxima da
Barthes em Ao sair do cinema (texto em que ele reflete a partir descrição (como é) que da definição (o que é).
do próprio gesto de ir ao cinema e assistir a filmes), ou apenas Mas não adiemos mais a escolha da chave de leitura
de aceitarmos a idéia de que o cinema enquanto efeito estético deste ensaio (numa linguagem científica, provavelmente, esta-
só existe lá, na sala escura enquanto os rolos projetam as ima- ríamos falando de metodologia). Comprometamo-nos de uma
gens na tela grande. Todo o artesanato empenhado na composi- vez com o Real no cinema.
ção de um filme, que ocupa predominantemente o conteúdo da Alain Badiou propôs em seu Pequeno Manual de Ines-
crítica cinematográfica, é meticulosamente arquitetado para tética que a verdade da arte deve ser buscada não a partir de
que no momento da projeção algo aconteça. E é somente nesse conceitos pressupostos de Real e de arte, mas sim a partir do
acontecimento que podemos ser tocados por algo que nos pare- próprio objeto artístico. E podemos pensar que se há uma ver-
ça Real. Diferente de artes como a do pintor, a do escritor e até dade a ser buscada, a sugestão feita por Badiou pode bem ser-
mesmo a do músico, o cineasta não é surpreendido no momen- vir ao que chamamos de chave de leitura. Porém, essa postura,
to do acontecimento, pois ele trabalhou minuciosamente na sugerida pelo crítico inesteta, diante da experiência artística,
criação daquele efeito, ao passo que, mesmo munido de toda a não se trata, bem sabemos, de novidade pelo menos desde a
técnica, o pintor, o escritor e o músico podem muito bem ser crítica literária pós-estruturalista: haja vista textos como A mor-
surpreendidos enquanto compõem, seja numa pincelada inespe- te do autor e Da obra ao texto, de Roland Barthes, bem como
rada, num verso sem ritmo que tenha imposto sua própria mú- todo o argumento acerca da escritura (Derrida) e do discurso
sica, ou na execução de uma nota expressiva. Isso evidencia o (Foucault). Porém, a referência mais explícita de Badiou nos

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parece ser Deleuze, com suas inspirações leibnizianas, pois o Sei a verdade e sou feliz.
exercício de buscar a verdade na arte nos leva a acreditar na (Trecho do poema IX de O Guardador de Reba-
imanência e no desdobramento da obra. Enfim, o autor do Pe- nhos)
queno Manual de Inestética tentou com seu livro organizar Assim nos postaremos diante dessa questão que nos faz
idéias (leia-se aqui vários ensaios e vários autores publicados) ir atrás de uma verdade na arte: abdicando de todo um aparato
tributárias de uma mesma necessidade de se livrar do subjeti- prévio que nos determine os passos a serem dados no concer-
vismo que tende a reduzir as reflexões estéticas a uma função nente à realidade e ao cinema. Deitemos o corpo no cinema.
intencional e consciente. Desarmemo-nos.
Não desmereçamos, entretanto, o trabalho de Alain Ba- Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma ves-
tida!)
diou por não se revelar um tratado absolutamente original, pois
Isso exige um estudo profundo,
seu texto viabiliza entradas efetivas para uma crítica que reco- Uma aprendizagem de desaprender
nheça a necessidade de reavaliação conceitual. Um dos capítu- E uma seqüestração na liberdade daquele conven-
los do Manual está dedicado a exercitar a postura inesteta nos to
limites do cinema. Porém, nossa entrada nessa discussão (Re- De que os poetas dizem que as estrelas são as
al/arte) não se dará por meio dessa intervenção do autor junto freiras eternas
ao cinema, muito embora este último também seja nosso foco. E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Interessa-nos como chave de leitura um outro capítulo desse Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Manual, em que somos levados a Fernando Pessoa. Nem as flores senão flores,
O recurso, porém, a esse capítulo do livro de Badiou Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flo-
não entrelaça nosso argumento às noções de antiplatonismo res.
(Trecho do poema XXIV de O Guardador de Re-
dissertadas pelo filósofo acerca da obra de Fernando Pessoa
banhos)
(nessa empreitada Álvaro de Campos parece atender mais ao
argumento de Badiou, dado que esse é o heterônimo com um
2 - real em minúscula
projeto metafísico mais explícito), mas se deve apenas ao fato
de reconhecermos em outro heterônimo de Pessoa a nossa cha-
Definida a maneira como pensaremos realidade no
ve de leitura: Alberto Caeiro:
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
cinema, a saber, uma maneira que já dispensa o re-
E comer um fruto é saber-lhe o sentido. al grafado com letra maiúscula (que nos remeteria
mais ao Realismo), voltemos a uma das discussões
Por isso quando num dia de calor iniciais deste artigo: filósofos ou críticos cinemato-
Me sinto triste de gozá-lo tanto, gráficos?
E me deito ao comprido na erva, Deleuze já falava, na série de entrevistas mencionada
E fecho os olhos quentes, anteriormente, que críticos cinematográficos como Bazin já
assumem posturas filosóficas ante as experimentações práticas
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, e teóricas com/no cinema, ou seja, uma escolha não exclui a

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 99 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 100
outra. E nessa esteira onde críticos cinematográficos e filósofos ciar a arte na tela de cinema. Contrastando as atenções exigidas
podem ser entrelaçados para uma melhor compreensão dos no cinema com as do teatro, o psicólogo alemão foi perspicaz
limites do cinema (leia-se epistemologia), aceitemos o conse- ao nos fazer entender (já em 1916, numa época em que Saussu-
lho que Ismail Xavier nos faz na Introdução da primeira parte re ainda não era lido e o cinema ainda não falava) que a arte
d’A Experiência do Cinema. Neste texto introdutório o autor feita para a tela impõe muito mais os movimentos de atenção
fala numa possível aproximação entre Hugo Munsterberg e do espectador do que se fazia no teatro. Ou seja, evidenciava-se
Merleau-Ponty, referindo-se aos ensaios do psicólogo alemão uma diferença de linguagem que passaria de forma definitiva
editados em A Experiência do Cinema e à conferência O Cine- pela reconfiguração do espectador enquanto percebedor da o-
ma e a Nova Psicologia, do fenomenólogo da percepção. En- bra.
tretanto, nosso interesse pela aproximação apontada por Xavier Aos tipos de atenção Munsterberg chamou voluntária e
provém de outro ensaio de Merleau-Ponty, intitulado O Olho e involuntária: por atenção voluntária se entende aquela em que
o Espírito, com os mesmos ensaios de Munsterberg sugeridos o espectador determina seu foco de atenção (um espectador de
na introdução citada. teatro com binóculos, por exemplo); por atenção involuntária
Os motivos? Vejamos alguns. se entende aquela que atrai o espectador para determinado ele-
Para a chave de leitura que estabelecemos como nortea- mento sem que o mesmo premedite seu foco de atenção para
dora de nosso argumento julgamos mais coerente confiar num aquele elemento. Assim, o cinema estaria mais carregado de
filósofo que se encarrega de pensar a filosofia a partir da arte e atenção involuntária que o teatro. Além dessas definições pro-
não submeter a segunda às necessidades de comprovação da postas pelo cineasta-psicólogo, outros elementos de seus ensai-
primeira; sem dizer que estamos nos referindo ao filósofo que os justificam sua escolha para o nosso argumento: é o caso da
estabelece o corpo como fundação das significações do mundo profundidade e do movimento. Embora o autor tenha preferido
(à maneira de Merleau-Ponty, acreditamos no corpo próprio não problematizar essas questões tal como fez com as atenções
como elemento determinante da percepção das experiências voluntária e involuntária, essas duas noções interessam muito
vividas diante de uma tela de cinema. Portanto, se há uma ver- ao nosso ensaio, dado que em O Olho e o Espírito Merleau-
dade a ser alcançada, isso somente ocorrerá por meio do corpo, Ponty lapida seus conceitos de visível e invisível a partir jus-
no caso, do espectador). Além disso, acreditamos que em O tamente da noção de profundidade e, em certa medida, a partir
Olho e o Espírito Merleau-Ponty problematiza as questões am- também da noção de movimento.
bicionadas por Alain Badiou num nível mais complexo tratan- Pois bem, justificadas as presenças de um e de outro
do-se de experiências estéticas. Enfim, no nosso entendimento, pensemos no cinema.
o filósofo das (in)visibilidades se presta melhor do que o ines- Dissemos acima que o cinema numa perspectiva realista
teta ao que Caeiro chamou de “aprendizagem de desaprender”. seria por excelência a linguagem artística da realidade. Mas
Do outro lado (ou do mesmo?), não se deitando ao reformulemos esse pensamento: o cinema, com todo seu poten-
comprido na erva, como fez Caeiro, mas acomodando-se bem cial de demonstração do movimento, está, em certa medida,
na poltrona do cinema, como sugeriu Barthes, Musnterberg foi condenado à realidade. O movimento na imagem cinematográ-
preciso na observação das atenções exigidas para se experien- fica não é sugerido ou elaborado de tal maneira que exija do

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percebedor a continuidade da obra. Por um fenômeno físico e está ali, magicamente, mas não vai daqui até ali” (Merleau-
incontornável a geração de dezenas de fotos por segundos im- Ponty, 2004, p. 41).
põe ao espectador de cinema a percepção do movimento. Esse
mesmo movimento só será obtido em pintura, ou em escultura,
devido a um deslocamento de quem percebe a obra; pensemos
em obras como Noiva de Duchamp e Homem andando de Ro-
din.

Para a escultura de Rodin, percebemos o movimento ao


nos anteciparmos a própria visibilidade que o bronze propõe, o
movimento está exatamente no corte da passada, na paralisação
do movimento, o movimento está no que não está posto, está
Para a primeira, percebe-se que aquela espécie de ar- no instante seguinte, está na frente do homem de bronze. Por
madura se articula propondo um deslocamento; “está aqui e isso acreditamos que o esforço da pintura e da escultura para

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 103 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 104
evocar as coisas do mundo que nos envolve e que percebemos percepção, algo a que possamos chamar de real, para a partir
(talvez seja essa a busca, talvez seja esse o real) não deveria delas descrevermos quiçá o efeito de real.
perturbar tanto o autor de cinema. Nos agarramos às marcas em busca do efeito como
Porém, seria bastante reducionista da nossa parte to- quem se agarra ao visível em busca do invisível. Sugerimos,
marmos o movimento como único problema a ser resolvido assim, que se entenda aquilo que Munsterberg chamou de pro-
para evocar a realidade, pois se assim fosse o teatro já estaria fundidade e movimento de acordo com as noções que Merleau-
muito adiantado em relação à pintura e à escultura. Bem sabe- Ponty chamou de visível e invisível. Isso nos permitiria dizer
mos que não se trata apenas de trazer à tona o movimento, mas, que a profundidade – seja na vida ou na tentativa de evocação
principalmente, de suscitar a partir dele percepções comparadas da vida pela arte – é o que viabiliza a percepção do movimento
às da realidade. Assim sendo, Meliès se atira às folhinhas que e sua contigüidade, e estes por sua vez alimentam no especta-
aparecem ao fundo no filme em que o bebê come papinha, i- dor o constante desejo de tocar a profundidade, de tocar o que
maginando que aquela evidência de realidade (folhas que ba- está além. O que buscamos ao percebermos uma imagem visí-
lançam num galho de árvore) seria o potencial que o cinema vel não é o que está contido entre os traços que a limitam, mas
teria para explorar. No entanto, aquela imagem que afetou justamente o que está ao fundo dessa contigüidade. Partimos
Meliès provocando nele a sensação de realidade só existiu no em busca do invisível e nosso caminho rumo a esse objetivo
momento da percepção. No instante seguinte, aquele em que o vai sendo lapidado pelos contornos precisos daquilo que nos
futuro pai do cinema tenta estabelecer com as folhinhas que separa, a saber, o visível. Contrário do que se poderia pensar, o
balançam alguma relação de contigüidade do real, a sua per- visível não se opõe ao invisível, ele apenas alimenta em nós o
cepção já afetou seu corpo e aquele instante de realidade já foi desejo de alcançarmos essa profundidade inalcançável. O visí-
para a memória (se quiséssemos falar com Bergson), ou para as vel inaugura o invisível da mesma forma que a folhinha balan-
experiências do corpo habitual (se preferíssemos Merleau- çando na árvore inaugurou o real para Meliès, porém, no ins-
Ponty), ou, simplesmente, foi para algo que já é passado. tante mesmo em que o cineasta esticou a mão para alcançá-la
A realidade escapou a Meliès como tem escapado sem- no galho e sentir sua aspereza o vento já a havia soprado pra
pre à arte e às linguagens. Entretanto, no cinema, esse constan- outro lugar.
te escapar da realidade ganha potencia devido à linguagem ci- Assim sendo, tudo que poderíamos afirmar acerca do
nematográfica que está fadada ao movimento. Mais que em real no cinema é que o poder dessa linguagem está na diferente
qualquer outra linguagem artística o real no cinema está so- forma de tentar buscar essa folhinha que insiste em voar pelas
mente na passagem, pois o próprio cinema só fala algo na pas- visibilidades possíveis, inaugurando a cada instante diferentes
sagem. realidades.
Esse real que passa e que escapa deixa rastros que por
se tratarem de marcas de algo que já passou não têm o poder de Referências Bibliográficas:
evocar a realidade. Então o que fazemos nada mais é do que
nos apropriarmos dessas marcas que evocaram, no instante da BADIOU, Alain. Pequeno Manual de Inestética. Tradução:
Marina Appenzeller, São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 105 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 106
BERGSON, Henri. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação CIBERMÃE: UMA VIAGEM TECNOLÓGICA ATRA-
do corpo com o espírito. Tradução: Paulo Neves, São Paulo: VÉS DA LITERATURA
Martins Fontes, 1999.
DELEUZE, Gilles. A Imagem-tempo. Tradução: Eloísa de Ara- Danielle de Paiva Lopes
USP
újo Ribeiro, São Paulo: Brasiliense, 2005.
_______. Conversações. Tradução: Peter Pál Pelbart, Rio de
Janeiro: Ed 34, 1992. RESUMO:
MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito. Tradução: Este trabalho propõe discutir as contribuições tecnológicas para a literatura
Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira, São e as relações intersemióticas entre letra e imagem no livro juvenil Ciber-
mãe, de Alexandre Jardin. São abordadas algumas questões como lingua-
Paulo: Cosac & Naif, 2004. gem verbal e não-verbal e analfabetismo visual. O impacto da imagem para
_______. O Visível e o Invisível. Tradução: José Artur Gianotti o texto literário é investigado no livro, já que facilita alguns conceitos da
e Armando Mora d’Oliveira, São Paulo: Perspectiva, 2005. área tecnológica para o leitor. A fundamentação teórica parte de alguns
PESSOA, Fernando; CAEIRO, Alberto. O Guardador de re- estudiosos como Donis A. Dondis, Lúcia Pimentel Góes e Lúcia Santaella.
banhos: seguido de o pastor amoroso. São Paulo: princípios, PALAVRAS CHAVE:
1997. Literatura para a juventude, Cibernética, semiótica.
XAVIER, Ismail. (org). A experiência do Cinema: antologia.
Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
1 - O Ciberespaço

O livro de Alexandre Jardin é uma viagem pelos clássi-


cos, tendo a tecnologia como suporte. Antes de discutir a via-
gem das personagens, vale ressaltar a importância que o espaço
virtual ganha em Cibermãe. Ao analisar o próprio título, obser-
vamos que esse neologismo (ciber + mãe) carrega em si tanto a
questão principal do enredo (o desaparecimento da mãe) quan-
to a presença de um espaço virtual. O prefixo ciber- é oriundo
da palavra Cibernética (ing. Cybernetcs), “a ciência que estu-
da as comunicações e o sistema de controle nos organismos
vivos e também nas máquinas” (FERREIRA, 2006: 233). Em
outras palavras, trata, por exemplo, da relação entre o cérebro e
qualquer dispositivo eletrônico, que substitua membros huma-
nos.
Há dois espaços no livro: o virtual e o não-virtual. Nes-
te, há uma família, composta pelo viúvo Arthur e os três filhos:

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 107 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 108
Lili, Felix e César. O pai resolve armazenar na memória do Dvd’s atualmente. Em relação a Cibermãe, o pai Arthur, na
computador tudo o que guarda da esposa falecida (Lúcia): fo- ilusão de que o Ciberespaço guarda informações de forma
tos, vídeos, fitas. Ao acreditar fielmente no poder de armaze- segura, desfaz-se de todos os materiais da mulher. De fato, a
namento da máquina, ele desfaz-se do material, já que este vi- máquina encadeia o problema, perdendo os arquivos. No entan-
nha se deteriorando pelo tempo. Segundo um vizinho e amigo, to, no final da história, ela ajuda as crianças a retornarem ao
Zeig, as fotos não sofreriam quaisquer danos no novo espaço, mundo não-virtual. Assim, a proposta do livro é mostrar a uti-
por este ser atemporal. lidade do espaço virtual para o ser humano, desde que caiba ao
No espaço virtual, ou Ciberespaço, as personagens en- homem a consciência de a máquina ser algo falível.
tram num universo novo. Nele, elas livram-se do peso carnal,
penetrando na máquina através do cérebro. Dessa forma, coe- 2 - A linguagem das representações verbais e não-verbais:
xistem junto aos outros seres virtuais. Nesse novo espaço tudo imagens em Cibermãe
é possível, inclusive o armazenamento da memória da mãe. No
entanto, as informações não estão totalmente protegidas, já Como estudar o que nós já conhecemos? A res-
que, não há totalidade sem fissuras (SANTAELLA, 2004: posta a essa pergunta encontra-se numa definição
126). É, assim como o organismo vivo, passível de falhas, de- do alfabetismo visual como algo além do simples
vendo o ser humano atentar para isso. enxergar, como algo além da simples criação de
mensagens visuais. O alfabetismo visual implica
Ao entrarem literalmente na máquina, as crianças en-
compreensão, e meios de ver e compartilhar o
frentam obstáculos próprios desse mundo, como um hacker. significado a um certo nível de universalidade.
Jones, uma espécie de cibervilão, apaixonado pela falecida (DONIS, 1997: 227)
Lúcia, rouba os arquivos da mãe das crianças. Por conta disso, Cibermãe é um espaço híbrido. A reunião de represen-
essas personagens embarcam numa viagem extraordinária, en- tações verbais e não-verbais levam o leitor a interagir com a
frentando uma importante prova: a de coexistirem nos dois história, de forma inteiramente nova, fazendo referência aos
universos do livro, para resgatarem a memória da mãe. clássicos da literatura universal. Segundo Maria Auxiliadora
Não se deseja criticar esses dois espaços, mas mostrar, Baseio, há
com na Cibernética, a existência de uma comunhão entre o seguramente a explosão de imagens que solicitam
virtual e o não-virtual, pois um contribui de forma a auxiliar o a atenção do leitor em Cibermãe, cores, formas,
outro na narrativa. Na verdade, isso já é possível, por exemplo, aparatos virtuais, intertextos diversos, podem tirar
através da internet. A máquina troca informações entre as pes- o leitor de dentro de si mesmo, mas, por outro la-
soas, que estão do outro lado da tela do computador. Nota-se a do, também podem levar ao verdadeiro encontro,
comunicação entre o organismo vivo (o pai e o vizinho Zeig) e ao tecer com os múltiplos fios, a rede de seu auto-
a máquina (o computador Ulisses), para reaver essas informa- conhecimento, retirando do caos uma nova or-
ções perdidas. dem.
No livro, nota-se a reunião, num único espaço, de mi- (BASEIO, 2000: 99)
lhares de informações, como ocorre, por exemplo, com Cd’s ou Desde os primórdios, o homem serve-se dos utensílios
para suas necessidades, não apenas vitais, mas também artísti-

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cas. As diversas formas de expressão (verbal ou não-verbal) linguagem visual esteja presente em toda parte. Segundo Lúcia
mostram o aflorar da sensibilidade, em relação a tudo o que Pimentel Góes, falta-lhes o “olhar de descoberta” (GÓES,
rodeia o homem. 2003: 19), a capacidade de apre(e)nder e devolver as informa-
O homem vem adquirindo essa nova forma de perceber ções de uma forma inteiramente nova.
o meio em que vive com a imagem e a escultura. Através delas, Segundo a autora, a leitura é “operação que faz surgir
os seres humanos criam diferentes formas de manifestação. É, sentidos no texto, sendo o leitor co-produtor ou co-autor do
pois, um exemplo de olhar, distante de paradigmas impostos, texto, visto ser ele quem concretiza esses sentidos e deles se
aberto ao novo, ao movimento de criar em ação. “A informação apossa” (GÓES, 2003: 20). Em Cibermãe, saber ler, perceben-
visual é o mais antigo registro da história humana” (DONDIS, do todas as nuances verbais e não-verbais, faz brotar infinitos
1997: 7) e é através do olhar que a juventude desperta para a significados no livro, concretizados pelo próprio leitor na práti-
leitura das imagens nos livros. Atualmente, a linguagem verbal ca do “olhar de descoberta”.
é constantemente enriquecida com contribuições dos meios Neste trabalho, vamos discutir o fato de que tanto a lin-
eletrônicos. Dessa forma, apre(e)nde-se a realidade, em que os guagem verbal quanto a não-verbal serem consideradas ima-
seres humanos vivem, de modo novo, como a (re)descoberta do gens, com as quais podemos construir informações. Para isso, o
ato de ler. tema Analfabetismo Visual é uma questão fundamental para
Em Cibermãe, texto e imagem podem ser grandes alia- este estudo.
dos da aprendizagem tecnológica das crianças e (por que não?) Do latim tardio analphabētus (CUNHA, 2005: 43), a
dos adultos. Através do olhar, o leitor percebe o grande pano- palavra analfabetismo significa muitas vezes alguém que não
rama de signos, como imagens fotográficas e os textos- domina a modalidade de leitura e escrita da língua. Nesse tra-
imagem, compondo uma imensa explosão híbrida de ícones. balho, a palavra analfabetizado ganha uma roupagem nova,
A linguagem visual é um processo multidimensional e referindo-se tanto ao verbal quanto ao visual. Assim, o analfa-
simultâneo. Numa grande velocidade, a visão transmite ao cé- beto visual é o indivíduo que não domina a leitura de texto e de
rebro milhares de informações, num contato direto com o exte- imagem.
rior, sem mediações. No entanto, a eficácia da comunicação O alfabetismo significa participação, e transforma
visual só pode ser alcançada através de estudo, e não por meio todos que o alcançaram em observadores menos
da intuição e do acaso. De acordo com a imagologia, a imagem passivos.(...) o alfabetismo visual (...) eleva nossa
não é mais o que o olhar apreende, mas qualquer segmento da capacidade de avaliar acima da aceitação (ou re-
vida. cusa) meramente intuitiva de uma manifestação
visual qualquer.
Para haver aprendizado com a linguagem visual, os se- (DONIS, 1997: 231)
res humanos devem considerar inúmeros componentes, como Segundo Dondis, cabe à alfabetização visual “construir
“o ponto, a linha, a forma, a direção, o tom, a cor, a textura, a um sistema básico para aprendizagem, a identificação, a cria-
dimensão, a escala e o movimento” (DONDIS, 1997: 51). Ler ção e a compreensão de mensagens visuais que sejam acessí-
requer considerar o global. Todavia, hoje, nota-se a dificulda- veis a todas as pessoas” (DONIS, 1997: 231), de forma não-
de, sentida pelos alunos, na leitura de uma imagem, embora a hierárquica. Ler uma imagem não significa apenas passar os

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olhos nas figuras, mas compreender alguns pormenores, suge- Segundo Dondis, entendemos a imagem através da re-
ridos pelo pintor ou pelo fotógrafo. presentação, do simbolismo e da abstração. A representação de
O primeiro capítulo do livro Sintaxe da Linguagem Vi- uma imagem seria o ícone, formada por elementos básicos e-
sual começa com a pergunta: “Quantos de nós vêem?” (Op.cit: lementares. Já “a abstração voltada para o simbolismo requer
5). Na verdade, muitos são os jovens que lêem, mas poucos são uma simplificação radical, ou seja, a redução do detalhe visual
os que compreendem a leitura. O mesmo processo ocorre com a seu mínimo irredutível. Para ser eficaz, um símbolo não deve
a imagem. Em Cibermãe, a imagem não aparece como mero ser apenas visto e reconhecido: deve ser lembrado, e mesmo
auxiliador da linguagem verbal. Elas falam por si através de reproduzido”. (DONDIS, 1997: 91)
mecanismos próprios para transmitir a mensagem, pois “ver Para Santaella, o mundo das imagens abrange as repre-
passou a significar compreender” (DONDIS, 1997: 13): sentações visuais e mentais. A primeira refere-se aos “desenhos
Expandir nossa capacidade de ver significa ex- pinturas, gravuras, fotografias e as imagens cinematográficas,
pandir nossa capacidade de entender uma mensa- televisivas, holo e infográficas” (SANTAELLA, 2005: 15). Já
gem visual. A visão envolve algo mais do que o na segunda, “as imagens aparecem como visões, fantasias, i-
mero fato de ver ou de que algo nos seja mostra- maginações, esquemas, modelos ou em geral como representa-
do. É parte integrante do processo de comunica-
ções mentais”. (SANTAELLA, 2005: 15)
ção, que abrange todas as considerações relativas
às belas-artes, às artes aplicadas, à expressão sub-
Em Cibermãe, o autor brinca com essas duas formas de
jetiva e à resposta a um objetivo funcional. representação. A primeira explora a parte gráfica das palavras,
(DONIS, 1997: 13) com negrito, itálico, cores e tamanhos. Além do lado gráfico,
Em geral, nos textos impressos, a linguagem verbal ad- há o predomínio da fotografia no livro, que possui “uma carac-
quire importância maior do que a não-verbal. Já “nos modernos terística que não compartilha com nenhuma arte visual—a cre-
meios de comunicação acontece exatamente o contrário. O vi- dibilidade” (DONDIS, 1997: 216), ainda que não consiga re-
sual predomina, o verbal tem a função de acréscimo” produzir a ampla visão periférica do olho.
(DONDIS, 1997: 12). No entanto, esse pensamento não consi- A fotografia é dominada pelo elemento visual em
que interagem o tom e a cor, ainda que dela parti-
dera o sentido de ambos serem polissêmicos e percorrerem
cipem a forma, a textura e a escala. (...) Em con-
caminhos de descoberta e espaços de escolha. Dessa forma, junto, os elementos visuais essenciais da fotogra-
percebe-se que a intertextualidade está presente tanto nos mei- fia reproduzem o ambiente e qualquer coisa, com
os eletrônicos quanto no papel impresso. enorme poder de persuasão.
Em Cibermãe, as linguagens (verbal ou não-verbal) não (DONIS, 1997: 215)
se sobrepõem uma a outra. Ambas trabalham para compôr A forma com que o livro foi produzido remete-nos a
harmoniosamente cada página do livro. A representação das uma espécie de fotonovela cibernética. Considerada como um
palavras transmite uma informação, assim como as imagens subgênero da literatura, a fotonovela é produzida para consumo
fotográficas. Ambas significam muito mais do que se comple- rápido, sem maior preocupação artística. Segundo Isabel Galu-
mentarem, pois são a própria mensagem. cho, “têm como finalidade a transmissão dos princípios éticos,
morais e sociais concordantes com o sistema de valores da ide-

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 113 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 114
ologia dominante através da integração da mulher na sociedade co da pia: “Só deu tempo de agarrarem a imagem do bichinho e
urbana” (GALUCHO). Seus planos e enquadramentos são qua- fugirem pelo buraco do cano; já se ouviam os gritos dos antiví-
se sempre retirados do cinema. No entanto, Cibermãe foge à rus” (JARDIN, 1998: 27), no livro, algumas pontes entre o
regra, pois sua produção é notadamente brilhante, tanto pelo mundo virtual e o não-virtual, como os “propulsores virtuais”
cuidado com a linguagem verbal quanto com a não-verbal, co- ou a cena em que descem pelo modem do computador.
mo já foi comentado anteriormente. César, Lili e félix se preparavam para a grande
Segundo Santaella, a segunda forma de representação é viagem descendo pelo velho modem de Ulisses, o
a mental. Além das diversas formas de se trabalhar o visual no aparelho que permite a circulação de informações
livro, Cibermãe também discute imagens mentais da nossa in- por meio dos fios telefônicos. O momento favo-
recia o sentimentalismo. Ao despedir-se dos visi-
fância, rememoradas através do enredo, questões a serem trata-
tantes inesperados, Ulisses sentiu um certo tremor
das no próximo item. Dessa forma, o livro propõe ao leitor o na voz que o surpreendeu. Mas as crianças nem
exercício da alfabetização, tanto verbal quanto não-verbal, no tiveram tempo de mostrar sua emoção.
aprofundamento da leitura. (JARDIM, 1998: 58)
O ambiente em que os três penetraram remete-nos à his-
3 - A viagem pela literatura tória de Júlio Verne, escritor clássico de ficção científica. As-
sim como em seu livro Viagem ao centro da terra, três perso-
Embora os antigos contos de fadas de nossa in- nagens exploram um novo ambiente de forma extraordinária.
fância continuem a pronunciar suas palavras má- Em Cibermãe, contudo, essa viagem ocorre no centro do com-
gicas, é fato que a forma como são contados tende
a mudar, refletindo o contexto cultural em que se
putador, Ulisses: “No fim do túnel, o trio descobriu de repente
inserem. o coração da máquina, uma enorme depressão na qual palpitava
(BASIEO, 2000: 89) a alma de Ulisses” (JARDIM, 1998: 26). O texto recebe a con-
Os clássicos da literatura universal desde sempre são re- tribuição da fotografia, que retrata todo aparato de uma máqui-
tomados através de novas formas narrativas. Em todas as narra- na antiga.
tivas, o fascínio, sentido pelo leitor, permanece. Em Cibermãe, Bruscamente, a temperatura começou a subir.
podemos perceber vários contos, inseridos na história. O livro é
O ar ficou carregado de vapor e fumaça. Assusta-
uma grande viagem pela tecnologia, pela arte e pela literatura. dos, eles correram para o avesso da tela, procu-
Através do recurso das fotografia, a história remete-nos a vá- rando sair da máquina, cuja temperatura continu-
rios clássicos da literatura universal, como A bela adormecida, ava subindo.
Odisséia, Viagem ao centro da terra e Alice no país das mara- (JARDIM, 1998: 28)
vilhas. A proposta desse trabalho é apontar, de forma sucinta, No livro de Alexandre Jardin, uma da partes do compu-
algumas viagens por esses clássicos, pois não é nosso intuito tador é marcada pela imagem de um círculo coicidentemente
esgotar possibilidades de análise de Cibermãe. no centro do livro. Assemelha-se à uma roda ou olho gigante,
Neste livro, rememora-se a história da menina Alice na que irradia luz. Na verdade, é uma parte fundamental do com-
cena em que as personagens escapam dos anti-vírus pelo bura- putador Ulisses, para conectar-se à rede Internet.

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Ulisses resfriou ligeiramente seus chips e contou homérica. Assim, as crianças buscam a imagem da mulher e
aos meninos, surpresos, que os computadores co- seu lado materno, acolhedor, de onde provém cor e vitalidade.
nectados à rede internet fazem parte da grande O reencontro das crianças com a mãe ao final da narrativa sig-
comunidade eletrônica do ciberespaço, onde nifica o retorno à infância, ao início de tudo.
vigora uma nova fraternidade universal. Quando As crianças então perceberam que nunca mais es-
um modesto micro precisa ampliar sua capacida- tariam sozinhas, que sempre seriam ouvidas,
de ou pedir socorro a um programa especial, os mesmo que não falassem. Era possível, naquele
mais potentes, em Paris, Tóquio ou Chicago, não universo virtual, voltar à vida. Nada neles ficaria
deixam de ceder sua potência disponível ou sua morto. Ao encontrar de novo a mãe, era a própria
competência! infância que estavam reencontrando.
(JARDIM, 1998: 31) (JARDIM, 1998: 58)
As personagens seguem à procura pela mãe, agora no Benedito Nunes considera a criança como um retorno
Ciberespaço. Com a digitalização, as crianças entram num site, ao passado, às origens, mas também como “um prenúncio de
onde recuperam “a sensação de si próprios, o raciocínio, assim um novo ser” (JARDIN, 1998: 58). As personagens, em Ci-
como a faculdade de sentir. Nada havia mudado”.(JARDIM, bermãe, percorrem caminhos que as impulsionam a novas des-
1998: 31) O reencontro com a imagem da mãe está cada vez cobertas. Por outro lado, esse caminhar também significa retor-
mais próximo. Nessa altura da narrativa, o livro rememora a nar à literatura clássica, pois há cenas no livro que se
Bela adormecida através da imagem de Lúcia. A imagem da assemelham muito a algumas situações ocorridas nos contos
mãe é guardada por Jones, sobre uma espécie de “sarcófago clássicos, como a questão da Mãe-Bela adormecida ou a via-
eletrônico” (JARDIM, 1998: 56). Lúcia, então, transfigurou-se gem fantástica.
virtualmente na princesa e os filhos, no príncipe encantado. Essa consciência só é possível, porque o leitor possui
Nesse momento, a aparição da mãe eliminou a sensação de representações mentais de alguns contos, por permearem desde
solidão e desamparo, sentida pelas crianças. O beijo, em Ci- sempre nosso imaginário. Isso é positivo na medida em que
bermãe, é retratado pela voz, que tem a finalidade de despertar lança novas formas de desenvolver a potencialidade das perso-
Lúcia da hibernação. nagens e do próprio leitor.
Ao som de sua voz, o arquivo se abriu e a ima-
gem virtual da mãe apareceu. Lili perdeu o fôle-
go. César ficou boquiaberto. Felix mais ainda.
Conclusão
Lúcia sorriu para eles. Certos momentos no cibe-
respaço se parecem com a vida real – e aquele pa- A proposta de Cibermãe é viajar pela literatura, reme-
receu o mais real de todos. morando lugares, acontecimentos, também presentes nos clás-
(JARDIM, 1998: 58) sicos da literatura universal. Para tanto, utiliza a tecnologia
Outra história a que o livro faz referência é Odisséia, tanto como um avanço para a sociedade, quanto um progresso
pois também ambas retratam uma viagem extraordinária, em que muitas vezes significa retorno, ao que é primordial.
que os heróis deparam-se com muitos obstáculos. Em Ciber- No entanto, tal retorno não deve ser entendido de forma
mãe, deseja-se reencontrar Lúcia, transfiguração da Penélope nostálgica, mas como semente para novas possibilidades de

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 117 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 118
crescimento das personagens na história. O Ciberespaço, en- GALUCHO, Isabel. Fotonovela.<<
tão, serve para fortalecer as relações entre seres virtuais e não- http://www.fcsh.unl.pt/edtl/index.htm>> (último acesso,
virtuais, de forma positiva, desde que o internauta tome as 30/05/2007)
devidas precauções, já que no espaço virtual, as informações GÓES, Lúcia Pimentel. Olhar de descoberta: proposta analíti-
não estão totalmente seguras. ca de livros que concentram várias linguagens. São Paulo,
Cibermãe permite que a literatura seja um meio de via- Paulinas, 2003.
jar pelas diversas formas de representação verbal e não-verbal, JARDIN, Alexandre. Cibermãe: uma viagem extraordinária
contribuindo, assim, para a alfabetização verbal e visual. Esses dentro do computador. Trad. Estela dos santos Abreu. São Pau-
dois espaços co-existem de forma harmônica no livro, traba- lo, Moderna, 1998.
lhando o exercício de um novo olhar. LLANSOL, Maria Gabriela. Um beijo dado mais tarde. Lisbo-
Esse exercício mostra a necessidade de o leitor buscar o a, ed. Rolim, 1990.
“olhar de descoberta”. A cada nova percepção visual dos sig- NUNES, Benedito. O dorso do tigre. São Paulo, Perspectiva,
nos e suas combinações, apre(e)ndemos melhor o mundo. A- 1976.
lém disso, é possível desfrutar o prazer de rememorar alguns SANTAELLA, Lúcia. A percepção: uma teoria semiótica. São
clássicos da literatura universal. Dessa forma, Cibermãe é um Paulo, Experimento, 1993.
convite ao exercício diferentes formas de leitura de imagens _______. Navegar no ciberespaço. São Paulo, Paulus, 2004
verbais e não-verbais, fazendo com que o leitor “quebre o que _______ & NÖTH, Winfried. Imagem: cognição, semiótica,
lê em mil pedaços, sem quebrar o livro onde o ler circula”. mídia. São Paulo, Iluminuras, 2005.
(LLANSOL, 1990: 25)

Referências Bibliográficas:

BASEIO, Maria Auxiliadora Fontana. No vaivém,da lançadei-


ra: o retorno do sagrado na literatura infantil/juvenil. São
Paulo, USP, 2000. (Dissertação de Mestrado)
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimolígico Nova
fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Frontei-
ra, 2005.
DONDIS, A Donis. Sintaxe da linguagem visual. [Trad. Jeffer-
son Luiz Camargo]. São Paulo, Martins Fontes, 1997.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. MiniAurélio: o di-
cionário da língua portuguesa. Curitiba, Positivo, 2006.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 119 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 120
FONOLOGIA E LETRAMENTO: que confundem teorias psicológicas com metodologia de ensi-
SUPORTE SEMIÓTICO PARA O ENSINO no ora entrega-se o processo de aquisição à própria sorte, entre
DA LÍNGUA MATERNA outras “saídas” extravagantes.
Em nossa prática, temos buscado observar as estratégias
Darcilia Simões espontâneas dos aprendizes e interpretá-las à luz da descrição
UERJ / PUC-SP
Maria Suzett Biembengut Santade
fonológica proposta por Câmara (1953) e da teoria da iconici-
FIMI / FMPFM / UERJ dade (C. S. Peirce -1839-1914).
Aira Suzana Ribeiro Martins A partir do suporte mattosiano, discutimos a estrutura-
UERJ / CPII ção silábica em confronto com as soluções práticas produzidas
pelos falantes-aprendizes (mesmo os não-escolarizados) na fala
RESUMO:
e na escrita. Com base na iconicidade, observamos a constru-
O texto objetiva-se na pesquisa metodológica voltada para o letramento e ção de hipóteses fono-ortográficas que orientam a escrita dos
subsidiada por aportes fonológicos de base mattoseana combinados com a principiantes.
teoria da iconicidade peirceana. A intenção do estudo é subsidiar os profes- Como nosso trabalho sempre se realizou por meio do
sores alfabetizadores no acompanhamento do processo de aquisição da contato direto com os aprendizes, pudemos acompanhar a evo-
escrita, tendo em conta as interferências da fala e sua variação na constru-
ção de um padrão gráfico anterior e intermediário ao domínio da ortografia.
lução de suas conclusões fono-ortográficas na construção da
O componente semiótico opera sobre fonemas e grafemas, tirando proveito escrita, bem como suas conseqüências na leitura oral.
das qualidades sonoras e visuais, respectivamente, e deduzindo as regras Preocupamo-nos com o aperfeiçoamento da metodolo-
produzidas experimentalmente pelos aprendizes na tentativa de grafar sua gia de ensino da língua materna como primeira língua (L1) e
fala. Nessa linha de raciocínio, busca-se reconhecer na escrita a competên- temos podido ministrar cursos em níveis diversos (desde a atu-
cia fono-ortográfica dos aprendizes de modo a conduzir o processo de ensi-
no-aprendizagem de forma imagética mais espontânea.
alização docente até disciplinas regulares na pós-graduação lato
e stricto sensu em Língua Portuguesa). Nesses cursos, busca-
PALAVRAS-CHAVE: mos discutir as dificuldades experimentadas pelos docentes e,
Letramento, fonemas, grafemas, iconicidade.
com eles, decifrar a fala e a escrita dos aprendizes, com vistas a
assessorar-lhes o processo de letramento (aqui entendido como
aquisição do código escrito para fins de leitura e expressão sem
0 – Preliminares compromisso imediato com o uso padrão). Em outras palavras,
propomos uma metodologia que entende que o letramento bá-
Aproveitamos o ensejo do II Seminário Internacional de sico deve considerar a variação lingüística para poder interpre-
Fonologia (UFRGS, 2007) para tratar das dificuldades no pro- tar mais adequadamente as realizações fono-ortográficas dos
cesso de aquisição da escrita têm sido objeto de muitas e valio- neo-letrantes (como denominamos os aprendizes em fase de
sas pesquisas. Contudo, supomos que em função do não- aquisição da escrita).
investimento na atualização docente, as práticas didáticas nesse Nessa perspectiva, vimos analisando produções escritas
âmbito apresentam problemas variados. Ora surgem modismos de neo-letrantes com uma intenção precipuamente pedagógica
desavisados de condução do processo de ensino-aprendizagem

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 121 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 122
e voltada para a minimização de problemas oriundos da políti- De acordo com Labov (in Neves, 2006), a criança no
ca do certo&errado pautada na exclusão das variedades não- processo de aquisição da leitura e da escrita, apesar de já ter o
padrão durante o processo de letramento. Entendemos que a domínio de uma gramática básica, não tem a capacidade de
semiótica pode operar como lente para o entendimento das di- variar de estilo, ou seja, ela reproduz o registro de seu grupo
ferenças diatópicas e diastráticas projetadas nas formas gráficas sem qualquer tipo de avaliação social das características dessa
construídas pelos neo-letrantes. Isso porque tais formas seriam fala. A escola, por sua vez, tenta promover uma mudança de
interpretadas como índices ou ícones do contexto original do dialetos, conforme observa Neves (2006), fixando-se nos “er-
falante e orientariam o entendimento da forma, suas deduções ros” desse registro estigmatizado. Segundo Simões (2006), a
hipotéticas e a condução do processo de ensino-aprendizagem conquista das formas gráficas é algo paulatino e decorrente,
dirigida à aquisição da ortografia do uso padrão sem negar ou logo, espera-se que a escola assegure ao aluno o domínio satis-
desprezar formas gráficas possíveis em usos não-padrão ou fatório da variedade padrão da língua; sem, contudo, deixar de
encontráveis em textos literários. estimular sua produção lingüística, criando situações que o
levem a expressar-se tanto na oralidade como na escrita de
1 – Desenvolvimento forma livre e criativa.
Os textos elaborados pelos estudantes, sujeitos a aper-
Neste texto discutiremos algumas impropriedades de feiçoamento por meio da reescritura, devem ser respeitados e
escrita encontradas em produções textuais de estudantes de 6º valorizados. Dessa forma, eles se sentirão motivados a executar
ano (antiga 5ª série) do Ensino Fundamental. Além das marcas as tarefas de forma espontânea. Essas produções textuais dos
de oralidade, identificamos outros aspectos a serem destacados, estudantes oferecem valiosas informações o professor. A partir
próprios do processo de aquisição da escrita, como problemas de um levantamento das dificuldades ortográficas presentes nos
de juntura intervocabular e segmentação de palavras, modifica- escritos discentes, é possível elaborar estratégias metodológi-
ção morfológica dos vocábulos, supressão, troca e uso indevido cas que visem à resolução dos problemas de forma objetiva e
de letras. satisfatória, preferencialmente desenvolvidas com atitude cien-
É importante destacar que, de um modo geral, não ob- tífica: observando, discutindo, testando e validando ou não o
servamos distorções do ponto de vista da coesão e da coerência modelo experimentado.
textual. Podemos dizer que os textos são ricos em informativi- As primeiras produções textuais do grupo de estudantes
dade, além de serem bastante criativos. aos quais nos referimos neste artigo nos forneceram importan-
Nosso cuidado, nessa fase de escolaridade, está em eli- tes informações sobre suas reais necessidades no plano da es-
minar os problemas fono-ortográficos sem afastar a criança da crita. Veremos nas próximas seções do texto os principais pro-
vivência da linguagem. Para isso, é importante evitar propostas blemas fono-ortográficos detectados nos textos analisados.
de tarefas artificiais e alienadoras, buscando sempre a realiza-
ção de atividades contextualizadas, compatíveis com o desen- 1.1 - Juntura intervocabular
volvimento cognitivo do aluno e com as motivações próprias Destacamos os principais exemplos de juntura intervo-
da faixa etária em que se encontram. cabular nas produções textuais observadas:

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 123 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 124
Vejamos: O exercício de derivar outras palavras a partir dos vo-
porenquanto porcausa cábulos lexicais também pode ser uma excelente estratégia para
porexemplo derrepente os estudantes fixarem a imagem dos signos.
agente oque Exemplificando:
mecinto TerraA Terreno Terraço Aterro
Esses exemplos são vestígios da escrita em cordão, em Pedra Pedrada Pedreiro Empedrar
que o escrevente transpõe para o espaço gráfico a ausência de Bola Bolada Bolinha Embolado
silêncio na cadência frasal, ligando palavras. Vemos vocábulos Introduzir outros nomes entre o vocábulo átono e o tô-
fonológicos formados a partir de preposições, pronomes e arti- nico ou fazer o deslocamento de um dos elementos da expres-
go, sem força expiratória no contexto em que se encontravam, são podem ser também estratégias de levar o aluno a perceber a
unidos a substantivos, pronome e verbo. Como podemos ver, o existência de dois vocábulos formais e a necessidade de separá-
aprendiz, nessa etapa do letramento, esporadicamente, ainda los por meio de espaços em branco:
transpõe para a escrita o vocábulo fonológico, subordinando os Sinto-me fraco. Levou um tombo por ler
espaços em branco às pausas entre as palavras e não entre os Eu me acidentei e sinto do- jornal enquanto caminhava.
vocábulos formais. res.
Existe também a possibilidade de o aluno ter a noção A boa gente nordestina é Ele gosta de ouvir repente.
equivocada de que essas construções constituam um único vo- hospitaleira.
cábulo formal. É importante que o professor reserve um perío- Aprendi a admirá-lo por este O povo luta por esta impor-
do de sua aula para dar esclarecimentos acerca do problema, exemplo de honestidade. tante causa.
seguido de atividades, tais como isolar os vocábulos e mostrar A leitura dos verbetes relativos às palavras que com-
aos alunos pequenos textos em que tais palavras apareçam em põem a locução adverbial pode ser oportuna para que se conhe-
outros sintagmas (ou ambientes fonológicos distintos daqueles çam os elementos formadores das expressões.
com que lidaram). Exemplificando:
Derrepente: sintagma formado pela preposição de
Ilustrando:
porenquanto por O menino não saiu por estar cho- e pelo substantivo repente.
vendo de. prep. 1. relaciona palavras por subordinação e
enquanto O menino não saiu enquanto não expressa os sentidos: 1.1.procedência, ponto de
parou de chover. partida, origem (chegou de Minas Gerais) (...)
derrepente de De manhã ele estava em casa.
repente Saiu em um repente. 1.2. lugar onde está o agente da ação ( do alto a-
agente a A casa é de Pedro. vista-se a cidade) (...)
gente Pedro é gente. (Houaiss, 2001: 913)
Oque o O menino não saiu por estar cho- repente. s. m. 1. ação repentina, dito repentino e
que vendo impensado 2 qualquer improviso ou verso impro-
O menino que saiu é o Pedro.
Mecinto me Ele me chamou. visado 2.1B sextilha 3. MÚS. canto (melodia com
sinto Sinto fome. versos improvisados. De r. de súbito; repentina-
cinto O cinto está largo. mente 2 B US. Para indicar possibilidade ou dú-

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 125 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 126
vida; talvez (não gosto disso, mas de r., até acei- 1.2 - Segmentação das palavras
to). ter bons r. dizer bons improvisos; ter ditos de Foram observadas as seguintes ocorrências de segmen-
espírito. ter repentes ter ímpetos de mau gênio; tação de palavras nas redações em análise:
ser inconsiderado no momento. ETIM lat. Repen- Com migo Falar-mos
te, de súbito, de repente. a-miga Des-de
(Houaiss, 2001: 2430)
De acordo com Cagliari (2002), a segmentação vocabu-
É muito importante que o aprendiz tenha a noção de
lar incorreta pode ocorrer devido à acentuação tônica das pala-
“palavra” como unidade escrita para o estabelecimento da or-
vras. Nos primeiros exemplos, com migo, falar-mos, vemos
tografia. Acreditamos que a identificação das palavras seja o
que o escrevente teve a exata noção dos seus constituintes.
primeiro passo para se trabalhar com ortografia.
Temos notícias de que, num determinado estágio da língua (cf.
O professor poderá pedir a reescritura do trecho em que
Coutinho, 1974) a preposição com se juntou ao pronome pes-
se verifica uma impropriedade ortográfica como derrepente,
soal migo (com+ migo= comigo). Em falar-mos foi destacada a
após a leitura com os alunos dos verbetes de e repente, extraí-
desinência número-pessoal da forma verbal infinitiva, onde se
dos do dicionário. Essa leitura será oportuna para a formação
encontra a sílaba tônica da palavra.
de palavras cognatas do substantivo repente. É ainda interes-
A forma a-miga pode estar associada a com migo, em
sante que o aluno observe a palavra em questão contextualiza-
que migo /miga seriam formas livres que se formariam as cons-
da.
truções a-miga e com migo. A construção des-de pode ser justi-
Vejamos um pequeno texto no qual foi empregada uma
ficada pelo fato de a vogal da sílaba inicial ser alongada na
palavra cognata de repente:
emissão verbal. Encontramos uma variação da preposição des-
“(...) Na semana que antecede a Missa do Vaquei-
ro, o município de Serrita vive um clima de eufo-
de, a forma des-do, em que o artigo determinante do próximo
ria e festa folclórica, com vaquejada banda de pí- substantivo se contraiu com a vogal final da preposição. Essas
faros, cantorias, repentistas, aboiadores, além da regularidades poderiam justificar essas formas encontradas nos
Feira de Artesanato. (...) textos, já que a formação de regras é uma tendência natural da
(Jornal da Feira, março de 2007: 2) (grifo nosso) criança.
A elaboração, junto com a turma, de pequenos textos Essas construções devem ser evidenciadas e trabalhadas
com o objetivo de empregar as outras expressões que aparecem com discussões, e reescritura, pois é importante que a imagem
no verbete, contextualizadas, como o excerto do periódico, no gráfica das formas fixadas pela escrita ortográfica seja contex-
qual se observa o emprego da palavra repentista, derivado de tualizada em um texto coerente e coeso.
repente (ter repentes, de repente, ter bons repentes, repente,
repentinamente...) é também uma tarefa interessante. Dessa 1.3 - Alteração morfológica
forma, o aluno ver-se-á obrigado a fazer uso das expressões Depreendemos também nos textos analisados alterações
trabalhadas em aula, em situações contextualizadas, como a morfológicas das seguintes palavras:
criação de um diálogo ou uma pequena cena dramatizada. Maitá Doque Lobo Tá
(Humaitá) (Haddock Lobo)

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 127 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 128
Percebe-se que tais construções se dão pelo fato de re- cerem as convenções ortográficas, resolvem sua dificuldade
tratarem a variedade dialetal do escrevente. Logo, é necessário estabelecendo que cada letra é símbolo de um som e cada som
trabalhar não só a escrita como também a oralidade m sala de é simbolizado por um signo.
aula. Percebemos também que os dois substantivos são nomes As convenções ortográficas que uniformizam, na escri-
próprios estranhos ao universo lingüístico do aluno, pois são ta, as diferenças observadas na fala são gradualmente incorpo-
topônimos de regiões fora de sua área de movimentação. radas pelo estudante ao longo do processo de aquisição da es-
crita, num trabalho sistemático, planejado pelo professor.
1.4 - As transcrições fonéticas Diversos estudiosos das questões de alfabetização, entre
Foram destacados também do grupo das redações anali- eles Nunes (1992), Cagliari (1995), Alvarenga (1981), acredi-
sadas exemplos de pseudo-transcrições fonéticas. tam que a consciência fonológica ou o conhecimento dos sons
Vejamos: da língua são itens de grande importância para a correção das
fasem familha impropriedades ortográficas. Porém, apenas esse conhecimento
salcicha repitir não é suficiente para uma grafia satisfatória. É necessário que
muintos praneta os alunos conheçam os motivos dos erros na grafia, conhecen-
pásqua framengo do os princípios do sistema ortográfico. Como as crianças têm
pessoua enrrita a tendência a formular regras, poderíamos aproveitar essa ca-
A pseudo-transcrição fonética foi o tipo de inadequação racterística natural e, de forma gradativa, levá-los a formular as
de escrita mais encontrada nas produções textuais analisadas. regras existentes no sistema ortográfico por meio da observa-
Tal ocorrência se deve ao fato de o escrevente tentar represen- ção das regularidades.
tar graficamente a própria fala. Tomemos um tipo de incorreção como exemplo. As
De acordo com Ferreiro e Teberosky (1985), essas in- formas praneta, e Framengo, são variantes desprestigiadas,
correções nos textos mostram um estágio de raciocínio avança- refletindo o grupo social a que o usuário da língua pertence.
do em relação à escrita. Segundo essas autoras, ao chegar ao Conforme observa Simões (2006), o rotacismo que ocorreu
estágio da escrita alfabética, depois de ter passado pelos está- nesse ambiente, isto é, a evolução na fala dos grupos pl- e fl-
gios da escrita pré-silábica e silábica, a criança percebe que a para pr- e fr-, é uma tendência fonética natural da língua, já que
escrita tem relações com a fala. A partir de então, ela começa a na passagem do latim vulgar falado para o português houve
tentar descobrir quais são as regras do sistema, representando esse fenômeno nos grupos consonânticos bl- cl- fl- gl-. De a-
os fonemas. No entanto, essa tentativa é feita de modo que o cordo com Mollica (1998), essas formas são estigmatizadas
signo grafado reproduza fielmente o fonema emitido, fazendo pela variante de prestígio. Logo, caso o indivíduo queira as-
uma correspondência biunívoca, o que nem sempre acontece, já cender socialmente, deve eliminar esse estilo de fala e de escri-
que oralidade e escrita são dois sistemas semióticos distintos. A ta, e à escola será delegada a tarefa de promover a correção em
escrita é marcada por regras próprias, muitas vezes, desconhe- favor da variante de prestígio. Com base nisso, o estudante não
cidas por aprendizes nas fases intermediárias do letramento. pode desconhecer o fato de que a ocorrência de tais variantes
Os exemplos destacados mostram que os estudantes fa- em sua fala e escrita será um dos motivos pelos quais pode não
zem o reconhecimento dos fonemas, no entanto, por desconhe-

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 129 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 130
se dar a sua mobilização na escala social. A mudança de regis- Não podemos negar que uma das tarefas da escola é le-
tro tanto na fala como na escrita é, portanto, necessária. var o aluno a ter o domínio da língua na variedade-padrão, tan-
É preciso, para que a mudança ocorra, que o professor to na escrita quando na fala. Entretanto, muitas vezes há uma
trabalhe não só com a escrita dos alunos como também com a grande distância entre o estilo lingüístico com o qual se traba-
expressão oral, pois se não houver mudanças na fala, a modali- lha na escola e o estilo que o aluno traz de seu meio social.
dade escrita da língua continuará apresentando inadequações. Acreditamos que o conhecimento dos aspectos fônicos
Leitura em voz alta, elaboração de esquetes para dramatização da língua seja de extrema importância para o professor traba-
com a inclusão e destaque das expressões cujas imagens gráfi- lhar com as primeiras séries do ensino fundamental. Esse su-
cas necessitem de fixação, uso de dicionário e ainda material porte dará subsídios ao professor não só de compreender os
didático elaborado pelo professor podem são recursos bastante “erros” cometidos pelos alunos, como também será de grande
proveitosos. auxílio na busca de soluções dos problemas de ortografia veri-
ficados nas produções textuais.
2 - Considerações finais
Referências Bibliográficas:
Os estudos sociolingüísticos trouxeram uma imensa
contribuição para que se opere, por parte da escola, uma mu- ALVARENGA. Leitura e escrita: dois processos distintos.
dança no que tange ao tratamento dispensado às variantes dia- Educação em Revista. Belo Horizonte: Faculdade de Educação
letais. Não é mais possível sustentar a ingênua postura de con- da UFMG, 1981.
siderar a homogeneidade da língua, legitimando uma variante CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e lingüística. São Pau-
lingüística, no caso, a variante de prestígio. A variação e a mu- lo: Moderna, 2002.
dança são vistas como propriedades constitutivas da lingua- _______ Leitura e escrita na vida e na escola. In Revista Lei-
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Nas séries iniciais do letramento, é natural que a crian- CÂMARA Jr., Joaquim Mattoso. Para o estudo da fonêmica
ça, na atividade de produção de textos escritos, elabore seu portuguesa. Rio de Janeiro: Simões, 1953. / Rio de Janeiro:
texto do mesmo modo como elabora um texto oral. Como sa- Padrão, 1977.
bemos, é dever da escola gerenciar a aquisição da escrita na COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática histórica. Rio de
variante padrão da língua, porém vemos que essa passagem é Janeiro: Livraria Acadêmica, 1974.
feita de modo traumático, pois toda a bagagem cultural que a FERREIRO, Emília e TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da
criança traz para a escola é desconsiderada e esta se vê obriga- língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
da a se expressar numa variante lingüística estranha à sua vi- HOUAISS, Antônio. Dicionário de língua portuguesa. Rio de
vência. Assim, a instituição escolar contribui para tirar toda a Janeiro: Editora Objetiva, 2001.
espontaneidade do aprendiz levando-a a escrever de uma forma MOLLICA, Maria Cecília. Influência da fala na alfabetização.
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Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 131 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 132
NUNES, T. In: ALENCAR, E. Novas contribuições da psico- SEMIÓTICA:
logia aos processos Leitura e escrita:processos em desenvol- EXTRAPOLANDO AS FRONTEIRAS DO LÉXICO
vimento. de ensino e aprendizagem. São Paulo: Cortez.
NEVES, Maria Helena de Moura. Que gramática ensinar na Dulce Helena Pontes-Ribeiro
UERJ
escola? São Paulo: Contexto, 2006.
SIMÕES, Darcilia. Considerações sobre a fala e a escrita.
Fonologia em nova chave. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. RESUMO:
O estudo em tela aborda a aquisição e o emprego apropriado do léxico, sob
o viés da semiótica. Para tanto, investigou-se a origem da semiótica e o
dinamismo do léxico, relacionando-os à noção de texto. Está fundamentado
em teóricos do léxico e da semiótica, tais como Baccega (1995), Basílio
(2000), Barcellos da Silva (2000), Biderman (1996), Bakhtin (2004), Fiorin
(2005; 2007), Santaella (1983), Simões (2002; 2007), entre outros. O artigo
aponta para a vantagem de um entendimento do léxico através das lentes da
semiótica, uma vez que, por ser uma ciência inter-, multi- e transdisciplinar,
favorece o diálogo e o intercâmbio conceitual entre os muitos saberes.
PALAVRAS-CHAVE:
Signo, palavra, discurso, texto.

1 – Introdução

O homem é um ser de linguagem. Agindo nela e por e-


la, constitui-se como sujeito na ação do discurso em determi-
nado tempo e espaço, e se forma na prática social e histórica. A
palavra estabelece uma distinção entre o homem e os brutos.
Pela palavra o homem manifesta seus pensamentos e produz
efeitos de sentido. O cerne do entendimento da realidade, das
ações, é, portanto, a palavra. Esta, no discurso, é vida: cria,
recria e desfaz mundos. Imerso na realidade, o homem é levado
a buscar, no fascínio da palavra, o alento às inquietações e ne-
cessidades básicas de expressão.
A palavra torna-se, então, utensílio necessário para o es-
tar-no-mundo. Parte-se, aqui, do princípio de que os usuários
de uma língua natural precisam ser cônscios das possibilidades

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dos variados registros. Por essa razão, é de se esperar que o 2 - Origens da Semiótica
ensino de língua materna capacite os alunos a se apropriarem
do léxico como um recurso facilitador do projeto de dizer. Semiótica (do grego semiotiké, a arte dos sinais) é a ci-
Acredita-se que o usuário da língua, muitas vezes, não ência dos signos e da semiose. Trata dos fenômenos culturais
realiza de forma eficaz o papel de monitor das combinações e como sistemas sígnicos. Tem como foco a significação ou a
seleções lexicais, impossibilitando a si próprio atingir com ple- representação do conceito, na natureza e na cultura. Seu objeto
nitude o nível de produtividade lexical na justa medida de seu é qualquer sistema sígnico. Extrapola o estudo lingüístico que
intento comunicativo. Seu discurso deixa de ser instrumento de se atém ao signo da linguagem verbal, para abarcar artes visu-
interação, tornando-se obstáculo no jogo comunicativo que se ais, fotografia, cinema, música, etc.
trava entre locutor / interlocutor. Segundo Santaella (1983: 13),
Há, decerto, urgência de entendimento das várias etapas [...] a Semiótica é a ciência que tem por objeto de
do trânsito entre o pensamento e a expressão. Nesse sentido, investigação todas as linguagens possíveis, ou se-
torna-se premente a busca de possíveis respostas para o pro- ja, que tem por objetivo o exame dos modos de
blema: em que medida a semiótica peirceana contribui para constituição de todo e qualquer fenômeno de pro-
dução de significação e de sentido.
facilitar a aquisição e a melhor seleção do léxico, a fim de tor-
nar mais eficaz a expressão comunicativa? O primeiro ato de semiose (processo de engendramento
Tal indagação aponta para o seguinte objetivo geral: de significado e sentido) remonta a Gênesis, 2; 19-20 (1997:
compreender a relevância da leitura semiótica para o perscrutar 50):
Tendo, pois, o Senhor Deus formado da terra to-
dos vários sentidos dos signos verbais em textos. No intuito de dos os animais dos campos, e todas as aves dos
operacionalizar a diretriz mencionada, os objetivos específicos céus, levou-os ao homem, para ver como ele os
foram assim hierarquizados: investigar a origem da semiótica; havia de chamar; e todo o nome que os homens
apresentar o léxico e seu dinamismo; demonstrar a relação pos- pôs aos animais vivos, esse é o seu verdadeiro
sível entre conceitos semióticos e o estudo do léxico nos textos. nome. O homem pôs nomes a todos os animais, a
Entre os autores consultados, busca-se fundamentação, todas as aves dos céus e a todos os animais dos
sobretudo, em Baccega (1995), Basílio (2000), Barcellos da campos [...].
Silva (2000), Biderman (1996), Bakhtin (2004), Fiorin (2005; Só no início do século XX, porém, a semiótica adquire
2007), Santaella (1983), Simões (2002; 2007) entre outros, o status de ciência, graças aos trabalhos paralelos de Ferdinand
pelo estudo que realizam acerca do léxico e da semiótica, em Saussure e de Charles Sanders Pierce.
diferentes níveis de profundidade e abordagem. Propõe-se uma Na verdade,
reflexão sobre o enriquecimento das possibilidades lingüísticas A semiótica propriamente dita teve seu início
dos utentes do léxico, de modo a aprimorar sua expressão a com filósofos como John Locke (1632-1704) que,
partir do entendimento do léxico em seu aspecto semiótico. no seu Essay on human understanding, de 1690,
postulou uma "doutrina dos signos" com o nome
de Semeiotiké, ou com Johann Heinrich Lambert
(1728-1777) que, em 1764, foi um dos primeiros

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filósofos a escrever um tratado específico intitu- Humberto Eco resume o conhecimento anterior de mo-
lado Semiotik. do bem coerente e introduz outros conceitos aos tipos de sig-
(NÖTH: 1995: 18) nos, a saber:
Saussure foi o criador da designação Semiologia, estudo a) diagramas – representam relações abstratas: fórmulas
dos signos e das leis que os regem. Para ele, o signo é uma en- lógicas, químicas...;
tidade psíquica de relação dicotômica: conceito (significado) e b) emblemas – figuras a que se associam conceitos:
imagem acústica (significante). Para Santaella (1983: 58), pombo > paz;
“Signo é uma coisa que representa uma outra coisa: seu objeto. c) desenhos – correspondem aos ícones, às inferências
Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder de naturais; são os índices de Peirce;
representar, substituir uma outra coisa diferente dele”. d) equivalências abstratas – são os símbolos de Peirce.
Na esteira de Saussure (Semiótica estruturalista ou Se- e) sinais – embora sejam indícios, baseiam-se em códi-
miologia, cujo foco são os signos verbais), também estão Lévi- gos. Exemplo: sinais de trânsito.
Strauss, Barthes e Greimas. Estudioso da Lógica e da Filosofia, Pierce (1839-1914)
A semiologia saussureana trata dos sinais na vida soci- também se dedicou, dentre muitas áreas, ao estudo da Lingüís-
al, envolvendo tanto a psicologia social quanto a psicologia tica do ponto de vista de sua classificação entre as ciências psí-
geral; distingue o mundo de representação do mundo real. Para quicas. Foi o fundador do Pragmatismo e da ciência dos signos,
o autor, o signo é sempre imotivado, salvo as onomatopéias, a Semiótica, ampliando as noções de signo e de linguagem.
que são relativamente motivadas. Saussure aponta para dois A Semiótica (teoria geral dos signos, dos modos de sig-
tipos de relações de signo: sintagmáticas e paradigmáticas. nificar), para Peirce, é um sistema de lógica. A Fenomenologia
a) sintagmáticas – eixo horizontal em que se dá a lin- (descrição e análise das experiências do homem) permeia a
guagem, a fala; relação que o signo mantém com o que está semiótica peirceana. O fenômeno é o que é percebido pelo ho-
antes e com o que está depois dele; é o que está em presença. mem, seja real ou não. Em sua teoria o homem significa tudo
b) paradigmáticas – eixo vertical; são as relações asso- que o circunda, numa concepção triádica. Toda experiência é
ciativas; é o que está em ausência. Na frase O pombo passeia formada por três elementos: Qualidade, Relação (termo mais
na praça, associa-se o conceito de paz à palavra pombo. tarde substituído por Reação), Representação (termo mais tarde
A semiologia, cujo objeto se restringe à fala e à lingua- substituído por Mediação).
gem humana, passa a ser uma parte da semiótica. Louis Nesse estudo, Peirce apresenta as Categorias Universais
Hjelmslev torna mais complexos os conceitos de signos saussu- do signo com a seguinte terminologia: Primeiridade, Secundi-
reanos. Chama de expressão o significante e de conteúdo o dade, Terceiridade.
significado. Conteúdo e expressão remetem-se a dois níveis: a) Primeiridade – percepção, impressão, sentimento – o
forma e substância. É a denominada Semiótica russa ou Semió- fenômeno se apresenta à consciência no seu estado puro, no
tica da cultura, que tem como foco linguagem, literatura e ou- instante presente; invisível. É tenro, frágil, original, espontâ-
tros fenômenos culturais, como a comunicação não-verbal e neo, livre, superficial, não-analisável. É o sentimento como
visual, mito, religião. Nessa perspectiva, estão também Jakob- qualidade, o que dá sabor, tom, matiz à imediaticidade da
son e Lotman.

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consciência. Precede a síntese e a diferenciação, oculta-se ao guém. A fotografia, por sua vez, antes de ser ícone (representa-
pensamento. Não se pode tocá-la sem estragá-la. No caso de ção do objeto, motivada), é índice (registro da luz em determi-
um texto, verbal ou não, é a primeira leitura que se faz. nado momento).
b) Secundidade – ação e reação – conflito da consciên- c) símbolo – relação convencionada, imotivada, arbitrá-
cia com o fenômeno, na busca de entendê-lo. A Qualidade da ria entre o signo e o objeto.
Primeiridade está encarnada numa matéria que tem existência. A semiótica peirceana, dado o nível de generalidade,
A Secundidade é a corporificarão material, a arena da não é uma ciência aplicada nem especializada, ela se preocupa
existência cotidiana. É a reação em relação ao mundo; é a ação com a relação dos fenômenos para com a verdade.
dos fatos que resiste às fantasias e aos desejos; dá aspecto Há autores que afirmam que a Semiótica não se enqua-
factual à existência. É a leitura realizada com compreensão, dra no campo da lingüística, já que ela se desenvolveu com
aprofundando-se no conteúdo. Em O gato pulou do telhado, trabalhos de não-lingüistas. Para esses, ela concentra-se na aná-
visualiza-se gato / telhado e a ação de pular. lise de domínios de mitos, fotografia, cinema..., isto é, em todo
c) Terceiridade – interpretação e generalização do fe- e qualquer tipo de texto que transmite significados. De fato, ela
nômeno; representação. Da qualidade instintiva ao caráter fac- surge na área da medicina, com a sintomatologia; depois migra
tual, à intelegibilidade. É o pensamento em signos; é a repre- para os domínios da filosofia. Só mais tarde passa a ser de inte-
sentação da compreensão / interpretação do real. Extrapola o resse das ciências de comunicação.
espectro da estrutura verbal. O homem conecta à frase a sua Santaella (1983) estuda e avalia o texto sob a ótica plu-
experiência de vida. No exemplo O gato pulou do telhado, po- ridimensional peirceana, considerando a gramática (cerceada
de-se associar gato a outros bichos que andam pelo telhado pelas fronteiras frase / período / texto) ineficiente para dar con-
(pássaros, ratos...) ou a determinado gato que, por estar com a ta de um exame mais profundo de compreensão / interpretação
pata ferida, não pode pular do telhado; no sentido figurado, por que envolva a globalidade textual, capaz de extrapolar a natu-
exemplo, pode referir-se a um homem belo ou a um larápio reza sígnica, transitando do eixo sintagmático para o paradig-
despencando de um telhado. Enfim, associa-se à frase dada mático.
uma infindável série de elementos extratextuais. Para Peirce, a Semiótica engloba todas as ciências, uma
Para Peirce há três tipos de signos (ou representamen: vez que ela é a ciência dos signos, portanto, geral. O autor a-
que está em vez de, em lugar de; é a interpretação do objeto): presenta uma análise dos signos nítida, compreensível, que se
ícone, índice, símbolo. norteia sob uma tríade de relações cujos parâmetros possibili-
a) ícone – pela relação de proximidade sensorial, moti- tam ao intérprete uma dada firmeza por se ater nas fronteiras da
va o signo (p. ex., desenho). Há ícone que também é símbolo, significância do signo.
como é o caso de uma placa de sinal de trânsito: proibido buzi- Em Dubois et alli (1998: 537), lê-se:
nar (b). O traço em diagonal que corta o desenho é arbitrário, A semiologia é a ciência das grandes unidades
convencionou-se que aquele traço significa “proibido”. significantes do discurso: nota-se que tal defini-
b) índice – mantém ligação física com o seu objeto; é ção da semiologia aproxima-a da semiótica, estu-
parte representada de um todo, como os fios de cabelo de al- do das práticas significantes que tem como domí-
nio o texto.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 139 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 140
Essas diferentes concepções de Semiótica ocorrem em me está inserido no léxico, o qual abarca todo o saber lingüísti-
função da delimitação do campo de estudo, da divergência de co partilhado nas interações interlocutivas.
pressupostos. A verdade é que a legitimação do que diz ou do
Em suma, a Semiótica é a ciência do signo, e como tal é que se deve dizer depende fundamentalmente da
imprescindível para o entendimento do léxico e de seu dina- chancela da comunidade, do povo – povo que
mismo, foco da seção seguinte. constrói nações, fortalece impérios, escreve e re-
escreve a sua história, vitaliza idiomas: povo que,
por direito, justiça e fato, é o único, legítimo e
3 - O léxico e seu dinamismo verdadeiro “dono da língua”.
(BARCELLOS DA SILVA, 2000: 146)
Ao conjunto de palavras de uma língua, de um indiví- Conforme Carvalho (1989: 22), “o léxico de uma língua
duo ou de grupo, denomina-se léxico. De origem grega (lexi- é como uma galáxia, vive em expansão permanente por incor-
con), o léxico, em sentido lato, significa vocabulário. Quando porar as experiências pessoais e sociais da comunidade que a
se fala o léxico de uma língua, quer-se dizer todo o vocabulário fala”. Na mesma perspectiva, Baccega (1995: 28) diz que
de que ela se compõe, um conjunto virtual que, para ser posto [...] entre o homem e a realidade, entre o sujeito e
em uso, depende de uma realidade exterior, não-lingüística. o objeto, há uma mediação, há uma ‘cerca’, há
Cada léxico do conjunto lexical de uma língua é forma- uma ‘força’ que o impele a perceber essa realida-
do por morfema(s), unidade mínima formadora de significados. de de um determinado modo. E a raiz dessa força
Os morfemas podem ser lexicais (lexemas) ou gramaticais é a palavra.
(gramemas). Enquanto os últimos formam uma classe fechada, Miranda; Santos; Lacerda (1995: 26) defendem que a
limitada, conservadora, por isso dificilmente passível de trans- palavra “[...] organiza o caos, dá-lhe contorno de cosmos. Co-
formação, os primeiros (foco deste estudo) estão em constante mo bumerangue, retorna a si, e tanto se carrega de energia a
renovação, na maioria das vezes, fazendo-se valer dos grame- cada solicitação, quanto se desgasta com o excesso de uso”
mas, mas sempre na língua em uso. São as atividades humanas que, ao gerirem mudanças
O léxico é um conjunto ilimitado. Nele coexistem pala- sociais, provocam transformações no léxico que atendam à sua
vras de toda ordem: do cotidiano, das modalidades oral e escri- emergência expressiva. Assim, a língua refaz-se incessante-
ta, empréstimos (estrangeirismos), neologismos, arcaísmos, mente. Não é estática, mas processo eterno e ininterrupto, mo-
jargões técnicos, vocabulários regionais, sociais, gírias, etc. vimento, devir. É o dinamismo do uso corrente que engendra
Cada indivíduo conhece uma parte desse conjunto, e, da alterações semânticas responsáveis pela ampliação do léxico.
parte conhecida, emprega apenas uma fração. Assevera-se, Reconhecendo a mobilidade sócio-espacial do homem
inclusive, que o homem conta com um número mais ou menos refletida no acervo lexical de uma comunidade lingüística, A-
limitado de elementos formadores de palavras em sua memó- guilera (2002: 77) elucida:
ria, mas consegue formar um infindável número de enunciados. [...] a história interna das palavras não pode ser de
Com efeito, tudo que o homem conhece tem nome, e esse no- maneira alguma isolada de sua história externa”.
Bakhtin (2004: 41) complementa: “a palavra é

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 141 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 142
capaz de registrar as fases transitórias mais ínti- A Semiótica abre possibilidades para o estudo do léxico
mas, mais efêmeras das mudanças sociais. no texto, já que seu domínio é o texto como prática significan-
Embora a linguagem esteja sempre em trânsito, a mu- te. A Semiótica se efetiva quando deflagra, o raciocínio, que é
dança só é absorvida se for funcional e aceita pela comunidade o depósito de vivências que esperam o apelo do indivíduo para
lingüística. As alterações ocorrem com o uso quase automático virem à tona, seja em seu estado natural ou transformadas, de
dos léxicos. Os enunciados se formam no bojo das necessida- modo que possam resolver a questão instaurada. A Semiótica
des interativas do homem, gerando incontáveis alterações se- ensina o indivíduo a “ver” o que está no signo, no seu entorno e
mânticas e, por conseguinte, semioses ilimitadas. além de suas fronteiras por meio da assimilação e da compre-
A serviço da nomenclatura técnica, por exemplo, o gre- ensão. Orlandi (1996: 2), apud Simões (2002), afirma:
go e o latim (línguas mortas?) entram em cena. São lexias que, Face a qualquer objeto simbólico, o Sujeito se en-
como a fênix renascida, ressurgem das cinzas, com aparência contra na necessidade de ‘dar’ sentido. E o que é
de novíssimas palavras. Concepção ratificada em Baccega dar sentido? Para o sujeito que fala, é construir sí-
(1995: 32-35), ao afirmar que “o novo é sempre resultado do tios de significância (delimitar domínios), é tornar
que já era” e “[...] o novo está contido nas possibilidades do possíveis gestos de interpretação.
velho”. A Semiótica pode prestar contribuições ao ensino-
A dinâmica da renovação lexical é contínua num uni- aprendizagem de língua, em especial no âmbito da leitura e da
verso lingüística e semioticamente elaborado. Como a Semióti- produção de textos. Essas atividades propiciam ao leitor ou
ca é a teoria dos signos (dentre os quais está o léxico) e tem produtor de texto sair de si para o diálogo numa dimensão para
como domínio o texto, é pertinente uma relação entre Semioti- além da sintagmática e da paradigmática, posto que ele rompe
ca, léxico e texto. com o texto, passa pelo contexto e atinge o mundo vivido e
imaginado desse sujeito, onde é possível encontrar eco para
4 - Relação: Semiótica / léxico / textos suas expressões. E assim, lendo o mundo, ele compreende e
produz textos com conhecimento de causa.
A ciência semiótica – em sua corrente norte- Não há um abismo entre a atividade psíquica e a ex-
americana – explicita os mecanismos de produção pressão, “[...] não há ruptura qualitativa de uma esfera da reali-
de textos, observando os signos que os constitu- dade à outra”. Há, sim, um código que permeia essa travessia.
em em três signos: a) o das qualidades, que to- “[...] tudo que ocorre no organismo pode tornar-se material
cam a sensibilidade e despertam a função cere- para a expressão da atividade psíquica, posto que tudo pode
bral; b) o das relações, que provocam reações adquirir um valor semiótico, tudo pode tornar-se expressivo”
sensitivas deflagradoras de associações entre ex- (BAKHTIN, 2004: 33).
periências vividas e estratégias a desenvolver; c)
Há de se convir que cada elemento tem um valor distin-
o das generalizações, que possibilitam a constru-
ção de leis gerais aplicáveis em situações análo-
to. A palavra, por exemplo, é um material semiótico privilegia-
gas futuras. do que se entrecruza com outros tantos elementos semióticos
(SIMÕES, 2007) de valor secundário.

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Se não nos voltássemos para a função semiótica cos por meio da coesão e da coerência. Nesse empenho, a se-
do discurso interior e para todos os outros movi- mântica tem papel de destaque, uma vez que o sentido de uma
mentos expressivos que formam o psiquismo, nós mensagem não fica por conta apenas do uso das palavras e da
estaríamos diante de um processo fisiológico pu- sintaxe, mas atravessa o texto e atinge o domínio discursivo.
ro, desenvolvendo-se nos limites do organismo
Não menos respeitável é a Semiótica. Para Simões (2002),
individual.
Adentrar os umbrais da semiótica resulta em ree-
(BAKHTIN, 2004: 32)
ducar a percepção do mundo; redirecionar o po-
Como interlocutor, o homem se apropria, muitas vezes der de captação dos signos e significações resul-
irrefletidamente, das palavras de outrem, que antes lhe eram tantes da interação do homem com seu mundo
desconhecidas, mas que no momento da apropriação algumas interior e com o mundo que o cerca.
lhe pareceram naturais. E assim, da tensão entre o indivíduo e a No tocante ao ensino-aprendizagem, o professor pode
sociedade, emana o léxico, cujo uso / seleção varia de indiví- facilitar ao aluno a aquisição de habilidades que lhe agucem a
duo para indivíduo, segundo vários fatores particulares, tais percepção e os sentidos, para experimentá-los conscientemente
como: experiências lingüísticas, competência, cultura, idade, em várias perspectivas. Assim, essa atividade se torna mais
meio social, etc. dinâmica e até mesmo lúdica; passa a ser um jogo que trabalha
Em estado de dicionário, a palavra é um campo neutro; com a adivinhação e com a criatividade no que tange a textos
no texto, todavia, ela assume direções. Ela incorpora tendên- lingüísticos e não-lingüísticos, ampliando as fronteiras de dado
cias que não são, muitas vezes, as que o usuário pretendeu, mas conteúdo e possibilitando sua aplicabilidade.
que, pela inabilidade de lidar com o jogo discursivo no qual a A opção por uma ou outra palavra revela a singularida-
seleção lexical é um trunfo, a comunicação / interação não se de de cada indivíduo, fruto de um determinado sistema de valo-
efetiva a contento. res e de suas idiossincrasias, das leituras que faz do mundo
Entre um léxico e outro, nas entrelinhas do texto, o su- com o qual interage pela linguagem. Como ser ativo, em per-
jeito se envolve, age criando, trabalha os sentidos (segundo o manente processo, o homem, para interagir, faz do léxico o
apelo das mensagens), mobiliza-se em busca da satisfação de depósito de todos os signos que surgem (BASÍLIO, 2000). Es-
uma necessidade que lhe é inerente: expressar-se. Diante da se material estocado não é usado aleatoriamente, passa por “fil-
multiplicidade não-linear dos sentidos que o texto possibilita, tros”, segundo os grupos sociais a que pertence o indivíduo:
significados são constituídos, formando liames entre o indiví- um sujeito social autônomo, mas não independente, uma vez
duo e a sociedade, o instituído e o instituinte, conduzindo-o à que está articulado ao mundo, interagindo com seus pares, pro-
autonomia. Um conjunto de transformações lingüísticas intera- duzindo discursos.
ge no universo do enunciador levando-o a apropriar-se do léxi- Para se enfrentar a questão dos discursos, temos,
co para estreitar relação com o outro. portanto, de considerar que a linguagem não é
Um texto, portanto, é o resultado de um processo de se- meramente um exercício de significações cir-
leção que o produtor elabora com o fim de comunicar seu in- cunscritas individualmente, delimitadas “no” in-
tento. Para tal, organiza e sistematiza as idéias, opta por certos divíduo. Há que se perceber o “deslocamento”
vocábulos em detrimento de outros, estabelece nexos lingüísti-

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dessas significações: a produção do sentido está cia textuais. (VAL, 1997). Isso requer habilidade para se sele-
na sociedade, está na história. cionar o léxico na organização das orações, levando-se em con-
(BACCEGA, 1995: 27) ta a inter-relação entre elas, de modo a sistematizar e adequar
Dessa forma, o léxico assume significado, ao ser inseri- as idéias, preocupando-se com a tessitura textual a elaborar.
do no contexto, no discurso, materializando o pensamento do O ângulo de visão do produtor deve estar mais atento ao
sujeito cujo enunciado nada mais é do que uma polifonia do emprego dos mecanismos lingüísticos, índices observáveis na
meio em que vive, das interlocuções de que participou / parti- superfície do texto. É óbvio que o sentido não se restringe ao
cipa, seja no contato face-a-face, seja nas interações à distân- uso de palavras isoladas, nem apenas às relações sintáticas,
cia, ou em seu papel de interlocutor do discurso midiático. E é mas também ao uso da palavra no texto, dadas às relações de
assim que ele se torna mais do que um “eu”, um ser plural. sentido que transbordam para além dos limítrofes espaços da
A título de ponderação sobre a natureza sócio-histórico- superfície textual.
ideológica da linguagem, Biderman (1996: 6) considera a força Para Bakhtin (2004: 46), “o ser, refletido no signo, não
da midia (a da televisão, principalmente) maior do que a da apenas nele se reflete, mas também se refrata. [...] O signo se
literatura no papel de ditadora da norma lingüística, de expan- torna a arena onde se desenvolve a luta de classes”. Isso signi-
são dos recursos expressivos da língua, contribuindo substanci- fica que, se, por um lado, o signo reflete o real, por outro, ele o
almente para com a ampliação do vocabulário comum. A auto- transforma. O indivíduo então reproduz e produz linguagem.
ra pontua, também, a significativa influência da midia Quando se verifica o comportamento do léxico em di-
impressa, em especial sobre a classe dominante, que serve de versos textos, é possível observar que
modelo aos demais segmentos sociais. [...] uma das principais características da língua
Nesse sentido, escrita formal é a neutralização da situação do fa-
O léxico de todas as línguas vivas é essencial- lante em termos de individualização; daí evitar-
mente marcado pela mobilidade; as palavras e as mos utilizar a primeira pessoa e procurarmos tan-
expressões com elas construídas surgem, desapa- to as formas passiva e genérica. Num discurso em
recem, perdem ou ganham significações, de sorte que a individualidade procura se esconder, não há
a promover o encontro marcado do falante com a lugar para expressões subjetivas claras, razão por
realidade do mundo biossocial que o acolhe: o que qualquer processo morfológico que tenha
homem e o mundo encontram-se no signo. função subjetiva explícita está descartado da lín-
(BARCELLOS DA SILVA, 2000: 142) gua formal escrita. Como conseqüência dessa si-
Nas práticas sociais, entrecruzam-se múltiplas lingua- tuação, vamos encontrar marcada diferença entre
gens que, permeadas de sentidos, resultam em formas sensori- o léxico da língua formal escrita e o léxico da lín-
ais e cognitivas diferenciadas. São combinações discursivas, gua coloquial falada, sendo o daquela considera-
gramaticais, lexicais, fonológicas, icônicas... velmente mais limitado do que o desta, já que não
No nível da produção do texto com ênfase na busca de permite expressões claras de subjetividade.
(BASÍLIO, 2000: 89)
compreensão, evidencia-se a articulação em dois planos, o con-
ceitual e o lingüístico, no estabelecimento de coesão e coerên- Pelo excerto, percebe-se que a chamada competência
lexical, defendida pelos gerativistas como sendo o conhecimen-

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to internalizado do falante nativo sobre o léxico de sua língua, situação comunicativa; interpretar e elaborar textos coesos e
abrange itens lexicais e processos de formação que podem ser formalmente adequados aos respectivos propósitos comunica-
diferenciados no texto falado e no escrito. Enquanto o primeiro tivos e às diferentes situações discursivas.
incorpora aos itens lexicais matizes afetivos peculiares à fala, o Conhecer o léxico, portanto, implica mais que o simples
segundo procura dirimir subjetividades optando pela variante nomear, envolve o uso adequado de palavras, que só é alcança-
mais técnica. do por quem percebe o real com criticidade reconhecendo-o
A escolha vocabular tende a expressar o ponto de vista como o lugar de conflitos e consegue pela palavra articular o
do usuário em meio ao mundo circundante, a saber: sinônimos, emocional, o volitivo e o cognitivo.
hiperônimos, caracterizações que emanam dos juízos de valor A impropriedade lexical detectada em textos falados e
(positivos / negativos) do enunciador. escritos aponta para a necessidade de um outro projeto de ação
Enfim, o sentido do léxico está na práxis, na interação no ensino-aprendizagem, que considere percepção, capacitação
social. Como essa interação é flutuante, o sentido do léxico e reflexão sígnica. Sob essa ótica, tem-se maior visibilidade do
também o é, diferentemente das coisas que existem indepen- fenômeno lexical, uma vez que os sentidos, em simbiose (con-
dentes de nós. “Quando nos inteiramos com elas, através da tribuições da semiótica), facilitam a interpretação e o uso / se-
práxis, o que era objeto passa a produto. Já não se trata mais da leção do léxico.
coisa ‘solta’, a interação transforma o objeto em produto”. O ato da secundidade move o homem a transitar do in-
(BACCEGA, 1995: 39). dício a descobertas mais profundas. “A representação icônica
O processo de construção de um texto profícuo requer torna possível ao homem operar sobre as coisas e fenômenos,
uma competência léxico-gramatical, incluindo-se aí expressão analisando-as e descrevendo-as por meio de atos de lingua-
e conteúdo. Saberes de ordem fonológica, morfológica, léxica e gem”. (SIMÕES, 2002). A semiótica, avessa a dicotomias,
sintática, que possibilitam ao usuário: articular e identificar os contribui tanto para identificar signos como para analisar ima-
sons da língua em sua seqüência; associar segmentos sonoros gens, esquemas, metáforas... favorecendo o raciocínio lógico,
aos devidos significados e, por extensão, a seus sentidos no filosófico e fisiológico.
texto; não infringir as regras da língua ao combinar suas unida- Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) – Ensino
des; detectar construções mal-formadas em decorrência da Médio, Parte II: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias
transgressão de regras de formação de palavras. (2002: 123) propõem “a interatividade, o diálogo, a construção
Esses saberes precisam estar articulados aos saberes da de significados na, pela e com a linguagem”, visando à forma-
competência pragmático-textual. Nesse sentido, Azeredo ção do aluno para o mundo contemporâneo, considerando a
(2000: 49) pondera que o usuário é capaz de manejar os recur- escola o ponto de encontro entre o pensar e o fazer. Essa explo-
sos do componente expressivo da linguagem, tanto em seu pa- ração multissígnica é de base semiótica. Mais adiante (p. 126-
pel de locutor como de interlocutor de enunciados; discernir os 127) se lê:
vários sentidos do enunciado: literais, figurados e contextuais Toda linguagem carrega dentro de si uma visão
atribuíveis; selecionar, empregar e interpretar palavras, expres- de mundo, prenha de significados e significações
sões, construções da língua conforme as convenções de cada que vão além do seu aspecto formal. O estudo a-
penas do aspecto formal, desconsiderando a inter-

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relação contextual, semântica e gramatical própria assim ela cria obstáculos para que sua linguagem se desenvol-
da natureza e função da linguagem, desvincula o va. Se a expressão não aflorar, o homem não sai do casulo. Por
aluno do caráter intrasubjetivo, intersubjetivo e isso, é preciso diversificar os gêneros discursivos em sala de
social da linguagem. aula. Já se foi o tempo em que se dava uma série de palavras,
Fiorin (2005) esclarece: isoladas do contexto, tão-somente com o seu significado (visto
Cada ciência opera uma determinada redução,
aí como absoluto) para o aluno decorar.
opera com um determinado objeto, e o que a Se-
miótica faz é ter como objeto o texto e estudar
Em sala de aula, as atividades podem ser desenvolvidas
quais são os mecanismos que engendram seu sen- com o fim de ampliar o léxico do aluno. Por exemplo, a elabo-
tido. ração de paráfrases e resumos é um exercício que possibilita a
A Semiótica é um campo muito amplo porque se volta percepção da escolha lexical não só por parte do texto original,
para qualquer texto, qualquer manifestação de sentido, o que mas também pelo aluno na sua prática de refacção. Para tanto,
permite realizar múltiplas leituras, transitar no percurso figura- a escola deve ser o espaço de interação discursiva entre profes-
tivo do sentido, responsável pela assimilação do tema de um sor / aluno, numa pedagogia que conceba o aluno como um ser
determinado texto. fruto de uma história particular e social que se refrata na diver-
Sob o prisma semiótico (envolta em sensibilidade / rea- sidade lingüística.
ção / raciocínio), é possível otimizar a interpretação do fenô- Enquanto não houver uma conscientização do professor
meno simbólico constitutivo da linguagem, em cujo processo de português de que é preciso aderir a uma virada semiótica
ocorrem as escolhas, momento em que se descortinam “jane- que se sustente em compreensão, produção e recepção de tex-
las” com o propósito de alcançar os objetivos pretendidos. tos, as propostas do PCN de língua portuguesa continuarão a
soar como vozes no deserto. Os órgãos de fomento ao estudo e
4 – Conclusão à pesquisa precisam investir na formação de professores de
língua portuguesa, para que finalmente ocorra a (trans)forma-
Pelo exposto, chega-se à conclusão de que o ato de ex- ção conscientizada do que é o ensino de língua em toda a sua
pressar-se é, antes de tudo, marca do homem atuante, é uma extensão.
forma de estar no mundo, dinamizando-o; é situar-se com ou- O ensino do léxico a partir do texto, numa abordagem
tros homens; é um meio de desenvolvimento individual, de ser pragmática, foge ao preestabelecido. As regularidades lingüís-
autêntico; enfim, é um ato de compreensão e expressão huma- ticas dos gêneros a que se submetem os textos colocam o aluno
nas, é emergir-se como sujeito, como autor, que cria mensa- em contato com situações distintas de uso do léxico, possibili-
gens e as recria, as multiplica, dá-lhes vida, dimensão. O laço tando-lhe conhecer determinadas regras e convenções de inte-
entre o eu e o mundo é a o expressão; efetivá-la com mais efi- ração lingüística, a ponto de fazer com que ele amplie sua
ciência é tornar-se mais humanizado, tornando-se, portanto, competência comunicativa.
sujeito da sua própria vida. Por que não seguir alguns pressupostos da mídia, como
Sendo a escola o habitat formalmente responsável pela o de apelar para todos os sentidos do interlocutor, que conse-
educação lingüística, não pode cercear a palavra do aluno, pois guem atingir tão bem seus objetivos? Hoje o progresso tecno-

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lógico chegou a muitas escolas, por que não explorar seus re- BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. “O sistema e a norma
cursos audiovisuais? lingüística e a práxis das línguas de especialidade”. UNESP,
É preciso entender o léxico (processo simbólico) sob o SP, Brasil. In: Retas del V Simposio Iberoamericano de Termi-
foco da semiótica, extrapolando o espectro da estrutura da lin- nologia RITerm. Ciudad de México, del 3 al 8 de noviembre de
guagem verbal, isto é, na concepção da terceiridade peirceana. 1996, 6p.
Hoje, a semiótica peirceana convive com outras correntes BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros
(saussuriana, hjelmsleviana, soviética, greimasiana, barthesia- curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fun-
na...) ampliando seus campos de aplicações: literatura, artes, damental: língua portuguesa. Brasília: MEC. SEF, 2001.
som, música, oralidade, televisão... Como ciência inter-, multi- CARVALHO, Nelly. Empréstimos lingüísticos. São Paulo:
e transdisciplinar, possibilita o diálogo e o intercâmbio concei- Ática, 1989.
tual com outras ciências: ciências sociais, psicologia, psicanáli- DUBOIS, Jean. et alli. Dicionário de lingüística. 10. ed. Trad.
se... Por isso pode-se afirmar que a semiótica traz relevente Frederico Pessoa de Barros & Gesuína Domenica Ferretti. São
contribuição no desenvolvimento do repertório do falante. Paulo: Cultriz, 1998.
FIORIN, José Luiz. “O contexto do erro”. (Disponível em:
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cesso em: 2007.
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gia: os atlas lingüísticos do Brasil”. In: HENRIQUES, Cláudio de Fiorin na Faculdade de Letras da UFMG. (Disponível em:
César & PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. (Orgs.). Língua e www.fae.ufmg.br/Ceale/menu_abas/noticias/materias/2005/out
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Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 153 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 154
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uma nova dimensão para o ler e redigir”. Caderno Seminal, Rio FORMAS DE RESISTÊNCIA AO PODER
de Janeiro, v. 11, 2001. [p. 7-16] (Disponível em:
www.darcilia.simoes.com). Acesso em: 13/07/07. Eliane Maria de Oliveira Giacon
UEMS
VAL, Maria da Graça da Costa. Redação e Textualidade. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.
RESUMO:
O romance Madama Sui (1995), de Augusto Roa Bastos, narra a história de
Lágrima González Kuzugüe, uma das amantes de Stroessner, pela releitura
de seus cadernos (memórias) e por entrevistas feitas com pessoas que a
conheceram. Pretende-se trabalhar o elemento erótico demonstrando como
essa tipologia textual das memórias subverte a ordem social e política vi-
gente no Paraguai num processo de resistência, a fim de que a ideologia
subversiva possa legitimar e minar os alicerces da ditadura. Assim em suas
memórias apócrifas, estruturadas em um texto recheado da carnavalização
com o uso do texto erótico a personagem Madama Sui resiste ao povo, ao
ditador, a ausência de Él, ao tempo e a existência, pois as amantes não apa-
recem nos livros da História Oficial. Contudo são seus cadernos (memó-
rias), que fornecessem ao leitor uma noção histórica de sua passagem pela
vida política e social do Paraguai.
PALAVRAS-CHAVE:
Memórias, erótico, resistência.

Introdução

A obra Madama Sui (1995) de Augusto Roa Bastos tem


como temática a reconstrução da personagem Sui, que foi se-
gundo Maria Olmos (2005: 8) “uma das amantes de Alfredo
Stroessner” (ditador do Paraguai de 1954-1989). O texto narra
a história de Lágrima González Kuzugüe, a partir da releitura
de seus cadernos e da organização das entrevistas feitas por um
repórter com pessoas que a conheceram. Entre elas está Ottavio
Doria, tutor de Sui, que o ajuda a reconstituir parte da história
dela e muitas vezes o confunde num processo ambíguo de mos-
trar e encobrir os fatos. Dela sabe-se algumas coisas, tais como

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que foi apaixonada por Él, um colega de adolescência, por guerra, contribuem para reconstituir uma época, na qual a per-
quem sempre esperou até que a história do fim trágico dos dois sonagem por força da metaficção ganha existência no romance.
virou a seguinte lenda: após ele ter sido perseguido pela repres-
são do governo Stroessner, ele se esconde numa casa e ela vai 1 - Madama Sui
ao seu encontro, logo depois eles morrem num incêndio. Con-
tudo segundo o narrador nenhum corpo foi encontrado no local. Reconstruir a vida de um personagem histórico no ro-
Na recomposição da personagem, além das técnicas mance histórico contemporâneo passa em via de regra pela
narrativas e dos processos, que serão trabalhados a seguir, há o releitura da vida desse personagem, que pode ocorrer de três
uso do texto erótico, que predomina as entranhas da narrativa formas: a primeira como releitura da vida do personagem do
memorialista de Sui e de seus narradores. Observa-se, portanto, que poderia ter acontecido e não foi escrito; a segunda como
que o texto erótico aqui é privilegiado pela intenção metafórica aposta para o futuro, na qual muita coisa do que é relatado co-
dos narradores de desvendar o corpo e a eroticidade de Sui, a mo sendo parte da vida de um personagem histórico pode estar
fim de subverter a ordem social e política vigente do Paraguai sendo criado pelo romance, que está narrando a história e por
num processo de resistência, pois segundo Foucault (1979: 41) fim o terceiro caso, no qual são as memórias apócrifas de um
“para resistir, é preciso que a resistência seja como o poder[...] personagem histórica, que fornecem dados historiográficos
que venha de baixo e se distribua estrategicamente”, no intuito demarcando no romance a sua existência. No primeiro caso
de que a ideologia subversiva possa legitimar e minar os alicer- encontram-se os romances de extração histórica, nos quais apa-
ces da ditadura. rece como, por exemplo, o personagem histórico Lope de A-
A personagem ficcional Madama Sui resiste ao povo, guirre na obra Lope de Aguirre, príncipe da liberdade (1988)
ao ditador, a ausência de Él, ao tempo e a existência, pois ela de Miguel Otero Silva; no segundo há a personagem Evita Pe-
pode ter existido ou não, afinal as amantes não aparecem nos rón em Santa Evita (1996) de Tomás Eloy Martínez e por fim
livros da História Oficial, contudo são seus cadernos, suas Lágrima González Kuzugüe, alcunhada de Madama Sui na
memórias escritas ou orais, que fornecem uma noção de sua obra homônima de Augusto Roa Bastos.
passagem pela vida política e social do Paraguai nas décadas de A narrativa da obra Madama Sui reconstrói ficcional-
60 e 70 do século XX. mente a vida breve e marcante de uma das amantes de Stroess-
Suas relações eróticas com os outros e consigo mesma ner (ditador do Paraguai entre 1955 e 1989), cujas biografia é
são um tributo a sua vida, que se desenrola pela escrita, pois ela conhecida pela organização das notas de seu diário executada
escreve; sua história é escrita por outros e seus atos eróticos por um jornalista que investiga os fatos reconstruindo a vida de
são contados pela narrativa oral, na intenção de moldar um Lágrima Gonzále Kuzugüe, nome verdadeiro de Sui a quem o
corpus das intrínsecas relações de poder de seu país durante a narrador autodiegético define como sendo a criollita de fuego
Ditadura Stroessner na década de 50 do século vinte Assim paraguayo-japonesa[...], alias Sui, apócope de la lechuza de
apesar da personagem não ser consagrada pela Historiografia nome suindá (ROA BASTOS, 1985: 48). E para organizar a
Oficial, os fatos que a rodeiam como a Ditadura Peronista da vida da personagem, o narrador semelhante a uma ave noturna,
Argentina e a Reconstrução Econômica do Japão no Pós- em surdina, vai recolhendo dados e se confundindo proposi-

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talmente ou não o leitor, num jogo, que esconde a sua identida- dou com seus companheiros, dos quais há a lembrança nítida
de como se ele tivesse medo de ser descoberto. de El, o seu enamorado, que por motivos políticos como já dis-
O narrador procura Ottavio Doria, tutor de Sui, que de- semos, foi embora de Manorá e de Leandro, o jovem com
pois da morte dela se torna um ermitão, a quem comunica, que quem ela teve sua primeira relação sexual. Foi nessa época que
ele estava juntando material para escrever sobre Sui. Depois ele ela aprendeu que os homens eram incompletos e as mulheres
viaja para Manorá, que era tanto sua terra natal quanto de Sui. tinham poder sobre eles. Depois ela parte para Assunção, onde
Ele esclarece, que viveu na mesma época em que Sui morou no além de dedicar-se ao Balé Japonês, que dirige, ela se torna
povoado e que fora seu colega de escola. Suas frases são ambí- uma das amantes de Stroessner. Em seguida, Sui vai ao Japão.
guas e causam a impressão de que Sui estivera enamorada por No retorno ao Paraguai, permanece durante algum tempo com
ele. Como anteriormente na primeira parte da obra o narrador o ditador voltando a viver em Manorá, onde é execrada por
heterodiegético conta que Sui teve um grande amor a quem todos. Doria, nessa época, ajuda-a na construção de sua casa,
chamava de El e que por motivos políticos, ele havia ficado na qual ela mora com Celina Blanco, uma das bailarinas do
foragido. Na segunda parte o jornalista afirma que se distan- Balé Japonês. Desde a sua adolescência Sui escreve em seus
ciou de Manorá por motivos políticos. Ao citar esse fato, o nar- diários, tanto sobre sua vida íntima como sobre seus sonhos e
rador autodiegético dessa parte insinua, que ele poderia ser o devaneios. Um de seus desejos é ser comparada a duas figuras
grande amor de Sui. Contudo há a questão da morte, pois há a ímpares da História da América Hispânica: Eva Perón e Ma-
suposição de que El poderia ter morrido com ela num incêndio, dama Lynch. A primeira de artista de teatro tornou-se amante e
quando ele fugira da repressão política da ditadura Stroessner. depois esposa de Juan Perón, presidente da Argentina na déca-
O narrador autodiegético não só extrai informações so- das de 40 e 50 do século XX; a segunda de prostituta francesa
bre Sui, mas também se põe do lado daqueles que criticam e torna-se esposa de Solano Lopes, ditador do Paraguai na déca-
expõem os atos do ditador Stroessner do Paraguai, recolhendo das de 50 e 60 do século XIX.
da falas que ao testemunharem sobre Sui, também fazem uma Sui é um ser exótico descrito pelos relatos orais de Do-
crítica direta a desestruturação dos padrões sociais do Paraguai ria, pelos seus vinte cadernos e por dois narradores que se in-
durante a ditadura. Um dos testemunhos colhidos é o de Doria, tercalam, a fim de recompor um personagem diluído nos fatos
que diz El dictador omnímodo encontrou en la prostituición de de sua época.Para tanto os narradores utilizam dois artifícios: o
la mujer el elemento primario, el más vulnerable pero también primeiro pela metaficção das memórias da personagem Sui nos
el más eficaz, para promover la corrupción generalizada de la seus vinte cadernos e o segundo, pela reconstituição de sua
sociedade (ROA BASTOS, 1985: 128), levando a jovem a um vida no romance de forma circular, no qual os relatos de sua
envelhecimento precoce, pois o ditador aproveitou-se, segundo vida e de sua morte vão se encaixando, na intençao de formar
o narrador, da sexualidade dela que era algo natural para trans- um painel do momento político do Paraguai durante o governo
formá-la em um produto de exploração. de Stroessner.
O leitor é informado paulatinamente, que Sui perdera os
pais ainda criança e que Ottavio Doria tornou-se seu tutor, a
quem ela incumbio de construir uma escola, na qual ela estu-

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2 – Memórias versus ditadura Stroessner No caso da personagem Sui, as suas memórias servem
de mote para que os narradores da obra possam não só recom-
Alfredo Stroessner conseguiu chegar ao poder após o por a sua vida como também reconstituir um período crítico da
golpe de maio de 1954 e ficou até 1989, quando é destituído vida política do Paraguai, partindo do particular, do íntimo, do
por André Rodriguez em meio de um golpe de Estado.A Dita- sensual e do erótico como metáforas do que por forças do poli-
dura de Stroessner se manteve no poder por trinta e cinco devi- ticamente correto foram escondidos por baixo do “tapete” da
do ao uso de aparelhos de legitimação eficazes e pelo fato do pós-ditadura.
governo conseguir capitais estrangeiros para promover algumas Para tanto, a sua figura é focalizada de forma externa e
melhorias no país. interna. Externamente Doria e o narrador autodiegético recom-
O Desenvolvimento da ditadura Stroessner têm como põem de forma fragmentada do que e de quem teria sido aquela
características: a corrupção que mantém o quadro político coe- mulher, cuja vida se confundia com a história daquele período,
so, a repressão que utilizou a tortura e os grupos pyrague ou pois segundo Doria al final de su vida: mujeres perdidas, de-
sóplon, funcionários do Estado, que atuavam como delatores da saparecidas em sua propia leyenda. Eso era lo que entusias-
população. Além da presença da resistência formada por gru- maba a Sui. (ROA BASTOS, 1995: 125). Observa-se a idéia
pos no campo denominados: Liga Agrária Cristiana, Hermanos que agradava Sui, era a de poder se perder em sua própria len-
Franciscanos, Comunidad Cristiana de Bases que foram derro- da. E para tanto ela e seus narradores utilizam a memória, a fim
tados pela ditadura. de selecionar dados, que referendam sua passagem por aquele
Ë no âmbito desse período ou parte dele entre as déca- período da ditadura com elementos, que a legitimam tanto no
das de 60 e 70, que vive a personagem do romance Madama âmbito individual como no coletivo.
Sui, cujo enredo delimitado por dois narradores recompõe as No individual são os cadernos, que apresentam um pa-
suas memórias e o seu perfil com um texto que funciona como norama de quem seria Sui, contudo esses cadernos apócrifos
uma aposta contra a ditadura, pois há a pretensão explícita do não são encontrados pelo jornalista – o narrador autodiegético.
autor de não somente montar um painel da época e da vida da No coletivo, o único testemunho de sua existência é seu tutor
personagem, mas também de demonstrar os efeitos da ditadura Doria, que defende a sua pureza e inocência em relação à sexu-
sobre a sociedade e a vida íntima das pessoas. alidade, pois segundo ele o sexo para Sui era só pel deseo de
Assim em consonância com Savietto (2002: 114) pode- atraer y gustar (p. 125) daqueles que estivessem a sua volta.
se dizer que a memória adquire forma a partir das lembranças Para reconstituir a vida de Sui, o jornalista passa por um
“que ressurgem desordenadamente, uma vez que elas são sele- emaranhado discursivo, que o leva tanto a refazer a história
cionadas segundo um critério de ordem interna e intrinseca- política da Ditadura Stroessner, no tocante aos danos cometi-
mente relacionado com os momentos que tiveram papel rele- dos contra a população e o povo paraguaio como a percorrer os
vante em nossas vidas”, os quais são expostos de acordo com a caminhos que o levam a tentar conhecer a volúpia sexual dessa
uma seleção que depende de forma subjetiva daquilo que con- mulher.
sideramos importante. Em termos, as memórias de Sui colhidas ou relatadas
pelos dois narradores representam uma forma de oposição à

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ditadura, pois segundo Doria el sexo sierve a la mujer como estão escondidas no corpo social do Paraguai e da América
arma de legítima defensa (p. 126), que a personagem utilizou Latina com seus sistemas ditatoriais, cuja história sobre essa
para atingir os seus objetivos. Da mesma forma, pode-se dizer, forma de poder segundo Foucault (1979: 231) é um discurso,
que o texto erótico roabastiano serve de subterfúgio para anali- “que ainda está totalmente por ser feito”. E, portanto, o discur-
sar o discurso da resistência ao poder. so literário ao recorrer ao artifício do texto erótico contribui
como mais uma forma de penetrar nos meandros do poder via
3 - Carnavalização do poder via texto erótico reconstrução dos mecanismos de resistência.
Ao ridicularizar ou exaltar os atos eróticos, o discurso
A carnavalização é um termo que tem origem lingüís- erótico, como no caso da poética roabastiana, assume diferen-
tica no campo semântico do carnaval, uma festa que desde a tes funções inclusive a de ser um elemento de transgressão às
Idade Média é um momento em que as pessoas põem as másca- ideologias de fundamentação históricas, discursivas e de resis-
ras, a fim de que elas possam viver uma outra realidade. No tência, que legitimam, ultrapassam e completam o poder, a fim
carnaval os limites de hierarquia social somem e um bobo vira de se alimentarem dele e nele se inserem, de tal forma, que
rei e o rei pode andar por entre as gentes de forma oculta. quando mais um discurso é produzido,mais a visão dos ex-
Nos estudos de Bakhtin (2002) sobre Dostoievski o cêntricos desmistifica, dessacraliza e contesta a historiografia
termo carnavalização junto a outros como dialogia, paródia e formalizada e defendida por quem controla o poder.
heteroglosia são propostos e discutidos como mecanismos ca- No caso específico do romance Madame Sui, o texto
pazes de fornecer ao texto ficcional contemporâneo um corpus erótico como objeto de desejo “não é todo o erotismo, mas é
lingüístico capaz de reestruturar os signos, agrupando-os de atravessado por ele” (BATAILLE, 1987: 122) metaforizando a
acordo com os múltiplos significados de uma obra literária. sexualidade em relação às diversas concepções de poder sacra-
Assim o conceito de carnavalização sai do âmbito lin- lizadas pelo discurso do ditadura, que se fundamenta na “ver-
güístico e serve de fundamentação par um novo gênero literário dade”histórica contada pelos vencedores e na ação da resistên-
– o Romance Histórico Contemporâneo, que segundo Menton, cia subversiva.
(1993: 44) possui uma característica – a carnavalização, que Quando o erótico atravessa o objeto de desejo Sui, ele
consiste nas “exageraciones humorísticas y el énfasis en las cria um caleidoscópio, cujo foco de luz branca divide-se em
funciones del cuerpo desde el sexo hasta la eliminación”, que diferentes matizes, que irão recompor em pinceladas firmes a
invertem a ordem textual e produzindo um estranhamento, que história da personagem e a história do período da ditadura S-
construí um novo quadro do mundo no lugar do que fora des- troessner. Para tanto o texto não demarcar datas, mas sim deixa
truído pela junção de elementos díspares como os desejos se- vago, qual teria sido o período em que Sui tornou-se uma mu-
xuais e os elementos temporais e espaciais do cotidiano do ho- lher tão desejada, que usava seu corpo ora ingênuo, ora cor-
mem. rompido, ora envelhecido, ora amado, em função das necessi-
A carnavalização via discurso erótico é um traço mar- dades suas e dos outros. Portanto o seu corpo vivo semelhante
cante desse gênero, que Roa Bastos trabalha em algumas de ao corpo morto de Evita Perón se torna símbolo de uma resis-
suas obras, no intuito trazer à tona as relações de poder, que tência silenciosa, que somente a memória pode recuperar.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 163 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 164
4 - Pontos de resistência das memórias de Sui turas sexuais, que fizeram dela um símbolo de desejo e rendi-
ção do povo paraguaio.
Emprestemos uma citação de Marcuse (1968: 201) para Ao voltar à sua terra natal bem que ela tentou fazer com
focalizarmos como a resistência dos cadernos apócrifos e dos que as pessoas a aceitassem, convidando-os vizinhos e antigos
relatos evidenciam a presença de Eros na vida de Sui que se colegas para festas em sua casa, contudo ela foi rechaçada com
move “pela recordação protestando (grifo nosso) contra a or- actitud de repulsa, de censura, de odio cerval, [...] cuya solo
dem de renúncia; e usa a memória em seu esforço para devorar presença consideraban um insulto para el pueblo. (ROA
o tempo num mundo dominado pelo tempo”.Logo é possível BASTOS, 1995: 107). Não se sabe, porém, se o ódio do povo
dizer que a escrita desse texto funciona como uma aposta con- contra ela referia-se aos apelos chamativos de sua eroticidade,
tra o tempo enfrentada pela personagem, que usa as armas da à sua vida tida como mundana ou se era pelo fato dela ter sido
oralidade e da escrita como formas de resistência a tudo que amante do ditador, que era ponto de ódio das populações cam-
está a sua volta, principalmente contra a domínio da ditadura. pesinas, que sofriam com a repressão política.
Portanto, a Sui do romance é uma metáfora da resistência con- Desta forma, Sui resiste ao povo na medida em que sua
tra o povo, a ditadura, a ausência de El, o tempo e a sua exis- vida torna-se de domínio público e as pessoas são capazes de
tência, pois esses elementos se opõem ao seu corpo a sua eroti- reconhecer em sua figura um ícone de uma época da História
cidade. do Paraguai, que não pode ser contada, pois ainda é carregada
de medo das implicações políticas, visto que os mandatários
4.1 - O povo das perseguições e torturas permanecem nas rodas sociais e
Sui desde a época da escola era capaz de atrair a aten- políticas do país do final do século XX.
ção dos homens por seu ar exótico mestiço entre japonês/ para-
guaio e pela sua sensualidade que aos poucos foi se transfor- 4.2 - A ditadura
mando num forte apelo erótico desenhado com linhas A Ditadura Stroessner consolidou-se assumindo a má-
marcantes por um discurso, no qual a personagem em seus ca- xima de “Paz, Justiça e Trabalho”, contudo para atingir tais
dernos escreve com letra miúda os seus desejos sexuais mais objetivos foram feitas a partir de 1955 alianças entre Colora-
contidos e suas experiências sexuais tanto com os homens co- dos, Epifanista, Democráticos, Liberais e Febreristas para criar
mo com outras mulheres. Por trás de cada linha do texto há um governo populista, mas havia os “porões” desse período,
sempre uma conotação sublinhar de que o erótico se estende cujos crimes políticos dizimaram muitos opositores ao regime.
além do ato sexual apelando para todos os sentidos que a en- Entre os opositores estão as ligas campesinas, as universidades
volvem. e a igreja católica.
Desde jovem ela possuía uma áurea de eroticidade, que São dois os movimentos da obra Madama Sui em rela-
a levou a alcançar todos os seus objetivos e ao mesmo tempo a ção à ditadura semelhante ao que ocorre com as duas faces da
fizeram se afastar das pessoas, pois seus amigos foram poucos, ditadura Stroeesner. Se por um lado, a personagem Sui é se-
enquanto proliferaram as histórias sobre sua vida e suas aven- gundo Doria víctima propiciadora en la estrategia de degrada-
ción del país (ROA BASTOS, 1995: 129), por outro ela inte-

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gra-se ao universo da ditadura ao aceitar os meandros que a Seus cadernos apócrifos sustentam uma forma de resis-
levaram a apreciar todas as experiências sexuais e sociais como tência a ausência daquele, cujo nome não poderia ser pronunci-
o Concurso de Miss, as viagens propiciadas pelo ditador ao ado, por dois motivos distintos: um relativo a suas convicções
Balé Japonês, que a levaram ao Japão e o contato íntimo com políticas, que o fizeram um fugitivo e outra não muito clara,
Friné, uma das amantes do ditador. mas possível de perceber nas entrelinhas do texto, que se ele
No desenrolar do romance os movimentos da persona- fosse nomeado e substantivado, como sendo um mito criado
gem ora a aproximam, ora a distanciam da ditadura, semelhan- por Sui, a fim de manter um sentido, um norte e um destino
te a uma mariposa, que tem fascínio pela luz, que pode consu- para sua vida.
mi-la, mas mesmo assim, Sui está sempre no raio da ditadura No final da obra, o narrador diz que nenhum corpo foi
até o ponto em que para salvar El, o seu amor de infância ela encontrado nas cinzas da casa queimada, deixando em dúvida
ensaia um movimento de oposição,mas aí é tarde. Sobra para tanto se Sui existiu como se El não passou de uma criação dela
ela, então ir ao encontro de seu amado, sumindo com ele no como forma de resistir a solidão, que pairou sobre sua existên-
meio do fogo que os consome. cia.
Passar pelo fogo para imortalizar-se foi uma das formas
de resistência à ditadura encontrada pelo narrador heterodiegé- 4.4 - O tempo
tico para redimir a personagem, pois segundo ele una vida er- O tempo consiste num fator determinante para o desen-
rada puede rescatarse cerrando su círculo a través del fuego volvimento da enunciação de um texto literário, que pode ser
purificador, junto a la persona amada. (ROA BASTOS, 1995: demarcado por datas, períodos históricos e por fases da nature-
300), que fez com que Sui passasse do plano humano para se za. Contudo Cronos é implacável com o personagem seja ele
tornar uma lenda, pois não há indícios nem de sua vida, nem de histórico ou ficcional, pois em ambos os casos eles podem de-
sua morte, visto que são apenas os relatos orais e a suposta e- saparecer se não houver alguém que cante os seus feitos, fa-
xistência de vinte cadernos, que irão pautar os dois narradores zendo-os reviver a cada momento nas próximas gerações.
num emaranhado discursivo, no qual um painel da personagem E como pode o ser humano, um simples, mortal sobre-
vai sendo traçado num jogo sensual de mostrar e encobrir. viver a esse deus, que engole tudo por onde passa? A sobrevi-
vência de cada ser depende de como ele é capaz de escrever a
4.3 - Solidão / El sua história e deixar o registro de sua vida. Nessa tentativa de
Para ella había un solo y único El. imortalizar-se e ao seu tempo o homem utiliza muitas formas
(ROA BASTOS, 1995: 188) desde os desenhos nas pedras até as formas mais íntimas como
El sem nome ou sobrenome, poderia ser qualquer ho- os diários e as memórias, escritas por ele mesmo ou pelos ou-
mem por quem Sui se apaixonou e a quem dedicou não só seu tros, a fim de perpetuá-lo.
amor como também boa parte de suas memórias contida em Uma outra forma encontrada pelo romance consiste na
seus cadernos. Ali se encontra quase que uma devoção religio- escrita de textos, que recuperam, reelaboram, reescrevem no
sa a ele como se fosse um “homem-deus” ou um “deus- âmbito da ficção as memórias de um personagem histórico ou
homem” por quem a personagem suspira e mantém um culto literário, a fim de romper as barreiras do tempo, que o encerra-
religioso apregoado em suas escrituras.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 167 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 168
ram em uma época e substantivá-lo com um invólucro memo- colocam no centro de um círculo de fogo, ora envolvem-na
rialista, no qual um personagem, como é o caso de Madama num halo esfumaçado, que lhe dá um ar fantasmagórico, que
Sui atravessa as páginas de um texto contribuindo para que a pode ser considerado um processo de desconstrução e constru-
obra literária seja aquella cuyo final recuerda siempre el comi- ção da personagem, pois sua existência- vida e morte- advém
ezo, cerrando el círculo del relato. (ROA BASTOS, 1995: do fato de que nada sobrou dos seus cadernos, de suas memó-
300), que é capaz de reviver a trama de um tempo, no qual Sui rias, de sua casa, de seu povoado e de sua existência, visto que
viveu e escreveu seus cadernos como forma de resistir ao tem- nadia la há visto entrar em el vientre em llamas de tarumá. Se
po, na intenção de demonstrar a sua existência. formara la leyenda de su desaparición fantasmal. ( ROA
BASTOS, 1995: 300), que passou a fazer parte do imaginário
4.5 - A existência coletivo de um povo e de uma época, que o romance roabastia-
Dar vida a um ser inanimado numa obra literária é um no, numa construção perpendicular entre memória e discurso
processo, que está presente em várias obras como as de Mon- reconstrói a vida da personagem expondo todas as amarras do
teiro Lobato, as dos fabulistas e dos contistas das histórias in- texto para compor uma narrativa de extração histórica.
fantis, que povoaram e povoam o imaginário de muitas gera-
ções, mas dar vida a um personagem, cujos dados sobre sua Conclusão
existência histórica são duvidosos ou estão contidos em cader-
nos, cujas páginas não foram encontradas, consiste num traba- As técnicas aplicadas pelo autor dão ao romance algu-
lho de garimpo, que um narrador autodiegético da obra Mada- mas características, que o fazem uma obra fundamentada na
ma Sui, personificando num jornalista sai a procura de pessoas construção de uma narrativa, na qual prevalece o uso das me-
e dados, que pudessem confirmar a existência de Sui a quem mórias sejam elas coletivas, pessoais e apócrifas sobre um de-
atribui-se na narrativa que ela seguiría inventando sua vida a terminado momento da ditadura Stroessner,quando um perso-
casa día. (ROA BASTOS, 1995: 276), num processo de escri- nagem surge das cinzas como a Phoenix, a fim de iluminar o
ta, no qual os dados procurados pelo jornalista a respeito dela caminho labiríntico pelo qual o leitor possa atravessar na busca
poderiam não existir e os fatos que lhes deram origem foram de um texto que demarca no romance a sua existência, extrain-
criados pela personagem, fechando-a personagem num círculo do-a do universo lendário.
fogo, semelhante a lenda do escorpião. Para tanto a abordagem roabastiana, nessa obra, em seu
Diziam os egípcios, na tradição oral, que o escorpião, caráter metaficcional usa técnicas narrativas centradas nos se-
seguidor da deusa Isis, se fosse colocado num círculo de fogo, guintes pontos: a dualidade dos narradores, os discursos de
ele morreria vítima de seu próprio veneno, antes de ser consu- oposição ao poder com o uso da carnavalização apoiada no
mido pelas chamas. A propósito, esse relato lendário ou não texto erótico, a exaltação do corpo e do desejo em Sui como
vem ao encontro de existência da personagem Sui, que percorre metáfora de resistência ao povo, à ditadura, ao tempo e a soli-
a trajetória do romance focada por dois narradores, que ora a dão. E por fim a presença das memórias apócrifas escritas em
expõem de forma explícita, ao apresentar seu corpo, sua eroti- vinte cadernos dedicadas a cada ano de vida da personagem,
cidade, suas idéias e sua existência com num discurso, que a nos quais a cada dia a dia, ela num ato de auto-afirmação, mol-

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 169 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 170
da-se, se inscreve e se escreve numa histórica de um tempo MENTON, S. La nueva novela histórica: definiciones y orige-
perdido na memória do povo paraguaio. nes In: La nueva novela historica de la América Latina. Méxi-
O ato de criação da ficção roabastiana vem reafirmar a co: FCE, 1993, p. 29-66.
capacidade do gênero Romance Histórico Contemporâneo co- OLMOS, M. Tema IX: Mito, história y exílio em la narrativa
mo um espaço singular, no qual é possível a desmarginalização de Augusto Roa Bastos. Disponível em
tanto quanto aos temas como quanto à forma, pois o exercício http://www.webe.laencrucijada.com/hispanica/optativas/. A-
de uma variedade textual possibilita o uso do texto erótico fun- cesso 10/02/2006.
cionando como um elemento estranhamento, que de dentro da ROA BASTOS, A. Madama Sui. Asunción-PY: El Lec-
estrutura da obra toma Eros como uma forma de transgressão tor,1995.
das noções discursivas vigentes na intenção de dessacralizar o SAVIETTO, M. C. Baú de Madeleines: o intertexto proustiano
poder com a pretensão de dar voz ao outro, pois “a voz do ou- nas memórias de Pedro Nava. 1 ed. São Paulo: Nankin Editori-
tro, voz socialmente determinada, portadora de uma série de al, 2002.
pontos de vista e apreciações” (BAKTHIN, 2002: 192), des-
monta os mecanismos ideológicos legitimadores do poder.

Referências Bibliográficas:

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DURIGAN, J. A Erotismo e Literatura. 2.ed. São Paulo: Ática,
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Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 171 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 172
UM VERÃO ARDENTE: UMA LEITURA DO mance da escritora portuguesa Isabel Ramos, Está uma noite
ROMANCE DE ISABEL RAMOS quente de verão, datado de 2005, como portador de uma teoria
e como o registro muito específico de um certo tempo. A per-
Elisabete Carvalho Peiruque plexidade que fica no leitor, após a sua leitura, deve-se talvez
UFRGS
ao fato de o romance – em princípio tradução da realidade de
maneira estética – dizer tão pouco, parecendo bastante colado à
RESUMO: realidade. Isabel Ramos, num aparente ‘desenredo’, conta os
O texto, centrado no romance Está uma noite quente de verão, de Isabel desacertos de Mariana com a vida, numa narrativa linear, com
Ramos, analisa as representações literárias das relações interpessoais no uma voz a falar quase sempre do presente vivido a cada mo-
mundo em transformação acelerada de nossos dias. Na perspectiva de teóri-
cos da literatura e de sociólogos, toda a ficção fala da época de sua produ-
mento.
ção, não importando a excelência literária. O romance analisado coloca-se O mundo da personagem é o nosso mundo em processo
como discurso da cultura de massa, remetendo para a não-separação entre de transformação acelerada neste tempo que se costuma cha-
produção erudita e popular da pós-modernidade. mar de pós-modernidade ou modernidade final – continuação
PALAVRAS-CHAVE: ou oposição à modernidade (?) – e que vem sendo estudado por
Romance, cultura de massa, pós-modernidade, relações interpessoais. sociólogos como Anthony Giddens e Zygmunt Bauman. Am-
bos acusam como uma das suas marcas maiores a alteração das
relações inter-pessoais. Zygmunt Bauman comenta o fato de
O fascínio por histórias que misturam realidade e in- que, apesar de mudanças terem sido sempre a tônica da vida,
venção faz parte de nossa aparelhagem mental. Nosso gosto “nunca antes [elas] foram tantas nem tão profundas e o [seu]
pela ficção - já presente na infância quando as histórias infantis rápido aumento [em] quantidade e profundidade torna muito
alimentaram nossos sonhos e acalmaram nossas ansiedades – mais difícil a permanente tarefa humana da auto-orientação”.
constitui o gérmen do romance e da sua receptividade, esten- (2000: 147 - 148). Por sua vez, Anthony Giddens afirma que:
entre todas mudanças que estão se dando no
dendo-se isso pela narrativa filmada. Último dos gêneros na
mundo, nenhuma é mais importante do que aque-
história da literatura, o romance é considerado por Roger Cail- las que acontecem em nossas vidas pessoais - na
lois (1974) e Lucien Bóia (1998) como documentos da época sexualidade, nos relacionamentos, no casamento e
de sua produção, enquanto Walter Mignolo, desmentindo a na família.
categoria unicamente representacional do romance, expressa (2000: 61)
sua crença na força do mesmo. Considera ele que o romance O panorama alterado do “mundo em descontrole” – pa-
não deve ser lido apenas como objeto de estudo, e, sim, “como ra usar da expressão do mesmo Giddens – vai desaguar no ro-
produção de conhecimento teórico; não como ‘representação de mance, lembrando que o que está na vida vai para a arte, e de
algo’, sociedade, idéias, mas como reflexão à sua própria moda modo especial, para a narrativa ficcional – ainda que não de
sobre problemas de interesse humano” (2003: 305). forma mimética.
Partindo dos pressupostos teóricos acima mencionados, Não chegando a convencer como obra de ficção pelas
as reflexões que se seguem têm por objetivo examinar o ro- qualidades literárias, - embora levando à reflexão pelo gosto

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 173 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 174
amargo que deixa sua leitura – o romance de Isabel Ramos, experiência das amizades verdadeiras? Dentro de tal perspecti-
entretanto, apela para sensibilidades exacerbadas pelas mudan- va, são significativas as opiniões de Roger Caillois e Lucien
ças constantes dessa modernidade tardia – porque possivelmen- Bóia sobre a narrativa de ficção. Separados por um longo tem-
te resultado delas – modernidade que nos atropela com seus po nas suas reflexões, coincidem, entretanto, em suas posições
valores e desvalores convivendo em pé de igualdade. Huyssens sobre o valor do romance como elemento aferidor do social.
(apud HARVEY, 1992: 45) sublinha tais sensibilidades inte- Para o primeiro, o romance deve ser estudado como um fato
grantes das sociedades ocidentais como resultados de “uma social, fora do âmbito das letras, não importando sua qualidade
notável mutação” e, dir-se-ia, inegável mutação de que o ro- literária nesse caso (1974: 161), enquanto Lucien Bóia reitera
mance dá conta. Mariana vive uma relação atormentada com tal opinião a partir de estudos mais recentes sobre o imaginário.
David e, em meio a essa confusão de sentimentos, encontros e Para esse último, “do ponto de vista da história do imaginário,
desencontos em que se droga, bebe e fuma incessantemente, a excelência literária pouco conta; ela é de modo geral menos
relaciona-se sem preconceitos com outros homens. O romance instrutiva que a representatividade”. Ele acrescenta então a
dá a medida de uma geração para a qual não é problema o sexo necessidade de percorrer um sem número de obras medíocres e
promíscuo a não ser como perigo da Aids, isto é, sem proble- de qualidade duvidosa para apreender “os pensamentos e so-
mas morais. São suas essas palavras ao fim de uma aventura: nhos de uma época” (1998: 44). Os dois teóricos vêem os ro-
“Era um final feliz para mais uma amizade colorida” (2005: mances policiais e os folhetins, por exemplo – e, por extensão,
60). Atente-se no advérbio ‘mais’ como representação de uma outras obras menores em termos de valor literário –,como im-
idéia que veio criando corpo de modo a tornar-se a marca dos portantes para a decodificação de sensibilidades de um deter-
relacionamentos entre as últimas gerações. minado tempo, lado a lado com os grandes monumentos da
Mariana, nem tão jovem, pois já anda perto dos quaren- literatura.
ta anos, representa a geração que iniciou pelos finais dos anos A personagem Mariana é uma solitária, ainda que tenha
sessenta, início dos setenta. Sua vida é o que Bauman denomi- amigos e amigas. Quer encontrar o amor que está representado
na de “coleção de experiências” dessa segunda revolução sexu- – e, ao mesmo tempo, não está –, em um David que vai e volta
al que temos diante dos olhos (1998: 184). A falta de sentido para um convívio tumultuado, para no final cindir a vida entre
da vida, os personagens como que à deriva, a banalização do o relacionamento com ele e com outro. O que fica como uma
uso das drogas e do sexo que constituem a narrativa são como leitura possível é a dissociação entre o amor e o exercício da
que um retrato das pontas do iceberg oculto que está sob nos- sexualidade sem afeto, levando a pensar os valores da juventu-
sos pés e do qual ainda não sabemos a dimensão real. de ou, pelo menos, da primeira onda de uma modernidade tar-
Espécie de reportagem da época em que vivemos – e dia esboçada nos anos setenta e agora estabelecida, ao que pa-
por isso mesmo podendo parecer o já referido discurso por de- rece, para valer, com seus códigos de comportamento sendo
mais colado ao real –, o romance de Isabel Ramos coloca al- válidos para os filhos e netos dessa geração. Ainda, como sal-
gumas perguntas nas entrelinhas. O que quererá dizer a escrita do, fica uma reflexão sobre a banalização do que até não muito
de uma vida aparentemente sem sentido? O que quererá dizer tempo era considerado como aspecto negativo das relações.
essa narrativa do sem-sentido ao lado da busca do amor, da

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 175 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 176
O romance em foco remete para a cultura de massa. Não sendo intenção dessas reflexões entrar especifica-
Não se pode esquecer que essa facilita leituras com a identifi- mente nas discussões sobre o que é pós-moderno, sem que,
cação de uma sociedade que não sabe lidar com seus problemas contudo, seja possível omitir as evidentes relações, a análise
e projeta suas expectativas de solução nos textos literários de centrada nas personagens indicia comportamentos típicos de
qualidade inferior, no cinema para circuito comercial e, eviden- nossa época representados por sensibilidades para captação e
temente, na telenovela. Dentro de tal contexto, Bauman em para a recepção das representações do mundo líquido, em que
Amor líquido faz referência a uma série televisiva inglesa rotu- as coisas de hoje já saciaram os consumidores porque o mundo
lando-a como repetição por falar do que é do conhecimento promete outras e mais intensas experiências para um amanhã
geral. “Reafirmações regulares e confiáveis para a pessoa inse- que vem logo após. Consomem-se relações como se consomem
gura: sim, esta é a sua vida, e a verdade sobre a vida dos outros os objetos que a sociedade do capital produz sem cessar.Eis o
como você” (2004: 42). Está uma noite quente de verão está que um dos companheiros de Mariana deixa explícito: “Posso
antes incluído na categoria de arte comercial - resultado de uma te dizer que ela me foi muito útil, no sentido prático da questão,
pós-modernidade - do que na de um romance pós-moderno. ou seja, através dela conheci muita gente ligada à música”
Narrativa linear, seguindo modelos de uma literatura tradicio- (2005: 226). Nesta linha de pensamento o, o conceito de Mi-
nal, foge ao que se costuma chamar romance contemporâneo reille Calle-Gruber sobre o romance como espelho privilegiado
pelo alto nível de complexidade que esse carrega. Contudo, do mundo (1991: 12) é altamente significativo. O romance
confere com a falta de profundidade das obras pós-modernas mostra o ‘dentro’ e o ‘fora’ das personagens, e é o mundo em
apontada por Eagleton, possível conseqüência talvez da tentati- que tudo é mercadoria que a narrativa de ficção – seja cultura
va da não separação entre produção erudita e produção popular. de massa ou obra de valor – traz à tona.
Ele vê a produção da cultura do pós-modernismo como: Em nota anônima na contracapa do romance, lê-se que
(...) uma arte superficial, descentrada, infundada, “esta mulher vive a vida ao seu ritmo, ciente da fragilidade e
auto-reflexiva, divertida, caudatária, eclética, plu- efemeridade dos sentimentos”. Isso não soa como positivo, ao
ralista que obscurece as fronteiras entre e a cultu- ser um retrato da vida que nos vai levando para onde não sa-
ra ‘elitista’ e a cultura ‘popular’. bemos. Num esgotamento de emoções, o que sobrará após a
(1998: 7)
corrida pelos caminhos labirínticos da busca de realizações de
Bauman, o sociólogo do mundo líquido, ressalta a falta tais emoções distorcidas?
de compromisso bem como a inconsistência que caracterizam Mariana vive o mundo do não-pensar e do prazer avul-
as relações afetivas nos dias de hoje, fatos sobejamente retrata- so,- se é que pode isto pode ocorrer.
dos na vida da personagem de Isabel Ramos. E, dir-se-ia, rela- A música era boa e estava muito alta.
ções superficiais, porque dão conta de um mundo dos afetos Óptimo! Não teria de ouvir meus pensamentos.
que assim o é. O romance é superficial, como sua personagem Era disto que eu precisava! (...) À medida que ia
e, neste sentido, ainda um documento da subjetividade de uma bebendo já no segundo copo, sentia o corpo bai-
época, para usar palavras de Vargas Llosa (1991: 19) que reite- xar suas defesas. (...) Levantei-me, fui à casa de
ram o pensamento de Lucien Bóia. banho. Fantástico, este País está a evoluir: tinha
um cestinho cheio de preservativos e outros mi-

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 177 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 178
mos. On ne sait jamais, e servi-me de dois, um (2005: 15)
azul e um cor-de-rosa. Na seqüência dessa breve apresentação de si mesma, a
(2005: 11) personagem dá a medida de sua visão da vida em que a veloci-
A cena que aparece aos olhos do leitor configura o dade das transformações é claramente mencionada. É um viver,
mundo em que a personagem vive. A voz narradora passa co- um atordoar-se na busca incessante de coisas novas nas quais
mo evolução a comercialização do sexo e a sua inconseqüência as pessoas estão incluídas como objetos de troca. “Na maioria
afetiva, o que remete para a crítica irônica de Bauman a co- das vezes, [o sexo] é aclamado como o estágio indispensável
mentários ‘brilhantes’ de consultoras de relacionamentos em no processo de emancipação individual” (BAUMAN, 1998:
periódicos atuais de grande alcance na Inglaterra: 184). Viver relacionamentos coloridos significa crescimento,
As promessas de compromisso, escreve Adrienne ao que parece. Um resto da lembrança do que era a regra ‘anti-
Burgess, são irrelevantes a longo prazo. O com- ga’ aparece na semi-censura da amiga que lhe pergunta:
promisso é uma conseqüência aleatória de outras - Dormiste com ele?
coisas: nosso grau de satisfação com o relaciona- - É claro que sim
mento (...) [e] levá-lo adiante nos causaria uma - Mas... como pudeste? Conheceste-o ontem! Eu
perda importante em matéria de investimentos. não era capaz!
(2004: 28) - É... nesse aspecto tens razão. Demasiado fácil,
Bauman então observa: “Um relacionamento, como lhe não é? Mas olha, há dias em que não estamos pa-
dirá o especialista, é um investimento como todos os outros”, e ra jogos. Apeteceu-me e aconteceu. E digo-te que
a análise do sociólogo é mordaz para explicar palavras que são foi óptimo (...).
espelho do mundo da mercadoria e do capital, a bem dizer, (2005: 54)
palavras do vocabulário da economia “As relações de bolso, Já referido linhas atrás, é reiterado aqui o gosto amargo
explica Catherine Jarvie, são assim chamadas porque você que fica da leitura. Por parecer um retrato fiel da realidade,
guarda no bolso de modo a poder lançar mão delas quando for sendo uma ficção que não acrescenta nada ou muito pouco e,
preciso” (2004: 36). Bauman conclui que a relação de bolso assim, não oferece expectativas de outra coisa senão a irrever-
que a autora da expressão diz ser doce o é porque tem curta sibilidade do que aí está, o romance também ratifica ao longo
duração. “Uma relação de bolso é a encarnação da instantanei- se sua leitura seu caráter de retrato da cultura de consumo.
dade e da disponibilidade” (2004: 36). Mariana é a que está Bauman nos fala da verdade da arte, como ainda a concebe-
disponível para qualquer coisa que a tire da solidão cada vez mos, tendo por destino
maior a qual ela afoga na bebida, na ausência de alguém. opor-se à realidade e, por meio dessa oposição,
Eu vivo como quiser, à velocidade que bem me compensar a vida do que lhe foi despojado pela
aprouver. Sou financeiramente independente, não realidade e, assim, indiretamente, tornar a reali-
tenho filhos, não tenho dívidas nem sócios (...) dade suportável, protegendo-a contra as conse-
tenho meia dúzia de bons amigos, se calhar nem qüências de sua cegueira auto-inflingida.
tanto (...) tenho 38 anos, já passei da fase de ter (1998: 158)
de provar coisas a mim própria (...) A vida é de- Tal dimensão configura por contraponto a característica
masiado breve para isso. da cultura de massa que dá o ‘sim’ ao mundo sem questioná-lo.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 179 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 180
A narrativa da vida de Mariana constitui a aquiescência de seu Sim, o David, sempre o David...
tempo e que é, quer queiramos ou não, o nosso. (2005: 253)
Representação de boa parte dos comportamentos nas A mera observação para o que se vê à volta parece con-
sociedades urbanas no mundo atual, o romance em foco permi- firmar o que os estudos sociológicos mostram como marca do
te inferir um modelo de vida que se vai tornando a regra por tempo globalizado, onde além da exportação do capital, expor-
todo o lado e sem estranhamentos. Nele se pode ler o desencan- tam-se maneiras de ser. Raymond Williams anota “um número
to, o sem-sabor de uma vida mal vivida que ilustra estudos so- de importantes e contínuas reações (...) a mudanças em nossa
bre sensibilidades alteradas pelo mundo da modernidade tardia. vida social, econômica e política”, ou seja, algo presente sob os
- Ah, queres drogar-te?!... – zombou o Pedro. – nossos olhos, sejam eles críticos ou nem tanto. Na esteira dessa
Olha que isso não resolve nada, muito pelo con- análise, afirma ele a evidente necessidade de um ‘mapa’ para se
trário. Mas está bem, apetece-te descontrair. O ler e compreender a natureza de tais transformações (apud
problema é que aqui eu não tenho nada, não há HALL, 2003: 132 - 133). É, pois, possível pensar no romance
nada para ninguém. Provavelmente em casa, há de Isabel Ramos e outros que representam o mundo descontro-
por lá uma pedrinha esquecida, só procurando lado como guias para sua compreensão. Está uma noite quente
(...). de verão aponta para uma realidade que vai sendo cada vez
(2005: 123)
mais concebida como natural, desejável, ao mesmo tempo que
A teoria de Mignolo, deste modo, concretiza-se quando
os que a vivem dão mostras da insatisfação causada por ela.
se lê por trás de uma história – até certo ponto destituída de
Neste sentido, o romance, com seu duvidoso valor literário,
interesse – não somente o retrato no espelho diferenciado do
torna-se um documento valioso de nossa época em que amiza-
mundo atual (Cf CALLE-GRUBER: 1989), mas uma lição que
des coloridas pela sexualidade desregrada são a tônica e o con-
coincide com os estudos na área da sociologia.O romance em
sumo de drogas é considerado prática social natural.
questão remete para o mundo em descontrole em todos os sen-
tidos. Mariana não quer compromissos, vive cada dia em busca
Referências Bibliográficas:
de não sabe o quê, na verdade nem sabe bem o que quer. A
angústia que se lê – angústia de quem lê e reflete nas implica-
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorge Za-
ções de novos modelos de vida – não se aplaca nem mesmo na
har Editor, 2004.
passagem final quando Mariana encontra um homem que apa-
_______. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
rentemente a satisfaz, sem, no entanto, abrir mão de David.
Editor, 2000.
Fica no ar a indagação sobre o que significa amar no mundo da
_______. O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro:
modernidade tardia. Num tom de aparente satisfação, a perso-
Jorge Zahar Editor, 1998.
nagem conclui sua trajetória e a história dela.
BOIA, Lucien. Pour une histoire de l’imaginaire. Paris:
(...) meu encontro com Ioakeim, homem surpre-
endente e maravilhoso Gallimard, 1998.
(...) CAILLOIS, Roger. Approches de l’imaginaire. Paris: Galli-
Vivo entre Lisboa e Londres. mard, 1974.
Vivo entre o Ioakeim e o David.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 181 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 182
CALLE-GRUBER, Mireille. L’Effet-Fiction – de l’illusion O EROTISMO EM CARLOS DRUMMOND DE
romanesque. Paris : A. –G. Nizet, 1989. ANDRADE: O AMOR COMO SAGRADO RITUAL PO-
EAGLETON, Terry. As ilusões da pós-modernidade. Rio de ÉTICO OU COMO MERO RITUAL SAGRADO
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole – o que a globali- Maria Alciene Neves
UFSJ
zação está fazendo conosco. Rio de Janeiro: Record, 2000. Adelaine La Guardia Resende
HALL, Stuart. Diáspora. Belo Horizonte: Editora UFMG, UFSJ
2003.
MIGNOLO, Walter. Histórias locais / projetos globais. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2003. RESUMO:
Em O Amor Natural, livro de poemas eróticos do poeta Carlos Drummond
RAMOS, Isabel. Está uma noite quente de verão. Lisboa: Edi- de Andrade, quatro poemas servem-nos de mote para analisarmos a tessitura
torial Presença, 2005. erótica marcada pelo desejo masculino: “Amor – pois que é palavra essen-
VARGAS LLOSA, Mario. La verité par le mensonge. Paris: cial”, “Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas”, “A língua girava no céu
Gallimard, 1991. da boca” e “Para o sexo expirar”. Observamos nesses textos que as palavras,
muitas vezes, assumem um papel lúdico na representação do amor e do
sexo. A poesia erótica de Drummond passa por um ritual no qual o amor
nos remete ao princípio do prazer. O sujeito neste processo é masculino. A
mulher surge como cúmplice, mas não como enunciadora do prazer.
PALAVRAS-CHAVE:
Erotismo, amor, ritual, poesia, Carlos Drummond de Andrade.

1 – Introdução

Drummond é um dos mais célebres poetas da literatura


brasileira em virtude de sua poesia madura, de seu humor áci-
do, perpassado de crítica social, de uma densidade irônica sin-
gular, de uma alquimia verbal invejável. Poeta contido, sério,
muitas vezes “gauche” até em seus textos poéticos. Causa es-
cândalo literário quando publica, na revista Antropofagia, o
poema “No meio do caminho tinha uma pedra”.
Causam igualmente surpresa as poesias de “O amor na-
tural” que revelam uma face do poeta que ficara por muito
tempo latente e que mostram um universo poético bastante dis-
tinto daquele ao qual o leitor drummondiano estava habituado.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 183 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 184
Nessas poesias, que muitos chamaram de pornográficas e ou- masculino ligado à pornografia (suceder contínuo de atos sexu-
tros, apenas eróticas, revela-se-nos um Drummond destituído ais). Em sua obra, o autor delimita o que é excitante para o
do estereótipo do homem tímido. As cenas eróticas desenhadas homem e o que o é para a mulher. Mas, ao mesmo tempo, não
pelo poeta surgem numa linguagem sem floreios, direta, viva e descarta o jogo da troca de papéis, ou seja, o que excita um
lancinante, podendo causar em alguns um certo estranhamento. homem pode também ser extremamente provocador de excita-
A linguagem do poeta passeia pelas formas eruditas e ção e desejo numa mulher. Isso sem falar que a questão do ero-
coloquiais, na medida em que ele joga com as palavras e, ao tismo (ou pornografia) pode passar (e passa) por um julgamen-
mesmo tempo, lhes impregna de “profundidade”. Para Maria to de valor moral em que conceitos religiosos, por exemplo,
de Santa-Cruz: podem servir de “pano de fundo” para determinar o limite de
A sua poesia erótica [Drummond] – mas nunca um e de outro. Dessa forma, não se pretende defender aqui a
fescenina -, publicada em Portugal em 1993, e, tese de que os textos drummondianos são pornográficos ou
mesmo no Brasil, só editada em livros anos de- não, o que se considera uma discussão irrelevante para o pro-
pois de sua morte, constitui a mais bela e comple- pósito deste trabalho. Importa, sim, compreender aqui a tessitu-
ta da Língua Portuguesa no gênero, hiperbolismo
ra erótica como definidora do próprio ser expresso através da
e hinologia do Amor, mais do que um Kamasutra
em português vernáculo, ora erudito - sáfico, me-
linguagem. Entra em cena então a questão do desejo como mo-
dievalizante, renascentista -, ora mais chão, dando tivador do processo erótico. O processo de análise envolve en-
nome às coisas na língua do povo, mas raramente tão aquilo que Michel Foucault aponta em sua História da Se-
usando a gíria vulgar. xualidade:
(2003: 83) Analisar as práticas pelas quais os indivíduos fo-
Quando conclama “Oh! Sejamos pornográficos (doce- ram levados a prestar atenção a eles próprios, a se
mente pornográficos)”, na verdade Drummond nos convida a decifrar, a se reconhecer e se confessar como su-
jeitos de desejo, estabelecendo de si para consigo
experimentar esteticamente o erotismo através de um jogo poé-
uma certa relação que lhes permite descobrir, no
tico ritualístico em que as palavras, muitas vezes, assumem um desejo, a verdade de seu ser, seja ele natural ou
papel lúdico na representação do amor e do sexo. Mas não ape- decaído.
nas lúdico, “o amor e a poesia são uma religião que, pela valo- (FOUCAULT, 1984: 11)
rização da imagem, unem um ao outro e o humano ao divino” Interessante observar também as relações que se estabe-
(PEREIRA, 1998: np.). lecem entre o ser masculino e o ser feminino nesse processo.
O erótico e o pornográfico apresentam demarcações Para Georges Bataille, “o erotismo deixa entrever o avesso de
bastante tênues. Diferenciá-los, portanto, pode ser uma tarefa uma fachada cuja aparência correta nunca deve ser desmenti-
delicada. Isso porque pode envolver certos conceitos e precon- da...” (1986: 102), uma vez que no avesso revelam-se senti-
ceitos do próprio leitor. O que era considerado pornográfico há mentos, partes do corpo e maneiras de ser de que temos habitu-
trinta anos pode ter deixado de sê-lo hoje em dia. almente vergonha. O eu lírico masculino, através desse
Francesco Alberoni (1986) distingue entre um erotismo princípio erótico (desestruturador), reúne os fragmentos da
marcadamente feminino (água com açúcar) e um erotismo mulher que se configuram pelos elementos do seu corpo nu

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 185 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 186
(vulva, vagina, clitóris, etc.). Percebe-se, dessa forma, a cons- 2 - Amor: sagrado ritual poético ou mero ritual sagrado?
trução do universo erótico masculino a partir da reificação de
um “corpo feminino sem rosto”. Importante lembrar que essa Em “Amor – pois que é a palavra essencial”, temos uma
construção passa pelo desejo de transcendência, busca a meta- interpelação do eu lírico ao amor para que este reúna “alma e
física do ser, pois “todo erotismo é sagrado” (Cf. BATAILLE, desejo, membro e vulva”.
1986), localiza-se no ponto mais elevado do espírito humano. Amor - pois que é palavra essencial
Na teoria freudiana, a questão da sexualidade sempre comece esta canção e toda a envolva.
predominou na estrutura instintiva. Num primeiro momento, Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
volta-se aos pólos antagônicos instinto libidinal (sexo) e de reúna alma e desejo, membro e vulva.
Quem ousará dizer que ele é só alma?
autopreservação (ego), em seguida a teoria concentra-se no
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
conflito entre Eros – instinto de vida – e Tanatos – instinto de até desabrochar em puro grito
morte. Depois essa concepção é substituída pela hipótese de de orgasmo, num instante de infinito?
uma libido narcisista (onipresente), desencadeadora dos pode- O corpo noutro corpo entrelaçado,
res de Eros na medida em que a libido é liberada. fundido, dissolvido, volta à origem
Ainda precisamos destacar o lugar do princípio do Nir- dos seres, que Platão viu completados:
vana, que converge “terrivelmente” com o princípio do prazer. é um, perfeito em dois; são dois em um.
Para Marcuse, “se o princípio do Nirvana é a base do Integração na cama ou já no cosmo?
princípio de prazer, então a necessidade de morte aparece sob Onde termina o quarto e chega aos astros?
uma luz inteiramente nova. O instinto de morte é destrutivida- Que força em nossos flancos nos transporta
de, não pelo mero interesse destrutivo, mas pelo alívio de ten- a essa extrema região, etérea, eterna?
Ao delicioso toque do clitóris,
são.” (1969: 47). Entendemos aqui o princípio do Nirvana co-
já tudo se transforma, num relâmpago.
mo completa gratificação do Ser, resultado do escoamento livre Em pequenino ponto desse corpo,
das quantidades de excitação, nesse sentido este princípio surge a fonte, o fogo, o mel se concentraram.
não como morte, mas como vida. Vai a penetração rompendo nuvens
Chamo de eróticos os quatro poemas selecionados para e devassando sóis tão fulgurantes
a realização deste trabalho, os quais foram recolhidos do livro que nunca a vista humana os suportara,
O amor natural, publicado postumamente. Eróticos porque mas, varado de luz, o coito segue.
“soberanos”, ou melhor, porque nos conduzem à soberania, não E prossegue e se espraia de tal sorte
masculina ou feminina, mas do Ser. O objetivo deste trabalho que, além de nós, além da própria vida,
foi analisar os elementos que (re-)criam o mundo através da como ativa abstração que se faz carne,
reinvenção de palavras e gestos dessa escritura que se apresenta
como erótica. a idéia de gozar está gozando.
E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o clímax:

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 187 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 188
é quando o amor morre de amor, divino. Em teu crespo jardim,
Quantas vezes morremos um no outro, anêmonas castanhas.
nu úmido subterrâneo da vagina, Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas
nessa morte mais suave do que o sono: detêm a mão ansiosa: Devagar.
a pausa dos sentidos, satisfeita. Cada pétala ou sépala seja lentamente
Então a paz se instaura. A paz dos deuses, acariciada, céu; e a vista pouse,
estendidos na cama, qual estátuas beijo abstrato, antes do beijo ritual,
vestidas de suor, agradecendo na flora pubescente, amor; e tudo é sagrado.
o que a um deus acrescenta o amor terrestre. Neste poema, o eu lírico direciona o olhar do leitor para
Em seguida, o eu lírico dilui as fronteiras entre cor- o objeto sexual, no caso, o corpo feminino representado meto-
po/alma, eu/outro, material/imaterial. Assim temos respectiva- nimicamente, sendo o órgão genital a parte que representa o
mente “Quem não sente no corpo a alma expandir-se/ O corpo todo. Segundo Herbert Marcuse, “A finalidade erótica de sus-
noutro corpo entrelaçado... fundido, dissolvido... / Integração tentar todo o corpo como sujeito-objeto de prazer requer o con-
na cama ou já no cosmo? / Onde termina o quarto e chega aos tínuo refinamento do organismo, a intensificação de sua recep-
astros?”. É a libido a grande responsável pela conjunção dos tividade, o crescimento de sua sensualidade” (op.cit., p. 185).
corpos, pela sublimação do desejo, no qual o Eu e o Outro e- Se, por um lado, explorar o efeito de elementos corporais pro-
xercitam o ritual erótico: reúne-se, primeiro, sujeito (alma, duz uma erotização acentuada; por outro, apresenta uma carac-
membro) ao objeto (desejo, vulva); depois, funde-se o sujeito terização do Outro (feminino) fortemente estreita e redutora. O
ao objeto. Aqui ocorre a diluição de fronteiras materiais (cor- órgão sexual feminino é o alvo dos olhos e mãos possuidores
pos) e não-materiais (almas) para, em seguida, Eros (energia do eu lírico masculino. O que é sagrado: o corpo feminino pos-
sexual) encerrar-se em Tanatos (impulso da morte). suído ou a ação possuidora do sujeito que olha e toca?
Nas palavras de Terry Eagleton: “Lutamos para avan- No poema “A língua girava no céu da boca”, por sua
çar, e somos constantemente levados para trás, buscando retor- vez, o poeta brinca com as palavras, re(inventando-as):
nar a um estado anterior à nossa própria consciência” (1983: A língua girava no céu da boca
173). Assim, o orgasmo representa o limite entre Eros e Tana- A língua girava no céu da boca. Girava! Eram du-
tos, depois disso “E num sofrer de gozo entre palavras”... “É as bocas, no céu único.
quando o amor morre de amor, divino”. Em seguida, a paz é O sexo desprendera-se de sua fundação, errante
instaurada. Aqui o ego não pode ser atingido, a paz representa imprimia-nos seus traços de cobre. Eu, ela, elaeu.
Os dois nos movíamos possuídos, trespassados,
a bem-aventurança da morte.
eleu. A posse não resultava de ação e doação,
Já “Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas”, o tátil nem nos somava. Consumia-nos em piscina de
e visual se congregam a fim de preceder o ritual amoro- aniquilamento. Soltos fálus e vulva no espaço
so/sexual e depois, “na flora pubescente, amor; e tudo é sagra- cristalino, vulva e fálus em fogo, em núpcia, e-
do”. Aqui, mais uma vez, a idéia do sagrado está ligada a Eros: mancipados de nós.
o amor realiza-se no elemento erótico (flora pubescente):

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 189 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 190
A custo nossos corpos, içados do gelatinoso jazi- antes que, deliciosa, a exploração acabe.
go, se restituíram à consciência. O sexo reinte- Pois que o espasmo coroe o instante do meu ter-
grou-se. A vida repontou: a vida menor. mo,
“Eleu”, a comunhão perfeita entre dois seres é aquilo e assim possa eu partir, em plenitude o ser,
que, no ato sexual, os torna unos. Aqui o sexo representa a vida de sêmen aljofrando o irreparável ermo.
maior, sublimada, algo capaz de libertar os corpos “Soltos, Pode-se aqui vislumbrar a questão do tempo na tecitura
fálus e vulva no espaço cristalino, vulva e fálus em fogo, em do jogo erótico. Tempo e morte surgem como elementos re-
núpcia, emancipados de nós”. Em tom de prosa poética, uma pressivos do prazer sexual, uma vez que “A intemporalidade é
vez mais, o ritual do sexo desponta. No entanto, homem e mu- o ideal do prazer. O tempo não tem poder sobre o id, que é o
lher, neste momento, tornam-se posse dos próprios sexos, pois domínio original do princípio de prazer. Mas o ego, por cujo
que “O sexo desprende-se de sua fundação, errante imprimia- intermédio, exclusivamente, o prazer se torna real, está em sua
nos seus traços de cobre”... e “Os dois movíamos possuídos”. inteireza sujeito ao tempo.” (MARCUSE, 1969: 200)
Durante o gozo, o instinto se apodera dos corpos, o A previsão do fim aponta para a dor, o sofrimento: “Po-
“princípio do prazer e o princípio do Nirvana convergem en- bre carne senil, vibrando insatisfeita/ a minha se rebela ante a
tão” (Marcuse, 1969: 202). Ainda para Marcuse, “O instinto da morte anunciada”.
morte opera segundo o princípio do Nirvana: tende para aquele
estado de gratificação constante em que não se sente tensão 3 - Considerações finais
alguma – um estado sem carências” (1969: 202). Isso é revela-
do no verso: “Consumia-nos em piscina de aniquilamento... A poesia erótica de Drummond passa por um ritual no
vulva e fálus em fogo, em núpcia, emancipados de nós”. “A qual o amor nos remete ao princípio do prazer, já descrito por
restituição à consciência”, “a reintegração do sexo” e “o repon- Freud, como o locus onde não há repressão ao prazer e à satis-
tamento da vida menor” representam a volta ao princípio da fação, local da morada do instinto que é a voz mais íntima do
realidade freudiano. ser. O sujeito, neste processo, é masculino. A voz feminina se
Por fim, em “Para o sexo a expirar”, o orgasmo traz a revela ausente na cena amorosa. A mulher surge como cúmpli-
explicação do mundo, é ele a via pela qual a vida, na sua pleni- ce, mas não como enunciadora do prazer, o que revela um dis-
tude, é experimentada: curso pautado no “sonho de uma transcendência masculina” em
Para o sexo a expirar, eu me volto, expirante. que o papel da mulher é de uma mera coadjuvante ou de com-
Raiz de minha vida, em ti me enredo e afundo. pletude passiva. Assim, segundo Brandão:
Amor, amor, amor - o braseiro radiante Se a mulher aceita ser a ilusão da completude a-
que me dá, pelo orgasmo, a explicação do mundo. lheia, ela aceita um lugar que a imobiliza e mumi-
Pobre carne senil, vibrando insatisfeita, fica, lugar de morte, enquanto impossibilidade de
a minha se rebela ante a morte anunciada. seguir o trajeto metonímico do seu próprio dese-
Quero sempre invadir essa vereda estreita jo. Se ela se aliena aí, ela também se petrifica, a-
onde o gozo maior me propicia a amada. creditando realizar um desejo que é, afinal, o de-
Amanhã, nunca mais. Hoje mesmo, quem sabe? sejo de um outro.
enregela-se o nervo, esvai-se-me o prazer (2006: 24)

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 191 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 192
Aprisionada na perversão do desejo masculino, a mu- //serviços.capes.gov.br/capesdw.html?idtese>. Acesso em 23
lher surge possuída por uma construção discursiva (naturaliza- de dezembro de 2006).
da) em que acaba como coadjuvante silenciosa. Então, a partir SANT’ANNA, Affonso Romano de. O erotismo nos deixa
de um ponto de vista masculino e “caleidoscópico”, os termos gauche? In: ANDRADE, Carlos Drummond de. O amor natu-
do duplo eixo sexo/amor passam a ser indissociáveis, receben- ral. Rio de janeiro: Record, 1993, p. 77-84.
do uma densidade metafísica, uma vez que “O amor é o que há SANTA-CRUZ, Maria de. A oitava face do poeta: o amor na-
de imperioso na vida, é o momento luminoso na escuridão, a tural – erotismo tardio ou alquimia do amor? Scripta, Belo
afirmação da vida contra a morte, a procura da eternidade no Horizonte: s.n, v. 6, n. 12, jan/fev, p. 82-99, 2003.
fugaz instante” (SANT’ANNA, 1993: 83).

Referências Bibliográficas:

ALBERONI, Francesco. O erotismo – fantasias e realidades


do amor e da sedução. Élia Edel (trad.). São Paulo: Círculo do
livro, 1986.
ANDRADE, Carlos Drummond de. O amor natural. 2ª ed. Rio
de janeiro: Record, 1993.
BATAILLE. Georges. O erotismo. 2ª ed. Porto Alegre: L &
PM, 1987.
BRANDÃO, Ruth Silviano. Mulher ao pé da letra: a persona-
gem feminina na literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2006.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São
Paulo. Martins Fontes, 1983.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2; o uso dos
prazeres. 11ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização - Uma interpretação
filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Za-
har, 1969.
PEREIRA, Ana Santana de Souza Fontes. De anjo gauche a
anjo na contramão – por uma poética do falanjo. Dissertação
(Mestrado). Natal: Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, 1998. (Disponível em < http:

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 193 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 194
ROMANCE DO OLHAR DANDI A moça e o cavalo representavam as duas raças
DE CLARICE LISPECTOR de construtores que iniciaram a construção da fu-
tura metrópole [...] tudo o que ela via era alguma
Mário Guidarini coisa. [...] “O que se vê” – era a sua única vida in-
UNISUL terior; e o que se via tornou-se a sua vaga história
[...]. E a cidade ia tomando a forma que o seu o-
lhar revelava.
RESUMO: (LISPECTOR, 1982: 18-19)
Objeto desta crítica literária é invenção de Lucrécia Neves e de São Geraldo
por Clarice Lispector. Quadro teórico-metodológico das três categorias
Monólogos interiores sobre percepções de coisas pelo
fenomenológicas da Semiótica de Charles Peirce dá suporte ao ensaio- olhar detalhista da protagonista são subsumidos na escritura
resenha. Detalhes do olhar, ora difuso, ora atento, da protagonista e memó- romanesca pela autora, sem estereótipos, nem jogos pirotécni-
ria visual nomeiam coisas, objetos e animais narrados pela autora em forma cos retóricos e nem estremecimentos efêmeros. Trata-se, pois,
de signos lingüísticos culturalmente refinados, acrescidos de nuances femi- dum romance do olhar, montado em câmara lenta e sem per-
nizantes. Ficção e crítica entrelaçadas. Meta reforçar presença viva de Cla-
rice Lispector na literatura e na fortuna crítica contemporâneas.
formances contundentes. Diálogos esporádicos. Focos narrati-
vos de figurinos ao alcance da percepção visual e tátil da pro-
PALAVRAS-CHAVE: tagonista. Perceptivos, restritos às informações sensório-
Olhar, invenção, Semiótica.
motoras dos cinco sentidos. “São Geraldo era explorável ape-
nas pelo olhar [...] ela debruçava-se sem nenhuma individuali-
dade, procurando apenas olhar diretamente as coisas”
Introdução (LISPECTOR, 1982: 20).
Este ensaio-resenha alterna ficção e crítica. Ensaio to- Filigramas narrativas inesperadas e mudanças surpreen-
mado como experiência de distanciamento crítico. Vale-se do dentes de representações semióticas emergem da montagem
quadro teórico-metodológico atrelado à Semiótica de Charles paratática do romance em doze crônicas de tamanhos e valores
Sanders Peirce, instrumento de análise do discurso de Clarice poéticos díspares. Sobreposições e contraposições de enfoques
Lispector. Resenha, recurso ilustrativo e prazeroso decorrente em terceira pessoa pela autora, alimentam verossimilhanças
da alternância entre ficção e crítica. totêmicas entre sonhos e alucinações de Lucrécia e cavalos
Descrição coloca em luz alta instância do discurso. imaginários em prados ao redor de São Geraldo.
Não-análise psicológica de dizeres e fazeres dos personagens. Uma onda de poeira se erguendo ao galope de um
Narrar percepções do olhar da protagonista Lucrécia Neves em cavalo imaginário [...] os cascos batendo, foci-
terceira pessoa pela autora, no espaço literário, implica manter nhos espumantes erguendo-se para o ar em ira e
distanciamento crítico frente à produção de novos significados murmúrio [...]. O medo a tomava nas trevas do
romanescos em “A cidade sitiada”. Autora e espaço literário quarto, o terror de um rei, a mocinha queria res-
formatam redes semióticas ilimitadas nos corpos das doze crô- ponder com as gengivas à mostra.
(LISPECTOR, 1982: 22)
nicas na invenção de Lucrécia quanto da cidade São Geraldo.
Se via diferente no espelho dos outros: entortada
numa expressão passiva, monstruosa. [...] A cada

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parada do sonho, fixava uma rua desconhecida Analogias dizem o outrem. Metonímias formatam par-
com novas pedras. [...] Eis que sobre a pista os tes pelo todo. Ambas rompem linearidade – princípio, meio e
cavalos diminuíam na distância. fim – da narrativa tradicional.
(LISPECTOR, 1982: 76) Lucrécia Neves não seria bela jamais. Tinha po-
rém um excedente de beleza que não existe nas
Romance do olhar pessoas bonitas [...]. Inclinou-se de súbito para o
espelho e procurou achar o modo de se ver mais
Coloca em alto relevo olhar objetos, coisas e animais bela [...] e pronta parecia um objeto, um objeto de
designados por signos semióticos que representam algo (obje- São Geraldo.
to) para alguém (interpretante) sob algum aspecto, dentro dum (LISPECTOR, 1982: 32-33)
processo de semiose ilimitada de signos que remetem a outros Sem pintura o rosto perdia os vícios de que em
outros momentos Lucrécia Neves precisava para
signos imediatos. Interpretantes dinâmicos (mentes) por sua
se dar certo peso neste mundo. [...] No fundo
vez conotam fenômenos da experiência humana na consciência mesmo, ela se julgava uma deusa. [...] Remoendo
de intérpretes do discurso romanesco. “Fitar as coisas imóveis sua dificuldade de raciocinar.
por um momento [...]. Um camelinho. A girafa. O elefante de (LISPECTOR, 1982: 86-87)
tromba erguida [...] entre os vegetais carnudos de sono [...]. Indícios há de Lucrécia Neves ter sido elo final das cin-
Adormeceu desperta como uma vela” (LISPECTOR, 1982: co mil vidas da lendária maquiavélica Lucrécia Bórgia. Mera
75). metaficção historiográfica sem qualquer compromisso com a
“A colina se recortou com a nitidez torta de um desenho verdade histórica vislumbrada pela escritora?
mal feito. [..] As torres arquejavam sob a lembrança de guerras
e conquistas. [...] Desperta como o luar é ereto” (LISPECTOR, Expressão e impressão
1982: 78).
Olhar dandi e memória visual detalhista da escritora Percepções visuais de arranjos e características físicas
narra em terceira pessoa mantendo distanciamento crítico sem de objetos, coisas e animais em primeiridade monádica são
envolvimentos com trama do romance. Crônicas excelentes. incorporadas pela autora em terceiridade, grau máximo de se-
Quadros literários culturalmente refinados. Nuances feminizan- mioticidade. Lucrécia, ao sonhar ser estátua grega, sem rosto
tes. Expressões e sentimentos orquestrados. Filigramas tecidas no jardim da praça de São Geraldo, auto-encena-se ícone, grau
com lucidez, entremeadas de repetições. mínimo de semioticidade.
Nem escuridão nem claridade – aurora. [...] Nem E seu destino como grega então era tão inconsci-
escuridão nem claridade – visibilidade. [...] Sob ente quanto agora em São Geraldo [...] e a estátua
os estremecimentos, cambiantes da claridade até jazia nas trevas do jardim. [...] As órbitas vazias.
seus sinais já apareciam no rosto. Ela mesma endurecida num só pedaço [...] agora
(LISPECTOR, 1982: 82) facilmente transportável.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 197 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 198
E assim a tinham pousado. De cabeça para baixo Assim como nunca precisava da inteligência,
e pés juntos para cima. nunca precisava da verdade [...]. Lucrécia Neves
(LISPECTOR, 1982: 80-81) tanto vivia se mostrando que algumas vezes che-
Percepção sensório-motora capacita-a encenar figurinos gava mesmo a se ver.
no ambiente urbano de São Geraldo e fazenda de origem, onde Só que se via como um bicho veria uma casa: ne-
impressão é expressão. nhum pensamento ultrapassando a casa.
Moças riam difíceis de se comportar [...]. Ela pi- (LISPECTOR, 1982: 71-72)
sando com os cascos na pedra escorregadia [...]. Autora quanto protagonista são construtos do romance.
A moça e o cavalo representavam as duas raças Pinta alegoricamente seu duplo Lucrécia. Narrar imagens não
de construtores da futura metrópole [...] tudo o conscientes, sob algum aspecto para alguém, desencadeia se-
que ela via era alguma coisa. Nela e no cavalo a mioses ilimitadas de verossimilhanças inesperadas entre ficção
impressão era a expressão. e realidade, sonho e vigília, olhar difuso e ver atento, aparência
(LISPECTOR, 1982: 18-19) e realidade. “Formigas, ratos, vespas, rosados morcegos, ma-
Clarice revitalizou figurinos sob forma de signos na in- nadas de éguas saíram sonâmbulas dos esgotos” (LISPECTOR,
venção da protagonista “olhando estúpida em volta, com difi- 1982: 76).
culdade de pensamento que a falta de sensualidade lhe trazia” “De que era feita a flor senão da própria flor”.
(LISPECTOR, 1982: 34). (LISPECTOR, 1982: 62)
Análises discursivas pelo viés da semiose ilimitada Oh, mas as coisas não eram jamais vistas: as pes-
permitem ao leitor crítico formular juízos perceptivos sobre soas é que viam. [...] Que diria se pudesse passar
versões não críticas da protagonista impregnadas de indistin- de ver os objetos a dizê-los... [...]
ções entre sujeito e objeto, realidade e ficção, sonho e vigília, O difícil é que a aparência era a realidade. [...] De
protagonista e coisa. que era feita a flor senão da própria flor.
Aos poucos ela não saberia se olhava a imagem (LISPECTOR, 1982: 63)
ou se a imagem a fitava porque assim sempre ti-
nham sido as coisas e não se saberia se uma cida- Sonhos e alucinações
de tinha sido feita para as pessoas ou as pessoas
para a cidade – ela olhava. Passado de São Geraldo, década do após primeira guer-
(LISPECTOR, 1982: 48) ra mundial, diz o presente duma metrópole em progresso após
segunda guerra mundial. “Lá estava a cidade. [...] Se ao menos
Ver-se como outrem estivesse fora dos muros. Mas não havia como sitiá-la. Lucré-
cia Neves estava dentro da cidade” (LISPECTOR, 1982: 63-
Monólogos interiores de Lucrécia, narrados por Clarice 64).
sob forma de juízos perceptivos, abordam características físicas “Sob o sonho os motores do subúrbio não paravam,
dos figurantes em ambientes fechados (quarto, sala, sobrado) e não paravam, a saliva escorria de sua boca aberta. Adormeceu
abertos (rua, praça, sítio) sem recorrer a questionamentos refle- enfim mais profundamente” (LISPECTOR, 1982: 78).
xivos.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 199 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 200
No jardim, quinta crônica, autora encena um dos sonhos giava a casa [...]. Tal a sua grandeza, tal a sua mi-
da protagonista valendo-se de sobreposições, contraposições e séria.
condensações de imagens não-verbais. “Da barca soterrada na (LISPECTOR, 1982: 160)
areia só aparecia a proa. E, na porta mutilada, velava a cabeça Produções da literatura brasileira, somadas às demais li-
de um galo” (LISPECTOR, 1982: 61). teraturas em português, jamais esgotarão potencialidades ine-
Felicidade possível que poderia ter acontecido, não a- rentes à língua. Romance sobrevive nos dizeres e fazeres dos
conteceu ao se casar com forasteiro empreendedor Mateus. personagens, constelações e criações seminais de estilo pesso-
Transmutou-se em melancolia após enterro do esposo. Obri- al, polissemias, palavras, frases e tessituras prenhes de jogos
gou-a a retornar à casa materna, agora ambas viúvas. “Seria metafóricos, metonímicos e alegóricos, filigramas feminizantes
esta a história de uma vida vazia? [...] Tudo o que possuíra de de críticas sutis ao medo de Lucrécia ultrapassar barreira sensó-
mais precioso estava fora dela [...] recebeu a carta da mãe cha- rio-motora.
mando-a para a fazenda” (LISPECTOR, 1982: 173). Quando uma coisa não pensava, a forma que pos-
suía era o seu pensamento. O Peixe era o único
pensamento do peixe. [...] O segredo das coisas
Imagens intertextuais e interdiscursivas estava em que, manifestando-se, se manifestavam
iguais a elas mesmas.
Signos romanescos recriam autora, personagens e inter- (LISPECTOR, 1982: 61)
pretantes dentro de processos de semioses ilimitadas de signos
entre si e noeses ilimitadas de pensamentos entre si e idéias Crítica literária
entre idéias. Enunciações semióticas dependem de interlocuto-
res intertextuais e interdiscursivos. Semiótica peirceana acopla Autora em “A cidade sitiada” fragmenta linearidade
dimensão imediata à dimensão dinâmica da experiência literá- discursiva do romance tradicional (princípio, meio, fim) valen-
ria. Autora imbrica percepções sensório-motoras da protagonis- do-se das novas técnicas de montagem, herdadas, salvo melhor
ta, grau mínimo de semioticidade ao grau máximo de significa- juízo, do novo romance francês, responsável pela revitalização
dos literários. Interpretantes imediatos (livros, artigos) e e sobrevivência de novos significados literários.
interpretantes dinâmicos (mentes, leitores) desvelam imagens Crítica literária implica campo teórico-metodológico,
plásticas não-verbais de sonhos nos interdiscursos das doze regras de formação e transformação na construção de textos
crônicas (Cf. PIERCE, 1999: 71-76). críticos sobre textos de ficção. Autores de criações literárias e
A vigília da senhora de preto se alongava em artísticas não-verbais não se atêm a normas pré-fixadas por
sombra [...]. A fruta de ouro (no espelho) oscilava
teóricos e teorias de literalidade. Encenação da protagonista de
plena [...]. Deveria apanhá-la com a sua própria
perturbação [...] com a escuridão cheia de abelhas
si e para si própria testemunha veredito.
Ela era um objeto da sala: os pés apoiavam-se no
de mel [...] ser apenas a mancha escura no espe-
assoalho, o corpo se revelava no sexo e na forma.
lho [...] até alcançar a atenção universal e sofre-
[...] Seria o momento de alguém olhá-la e vê-la.
dora de um cão [...] não era o cão, era ela que vi-
[...] Lucrécia Neves sorria em mistério e estupi-
dez. [...]

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 201 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 202
Sorrindo, bonitinha, olhando a mão direita onde satisfatória do romance. Lembram exposição de quadros pinta-
queria ver em breve um anel de compromisso [...] dos com palavras, frases e sentimentos poéticos dentro duma
de aliança. lucidez erudita sobre o medo de Lucrécia ultrapassar percep-
(LISPECTOR, 1982: 103) ções visuais.
Significância romanesca constrói, desloca, decodifica e Estava bruta, de pé, uma besta de carga ao sol.
atrela jogos de imagens não conscientes a novos significados Essa era a espécie mais profunda de meditação de
pertinentes. Autora encena sentimentos conflitantes de expres- que era capaz [...] o olho sonolento como modo
sões e sensibilidades femininas. “Um modo de fazer doçura aberto de ver as coisas. Apenas o modo, não a
que não estava mais na doçura” (LISPECTOR, 1982: 153). posse [...].
Podia-se pensar tudo contanto que não se soubes-
Silhuetas estilísticas se. [...]
Mesmo o erro era uma descoberta. Errar fazia-a
encontrar a outra face dos objetos e tocar-lhes o
Estilo romanesco tradicional localizava-se entre inven-
lado empoeirado.
ção e linguagem, expressão e conteúdo, forma e fundo, som e (LISPECTOR, 1982: 90).
sentido, imagem e mensagem sincronizados. Na contempora- “Seu medo era o de ultrapassar o que via. [...] No espe-
neidade, estilo instala-se igualmente entre língua e discurso, lho flutuava o conhecimento de toda a sala” (LISPECTOR,
código e mensagem, escritura e liberdades poéticas. 1982: 91).
Monólogos interiores, pré-sígnicos, inacabados e frac- Doze enunciações cíclicas expressam crítica sutil e dé-
tais da protagonista fluem da memória visual e ímpar da escri- bil dum olhar dandi sobre crescimento desmesurado de São
tora dandi. Geraldo, sempre mais poluída por agressões ao meio ambiente
O que não se sabe pensar, se vê! [...] Sala é o lu-
gar onde estão as coisas. [...] As flores do jarro.
e desconforto de moradores.
Também a cidade deveria ser espiada por uma se-
Uma era vermelha. Tinha o talo fraco. Uma era
teira. Assim quem espiasse se defenderia, como a
cor-de-rosa. Era pequena. [...] O bibelô estendia a
coisa espiada. Ambos fora do alcance.[...]
flauta. [...] O canto da sala era escuro. A parede
Tudo o que via se tornava real [...] o horizonte
[...]. O teto [...]. A estante. A porta. O chão. [...] O
cortado de chaminés e telhados [...] a aparência
relógio. Flor, jarros, teto, chão, veneziana.
era a realidade. Sua dificuldade de ver era como
(LISPECTOR, 1982: 93)
se pintasse.
Gostava de ficar na própria coisa: é alegre o sorri-
(LISPECTOR, 1982: 89).
so alegre, é grande a cidade grande, é bonita a ca-
ra bonita – e era assim que se provava ser claro
apenas o seu modo de ver [...] a cidade é a cidade. Indícios de lesbianismo
(LISPECTOR, 1982: 88)
Linguagem incorpora memórias e experiências pessoais Ana e filha Lucrécia, ambas viúvas, inventam-se perso-
e culturais nos corpos das crônicas, cada qual como parte pelo nagens dum faz-de-conta lésbico.
todo, sem ter que somá-las para obtenção duma compreensão

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 203 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 204
Dois personagens que elas jamais saberiam des- Protagonista vislumbra posições efêmeras de coisas e
crever mas que podiam imitar, apenas inventan- objetos de seu difuso parecer ser coisa entre coisas. Lispector
do-se. [...] dandi narra olhar de Lucrécia conferindo-lhe duradoura beleza
De outras vezes, quando a filha a tocava, Ana se poética. Constelações de semioses ilimitadas de coisas feitas de
sobressaltava e ainda tentava trotar entre as coi-
coisas. Espiar dispensa pensar.
sas. Mas hoje arfava ligeiramente [...] deu uma
Espiando [...] alguma coisa não existiria senão
expressão de amor tão luminoso que se alguém a
sob intensa atenção; olhando fazia com que ela
visse teria visto o amor.
não buscasse a causa das coisas, mas a coisa ape-
(LISPECTOR, 1982: 57-58).
nas que está ali [...]. Seu medo era o de ultrapas-
Gestos e ações de auto-invenção entre personagens do sar o que via.
mesmo sangue conotam instintos genesíacos fulminantes im- (LISPECTOR, 1982: 91)
postos pela natureza. Pulsões do inconsciente coletivo simulam A sala envelhecia com os bibelôs gelados [...].
concomitantemente prazer e dor, atração e repulsa. Incestos Lucrécia não os entendia [...]. Essas coisas feitas
rompem interditos éticos e políticos sob forma de jogos cênicos das próprias coisas [...]. Uma emprestada à outra
de ódio-amor, traição-fidelidade, ficção-ilusão entre mãe e filha emprestada à outra [...].
no âmago do espaço literário. Conspurcam pacto coletivo i- O que não se sabe pensar, se vê!
memorial do ethos mitológico. (LISPECTOR, 1982: 93-94)
Olhou com alguma piedade aquela moça à sua
frente, cheia de estúpida juventude, a quem ja- Pantomima de si para si
mais se poderia ensinar a... a... bondade? Que
bondade? A moça então respondeu que se mor- Caíra numa arte antiga de corpo e este procurava
resse – afinal que importava? A mãe não choraria a si mesmo tateando ignorância [...]. Exprimindo
sequer [...] mas já não precisavam de grandes pelo gesto da mão sobre o único pé, e entortado
preparativos para entrar nos dois personagens. com graça em oferenda, o único rosto sacudindo-
(LISPECTOR, 1982: 58) se em pantomima, eis, eis toda ela terrivelmente
física, um dos objetos. Assim permaneceu até que
Perfil do olhar dandi de Lucrecia [...] perdera enfim o dom da fala. Porque era as-
sim que uma estátua pertencia a uma cidade [...].
O olhar não era descrito, eram descritivas as posi- Tudo isso foi uma brincadeira sabe “disse-se com
ções das coisas. [...] pudor”.
As coisas pareciam só desejar aparecer [...] era (LISPECTOR, 1982: 68-70)
apenas o que se podia dizer. [...] Olhando agora Sonho, enigma em fulgurações. Encena, condensa,
pelo buraco da fechadura. Como as coisas pareci- transpõe e desloca imagens não-verbais para burlar interditos
am grandes vistas pelo orifício. Adquiriam volu- vigentes nos estados de vigília de Lucrécia. Objetos, coisas e
me, sombra e claridade: elas apareciam. medos assumem papéis de figurantes no sonho. Importa signi-
(LISPECTOR, 1982: 89) ficância dessas imagens e fulgurações não conscientes pinçadas

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 205 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 206
pelo olhar dândi da escritora. Imagens não-verbais fabuladas perna fina e ria rumorosamente de frieza [...]. Ela
no romance caracterizam-se pré-signos de outra natureza que a lhe dizia como se falasse de uma terceira pessoa:
da língua e signos semióticos intencionais. – Ele não entende nada de roupas! [...]
Sonhar ser grega era a única maneira de [...] ex- Era preciso manter a hilaridade para disfarçar a
plicar seu segredo em forma de segredo; conhe- palavra [...]: o estúpido.
cer-se de outro modo seria o medo. (LISPECTOR, 1982: 129)
Ela era antes dos gregos pensarem, ainda tão pe- Elementos hilariantes esboçados pela protagonista pro-
rigoso seria pensar. [...] E seu destino como grega vocam risos reflexivos sobre procedimentos de esposas sub-
então era tão inconsciente quanto agora em São missas em casamentos típicos de época. Ironias do olhar femi-
Geraldo. nino de esposa rebaixada à condição de cozinheira e servente
(LISPECTOR, 1982: 80) afastam sentimentalismos de complacência no desfecho infeliz.
Inconsciente coletivo retoma ciclos abissais das cinco Enigmática, evoca seu passado maquiavélico.
mil vidas de Lucrécia Neves, agora estátua grega sem rosto nas
trevas do jardim de São Geraldo. Cinco mil vidas

Paródias risíveis “Na verdade cinco mil vidas não bastariam sequer para
que nela chegasse à perfeição sua primeira vida real. Ela já
Vivia na rua em correrias mas sempre calmo e e- começara porém o trabalho das cinco mil vidas” (LISPECTOR,
legante. [...] Banho durante uma hora [...]. Cabe- 1982: 147). “E na inocência de Lucrécia estava o mal [...]
los grisalhos perfumados [...]. No bolso do paletó
quem não vira nas noites sem vento como as flores de prata
um lenço cheiroso. E ela sendo mulher, o servia.
Enxugava-lhe o suor, alisava-lhe os músculos.
eram cruéis e assassinas?” (LISPECTOR, 1982: 146).
Aviltava-a [...]. Estendendo camisas [...]. Ou ali- Lucrécia Neves seria derradeiro elo das cinco mil vidas
mentando-o. da sósia Lucrécia Bórgia? Metaficção historiográfica sem
(LISPECTOR, 1982: 111) qualquer compromisso com verdades históricas? Haveria, sob
Mateus e Lucrécia, personagens fixos e acabados, atre- algum aspecto, elo comum entre Lucrécia Bórgia renascentista,
lados a contextos localizados e a estereótipos de época, incor- satirizada pelo personagem Filofila de Victor Hugo, e Lucrécia
poram estigmas do entre duas guerras e status social datado. Neves, “tupiniquim”, a quem a escritora deu-lhe voz, rosto e
Ambos esgotam metas perecíveis no bojo do romance. Prota- olhar dandi? Beleza física e intelectual de Bórgia estimulou, na
gonista rompe finalmente cordão umbilical de esposa dócil e cultura ocidental, boatos e lendas sobre incestos, envenena-
submissa. mentos, casamentos não consumados, freira e assassina.
Um deles precisaria ser expulso, agora que Lu- Dotes de Neves afloram em confronto com Mateus pro-
crécia recuperara o antigo poder [...]. Achava-se a piciando-lhe salto qualitativo e status de sósia de Bórgia.
criatura mais inteligente do mundo e fazia ques- Nunca fomos amigos – respirou com prazer –
tão de demonstrá-lo a Mateus [...] Mateuzinho – somos inimigos, meu amor, para sempre [...].

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 207 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 208
Mas Lucrécia [...] estava doce e cruel [...] de que DUAS FORMAS DE INTERTEXTUALIDADE EM
passado perverso ela emergira. Freira ou assassi- CARTAS AO EDITOR EM NEWSWEEK
na, ela descobria por um momento a nudez de seu
espírito. Nua, coberta de culpa como de perdão – Maurício Moreira Cardoso
e era daí que o mundo se tornava o limiar de um UECE
salto.
(LISPECTOR, 1982: 148-150)
RESUMO:
Narrativa de estrutura complexa. Trata-se duma meta-
Este artigo é uma análise de duas formas de intertextualidade, a pressuposi-
ficção historiográfica romanesca da autora na produção de no- ção e a ironia, no corpus de 122 cartas ao editor extraídas da revista News-
vas instâncias narrativas evocadas nos espaços ficcionais de week. A fim de levar a termo a análise, buscamos suporte nas teorias de
vigília e sonhos da protagonista. Bakthin (1986, 2000), Orlandi (2001), Bronckart (2003) e Maingueneau
(1997, 2001). Analisamos quantitativamente e qualitativamente 122 cartas
endereçadas à revista no período entre julho e dezembro de 2002. Em rela-
Conclusão
ção a esse aspecto, observamos que as formas de intertextualidade referen-
tes ao artigo ou reportagem têm uma conexão direta com o desenvolvimento
Invenção de Lucrécia Neves e São Geraldo acontece da argumentação. As formas de intertextualidade são ligadas à linha argu-
nas instâncias narrativas de doze crônicas experimentais. Olha- mentativa do texto, embora, algumas vezes, os limites dessas formas não
res dandi da protagonista e da autora enfocam sentimentos o- possuam limites facilmente observáveis.
postos, características opacas de objetos, coisas e animais. Cla- PALAVRAS-CHAVE:
rice narra na condição de produtora de novos significados Discurso, cartas ao editor, intertextualidade, pressuposição, ironia
literários. Lucrécia vê-se coisa entre artefatos. Estágio anterior
à compreensão racional. Autora deu-lhe voz, rosto e sentimen-
tos dentro dum processo de semiose ilimitada de palavras, fra- 1 – Introdução
ses e expressões culturalmente refinadas, feminizantes, acres-
cidas de nuances e silhuetas dignas duma fortuna crítica Este artigo é parte de nossa dissertação de Mestrado
contemporânea e celebração condizente com os trinta anos de (CARDOSO, 2005) que teve por objetivo analisar as cartas ao
falecimento. editor coletadas da revista Newsweek no período compreendido
entre julho a dezembro de 2002, com o fim de verificar como o
Referências Bibliográficas: jogo sócio-interacional entre leitor e editor se acha refletido nas
estratégias discursivas comuns a esse gênero discursivo. Para
LISPECTOR, Clarice. A cidade sitiada. 5. ed. Rio de Janeiro: este fim, baseando-nos principalmente em Bakthin (1986,
Nova Fronteira, 1982. 2000), Orlandi (2001), Bronckart (2003) e Maingueneau (1997,
PEIRCE, Charles S. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001) buscamos suporte teórico na área do conhecimento da
1999. Análise do Discurso, que considera um texto necessariamente
ligado aos propósitos determinados pelos eventos humanos e
destinado a produzir significações, não alheias à prática social.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 209 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 210
Analisamos, qualitativa e quantitativamente, 122 cartas da refe- escolha feita pelos leitores missivistas da forma de remissão
rida revista no período compreendido entre julho e dezembro mais adequada aos seus objetivos argumentativos, bem como
de 2002, detendo-nos em basicamente três aspectos: (a) carac- dos aspectos sócio-culturais que podem estar envolvidos nessas
terísticas contextuais do gênero carta ao editor; (b) formas de escolhas. No desenvolvimento de nossa pesquisa, detectamos
heterogeneidade mostrada usadas como forma de remissão ao as seguintes formas de remissão ao texto-base, feitas pelos lei-
texto-base; e (c) relevância discursiva da identificação do lei- tores-missivistas do referido corpus: pressuposição, negação,
tor. ironia, referência ao título, alusão ao tema, paráfrase e excerto
As cartas ao leitor constituem, como sabemos um espa- (correspondente a palavras entre aspas, nas obras citadas).
ço que, em jornais e revistas, é destinado à manifestação dos Para uma vista panorâmica da heterogeneidade no cor-
leitores. São, assim, um importante instrumento da afirmação pus escolhido, vejamos a tabela abaixo que indica a porcenta-
do princípio da democracia burguesa e da cidadania. E é nota- gem das caracterizações da intertextualidade encontradas nas
damente a existência desse espaço criado para a manifestação revistas em estudo:
do leitor, o ponto irradiador e, ao mesmo tempo, convergente Tabela: intertextualidade com texto original
de inúmeros fenômenos estudados através da Análise do Dis-
curso e da Lingüística Textual. Desse modo, a superestrutura tipo de intertextualidade N° %
da forma de poder (o poder da comunicação escrita), que é a paráfrase 23 18,9
imprensa, é compartilhada por todos os indivíduos possuidores referência ao título 19 15,6
excerto 20 16,4
das competências necessárias para tanto. Por esse motivo, as
alusão ao tema 12 9,8
cartas endereçadas aos editores de jornais e revistas constitu-
negação 13 10,7
em, a nosso ver, uma importante fonte de leitura e interpretação
pressuposição 33 27,0
de determinado grupo social, mesmo que tal grupo não se ca-
ironia 2 1,6
racterize por compartilhar o mesmo espaço geográfico, como é
Total 122 100,0
o caso de leitores de jornais e revistas cuja circulação é mundi-
al, como, por exemplo, a revista que selecionamos.
Como podemos observar, a forma mais comum de re-
2 - A Ironia e a pressuposição missão com o texto-base é a pressuposição (33/122 ou 27,0%),
seguida pela paráfrase (23/122 ou 18,9%). A forma de hetero-
Nos parágrafos seguintes, analisaremos duas formas de geneidade menos utilizada é a ironia (2/122 ou 1,6%). Para
intertextualidade, remissivas ao texto-base, encontradas em efeito desta análise, conforme explicamos acima, selecionamos
nossa pesquisa: a pressuposição e a ironia. A escolha dessas apenas a ironia e a pressuposição.
duas formas de remissão ao texto-base se justifica pelos dados
estatísticos que levantamos. As referidas formas de remissão se 3 - A Heterogeneidade e o dialogismo
configuram como a mais e a menos utilizada, respectivamente.
Estabelecida essa relação, queremos problematizar em torno da Para a análise das formas de intertextualidade remissi-
vas ao texto que originou a carta ao editor nas cartas da revista

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Newsweek é central entender não só como o leitor-missivista outras palavras, qualquer texto traz sempre elementos de outro,
faz remissão ao texto a que sua carta se refere, mas também o ou de outros textos. Cabe aqui, mais uma vez, citar Bakhtin
porquê da forma de remissão escolhida. Neste sentido, apesar (2000: 317) que acrescenta o seguinte à noção de enunciado:
de o caráter intertextual e o dialógico fazerem parte de qual- a expressividade de um enunciado é sempre, em
quer enunciado (Bakhtin, 2000; Maingueneau, 1997), preten- menor ou maior grau, uma resposta, em outras
demos estudá-los em suas formas de manifestação mais especí- palavras: manifesta não só sua própria relação
ficas – a heterogeneidade mostrada e o dialogismo com relação ao objeto enunciado, mas também a
relação do locutor com os enunciados do outro.
circunscritos à relação direta entre o texto-base (artigo, repor-
(BAKHTIN, 2000: 317)
tagem da revista) e a carta a ele correspondente.
Assim, os textos que constantemente se instauram são a
Nesse sentido, interessa, em particular, investigar a inte-
materialização das necessidades comunicativas entre sujeitos.
ração leitor/editor, tomando como base a obra de Bakhtin
O sentido mais usual com que apreendemos este entrelace de
(2000), quanto à sua noção de intertextualidade e dialogismo.
textos é concernente às citações, “a presença de elementos reais
Um aspecto não necessariamente intrínseco aos gêneros do
de outros textos em um dado texto” (Fairclough, 2001: 39).
discurso, mas aos textos em geral, é a noção de intertextualida-
Todavia as relações intertextuais nem sempre são tão explícitas
de. Os textos mantêm relações com outros textos que lhes são
quanto nas citações. Existem outros modos menos claros e me-
externos, exteriores a ele, todavia, por algum viés, trazidos para
nos diretos de incorporar elementos de outros textos. Fairclou-
dentro dele.
gh ilustra com o discurso reportado, em que é possível não a-
Para começarmos a discorrer sobre a noção de intertex-
penas citar o que fora dito, mas também resumir, fazer
tualidade, não podemos deixar de mencionar o pensamento de
paráfrases, de modo que o texto original de algum modo se
Bakhtin (2000). Na linha de pensamento deste autor, uma no-
retextualiza. Assevera o autor:
ção fundamental é a de dialogismo. Sobre essa noção, assevera
o discurso relatado, escrito ou pensado, atribui
Bakhtin: aquilo que é citado ou sumarizado às pessoas que
o diálogo, por sua clareza e simplicidade, é a o proferiram, escreveram ou o pensaram. Mas e-
forma clássica da comunicação verbal. Cada ré- lementos de outros textos podem ser incorporados
plica, por mais breve e fragmentária que seja, sem atribuição. Assim, a intertextualidade cobre
possui um acabamento específico que expressa a uma ampla gama de possibilidades.
posição do locutor, sendo possível responder, (FAIRCLOUGH, 2001: 40) [tradução nossa]
sendo possível tomar, com relação a essa réplica, Em outras palavras, é muito difícil tipificar a intertextu-
uma posição responsiva.
(BAKHTIN, 2000: 294)
alidade. O fenômeno cobre desde citações literais, passando
Ora, para o autor, não existe enunciado que tenha parti- por discursos indiretos até o extremo em que a apropriação
do do nada, tendo necessariamente que se configurar como discursiva só pode ser reconhecida mediante o conhecimento
uma resposta a outro enunciado, pois o que caracteriza o diálo- prévio do leitor. A orientação para a diferença leva-nos às for-
go é a alternância de sujeitos falantes. Neste sentido, um dado mas dialógicas nos textos. Neste particular, Fairclough segue
texto nasce sempre de outro texto, direta ou indiretamente. Em de perto Bakhtin, para o qual uma palavra, um discurso, uma
língua ou uma cultura trazem subjacente o dialogismo. Qual-

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quer enunciado, como dito anteriormente, é um vínculo numa Para Bakhtin, “as condições de transmissão e suas fina-
complexa cadeia organizada de outros enunciados. lidades apenas contribuem para a realização daquilo que já está
No entanto, Bakhtin ressalta que: inscrito nas tendências da apreensão ativa, no quadro do dis-
o estudo fecundo do diálogo pressupõe, entretan- curso interior” (1986: 146). Tais tendências, aprofunda o autor,
to, uma investigação mais profunda das formas só podem desenvolver-se obedecendo aos limites das formas
usadas na citação do discurso, uma vez que essas existentes numa determinada língua para a transmissão do dis-
formas refletem tendências básicas e constantes curso.
da recepção ativa do discurso de outrem, e é essa
O citado autor esclarece que as formas de transmissão
recepção, afinal, que é fundamental também para
o diálogo.
do discurso de outrem, uma vez cristalizadas, exercem uma
(BAKHTIN, 1986: 147) influência reguladora, estimulante ou inibidora, no desenvol-
Mas, como, afinal, o discurso de outrem é apreendido vimento das tendências de apreensão apreciativa, cujo campo
pelo locutor? O mencionado lingüista russo sustenta que é exa- de ação é justamente definido por essas formas. Essa informa-
tamente nas formas do discurso citado que podemos encontrar ção é importante no sentido de responder a indagação feita a-
um documento objetivo que esclarece o problema. Esse docu- cerca da preferência sobre determinadas formas em dado gêne-
mento, observa Bakhtin, fornece indicações sobre as tendências ro, enquanto outras tendem para o desuso.
sociais estáveis características da apreensão ativa do discurso Contudo, Bakhtin observa que “toda a essência da apre-
de outrem que se manifestam nas formas da língua, pois é na ensão apreciativa da enunciação de outrem, tudo o que pode ser
sociedade que se situa o mecanismo do processo da intertextua- ideologicamente significativo tem sua expressão no discurso
lidade. A sociedade interior” (1986: 147), pois o enunciado alheio sofre, no interior
escolhe e gramaticaliza apenas os elementos da do indivíduo que o apreende, uma re-elaboração que acontece
apreensão ativa, apreciativa, da enunciação de ou- em termos do seu background cultural, de sua formação como
trem que são socialmente pertinentes e constantes ser social. Assim, é que o enunciado citado só pode ser corre-
e que, por conseqüência, têm seu fundamento na tamente entendido, quando estudado no interior do discurso
existência econômica de uma comunidade lin- que o cita. Em outras palavras, o discurso citado não pode ser
güística dada. divorciado do seu contexto narrativo, pois a interação dinâmica
(Bakhtin, 1986: 146) das duas dimensões, o discurso a transmitir e aquele que serve
A isso devemos acrescentar o fato de que na transmis- para transmiti-lo, é fundamental para quem deseja entender o
são sob forma escrita da enunciação de outrem deve ser levada fenômeno da intertextualidade. Essa interação dinâmica, por
em consideração a pessoa a quem está sendo transmitida tal sua vez, é reflexo da dinâmica da inter-relação social dos indi-
enunciação, pois a orientação para uma terceira pessoa reforça víduos na comunidade ideológica verbal (Bakhtin: 1986). Cabe
a influências das forças sociais organizadas sobre o modo de lembrar, ainda fazendo referência ao eminente lingüista russo,
apreensão do discurso. Nesse sentido, é curioso observar como que “a língua elabora meios sutis e mais versáteis para permitir
numa situação real de diálogo, ao respondermos a um interlo- ao autor infiltrar suas réplicas e seus comentários no discurso
cutor, habitualmente não retomamos no nosso enunciado o e- de outrem” (1986: 150).
nunciado, ou parte do enunciado, de nosso interlocutor.

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O referido autor observa ainda que um discurso a ser (MAINGUENEAU, 1997: 77)
transmitido obedece a uma hierarquia social de valores. Dessa O fenômeno da heterogeneidade se desdobra em algu-
forma, “quanto mais forte for o sentimento de eminência hie- mas formas de ocorrências, que são as seguintes: pressuposi-
rárquica na enunciação de outrem, mais claramente definidas ção; negação; discurso relatado; palavras entre aspas; metadis-
serão suas fronteiras (...)” (Bakhtin, 1986: 153). curso do locutor; parafrasagem; discurso indireto livre, ironia;
No que diz respeito a essa discussão, Maingueneau autoridade, provérbio e slogan; pastiche.
(1997), apoiado em Authier-Revuz (apud Charaudeau & Main- Alguns envolvem considerável complexidade, como é o
gueneau, 2004), mostra uma distinção que na prática se revela caso da noção de pressuposição, que tem importância conside-
bastante útil. Trata-se da distinção entre heterogeneidade mos- rável para a análise do discurso. Segundo Ducrot (1987), a
trada e heterogeneidade constitutiva. pressuposição se constitui através de um processo que apresen-
Maingueneau começa por dizer que a noção de hetero- ta dois ‘enunciadores’, E1 e E2; o primeiro é responsável pelo
geneidade é, antes de tudo, fundamental para o entendimento pressuposto, e o segundo, pelo posto.
da relação do interior do discurso com seu exterior. Para o en- Exercendo um contraste com o discurso indireto livre,
tendimento do que é heterogeneidade, importante se faz enten- que institui um jogo fronteiriço entre o discurso citado e o dis-
der a noção de polifonia em Ducrot (1987). Este autor estabe- curso que cita, a ironia, de acordo com Maingueneau (1997),
lece uma associação entre polifonia e o nível do enunciado. Em configura-se como uma subversão entre o que é assumido e o
sua perspectiva, só há polifonia quando é possível distinguir que não o é pelo locutor. O “locutor” coloca em cena um “e-
em uma enunciação dois tipos de personagens, os enunciadores nunciador” que adota uma posição absurda e cuja alocução não
e os locutores, o que significa que outros pontos de vista além pode assumir, marcando esse distanciamento com diferentes
daqueles do emissor e do receptor podem ser veiculados atra- índices: lingüísticos, gestuais, situacionais. É da essência da
vés do enunciado. ironia suscitar a ambigüidade, fazendo que, com freqüência, a
Maingueneau (1997: 76) esclarece que locutor é “um interpretação não consiga resolvê-la. Sendo sempre dirigida a
ser que no enunciado é apresentado como seu responsável. Tra- um destinatário, não pode ser considerada uma atividade lúdica
ta-se de uma ficção discursiva que não coincide necessariamen- desinteressada.
te com o produtor físico do enunciado”. No que se refere ao
enunciador, Maingueneau explica: 2.1 - O caráter intertextual do gênero carta ao editor
o enunciador representa, de certa forma, frente ao A concepção tripartida do discurso – texto, prática dis-
‘locutor’ o que o personagem representa para o cursiva e prática social, Fairclough (2001) – leva o analista do
autor em uma ficção. Os ‘enunciadores’ são seres discurso a contemplar um texto além da camada meramente
cujas vozes estão presentes na enunciação sem estrutural, pois um texto é também prática discursiva e, como
que se lhes possa, entretanto, atribuir palavras tal, abrange produção, distribuição e consumo. É na esfera da
precisas; efetivamente, eles não falam, mas a e- prática discursiva, mais notadamente na esfera da produção do
nunciação permite expressar seu ponto de vista.
Ou seja, o ‘locutor’ pode pôr em cena, em seu
texto, que se inscreve a intertextualidade, concretizada no inter-
próprio enunciado, posições diferentes da sua. texto. A esse propósito, o referido teórico afirma que “gêneros
particulares são associados com ‘modos particulares de inter-

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textualidade’ (manifesta)” (2001: 164). Essa concepção de Fa- caracteriza por ter o referido traço como um de seus elementos
irclough mostra-se verdadeira pelo menos no que diz respeito fundamentais, pois qualquer carta enviada à redação da revista
ao gênero carta ao editor. Newsweek, a fim de ser publicada na seção Letters, constitui-se
A intertextualidade no corpus de nossa pesquisa revela- em uma resposta direta a um texto anterior, publicado na mes-
se bastante particular, fazendo-nos pensar que em seu conjunto, ma revista. Podemos perceber que o enunciado de um poema,
as formas de remissão, configuram-se como característica mar- por exemplo, ainda que tenha sua gênese em outro enunciado,
cante do gênero em foco. Mas só podemos entender o fenôme- não possui, necessariamente, essa relação direta com um texto
no da intertextualidade em carta ao editor se considerarmos que determinado. Na carta ao editor, diferentemente, percebemos
o referido gênero possui um caráter eminentemente dialógico claramente o referido traço responsivo, pois, além de tudo, con-
(cf. Bakhtin, 2000), quer dizer, uma carta ao editor nasce como figura-se como resposta a outro texto da mesma cadeia de gê-
resposta direta a outro texto da mesma cadeia de gênero. Todas nero, ou seja, um texto jornalístico. Além disso, as cartas envi-
as cartas publicadas pela revista estão necessariamente atrela- adas à redação configuram a possibilidade de quebra da
das a um artigo, reportagem, entrevista, entre outros, publica- unilateralidade da referida cadeia, pois, como sabemos, elas, ao
dos em edições anteriores. Assim, a carta ao editor estabelece mesmo tempo que elogiam, criticam, corrigem, também têm a
um diálogo com o texto a que se refere, e esse diálogo é mar- função de oferecer à publicação uma espécie de feedback do
cado por formas de intertextualidade particulares, o que cha- comportamento adotado perante seu público leitor, pois, como
mamos de formas de remissão. sabemos, órgãos da comunicação escrita e televisionada são
Na análise do corpus adotado, encontramos as seguintes formadores de opinião. Sendo assim, as mencionadas cartas
formas de remissão ao texto-base: pressuposição, negação, iro- funcionam como fator de equilíbrio. Por outro lado, dado o
nia, alusão ao tema, referência ao título, excerto e paráfrase. No pequeno espaço destinado às cartas, podemos inferir que esse
que diz respeito ao fenômeno da intertextualidade, argumenta- equilíbrio fica, de antemão, comprometido, uma vez que o res-
mos, apoiando-nos em Fairclough (2001), que as formas de tante do suporte é reservado à publicação.
remissão supracitadas ajudam a delimitar o gênero cartas ao Aqui, chamamos a atenção para a afirmação de Swales
editor – na dimensão da prática discursiva – se vistas em com- (1990), que diz ser a nomenclatura para gêneros de uma deter-
posição com os outros aspectos. Fazemos a ressalva de que as minada comunidade de discurso uma fonte importante de per-
referidas formas de remissão só ajudam nessa delimitação se cepção. Assim, o nome “carta ao editor” tem muita a revelar
foram tomadas em seu conjunto. Por exemplo, a paráfrase é sobre o gênero que denomina. Em primeiro lugar, literalmente,
uma forma de remissão encontrada em outros gêneros, assim trata-se de uma carta enviada ao editor de uma revista ou jor-
como o excerto, pelo que não elucida nada quanto ao gênero nal, o que aponta para seu traço dialógico. Vale dizer ainda, a
cartas ao editor se tomada isoladamente. Dito isto, podemos carta é enviada ao editor, e não especificamente ao indivíduo
falar mais pormenorizadamente sobre a relação da intertextua- que ocupada o referido cargo. O editor de uma publicação tem,
lidade com o gênero carta ao editor. entre outras, a função de coordenar os trabalhos e de selecionar
A despeito de fato de que todo texto é possuidor do ca- o que deve ser publicado, de acordo com a linha editorial da
ráter dialógico (cf. Bakhtin, 2000), o gênero cartas ao editor se publicação. Nesse sentido, podemos dizer que, em última aná-

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lise, é de sua responsabilidade a tarefa de evitar matérias que forma como o gênero em tela se articula dentro da cadeia de
possam comprometer o nome da publicação, o que justifica que gênero em que se insere – o texto jornalístico. Dentro dessa
os leitores escrevam para ele não só para apontar algum equí- perspectiva, a intertextualidade existente no gênero e sua con-
voco cometido, criticando, mas também para dizer que a publi- seqüente acomodação dentro do enunciado obedecem a fatores
cação está seguindo o caminho correto, elogiando, portanto. como: o suporte, o canal, o enunciador (sua posição social e
Mas a interpelação feita pelo leitor-missivista, a priori, seus propósitos comunicativos), o co-enunciador (sua posição
dirigida ao editor, acontece através de alguma forma de inter- social), a cadeia de gênero em que se insere o gênero, de forma
texto, ainda que tal intertexto não possa ser imediatamente i- que o estudo das implicações da intertextualidade dentro de
dentificado na carta. As modalidades de remissão ao texto-base dado gênero se torna bastante complexa.
por parte do leitor-missivista são por nós chamadas de formas Em linhas gerais, podemos dizer que, no que se refere
de remissão. Queremos crer que tais formas de remissão, em ao fenômeno da intertextualidade e do dialogismo, a carta ao
seu conjunto, imprimem ao gênero carta ao editor um caráter editor apresenta características que não são compartilhadas em
particular. Mas é preciso observar que, conforme expressa Ba- sua totalidade com outros gêneros, inclusive com os que per-
khtin (1986: 148), “o erro fundamental dos pesquisadores que tencem à mesma cadeia de gênero. Como exemplo, podemos
já se debruçaram sobre as formas de transmissão do discurso de citar a relação direta entre o texto-base (artigo, entrevista, re-
outrem, é tê-lo sistematicamente divorciado do contexto narra- portagem) e a carta ao editor (elaborada como resposta ao tex-
tivo”. Neste sentido, só é possível entender a intertextualidade to-base). Pois, no primeiro caso, a manifestação da intertextua-
como componente revelador das feições do gênero carta ao lidade se dá diferentemente do segundo, muito embora
editor, se procurarmos entender como a recepção consciente pertençam à mesma cadeia de gênero.
dos enunciados se processa nas cartas.
Apoiando-nos nas concepções do citado lingüista russo, 3 - Formas de remissão nas cartas ao editor de Newsweek: a
podemos dizer que a intertextualidade em carta ao editor deve pressuposição e a ironia
se articular com todos os outros elementos compreendidos den-
tro da concepção tridimensional do discurso trazida à tona por 3.1 - A pressuposição
Fairclough (2001): texto, prática discursiva e prática social. Para Ducrot (1987), as pressuposições correspondem a
Assim, no que se refere à esfera da prática discursiva, realidades supostas já conhecidas do destinatário; não podem
podemos entender a heterogeneidade mostrada (para Fairclou- ser afetadas pela negação ou interrogação; e, em princípio, não
gh, intertextualidade manifesta) como o intertexto que, tendo podem ser anuladas. No corpus da presente seção, a pressupo-
sido incorporado dentro de um enunciado, provoca uma reor- sição é a forma de remissão mais utilizada pelos leitores-
ganização deste, de modo que esse enunciado se retextualiza a missivistas, seguida da parafrasagem.
fim de acomodar o discurso alheio. No gênero carta ao editor, Elegemos a carta de número 36, transcrita abaixo, para
essa retextualização é fruto de uma acomodação em vários ní- efeito de exemplificação e análise desse fenômeno de hetero-
veis; no entanto, por razões já expressas, focalizaremos apenas geneidade mostrada. Conforme esclarecido em nossa funda-
o nível da prática discursiva. Assim, queremos nos reportar à mentação teórica, ao fenômeno da pressuposição está subjacen-

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te a idéia de que, dentro do enunciado em que existe pressupo- Pela leitura dessa missiva, podemos perceber que ela
sição, há sempre o que é pressuposto e o que é posto. Con- compreende o posto, enquanto que os pressupostos podem ser
seqüentemente, há sempre a presença de dois enunciadores. recuperáveis através dos elementos textuais fornecidos pelo
(36) to attack when necessary is bad enough, but autor. O primeiro pressuposto, marcado pela oração “atacar
to go to war on an if, a might and a maybe leaves quando necessário já é suficientemente ruim” (to attack when
me speechless. And now, eloquent speech writers necessary is bad enough), é: existem preparativos para uma
will make something noble out of this macho guerra, pois contextualmente o leitor “deve ter conhecimento”
militancy.
que até a data da publicação da carta, a guerra a que o leitor-
MICHAEL G. DRIVER ICHIHARA, JAPAN
missivista se referia não havia sido deflagrada. O segundo é: os
O leitor-missivista dessa carta a inicia com uma avalia-
argumentos que justificam o fazer a guerra são construídos em
ção sobre a possibilidade de uma guerra entre Estados Unidos e
torno de possibilidades, de suposições, e de condições, eviden-
Iraque. Segundo sua avaliação, atacar quando necessário já é
ciados textualmente pelo uso do “se”, do “talvez”, e do “pode
suficientemente ruim, porém algo pior acontece quando as ra-
ser”.
zões para fazer a guerra estão marcadas pelo “se”, pelo “talvez”
A última sentença dessa carta remete o leitor a pensar
e pelo “pode ser” (if, might, maybe), o que em outras palavras
sobre algo que não foi veiculado em nenhum dos dois enuncia-
significa dizer: sem razões confiáveis. Aqui a forma de remis-
dos em que foi estabelecido o fio dialógico. O leitor-missivista
são é feita pelo posto, que remete ao pressuposto, pois o autor
chama a atenção para a possibilidade de que, no futuro, mani-
não fornece informações detalhadas sobre o artigo que deu ori-
puladores do discurso venham a encontrar meios de fazer com
gem a essa missiva. O autor faz referência clara a uma enunci-
que a situação real (da guerra injustificada) seja revertida para
ação que não autoriza pela menção na carta do “se”, do “tal-
algo aceitável por parte da população, notadamente a popula-
vez” e do “pode ser”, cujo caráter intertextual, nesse caso, é
ção americana.
dado pela substantivação (an if, a might, a maybe), levando o
Sendo a pressuposição a forma de remissão mais utili-
leitor da missiva a procurar reconstruir o texto, pressupondo
zada em nosso corpus, devemos tentar entender, buscando su-
que os argumentos (pressupostamente em favor da guerra) do
porte em Bakhtin (1986), qual o significado de seu uso nas
texto-base se constroem em torno de possibilidades, dúvidas e
cartas enviadas ao editor da Newsweek. A princípio podemos
condições.
dizer que essa forma de remissão tem o respaldo social neces-
Pela forma genérica com que o autor da carta, através
sário que faz com que os leitores queiram utilizá-las. Mas o
dessa forma de heterogeneidade mostrada, refere-se ao texto
elemento social por si só não diz tudo. Devemos entender que o
base, podemos classificar a aludida forma de remissão como
seu uso harmoniza-se com as feições de um gênero que possui
uma abordagem generalizante da temática. Isto pode ser cons-
características muito próprias, ainda que tentemos entendê-lo
tatado na progressão do texto em análise. O leitor-missivista
com base em aspectos meramente contextuais. Ao usar a refe-
conclui seu texto dizendo que os redatores de discurso tratarão
rida forma de remissão o leitor-missivista pressupõe que seu
de tornar o comportamento reprovável (de fazer guerra) em
leitor tenha lido o artigo a que se refere. Por outro lado, a men-
algo que venha a ser aceito como “nobre” (heróico).
cionada forma de remissão aponta para um apagamento, ainda

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 223 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 224
muito maior que a paráfrase, dos limites do intertexto dentro do vizinhos, desafia as leis das Nações Unidas, oprime e aterroriza
enunciado que o incorpora. Podemos ver o intertexto apenas as minorias e oponentes do seu regime”, para depois dizer que
através da análise feita sobre ele pelo autor da missiva, o que o país a que está se referindo é Israel. A ironia aqui está no fato
aponta para o quão a temática por ele abordada deve ser famili- de utilizar todos os atributos que os Estados Unidos utilizam
ar aos interlocutores. para definir o Iraque. Depois, o autor da carta quebra a expecta-
tiva do leitor dizendo que se refere a Israel.
3.2 - A ironia A decisão de utilizar a ironia como forma de remissão
A forma de intertextualidade chamada ironia se caracte- alcança aqui um efeito um tanto incomum, demonstrando ser
riza pela presença de um enunciado que não é assumido pelo um meio eficiente de argumentação. Considerando que o espa-
enunciador, em parte ou em sua totalidade, no momento da ço destinado ao leitor-missivista é bastante pequeno, compara-
enunciação. Neste caso o enunciador procura criar um efeito de do com o espaço de que dispõe o articulista, a referida forma
surpreender seu interlocutor, pois o enunciado se apresenta de remissão cumpre mais de um papel: 1) utilizar um mínimo
como um ponto de vista insustentável e atribuível a uma outra de espaço com o máximo de eficiência, ao demonstrar que Is-
personagem. Trata-se de uma forma de heterogeneidade mos- rael se enquadra perfeitamente dentro dos atributos e argumen-
trada bastante complexa que vem sendo alvo de reflexão desde tos utilizados pelos Estados Unidos para invadir o Iraque; 2)
a origem da Filosofia (cf. Maingueneau & Charaudeau, 2004). mostrar a contradição e a parcialidade dos argumentos ameri-
A primeira carta em que reconhecemos a presença da ironia canos para justificar a invasão ao Iraque.
como forma de remissão é a carta de número 39 (de nosso cor- Chamamos a atenção para o modo como a estratégia
pus), transcrita a seguir: remissiva utilizada se mostra eficiente no sentido de criar no
(39) THE UNITED STATES IS TOTALLY JUSTIFIED in leitor certa expectativa, para depois quebrá-la de uma forma
targeting a rogue Middle Eastern country that has surpreendente. Se, no início, o leitor não percebe a contradição,
weapons of mass destruction, invades its a tomada de consciência do contra-senso ocorre de forma quase
neighbors, defies U.N. resolutions and interna- que imediata, pois as primeiras frases da carta o levam a pensar
tional laws, and oppresses and terrorizes minori-
que o seu autor se posiciona a favor dos critérios de julgamento
ties and opponents to its regime. The country I'm
thinking of is Israel: it has nuclear weapons, has
americanos, para depois mostrar, implicitamente, que esses
invaded Egypt, Syria, Jordan and Lebanon, has critérios não estão sendo aplicados a Israel. É importante desta-
consistently defied all U.N. resolutions pertaining car que, na missiva, o leitor não diz que o Iraque não se enqua-
to it and inflicts the worst kinds of terror on its dra nos referidos atributos, querendo, talvez, mostrar que os
Arab population. We should go and effect a re- Estados Unidos não aplicam os mesmos critérios de avaliação a
gime change in Israel whether it accepts weapons todos, o que leva a concluir que as razões verdadeiras para a
inspectors or not. invasão do Iraque são outras.
Ali Mili newark, new jersey. O principal argumento utilizado para justificar a inva-
Nessa carta o leitor-missivista diz que “os Estados Uni- são dos Estados Unidos ao Iraque – ter armas de destruição em
dos estão corretos em invadir um país vagabundo do Oriente massa – provou ser falso, hoje sabemos. Paralelamente, Israel é
Médio que tem armas de destruição em massa, invade os seus

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 225 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 226
o país mais fortemente armado do Oriente Médio, o que prova dá a entender que se alinha com a abordagem política de Bush,
a força da argumentação do leitor-missivista da carta 39. para no final mostrar que o presidente americano não tem razão
É interessante observar que não nos sentimos autoriza- para condenar o governo iraquiano, uma vez que ambos com-
dos a usar a ironia em situações formais de interação social em partilham características similares. O que há de irônico na carta
que se estabelece uma relação de confiança e respeito mútuo é a forma como o leitor missivista mostra essas similaridades
entre, pelo menos, dois interlocutores. No entanto, o uso da com o uso da palavra so nas duas últimas sentenças: Leiamos a
ironia está associado a situações em que possivelmente essa carta:
relação de confiança e de respeito foi quebrada. A lei da since- (71) since saddam seized power without any de-
ridade não está sendo cumprida e para demonstrar isso, o inter- mocratic mandate, his nation has suffered eco-
locutor, irônico, passa a usar da mesma insinceridade, ao mes- nomic decline and become contemptible in the
mo tempo em que deixa claro que não está sendo sincero, pelo eyes of the world due to his bellicosity and uni-
lateralist disdain for environment and the United
“absurdo” do que diz, muitas vezes utilizando-se de recursos
Nations. At the same time, his weapons of mass
supra-segmentais reconhecidamente reveladores do comporta- destruction strike fear in our hearts. And he and
mento irônico. Na carta em análise, como sabemos, o seu autor his cronies have grown rich by corrupt dealings in
não pode lançar mão desses recursos. Consegue ser irônico ao oil and other industries. Why does Bush hate him
incorporar o discurso do seu interlocutor para depois aplicá-lo so? They have so much in common.
ao objeto “errado”. Talvez por apontar de uma forma tão con- DAVID IRBY DINGLE, IRELAND
tundente para o interlocutor como descumpridor da lei da sin- Nesse caso, o locutor assume o conteúdo da enunciação,
ceridade é que a ironia seja um recurso pouco utilizado em gê- mas há uma discordância da atitude esperada para essa situa-
neros cujas características estejam ligadas à noção de ção, o que provoca um efeito de choque sobre o leitor comum,
democracia e liberdade de expressão, como é o caso de carta ao especialmente sobre aqueles que se mostram a favor das atitu-
editor, pois ao ser irônico, o enunciador mostra que na verdade des do chefe do Estado americano.
o seu interlocutor não quer ouvi-lo, indicando, conseqüente-
mente, o quão anti-democrático é o discurso do outro, especi- 4 - Considerações finais
almente quando o outro se arvora de democrático. Adotando
um comportamento irônico, o locutor da carta aponta para o Se pensarmos em termos de propósitos a serem atingi-
fato de que o seu co-enunciador não merece crédito. dos, podemos observar feições relativas ao gênero em questão.
A carta de número 71 também apresenta a ironia como O caso da ironia se configura como proveitoso exemplo para
forma de remissão, embora a referida forma de heterogeneida- esse tipo de análise. Nos dois casos analisados, podemos per-
de mostrada se realize de maneira diferente da carta 39. Na ceber o quão o efeito criado exerce um papel importante, pois
carta 71, a remissão irônica aparece somente no final, pois todo gera uma espécie de epifania no leitor comum, que passa a per-
o restante do conteúdo da missiva se refere às características ceber, se ainda não percebia, implicações de atitudes e posicio-
negativas do governo de Saddan Hussein. Ao longo de quase namentos teóricos que de outra forma demandaria uma longa
toda a exposição dessas características negativas, o missivista argumentação.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 227 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 228
Já a pressuposição remete para a questão da familiari- BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, textos e discur-
dade e do conhecimento que o leitor comum tem com o assunto sos: por um interacionismo sócio-discursivo.São Paulo: EDUC,
abordado no texto-base. Neste sentido, a revista presta auxílio a 2003.
esse leitor, colocando ao lado das cartas a gravura relacionada CHARAUDEAU, P. & MAIGUENEAU, D. Dicionário de
ao texto referido pelas cartas publicadas naquela edição. A análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.
pressuposição vem ao encontro às intuições das Bronckart DUCROT, O. O dizer e o dito, Campinas, Pontes Editores,
(2003), que afirma que a realização de um gênero depende de 1987.
elementos circunstanciais. FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social; Izabel
As formas de heterogeneidade mostrada abordadas aqui Magalhães, coordenadora de tradução. Brasília: Editora
denunciam o caráter fortemente dialógico do gênero do discur- Universidade de Brasília, 2001.
so carta ao editor, ao mesmo tempo em que se articulam com MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discur-
os propósitos comunicativos e com os efeitos almejados pelos so. Campinas: Pontes, 1997.
leitores-missivistas, que, por sua vez, devem possuir a compe- _______. Análise dos textos de comunicação. São Paulo: Cor-
tência genérica necessária a fim de que suas escolhas enuncia- tez, 2001.
tivas surtam o desejado efeito. A esse propósito, a pressuposi- ORLANDI, E. Análise do discurso: princípios e procedimen-
ção, como a forma de remissão mais utilizada nas cartas, tos. Campinas: Pontes, 2003.
polariza uma tensão entre o uso da uma argumentação tendente SWALES, J. M. English in academic and research settings.
ao subjetivo – ancorada em formas de intertextualidade cujas Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
delimitações não são imediatamente identificáveis na superfície CARDOSO, Maurício Moreira. O Gênero Carta ao Editor em
do texto –, e o uso de formas de argumentação ancoradas em Newsweek: aspectos discursivos e sócio-interacionais. Disser-
intertextos cujas delimitações são mais facilmente identificá- tação de Mestrado apresentada na Universidade Estadual do
veis na superfície textual. Em todo caso, seguindo de perto Ceará, 2005, que teve como orientadora a Drª Maria Irandé
Bakhtin (1986), não podemos esquecer que as formas de inter- Costa Antunes
textualidade aqui analisadas devem ser respaldadas pelo meio
social em que são utilizadas. Uma prova disso é que o uso da
pressuposição se destaca visivelmente na preferência dos leito-
res-missivistas, pelo menos no corpus que estudamos.

Referências Bibliográficas:

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:


Hucitec, 1986.
_______. Estética da criação verbal. 3ª Ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 229 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 230
O ENSINO DO TEXTO EXPLICATIVO preciso ir além, e avançar num trabalho de leitura e produção
calcado nos gêneros textuais.
Vanilda Salton Köche Este artigo pretende analisar o texto explicativo, uma
UCS
Adiane Fogali Marinello
vez que, de certa forma, é negligenciado, principalmente no
UCS Ensino Fundamental e Médio. No entanto, o aluno convive
Odete Maria Benetti Boff com ele diariamente, quer através das leituras, dos livros didá-
UCS ticos, de artigos, entre outros. Mas, apesar de não ter seu lugar
de destaque e os alunos ignorarem as especificidades desse
RESUMO:
gênero, sua escrita lhes é exigida, desde uma simples resposta a
Este artigo aborda o texto explicativo como um gênero textual que apresen- uma questão de prova a trabalhos mais complexos, desenvolvi-
ta soluções para um problema da ordem do saber. Seu estudo centra-se na dos no decorrer das disciplinas. Assim, é imprescindível que se
necessidade de desenvolver habilidades de recepção e produção textual. O trabalhe sistematicamente com a leitura e a escrita deste texto
trabalho faz parte da pesquisa-ensino denominada Leitura e produção de para facilitar a prática quotidiana do aluno, dispondo subsídios
textos na perspectiva dos gêneros textuais, realizada na Universidade de
Caxias do Sul, Campus Universitário da Região dos Vinhedos. O artigo
teóricos que embasam o gênero. O estudo faz parte da pesqui-
apresenta subsídios teóricos relacionados com os gêneros textuais e sua sa-ensino, intitulada Leitura e produção de textos na perspecti-
aplicação no ensino, em seguida, mostra os aspectos que caracterizam o va dos gêneros textuais, desenvolvida na Universidade de Ca-
texto explicativo, após apresenta uma análise ilustrativa e, finalmente, suge- xias do Sul - Campus Universitário da região dos Vinhedos.
re atividades de leitura e escrita. Fundamentam o trabalho os Parâmetros Curriculares Nacionais
PALAVRAS-CHAVE: (1999), Bakthin (1992), Coltier (1987), Charolles (1988) e
Texto explicativo, gênero textual, ensino. Cristóvão e Nascimento (2005).

1 - A dinamicidade da linguagem e o ensino dos gêneros


Introdução textuais

As questões referentes à leitura e produção de textos na Todas as manifestações verbais humanas ocorrem me-
perspectiva dos gêneros textuais tornaram-se mais enfáticas diante a produção de discursos, e não como elementos lingüís-
com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, em ticos isolados. Tanto na oralidade quanto na escrita, os enunci-
1999. É consenso entre os teóricos que, no ensino tradicional, ados não são atos solitários, mas estão circunscritos a alguma
geralmente o professor trabalha o ensino da escrita a partir das instância da atividade humana socialmente organizada. Os gê-
tipologias textuais, principalmente a narração, a descrição e a neros textuais permitem desenvolver competências e habilida-
dissertação. Não se pode ignorar a importância das tipologias, des para domínio da língua, visto serem determinados histori-
no entanto, elas por si só não dão conta da complexidade da camente. Segundo Bakthin, os gêneros do discurso são tipos
escrita utilizada nas diversas situações de interação, por isso, é relativamente estáveis de enunciados produzidos pelas mais
diversas esferas da atividade humana (1992: 127). Enquanto os

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 231 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 232
gêneros são até certo ponto estáveis, os textos que os materiali- propósitos definidos, e não somente sob o ponto de vista da
zam são variados e maleáveis. Por sua vez, Bronckart coloca materialidade da língua. Segundo os PCNs (1999), deve-se
que os textos são produto da linguagem em funcionamento privilegiar a cultura do pensar e do produzir idéias, consolidan-
permanente nas formações sociais. Em função de seus objeti- do práticas de ensino de língua portuguesa que tenham como
vos, interesses e questões específicas, essas formações elabo- ponto de partida e chegada o uso da linguagem. Para isso, assi-
ram diferentes espécies de textos; apresentam características nalam que a justificativa das propostas de leitura, escrita e uso
relativamente constantes e ficam disponíveis no intertexto co- da fala é a compreensão e a interlocução efetivas (1998: 21).
mo modelos indexados para os contemporâneos e as gerações Como a escrita é uma atividade interativa de expressão,
posteriores (1999: 137). Nesse sentido, são caracterizados es- os gêneros possibilitam que os indivíduos se organizem em
pecialmente por um conteúdo temático, uma estrutura particu- sociedade na medida em que favorecem a comunicação. Assim,
lar e um estilo, que variam conforme a situação comunicativa. faz-se necessário criar materiais didáticos que favoreçam esse
A tendência da lingüística textual e da teoria do discur- contato. Cristóvão e Nascimento afirmam que “a exploração
so de valorizar as situações específicas de produção da comu- das características do modelo didático do gênero é uma precio-
nicação influenciou a recomendação do estudo de gêneros nos sa fonte de informações, material didático fundamental para
Parâmetros Curriculares Nacionais (1999). Estes ressaltam que que, a partir dele, o professor possa fazer as adaptações neces-
o ensino de língua portuguesa deve partir dos gêneros e se or- sárias a uma 'transposição didática' de gênero” (2005: 57). Na
ganizar em torno deles, visto estes serem identificados e carac- organização desses materiais, deve-se considerar os objetivos
terizados pelas funções específicas de comunicação que exer- de ensino, os diversos conhecimentos existentes sobre gêneros
cem na sociedade. Nesse sentido, afirmam que todo texto textuais e as capacidades dos aprendizes.
pertence a um determinado gênero, ou seja, a um conjunto he-
terogêneo de textos que compartilha características comuns 2 - O ensino dos gêneros textuais na implementação das
(1999: 26). aulas de língua portuguesa
Com base nas quatro competências e habilidades fun-
damentais (falar, escutar, ler e escrever) que devem nortear a A análise da língua, a partir de seu caráter interacionis-
educação, os PCNs (1999) concebem a língua como atividade ta, é um processo recente. Acreditamos ser imprescindível con-
sócio-interativa, cognitiva e histórica. Conforme Marcuschi tribuir para a sua aplicabilidade, tendo em vista a influência das
(2005), a atividade pedagógica necessita estar centrada nos atuais reflexões no ensino e na elaboração dos materiais didáti-
gêneros que circulam na vida cotidiana. Eles devem ser trata- cos. A relevância pedagógica e social do estudo sobre o gênero
dos como entidades plásticas e observados em seu fluxo sócio- textual reside no fato deste ser envolto essencialmente pela
interativo e histórico, e não em suas fronteiras formais nem nas linguagem e a comunicação só ser possível por meio de algum
suas propriedades tipicamente lingüísticas do ponto de vista gênero.
sentencial. Bakhtin assevera para o fato de que não é o indivíduo
Assim, é fundamental explorar os gêneros textuais en- falante que cria os gêneros porque eles não deixam de ter um
quanto objetos de reflexão nas situações de interação e com valor normativo. Segundo o autor, “se não existissem os gêne-

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ros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de temáticas; a intenção enunciativa e o estilo; o campo de ativi-
criá-los pela primeira vez no processo de fala, se tivéssemos dade e seu tempo e lugar históricos; os impactos e sentidos
que construir cada um de nossos enunciados, a comunicação produzidos pelas diversas modalidades de linguagem e mídias.
verbal seria quase impossível” (1992: 302). Nessa perspectiva, Cabe à escola apresentar ao aluno diferentes gêneros textuais,
os gêneros não podem ser considerados como produtos acaba- usados em situações distintas e com objetivos diversos, de mo-
dos à disposição dos falantes, pois possuem uma estruturação do a ampliar sua competência comunicativa. Isso significa a-
relativamente estável. Bakthin (1992: 301-301) afirma que: firmar que, na sua prática docente, o professor desenvolve no
Para falar, utilizamo-nos sempre dos gêneros de aluno a capacidade de reconhecer que a pluralidade de discur-
uma forma padrão e relativamente estável de es- sos contribui para o desenvolvimento da sua auto-estima, seu
truturação de um todo. Possuímos um rico reper- sentido de cidadania e seu papel social.
tório de gêneros do discurso orais (e escritos). Na É evidente, portanto, a importância da leitura, produção
prática, usamo-los com segurança e destreza, mas
e análise de diferentes gêneros textuais no ensino. Entretanto,
podemos ignorar totalmente sua existência teóri-
ca. (...) Aprender a falar é aprender a estruturar
pode-se afirmar que isso ainda não acontece como deveria ser,
enunciados (porque falamos por enunciados e não talvez, porque os cursos de Licenciatura não contemplem em
por orações isoladas). Os gêneros do discurso or- sua totalidade um aprofundamento desta abordagem. Desse
ganizam nossa fala da mesma maneira que a or- modo, tornam-se extremamente importantes as iniciativas de
ganizam as formas gramaticais (sintáticas). estudo e produção de material didático voltado ao ensino da
Desse modo, sob essa ótica, a atividade pedagógica de leitura e da escrita na perspectiva dos gêneros textuais para
ensino de língua portuguesa embasa-se numa concepção de auxiliará no trabalho pedagógico e facilitar o desenvolvimento
linguagem que reconhece a língua como eminentemente fun- das habilidades e das competências comunicativas dos alunos
cional e contextualizada, e que visa ao desenvolvimento da de diferentes níveis.
competência discursiva, também entendida como capacidade
reflexiva, crítica e criativa. Como fenômenos lingüísticos, os 3 - O texto explicativo
gêneros variam e multiplicam-se, e estão presentes no tempo e
na realidade para auxiliar as relações na sociedade. Segundo O texto explicativo consiste em um gênero textual que
Marcuschi, “devem ser vistos como as práticas sociais, os as- faz compreender um problema da ordem do saber. A partir do
pectos cognitivos, os interesses, as relações de poder, as tecno- problema apresentado, um sujeito comunica a seu interlocutor
logias, as atividades discursivas e no interior da cultura. Eles a solução, modificando-lhe a percepção anterior.
mudam, fundem-se, misturam-se para manter sua identidade Segundo Coltier (1987), diante de um problema rela-
funcional como inovação organizacional” (2005: 19). cionado com o saber, o texto explicativo questiona o real em
É relevante explorar a forma composicional e os estilos duas circunstâncias. A primeira refere-se à existência de um
dos gêneros para desenvolver práticas sociais e ampliar as pos- paradoxo, que causa um certo estranhamento com o sistema
sibilidades comunicativas das situações específicas de interlo- estabelecido de explicação de mundo; faz aparecer uma incon-
cução: os participantes da interação e suas relações sociais; as gruência. A autora exemplifica: na questão por que o Sol pare-

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ce ser do mesmo tamanho da lua? ressalta a contradição que A função social do gênero explicativo é transmitir e
existe entre o que se sabe sobre o tamanho real do sol (400 ve- construir conhecimentos, o que o torna pertencente à ordem do
zes maior do que a lua) e sobre as leis da ótica (entre dois obje- expor. Segundo Bronckart (1999: 229), o raciocínio explicativo
tos, o mais volumoso é o que aparece como sendo o maior), e o apresenta as seguintes fases:
fato constatado: o tamanho aparente do Sol não é superior ao 9 a constatação inicial - introduz um fenômeno
da Lua. Para a referida autora, o procedimento pode ser esque- não contestável;
matizado pela pergunta: sendo dado A (os saberes admitidos) e 9 a problematização - explicita uma questão da
B (o fenômeno) não deveria existir, mas ele se produz. Como ordem do porquê ou do como;
ou por que isso ocorre? A explicação deste problema vai de- 9 a resolução - responde à questão colocada;
correr do fato de que o sol é 400 vezes maior do que a lua e 9 a conclusão-avaliação - formula e completa a
encontra-se a uma distância 400 vezes maior, por isso, parece constatação inicial.
ser do mesmo tamanho. Segundo Coltier (1987), no texto explicativo, normal-
A segunda circunstância em que o texto explicativo mente, os enunciados são compostos por três categorias: os
questiona o real, conforme a citada autora, ocorre na investiga- enunciados descritivos, os explicativos e os balizados. Os e-
ção de uma evidência, que consiste em um questionamento nunciados descritivos apresentam o fenômeno a ser explicado.
sobre um fenômeno normal que se torna objeto de investiga- O enunciador, como mero observador, registra os fatos de mo-
ção, sem que haja contradição. Exemplifica: Todos os seres do objetivo. Os verbos normalmente estão no presente ou no
vivos têm necessidade de se alimentar para fornecer a energia imperfeito do indicativo. Há a ausência dos pronomes em pri-
necessária para a atividade das células, para seu crescimento, meira e segunda pessoa. Os enunciados explicativos oferecem
para seu sustento (...). Como fazem as plantas para se alimen- uma solução. A escolha dos tempos verbais dependerá do mo-
tar? No exemplo, há um fato conhecido: as plantas se alimen- do como se processa a explicação. Em caso de antecipação de
tam. Ele é problematizado pelo texto como uma explicação a hipóteses, ou da retomada de certas explicações, ocorre fre-
ser dada, necessitando, para isso, maiores informações a respei- qüentemente o emprego do futuro do pretérito (poderia, ocasi-
to do fenômeno. Neste caso, o procedimento interrogativo pode onaria). Quando se vai para a solução, o enunciado compreen-
ser esquematizado pelo seguinte questionamento: o fenômeno de uma seqüência de asserções no presente do indicativo
B existe conforme deve ser. Quais são as causas da existência (ocasiona, resulta). Por sua vez, os enunciados balizados co-
de B? mentam o desenvolvimento do texto, assinalando as diversas
Nos dois casos apresentados, tanto na existência de um etapas. Pode haver o emprego dos pronomes (eu, nós, se); de
paradoxo, quanto na investigação de uma evidência, esse gêne- fórmulas imperativas (observe-se, analisemos); de verbos no
ro constrói enigmas a serem explicados a um interlocutor, me- futuro do presente (começaremos por, analisaremos) e por ex-
diante um raciocínio lógico, conduzindo a uma conclusão. O pressões que orientam o leitor (primeiramente, agora, em se-
problema deixa de existir, e torna-se um fenômeno normal. Por gundo lugar, depois, finalmente).
meio da explicação, todos os conhecimentos anteriores podem No texto explicativo, a progressão das idéias é funda-
ser modificados no todo ou em parte. mental para a solução da questão. Segundo Charolles, “para

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 237 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 238
que um texto seja microestruturalmente ou macroestrutural- cia textual (inicialmente, em primeiro lugar, em segundo lugar,
mente coerente, é preciso que haja no seu desenvolvimento a seguir, finalmente).
uma contribuição semântica constantemente renovada” (1988: O texto explicativo sempre tem em mente quem é o seu
57). Ou seja, para que um texto seja coerente não pode repetir interlocutor, qual o seu nível sócio-cultural, qual é a sua idade,
indefinidamente seu assunto, numa circularidade temática, mas quais são os seus interesses, entre outros, o que determinará as
deve ser renovado progressivamente, numa progressão semân- escolhas lexicais e o grau de abstração. Se a explicação for
tica (ou remática). Em torno de um tema devem se incorporar dirigida para um especialista de determinada área, a linguagem
remas, trazendo novidades semânticas indispensáveis; há o será mais complexa; se for para um interlocutor comum, o vo-
equilíbrio entre a continuidade do texto e a progressão semân- cabulário será fácil e a sintaxe, simples. Normalmente, as inter-
tica. rogações são diretas, mas as indiretas também são empregadas
Para a resolução de um problema, esse gênero faz uso ao propor uma questão. Pode também haver a presença de tabe-
de substituições nominais, nas quais o enunciador seleciona las, gráficos, ilustrações para servir de complementação. Os
certos traços do objeto, manifesta seu ponto de vista e orienta a recursos visuais complementam o texto e lhes conferem uma
representação do enunciatário, impondo a colocação do objeto maior concretude.
numa perspectiva particular (sol - bola de gás em fusão, bola de
fogo, ou massa de hidrogênio). Por sua vez, as nominalizações 4 - Uma análise ilustrativa
são muito importantes na medida em que dão um nome ao que
foi dito, sintetizando um conceito (Quando os animais e as O QUE SÃO ALIMENTOS FUNCIONAIS?
plantas morrem, seu corpo apodrece e acaba por desaparecer na Rafael Tonon
terra. O apodrecimento é provocado por organismos tais como
as bactérias ou os fungos, que são chamados decomponentes).
Também as orações relativas são freqüentemente em-
pregadas, pois elas possibilitam operar restrições no campo das
representações (O sol, que é um astro, ilumina a terra.). A seu
turno, o emprego de construções parafrásticas possibilitam es-
clarecer conceitos e favorecer a compreensão do enunciatário.
Os operadores argumentativos são indispensáveis na
organização lógica da explicação. Eles articulam as partes do
discurso e auxiliam o raciocínio para se chegar à solução do
problema. Citamos alguns exemplos: adição (e, ainda, tam- Alguns alimentos são indispensáveis para a conservação
bém); oposição (porém, contudo, no entanto); causalidade de nossa saúde, como os alimentos funcionais ou nutracêuticos.
(porque, já que, devido a); conclusão (logo, portanto). Os ad- O que são alimentos funcionais?
vérbios também têm a função de indicar a unidade da seqüên- Os alimentos funcionais são aqueles que colaboram pa-
ra melhorar o metabolismo e prevenir problemas de saúde. Ou
pelo menos deveriam ser assim: os cientistas já reconhecem as

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 239 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 240
propriedades funcionais de muitos desses alimentos, porém os SUBSTÂNCIAS COM SUSTANÇA
estudos ainda não são conclusivos. “A ciência ainda não con- Conheça alguns alimentos funcionais.
segue determinar uma dieta diária de alimentos funcionais que
Betacaroteno Licopeno Flavonóides
atenda a todas as necessidades do organismo”, explica Valde- O que faz: ajuda a O que faz: está rela- O que fazem: dimi-
miro Sgarbieri, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da diminuir o risco de cionado à diminui- nuem o risco de
Unicamp. câncer. ção do risco de cân- câncer e atuam co-
Essas substâncias não são novidade, como às vezes pre- Como age: quando cer de próstata. mo antiinflamató-
ga a indústria de alimentos. As isoflavonas, por exemplo, com- ingerimos gorduras Como age: evita e rios.
postos que ajudam na redução do colesterol ruim, fazem parte e proteínas, o beta- repara os danos dos Como agem: anulam
da alimentação humana desde que a soja foi descoberta pelos caroteno se converte radicais livres que a dioxina, substân-
chineses, há mais de 5 000 anos. em vitamina A, pro- alteram o DNA das cia altamente tóxica
O que vem acontecendo é um aprofundamento nos co- tegendo as células células e desenca- usada em agrotóxi-
nhecimentos da natureza química das substâncias funcionais e do envelhecimento. deiam o câncer. cos.
Onde encontrar: Onde encontrar: Onde encontrar:
das suas funções no organismo. Com isso, os laboratórios e a
abóbora, cenoura, tomate e seus deri- suco natural de uva
indústria alimentícia passaram a produzir, em larga escala, ali- mamão, manga, vados, além de be- e vinho tinto, além
mentos funcionais formulados ou “artificiais”, como leites fer- damasco, espinafre, terraba e pimentão. de alimentos como
mentados, biscoitos vitaminados e cereais matinais ricos em couve. café, chá verde,
fibras. chocolate e própolis.
Para chegarem ao mercado, a Agência Nacional de Vi- Isoflavonas Ômega 3 Probióticos
gilância Sanitária exige que o fabricante apresente provas cien- O que fazem: atenu- O que faz: diminui o O que fazem: são
tíficas das propriedades funcionais alegadas na embalagem. am os sintomas da risco de doenças microorganismos
Mas não se entusiasme demais com os rótulos: 1 litro de leite menopausa. cardiovasculares. vivos que ajudam no
com ômega 3, por exemplo, oferece menos desse ácido graxo Como agem: por ter Como age: reduz os equilíbrio da flora
que uma posta de salmão. uma estrutura quí- níveis de triglicerí- intestinal.
mica semelhante ao deos e do colesterol Como agem: impe-
estrógeno (hormônio total do sangue, sem dem que bactérias e
feminino), alivia os acumulá-lo nos va- outros microorga-
efeitos de calor e sos sangüíneos do nismos patogênicos
cansaço da meno- coração. se proliferem no
pausa e da tensão Onde encontrar: intestino.
pré-menstrual. peixes de água fria, Onde encontrar:
Onde encontrar: como salmão e truta, iogurtes e leite fer-
soja e seus deriva- e óleo de peixes. mentado.
dos.
(TONON, Rafael. O que são alimentos funcionais. Revista Superinteressan-
te. São Paulo, ed. 239, p. 46, mai 2007. Adaptação.)

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 241 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 242
Esse texto foi publicado na Revista Superinteressante, A seguir, o gênero vale-se de enunciados explicativos, a
no mês de maio de 2007, inserido na seção Superrespostas e fim de esclarecer que os estudos acerca desses alimentos ainda
está assinado pelo jornalista Rafael Tonon. Trata-se de um tex- não são conclusivos. Para fundamentar essa afirmação, apre-
to explicativo, pois apresenta ao interlocutor uma questão da senta uma voz de autoridade, Valdemiro Sgarbieri, da Faculda-
ordem do saber. Propõe um enigma a ser elucidado, a partir de de de Engenharia de Alimentos da Unicamp. O professor afir-
um raciocínio coerente e organizado, explica o que não se ma que a ciência ainda não determinou uma dieta diária de
compreendia e encaminha para uma conclusão. alimentos funcionais capaz de atender a todas as necessidades
O gênero apresenta a seguinte macroestrutura (Bronc- do organismo. Nesses enunciados, predominam os verbos no
kart, 1999): a constatação inicial, a problematização, a resolu- presente do indicativo (atenda, explica, são, prega, ajudam).
ção e a conclusão-avaliação. Na constatação inicial, há uma Para articular o discurso, de modo lógico e coerente,
evidência não contestável: Alguns alimentos são indispensáveis constata-se no texto o uso de operadores argumentativos: ou
para a conservação de nossa saúde. A problematização coloca pelo menos (alternativo); a ciência ainda não consegue (adi-
uma questão acerca da realidade para solucionar, da ordem do ção); como às vezes prega (conformidade); com isso, os labora-
porquê: O que são alimentos funcionais? tórios (conclusão); para chegarem ao mercado (finalidade);
A fase da resolução propõe uma solução para o enigma, mas não se entusiasme (oposição). Há o emprego de uma lin-
definindo alimentos funcionais: são aqueles que colaboram guagem comum, com uma sintaxe acessível ao leitor.
para melhorar o metabolismo e prevenir problemas de saúde. Observa-se no texto explicativo a ilustração de um ali-
Explicita o conceito, através de um exemplo, as isoflavonas, mento funcional, o tomate, acompanhada de uma legenda, que
que contribuem para a redução do colesterol ruim, e são usadas ressalta a principal propriedade do tomate, a de evitar o câncer
na alimentação humana há mais de 5000 anos. de próstata. Também há uma tabela, ao lado do texto, que des-
A conclusão-avaliação formula e completa a constata- taca substâncias presentes em alguns alimentos funcionais, o
ção inicial. O autor destaca que há um aprofundamento dos que fazem, como agem e onde encontrar.
conhecimentos da natureza química das substâncias funcionais
e das suas funções. Coloca, ainda, que se constata o aumento 5 - Sugestão de atividades
da produção de alimentos funcionais formulados ou artificiais,
como leites fermentados, biscoitos vitaminados e cereais mati-
I) Leia o texto que segue e resolva as questões
nais ricos em fibras.
Nesse texto, prevalecem os enunciados descritivos e QUANTO VOCÊ CONTRIBUI PARA O AQUECIMENTO
explicativos. Nas linhas 1-4, o texto emprega seqüências des- GLOBAL?
critivas para apresentar as propriedades dos alimentos funcio- Cada habitante da terra libera em média 7 tonela-
nais: são aqueles que colaboram para melhorar o metabolismo das/ano de gás carbônico. Para compensar os efei-
e prevenir problemas de saúde. Utiliza predominantemente os tos dessa emissão, seria preciso plantar 38,9 árvo-
verbos no presente do indicativo e os pronomes em terceira res. (Tiago Cordeiro)
pessoa (são, colaboram).

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 243 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 244
Sabemos que há muitos fatores que contribuem para o b) O texto explicativo estrutura-se em constatação inici-
aquecimento global do planeta. Quanto o homem contribui al, problematização, resolução e conclusão-avaliação. Aponte
para esse aquecimento? essas partes.
Não são apenas as chaminés industriais que provocam o c) O autor afirma que não são apenas as chaminés in-
aquecimento global. Todos os anos, cada "pessoa física" do dustriais que provocam o aquecimento global. Quais os dados
planeta produz, em média, 7 toneladas de gás carbônico. A estatísticos que ele apresenta para fundamentar essa declara-
estimativa, feita pela ONU, não inclui fábricas e usinas, só a ção?
soma de todas as emissões que as pessoas provocam ao ligar o d) Como se caracteriza a linguagem presente no texto
carro, acender o fogão ou comer carne. Somadas, elas são res- (comum, cuidada, oratória, familiar, popular)? Justifique sua
ponsáveis por 0,9% das 7 gigatoneladas anuais de gás carbôni- resposta.
co que a humanidade joga na atmosfera (número semelhante à e) Qual o tempo verbal que predomina nesse texto ex-
emissão de fenômenos naturais, como vulcões e incêndios flo- plicativo? Por que isso ocorre?
restais). "O impacto pessoal na formação do efeito estufa é f) Verifica-se no texto o uso de operadores argumenta-
muito grande. Quanto mais prejudicamos o clima, fica mais tivos a fim de articular o discurso, de modo lógico e coerente.
urgente ainda tomar uma atitude", diz Osvaldo Martins, da ong Substitua os seguintes operadores por outros do mesmo senti-
Iniciativa Verde. do. Especifique a relação estabelecida:
Não há mais muita dúvida de que o homem é responsá- • para (parágrafo 2):
vel pelas alterações que o clima do planeta sofreu nos últimos • apenas (parágrafo 3):
50 anos. De acordo com o relatório Mudanças Climáticas 2007, • só (parágrafo 3):
as chances são de mais de 90% (leia mais sobre o relatório na • de acordo (parágrafo 4):
página 23). "Mesmo que as emissões de gases na atmosfera • a fim de (parágrafo 4):
fossem reduzidas em 60% a fim de que o planeta recuperasse o II) A partir de diferentes assuntos, podemos observar fatos e
equilíbrio, já experimentaremos um aumento de 0,1ºC na tem- fazer questionamentos em relação a eles. Veja o exemplo:
peratura a cada década durante os próximos 100 anos", diz Car-
los Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais Assunto: Porta inteligente
(INPE). A melhor atitude a se tomar é diminuir a emissão pes- Constatação: Quando um ser humano se aproxima de
soal de gás carbônico. uma porta inteligente, ela abre.
CORDEIRO, Tiago. Quanto você contribui para Questionamento: Como uma porta inteligente é capaz
o aquecimento global? Revista Superinteressante. de se abrir, sem ter alguém que a toque?
São Paulo, ed. 237, mar. 2007. (Disponível em: Escolha um assunto, destaque uma constatação que po-
http://super.abril.com.br/revista/conteudo_215100 de ser feita, e formule uma questão a partir dessa constatação:
.shtml) – Adaptação forno microondas, automóveis, tendinite, neblina.
III) Que pergunta o pesquisador fez para chegar a essa respos-
a) Por que o texto Quanto o homem contribui para o ta? Formule uma pergunta para o texto explicativo.
aquecimento global? é caracterizado como explicativo?

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 245 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 246
Porque não havia motivos que justificassem os riscos e Revista Superinteressante. São Paulo, ed. 230,
os custos de se mandar pessoas à Lua - o programa Apollo, que set. 2006. Seção Superrespostas. (Disponível em:
pôs 12 homens na superfície lunar entre 1969 e 1972, custou a http://super.abril.com.br/superarquivo/
bagatela de 19,5 bilhões de dólares. Quando gastou esse di- 2006/conteudo_165014.shtml)
nheiro, o governo americano estava querendo provar sua supe-
rioridade em relação à União Soviética - e, conseqüentemente, IV) Produção do gênero
a supremacia do capitalismo. Vencida a corrida espacial, não a) Procure em livros e revistas informações para res-
havia mais por que ir à Lua. "É um problema de orçamento. Na ponder a questão: Por que as folhas das árvores caem no outo-
época, foi dada prioridade aos ônibus espaciais e à estação es- no? Produza um texto explicativo para ser socializado com os
pacial", afirma Steven J. Dick, chefe da divisão de história da colegas.
Nasa. b) Produza um texto explicativo, para ser lido aos cole-
Agora, a nova política espacial do presidente George gas, respondendo a seguinte questão: As frutas são essenciais à
W. Bush, anunciada em 2004, voltou novamente as atenções nossa saúde. Quais são os benefícios da maçã? (Dar o nome de
para a Lua, com a justificativa de que a retomada das viagens uma fruta para cada aluno).
possibilitará o desenvolvimento de tecnologias para que o ho- c) A partir do levantamento realizado pelo jornal Zero
mem possa ficar por um longo período no espaço (e assim ex- Hora, de Porto Alegre, e publicado na edição de 15 de julho de
plorar mais o sistema solar). Também poderiam ser investiga- 2007, faça a leitura do gráfico e produza um texto explicativo.
dos in loco os dados trazidos por sondas espaciais, como a
possibilidade da existência de gelo nos pólos lunares. Faz parte
da nova política espacial a construção de uma base lunar que
servirá como apoio nas viagens a Marte.
Para essas missões tripuladas, está sendo desenvolvido
um novo veículo espacial, com uma enorme diferença em rela-
ção às naves Apollo: a tripulação e o módulo lunar viajam em
foguetes distintos, que se acoplam na órbita terrestre. Ao che-
gar à órbita da Lua, os astronautas se transferem para o módulo
lunar, que pousa enquanto o resto da nave aguarda o seu retor-
no.
Os críticos afirmam que a missão é desnecessária. "Se
quisermos descobrir algo mais, podemos fazer melhor com
naves automatizadas do que mandando pessoas", diz o histori-
ador Alex Roland, da Universidade Duke, ex-funcionário da
Nasa.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 247 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 248
6 - Considerações finais

O domínio dos diversos gêneros textuais pode auxiliar o


aluno a ser o legítimo autor de seu dizer e levar o estudante a
ocupar, com maior consciência, os diferentes lugares na socie-
dade a partir dos quais pode interagir. Além disso, o trabalho
com gêneros permitirá tanto a sua produção quanto a sua recri-
ação por meio do exercício de práticas de linguagem significa-
tivas na/pela escola, durante as atividades de ensino-
aprendizagem de Língua Portuguesa.
Assim, o trabalho com o texto explicativo torna-se sig-
nificativo na medida em que o aluno amplia habilidades e
competências de leitura e escrita.

Referências Bibliográficas:

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criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
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discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo:
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metz (51): 3-22, sep. 1986. Trad. de Ignácio Antônio Neis. Por-
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ros textuais: reflexões e ensino. União da Vitória, PR: Kaygan-
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Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 249 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 250
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e ANEXO
funcionalidade. In: DIONISIO, Ângela Paiva; MACHADO,
Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (org.). Gêneros POSSÍVEIS RESPOSTAS
textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002, p. 19-36. I)
PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: Ensino a) Trata-se de um texto explicativo, pois apresenta ao interlo-
Médio. Brasília: Ministério da Educação, 1999. cutor um enigma a ser elucidado: Quanto o homem contribui
para o aquecimento global? Propõe uma questão da ordem do
saber e, a partir de um raciocínio coerente e organizado, ex-
plica o que não se compreendia e encaminha para uma conclu-
são.
b) As partes são as seguintes:
9 Constatação inicial : Sabemos que há muitos fatores que
contribuem para o aquecimento global do planeta.
9 Problematização: Quanto o homem contribui para o a-
quecimento global?
9 Resolução: O autor afirma que não são apenas as cha-
minés industriais que provocam o aquecimento global,
pois todos os anos, cada "pessoa física" do planeta pro-
duz, em média, 7 toneladas de gás carbônico. Na se-
qüência, fundamenta essa declaração.
9 Conclusão-avaliação: Não há mais muita dúvida de que
o homem é responsável pelas alterações que o clima do
planeta sofreu nos últimos 50 anos.
c) Os dados estatísticos são os seguintes:
9 Todos os anos, cada “pessoa física” do planeta produz,
em média, 7 toneladas de gás carbônico.
9 A soma de todas as emissões que as pessoas provocam
são responsáveis por 0,9% das 7 gigatoneladas anuais
de gás carbônico que a humanidade joga na atmosfera.
9 De acordo com o relatório Mudanças Climáticas 2007,
as chances são de mais de 90% de que o homem seja
responsável pelas alterações que o clima do planeta so-
freu nos últimos 50 anos.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 251 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 252
O gráfico evidencia ainda que a maior parte dos aciden-
d) Há o emprego de uma linguagem comum, com um vocabu- tes fatais ocorre no horário das 18h às 24h, e com maior inci-
lários simples e uma sintaxe acessível ao leitor. dência na segunda feira. Além disso, a maioria dos motociclis-
tas envolvidos eram jovens, não tinham 30 anos, num
e) Predominam os verbos no presente do indicativo (pensa,
falam, provocam, prejudicamos, é, são), pois a questão da or- percentual de 58,8%.
Dos 131 condutores envolvidos em acidentes com mor-
dem do saber que o texto elucida refere-se a um fenômeno atu-
tes, 70,2% não havia sofrido acidente anterior e 45,8% dos ca-
al e do qual o leitor também é co-participante.
sos foram registrados na cidade.
f) As substituições e as relações podem ser: Dos pilotos que provocaram mortes, 16,8% haviam pas-
• para (parágrafo 2): a fim de, com o intuito de, com o obje- sado por exames de direção há menos de um ano. Os motoci-
tivo de,... - finalidade clistas com mais de 5 anos de carteira de habilitação represen-
• apenas (parágrafo 3): somente, só, ... - exclusão tam 32% dos envolvidos. Já os condutores clandestinos estão
envolvidos em quase um quarto dos acidentes que misturam
• só (parágrafo 3): somente, apenas, ... - exclusão
motos e óbito. Em 30 dos 131 acidentes fatais registrados por
• de acordo (parágrafo 4): conforme, segundo, consoante, ...
ZH - 22,9% do total das ocorrências -, os motociclistas não
- conformidade
tinham a carteira de habilitação de categoria A, documento
• a fim de (parágrafo 4): para, com o intuito de, com o obje- obrigatório para guiar motos.
tivo de,... - finalidade Portanto, a partir dos dados analisados, é necessário
II) Pessoal muita cautela por parte dos motociclistas, principalmente, na
III) Título original: Por que o homem parou de viajar à Lua? cidade e rodovias estaduais, na sexta e segunda-feira, no horá-
rio das 18h às 24h, mesmo para aqueles que nunca sofreram
IV) Produção do gênero
acidentes.
a) Pessoal
b) Pessoal
c) Esperara-se que os alunos leiam, no mínimo, as in-
formações que seguem.
O gráfico apresenta dados acerca dos acidentes de mo-
tocicletas com óbito ocorridos de 1º de janeiro a 30 de junho de
2007, no Rio Grande do Sul. O levantamento, realizado pelo
jornal Zero Hora, de Porto Alegre, mostra que aconteceram,
nesse período, 131 acidentes com motos, dos quais resultaram
142 óbitos. Desse total, a grande maioria dos mortos eram mo-
tociclistas (75,3%). Os caroneiros representam apenas 14,8%
dos óbitos.

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 253 Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 2007) – ISSN 1806-9142 254

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