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gestual teatro melodrama

Book · December 2020

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1 author:

Robson Correa Camargo


Universidade Federal de Goiás
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Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de


cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva
responsabilidade de seu respectivo autor.

Todos os livros publicados pela Editora Fi


estão sob os direitos da Creative Commons 4.0
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


CAMARGO, Robson Corrêa de

Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras [recurso eletrônico] / Robson Corrêa de
Camargo -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020.

349 p.

ISBN - 978-65-5917-065-4
DOI - 10.22350/9786559170654

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Gestual; 2. Teatro; 3. Melodrama; 4. Performances; 5. Pantomimas; I. Título.

CDD: B869.2
Índices para catálogo sistemático:
1. Teatro B869.2
Jefson Romero de Camargo (1926-1973)
in memorian
Em 1963, meu pai foi fazer um curso nos Estados Unidos, de treinamento de
pilotos, link trainer, como se chamava. Sargento da aeronáutica, ensinava o
chamado vôo cego, por instrumentos. Uns três meses... Senti muito sua falta
naquele espaço de tempo. Dez anos depois, ele morreria assassinado, estupida-
mente. Nunca mais pude reencontrá-lo, a não ser na memória.... Anos depois
fui aos Estados Unidos, para realizar pesquisa de doutorado (1996-2001) apoi-
ado pela CAPES, voltei deixando para trás a poeira das torres gêmeas que ainda
se espalhava no retrovisor do avião. Com alívio percebi finalmente que, no
fundo, houvera uma tentativa de reencontrá-lo ou incorporá-lo, sei lá. Conse-
gui. Ele que abandonara os estudos para trabalhar, fez de tudo para que eu
terminasse a universidade que ele não fizera. Ele e eu, ateus por profissão,
nunca imaginamos que eu pudesse, um dia, chegar ao final desta longa jor-
nada. Um vôo cego, por instrumentos.

Dra. Eurides Corrêa de Camargo (1930-1997)


in memorian
Proibida de estudar, pois “estudos não eram coisa para mulher”
me ensinou, entre tantas coisas, a andar de bicicleta e a lutar pelos desejos.
à minha esposa Edlúcia,
pelo afeto, companhia, presença.

e agora aos meus filhos, frutos bem ditos.


Jefferson Barros de Camargo (janeiro de 2015)
Sophye Barros de Camargo, que brota correndo no horizonte,
Espantada (junho de 2020)
Agradecimento especial
A prof. Dra. Ingrid D. Koudela, orientadora e amiga, que me acolheu e, com
competência, paciência, dedicação e incentivo ajudou a superar limitações e
mostrou caminhos na construção do conhecimento cientifico e, sobretudo hu-
mano.
Sumário

Desvelar e reconstruir o melodrama ........................................................................ 15


Maria Lúcia de Souza Barros Pupo

Apresentação .......................................................................................................... 20

1 ............................................................................................................................... 28
O melodrama: o gestual e ...
Era uma vez ...... o princípio da incerteza ........................................................................... 33
Melodrama e o senso comum ............................................................................................... 44
Teorias da definição de gênero ............................................................................................. 48
Teatralidades: o prazer do espetáculo e do texto ................................................................ 51
O prazer da performance ...................................................................................................... 60
O melodrama na ópera.......................................................................................................... 63
Rousseau e o melodrama: nem pai, nem padrasto ............................................................. 71

2 ............................................................................................................................... 85
As parteiras do melodrama: a pantomima, o teatro de feira e de bulevar
A pantomima: gestualidade e melodrama .......................................................................... 85
O treinamento do ator na pantomima ................................................................................ 94
A improvisação no teatro das feiras ..................................................................................... 98
A pantomima no Boulevard du Temple ............................................................................. 121
O corpo, o gesto e a voz ........................................................................................................130
O surgimento do termo melodrama ...................................................................................138

3 .............................................................................................................................. 144
A máquina do melodrama e o início da cena moderna
Um por todos, todos por um: o público acima de todas as coisas .................................. 160
René-Charles Guilbert de Pixérécourt e sua obra ............................................................. 165
O melodramaturgo e o drama das unidades...................................................................... 175
Coelina ou l’Enfant du mystère: o “gênero” inaugurado................................................. 186
A manufatura do melodrama ............................................................................................. 226
4..............................................................................................................................256
O melodrama no império dos sovietes: Stanislavski e os formalistas russos
O ator, o diretor e o leitor do melodrama ......................................................................... 262
O olhar sem palavras: a presença cênica........................................................................... 272
Diálogo com um formalista na terra dos sovietes ............................................................ 278
Balukhatii: o melodrama e sua poética.............................................................................. 280

5 ............................................................................................................................. 294
As múltiplas faces do melodrama brasileiro
História Principal: o Amnésico e o Ébrio........................................................................... 299
Segunda História: Laços de Sangue ................................................................................... 305
Terceira História: Na Saúde e na Doença........................................................................... 315
O Discurso do Melodrama ...................................................................................................319

O Duende (considerações finais) ........................................................................... 324

Referências ............................................................................................................. 337


Desvelar e reconstruir o melodrama

Maria Lúcia de Souza Barros Pupo

Presente no linguajar cotidiano de um vasto público, bem mais amplo


e multiforme do que aquele composto pelos frequentadores do mundo das
artes, melodrama é, em nossos dias, antes de mais nada, um termo fami-
liar que remete a narrativas carregadas de peripécias nas quais se
confrontam vilões e heróis nitidamente caracterizados.
E essa familiaridade nada tem de surpreendente se observarmos a
penetração das novelas radiofônicas até há poucas décadas e, atualmente,
de modo mais avassalador, das telenovelas no imaginário do brasileiro,
para além de diferenças sociais ou de poder aquisitivo.
Fenômeno que vem ocupando há anos estudiosos provenientes dos
mais variados campos do conhecimento, as narrativas televisivas acompa-
nhadas por contingentes altamente expressivos da população se
configuram estruturalmente como modalidades consideradas melodra-
máticas. Temáticas, situações e personagens que espelham as
contingências do nosso aqui-agora constituem apenas a porção visível do
iceberg. O modo de narrar que subjaz à sequência dos capítulos obedece à
lógica de modelos vinculados ao melodrama: quando o mal parece reinar
triunfante, a virtude se sobrepõe e sai vencedora.
Noção ambivalente dentro do universo especificamente teatral, se o
melodrama é reconhecido como importante matriz merecedora da aten-
ção de artistas e estudiosos, ele não raro é objeto de um tratamento
passível de ser designado como preconceituoso, ao ser visto como sinô-
nimo de estereótipos e previsibilidade. Manifestação cujas raízes
remontam à França do século XVIII, ele soube como poucos se amalgamar
às diferentes contingências às quais esteve sujeito, a ponto de hoje ser
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reconhecível nas comunicações de massa, no cinema através de suas várias


gerações e na literatura, além do próprio teatro. Quando se fala em melo-
drama, são referências vinculadas a esses campos que emergem com
frequência e peso muito maior do que eventuais conhecimentos de caráter
histórico sobre cena melodramática.
Robson Camargo se confronta com essa lacuna com o destemor do
estudioso contumaz, valendo-se de fontes até então pouco exploradas, na
perspectiva de apresentar ao leitor a emergência e a gradativa configura-
ção do melodrama. No entanto, mais do que um recorte da sua evolução
histórica, o que temos neste livro é um mergulho apaixonado no fenô-
meno, que resulta no estabelecimento de um ponto de vista singular,
embasado em diversificado referencial bibliográfico.
Investigação originalmente realizada visando à obtenção do grau de
Doutor em Artes Cênicas na Universidade de São Paulo, o texto corres-
ponde literalmente ao seu escopo, ou seja, apresenta e defende uma tese.
Paulatinamente, somos convidados a acompanhar nosso autor em seu es-
forço de reconstruir, criteriosamente, o objeto que o ocupa.
É o homem de teatro que traz à tona, mediante o crivo da atualidade,
o melodrama como manifestação estritamente cênica. Embora as vincula-
ções entre essa arte, o folhetim e o cinema, por exemplo sejam reiteradas
ao longo de todo o texto, o que é focalizado aqui é especificidade da cena
melodramática.
A tarefa é de peso, na medida em que analisar encenações representa
em si mesmo um desafio delicado, que, além do conhecimento teórico do
teatro, implica experiência consolidada por parte do analista. Nosso autor,
porém, não se intimida e, de modo ousado, mais do que nos oferecer aquilo
que poderia ser uma descrição - cujo interesse já seria indubitável - nos
presenteia com uma análise transversal no tempo e no espaço que lhe per-
mite configurar uma visão conceitual dessa manifestação artística,
simultaneamente tão próxima e tão longínqua.
Para o autor, o melodrama não se configura exatamente como um
gênero, mas sim como uma estrutura dramática em constante
Maria Lúcia de Souza Barros Pupo | 17

transformação, graças aos contínuos diálogos travados com as diferentes


formas artísticas que historicamente com ele coexistiram. Interagindo com
modalidades dramáticas diversas como a tragédia, a comédia, a novela de
cavalaria, a ópera cômica e a comédia lacrimosa entre outras, o melodrama
simultaneamente as contêm e é incessantemente modificado por elas,
constituindo-se uma forma cuja especificidade é o hibridismo.
Nosso autor desvela as restrições veiculadas pelo senso comum em
torno dessa modalidade teatral, enquanto cuidadosamente vai desmante-
lando uma a umas essas percepções apriorísticas. Aquilo que comumente
é qualificado de clichê, gestos previamente demarcados, repetições desne-
cessárias passa a ser visto agora por um outro prisma e gera implicações
inesperadas.
A partir de considerações dessa natureza, Robson Camargo formula
uma relevante constatação: a crítica teatral contemporânea no apogeu do
melodrama não dispunha de instrumentos de análise suficientemente fi-
nos que pudessem dar conta de uma modalidade de espetáculo tão
dinâmica, dentro da qual estilos diferentes se influenciam reciprocamente.
A questão, aliás, não é estrangeira à nossa atualidade. No bojo de pro-
cessos de aceleradas mutações que vêm abalando o próprio conceito de
arte, hoje radicalmente revisto, a crítica especializada, não raro atônita se
vê diante de dificuldades para tratar modalidades que fogem àquilo que
constituía o seu objeto. Assim, ela é levada a reconhecer que suas catego-
rias de análise, até há pouco pertinentes, necessitam agora ser revistas. Há
que conceber novas formulações quando se pretende examinar por exem-
plo intervenções urbanas, performances, atos artísticos coletivos, ou
manifestações da chamada estética relacional.
Descrições provenientes de observadores nos séculos XVIII e XIX, as-
sim como uma ampla iconografia permitiram caracterizar o trabalho do
ator melodramático. Marcado pela influência da commedia dell’arte, da
pantomima e do teatro de feira, o desempenho desse ator, segundo Robson
Camargo não se caracteriza, como habitualmente se considera, pelo exa-
gero dos olhares, por clichês que remetiam a repetições mecânicas ou por
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uma gestualidade demasiado ampla. Uma exegese cuidadosa o conduz a


questionar aquele lugar comum. Amparado em Stanislavski, o pesquisa-
dor substitui essa visão atravessada por posições apriorísticas pela noção
de condensação no ato de representar.
Por outro lado, o intenso diálogo com o público é realçado como um
recurso primordial da cena melodramática, responsável em larga medida
pela sua penetração na vida urbana europeia principalmente no século
XIX. O estabelecimento de uma relação privilegiada com as classes popu-
lares faz do melodrama o vetor de uma notável ampliação do público
teatral. Assim, a ocorrência de apartes, a interrupção da ação dramática
mediante a composição de tableaux e a incidência da música buscando en-
volver emocionalmente os espectadores são ressaltados como meios
eficazes tendo em vista aquela aproximação.
Trilhando caminhos dessa natureza, nosso autor demonstra que o
caráter teatral do melodrama, ao invés de ser escamoteado, tende a ser
explicitado diante do público, resultando em claro anti-ilusionismo eviden-
ciado, entre outros fatores, pela marcante estilização presente na cena
melodramática.
É a partir desse ponto específico que Robson Camargo formula uma
das mais valiosas contribuições de seu estudo. Ao recusar a ilusão e a mi-
mese, o melodrama se configura como matriz fecunda das grandes
correntes teatrais que viriam a transformar a cena no século passado e
desembocariam no acontecimento cênico contemporâneo. O vínculo te-
cido pelo autor lança, portanto, luzes singulares sobre o fenômeno da cena
melodramática, atribuindo-lhe um poderoso alcance estético dentro da
história da encenação.
O percurso traçado por essas páginas se inicia com as origens do me-
lodrama, detém-se em seus desdobramentos na França, leva-nos para
uma incursão na Inglaterra e nos conduz depois à Rússia pós-revolução,
especialmente ao Teatro de Arte de Moscou e ao pensamento de alguns
formalistas. Após esse denso périplo, chegamos ao Brasil em 1995 e somos
Maria Lúcia de Souza Barros Pupo | 19

apresentados à encenação de Melodrama pela Companhia dos Atores, di-


rigida por Enrique Diaz.
Uma primorosa descrição daquele espetáculo convida à reconstitui-
ção, por parte de cada leitor, de uma encenação complexa e sofisticada,
marcada pela coexistência dinâmica e mutante de diferentes camadas de
situações dramáticas.
Somos então convidados a conhecer o resultado de um interessante
processo criativo na linhagem da chamada “escrita da cena”, no qual o es-
petáculo e o texto são construídos simultaneamente, a partir da
participação de um elenco de atores-autores e de um dramaturgo. Tendo
novelas de rádio como material de ponto de partida, o espetáculo é tecido
por três tramas, a princípio independentes, que se cruzam e se interpene-
tram na sequência. Uma estrutura em abismo é assim desvelada, trazendo
à tona forte dimensão lúdica avessa a qualquer intenção mimética e le-
vando o espectador/leitor a uma reconstrução do melodrama a partir do
olhar que podemos lançar, hoje, para aquela manifestação.
Estamos agora em pleno terreno da metalinguagem. A encenação que
nos é descrita focaliza o teatro dentro do teatro e explicita o funcionamento
das próprias convenções sobre as quais foi edificada. À medida em que o
espetáculo progride, o espectador é instado a compor um mosaico, o seu
mosaico – intransferível - a partir das peças, díspares, oferecidas pela cena.
Ao se deter sobre Melodrama, o autor tem a oportunidade de ilustrar
sua argumentação com um exemplo brilhante, que traz para a berlinda
não apenas o diálogo entre gêneros e estilos por ele tão nitidamente enfa-
tizado, mas também de desvelar para o leitor os procedimentos artísticos
que estruturam a construção da cena melodramática.
Abrem-se então as portas para que o leitor, após a experiência de
mergulho proporcionada por Robson Camargo, emerja do livro com novos
recursos que lhe permitam identificar e continuar a desvelar a cena melo-
dramática, tanto no próprio teatro quanto fora dele.

Fevereiro 2014
Apresentação 1

O melodrama surgiu, como se costuma dizer, nos anos posteriores a


Revolução Francesa, capitaneado por aquele que foi considerado o funda-
dor “oficial” do melodrama, o francês René-Charles Guilbert de
Pixérécourt (1773-1844), diretor e dramaturgo, natural de Nancy, França,
filho de nobreza francesa empobrecida. O primeiro grande sucesso do me-
lodrama veio em 1800, com sua Cœlina ou l’Enfant du mystère ("Coelina,
A Filha do Mistério, em tradução livre), texto em que me deterei detalha-
damente em local apropriado, icônica montagem que marcaria a
“inauguração” do melodrama, segundo a critica que se estabeleceu. Entre-
tanto, o melodrama iniciou-se com grandes sucessos nos teatros e feiras
de Paris, previamente, como veremos, ainda sem chamar-se melodrama,
mas certamente este marcou o início de um processo estrondoso que iria
inserir este drama de forma poderosa na cultura de massas, na época
ainda incipiente, sob os olhos de hoje. Certamente este é o drama da cul-
tura de massas. Durante sua larga trajetória nos séculos e continentes que
procederam, muitos melodramas surgirão, contraditórios, sucessivos e,
assim como em suas origens, alimentados por um tempo histórico que ca-
minhava para frente enquanto olhava para trás.
Tentar sintetizar suas características múltiplas em ato unificador tem
sido uma tendência infrutífera, fadada ao fracasso, tentada esquematica-
mente por alguns, como veremos. Seu desenvolvimento se deu ao mesmo
tempo em que se organizavam as lutas de formação dos contraditórios pa-
íses (estados-nações) coloniais e colonizados nos séculos XIX e XX, na
aldeia global, sem falar nas revoluções industriais que redimensionavam e

1
1 de setembro de 2020. Esta é uma versão modificada, expandida, da tese de doutorado defendida na ECA/USP em
2005, com várias reflexões agregadas, pois o tempo, este senhor antropofágico, assim o possibilitou.
Robson Corrêa de Camargo | 21

tragavam o sentido de tempo e de vida. Tentar classificar ou estabelecer


fronteiras nas principais características do melodrama numa vala única,
essencialista, é tarefa despropositada que procuraria identificar um certo
indivíduo melodrama ideal, sem perceber que, já na sociedade moderna o
indivíduo rapidamente se estilhaçava (Stuart Hall), antes de se liquifazer.
Melodrama são muitos, como veremos, e é o propósito deste trabalho
mostrar aspectos desta diversidade, sua larga trajetória histórica e em di-
ferentes meios e contextos culturais. Esta existência fragmentada e
superposta, na medida que muitos melodramas coexistem, dificulta mais
ainda qualquer tentativa de classificação e organização. Se o melodrama
em seu início, de certa forma procurava abordar pelos seus personagens a
constituição de um sujeito comum, cidadão, pós queda da Bastilha, com
personagens coerentes e dicotômicos, seus próximos passos já no século
XIX o irão esgarçar, deslocar e fragmentar. O melodrama é produzido as-
sim em uma sociedade tão dinâmica que alguns a considerarão liquefeita,
sendo tragada pela Revolução Industrial, que, máquina movida a motor,
da bicicleta ao trem a vapor e ao avião supersônico e a realidade virtual,
foi sendo contida e misturada em diferentes caixas, e se processará em
permanentes e radicais mudanças na fogueira que inicialmente impulsio-
nou. Melodrama, um produto da modernidade construída em várias
facetas. A intenção aqui é capturar alguns elementos desta diversa existên-
cia, em paradoxal e próspera trajetória, mostrando o que se configurou
como um melodrama plural, caleidoscópico, desmanchado no ar.
O trabalho a seguir se propõe a descrever as práticas do melodrama
e as incertezas das diferentes determinações conceituais que atravessaram
aquilo que veio a se chamar melodrama em importantes momentos histó-
ricos. O melodrama se liga a várias manifestações de arte, aparentemente
conflitantes, no que hoje ainda, mas não por muito tempo, podemos ainda
chamar de ópera, teatro, circo, teatro de rua, de feiras, de teatro de bule-
var, de cinema, de rádio, de mass media, das novelas, da performance, de
dança, como se cada um deles tivesse sido o mesmo e diferente numa tra-
jetória a longo prazo. Este longo período de análise, em profusa realidade,
22 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

requereu realizar recortes e contraposições de suas manifestações visivel-


mente contraditórias, selecionando alguns de seus momentos marcantes,
como considerados pelo autor. O melodrama se constitui em palimpsesto
que revela nas suas diferentes camadas sua composição diversa, revelamos
algumas mas, atenção, o coração exposto não pode funcionar fora do seu
corpo.
O trabalho a seguir se organiza em seis capítulos. O primeiro discute
algumas questões conceituais sobre a incerteza como locus do pensamento
e discute assim as incertezas ligadas ao conceito de melodrama no teatro
e acompanha as múltiplas gestações do melodrama, principalmente no te-
atro de feiras e de bulevar, em suas aventuras inusuais, de luta, às vezes
física, contra o teatro canônico elaborado nas cortes. O segundo capítulo
contextualiza e descreve a prática teatral daquele que foi considerado o
primeiro melodrama na França e seu contexto dramático e histórico, por
isto mais longo. O terceiro observa o desenvolvimento deste teatro em suas
diferentes formas, a partir do trabalho de Thomas Holcroft, que adaptou
imediatamente e livremente o grande sucesso do melodrama francês de
Pixérécourt ao teatro inglês, sem cerimônia ou preocupação com direitos
autorais, que não haviam, ou com fórmulas a serem seguidas. Holcroft de-
sestabiliza as formas do melodrama francês de Pixérécourt já em seu
início, adaptando aquele que foi considerado por alguns patriotas parisi-
nos como o pai do melodrama mundial. O melodrama se modifica, se
esgarça, enquanto se propaga. O quarto capítulo se arquiteta em dois eixos
contraditórios no império dos Czares, assim estaremos na Rússia soviética,
mais de cem anos depois. Sim, se o melodrama se ligava de alguma forma
à Revolução Francesa, irá se potencializar no tempo dos czares soviéticos.
Primeiramente veremos na descrição dos detalhes da encenação de
um melodrama pelo reconhecido Teatro de Arte de Moscou, coordenada
por ninguém menos que Constantin Stanislavski (1863-1938), o grande
mestre do teatro do século XX, onde este descreve e demonstra sua com-
preensão das técnicas de encenação do melodrama no palco em 1926-7,
tempos finais da criatividade soviética, em que esta estava a submergir na
Robson Corrêa de Camargo | 23

noite stalinista. Capítulo importante por evidenciar a arquitetura e as téc-


nicas do melodrama no registro deste encenador russo iniciador da
reflexão sobre as técnicas de improvisação e atuação. Este capítulo tam-
bém descreve, por contraste, o importante trabalho de um crítico
formalista pouco conhecido em língua portuguesa, Sergei Balukhatii
(1892-1945), lembrando ser o formalismo muito criticado em sua época
por tentar entender a arte em si mesmo, mas em distanciamento da reali-
dade histórica. Este nos interessa não apenas por suas elaborações, mas
também por seu método de pesquisa e estudo, estruturando o que seria o
melodrama a partir do levantamento sistemático das características estru-
turantes dos espetáculos apresentados naquele perído nos teatros da
Rússia, um trabalho singular de análise. Os formalistas interessam, não
apenas pela qualidade de seu trabalho, mas por procurarem as suas defi-
nições a partir do entendimento das características do próprio objeto
artístico, para que então se construíssem e se entendesse a poética for-
mada, fugindo das categorias idealizadas da análise do fato
melodramático.
Por último, e antes das conclusões, um vôo contemporâneo, de heli-
cóptero, videogame ou drone, adentro e acima de um dos grandes
espetáculos brasileiros do final do século XX, um melodrama “pós-mo-
derno”, brasileiro, multifacetado, antropofágico, e que se debruçou no
gênero a partir da releitura dos melodramas de sucesso apresentados na
Rádio Nacional do Rio de Janeiro nos anos 1950 e 1960. Para mim um dos
melhores textos teatrais do século XX em nosso teatro. Excelente espetá-
culo, premiado nacionalmente, discute teatralmente, além de seus dramas,
as técnicas de construção e interpretação e, inclusive, contém seu nome, o
carioca Melodrama de Filipe Miguez e Enrique Diaz, uma reescrita polifa-
cética do gênero que se mostrou já na alvorada do século XXI. Por
contraste apresenta novas configurações do melodrama, ao mesmo tempo
que revela muitas de suas técnicas, evidenciando sua polissemia.
Bom, finalmente os agradecimentos, para que possa dar a público
este estudo, foi fundamental o apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa do
24 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Estado de Goiás e da Capes, pelas bolsas e auxílios que financiaram esta


pesquisa, inclusive no exterior e ao programa de pós-graduação interdis-
ciplinar em Performances Culturais da UFG, que financia esta publicação.
Há que agradecer também a leitura atenta e os comentários de minha
amiga e orientadora Ingrid Koudela, às considerações do antropólogo John
Dawsey (USP), responsável pelas minhas sendas nos paradigmas camba-
leantes da Antropologia. Comentários imprescindíveis foram também os
da amiga e diretora Maria Thais (ECA/USP) e, especialmente, os do diretor
teatral e acadêmico Luiz Arthur Nunes que apontou detalhadamente as
crases que não craseei e que ele contou, e espero, do fundo do coração, que
o revisor deste se encarregue de descorromper meus (constantes) deslizes
na língua materna que não são poucos, para que Luiz Arthur Nunes fique
mais feliz.
Por último, a amiga e pedagoga Maria Lúcia Puppo que prefacia esta
obra e que me entregou também por escrito suas preciosas considerações
no doutorado, aqui ponderadas, assim como as conversas infindas com
Fausto e Raquel Fuser, atores e diretores da vida e do teatro brasileiro que
muito me auxiliaram. Agradecer ainda e também a meu orientador nos
Estados Unidos David W. Foster (1940-2020), recém falecido, e a seus alu-
nos, funcionários e amigos da Arizona State University pelo carinho, pelas
conversas e jornadas teatrais e pelo imensurável material de pesquisa, pela
experiência que tivemos encenando em Tempe, em 1996, um melodrama
que tinha como personagem principal Carlos Gardel, El Dia que me Quei-
ras do venezuelano José Ignacio Cabrujas (1937-1995), texto escrito em
1979. Gardel era vivenciado pelo próprio David Foster, um norte ameri-
cano branco típico vivendo o mito latino de Gardel, hilário. Muito também
deste trabalho se fez nas imensas bibliotecas da Universidade de Illinois,
Urbana-Champaign, às quais sou eternamente grato por permitir consul-
tar seu imenso acervo, no qual pude encontrar grande material sobre o
teatro de feira francês, entre outros. Assim como também aos funcionários
da labiríntica Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos onde muitas ve-
zes me perdi e, se pudesse, de lá nunca sairia.
Robson Corrêa de Camargo | 25

Não poderia faltar um agradecimento especial ao meu querido pro-


fessor Jacó Guinsburg (2021-2018) pelos conselhos e apontamentos
sempre rígidos que vem do curso de graduação em teatro, do mestrado e
numa importante fase desta pesquisa, durante minha custosa formação
como militante acadêmico, um tanto irreverente. A minha trajetória aca-
dêmica e seu produto foi iniciada sob sua enérgica insistência nas largas
mesas de madeira do departamento de teatro da Universidade de São
Paulo em cadeiras que mal conseguiam me conter, debatendo-me contra
o que me esperava o futuro. Jacó Guinsburg foi responsável pela formação
e ideário de uma geração de críticos de teatro e das performances, de mui-
tos artistas, tradutor de importantes filósofos, entre tantas outras coisas.
A sugestão inicial deste trabalho foi sua ideia, mas não neste recorte que
acabou se configurando. Certamente sentimos muito sua falta. Que pena
que o tempo passa e nos afasta a outros rincões.
Um outro agradecimento ao professor Fredric Michael Litto, que co-
nheci no meu tempo de graduação na ECA/USP, quando ele era chefe do
departamento e meu professor, lembro-me bem quando ele nos presen-
teou com a revista Latin American Theatre Review, por ele fundada no
Universidade de Kansas, antes de vir definitivamente ao nosso país. Devo-
rava eu com ardor as paginas desta revista tentanto entender um pouco
do que viria a ser meu caminho na vida universitária. Professor Litto sem-
pre foi uma referência nos caminhos de entendimento da pesquisa
acadêmica, e em alguns momentos exerceu um importante papel na defi-
nição de meus caminhos. Com ele entendi também como enfrentar alguns
duros embates na vida universitária. Lembro-me ainda com carinho a vi-
sita que ele, B de Paiva e J. Guinsburg fizeram a Uberlândia, tentando de
alguma forma nos ajudar na difícil tarefa de iniciar um programa de gra-
duação em teatro naquela universidade, tarefa nada fácil, que ensejou um
novo curso de teatro nas Minas Gerais.
De alguma forma atravessam ainda este trabalho as pesquisas feitas
no programa de pós graduação interdisciplinar em Performances Cultu-
rais da Universidade Federal de Goiás, do qual sou um dos idealizadores e
26 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

um dos fundadores no ano de 2011, não sem muita labuta e contradições


desde que cheguei àquela universidade. Agradeço seus professores e com
grande destaque ao amigo e professor Eduardo Reinato, uspiano como eu,
e que trabalha atualmente também no programa de História na PUC/UFG;
ao professor Roberto Abdala, a professora Vania Dolores Estevam de Oli-
veira e, finalmente a professora Sainy Veloso e Nadia Weber, pelas
conversas infindas. Certamente muitas ideias foram sendo estimulados
por eles e pelos debates entre e com os alunos que alimentaram muito
minhas reflexões nos últimos anos.
Durante os anos que fiquei nos Estados Unidos (1996-2001), ao final
encerrei meu vínculo de professor na Universidade Federal de Uberlândia,
onde idealizei e fundei, com colegas o curso de teatro e ajudei a organizar
a parte teatral da excelente biblioteca de teatro daquela Universidade,
meus agradecimentos aos amigos que lá tive e especialmente a cantora e
professora Edmar Ferreti, que agradeço em nome de vários colegas da-
quele departamento que apoiaram minhas atividades.
Especial agradecimento ainda aos que possibilitaram material para
esta pesquisa, entre os quais destaco o Idart (Departamento de Informação
e Documentação Artística da Secretaria Municipal de Cultura da Cidade de
São Paulo) e em especial a Maria Thereza Vargas, da importante divisão
de pesquisas do Centro Cultural São Paulo, neste local de pesquisa recor-
rente tive acesso a gravação, programa e ao registro fotográfico do
espetáculo Melodrama em sua apresentação paulistana, o que me ajudou
muito nas memórias daquele espetáculo presenciado inicialmente em Ca-
diz. Ainda a Carlos Ricardo, militante “bolchevique” como gostava de ser
chamado e que digitou partes das provas, quando ainda eu dava os pri-
meiros passos na senda computacional e a Valfrido Lima, da Proposta
Editorial por possibilitar auxílio fundamental nas impressões e adaptações
do meu PC, além de grande companhia e de algumas garrafas de vinho
tomadas.
Logicamente todos estes não podem ser responsabilizados pelas fa-
lhas deste trabalho, que certamente existem e, por favor, debitem este
Robson Corrêa de Camargo | 27

débito na conta e responsabilidade solitária deste escriba. A perfeição é


uma meta cheia de buracos.
Finalmente, um aviso importante, optou-se por publicar parte dos
textos dramáticos citados em sua língua original, junto com a sua livre
tradução feita por este escriba, que encarnou o diretor e dramaturgo mais
que a carreira de tradutor oficial. Assim as traduções a nossa língua são
pessoais e livres e visam tentar dar um carater dramático e poético ao
texto, refazendo-se rimas e sentidos ao meu bel prazer poético, procu-
rando resgatar as situações de palco, mais que uma tradução literal do
texto original, um olhar de artista de teatro mais que de um tradutor. Aos
sisudos, aos sérios e sensatos na matéria de tradução, apresento o original
contíguo para deleite e análise e diversão com meus deslizes poéticos. Pro-
cura-se assim dar um sabor de texto na cena, muitas vezes em forma
popular e jocosa. Em nossa língua a simples tradução literal acarretaria
muitas vezes a perda do sabor da encenação e do reconhecimento do valor
desta arte popular nos dias de hoje. Tradutor, traidor, quem falou isto?!
Alguns ecos me atravessam. Penso que as novas gerações devem sorver o
melodrama em forma de divertimento, de arte e não de arquivo ou docu-
mento. Deixo isto a quem de direito. Outras traduções de outros autores,
quando for o caso, serão apontadas, senão serão de minha própria lavra.
1

O melodrama:
o gestual e ...

Ao final do longo processo de revisão, maturação e publicação deste


trabalho, estando ele praticamente concluído, encontrei, poderia se dizer
que nelas tropecei, publicações de autores diferentes que me ajudaram a
atar os laços desta escrita. Vale a pena nominar brevemente pois não serão
encontrados neste trabalho seus postulados explicitamente, mas estão de
certa forma entrelaçados e esgarçam seu escopo. Espírito do tempo? Assim
esta é uma revisão expandida da tese de doutorado de 2005. Quinze anos
passados.
Primeiramente a visão toulminiana (Stephen Toulmin, filósofo britâ-
nico, 1922-2009) e depois a de Ilya Prigogine (químico russo, 1917-2003)
e, finalmente, a do filósofo alemão Hans-George Gadamer (1900-2002).
Como pode se observar praticamente são nossos contemporâneos. Se eu
desconhecia razamente ou em profundidade o trabalho destes filósofos ci-
tados, e suas visões distintas, parece que eles determinaram as ideias aqui
a serem apresentadas antes de elas nascerem.
Primeiramente apresento Toulmin, físico e filósofo britânico, este
afirma duas questões: que o conceito é dinâmico e sempre se modifica
numa perspectiva evolutiva, não progressiva, mas evolutiva; por outro
lado, o filósofo descreve que, se antes o problema das ciências da Natureza
era o do entendimento do fenômeno, que deveria ser explicado, num ce-
nário de pretensa estabilidade e imutabilidade intelectual, agora havia que
se ater a regra da variabilidade conceitual. Não fossem as questões de pen-
samento apresentadas até aquele momento já árduas, Toulmin
Robson Corrêa de Camargo | 29

considerava ser central a questão do conceito e da mudança conceitual e


de esta não mais ser direcionada ao conhecimento de determinado objeto,
mas do pensamento sobre, então, não mais o empirismo seria o centro do
pensamento, mas a conceituação e sua evolução (Human Understanding,
1972). Conhece-se estudando o conceito mais que o objeto. Este certa-
mente é o fado do melodrama, pensar-se o conceito, não apenas o objeto,
pois o caminho para revisão do conceito aqui apresentado parte também
do objeto, em contraste com a conceituação até aqui apresentada.
Não fosse árdua esta afirmação anterior para elaboração de nosso
pensamento, a da discussão do conceito, há ainda as proposições de Ilya
Prigogine, o químico russo autor de O Fim das Certezas. Tempo, Caos e as
leis da Natureza (1996). Afirma ele que a verdade cientifica não é mais
aquela do certo e do errado, pois a incerteza é uma propriedade do uni-
verso e própria da existência humana. Como afirma: A vida é o reino do
não linear, da autonomia do tempo, é o reino da multiplicidade das estru-
turas. (PRIGOGINE, 2006 p. 33-35). A incerteza conceitual assim é
fundante no pensamento e a multiplicidade de estruturas pertence a todo
fenômeno. Esta incerteza conceitual vai atingir em cheio a nossa compre-
ensão do melodrama e aquelas feitas anteriormente.
Se Prigogine e Toulmin já não tivessem feito o bastante para compli-
car nosssa vidas neste início de século XXI, apresenta-se ainda Hans-G.
Gadamer (1900-1900) e seu conceito de presentação (Darstellung) na obra
de arte para ampliar nossa reflexão e, o mais importante, o estudo do me-
lodrama nas páginas a seguir. Há que se lembrar que a obra máxima de
Gadamer é de 1960, Verdade e Método. A arte, para Gadamer, não repre-
senta, ela não é meio para, embora possa ser considerada como. A possível
representação está contida na experiência do leitor/partícipe. Também
não possui um sentido e uma determinação per se, contrariando os pri-
meiros formalistas. Tudo o que ela quer dizer encontra-se nela, assim a
obra de arte constitui sua fenomenalidade, em si. Ela não se constitui por
ser uma intenção do autor, nem o de possuir uma realidade metafórica
outra a ser desvendada intelectualmente. Assim também não é uma
30 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

questão de forma ou conteúdo, ou forma e conteúdo. O que não quer dizer


que ela se baste, pois o participador intérprete que toma ela a seu cargo,
insere-a em seu tempo histórico, memorial e presente, em sua experiência
e em seus paradoxos. A arte é um ato de experiência.
Etimologicamente representação provém de representar, forma la-
tina de repraesentare, fazer-se presente e/ou apresentar novamente.
Assim tem-se que o representar é o que faz presente uma coisa ausente,
ou seja, temos algo que nos remete a um outro, coisa ou ideia, que se apre-
senta novamente, mas de outra forma. Este conceito carrega o de mimesis
em suas costas ou ventre. A relação do representado com alguma ideia,
sentimento ou realidade. A representação evoca a ausência e, outras vezes,
torna visível a realidade representada ou elementos dela. Há a presença e
algo que não existe. Assim o representar carrega uma visão funcionalista
da arte, mimese de um outro, oculto ou manifesto.
Chartier nos rememora uma das antigas definições de representação,
a de 1727, do Dictionnaire universel de Furetière. Segundo o Dictionnaire
se apresentavam duas acepções distintas de representação, uma que mos-
tra uma ausência, o que supõe, como afirma Chartier, uma distinção entre
o que representa e o representado; na outra perspectiva, a representação
é uma exibição de uma presença, uma presentação pública de uma outra
coisa, imagem ou matéria ou pessoa, que substitui aquela determinada
coisa (CHARTIER, 1992 [1899], p.57-58).
A imagem ou objeto presente em si é ambivalente, presença e, ao
mesmo tempo, algo que não existe, presença do que remete, presença do
que é e algo que não mais existe, presente. A imagem, ou objeto ou pessoa,
assim, é presença e algo que não existe, representação. Entretanto, a arte
não remete necessariamente a outra coisa, ela é. A arte é mais que imagem
e sua representação. Assim temos que quase tudo é imagem, mas nem
tudo. Assim como nem toda arte é imagem.
Se nem toda arte é imagem, a música por exemplo, a arte então não
necessariamente representa, ou, se quiserem, não apenas representa, sua
representação é potencial. Algumas vezes sim, representa, mas outras não.
Robson Corrêa de Camargo | 31

Uma pedra de Roseta a ser des-coberta, ou um Elstir a ser des-velado.


Como dizia Chklovsky (1893-1984), um dos mais importantes formalis-
tas/futuristas russos, ‘o propósito da arte é nos dar uma sensação da coisa,
uma sensação que deve ser de visão e não apenas de reconhecimento” (in
GINSBURG, 2001, p.16), para tal a arte se serviria do estranhamento das
coisas e da complicação da forma (idem). Ou ainda, como afirma Carlo
Ginsburg sobre a arte, citando um Proust por ele levemente modificado:
“Mesmo supondo-se que a história seja científica, ainda assim seria preciso
pintá-la como Elstir pintava o mar, ao revés (GINSBURG, 2001, p.41)”.
A arte fala mais sobre si mesmo do que aquilo que poderia represen-
tar. Ademais arte não é apenas imagem representada. Apenas a ação da
imagem ou ser imagem, de si ou de outra coisa, não define a arte, Arte,
como diria Chklovsky é procedimento, é o deslocar do sentido usual pro-
vocando-se um novo sentido, experiência de forma e conteúdo. Forma que
define conteúdos, conteúdos que definem forma, muitas vezes aleatoria-
mente. Nela, Arte, o representar de algo é dado ou modificado pelo artista
artífice e pelas diferentes experiências do leitor/espectador/participador,
produzindo-se uma nova presença. Assim arte não é, embora possa ser,
uma representação pública de outra coisa. Um cachimbo não é um ca-
chimbo, como diria Magritte (1898-1967).
Assim temos que, partindo de Gadamer, em lugar da conhecida re-
presentação (Vorstellung) para a Arte, assume-se um conceito chave na
compreensão de Arte em seu pensamento fenomenológico, a ideia de pre-
sentação (Darstellung), repetindo, presentação, conceito fundamental
desenvolvido em seu Verdade e Método. Infelizmente este termo tem sido
traduzido como representação em suas obras seja em nossa língua como
nas traduções ao francês (Pierre Fruchon), como aponta Jean Grodin1
(2007/2, p.1). O termo representar carrega um sentido que vem de algo
exterior, com o qual dialoga.

1
Jean Gondrin apresenta a obra Truth and Method, editora Continuum, Nova York como aquela que apresenta me-
lhor a tradução de Darstellung.
32 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

E o que é Darstellung? É um dizer que se revela e que se conhece por


meio do jogo da arte, um dizer que se mostra por si mesmo. A obra de arte
presenta algo completamente, em si, não é mimese de algo, não contém
algo, é realidade em si, presentada, um símbolo com múltiplas determina-
ções. Não está em questão como mímese de um real ou de um simbólico
estruturante. Arte é.... material. A Arte se realiza na relação com o outro e
na interpretação. Símbolo icônico, um ícone a ser revelado em suas multi-
plicidades, que evita receitas. A arte é uma experiência autentica de
conhecimento, um jogo autônomo que atrai os espectadores para sua ór-
bita e anuncia algo para o participador interessado em seu sentido. Como
no ato de jogar, frente a obra de arte não expressamos, mas presentamos,
somos em jogo. Compreender a arte como expressão simbólica de algo é
limitar sua existência. Gadamer quando é necessário falar de representa-
ção em seus escritos utiliza Repraesentation.
Em Darstellung, dar significa oferta, doação, poderíamos dizer ofe-
renda. Como define Grondrin, a Arte é ofertada na maneira de um jogo
autônomo que atrai participantes para a sua órbita. Grondin afirma que,
presentação, Darstellung, salienta ainda um significado ainda mais espe-
cífico no caso das artes performáticas por requerer ainda uma ação dos
performes e dos seus leitores. As artes performáticas no idioma alemão,
nos lembra Grondrin, se chamam “transitorische Künste”, artes que re-
querem uma atividade transitiva, “Darstellungskünste” (“artes de
presentação”) pois requerem atividades de trânsito, presentativas, artes
da performance. A arte primeiramente se presenta, não há trabalho de arte
sem presentação, mesmo em sua ausência, e penso aqui também na arte
conceitual, uma arte sem objeto ou com o conceito como objeto. A presen-
tação é assim um modo de ser fundamental das artes da performance, um
ato transitivo de conhecimento.
Nas artes das palavras, descreve Grondin, há a atividade da leitura,
de interpretação pelo leitor. Portanto, não há trabalho de arte, das palavras
ou das performáticas, que exista sem a performance do olhador, do leitor,
do participator, de forma geral. A arte é assim oferecida, para Gadamer,
Robson Corrêa de Camargo | 33

em modo de jogo autônomo que atrai espectadores, participantes, para


sua órbita (GRODIN 2007/2, p. 02). Grodin estabelece então vários níveis
de significado na presentação da Arte tal como definido por Gadamer,
como performance, como interpretação, como epifania revelatória e como
participação, isso em todas as formas de arte, mesmo as mais tradicionais.
Acrescento que este caráter performativo, conclusivo da arte, complemen-
tar em sua relação com o participante, é inerente a todas as formas de arte,
mesmo aquelas como a arquitetura ou a escultura ou pintura que se cha-
mam figurativas. Uma escultura de Rodin é um ato participativo, em
movimento, obriga você a olhar de vários pontos de vista, o entrar num
prédio te obriga a penetrar numa experiência sensorial. A arte é um per-
manente vir a ser, está em devir e o olhar é uma atividade também
participante.
Isto posto, nos ombros destes três pilares podemos iniciar nossa in-
terpretação, leitura, ou edificação das performances do melodrama e
contar a nossa história, a presentação do melodrama. A história das ges-
tualidades do melodrama, de seus arquétipos, paradigmas e
procedimentos que se espraiam pelo que veio a ser conhecido como melo-
drama, no circo, na pantomima, na ópera, no teatro de feiras, na dança,
no cinema, nos rádios, nas novelas. Uma categoria que liquefaz o melo-
drama em todas as artes desde o alvorecer do século XIX.

Era uma vez ...... o princípio da incerteza

Para ver as coisas devemos, primeiramente, olhá-las como se não tivessem ne-
nhum sentido, como se fosse uma adivinha (...) compreender menos, ser
ingênuos, espantar-se, são reações que podem nos levar a enxergar mais, a
aprender algo mais profundo....(Carlo Ginsburg, Olhos de Madeira, p.22 e 29)

Em 1974, o importante físico alemão Werner Heisenberg (1901-1976)


recordava uma antiga discussão que acontecera cerca de cinquenta anos
antes entre ele, com cerca de vinte e cinco anos, e o já famoso Albert Eins-
tein (1879-1955) em seus quase cinquenta. Era seu primeiro encontro com
34 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

este. Estamos agora em 1927,2 logo após o jovem Heisenberg haver apre-
sentado publicamente os primeiros postulados inovadores e ousados de
seu “princípio da incerteza”, Einstein, numa conversa reservada, levantara
objeções à teoria proposta por Heisenberg, teoria da imprecisão ou “prin-
cípio” da incerteza como foi chamada. Einstein reagira negativamente às
colocações de Heisenberg apontando que havia que se “conhecer primeiro
a teoria, ou produzir uma teoria, e então definir o que deve ser observado”.
Entretanto, pontuaria Heisenberg, “não poderia ser ao contrário?”. Em se-
guida, descreve Heisenberg ainda em suas lembranças, os dois iniciam
então uma discussão sobre como o já estabelecido conceito “órbita” impe-
dia a compreensão apurada do fenômeno da posição determinada ou do
movimento realizado pela partícula elétron. Um conceito impedindo o co-
nhecimento de algo.
Teoria versus experiência. Na mecânica quântica, como apontava
Heisenberg em sua formulação inovadora, a posição (lugar) e a (veloci-
dade) de uma partícula atômica não podem ser determinados
conjuntamente. O conhecimento de um implica, ao contrário, no desco-
nhecimento do outro, pois desestabiliza o conhecimento do outro
fenômeno, o que contrariava a teoria mecânica conhecida até aquele mo-
mento.
Na mecânica não quântica, até então a única conhecida, para que se
conheçesse a velocidade de um carro em movimento, o seu deslocamento,
devemos iluminar este carro em dois pontos diferentes, em dois lugares
distintos e, com uma operação aritmética, conheceremos o seu desloca-
mento, sua velocidade entre estes pontos, assim, o saber do lugar
possibilitará o conhecimento de outra grandeza a velocidade, o desloca-
mento. Entretanto, esta operação complementar se apresentará em forma
contraditória na mecânica quântica. Vamos detalhar um pouco mais à
frente esta questão, é um pouco complicado.

2
http://www.aip.org/history/heisenberg/voice1.htm Quantum Mechanics. The Uncertainty Principle 1925-1927.
Acesso em 25 de março de 2013.
Robson Corrêa de Camargo | 35

Era a queda de um dos últimos índices de um mundo absoluto, obje-


tivo (do objeto), científico, que existiria independentemente de quem o
observava. Com Heisenberg o conhecimento obtido pelas ciências chama-
das exatas definitivamente se conheceu como relativo. Inexato. Einstein
também já relativizara o tempo, pois este não era único, há, para ele, um
tempo determinado pela nossa percepção terrena, um tempo no espaço e
um tempo-espaço, um aqui e outro acolá, diferentes e conviventes, este
absorve forças e registra variáveis de região a região. Mas então logo se
convencionou que haveria um tempo em nosso planeta e um tempo fora
de nossa órbita, múltiplo, tempo-espaço.
Se não existe mais o tempo para que se conheça determinado mundo
em suas especificidades, há que conhecê-lo então no ato pela experiência,
pois os tempos são. Um tempo de muitos tempos, material excelente para
a ficção científica. Agora, com o princípio da incerteza de Heisenberg, um
grau de "incerteza" maior foi colocado na equação de Einstein, pois o pró-
prio conhecimento obtido no ato de conhecer interfere no mundo, o
modifica, enquanto o conhece. Se se conhece então pela experiência e a
realidade manifesta-se no ato de conhecer, o conhecimento, pasmem, ma-
nifesta-se na matéria, e interfere na própria matéria. Matéria como
conhecimento, conhecimento na matéria. Como a paixão, torna belo o que
vemos. A ideia ou o conceito ou o conhecimento agora se constrói no diá-
logo com o objeto que se conhece, é coproduzida, na discussão com a
cultura e com o objeto observado. Com Heisenberg, a theoría, ação de exa-
minar, de “consultar os oráculos” em forma objetiva, mas também
intuitiva, agora modifica o seu objeto, e encontra-se no objeto-conheci-
mento como matéria.
Mas e o que isto tem a ver com o teatro ou o melodrama, nosso foco?
Este diálogo acima contado entre dois grandes ícones da ciência mo-
derna recorda-me um trecho de outro, o diálogo das personagens Pozzo e
Vladimir, no segundo ato de Esperando Godot (1953), de Samuel Beckett
(1906-1989), texto que tive o prazer de encenar em 1995 e em 2006 e quem
sabe em outra oportunidade. Afirma, o agora cego Pozzo, de forma
36 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

contundente a Vladimir, “não me questione! O cego não tem noção do


tempo. As coisas do tempo estão escondidas também para eles”. Ao que
Vladimir responde imediatamente, na costumeira ironia beckettiana: “Que
coisa engraçada! Eu jurava que era o contrário”.
Bom, não precisamos explicar o inexplicável Godot, nem escrever ne-
nhum ensaio sobre a cegueira, mas precisamos entender um pouco desta
“lei” da incerteza gerada nas entranhas da ciência e entender como ela
modifica nossas certezas sobre o que são as coisas não quânticas, pois este
é o reino que estamos aqui conhecendo. Logicamente, o que me interessa,
como artista e acadêmico, na discussão apresentada pelo físico Heisen-
berg, ao introduzir a incerteza como dado contido na resolução de um
problema e no problema, não é certamente a imprecisão incorporada ao
fenômeno das micropartículas.
A incerteza já fora agitada pelos surrealistas que a chamavam de
“acaso criativo”. Muito criativos estes surrealistas, nomearam a um proce-
dimento do sujeito seu processo de criação “surrealista”. O acaso criativo
não era comumente encontrado no processo de conhecimento, embora
muitas descobertas da ciência tivessem vindo com o "acaso", como foi de-
monstrado na descoberta da penicilina em 1928, um ano depois da
conversa aqui citada de Heisenberg-Einstein e também na descoberta dos
neurônios espelhos em 1994, em Parma, Itália. Entretanto, o que importa
aqui é se perceber, na chamada “ciência”, o reconhecimento de que o ato
de conhecer determina uma mudança também naquilo que se está a co-
nhecer, contrariamente ao que se entendia anteriormente, com o
conhecimento e o desconhecimento, estando estes à parte do objeto. Nesta
visão lá estaria o objeto cheio de suas certezas a serem descobertas e nós
aqui quebrando a cabeça para entende-las. Entretanto, a natureza atômica
se mostra dependente da ação humana em sua busca de conhecimento,
mostra-se o conhecer nesta ação e só pode ser conhecida por meio desta
ação. O sujeito encontra-se no objeto e o objeto só pode ser conhecido na
ação do sujeito que o modifica. Não existe o objeto sem o sujeito. Explico
um pouco mais para que o leitor não perca a paciência com este autor.
Robson Corrêa de Camargo | 37

O princípio da incerteza de Heisenberg aponta que não podemos de-


terminar com precisão e simultaneamente a posição (o lugar) e também o
movimento (a trajetória, a velocidade de deslocamento) de uma partícula
atômica, pois um indetermina o outro, ou conhecemos o lugar atômico ou
a velocidade do objeto, o conhecer de um impede o outro. Lembre-se, a
razão da incerteza encontrada por Heisenberg se apresenta no processo de
busca da grandeza das partículas ínfimas do átomo. Não é um problema
de maior ou menor precisão do aparato utilizado nas medidas ou observa-
ções, mas sim determinado pela natureza e interferência da matéria, da
luz e do sujeito que o observa no objeto, nesta minúscula operação de co-
nhecimento.
Vejamos em nível quântico, as dificuldades de medir a posição ou
deslocamento de um ínfimo e invisível elétron em movimento. Para tal
precisamos vê-lo e, para isso, temos de iluminá-lo, entretanto, ao iluminar
nosso pequeno amigo este recebe a transferência da energia da luz em seu
corpo, o que modificará sua velocidade, tornando impossível determinar
seu lugar e movimento com “precisão”, pois ele não estará mais onde de-
veria, pela ação daquele que o iluminou. Podemos apenas nos aproximar
do conhecimento do lugar ou da trajetória, de um ou do outro. O conheci-
mento de um desconhece o outro, se o iluminamos o conhecemos, mas
modificamos aquilo que queríamos conhecer, seu lugar ou movimento.
Ao iluminar este sujeito quântico rebelde, para perceber o seu lugar
ou sua trajetória, o deslocamos; resta identificar o lugar que estava ou o
que poderia estar senão o tivéssemos iluminado ou então qual será o seu
movimento neste processo. Este princípio paradoxal proposto por Heisen-
berg se aplicaria tão somente ao mundo atômico, uma vez que a energia
do fóton (partículas da luz) transferida para um corpo macroscópico, um
automóvel por exemplo, não seria capaz de alterar sua posição. Assim, ao
se conhecer algo atômico, minúsculo, se determina uma mudança naquilo
que se quer conhecer pela ação do sujeito que o está a conhecer. Neste
caso, o conhecimento gera uma nova realidade que se recusa a ser conhe-
cida sem a participação de um sujeito iluminando, iluminado, pois
38 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

precisamos iluminá-lo para conhecê-lo e, a menos que se calcule a interfe-


rência do sujeito e da matéria adicionada, não se conseguirá chegar a uma
resposta aproximada. E o resultado irá se apresentar pela interferência do
sujeito que o observa, mas de outra forma. Objeto com sujeito, no sujeito
do objeto.
Há que se trabalhar assim com o grau de incerteza da operação que
se propõe, para se tentar chegar a uma possível resolução de conheci-
mento, seja da posição de um objeto ou de seu movimento aproximado.
Solicita-se uma necessária imprecisão para que se consiga uma maior pre-
cisão. E o que é pior, não se pode conhecer os dois simultaneamente
(posição e movimento), pois na medida em que se aumenta a precisão de
um, perde-se a precisão de outro, pois o átomo é um sujeito hiperativo. Há
aqui a constatação “científica” da impossibilidade de separação do obser-
vador da natureza, pois o “distúrbio” causado pela observação é imanente
à detecção do fenômeno. Para o leitor atento, podemos identificar aqui se-
melhanças com o conceito de presença na Arte, tal como afirmado por
Gadamer. O átomo é, não representa.
Assim entendida, esta incerta formulação atômica pode ser transpor-
tada para o reino ainda mais inconfortável da análise da produção
simbólica. Não se pode, nesta produção, e não se deve nela separar o su-
jeito do objeto, o objeto contém o sujeito entranhado em matéria e
sentimento (SUSANNE LANGER) em todos os níveis, atômicos ou não. E,
o pior, são dois sujeitos em um, um que estabelece a resolução e o outro
que a percebe. Não existe cruz sem crente.
Caso nosso leitor, de quem não consigo me separar, não esteja enten-
dendo o raciocínio aqui exposto, sugiro uma metáfora mais simples para
facilitar a sua lida. Tempos atrás tive uma ótima cozinheira, Lúcia, que se
recusava a experimentar a comida enquanto a preparava, ela a experimen-
tava apenas à mesa, ao mesmo tempo que comíamos todos juntos, e olha
que cozinhava bem a menina. O resultado final era geralmente uma sur-
presa boa para todos, inclusive para quem a preparara. Em muitos anos
nunca havíamos tido problemas com este hábito estranho a uma
Robson Corrêa de Camargo | 39

cozinheira, até o “dia da sopa”, inesquecível. Dia frio, impossível no cer-


rado quente, sopa de feijão que adoro, mas neste dia o saleiro cheio parecia
haver caído dentro da dita, intragável. Encontrara-se nela, sopa, o desejo
reprimido de uma boa sopa desestabilizado pela luz do saleiro esvaziado.
É impensável, nesta situação, ao levar a colher a boca, pensar uma sopa
sem imaginar o cozinheiro que a preparou ou o sujeito que a consome,
mesmo na mais deliciosa sopa. O paladar e os sujeitos estão inseridos neste
objeto. Só existe uma sopa salgada porque a experimentamos, sem o nosso
paladar o ato de “sopar” a sopa salgada a torna inexistente e insossa,
mesmo temperada a contento. Conhecer uma sopa, boa ou salgada, inclui
o seu lugar, o deslocamento, o sujeito que a prepara e a experimenta, nossa
expectativa e a quantidade de sal nela atirado. Seja esta uma sopa salgada
na minha casa, a feita pela encantadora Lúcia, ou aquela da casa da minha
mãe ou a do restaurante tal, ou aquela sopa de cebola das antigas madru-
gadas do Ceasa de São Paulo, todas são submetidas a mesma lei, da
interesecção do sujeito com o objeto.
Neste exemplo pessoal não estamos mais em nível subatômico, pode-
mos perceber a posição e o movimento, entretanto, o excesso de sal (ou a
falta dele) pode levar a que nos movimentemos em diferentes direções,
inesperadas. Já foi dito por Fernando Pessoa (1888-1935), o poeta portu-
guês: “Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la. E comer um fruto é saber-lhe o
sentido” (ALBERTO CAEIRO. O Guardador de Rebanhos, 1911/12), nesta
relação, as sensações e o pensamento estão nas coisas e no sujeito, não
separadas. Não há objetos sem pensamentos ou sensações, o conhecer está
no objeto, podemos conhecê-lo apenas na interferência, e isto também em
nosso sistema macroscópico, se tiramos ou adicionarmos sal, o gostar, mo-
dificamos a percepção de espaço e/ou do tempo. Para dizer de outra forma
a matéria esta impregnada de sujeito.
Isto posto, vamos nos debruçar primeiramente sobre a incerteza e os
paladares do melodrama, mas analisando, com certeza, primeiramente os
conceitos que o procuram definir, entretanto, procurando reparar tam-
bém na sua prática. Também neste caso o lugar até agora conhecido do
40 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

melodrama impede o conhecimento do seu deslocamento, como em Eins-


tein e Heisenberg o conceito, tal como desenvolvido até o momento,
atrapalha o entendimento do fenômeno.
O melodrama é uma forma de arte que pertence originalmente ao
drama, ao teatro. O teatro não é um prédio (um lugar), também não é uma
técnica determinada de elaboração dramática que tem conflito, começo,
meio e fim, ou aquele drama que pertence a um determinado país, ou ape-
nas um texto teatral escrito para ser apenas lido, sem a possível
presentação, seja feito na Commedie Française ou nas feiras francesas.
Tudo isto pode também ser teatro e acontecer no teatro, mas citando Vla-
dimir de Samuel Beckett digo, “eu juro que é o contrário”.
O teatro é o lugar do acontecer das ambiguidades, simbólico, icônico,
onde as coisas retêm mais de um sentido, seu nome já define esse processo.
O vocábulo grego théatron estabelece o local físico do espectador, não o do
palco, mas o do “lugar aonde se vai para ver”, e onde, simultaneamente,
acontece o drama como seu complemento visto, simultaneamente real e
imaginário. É um termo relacional, envolve palco e plateia e o movimento
do olhar. Lugar e movimento duplicado em seus espaços-tempos, ao
mesmo tempo Tebas e nossa comunidade local, Verona e o teatro pul-
guento que determinada prefeitura se recusa a reformar, nos sentando
numa cadeira quase quebrada, ou ainda na Broadway, onde um bilhete
barato colocou-me estranhamente frente a uma coluna que tampava a vi-
são da cena. Pelo que se vê, o teatro como definição, já para os gregos, não
era apenas um lugar, era muito mais importante como ponto de vista em
movimento, “lugar aonde se vai para ver”, do olhar especial, qualificado,
indolente. O olhar transitivo, que preenche, mais importante que a descri-
ção detalhada do que acontece esquematicamente em seu tablado ou de
como acontece. O nome fala mais que qualquer poética. Um olhar que as-
sumidamente interfere em seu objeto, do sujeito no lugar e no movimento,
e lhe pertence. Os gregos já entendiam o olhar do espectador inserido
neste objeto, pois não há teatro sem aquele que o olha, não se pode separar
Robson Corrêa de Camargo | 41

o sujeito do objeto, pois o olhar não se contém naquele que olha. O “objeto”
de arte contém o olhar.
O apresentado no palco só pode ser entendido pelo olhar público, pois
ele é imaginado de outra(s) forma(s) pela plateia. A audiência vê o que não
se vê e finge não ver o que se vê. O teatro, mais que ser um lugar público
onde se percebe, é o lugar condensado e transitivo das vivencias das am-
biguidades e dos paradoxos, onde as coisas apresentadas ao vivo são
tomadas e apresentadas em mais de um sentido. Lugar de deslocamento.
Não é apenas o realismo de certa fase do Teatro de Arte de Moscou ou das
cenas efêmeras de Ariane Mnouchkine, pois ele sempre estabelece realida-
des múltiplas e nunca “reais”. Nesta arte ao vivo há várias duplicidades,
uma bem reconhecida, o ator/personagem, outra, a real e a representada
da história que se conta, e ainda outra, pouco falada, pelo seu grau intenso
de incerteza incorporada, do espectador/personagem, sim pois a persona-
gem não está contida no palco ela se incorpora na relação palco e plateia.
A Enciclopédia Britannica aponta a palavra teatro como derivada do
grego theaomai (θεάομαι) – olhar com atenção, perceber, contemplar
(1990, vol. 28, p. 515). Theaomai não significa apenas ver no sentido co-
mum, mas sim ter uma experiência intensa, envolvente, meditativa,
inquiridora, a fim de descobrir o significado mais profundo; uma cuida-
dosa e deliberada visão que interpreta seu objeto (Theological Dictionary
of the New Testament, vol.5, p. 15,706). O espectador vivencia assim per-
sonagens às quais mimetiza, por semelhança ou diferença, identificando-
se com os heróis e repudiando-se os vilões ou vice-versa. O olhar no objeto,
do objeto, contido no objeto. Vivencia o espectador a incorporação imagé-
tica e a projeção imaginada, numa mimese de identificação e de recusa, de
negação e denegação. Vive o vilão e o herói, o covarde e o bravo. O apre-
sentado no palco é imaginado de outras formas pela plateia. Toda reflexão
que tenha o drama como sujeito precisa se apoiar nesta tríade teatral:
quem vê, o que se vê, e o imaginado. A performance do teatro é um fenô-
meno que existe nos espaços e deslocamentos do presente e do imaginário,
nos tempos individuais e coletivos que se formam neste espaço e se
42 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

movimentam, um lugar do olhar e de olhar. O sujeito no objeto e o objeto


no sujeito.
Nesta perspectiva, a arte conhece e incorpora em seu discurso, desde
a elaboração de seus primeiros esboços, o sentimento e as expectativas do
público, em sua imbricada técnica de composição. Sentimento que influi
em seu resultado. Isto podemos ver à socapa nos filmes de terror ou nas
histórias infantis, ou mesmo no propalado estranhamento de determinada
arte alemã, que se afirmava como política. Os atores e sua equipe traba-
lham para produzir a ilusão do que não é mostrado (um castelo na
Dinamarca, uma fazenda no interior paulista, o deserto de Urga) e reco-
nhecemos sua qualidade se se consegue processar esta questão nos
iludindo plenamente sobre o que estamos vendo, mesmo que seja uma
Mãe Coragem na Guerra dos Trinta Anos. Embora alguns artistas, com
certa culpa, tentem dizer que a ilusão deva ser uma verdade, que uma ilu-
são não é uma ilusão, mas uma cegueira cultural consentida, a única
realidade que o palco pode produzir ou apresentar é a que se presenta,
realidade em movimento de representação múltipla e de apresentação,
mesmo que se faça presente pela primeira vez no Museu de Arte Moderna
de Nova York, num olhar apaixonado. Ninguém vai a um museu para com-
prar pão, especialmente um artista, espera-se nele a arte, se moderna ou
pós. Então, espera-se o inesperado, como norma da tradição. Há um mo-
vimento ambíguo, o presentar e o representar que pertence ao olhar da
plateia, mais que ao do artista.
Quem vê, o que se vê e o imaginado (como se vê), interfere direta-
mente no objeto em cena, seja a carroça de Mãe Coragem ou o buraco no
muro inexistente de Sonhos de Uma Noite de Verão. O objeto artístico é
um concreto imaginado. Fazendo parte deste intenso processo de compo-
sição de suas formas, o sentimento a ser provocado pertence as suas
técnicas teatrais como o sal à sopa ou o fóton ao elétron, pois o vemos só
no escuro movido, produzido pela luz da imaginação. Se é uma comédia,
esta procura assim se estruturar e preparar situações cômicas, e assim por
diante. O espectador que a observa participa antecipadamente de sua
Robson Corrêa de Camargo | 43

composição desde seus primeiros esboços, contido potencialmente no pa-


pel ou no palco, ainda quando esta se encontre na mente confusa e ainda
pouco elaborada de um autor ou do ator que “ensaia” seus textos. Esta
experiência dada ao espectador encontra-se previamente e posteriormente
incertada (de incerteza) e insertada (de enxertada) na própria obra, como
a sopa salgada em suas delícias ou repugnâncias, dependendo da quanti-
dade envolvida. Não se separa o sujeito de seus objetos, sem ele a arte
inexiste, como uma sopa sem aquele que a irá comer. O teatro, tanto em
seu lugar como em seus deslocamentos, contém a luz do olhar (sentimen-
tos, respiração, vivências) do espectador e de seus autores e produtores,
em suas técnicas e seus objetos, o balcão de Julieta e Romeu, é também
uma simples escada empapelada.
O teatro é um exercício do princípio da incerteza. Um lugar em mo-
vimento. O teatro é uma vivência coletiva mediada, subjetiva (ver, sentir,
pensar, imaginar), filtrada e processada pelo pensamento elaborado e pela
retrospecção que possibilita, ao mesmo tempo, uma experiência primeira,
pois teatro também é ato. Sim, o teatro existe em quase tudo que é hu-
mano, pois este, o teatro, tem como material esta humanidade vivenciada,
elaborada. Se o teatro existe em tudo, como já afirmou Evreinov (1879-
1953), a arte se compõe pela recolha de material selecionado numa deter-
minada maneira. Teatro é mimese conscientemente praticada. Como uma
luz projeta-se, plasma, molda todos os fenômenos e é por eles projetado.
O presentado no teatro se torna elemento primeiro, experiência simulta-
neamente mediada (atores, texto, improvisação, etc.) e também
experiência sem mediação, pois Romeu e Julieta estão à nossa frente, in-
corporados. Esta vivência ambivalente e paradoxal, contraditoriamente
complementar, no presente e no imaginado, na representação e na pre-
sentação, possibilitada pela experiência no drama, requer, solicita um
requestionamento constante de seu edifício crítico, pois é experiência
única e dinâmica de vida(s) e de cultura(s). E o conhecer nele de uma
parte, nos distancia das outras e as distorce.
44 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Melodrama e o senso comum

Se o teatro perambula pelos caminhos do ser e do não ser, pois muito


dele se forma como não ser, como definir ocasionais gêneros, estilos, for-
mas, períodos, movimentos que frequentam seus espaços múltiplos? A
tarefa, neste estudo, é analisar alguns aspectos do melodrama e de seus
congêneres, marginais na história escrita, por pertencerem mais ao movi-
mento e ao gesto que ao texto escrito, mas que frequentam há muito
tempo o centro da ribalta, despercebidos.
Esta análise não é uma lida fácil, nem uma fácil lida, como vocês po-
derão ler. Frente à natureza ambígua e paradoxal do drama, como estamos
vendo, neste ato complexo e sempre público, não há drama sem plateia, o
que já por si só é um drama. Chega então a ser inapropriada a definição
usual e quase universal do melodrama, por importantes personagens de
nossa crítica, como sendo composto pela união do texto teatral com a mú-
sica, quando esta última intervém nos momentos mais dramáticos para
exprimir a emoção de uma personagem silenciosa. Logo apresentaremos
os nomes destes vilões.
Esta é uma definição limitada – como pode um ato teatral ou seu
complexo, um “gênero”, ser apenas isto, desconhecendo-se seu elemento
primevo, a relação com o público. Entretanto, porém limitada, esta defini-
ção aponta para uma das questões centrais do melodrama no teatro, e de
todos os teatros, seu fato predominantemente espetacular, performático.
O melodrama não se define por elementos da elaboração de sua história
ou estrutura, como começo, meio e fim, ou lugar, tempo e espaço, ou a
forma da resolução de sua história, com ou sem final feliz. Reconhece, a
definição anteriormente citada, embora limitada, uma das particularida-
des do melodrama, a interação de diferentes elementos no palco e, neste
caso particular, a música, a personagem interpretada e o texto, um texto
que surge também como parte do silêncio da cena, uma não fala. O melo-
drama é sim um fato eminentemente espetacular e esta é uma importante
Robson Corrêa de Camargo | 45

distinção. Há determinados textos teatrais que foram feitos sim para não
serem encenados, mas absolutamente não é o caso do melodrama.
Além desta definição carente aqui apontada, uma das razões da ex-
tensa confusão encontrada, ao tentar se entender o melodrama, é a
definição de suas fronteiras, pois, durante o século XIX, ele teve três dife-
rentes vidas ou personalidades distintas, como ópera, como texto literário
(folhetim) e como gênero teatral. No século XX surgem ainda outros ir-
mãos siameses nesta extensa família: no cinema, no rádio e na televisão.
No cinema, paradoxalmente, melodrama pode ser ambivalentemente um
filme de ação ao início do século, como um tom mix ou um zorro, ou um
cinema adocicado e amoroso dirigido a um determinado publico feminino
de meados do século. Aqui vemos dois componentes totalmente diferentes
sob o mesmo nome. Roupas usadas que vestem diferentes irmãos.
Apesar da semelhança entre os códigos genéticos e da vida promíscua
de todos os seres citados, eles se constituem em entidades autônomas, com
história diversa. Possuem o mesmo nome, como tantos Pedros, Josés e Ma-
rias, ou sobrenomes, mas não são a mesma pessoa e nem a mesma família,
talvez, a mesma espécie. Embora mantenham um intenso diálogo em sua
estrutura instável, incerta e fluída, não se deve confundi-los, são de distin-
tas órbitas. Órbitas quânticas, pois seu movimento impede a definição de
lugar e vice-versa.
Este fato nos levará a centralizar aqui neste livro o estudo no melo-
drama no teatro e não na ópera e a fugir das distinções que reduzem,
reúnem e generalizam o melodrama e seus homônimos, pois estas apenas
auxiliam a confusão que impede de conhecer e olhar claramente o seu lu-
gar e/ou seu movimento. Vamos ver isto um pouco mais de perto.
Na edição de seu Dicionário de Teatro, o importante crítico francês
Patrice Pavis (nascido em 1947), hoje aposentado, agrega mais alguns ele-
mentos à “carente” definição anteriormente citada, ao afirmar, em
verbete, que melodrama é “um gênero que surge no século XVIII”, uma
espécie de “opereta popular”, na qual “a música intervém nos momentos
mais dramáticos para exprimir a emoção de uma personagem silenciosa”
46 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

(Pavis, 1999; verbete melodrama, negritos deste autor). A personagem


Vladimir segue a repetir aos meus botões enquanto leio o verbete do res-
peitado dicionário do crítico francês, e “não poderia ser ao contrário?”.
Tentando o impossível, compendiar o melodrama em um verbete, al-
çando-o à categoria de gênero, procurando definir esta “opereta” sem
canções, Pavis ainda se associa a Rousseau (1712-1778), fazendo-o iluminar
seu dicionário o que, ao contrário, impede um melhor conhecimento de
seu lugar. Aliás, Rousseau sempre é trazido à baila para auxiliar no esta-
belecimento desta perene confusão melodramática na França. Vejamos
um pouco as questões que envolvem o enciclopedista francês e o melo-
drama, na música e no teatro.
Em um comentário escrito em 1777 Rousseau escrevera a respeito da
ópera Alceste de Christoph Gluck (1714-1787), mencionando que, nesta
obra, “as falas e a música, em vez de andarem juntas, fazem-se ouvir
sucessivamente, e onde a frase falada é de certo modo anunciada e prepa-
rada pela frase musical” (Rousseau, 1777, negritos deste autor). Estamos
ainda nos doze anos anteriores a Revolução Francesa.
Vejam que o sábio Rousseau se encontra a falar de ópera e do texto
não cantado na ópera Alceste, pois a ópera, até então, sempre fora apenas
cantada. Na França pré-revolucionária teatro era teatro e ópera, ópera,
como queriam as autoridades instituídas.
Assim Jean-Jaques Rousseau, um dramaturgo de pouco sucesso e es-
critor de libretos depois musicados para ópera, centra-se apenas na
relação música-texto, o falado e o não falado, sucessivamente. Lembre-se
que, na ópera, inaugurada para reviver o antigo teatro grego, que se supõe
cantado, havia canto e agora então percebe-se a fala alternada sendo in-
troduzida como novidade, mas isto veremos a seguir, e com mais detalhes.
Entretanto, se jogarmos um pouco mais de luz à definição aqui exposta,
Rousseau, sim um reformador da ópera, não está preocupado apenas com
a música no silêncio da personagem para definição de um novo gênero,
mas, sim, com um aspecto de sua produção, a alternância e preparação do
texto falado pela música, no momento que esta precede a fala, um
Robson Corrêa de Camargo | 47

fenômeno totalmente novo no terreno da ópera. Há, portanto, como se vê,


uma enorme diferença entre ópera e o melodrama que irá surgir no drama
de Pixérécourt. Esta simples definição roussoniana, espalhada por vários
dicionários, teses e enciclopédias pelos séculos, no país e no exterior, não
contempla esta questão, nem poderia pois o melodrama, enquanto tal iria
acontecer uns vinte anos à frente. Assim, qualquer semelhança entre o
melodrama no teatro e na ópera será apenas mera coincidência.
A relação entre música tocada e falada e o gesto dos atores e ou atri-
zes, todos componentes da emaranhada complexidade do fato espetacular
ou da textura cênica, seja na ópera ou no drama, ou ainda entre os dois,
em suas intrínsecas particularidades, é assunto que proporciona excelente
estudo. Entretanto, precisamos destacar que são dois fenômenos de natu-
reza diversa, um chama-se ópera e o outro, melodrama no teatro. Os dois
pertencem a um tempo-espaço distinto e a eles não podem ser aplicados
os mesmos cálculos para as suas avaliações, a medida de um é distorcida
pelo movimento do outro. Certamente podemos encontrar pontos em co-
mum, casos fronteiriços e mesmo algumas invasões e diálogos, porém
ambos os fenômenos se constituem em forma totalmente diversa. Somam-
se aqui tijolos com bananas.
No terreno da estrutura mesma do melodrama no drama, a respeito
de sua percepção no palco, ao se considerar o melodrama apenas como um
determinado efeito musical frente a um momento específico da persona-
gem, a sistematização de Pavis aqui citada, se correta, reduziria toda a
complexidade do gênero melodramático a apenas um dos muitos procedi-
mentos estilísticos recorrentes em sua execução. O melodrama é mais do
que isto, como veremos ao longo destas páginas. “Isto” não auxilia na de-
finição ou entendimento do que sejam as particularidades do melodrama
na cena falada teatral, foco de nosso estudo. Como veremos em seguida, a
relação música-texto apontada por Pavis como definidora do “gênero” me-
lodrama aqui em questão, era também utilizada constantemente, mas não
sempre, no teatro das feiras que o precedeu, muito antes do surgimento
do melodrama propriamente dito pelas penas de Pixérécourt. A relação
48 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

música/texto em si assim não serve então para definir nem o teatro de


feira, nem o melodrama e nem a pantomima, pois esta também aconteceu
com o respectivo texto falado. Sim a pantomima já falou e a ópera já com-
binou texto e música de distintas formas
Ora, vejam, o próprio teatro grego antigo havia desenvolvido esta re-
lação, música e texto. Assim o que seria próprio do melodrama, segundo
Pavis e outros críticos, não o define nem lhe é exclusivo. Um conceito que
impede que vejamos o fato, dramático.

Teorias da definição de gênero

Antes que os fatos se compliquem ainda mais, ou melhor, para que


os fatos se compliquem mais ainda, vamos a uma breve pausa para enten-
der algumas questões conceituais que abrangem o conceito de gênero. O
busílis, afinal, o ponto central, o cerne, ou seja, o ser ou não ser o melo-
drama um gênero e que tipo de gênero, é uma questão primordial e chave
para a discussão do melodrama na cena falada e não cantada.
Em 1949, o austríaco René Wellek (1903-1995) e o norte-americano
Austin Warren (1899-1986), parceiros em sua importante obra Teoria da
Literatura, muito influenciada por algumas teses do formalismo russo, de-
dicaram-se à análise do fato estético e estudaram a questão do gênero,
chamando a atenção para as diferenças históricas nas duas sistematizações
usualmente empregadas para a definição daquilo que venha a ser gênero,
a do pensamento clássico e do pensamento moderno. A teoria clássica, de
caráter normativo e prescritivo, estabelecia cada um dos gêneros e acre-
dita(va) que cada gênero “diferia” do outro quanto à natureza e prestígio
e assim considerava que os gêneros “devem ser mantidos separados”, não
sendo permitida sua miscigenação. Como no piano, teclas brancas são se-
paradas das pretas, mas todos entendem ser muito difícil se tocar apenas
uma delas em qualquer boa melodia.
Assim, a teoria clássica entretinha-se em procurar essências e identi-
dades construindo generalidades integrais e unívocas, portanto, ao
Robson Corrêa de Camargo | 49

discriminar diferenças entre os objetos que classificava, guardava-as nas


suas gavetas determinadas aquelas que deveriam fazer parte tão somente
de cada um deles. Não lhes interessava pontos em comum do objeto com
outros gêneros, buscavam-se apenas as diferenças. É aqui que encontra-
mos o trabalho de Patrice Pavis e de seus predecessores. Usando este
procedimento podemos agregar que, nesta perspectiva, o melodrama na
ópera, como no teatro, teve então que ser mantido bem separadinho para
evitar confusões, selecionando particularidades exclusivas de sua estru-
tura.
A moderna teoria dos gêneros, ao contrário, ainda conforme Wellek
e Warren, é de natureza descritiva, pragmática, olha o objeto tal qual, não
limita o número das espécies possíveis, nem prescreve regras gerais, ad-
mitindo misturas e surgimento de novas espécies, pois o fato estético é
diverso e múltiplo. Separa seus feijões pelo tamanho, tipo, qualidade. Em
lugar de sublinhar apenas diferenças ou semelhanças entre cada uma des-
sas espécies, interessa-se mais em buscar o que seria um possível
denominador “comum” ou pontos de intersecção encontrados para a defi-
nição daquilo que viria a ser um gênero, o que admite o reconhecimento
de miscigenações, semelhanças, justaposições (Wellek & Warren, 1955, p.
292-293). O pensamento moderno, um pouco mais amplo, interessou-se
então mais pelos pontos de semelhança encontrados e não o caráter único,
para definir a categorização dos elementos de determinado gênero. Assim,
se utilizarmos a “moderna” teoria dos gêneros na determinação da com-
plexidade do que foi o melodrama em seus mais de duzentos anos de vida
em diferentes casas de pertencimento, destacar apenas a utilização da mú-
sica e do texto como a característica determinante, seria de pouca valia.
Entretanto, a partir da reflexão apresentada por Wellek e Warren
para estes dois métodos de seleção, concluímos que não devemos seguir
nem os modernos nem os clássicos, para podermos entender profunda-
mente o melodrama, pois se a essência idealizada de algumas
características não dá conta da amplitude do fenômeno do melodrama, a
generalização moderna de suas características estende ilimitadamente as
50 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

fronteiras do objeto estudado. Interessa-nos aqui assim inicialmente o en-


tendimento de alguns exemplos do fenômeno em si para o discernimento
de algumas de suas qualidades e para a refutação das generalidades de
estilo atualmente existentes. As características melodramáticas não podem
ser encontradas apenas em semelhanças ou diferenças entre objetos de
gêneros dramáticos, mas também na dinâmica relação que estabelece com
a teia cultural que a envolve e em suas múltiplas determinações.
Seja como for, ficamos inicialmente com a síntese de Wellek e War-
ren, quando afirmam que a teoria dos gêneros deve ser considerada
apenas como “um princípio ordenador” (Wellek & Warren, 1955, p. 282)”,3
não mais que isto. Esta síntese evitará uma polêmica desnecessária, e já
bastante desenvolvida, que exige refletir se o melodrama deverá ser in-
cluso no limitado panteão dos gêneros clássicos precedentes, no caso a
tragédia e a comédia, sendo aquele, neste caso, uma intromissão ou “de-
generação” tardia da citada tragédia, ou mesmo discutir se existirá tal
lugar onde ele deva ser colocado.
Há que se citar uma dificuldade extra na análise do fenômeno teatral,
há uma profusão de análises dirigidas ao texto teatral escrito e apenas uma
pequena quantidade tem como objeto a apresentação em sua dimensão
simbólica diante da plateia, embora esta forma de análise tenha se multi-
plicado recentemente. Essa insuficiência é compreensível, pois é muito
mais fácil compreender o texto dramático na individualidade de uma lei-
tura, no livro ou no palco, dentro de uma relação de recepção leitor-texto,
do que na complexa tarefa de acompanhamento dos fatos espetaculares
que se apresentam múltiplos ante a variedade múltipla de nossos olhos,
pele e ouvidos, em dias sucessivos e distintos. Por fatos espetaculares re-
conhecemos toda a teia de presentação e representação, seja textual ou
não, impressa, sonorizada ou falada, pois o texto não fala sozinho, sem
uma ocupação no espaço e na memória, e mesmo em sua forma impressa.
Neste caso a palavra-tinta, no texto impresso, está grafada estaticamente

3
Sobre outros aspectos da polêmica dos gêneros, ver Pierre Bourdieu (1930-2002) em A Gênese Histórica da Estética
Pura, Bourdieu 1996, p. 320-347.
Robson Corrêa de Camargo | 51

em seu suporte papel, como que adormecida, modorrenta, remanente.


Cabe ao crítico-leitor-espectador, neste processo apalavrado, despertá-la,
e despertando-se examiná-la como um voyeur, antes e depois de sua inva-
são nos domínios da mente ou da paixão. Não existe apenas o texto ou as
textualidades a serem degustadas. Diante deles, texto e textualidades,
existe um espectador num tempo-espaço histórico. Como exemplo, pode-
mos lembrar a montagem de O Interrogatório de Peter Weiss, texto e
montagem de 1965, sobre o julgamento da ação dos nazistas no campo de
concentração de Auschwitz que acontecera recentemente. O julgamento se
dera entre os anos 1963-1965, com a condenação merecida dos nazistas.
Em 19 de outubro esta mesma peça que reproduzia partes do julgamento,
será encenada por diferentes diretores na Europa, Erwin Piscator entre
eles, ao mesmo tempo, e em diferentes concepções, em 12 diferentes tea-
tros das Alemanha oriental e ocidental, e também em Londres, pela Royal
Shakespeare Company, sendo convenientemente recusado pelo Berliner
Ensamble. Muitos interrogatórios do mesmo Interrogatório. Imagine-se
um café onde se encontrem o espectador de Piscator, com o da Royal, dis-
cutindo o espetáculo.

Teatralidades: o prazer do espetáculo e do texto

O que é a teatralidade? O jovem Roland Barthes (1915-1980), em


1954, em seus quase 40 anos, respondia a esta questão de forma bem sim-
ples, numa síntese muito repetida por muitos autores: “é o teatro menos
o texto, é uma espessura de signos e de sensações que se constrói em cena
a partir dos argumentos escritos” (Le Théâtre de Baudelaire, Essais criti-
ques, Seuil/Points, 1981 (1954), p. 41).
Mas esta subtração, o teatro menos o texto, útil numa perspectiva
didática, detectada por Barthes inicialmente para apontar uma distinção
dinâmica entre o texto dramático e a sua representação ou incorporação,
traz implícito um processo de adição, a teatralidade que se adiciona ao
texto, como se estas fossem duas entidades independentes. Entretanto
52 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

pergunto, existe no teatro texto sem teatro, ou sem teatralidade, ou ainda


teatralidade sem textualidade? Parece a pendenga do princípio da incer-
teza, espaço e deslocamento. Nesse caso, a teatralidade simbólica seria
construída, adicionada posteriormente, apenas a partir de argumentos
previamente escritos, mas o teatro tem outras vias. Esta afirmação de
Barthes merece algumas considerações, antes que nos aprofundemos nela.
Voltemos um pouco às origens do processo reflexivo ou conceitual
sobre o teatro. Afirmava já Aristóteles sobre a trama espetacular ao final
de sua Poética, de forma um pouco mais complexa, sobre o espetáculo te-
cido no texto, contido no texto e não após o texto ou além do texto.
Afirmava (1462a, p. 12): “[. . .] Mas a Tragédia é superior porque contém
todos os elementos da Epopeia [. . .] e demais, o que não é pouco, a Melo-
peia e o espetáculo cênico que lhe acrescem a intensidade dos prazeres que
lhe são próprios. Possui, ainda, grande evidência representativa, quer na
leitura, quer na cena (EUDORO de Souza, 1992, p. 147)”.4 Como se sabe a
melopeia era a parte musical do texto.
A superioridade espetacular contida e duplicada, reconhecida desde
Aristóteles, sua potência e evidência presentativa, se afirma por este ser
espetáculo, símbolos e sensações, tecidos no texto e não acrescentados ao
texto, contendo já em suas entranhas seus afetos e prazeres. O texto dra-
mático, nas anotações de Aristóteles e na tradução acima, de Eudoro de
Souza, contém a sonoridade musical e a cena, “o que não é pouco”, desta-
cando-se a “evidência representativa” que adensa seus efeitos.
Acompanhem agora outra tradução desse mesmo trecho final aristotélico,
agora na clássica edição trilíngue de Valentín Garcia Yebra (Editorial Gre-
dos). Sobre a visibilidade da tragédia, seja na leitura ou na representação,
Yebra/Aristóteles afirmam e ampliam nossa percepção:

Além disso, a tragédia também sem movimento produz seu próprio efeito, as-
sim como o épico, pois só com a leitura você pode constatar sua qualidade.
Portanto, se no demais é superior, assim não necessita que o espetáculo

4
Aristóteles. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: ArsPoética, 1993.
Robson Corrêa de Camargo | 53

aconteça. Depois, porque tem tudo o que o épico tem (porque também pode
usar o seu verso), e ainda, o que não é pouco, a música e o espetáculo, meios
muito eficazes para o encanto. Além disso, tem a vantagem de ser visível na
leitura e na representação (YEBRA, 1992, p. 237, tradução do autor).

Además, la tragedia también sin movimiento produce su proprio efecto, igual


que la epopeia, pues solo con leerla se puede ver su calidad. Por tanto, si en lo
demás es superior, esto no es necesario que se dé en ella. Después, porque
tiene todo lo que tiene la epopeya (pues también puede usar su verso), y toda-
via, lo qual no es poco, la música y el espectáculo, medios eficacíssimos para
deleitar. Además, tiene la vantaja de ser visible en la lectura y en la represen-
tación (Yebra, 1992, p. 237).5

Yebra, em sua leitura, destaca a qualidade da tragédia que, mesmo


podendo ser apenas lida, sem conter fisicamente o movimento da cena,
tem primeiramente um efeito semelhante à da epopeia e uma teatralidade
e um movimento que se torna visível tanto na leitura como na represen-
tação, em sua existência. Contém assim tudo o que contém a epopeia e,
"o que não é pouco", a música e o espetáculo, meios fundamentais para o
deleite, meios visíveis. Dupla visibilidade, uma das marcas da sua superi-
oridade, afeto em que se encerra. Ou seja, Aristóteles/Yebra reconhecem
que a tragédia tem visibilidade dupla, ou dupla natureza, leitura e apre-
sentação.
A teatralidade conceituada por Barthes tem um aspecto positivo, o de
identificar a espessura de signos e de sensações, mas estas estão contidas
no texto, não são adicionadas ao: a teatralidade é a espessura de sensações
e signos que emana do texto no texto. Vulcão e lava, não podem ser sepa-
rados, pois não há vulcões sem lava, mesmo numa fotografia, estão lá
potencialmente.
O espetáculo teatral é de natureza particular, não apenas único a cada
apresentação, como coletivo e volátil, sucedendo-se num encadeamento
múltiplo e infinito de “aqui(s) e agora(s)” de cena(s) que se completa(m)
publicamente até o cair do pano desta atividade social. Após o término

5
Aristóteles. Poética. Trad.ValentínYebra. Madri: Gredos, 1992.
54 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

daquela determinada função continuará também parcialmente manifesto,


residual, na memória-imagem de cada um, precisando ser recuperado e
reagrupado a cada momento, para que se possa abraçá-lo como momento
revivido. Cria-se a ilusão de que o que vimos foi definitivo, enquanto no
dia seguinte outro público e outra presentação (semelhante talvez, mas
não completamente igual) será levada a cabo. Como espectador individual
olhamos uma cena, uma bela atriz ou ator, um gesto, rimos de uma piada,
enquanto trocam-se marcações, gestos, olhares e luzes em pontos que es-
capam à nossa recepção individual. Nesta complexa realidade semiótica,
diante do espetáculo em apresentação ou ao finalizado, o texto será assim
sempre a via segura que auxiliará a determinar os possíveis caminhos de
análise, uma ilusão de unidade e coerência da teatralidade contida e po-
tencial.
A crítica genética pode nos ajudar no tratamento do fato espetacular.
Ela é conhecida por problematizar o papel do texto literário publicado, por
“demolir” o estatuto soberano deste texto impresso e abrir as suas possi-
bilidades de observação utilizando-se de todas as versões e notas feitas pelo
autor anteriormente à publicação deste texto: o prototexto ou avant-text.
Ao colocar em discussão toda a pré-escritura realizada tendo em vista
a publicação de um determinado material, a gênese de um texto impresso,
suas variantes, os caminhos e descaminhos percorridos pelo autor no pe-
ríodo de gestação, esta crítica dessacraliza o que seria o texto “final” único,
divino, publicado. Neste processo de contrastar o texto em elaboração, em
processo, em gestação, questiona-se o texto "final" experimentado, ao re-
velar as artimanhas, artifícios, escolhas e esquecimentos do autor na busca
de um possível termo final. E, reciprocamente, coloca em xeque as dife-
rentes versões publicadas de um mesmo trabalho, ao apontar diferenças
entre elas, expondo o definitivo de um determinado texto: sua indetermi-
nação. O que permanece é o movimento, prenuncia um adágio zen.
O prototexto, como é chamado pelos geneticistas, todo manuscrito
que antecede a publicação de determinado texto escrito, pois ainda esta-
mos no terreno do texto escrito, da literatura, mas este também pode ser
Robson Corrêa de Camargo | 55

não apenas um manuscrito (do latim, manuscripto), que pertence à fase


dos rudimentos escritos pela mão do autor em direção ao produto final
(frases, desenhos, poemas, etc.), mas também manucollage, manu recorte,
ou seja, coletas de elementos da cultura visual ou auditiva feitas por cola-
gem ou recorte, que favorecem a construção da cena escrita teatralizada,
a apresentada ou a da personagem. Considerando-se o teatro e sua per-
formance, a crítica genética o encontra em constante devir, o produto final
reelabora-se, constantemente a cada apresentação.
Assim, o fato espetacular transcende o texto, pois nele o texto está
incluso e não é gerado unidimensionalmente por ele, mas com ele dialoga
em suas distintas camadas, criador e criatura. Como bem sabem os atores
e diretores, e veremos isto nos capítulos a seguir, os textos escritos contém
textos de imagens atuadas, e também não textos, gestos e olhares, que
contradizem inclusive a cena falada e escrita. Assim, todo e qualquer ele-
mento figurativo ou sonoro introduzido na elaboração escrita da obra final
pode fazer parte desta composição do fato espetacular. Ora, esta coleta em
gênese, que ocorre na composição do texto que será ou está sendo escrito,
junta elementos visuais, sonoros, cacos de imagens, lembranças, poesias,
sons, vivências pessoais significativas vividas ou construídas, que, direta
ou indiretamente, podem estar ligadas à construção da personagem, do
cenário ou da cena que se está elaborando. Estes elementos antecedem a
obra teatral em sua apresentação pública, fazendo parte da composição da
personagem e da cena ou, para usar um vocábulo específico do meio tea-
tral, compõem a “partitura" da escrita da personagem e de seu locus:
notas, esboços, rascunhos, desenhos, recortes, canções, figuras, gestos,
pausas, olhares, mapas que, juntamente com o texto escrito “original”
constroem a representação do ator e da cena, mas que escritos serão ape-
nas registros indiciais, como um pequeno osso remanente de um grande
dinossauro ou crânio já inexistente. A teatralidade é o dinossauro vivo e a
humanidade em suas várias versões. O osso evidencia sua existência que,
como um texto teatral escrito, pode apenas ser completada, projetada, mas
é irrecuperável enquanto originalidade. O texto no teatro é sempre um
56 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

momento de passagem, um fragmento a nos devorar, um perfume a es-


praiar sua essência.
A crítica genética tem instigado a análise da relação entre o texto es-
crito publicado e seus originais pré-existentes (pré-textos e pretextos).
Forma-se assim um arquitexto (GENNETTE, 1989), composto por este
conjunto de textos que se adicionam e se negam, texto publicado e de seus
antecessores, diferentes versões. Camadas que se compõem, dialogam,
contrastam e/ou se contradizem. Se a crítica genética, por um lado, se de-
dica à importância do texto publicado e de seu processo gestacional, por
outro, amplia o valor dos textos que o originaram. Esta revalorização do
texto publicado ou "final", em contraste com seu processo de elaboração
apresenta o produto final como um trabalho árduo de seleção e negação
de palavras, ideias, imagens…, que vão sendo desveladas e faz surgir assim
um fato espetacular maior e mais complexo, onde se reconhecem as sen-
das e os textos e imagens preliminares que foram produzidos, revelando
ou apontando a gênese e sua estrutura.
No caso do drama, não temos apenas o texto final impresso questio-
nado agora pelo que lhe antecede em forma impressa, mas o espetáculo,
que, por carregar relação dinâmica entre produto e processo, se constrói
em permanente estabilidade instável e, como Proteus, constantemente
modifica sua forma. O arquitexto evidencia um processo de relação, afir-
mação e denegação que resulta no texto escrito e no fato espetacular,
escritura teatralizada dada a público num processo dialógico. Arquitexto
que, colocado como pano de fundo, cortina de frente, panorama para a
execução da obra, age como reagente, trazendo para a ribalta os compo-
nentes que a originaram, pondo em tela o processo criativo. Este processo,
se aplicado à análise do espetáculo teatral, revela os elementos urdidos que
o fizeram surgir. Estes elementos recônditos, colecionados pelos atores e
artistas durante a constituição de um espetáculo, e a muito custo procura-
dos num processo de ensaio, vão aparecendo como muletas e amuletos
que soerguem o edifício espetacular.
Robson Corrêa de Camargo | 57

Este processo de desconstrução e construção do texto escrito final,


denunciado pelos críticos geneticistas, é de grande valia para a análise do
fato espetacular no teatro. Este existe em dois níveis, um no âmbito da
escritura da própria obra em seus vários contextos e outro nas várias di-
nâmicas que se estabelecem no(s) processo(s) de montagem, processo fácil
de ser compreendido por aqueles que produzem cinema, teatro, perfor-
mance, pois o conceito de obra final, neste campo, sempre teve algo de
muito instável e remodelar. Vamos a alguns exemplos: nos tempos iniciais
do cinema mudo era comum, nos EUA, filmarem-se os curtas com duas
câmeras, uma para uma versão europeia e outro para a norte-americana,
muitas vezes com finais distintos. Muitos clássicos do cinema, que supo-
mos serem únicos, têm diferentes versões para diferentes culturas ou
mídias; por outro lado, antes do projetor de películas ser motorizado, cada
projecionista rodava o filme numa velocidade distinta, assim como os do-
nos das casas de projeção, após o reconhecido sucesso de determinada
película colavam e montavam os filmes entre si, fazendo de cada filme
novo uma experiência única para ser vista naquela casa teatral; era um
tempo em que o cinema assemelhava-se muito ao teatro na singularidade
da apresentação.
Almuth Grésillon, uma das iniciadoras da crítica genética, traz duas
definições importantes para entendermos o caráter instável do texto tea-
tral escrito e de sua interdependência em relação à cena apresentada. A
primeira de Hegel, em sua Estética, quando este incorpora na cena escrita
o conceito de móvel vivacidade, ao colocar o condicionamento absoluto do
texto teatral à cena representada. Hegel define: quando o poeta escreve o
texto dramático, sua mente se encontra na representação e não na leitura.
Conceito este que Anne Ubersfeld (1918-2010) amplia ao definir este pro-
cedimento como de matrizes de representatividade inseridos no texto
dramático escrito. A móvel vivacidade hegeliana ou as matrizes de repre-
sentatividade de Ubersfeld descrevem as estruturas do espetáculo
potencialmente presentes no texto escrito desde seus primeiros esboços
registrados no papel, mesmo que o texto nunca venha a ser encenado. Em
58 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

face a estas duas contribuições, de Hegel e de Ubersfeld, Grésillon consi-


dera que o texto teatral, durante a sua escritura, percorre caminhos
aproximados aos do texto de prosa ou poesia (Grésillon, 1995, p. 270-271),
adensados se se considerar que o texto escrito teve seus antecedentes na
cultural oral, como também o próprio teatro. O que vemos é que o texto
teatral carrega uma ambiguidade receptiva, feito para ser lido pelo
ator/leitor e também para ser representado, ou ainda, possibilitando a re-
presentação pela sua múltipla leitura. Carregado, prenhe da espessura de
signos e sensações.
Almuth Grésillon é uma das poucas geneticistas que tem se dedicado
ao entendimento do fenômeno teatral. Ela descreve, de forma ainda es-
quemática, mas muito proveitosa, a relação entre o texto escrito e sua
apresentação, ou entre o texto escrito e o fato-espetacular, como de “alte-
ridade e interdependência” entre as duas instâncias. Grésillon reafirma
uma autonomia relativa do espetáculo diante do texto teatral, acrescen-
tando que “à relativa perenidade e unicidade do texto opõe-se o caráter
efêmero e múltiplo das encenações” (Grésillon, 1995, p. 269). Admite, en-
tretanto, que o fato teatral implica ambos os aspectos, o texto e a
representação existindo numa relação de interpenetração, imbricação e
condicionamento recíproco, mas como se fossem duas coisas distintas.
Porém, desta importante análise, Grésillon destaca a hipótese que para
mim se configura como um fundamento do texto do teatro: a de que a
gênese deste texto está sempre ligada (diríamos imbricada) “de antemão,
concreta e virtualmente, à configuração de encenação” (Grésillon, 1995,
p. 270). Na verdade, o texto teatral é ligado, de antemão, concreta e virtu-
almente à configuração de encenação não como uma hipótese, mas
também como método de urdimento do texto teatral. Texto inserido em
imagens ou índices das imagens espetaculares, potenciadas ou realizadas,
este não se separa, como o osso do músculo, em um corpo vivo.
E é necessário que se acrescente que esta mobilidade, desestabilização
e abertura do texto escrito dramático é expressão do processo de constante
mudança imanente à escritura da montagem teatral. Fenômeno feito por
Robson Corrêa de Camargo | 59

várias mãos que negociam, sob a batuta do diretor – ou do diretor-autor,


como o foram Moliére, Shakespeare, Pixérécourt – sua inserção no texto-
montagem final. Aliás, poderia dizer-se que, mais que uma coautoria, o
texto cênico se compõe por meio de um processo de composição em ca-
madas sucessivas, afirmadas e negadas. Camadas estas que podem
dialogar em harmonia ou antagonismo, ou num misto que pode oscilar
numa combinação híbrida entre estes dois. Um palimpsesto6.
A prática teatral, em todas as suas instâncias, caminha no sentido da
descaracterização inicial do texto escrito para inserí-lo em outra perspec-
tiva, mesmo que esta seja a da mais fidedigna recriação. A crítica genética,
ao problematizar o reinado absoluto do texto publicado como paradigma
para a compreensão do fenômeno artístico literário, vem abrir portas que
podem ser de profícua utilidade ao exame da apresentação da cena. O texto
teatral, elemento supostamente concebido como estático, perene e pré-de-
terminado, existente independentemente de qualquer tentativa de colocá-
lo acima de um tablado, dobra-se reverente ante o construir instável da
cena teatral. Assim como, ao fecharem-se as cortinas da última represen-
tação, o texto original emergirá impassível como Fênix, coberto agora
pelas cinzas do extinto espetáculo, levando-o como troféu conquistado.
Durante algum período, o da memória dos que participaram daquela co-
munhão apresentada, não será mais o antigo texto escrito no papel que
definirá aquela peça, mas uma lembrança das imagens daquela encenação
que, como em um sonho, invadirá os olhos ocultos do leitor-espectador,
impressas agora no texto original. Como foi impresso em minhas memó-
rias, entranhada no texto, ainda hoje repercute a fala de Galileu Galilei, de
Brecht, na interpretação de Claudio Corrêa e Castro, 1968, no Teatro Ofi-
cina/SP. Reverbera ainda a voz da primeira montagem teatral que vi em
minha vida: “infeliz do país que precisa de heróis”. Não apenas Brecht, não
apenas Oficina, não apenas ditadura militar.

6
Ver mais à frente "o melodramaturgo e o drama das unidades".
60 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

No teatro, o que permanece é a natureza única de cada apresentação.


Muda, a cada dia, não apenas o ator e seu ânimo ou estado de alma, mas
também o público, um dia mais taciturno, outro dia mais alegre, outro dia
mais triste. Um dia chove, outro faz sol. Sim há que se notar, há o espec-
tador individual e o público coletivo, que se comporta quase como uma
unidade. Um pequeno suspirar antes de uma fala acrescentado por um
ator a uma nova representação é o suficiente para transformar o feito te-
atral em uma nova edição do mesmo espetáculo, não uma errata de um
livro, que não modifica o livro, mas apenas o corrige.
Esta relação contraditória e complementar texto-espetáculo tem sido
pouco desenvolvida. Ignorar o fato espetacular teatral no estudo do teatro
significa ignorar as mudanças sucessivas e intensas da encenação nos dois
últimos séculos. No teatro, a mise en scène é imprescindível, a presença
isolada do texto escrito não configura o teatro, embora possa ser de valia,
como uma foto ou vídeo de um determinado espetáculo, ou uma foto de
nossa casa de infância. A construção da narrativa teatral se dá na colisão
do intertexto teatral previamente estabelecido com sua necessária presen-
tação, quando se justapõem estas novas características. O enriquecimento
das palavras-imagens e das imagens-palavras será concretizado no seu
eixo de presentação, no seu terreno de embate, o palco (que pode ser rua,
hospital, um passeio medieval). É aí que se criam os novos sentidos, num
processo sucessivamente metafórico e metonímico, no qual podem ser re-
encontrados os sentidos esquecidos e renovados da tradição histórica.
Maneiras utilizadas pela linguagem teatral para evoluir e inovar.

O prazer da performance

Para finalizar esta discussão inicial, vamos tomar outro rumo e nos
deter um pouco mais no conceito de texto. Pensar o texto teatral apenas
como um registro literário ou somatório pode levar a um grande erro. O
próprio Roland Barthes, agora com 20 anos mais daquele anteriormente
citado, em 1973, em seu O Prazer do Texto ampliava a perspectiva e definia
Robson Corrêa de Camargo | 61

(Le Plaisir du Texte), “texto é tecido” (Barthes, p. 75), 7 hifologia. Hyphos


é o tecido e a teia, no qual o texto é construído entrelaçado: “O texto [...]
não é senão a lista aberta dos fogos da linguagem (esses fogos vivos, essas
luzes intermitentes, esses traços vagabundos dispostos no texto como se-
mentes). O texto tem uma forma humana, é uma figura, um anagrama do
corpo? Sim, mas de nosso corpo erótico” (BARTHES, 2004, p. 24). Carne,
sangue, aranha e ar.
Texto, agora de forma mais clara na concepção de Barthes, não é ape-
nas o escrito, é também imagem, sonoridade, uma malha tecida em sua
origem latina, onde textum significa tecido. Na cena, é texto performado,
lido, imaginado, texto síntese, texto análise, texto espaço, texto nos tem-
pos. “Hifologia”, hypho, texto tecido e texto teia de aranha" (Barthes, p.
8
83). Tecidos de uma encenação, ruínas submetidas a múltiplas interpre-
tações. Sim, texto erótico porque prenhe de sentido e sentimento. Texto
assim é o inscrito. Nossa civilização escreve e publica atualmente em forma
massiva há menos de quinhentos anos e o texto falado tem uma história
de pelo menos mais de cem mil anos.
Voltando a Barthes: Clifford Geertz (1926-2006), o antropólogo da
Califórnia, preocupado com a cultura como forma simbólica, instrumen-
talizado pelo filósofo polonês Ernst Cassirer (1874-1945), afirmava, no
mesmo ano que Barthes, 1973, em seu Interpretações das Culturas (Inter-
pretation of Cultures), que as sociedades também se estabelecem como
“textos”, tecidos, ou em forma “análoga a textos”. Assim, a cultura e suas
interpretações se definem desde a primeira “leitura” do “texto” simbólico,
na seleção sempre arbitrária feita pelo leitor, pelos fragmentos que a com-
põe.
A leitura do fenômeno cultural ou da prática cultural como texto, te-
cido das performances culturais, se estabelece assim na percepção da troca
simbólica de códigos, das atitudes, dos gestos, dos afetos, das emoções, da

7
R. Barthes. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987.
8
R. Barthes. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987.
62 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

relação espacial, do entorno, da época histórica, como um acontecimento


que é, ao mesmo tempo, mítico, estético, ritual e social.
Afirma Geertz: “A cultura humana é um conjunto de textos” [...] e
pontua “onde se deve conhecer por sobre os ombros daqueles a quem esta
cultura pertence” (Geertz, 1973, p. 452). Este entendimento carrega tam-
bém uma metodologia, pois o fenômeno cultural se apresenta como uma
malha, entretecida, e, ao se focalizar apenas um fio ou palco isolado perde-
se o tecido e a tela, este fio solicita um diálogo amplo e denso com o fenô-
meno em sua tessitura geral. Parafraseando Geertz podemos afirmar que
o teatro é um sistema simbólico que se estabelece como uma "teia de sig-
nificados" em que não há uma ciência em busca de "leis", mas um (ou
mais) intérpretes em busca de significados. No teatro, como na cultura,
existem muitas falas que podem inclusive subverter o dito, pois teatro é
conflito, assim se estabelece lugar do dito e do não dito, no qual se carre-
gam muitas mensagens contraditórias, não mero espelhos, projeções, mas
agentes ativos de mudança, pois promovem comentários e críticas, esta-
belecem, revelam, modificam normas e valores da cultura.
Para terminar com o pensamento tardio de Barthes, precisamos nos
embalar em sua definição completa para compreender sua mais impor-
tante afirmação, não aquela da separação esquemática texto e teatralidade,
mas a da presentação ecumênica e múltipla de signos e sensações que se
dá na teatralidade e também na textualidade, pois não há porque retirar o
texto da teatralidade tal como pretendeu o filósofo francês inicialmente,
pois a teatralidade são artificios sensuais, gestos, tons, distâncias, pausas,
substâncias, luzes, sons, palavras, silêncios que se alternam no mar revolto
na busca da faísca da arte teatral:

A teatralidade é o teatro menos o texto, uma espessura de signos e de sensações


que se edifica no palco a partir do argumento escrito, é aquela espécie de per-
cepção ecumênica dos artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, substâncias,
luzes, que submerge o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior” (OC,
II, 304).
Robson Corrêa de Camargo | 63

A teatralidade é teatro, performance e texto, o palco e a plateia, uma


espessura de signos e de sensações que se transacionam no entrelugar da
cena e da plateia, performance que se conforma do palco ao texto, do texto
ao palco, numa relação prolifera, fecundante. Assim, agora, no texto da
cultura e na cultura, como texto e performance, estão estabelecidos alguns
elementos fundantes para o entendimento do teatro e de sua teatralidade,
e podemos nos dirigir a análise específica do melodrama, com alguns ar-
gumentos que afastam o uso do termo melodrama da simples constatação
similar de seus homônimos, na ópera ou na música. Nosso centro de es-
tudo é o melodrama teatral, o melodrama como fato da cena no drama e
como texto espetacular (Marinis, 1982), tal como existiu, após 1800, nas
penas de Pixérécourt ou de seus pregoeiros.

O melodrama na ópera

Esta talvez seja a parte mais complicada deste trabalho, pois a defi-
nição de melodrama em diversos corpos teóricos embaralha o melodrama
na ópera com o teatro, o que causa alguns problemas de limitação concei-
tual, como veremos.
Em seu Grande Dizionario della Lingua Italiana, Salvatore Bottaglia
define melodrama como uma composição musical, que apresenta ainda
um texto literário de estrutura teatral feito para casar com a música. En-
quanto a parte musical é formada por duetos, árias e partes corais, os
“elementos teatrais são a encenação, a divisão em atos e cenas...”. No sé-
culo XVII, para Bottaglia, o melodrama operístico assumiu esta forma
casada com Monteverdi. Depois desta definição fica claro o porquê da
união composicional música e texto, falado ou cantado, ser considerada
sempre o centro do fato operístico melodramático (Bottaglia, 1973). Bot-
taglia fala do compositor italiano Claudio G. A. Monteverdi (1567-1643),
mas há outros nomes importantes dependendo de como se entende o sur-
gimento e o desenvolvimento do melodrama na ópera.
64 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Segundo outra fonte musical, o Grove, Dictionary of Music and Mu-


sicians, uma das principais enciclopédias no campo musical, melodrama
se define como “uma espécie de drama, ou parte do drama, no qual a ação
é desenvolvida pelo protagonista falando nas pausas (do canto) e, mais
tarde, com acompanhamento musical. As breves passagens orquestrais
que separam os diálogos são claramente relacionadas e, provavelmente,
derivadas do recitativo operístico” (Sadie, 1980, s.v. “melodrama”). Como
podemos perceber, o melodrama operístico, surgido no século XVIII, é con-
siderado uma derivação ou intromissão do recitativo na ópera, com breves
passagens orquestrais entre os diálogos falados, primeiramente executa-
dos sem a música, depois com o acompanhamento.
O que se pode observar nesta definição é que, desde a Camerata Flo-
rentina (1570), a ópera era tradicionalmente um fenômeno artístico para
ser completamente cantado com acompanhamento instrumental. Neste
caso, o melodrama ou o texto falado que surgira mais tarde na ópera seria
uma novidade em seu desenvolvimento, considerando-se a fala ou o reci-
tativo intervindo dentro do procedimento musical “tradicional” operístico,
contando este com ou sem acompanhamento musical.
A distinção do texto operístico melodramático falado deve sempre ser
entendida no universo musical da ópera, música e canto em relação com
o texto. Inicialmente buscou-se o canto na ópera, tentando recuperar-se
um entendimento do teatro grego antigo, que seria todo cantado, assim o
texto falado, que prepara a música, seria a introdução de um fenômeno
diferente: a fala no canto. Esta evolução estilística da ópera deu-se em mo-
mentos de crise dessa forma artística, ópera, assim como pela influência e
concorrência determinante do teatro das feiras.
Esta questão pode ser percebida mais amiúde se acompanharmos a
edição impressa de Ariadne auf Naxos (Ariadne em Naxos, fac-símile
1985[1781]), considerada um dos primeiros melodramas operísticos, mas
que na publicação impressa se autointitula um duodrama, com texto de
Johann Cristian Brandes e mise en music e arranjos de Georg Benda. Ari-
adne considera-se um duodrama, um drama cantado a duas vozes,
Robson Corrêa de Camargo | 65

diferente dos usuais monodramas seus contemporâneos. Na introdução a


esta edição fac-símile, Thomas Bauman descreve que, na segunda metade
do século XVIII, a necessidade econômica havia forçado diversas compa-
nhias operísticas alemãs a oferecerem uma mistura entre “drama falado e
ópera”, desde que os grandes atores trágicos não tivessem “nada a ver com
o repertório musical”. Assim, foi adaptado o recitativo ao monólogo dra-
mático cantado, surgindo o que viria a ser chamado de “o melodrama
alemão”.
Em Ariadne auf Naxos existem três papéis falados – Ariadne, Theseus
e a voz de um Oread, assim como papéis sem fala (vários gregos). Na par-
titura se percebe que este melodrama operístico é formado por partes
faladas completas de determinada personagem que existem sem acompa-
nhamento instrumental, com apenas algumas raras ocasiões em que
música e fala estão juntas. Benda, músico de formação, com esta obra tor-
naria-se conhecido por alguns como o criador artístico do melodrama,
sendo este considerado o “primeiro” melodrama operístico, e o inaugura-
dor do melodrama alemão, lembrem-se estamos falando de ópera como
melodrama (Jiránek 1967, p. viii apud Benda, 1985). Como veremos há
contestações dependendo do melodrama e de que país estejamos falando.
A primeira representação de Ariadne em Naxos aconteceu em 27 de
janeiro de 1775, com retumbante sucesso, tendo gerado uma das poucas
edições impressas completas do gênero operístico, um fato raro na época.
Ariadne estreou dez meses antes de Pygmalion, de Rousseau, na Comédie
Française, esta considerada iniciadora do melodrama na ópera na França.
Lembremos ainda que Pygmalion foi escrito por Rousseau anteriormente,
em 1762, musicado por H. Coignet, em 1770. Se considerarmos o texto es-
crito, Rousseau foi escrito primeiro.
Mozart considerou o trabalho de Benda “de excelente qualidade”, e
comenta que ele teria tomado como fonte principal de sua elaboração o
obbligato recitative da ópera, imaginando (envisaged) o recitativo como
substituição, “exceto onde as palavras podem ser expressas em música”
(Carta de 12 de novembro de 1778. Bauman, Thomas introdução a Ariadne
66 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

auf Naxos). Para Thomas Bauman, o recitativo é o “mais poderoso e su-


blime elemento da ópera”, adaptado das ferramentas do drama falado, a
fala e o gesto, e especificamente de sua pedra de toque, o monólogo dra-
mático. Segundo o autor citado, é desta combinação que surge o
“melodrama alemão” (BAUMAN, introdução a Ariadne auf Naxos).
Baseando-se nesta consideração pode-se entender por que o melo-
drama, no campo musical, nos dias de hoje, é mais usado não para definir
um gênero, mas, sim, um procedimento musical “experimental, provoca-
tivo e anticonvencional” (Sala, 1995, p. 24), que processava as palavras
faladas das personagens às vezes sobre fundo musical.
No entanto, no campo da ópera, existe uma distinção formal quando
se usa a palavra melodrama, pois aquela utiliza sobretudo o canto e pouco
o recitativo. Assim, percebe-se a importância da fala para a personagem
do melodrama operístico em relação a música. No drama, no entanto, se
seguirmos o declarado anteriormente por Pavis em seu dicionário, se con-
sidera que, no melodrama teatral, a música dá relevo ao silêncio, ao ato
sem fala. Como vemos, as diferenças da relação do melodrama e de sua
fala, seja no teatro ou na ópera, são apenas querelas de estilo e começam
a ser evidenciadas, mas tem pouco significado para a definição de um gê-
nero, num tempo que houve troca entre estes fenômenos.
Esta distinção do melodrama, ainda pouco estudada, como forma ou
parte da ópera e como fenômeno ou “gênero” do drama, estimulou a ina-
dequada ligação de Rousseau com o melodrama no campo da arte teatral.
O filósofo iluminista, ao realizar uma incisiva defesa da intervenção da
música em resposta e relação com o texto falado na ópera, procurou real-
mente um procedimento musical sempre referenciado pela fala (Grove,
1980, tomo XVI, p. 272). Se esta era uma novidade na polêmica reforma
que se pretendia na ópera, com a intromissão de códigos cênicos mais pró-
ximos da fala cotidiana em seus pressupostos, sua generalização no drama
não acrescenta nada para a compreensão do melodrama no teatro, ao con-
trário.
Robson Corrêa de Camargo | 67

Para Pavis, em seu já citado Dicionário de Teatro, o melodrama tea-


tral tornou-se “um gênero novo” não com Rousseau, mas a partir do final
do século XVIII, ao se organizar como um tipo de estrutura dramática que
“tem raízes na tragédia familiar”, seguindo os caminhos de três obras do
encenador e dramaturgo grego Eurípedes: Alceste, Medéia, Ifigênia em
Táuride. Pavis também repete outra frequente operação, a ligação evolu-
tiva do gênero teatral aqui em tela com algum antecessor grego, como se
este fosse um imprimatur legitimador de nosso desolado melodrama no
teatro.
Mas aí apresenta-se também mais uma confusão estabelecida pelas
semelhanças com as raízes operísticas. Se Alceste de Eurípedes serviu
como inspiração para uma das óperas de Gluck, parece um pouco forçada
a ligação enraizada do melodrama no teatro com as tragédias Medéia ou
Ifigênia em Táuride. Sim, o melodrama relaciona-se com muitas, senão
todas as formas teatrais precedentes, numa estrutura dialógica, como ve-
remos mais à frente, mas suas maiores raízes são outras. No teatro, é o
primeiro fenômeno de arte de massa da Europa moderna, e, como o ci-
nema e o rádio no século seguinte, realizou uma operação de reescritura
das formas teatrais que o antecederam, mas estas não necessariamente
fazem parte expressa e automática de seu arcabouço genético ou de sua
“linhagem evolutiva”.
Em seu dicionário Pavis amplia a relação com a tragédia familiar de
Eurípedes e afirma ainda que o melodrama é visto como uma espécie de
finalização ou momento último da tragédia clássica, uma “forma paródica”
inconsciente. Se este raciocínio for seguido, ele carrega uma depreciação
comum em muitas das análises do melodrama no teatro, pois este teria se
tornado uma forma degenerada (paródica) do grande teatro de nossos
grandes antepassados mediterrâneos. Segundo esta operação de classifi-
cação há a tragédia e a comédia, e dois mil anos depois teria surgido
parodicamente por decomposição o melodrama no teatro. Um grande
salto na história do drama para que então surgisse uma nova generalidade.
O melodrama ainda não descobrira seus melhores analistas.
68 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Não é este meu ponto de vista, pois o melodrama no teatro não é


regeneração nem degeneração, nem recuperação de formas “superiores”
ou “inferiores” do drama, como se pudessem ser comparados fenômenos
culturais tão distintos, no tempo e no espaço. Se existe no melodrama te-
atral uma reutilização de algum dos parâmetros de determinada unidade
artística precedente, forma, gênero ou estilo, ela ocorre dentro de outro
código, de outra perspectiva, de outra sensibilidade e de outra forma cul-
tural, necessitando-se reavaliar os instrumentos críticos para abordá-los e
assim perceber de forma apropriada sua "virtude" estética, se é que existe
tal procedimento.
Se em seu dicionário Pavis mostra algumas das raízes do melodrama
na distante Hélade de Eurípedes, podemos compreender com mais clareza
esta dilatada e forçada operação histórica de nossos contemporâneos
quando revelam determinado aspecto ideológico do melodrama no teatro.
Pavis decreta, no verbete já citado, o melodrama como “gênero traidor da
classe à qual parece querer dirigir-se – o povo –”, considerando-o como
uma “chancela à ordem burguesa” estabelecida por Napoleão, após os fer-
ventes e cortantes anos da Revolução Francesa. Paga aqui o melodrama o
preço político de ter tido seu esplendor durante a reação bonapartista,
mesmo que tenha realizado suas representações teatrais durante toda a
ebulição do século XIX e mesmo nos albores da Revolução Russa, como
veremos. Pobre melodrama teatral, ainda pagando o preço da restauração
napoleônica, apesar de seus duzentos anos de vida. Alguma coisa está er-
rada, talvez a análise.
Considerando-se o melodrama no teatro como uma tragédia imper-
feita reciclada, é fácil imputar a ele “produzir no espectador uma catarse
social”. Não o temor e a compaixão que aglutinavam o cidadão grego, mas
aquela que “traía” seu povo, a que o contém, e o imobiliza, impedindo-o
de se rebelar. A análise sugestionada, recheada por um criticismo positi-
vista, embaralha não apenas o melodrama com a tragédia, fenômenos de
origem social, cultural, histórica distinta, mas também conceitos tão enga-
nosos como povo e classe social; assim reduz-se não apenas o melodrama,
Robson Corrêa de Camargo | 69

porém, o complexo processo histórico da Revolução Francesa e a arte aí


produzida; limita a dinâmica e complexa relação arte e sociedade. O melo-
drama teatral deve ser entendido a partir de suas características
intrínsecas.
A síntese de Patrice Pavis, escolhida aqui como referencial, na ver-
dade, sistematiza conceitos expostos em importantes trabalhos sobre o
gênero, fundamentando-se, sobretudo, em quatro teóricos que se debru-
çaram sobre o melodrama: Peter Brooks (1976), Anne Ubersfeld (1974),
Przybos (1987) e Thomasseau (1989).
Ao lado da ligação terminal com a tragédia clássica, já discutida, outra
tendência comum na tentativa de síntese do melodrama no teatro, mas,
que também não resolve a questão, é considerá-lo como uma derivação
preguiçosa, subserviente e incompleta da ópera italiana, desenvolvendo,
via Rousseau e Benda, o caminho da ópera até o teatro.
Nosso bastardo melodrama teatral é constantemente considerado
uma anomalia surgida de um determinado gênero instituído no panteão
das artes; seus biógrafos não conseguem perceber que a paternidade, neste
caso, se é que existe este fato no desenvolvimento da obra de arte, deve ser
encontrada em outras paragens e talvez em um ato bem mais promíscuo,
nas feiras e ruas parisinas.
Outros estudos apresentam e condenam o melodrama por aquilo que
é uma de suas grandes qualidades: a forma específica e monumental de
sua encenação e ainda pela gestualidade característica do ator em sua re-
presentação, considerada “excessiva”, mas logicamente são considerados
aqui certos padrões de interpretação que, ao final do século XIX, seriam
contestados, por serem quase uma marca exclusiva sua no quase centená-
rio melodrama. Este irá enfrentar, ao final do século XIX, o pleno vigor
juvenil do contido naturalismo que, buscando o colocar o homem comum
em cena rejeitava a gestualidade excessiva.
Este processo contido de interpretação deu-se também por outro fa-
tor pouco levado em conta, a crescente influência da palavra impressa na
cultura europeia do século XIX, o que impulsionou à economia de gestos
70 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

do ator, pois visava esta proporcionar ao espectador teatral a experiência


mais próxima possível a de leitor passivo, que entra no processo imagina-
tivo e criativo pelo poder da palavra impressa (na leitura) ou falada (no
teatro), excessiva se for considerar-se a gestualidade. Esta literalidade,
chamemos assim, literalidade espetacular no predomínio e na sonorização
da palavra impressa no ato teatral, veio a influenciar o teatro em todos os
gêneros e estilos, do realismo ao simbolismo, o que levou à economia de
gestos e ao valor negativo aquilo que era considerado um excesso, assim
como determinou um refluxo de todas as formas que tinham seu eixo no
espetáculo gestual “exagerado”, como a commedia dell’arte, o teatro de
feira e o próprio melodrama. A palavra impressa submetia elementos da
cultura oral ainda presentes no teatro e continha, encerrava ou sintetizava
o gesto do ator e do efeito cênico, que muito havia feito pela dinamização
do drama. Pavis sublinha a pouca preocupação do melodrama com o texto
escrito, mas, com “grandes reforços de efeitos cênicos”.
A galáxia de Gutenberg colocará o teatro em sua prensa e o imprimirá
numa caixa literária de gestos contidos. Um pouco desta forma de repre-
sentação “exagerada” poderá ser constatado nos primeiros filmes curtas
de tragédias clássicas no início do século XX, em atrizes clássicas, como
Sarah Bernard, que nestes filmes pode ser vista apresentado o que hoje
consideraríamos uma excessiva gestualidade. Guardadas as proporções,
foi como o desenvolvimento do microfone influenciou o final das grandes
vozes no rádio e na música, abrindo o terreno ao sussurro da fala cantada
da bossa-nova ao cinema.
Ao se colocar Rousseau, a ópera e o melodrama teatral em um mesmo
cadinho, estimulados pelas semelhanças com alguns efeitos musicais, pou-
cos afirmam, como Emilio Sala, em sua L'Opera Senza Canto, que “a
diferença (de gênero) entre Pygmalion de Rousseau (música de Goignet)
e o melodrama de Pixérécourt é óbvia” (grifos meus), entretanto, continua
Sala, o uso da música durante a representação, como intensificador
Robson Corrêa de Camargo | 71

emotivo e suporte da pantomima e do tableau é o mesmo,9 ou, pelo menos,


possui muitos pontos em comum.
Sala é autor de um excelente trabalho que se detém na análise das
semelhanças entre o melodrama na ópera e no teatro: L’ opera senza
canto. Il mélo romântico e l’invenzione della colonna sonora (Ópera sem
canto. O mélo romântico e a invenção da trilha sonora, 1995), no qual
afirma que: “[…] questão terminológica à parte, o mélodrame rousseauni-
ano e o mélodrame de Pixérécourt resultam à primeira vista, dificilmente
assimiláveis” (Sala, 1995, p. 24). Sala destaca ainda que o melodrama ope-
rístico é, notem, “anticonvencional, provocativo e quase experimental” e o
de Pixérérecourt é “hipercodificado”.
No mesmo caminho, ressaltando as diferenças entre ópera e melo-
drama, um importante crítico, hoje um tanto esquecido, Silvio D’Amico
(1887-1955) em sua Storia del Teatro Drammatico. Ele afirma: o mélo-
drame (melodrama) é um novo gênero teatral, chamado usualmente pela
denominação abreviada mélo, palavra cara a Rousseau. Ressalta D’Amico
que o melodrama no teatro se define: não no sentido (italiano e germânico)
que corresponde à ópera na música. (D’AMICO, 1960, v.III, p.78).10 Para o
autor citado, o melodrama (mélodrame), em um sentido amplo, é um tipo
de espetáculo cênico que corresponderia em certa forma ao vaudeville. No
idioma italiano, e em algumas enciclopédias desta língua, há as duas pala-
vras, mélodrame para o teatro teatral e melodrama para o fato operístico.
São duas coisas diferentes que não cabem em um único verbete.

Rousseau e o melodrama: nem pai, nem padrasto

No teatro falado, como vimos, a origem do melodrama tem sido equi-


vocadamente e imediatamente ligada à ópera por alguns comentaristas e,
por extensão, ao enciclopedista Jean-Jacques Rousseau. A Enciclopédia Bri-
tânica é uma das muitas fontes que repete a versão de que a peça teatral

9
Correspondência ao autor em 17 de abril de 2004.
10
Ma non nel senso (italiano e tedesco) pressappoco corrispondente a “opera in musica”.
72 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

melodramática teria originado na França, como resultado do impacto de


Pygmalion que, como vimos, foi escrito por Rousseau em 1762, musicado
por H. Coignet, em 1770, e encenado nesse mesmo ano em Lyon e depois
em Weimar, em 1772. Conforme a referida enciclopédia, a partir de 1775 o
texto foi incorporado ao repertório da Comédie Française, nele permane-
cendo até o início do século XIX.11
Se levarmos em consideração a encenação do texto de Rousseau, per-
cebe-se em seguida que o próprio não ficou muito satisfeito com a
apresentação de Pygmalion, feita pela Comédie. Rousseau protestou contra
a forma da encenação e recusou-se a receber Larive, o ator que interpre-
tava o papel central, tendo dito rispidamente ao ator: Faites comme vous
voudrez! (Faça como você quiser!).
A montagem também recebeu críticas pesadas pela declamação ex-
cessiva, pelo número das interrupções, por se exceder pela metafísica e
retórica. Não fez sucesso e, consequentemente, seu estilo não foi seguido
no século XVIII. Paris apenas pode ver tentativa semelhante, agora com
grande êxito, 11 anos depois, em 1781, mas não pelas mãos de Rousseau. O
duodrama alemão de Brandes, com música de Georg Benda (1722-1795),
Ariadne auf Naxos (Ariadne em Naxos) ou Ariane Abandonné, escrito em
1774 (estreia em 27 de janeiro de 1775 em Gotha, impressão completa Leip-
zig: Schwickert, 1781), será encenado em Paris não como invenção
rousseauniana e sim como mélodrame imité de l’allemand (melodrama
imitado do alemão).12
A respeito de sua obra, Rousseau declarou no Observation sur Al-
ceste, de M. Gluck que, com Pygmalion, ele criara um novo gênero entre a
simples declamação e le véritable mélodrama (o verdadeiro melodrama),
ou seja, a ópera. Rousseau pretendia sim criar um novo gênero que com-
petisse com a ópera, em que a frase falada fosse de alguma forma
anunciada e preparada pela frase musical (la phrase parlée est en quelque

11
"melodrama" Britanica Online. http://www.eb.com:180/cgi-bin/g?DocF=micro/386/20.html. Acesso em 19 de
abril de 1998.
12
Emílio Sala, correspondência eletrônica com o autor em 7 de março de 2004.
Robson Corrêa de Camargo | 73

sorte annoncé et preparé par la phrase musicale, in: Rousseau, Obras Com-
pletas, vol. XIV p. 70). Para Rousseau, "inventor do melodrama" operístico,
a prosódia do francês não seria propícia à expressão operística que estaria
mais de acordo com os idiomas italiano e alemão. Segundo suas próprias
palavras: “Eu creio que nossa língua é impropria à poesia e antes de tudo
à música (Je crois notre langue peu propre à la poésie et point du tour à la
musique apud Rousseau Lettre sur la Musique Française, 1752.). Como ve-
mos, seu alegado nacionalismo também esconde um certo espírito de
inferioridade.
Rousseau procurava constituir um gênero intermediário entre a sim-
ples declamação do texto musicado e a ópera (cette espèce d’ouvrage
pourrait constituer un genre moyen la simple déclamation et le veritable
mélodrame). E, como este gênero não se constituiu tal como queria o en-
ciclopedista, se transformou apenas em uma variante ou estilo operístico.
Mesmo em seu dicionário de música (Dictionnaire de Musique), Rousseau
utiliza o melodrama no sentido de ópera, diretamente traduzido da palavra
italiana melodramma. O dicionário brasileiro Aurélio vem acrescentar um
pouco mais de confusão a esta pendenga terminológica, pois define que
melodrama é um gênero dramático originário da França, no qual os diá-
logos são entremeados por música, mas ressalta que ele se desenvolveu no
começo do século XVIII, graças ao libretista italiano Pietro Metastasio
(1698-1782), antecedendo quase 50 anos, portanto, a obra “inauguradora”
de Rousseau de 1762.
O primeiro trabalho de Metastasio, chamado de melodrama ou melo-
dramma, foi composto em 1723 e encenado um ano depois: Didone.
Metastasio, como explica a Britannica, escreveu ao todo 11 melodramas
(1990, vol.8, p. 63), terminando sua carreira produtiva e de muito sucesso
em 1771, quando Rousseau exercia ainda sua primeira tentativa na área.
Os italianos muito contribuíram com a arte francesa, veja o teatro de feira,
a commedia dell’arte, ou mesmo, a ópera, mas a confusão da terminologia
é de origem francesa. Melodramma, em italiano significa ópera, é sinô-
nimo de ópera, “um espetáculo teatral de argumento sério, no qual o texto
74 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

literário, quase sempre em verso, é inteiramente cantado, com acompa-


nhamento musical”. A Enciclopédia Italiana di Scienze Lettere (Ed Arti.,
1934) tenta estabelecer ordem nesta questão, ao denominar o que estamos
chamando de melodrama teatral, o do texto falado, aquele que surge no
começo do século XIX, o não operístico, de melologo,13 reservando para a
ópera o termo melodramma. Mas esta nomenclatura não se tornou conhe-
cida mesmo na Itália, onde se encontra em desuso. Assim teríamos, para
seguir com esta definição, o melologo de Pixérécourt e o melodramma de
Rousseau.
Os dois termos são originários do grego, melologo, é união dos ter-
mos melodia e palavra, e melodrama a união de canto e drama. Parece que
o primeiro a usar melólogo no sentido que damos ao melodrama teatral
foi o espanhol José Subira, em 1800.14 A tendência de uso do nome melo-
drama em português, referindo-se, tanto ao operístico como ao novo
gênero teatral emergente, segue a tradição francesa (mélodrame), mas, so-
bretudo, a inglesa, alemã, espanhola (melodrama) que acabou por
dominar em nosso idioma, apesar da confusão implícita. O uso se impôs
e, hoje, o melodrama é uma designação que serve em nossa língua tanto à
ópera como à forma teatral, causando enorme confusão ao se chamar
igualmente fenômenos tão distintos.
Pygmalion não havia sido o primeiro trabalho de Jean-Jacques Rous-
seau no terreno da ópera, ele havia escrito anteriormente les Muses
Galantes (1745; As Musas Galantes) e Le Devin du Village (1752; O Advinho
da Vila). Para que se entenda a origem dos procedimentos artísticos bus-
cados pelo enciclopedista e sua contaminação pelos espetáculos da feira,
vejamos que, dez anos antes de escrever Pygmalion, em outra obra sua, o
Adivinho da Vila, o autor declarava que nela as músicas foram trabalhadas
em suíte, juntando-se fragmentos ou motivos de várias fontes, refletindo

13
Este termo não tem uso atualmente na Itália, e, para aumentar a confusão, Cesare Scarton (1998) utiliza melologo
tanto para ópera como para o que aqui se chama de melodrama teatral.
14
Emílio Sala em contato com o autor em 17 de abril de 2004.
Robson Corrêa de Camargo | 75

a variedade dos romances populares e dos vaudevilles ouvidos nas feiras


parisienses.15
A confusão terminológica atual ao redor do melodrama é grande, en-
tretanto Mason afirma que, antes de 1781, não existia nenhuma utilização
do termo francês melodrame que não fosse no sentido de ópera. Em 1782,
antes dos primeiros textos de Pixérécourt, Martineau, também preocu-
pado com a questão, propõe diferenciar scènelyrique para os monólogos e
mélodrame para os diálogos. Mason agrega também que, depois de 1781,
mélodrame e scènelyrique tornaram-se sinônimos.
No início do processo revolucionário francês, mélodrame era utilizado
quase exclusivamente para designar todos os espetáculos que seguiram a
mesma natureza do operístico Pygmalion e também para textos dramáti-
cos em que prevaleciam monólogos intermeados com música, como
descreve Mason (1912, p. 35). Na verdade, o termo melodrama na França
desenvolve-se a partir do sucesso da obra alemã Ariadne auf Naxos, de
Johann Cristian Brandes, e mise en music e arranjos de Georg Benda
(1985[1781]).
Com base nestas considerações, separando o melodrama na ópera do
melodrama teatral temos um terreno mais sólido para examinar o desen-
volvimento estrito do melodrama teatral francês no século XIX, voltando
às suas origens. Para que possamos retornar ao clima do melodrama tea-
tral e sentir um pouco a atmosfera reinante no bulevar, muito diferente da
existente no melodrama operístico, vamos lembrar que, em 1789, durante
o pleno desenvolvimento da Revolução Francesa, um senhor protestava na
imprensa contra esse tipo de teatro. O respeitável “homem de família”, em
uma carta, reclamava dos pequenos teatros de Paris, relatando que o bu-
levar sempre fora local de “monstruosas pantomimas”, uma mistura de
palhaçada e heroísmo, onde eram apresentados duelos, agressões múlti-
plas, e “até cenas de tortura e homens metamorfoseados em gatos,
cachorros, ursos e macacos”.

15
Grifo do autor.
76 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Na hipótese desta pesquisa, o melodrama teatral é uma estrutura


dramática em constante transformação, pertence à contemporaneidade,
nada ultrapassado ou degenerado, enraizado no processo de formação,
descoberta e definição dos modelos de encenação e interpretação que se
formaram a partir dos séculos XVII, XVIII e XIX, e irão adentrar o século
XX.
Na verdade, Pixérécourt é um dos grandes dramaturgos diretores
que surgiram no início do século XIX. Não fosse o grande preconceito que
tem cercado o melodrama, outras seriam as considerações a respeito de
seu papel fundamental no desenvolvimento do espetáculo teatral. As se-
guintes palavras são suas: “Uma peça teatral só pode ser bem concebida,
bem construída, bem dialogada, bem ensaiada e bem interpretada sob os
auspícios e pelos esforços de um único homem que tenha o mesmo gosto,
o mesmo julgamento, a mesma mente, o mesmo coração e a mesma opi-
nião” (PIXÉRÉCOURT, 1841, vol. 1, p. 497). Alguém duvida que no
melodrama também havia uma mise en scène? Aguardem os próximos ca-
pítulos. O surgimento do encenador apenas no século XX não passa de um
grande preconceito com a história do teatro e o melodrama em particular.
Como pode ser percebido, o conceito de mise en scène não surgirá apenas
no século XX, como pretendem alguns, pois a prática do melodrama teatral
já o havia introduzido, não necessariamente com esse nome. Se todos cul-
pam o melodrama no teatro pelo seu lado espetacular, é axiomático
entender que ele foi um dos grandes desenvolvedores da mise en scène, da
encenação.
O melodrama teatral foi e tem sido estigmatizado justamente por uti-
lizar de maneira radical aquilo que é sua marca fundante: a produção
complexa e completa do espetáculo teatral em sua época, com o uso de
maquinário e efeitos cênicos; em uma elaboração de encenação que visava
a manipulação e, não apenas ela, mas o estímulo à surpresa cênica na pro-
vocação dos sentimentos da plateia; fundamentalmente, por desenvolver
de modo pleno, dentro de seus marcos temporais, a gestualidade e a pre-
sença do ator em cena
Robson Corrêa de Camargo | 77

Ao mesmo tempo, portanto, no teatro, o melodrama acentua e apro-


funda, com sua prática cênica extremada, radical, as três principais
questões que vão atravessar as discussões teórico-práticas do teatro no sé-
culo XX e, com certeza, no século seguinte: a encenação, a interpretação e
a recepção pela plateia.
Um de seus críticos contemporâneos, Jean-Louis Geoffroy, na crítica
de La Rose Blanche et la Rose Rouge (A Rosa Branca e a Rosa Vermelha,
1809) descrevia em uma perspectiva totalmente formal, mas que nos au-
xilia a perceber as características presentes no melodrama: “O abuso da
pantomima, das máquinas, dos combates e das danças, a mistura de tra-
gédia e da baixa comédia, a declamação e a linguagem bombástica
(Pixérécourt 1947, vol. 1, p. 506-507)”. Esta complexa representação exigia
uma equipe técnico-artística centralizada e competente, com completo do-
mínio da linguagem cênica em apresentações que poderiam se repetir por
mais de um ano, fato totalmente novo na história do teatro.
Ao se analisar o pensamento sobre o melodrama em nosso país, per-
cebe-se que muito dos costumeiros vícios encontrados na reflexões
publicadas devem-se a uma repetição de incorreções que tiveram suas ori-
gens em terras de além-mar. Além da formulação de Pavis, aqui já tratada,
a reiteração desta truncada perspectiva crítica pode ser encontrada tam-
bém na afirmação do historiador e sociólogo romeno Arnold Hauser
(1892-1978), que reitera uma apreciação muito utilizada pela crítica inter-
nacional na análise do gênero teatral aqui em foco.
Ao analisar a inter-relação do melodrama com o folhetim impresso,
Hauser destaca como uma das características da temática do melodrama
o tratamento de assuntos que “giravam em torno de seduções e adultérios,
de atos de violência e crueldade” (Hauser, 1972, p. 895). Acentua-se mais
uma vez uma questão que se torna uma imprecisão metodológica da crí-
tica, usam-se categorias que expressam mais um juízo de valor do que
aquelas que poderiam auxiliar na análise do melodrama.
Observa-se que a afirmativa de Hauser não auxilia a compreensão,
pois, desde o surgimento do teatro, tanto na tragédia como na comédia,
78 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

hoje, ontem e sempre, são utilizadas temáticas de seduções e adultérios


(Édipo), atos de violência e crueldade (Lisístrata) pelos principais drama-
turgos de todas as tendências e estilos, de Shakespeare (Hamlet) a Nelson
Rodrigues (toda obra). Esta não é só uma característica melodramática,
mas, uma importante qualidade teatral levada à exaustão e não apenas
pelo melodrama.
No entanto, essa confusão é reiterada desde o surgimento do gênero
deste filho bastardo, e tratado como tal. Em 1809, o crítico francês e dra-
maturgo Armand Charlemagne (1753-1838) já se procupava com a
amplitude do termo melodrama (mélodrame), entretanto, se reconhecia o
problema, afundava-se nele. Charlemagne dizia que o melodrama “é um
drama, ou dito de outra forma, uma ação dramática, donde as palavras são
acompanhadas de melodia ou música”, não ajudava e agregava que esta
seria uma definição do “velho gênero”, e aqui fala de Rousseau. E aí des-
creve sua evolução, Charlemagne afirmava que o melodrama se
desenvolveu apoiado em Pixérécourt, como “uma ação comumente mágica
ou heróica” na qual as personagems movem-se ao som da música que
anuncia “a sua entrada, a sua saída, a natureza e a sensações” que aconte-
cem de acordo com a apresentação. E define que o melodrama deve ser
considerado um “novo gênero”: a ópera do povo. Charlemagne atribui a
este novo gênero “a inconstância francesa e a mobilidade de nossos gostos
nas artes”. Como vemos, o autor já problematizava a relação do melo-
drama com o gosto ou sua recepção pela audiência, mas apenas constatava
ou adensava uma confusão conceitual que vem até os dias de hoje (Char-
lemagne, 1809, Le mélodrame aux boulevards. Paris: Imprimerie de la rue
Beaurepaire, 1809, p. 14. citado por Sala, 1995, p.27).
Na verdade, o conceito de melodrama, mais que uma definição, tem
servido como depósito de supostos defeitos da arte dramática em determi-
nada época, reunidos por alguém debaixo de um grande tapete também
denominado melodrama. Tarefa fácil, pois o melodrama reuniu (descons-
truiu?) sob sua égide praticamente todos os estilos e estilemas teatrais e
lhes deu, muitas vezes, nova roupagem. E aqui pode ser feita nossa
Robson Corrêa de Camargo | 79

primeira definição, o melodrama é mais que um gênero, é uma estrutura


dramática em constante diálogo com as formas artísticas contempo-
râneas e seu sucesso motivou bons e maus resultados, como
acontecem com todos os gêneros populares.
Para que se entenda essa nova estrutura dramática em movimento
tem-se que olhar para outras paragens e observar principalmente a forma
particular de tratamento dos assuntos abordados, o conjunto de seus pro-
cedimentos e não a temática propriamente dita. Nem a temática, e nem a
ideologia, e nem a relação música e texto são parâmetros para o entendi-
mento do melodrama, do teatro ou de qualquer arte. A compreensão do
fenômeno teatral melodramático como um aforismo, uma sentença moral
ou pela simples relação com a música tem desviado os críticos e pesquisa-
dores de olhar sua principal contribuição histórica como drama: a
expansão do espetáculo e da gestualidade do ator. É em direção ao enten-
dimento e ou reconstrução do espetáculo melodramático que esta análise
é dirigida.
A generalização de Hauser é utilizada aqui apenas para exemplificar
um tipo de vício comum na abordagem do gênero. Procura-se definir o
todo (o pretenso gênero melodrama), pela extensão de alguma de certas
partes (certas características estilísticas do melodrama). Trata-se de um
processo hiperbólico de exagerar algum dos artifícios usados pelo melo-
drama, como a música, a voz, o gesto, e o silêncio (alguém falou em Samuel
Beckett?).
Certamente, o gênero tem contaminado os escritos de quem se atreve
a devorá-lo e este procedimento de tomar a parte pelo todo tem levado a
vários equívocos. O exemplo mais comum é a reiterada identificação da
união de música e do texto teatral em “forma sentimental”, como a grande
contribuição da forma melodramática. Partindo desse pressuposto limi-
tado, analistas apontam o emprego deste como a influência determinante
e central do melodrama nas várias formas artísticas do século XX, em es-
pecial, o rádio, a televisão e suas novelas. Isto também é empobrecer o
80 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

melodrama. Ultimamente, percebe-se que estes estudos vêm se multipli-


cando, sobretudo, no exame da influência do melodrama no cinema.
Por certo, o melodrama levou até as últimas consequências várias das
características da linguagem teatral que empregava, entretanto, a união de
música e texto (falado, escrito, cantado pela plateia) “em forma sentimen-
tal” já havia sido plenamente aproveitada no século XVIII, no teatro de
feira, na ópera e nas pantomimas, muito antes do melodrama apresentar
seus primeiros solilóquios na ribalta. Mais efetiva que a possibilidade do
simples encontro da música com o texto será a análise das relações dos
elementos sonoros (palavras e música), do gestual, de sua estrutura na
composição do espetáculo teatral melodramático como representação, di-
ante da sua plateia. Neste sentido refletimos com Sala, que nomina este
processo melodramático como a “anatomia do corpo sonoro”, afirmando
que, se o elemento verbal teve diminuída sua importância nesta arte, é
porque o textual “fala diretamente ao corpo de sua personagem” (Sala,
1995, p.18), ou também fala pelo corpo da personagem, ou ainda, em outra
forma, a fala como corpo cênico no melodrama. O ator em ação, dentro do
espaço representacional, apresenta sua personagem como texto sonoro-
gestual, um texto fragmentado no icônico da representação, texto silenci-
oso que fala, significa, na intersecção e sinestesia da sonoridade e ou
visualidade músico-gesto-verbal.
Se considerarmos que o “excesso” gesto-sonoro é central no melo-
drama, contrapondo-se à fala sintética das personagens, este encontro
paradoxal entre o excesso e a economia verbal nos colocará ante um con-
tínuo deslocar no discurso da cena. Entretanto, não há um excesso de
discurso nem uma economia de linguagem verbal, mas, sim, um desloca-
mento sinestésico constante dentro do espetáculo do melodrama, se há na
música ponto e contraponto, no melodrama haverá uma alternância de
textos curtos e monólogos extensos, como poderemos ver mais à frente
em excertos de Coeline de Pixérécourt.
A expressividade sonora e verbal sintetizada por meio do corpo do
ator e pela cena do melodrama teatral, não apenas em seus momentos
Robson Corrêa de Camargo | 81

musicais, traz para o palco a consciência na elaboração de um novo pata-


mar de atuação. Esta iconicidade produzida coloca o representado
como estímulo condensado da sensação sinestésica para com a audi-
ência imbricada no tecido da encenação, na teia de significados, na
espessura de signos e de sensações. E aqui temos uma segunda defini-
ção.
Os signos cênicos do melodrama objetivam conscientemente o cons-
tante deslocamento entre as diferentes sensações percebidas, uma
sensação visual leva a uma sonora que leva a uma sensação visual e ou
corporal, com todas as suas possíveis combinações. Na verdade, podería-
mos dizer que a literalidade crescente nos palcos do século XIX truncou o
desenvolvimento maior de uma linguagem teatral que se apoiava na cor-
poreidade, em sua iconicidade e na sisnestesia. Talvez o simbolismo tenha
tentado recuperar esta proposição, mas em outra chave, a da síntese e da
economia de movimentos. Não é à toa que o melodrama ou pelo menos a
preocupação com seus códigos cênicos retorna com mais força no contexto
de uma cultura que o corpo, o gesto e a imagem tornam-se agora centrais.
O melodrama encontra-se na ordem do dia pelas teses cênicas que
apresentou e pelas análises que não lhe foram feitas. Seus elementos cons-
titutivos plasmam os fundamentos do teatro e da cultura contemporânea,
transformando-se paulatinamente em categorias extra teatrais. O que
mostra sua força como propositura artística. Ao melodrama, se não lhe
abrem a porta da frente entra pelas janelas.
O crítico de cinema Philippe Rouyer não está sozinho ao considerar o
melodrama “a forma teatral da própria modernidade” (Rouyer, 1987). O
melodrama não apenas atravessa a modernidade, como alguns também já
o definem como pós-moderno. O que não é difícil, pois não se sabe exata-
mente o que é pós-moderno. Sim há uma miríade de textos que o definem,
de formas distintas, mas, por economia penso aqui apenas no moderno
como ponto de partida. Este definido por Max Weber, em sua Ética Pro-
testante, como a desmagificação ou perda de sentido, o processo histórico-
religioso de “desencantamento do mundo” (WEBER, 2004, p. 96)
82 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

apresentado pelo pensamento racional. Seria o melodrama um drama do


processo de desencantamento do mundo?
Entretanto, a generalidade desta discussão vai deixando de lado sua
matriz, seu sujeito concreto e suas categorias específicas: o melodrama te-
atral em presentação. Melodrama muitas vezes tem significado tudo,
tornando simples a conclusão de que tudo é melodrama. Aí surge outro
paradoxo, quando um conceito significa tudo, ele perde seu valor, é um
conceito que não conceitua, como um seu correlato, a performance.
Existe em processo uma operação crítica que estende os conceitos e
estilemas do melodrama e esta generalização, paulatinamente, deixa de
lado as particularidades que caracterizaram e fizeram o sucesso do espe-
táculo melodramático desde seu surgimento, deixando de lado a difícil
tarefa de entendê-lo.
Se existe também uma imprecisão conceitual, vamos identificar aqui
algumas características que poderiam ser chamadas próprias ao melo-
drama ou pelo menos originárias. Procuramos resgatá-las ou reconstruí-
las nas palavras e produtos de seus principais proponentes, encenadores e
críticos. Aqueles que se dedicaram ao melodrama como presentação tea-
tral, (re)estabelecendo, assim, algumas de suas técnicas de presentação,
interpretação e encenação.
O exame do melodrama em seus primeiros passos e em momentos
capitais, nas práticas de grandes encenadores, pretende recuperar certas
características desse fenômeno teatral e definir elementos de sua estrutura
e gênese, nos marcos da experiência cênica que o produziu.
Nosso objetivo é realizar cortes em momentos específicos e centrais
de sua existência, para melhor conhecimento de seus estilos e entorno.
Parafraseando o antropólogo polonês Malinowski (1884-1942), pode se di-
zer que os textos escritos e os falados no melodrama, logicamente, são
bastante importantes, mas sem o espetáculo ele permanece sem vida, pois
quando um pesquisador não evoca a atmosfera na qual ele floresce, “ele
nos fornece apenas uma pequena parte mutilada da realidade” (Malino-
wski, 1948, p.104).
Robson Corrêa de Camargo | 83

Filho dileto do processo de libertação da propriedade privada das


mãos feudais, da Revolução Francesa e da polarização que a acompanhou,
o melodrama coloca o público como seu primordial e fundamental recep-
tor. Não apenas como negócio, como tem sido impropriamente acusado,
pois o capital toca e transforma a tudo e a todos, até as tragédias que se
vendem nas livrarias, mas também como perspectiva estética e poética de
toda a arte que se desenvolveu a partir do tempo histórico iniciado pela
Revolução Francesa e pelas sucessivas revoluções que se seguem desde
este tempo, em todo o mundo.
Como prática artística, o melodrama estabelece um importante labo-
ratório de experimentação de técnicas de palco e de engendramento dos
sentimentos de sua plateia. Ao mesmo tempo acentua e desenvolve, com
sua prática cênica, as questões fundamentais que vão atravessar as discus-
sões teórico-práticas dos encenadores do século XX e posteriores: a
encenação, a interpretação e sua relação com o público.
O melodrama teatral começou como um fenômeno internacional, de-
senvolvendo-se inicialmente na França, logo Inglaterra, Alemanha e
Estados Unidos, influenciando e sofrendo influências das diversas corren-
tes artísticas que surgiam no século XIX, em várias partes do mundo
ocidental. Este complexo processo só pode ser entendido em toda sua mag-
nitude, apenas e tão somente, se estudado de modo extensivo por um
conjunto de analistas do fenômeno teatral melodramático, examinando-o
especificamente sob diversos pontos de vista: histórico, cênico, cultural,
antropológico, etc.
Em face desta complexidade, limito-me, para o presente estudo, a al-
guns dos momentos centrais na elaboração do espetáculo teatral
melodramático, iniciando com a figura de dois de seus principais drama-
turgos, na França e na Inglaterra, procurando contribuir para a revisão
ora em curso, assim como a fazer um corte analítico em algumas das ma-
nifestações da crítica e dos praticantes do melodrama, esperando que este
trabalho amplie os caminhos de um exame detalhado e mais adequado
deste gênero espetacular em toda sua profusão.
84 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Para iniciar sua reconstrução, inicialmente vamos rever o teatro an-


terior ao seu surgimento, feito nas barracas de feiras francesas. O
substrato da poética dramática do melodrama veio desse elemento, tido
como “marginal” na história deste “gênero teatral”: o teatro das feiras. Te-
atro sem palavras, ou de poucas palavras. O melodrama retirou do teatro
realizado nas feiras parisinas, elementos de sua elaborada técnica de in-
terpretação do ator, a composição de sua gestualidade e, sobretudo, o
procedimento de construção de seu espetáculo. Reelaborando esta prática
teatral, estabeleceu-se no palco a relação explícita de cumplicidade com a
plateia e, como parte central desse processo, o uso desregrado de todos os
estilos e sua reelaboração permanente em nova chave, era um teatro em
que não se impunham fronteiras ou fidelidades estilísticas, ao contrário,
buscava-se rompê-las, renová-las e, talvez, subtraí-las.
2

As parteiras do melodrama:
a pantomima, o teatro de feira e de bulevar

O peixe é o professor do mímico…


Mas o cavalo marinho é o seu mais perfeito símbolo:
mobilidade transportada,
deslocamento de espaço,
mais que o movimento em si.

Étienne Decroux (1960)

A pantomima: gestualidade e melodrama

Primeiramente um aviso necessário, pois muitos podem estar come-


çando a ler este trabalho a partir desta página. Este estudo aponta para o
melodrama no teatro, quando for tratar o melodrama como ópera ou sua
interface cinematográfica, televisiva ou radiofônica ou qualquer outro caso
usarei melodrama no cinema, no rádio, etc. Certamente o melodrama é
mais amplo que sua contraparte teatral, mas para um bom entendimento
é necessário que entendamos esta particularidade. O teatro e o melodrama
dialogaram com todas estas formas que se definem por seu local de apre-
sentação, inclusive o circo.
Um dos elementos formadores da construção melodramática teatral,
ou seja, de seu código cênico, das formas de atuação envolvidas nesse es-
petáculo e da relação com a plateia, foi a pantomima. Entretanto, como
vimos nas páginas anteriores, a relação música-texto é tomada por muitos
e incorretamente como o fator central no surgimento e desenvolvimento
do melodrama teatral.
86 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Esse parti pris equivocado do melodrama teatral, que toma o texto


como centro dramático, induz a que se centre a análise do melodrama no
texto escrito, destacando-se, assim, um particular efeito muito usual no
melodrama no teatro, talvez copiado da ópera, do ator expor determinado
texto com uma música envolvente ao fundo, o que realçaria a emotividade
contida. O reconhecido efeito, usado à exaustão, tornou-se praticamente
uma marca registrada de algumas de suas encenações. Entretanto, reco-
nhecer o melodrama teatral por um de seus mais simples truques
evidencia uma limitação de análise e um preconceito, ao deixar de lado
toda a extensa série de artefatos que formam o reino melodramático e ao
se negar uma compreensão mais ampla do fenômeno.
O melodrama teve como um de seus principais objetivos o diálogo
com um público plebeu diversificado e de gosto heterogêneo, formado no
processo aberto pela Revolução Francesa e pela Revolução Industrial; teve,
como método de construção, a reelaboração sem preconceito de todas as
formas dramáticas anteriores e contemporâneas, tornando-se uma forma
dramática que possibilitava um intenso trabalho de ator no desenvolvi-
mento de sua personagem, dicotômica como propositura, mas complexa
como atuação; e, como artifício, desenvolveu intensamente o espetáculo
teatral.
Entre alguns dos elementos primordiais do gênero melodramático
estão, certamente, sua forma de interpretação e a particular constituição
cênica, com vínculos diretos e evidentes com a pantomima e a commedia
dell’arte.
Dentro do processo de trabalho do ator melodramático, a gestuali-
dade amplificada e relevada é um dos elementos centrais e dinâmicos
necessários ao entendimento da equação espetacular melodramática. Na
realidade, a pantomima é formadora do melodrama como espetáculo tea-
tral. Sua gestualidade foi transposta ao melodrama e isto explica ser
considerada “exagerada” no melodrama. Exagerada, como estamos vendo,
se comparada aos estilos e gêneros sucedâneos do século XX como o do
Robson Corrêa de Camargo | 87

naturalismo com sua filosofia de criação de uma representação fotográfica


do homem cotidiano em cena, mas, não diante da experiência teatral.
Esta percepção de exagero gestual não é fruto da identificação do es-
petáculo melodramático em seu nascedouro, mas de sua recepção crítica
em pleno século XX, quando a percepção da interpretação e a representa-
ção da realidade da cena percebem-se amplificadas, primeiro pelas lentes,
depois potentes microfones e câmeras várias.
A pantomima não pode ser vista apenas como uma forma “não fa-
lada” de expressão cênica e gestual. Na gestação do melodrama, ela irá
contribuir não apenas com a gestualidade, mas também com a improvisa-
ção e a constante inclusão de distintos fenômenos artísticos. Primeiro
vamos à gestualidade para entender como esta irá tomar parte atuante no
processo de gestação do melodrama.
Na história do teatro a pantomima tem uma larga tradição. Na Gré-
cia, esta forma de espetáculo era dançada e estava presente dentro das
apresentações da comédia, da tragédia e do mimo gregos, assim, a panto-
mima, em forma silenciosa, nascerá apenas em Roma, pois o mimo grego
mimava1 e também falava.
Em Roma, a pantomima foi chamada de mimus ou pantomimus, e
era feita com máscaras, música e diálogo, sempre improvisado, no qual a
habilidade era adequar o gesto à palavra. Este “gênero” simbiótico, imper-
feito, não procurava o purismo das formas ou leis que tentariam ser
estabelecidas, posteriormente, à tragédia ou à comédia. O termo panto-
mima era inclusivo, estendeu-se a toda a forma de espetáculo e, nos
tempos culminantes do Império Romano (27a.C. – 467d.C.), a palavra
mimo seria inclusive usada para referir-se a todo tipo de entretenimento
oferecido no local teatral e não apenas referente às formas dramáticas.
Mimo refere-se também a formas sérias ou cômicas, mas, usualmente
trata dos aspectos da vida cotidiana de um ponto de vista satírico ou cô-
mico. O espectro teatral do mimo era tão amplo que incluía o espetáculo

1
Verbo mimar, segundo o Dicionário Aurélio, exprimir por mímica.
88 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

em que havia inclusive cenas de sexo explícito. Conforme descreve


Brockett, estes atos de sexo à vista do público teriam sido encenados sob o
império de Heliogabalus, Imperador de Roma, entre 218-222 d.C. Para
destacar este procedimento, há que se perceber que a pantomima anexava
a seus procedimentos o de todos os gêneros que surgiam, tal como os ro-
manos anexaram outras terras ao seu império.
Além dos textos dramáticos, as companhias de mimo romano apre-
sentavam uma variedade infindável de números, conforme a
disponibilidade de seus atores: trapézio, equilibristas, cuspidores de fogo,
engolidores de espada, ilusionistas, animais treinados; algumas vezes par-
ticipavam nas peças atores com pernas de pau, canto e outros números
que pudessem atrair a plateia. Sim há ainda um elemento circense no me-
lodrama que se formava.
Em Roma, havia também um estilo pantomímico denominado fabula
saltica, com aspectos comuns com a pantomima grega. A fabula saltica
tinha uma forma mais definida, era mais um predecessor do balé moderno
e, essencialmente, uma forma de dança, geralmente séria e, algumas vezes,
cômica em que se contavam histórias. Na maioria das vezes apresentava
um ator-dançarino e, às vezes, um ator-assistente, com tramas tiradas
usualmente da mitologia ou da História. A ação do dançarino silencioso
era acompanhada por um coro que cantava um texto explicativo apoiado
por uma orquestra composta de flautas, flautas de pã e címbalos. Estes
procedimentos lembram muito determinadas danças-teatro da Índia e
mesmo o teatro Noh.
A pantomima ou o mimo romano teria evoluído em três fases até se
constituir em espetáculo dramático: a primeira, na qual o gênero separa-
se da declamação, reforçando-se, portanto, seu caráter gestual; a segunda,
na qual a dança mimada é utilizada como intermezzo da comédia e o úl-
timo período, em que este intermezzo transforma-se em espetáculo linear
e coerente de uma história a ser contada (Bragaglia, 1930, p. 34).
A pantomima, como texto espetacular (não apenas o texto escrito,
mas toda a inscrição que ocorre em um espetáculo, a forma auditiva,
Robson Corrêa de Camargo | 89

visual, sensória, etc.), sempre se caracterizou por ser uma forma híbrida,
amalgamada, não apenas do cruzamento dos gêneros diversos, entre os
quais se apresentava, mas que se destinará também a apropriação de cul-
turas distintas, lembremos mais uma vez a extensão do Imperio Romano.
Forma de alto teor farsesco, sempre reforçada em seu caráter de ação mi-
mética, alternava canções e diálogos, silenciosos ou não. As personagens
fixas e rotinas cômicas desse gênero acharão um caminho mais estrutu-
rado no teatro de Plautus (254-184 a.C.) e reaparecerão modificadas na
commedia dell’arte.
Na pantomíma romana o ator usava diferentes máscaras e os panto-
mimus vestiam-se de forma similar aos atores trágicos gregos com longas
túnicas. As máscaras identificavam as personagens, restringindo o uso da
fala e da expressão facial, exigindo, entretanto, uma habilidade física mais
elaborada. Era uma arte de postura física e do gesto, em que era funda-
mental a expressão dos braços, das mãos, dos olhos. Como arte
teatralizada, o valor do espetáculo estava na representação em si, na habi-
lidade e no talento de seus atores, não necessariamente na tradução pura
e simples ao palco de um determinado texto. Em geral, o texto era adap-
tado das tragédias e cantado ou recitado pelo coro.
A pantomima, termo que servia a quase toda apresentação teatral,
com ou sem fala, acabou sendo identificada posteriormente apenas como
uma imitação silenciosa feita pelo gesto e, às vezes, acompanhada de mú-
sica, restrição similar àquela que sofrerá, posteriormente, a compreensão
do melodrama. Deste modo, tratam-se de termos, pantomima e melo-
drama, que nominam uma gama de fenômenos sob suas asas e que depois
acabam restritos a algumas de suas particularidades por alguma operação.
O forte caráter gesto-presentacional da pantomima buscou mais que
uma simples tradução do texto ou da emoção do ator no gesto. Gesto-pre-
sentacional aplica-se a parte da arte do ator que tem a busca gestual como
princípio dinâmico. Como técnica de atuação aproxima-se e inclui a arte
da dança, pois o dançarino também busca a perfeição do gesto como eixo
de presentação. A pantomima recusa a distinção entre corpo e fala que se
90 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

desenvolveu no teatro da palavra escrita representada no teatro europeu


da primeira metade do século XX, engessando o ator em sua gestualidade
e em sua livre movimentação corporal, paradoxo que pretendeu distinguir
o teatro dramático, como reino da palavra falada, texto-presentacional e o
da dança, império do corpo e do movimento. Esta acabou sendo uma das
razões da presentação do ator evoluir (ou involuir), sobretudo no teatro
dramático europeu do século XX, para uma ausência ou minimização ges-
tual. Neste enquadramento, a gestualidade do melodrama tornou-se
“excessiva”. No tratado sânscrito Natyashastra, escrito possivelmente 200
anos antes ou depois de nossa era, a teatralidade definida não distinguia o
teatro da dança. Se ainda levarmos em conta que a pantomima evolui em
meio a uma cultura fundamentalmente oral, em um mundo ainda iletrado,
sem imprensa, fica mais claro o porquê da existência desta cena com pre-
dominância de gestos e de sua intensa absorção pela plateia.
A busca do aqui e do agora, da presença cênica, da representação fí-
sica, da luta pela conquista do gosto imediato da plateia ante a
representação que se desenvolvia, o uso de uma linguagem devassa deter-
minou que os libretos da pantomima, como os da commedia dell’arte
fossem esquemáticos e sintéticos. Para uma análise apropriada destes fe-
nômenos deve-se colocar os libretos em segundo plano e olhar para outro
texto, o texto espetacular, sabendo-se mais difícil esta tarefa.
O diretor de teatro e cinema, teórico italiano Anton Giulio Bragaglia
(1890-1960), com grandes ligações com o futurismo, realiza uma interes-
sante descrição da presentação pantomímica em sua evolução à
pantomima sem fala. O espetáculo pantomímico, para ele, desde seu início
foi ligado à dança e desde os gregos teve o nome de orchésis, assim como
de quironomia (cheironomía), a pura arte de se exprimir com as mãos.
Mãos que, certamente, levavam todo o corpo, o nome implica seu caráter
gestual primeiro.
A orchésis dividia sua apresentação em cubistica, sferistica e orches-
tica. A primeira forma, cubistica, constituía-se em uma ginástica
acrobática, a segunda, como se dizia em Roma, saltatiocum pila, destreza
Robson Corrêa de Camargo | 91

ou jogos com bola e a terceira, a orchestica, era a dança teatral que conti-
nha a quironomia, a arte de exprimir-se com as mãos, uma parte com uma
estrutura dramática (diálogos e o desenvolvimento de uma história). Esta
última parte, em Roma, chamou-se ainda saltatio. Era circo ou era teatro
ou dança? Não importa, os caminhos da pantomima romana ou do teatro
romano não irão separar a mímica da dança, ao contrário, saltare um can-
ticum, dançar um poema, significava dizê-lo com o gesto (1930, p. 43-44).
Este dançar um poema, saltare um cantico, era de fato uma forma de
canto falado acompanhada de instrumentos, muito mais próximos à reci-
tação que ao canto coral, uma forma de atuação que animava a palavra
com música moderada e representação viva. O movimento ginástico dos
saltimbancos-cantores ou atores-dançarinos, como a antropologia teatral
de Barba-Savarese se define na atualidade, encontrou-se diante da neces-
sidade de expandir ainda mais a voz e adequar a respiração aos
movimentos, isto motivou que dividissem o coro.
Estabeleceu-se, assim, uma primeira divisão entre gesto e palavra,
com o estabelecimento dos artistas cantores, os Istrioni-Musici e os atores
do gesto, Istrioni-Ballerini. A descrição de Cassiodorus (468-562d.C.), em
suas diferentes cartas (4.51.9) na virada do século VI, caracterizava a ati-
vidade do ator da pantomima descrevendo-o como mãos que falavam,
sendo seus dedos similares a línguas, e sua alta sonoridade silente. Cassio-
dorus menciona a atuação pantomímica: enquanto o coro tocava seus
instrumentos e cantava, o pantomimeiro, com seus gestos, apresentava.
Este com a música expunha com uma das mãos os versos aos olhos do
público e, com a outra mão, mostrava as mínimas coisas. Sem palavras
cumpria gestualmente tudo aquilo que estava no soggetto (roteiro) escrito
(LADA-RICHARDS, P.41). Continua Cassiodorus: o mesmo corpo indicava
Heracles e Venus, representava uma mulher num homem, apresentava
um rei e um soldado (...) “assim em um corpo havia muitos”, diferenciados
pela forma de imitação apresentada por seus dedos sábios e mãos falantes
(loquassimae manus, Cassiodorus, Várias Cartas 4.51.8 in LADA-
92 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

RICHARDS, P.41), numa variedade de gestos unidos pelo acompanha-


mento musical de percussão e sopro.
Nesta importante arte teatral romana, quase dois milênios antes de
Brecht, o público não apenas conhecia antecipadamente a história, como
seguia com expectativa o desenrolar da representação e da atuação do
mimo. O pantomimeiro, muito antes que Rousseau propusesse a união da
música com o texto já existente, como vimos, agia sempre sobre a música,
usasse ou não a palavra. O mimo mostrado não utilizava a divisão por ce-
nas, mas, sim, por quadros, divididos simplesmente entre os dialogados e
os cantados. O mimo sabia recitar e declamar, assim como mimicar o mo-
nólogo cantado pelo coro.
Nos comentários seguintes poderemos notar características desse ato
artístico que eram tão intensas que faziam o público suplantar a realidade
cênica mostrada. Analisando a interpretação dos castrati, atores que, por
seu timbre de voz, faziam a parte feminina, Santo Cipriano (200-258d.C.)
faria a seguinte observação: “O mimo é um monstro que não é homem
nem mulher, a sua gestualidade é mais libidinosa que a de uma cortesã e
toda sua arte consiste em falar com gesto”.
Estes castrati “monstros” de sexualidade ambígua, mesmo privados
de parte da genitália, conseguiam despertar naquela santa autoridade ecle-
siástica, sentada na plateia, uma dose de libido maior do que teria
conseguido uma cortesã. Lembre-se que estes monstros castrados tinham
uma extensão vocal que correponde à das vozes femininas, soprano,
mezzo-soprano ou contralto. A castração impedia o crescimento normal
da laringe masculina, mas não do resto do corpo, o que potencializava a
voz feminina em corpo masculino. Seria muito interessante uma investi-
gação mais apurada deste espetáculo e de sua recepção, para que se
evidenciasse a produção da gestualidade desses artistas e seu poder de re-
presentação e de estímulos sensoriais.
Encontram-se dados detalhados desse desempenho, podendo-se
acompanhar a intensidade do espetáculo, por meio das palavras de outro
santo, Giovanni Crisostomo (350-407d.C.). Aliás como veremos neste
Robson Corrêa de Camargo | 93

trabalho policiais e santos ajudaram muito o compreender a arte de que


aqui falamos, mais que a crítica. Em uma de suas pregações (Homilia 42),
Crisostomo descreve os elementos que compunham o espetáculo. Sem ser
necessário perguntar o porquê estes santos e letrados senhores dedica-
vam-se a observar, de suas confortáveis poltronas esses espetáculos
mundanos, podemos acompanhar a descrição sucinta de uma representa-
ção em honra a Baco e perceber seus componentes, assim como notar a
rebuscada utilização do gesto e da música em sua estrutura: “Tudo era
destinado a sensibilizar os sentidos; a palavra, o vestuário, o caminhar, a
voz, o canto, a modulação, o gesto, a flauta, a trama, a fábula”.
O cristianismo primitivo evitava o riso, o canto, a gestualidade e as
formas de espetáculo que contivessem e estimulassem os sentidos, pois
seus fiéis deveriam buscar uma seriedade constante, acompanhada de ar-
rependimento, dor e ausência de manifestação física. Esta procura da
pantomima pela sensibilização manifesta da plateia reclamava uma parti-
cipação intensa, que é uma constante neste tipo de espetáculo, como se o
gestual permitisse um diálogo maior e direto com o público e o teatro fa-
lado, que se constituíria posteriormente, exigisse o silêncio e a sensação
contida, para que se escutasse calado a poesia dita apenas pela voz dos
atores. Um pouco da tragédia silente nos palcos da modernidade tem a ver
com limitação dos sentidos imposta pelo cristianismo, uma castração cul-
tural, aliás compare-se a voz dos padres com dos atores destas artes.
Nos tempos do império de Heliogabalus, 218-222d.C., a sexualidade
chegou a ser explícita e praticada em cena. Assim se a cena ou tableau final
não terminasse com um ato sexual verdadeiro, acabava pelo menos com
um nu. Tableaux é uma forma de reforço da cena, na qual as cenas são
congeladas, como numa pintura, por um curto tempo, geralmente utiliza-
das no final dos atos para destacar uma cena ou ação representada, ou com
mais frequência usada no final da representação como um gran finale, elas
intensificam o drama servindo como um registro de atenção para o que se
está a fazer.
94 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Bragaglia descreve uma participação da audiência, em que o povo ro-


mano presente, em vez do bravo! usual gritava Hurra!, urrava sim, mas
para a atriz: A queremos nua! (La vogliamo nuda!). E o mimo, ou melhor,
a mima descobria-se toda, anuindo à vontade do povo e realizando, assim,
o esplêndido espetáculo de corpo despido (Bragaglia, 1930, p. 62). Pode-
mos assim também concluir que a fuga da gestualidade teatral excessiva
também foi reforçada por desígnios religiosos que buscavam mais a ges-
tualidade contida do corpo e voz dos membros das ordens religiosas que a
bacanália expressiva romana.
Como sabemos, o teatro dito sério que se conformou durante o século
XIX, o teatro da tradição da palavra escrita que hoje conhecemos prefere
deixar estas coisas mundanas intuídas ou, falando de outro modo, insti-
tuiu-se as elipses como procedimento adequado para tratar das coisas do
corpo, pois o lugar da cena é o do espírito ou da razão divina, não o dos
parcos sentidos humanos. Num certo sentido a divisão por gêneros, farsa,
tragédia, comedia, tem a ver com alguma forma de censura e valoração de
determinado tipo de espetáculo, apoiando-se em aspectos mais de fé, que
de arte.

O treinamento do ator na pantomima

Deixando-se de lado a singularidade e o recatado entusiasmo daquele


autor que escreveu o exemplo pitoresco da nudez pantomímica de antanho
e, que se ressalte, foi apenas um dos caminhos que a pantomima romana
percorreu, pode-se agora voltar à acadêmica análise da forma de apresen-
tação dessa arte do gesto total desvelado. Vou descrever agora o complexo
método de treinamento e exposição da personagem pelo ator da panto-
mima.
Bragaglia descreve-a em três fases: a primeira, a mais importante,
revela um grau de consciência profunda do fazer teatral e de sua conexão
com a plateia: o contegno (comportamento, atitude, postura). Pode ser de-
nominada como o caráter do ator-personagem, ou ainda, a presença
Robson Corrêa de Camargo | 95

cênica, a arte de fazer-se reconhecer imediatamente na personagem re-


presentada, antes do início da ação que será realizada ou pelo gesto que a
vai caracterizar. Aquilo que existe previamente a fala. Algo como o desper-
tar de um amor à primeira vista.
Esta técnica é intensamente trabalhada pela mímica e precede àquela
que se preocupa com o desenvolvimento ou reconhecimento da persona-
gem por meio da ação desenvolvida, e é o ponto central de vários
procedimentos do teatro popular. No teatro de variedades dos séculos XIX
e início dos XX era muito comum, pois era exigida a capacidade do ator
surgir em cena e conseguir a empatia da plateia no imediato momento em
que aparecia no palco. Os artistas das formas de teatro de variedades,
como os da mímica, com seus números rápidos, muitas vezes, de cinco
minutos, não podem desenvolver uma longa história que o público deva
acompanhar, ou mesmo, o palhaço, com suas rotinas rápidas, entre os nú-
meros de trapézio e dos animais, este é obrigado a entrar e imediatamente
conquistar a atenção da audiência, seja pelo andar ou pelo olhar, antes de
iniciar qualquer ação.
Nos dias de hoje, o contegno tem grande importância pelas pesquisas
que destacam o reconhecimento do uso da técnica na prática secular dos
atores orientais, chineses, indianos e indonésios. Entretanto, não é neces-
sário ir tão longe, a pantomima, o teatro de variedades, a commedia
dell’arte e várias formas do teatro popular são mestres nesta técnica.
Um exemplo anedótico pode ajudar a melhor compreender esta ques-
tão do contegno, vejam como o ator Charles Chaplin fez sua primeira
aparição nos palcos. Sua família, de atores de vaudeville, de poucas posses,
levava-o aos espetáculos. Aos cinco anos estava de pé nos bastidores do
teatro de Aldershot, vendo sua mãe apresentar A Cantina. A voz de sua
mãe falhara e o público começara a caçoar dela miando como gatos. Han-
nah então sai do palco, o empresário então sugere que se colocasse Chaplin
em cena, poio já o havia visto representar para amigos e, assim, depois de
levar Chaplin ao palco para cantar Jack Jones, uma canção popular, o em-
presário se retira. No meio da cantiga algumas moedas foram jogadas ao
96 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

palco, mostrando alguma aprovação. Imediatamente Chaplin para de can-


tar e avisa que vai apanhar o dinheiro, e que cantaria depois. O empresário
aparece para ajudar com um lenço e o menino começa a desconfiar desta
atitude e se apressa a pegar suas moedas. Essa desconfiança é observada e
a plateia levada as gargalhadas com o medo do garoto ansioso que começa
a seguir o empresário até quando ele termina de catar as moedas e sai do
palco. Vendo que o empresário deixa as moedas com sua mãe Chaplin
volta para aquela plateia inicialmente adversa e continua a cantar várias
músicas, dançar, conversar, fazendo mesmo várias imitações inclusive da
mãe falhando no palco, uma aclamação. Quando Hannah vem para tirar o
menino um grande aplauso para os dois. “Essa noite marcou a minha pri-
meira aparição em cena e a última de mamãe” que nunca mais iria
recuperar a voz, afirma Chaplin (CHAPLIN, 1989, p.14).
Se o contegno seria a primeira qualidade técnica, a segunda seria o
gesto ou o desenvolvimento da gestualidade da personagem, ou ainda, da
personagem em ação. A última, o ostentio, a exibição ou mostra, a arte de
fazer-se entender ou contar ou atuar a história sofrida pela personagem.
Como vemos, tudo está muito voltado à relação do ator com o público e
seu entendimento da ação no palco, não ao desenvolvimento da palavra.
Para melhor clareza da análise que estamos realizando, acrescento
um quarto elemento à trindade de Bragaglia. Este seria o todo represen-
tado, ou melhor, o adequado equilíbrio ou a adequada mistura de todos os
elementos citados anteriores no desenvolvimento da totalidade do espetá-
culo, o complexo gestual.
O teatro, como está sendo mostrado, tem mais a ver, como história e
tradição, desde os gregos e suas odisseias com a oralidade, com a ação no
espaço e a sua plena consciência de ser representado para um todo cole-
tivo, a plateia. Como podemos ver, esta não é uma simples concessão
comercial ou de facilidade do gosto para plateias menos refinadas, mas a
relação necessária de um teatro que não tem seus parâmetros no escrito
para ser falado, mas, em sua presentação e ou na relação com o olhar pú-
blico.
Robson Corrêa de Camargo | 97

Com o Renascimento, a Reforma e a Contra-Reforma religiosa, a pan-


tomima desenvolveu-se por caminhos um pouco mais pudentes do que a
nudez final romana, em especial, nas formas da commedia dell’arte, do
teatro de feira francês e, finalmente, da pantomima inglesa, eliminando-
se aí completamente qualquer caráter imoral, pois as feiras aconteciam em
solo sagrado, nas imediações de igrejas. Afinal Roma não era mais o centro
do Império dos Czares, mas a cidade do papa.
Já no século XIX, na Inglaterra vitoriana, a pantomima, distante de
sua polimorfia romana, foi incorporada às festividades natalinas, dentro
do comportado espírito cristão. Agora uma jovem atriz interpreta o herói
ou um jovem, enquanto um ator cômico encarna uma velha senhora ou
dama, com propósitos evidentemente cômicos. No final do século XIX in-
glês, algumas das pantomimas serão Cinderella, The Babes in the Wood,
Aladdin, Robinson Crusoe, Mother Goose (Mamãe Ganso), Blue Beard
(Barba Azul), a maioria por nós conhecida.
Durante o século XX, a mímica caminhará para um refinamento de
conteúdo ainda mais elaborado, com preocupações de discurso mais sin-
téticas. É importante destacar que os principais protagonistas desse
trabalho, que poderíamos chamar da escola francesa do mimo são: Étienne
Decroux (1898-1991), Jean-Louis Barrault (1910-1994) e Marcel Marceau
(1923-2007), artistas fenomenais. Como eles mesmos declaram, desenvol-
veram seu trabalho principalmente após o sucesso de Charles Chaplin,
Buster Keaton, Ben Turpin e outros no campo da tela muda, artistas de
vaudeville que foram sugados pelas telas do cinema. Técnicas do vaudeville
que plamaram o cinema e alimentaram o teatro em suas novas formata-
ções. Todos estes artistas cômicos do teatro de variedades traduziram e
adequaram seu trabalho para o cinema. Mas, para o que nos interessa,
detenhamo-nos no desenvolvimento da pantomima nos teatros de feira da
França, uma das fortes tendências que irão gestar o melodrama francês.
98 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

A improvisação no teatro das feiras

No período que antecede a Revolução Francesa e o estabelecimento


definitivo do melodrama, há mais de duzentos anos, a única forma de di-
versão popular permitida era a pantomima, arte exposta em forma de
variedades nas feiras e que se dirigirá depois aos bulevares.
No início do século XVII, ao mesmo tempo em que Shakespeare e
Lope de Vega iniciavam seu trabalho nas margens dos rios de Londres e
Madri, havia em Paris seis grandes feiras, mas apenas duas tiveram reco-
nhecida importância como locais constantes de manifestação teatral: as
feiras de Saint-Germain e Saint-Laurent, em campos contíguos às respec-
tivas igrejas.
A primeira menção é a uma feira no entorno da antiga abadia dos
beneditinos de Saint-Germain-des-Prés é encontrada em 1176. Sendo esta
uma das igrejas mais antigas da Europa (558 d.C.) e que se situava imedi-
atamente fora dos muros da Paris medieval, na margem esquerda do Sena.
Organizava-se no entorno da Páscoa, no começo da primavera européia,
durando três a cinco semanas. Os entornos da antiga abadia são parte da
pungente história intelectual da França, nela, por exemplo está enterrado
Descartes. Esta velha abadia foi praticamente destruída durante a Revolu-
ção Francesa, ao servir como arsenal. Em volta dela moraram
enciclopedistas, muitos revolucionários franceses (Danton, Marat, Guillo-
tin), assim como foi centro intelectual dos existencialistas no século XX
(Sartre e Beauvoir), fazendo parte dos quarteirões no entorno da univer-
sidade, assim chamado Bairro Latino (Quartier Latin), fundamental no
proibido proibir de 1968.
No começo do século quinze esta feira quase desapareceria, entre-
tanto, em março de 1482, o rei Luís XI, o prudente (1423-1483), a fim de
compensar os monges de Saint-Germain-des-Prés pelas perdas sofridas
como resultado das guerras, lhes permitiu estabelecer uma nova feira. O
lugar onde ficavam as barracas cobertas hoje está ocupado pelo mercado
coberto de Saint-Germain. A primeira menção de atores que se encontram
Robson Corrêa de Camargo | 99

em registros foram: Jehan Courtin e Nicolas Poteau, em 1595, pois os ato-


res do Hotel de La Bourgogne entraram com uma petição contra os dois.
Nela se apresentavam artistas variados em sucessivos números de dança,
canto, malabarismo, acrobacias, mímica, números de bonecos, animais
amestrados e pequenas cenas teatrais de caráter farsesco. A feira de Saint-
Laurent, outra feira de renome, ocorria no verão europeu, entre 9 de
agosto a 29 de setembro. Existindo na parte central de Paris desde 1183,
no Les Halles, perto da igreja de Santo Eustáquio, e depois mudando-se
mais ao norte da cidade, no lado oeste da Igreja de Saint-Laurent, distante
cerca de dois quilômetros de sua origem. Ao início do século XIX o local
desta feira foi demolido.
Os espetáculos da feira, empreendimentos privados e não permanen-
tes, não eram subvencionados nem pelo rei nem por entourage, e
dependiam apenas do comércio nas bilheterias. O sucesso era o primeiro
objetivo de seus espetáculos que não se propunham apenas a sensibilizar
o público, mas a conseguir que este desse algo em moedas cintilantes em
troca dessa sensibilização, como valor de troca, pois este era e é o propósito
das feiras. Não realizavam um teatro de repertório nem de alternância de
peças, como faziam os elencos estabelecidos sob a égide real. Interpreta-
vam a mesma peça até suprir a plateia ou ver esvaziar os assentos, assim,
poucas peças foram representadas mais de sete vezes.2 Como vemos, o ca-
ráter desse empreendimento, tanto pelo público a que se destinava como
pelas condições econômicas que o emulava, muitas vezes precário, era
bem diferente dos elencos subvencionados e regulados pela monarquia. Se
os teatros “reais” tinham uma regulação, não o havia nas feiras.
Esta produção no teatro das barracas de feira gerou uma enorme pes-
quisa do que aprazia o gosto popular do teatro como puro divertimento,
também da busca do original, da fantasia, do que agradava a vida, do pi-
toresco, do cômico e do imaginativo, de tudo aquilo que pudesse ser

2
Ver teatro de feira em Paris in: http://www.theatrales.uqam.ca/foires/
relação dos espetáculos de feiras na França (Paris e províncias), 1601-1774. Le Théâtre de la foire à Paris. Acesso em
20 de agosto de 2020. Site da Universidade de Quebec-Montreal.
100 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

colocado como valor de troca no mercado das ilusões. As feiras, assim, não
cuidaram apenas da barriga, mas também da “cultura”.
Neste reino das ruas e da circulação das mercadorias, impunha-se
uma procura do original, do diverso, da fuga das normas, já que nos limi-
tes da monarquia, pressentindo-se, talvez, sua futura derrocada,
elaborava-se uma constante sistematização e permanência de seus hábitos
na sistematização das danças da corte, nos costumes, nas formas de repre-
sentação de espetáculos que agradassem primeiramente a presença real,
mas não nas feiras.
Deste modo, como Blanc, podemos dizer que se estabelecia nas feiras
uma forma do “imprevisto dentro de uma imaginação que não cessava de
se renovar” (Blanc, 1978, p. 77). A improvisação das feiras e de seus teatros
não era apenas uma questão técnica, mas uma nova maneira artística que
se estabelecia e rompia os cânones predecessores.
Não era apenas o gosto do público ou o aspecto mundano e não re-
grado desse tipo de espetáculo que determinava a característica de estilo
ou de gênero desta nova forma teatral. Este procedimento inscreve-se em
uma atitude cultural, que faz parte do programa libertário de contestação
da ordem estabelecida que procurava a normatização. Afinal, a Liberdade,
no programa cantado da Revolução Francesa, não era apenas um termo
para rimar com Igualdade.
Esta manifestação teatral sofreu a perseguição e a censura efetivada
por sua Majestade e ou pelos organismos reais da lei e da ordem, pela
Igreja, e mesmo pelos próprios artistas competidores reconhecidos e pro-
tegidos pelo manto real. Isto irá obrigar o teatro das barracas de feira a
utilizar ou experimentar várias formas e estilos de encenações dramáticas
também para evitar perseguições ou confusão como os gêneros estabele-
cidos e legalizados. Tais procedimentos poderiam ser: desenvolver
personagens que compartilhassem a mesma cena, mas não poderiam di-
alogar, juntando-se apenas de forma metafórica num todo; cenas sem fala;
diálogos tirados do bolso dos atores em forma de pequenos rolos para se-
rem mostrados ao público, para que ele cantasse, ou com cartazes expostos
Robson Corrêa de Camargo | 101

acima da caixa teatral, seguros por crianças vestidas de anjo. O diálogo


realizado era não apenas no palco entre as personagens existentes, mas
com canções cantadas pelo público com atores disfarçados que o dirigia,
enquanto no palco houve atores às vezes emudecidos, mas atuantes; diá-
logos curtos e rápidos e sempre com abertura ao exótico. Em breve
veremos um exemplo.
A criatividade do teatro de feira francês ampliou o repertório de pro-
cedimentos teatrais, em relação às técnicas existentes de interpretação do
espetáculo e em sua relação com a plateia, repertório jamais sonhado an-
teriormente por qualquer gênero teatral.
Blanc (1978, p. 78) aponta que a alma desse teatro era a discordância
de tons, juntando decorações e personagens exóticas ou antigas com um
diálogo muito familiar e parisiense. As citações paródicas de tragédias cé-
lebres e dos espetáculos realizados pelos elencos "reais" eram constantes,
mostrando que esses artistas conheciam as formas teatrais. As réplicas
eram rápidas, as canções a serem cantadas pelo público, sempre agradá-
veis, e precisavam ser de fácil aceitação, mas o elemento auditivo não
vinha mais que complementar este tipo de teatro, no geral, o principal era
o complexo gestual apresentado para o público.
Os elencos reais subvencionados caminhavam para uma forma es-
truturada e totalmente regulada de manifestação, como o foram as danças
da corte; o teatro das feiras ia gerar um modo mutante mais de acordo
com as leis de livre comércio que as ditadas pelas bulas papais ou reais, o
que permitiu sua acomodação a diversos tipos de intervenção.
É importante que se destaque um pouco mais esta questão da perfor-
mance da leitura em seu tempo histórico, para entendermos ainda mais a
questão do teatro improvisado. Se hoje nossa relação de leitor é silente e
com os olhos, Chartier descreve que a experiencia de leitura dos séculos
XVI e XVII se constituía, sejam textos literários ou não, como uma oraliza-
ção, sendo o leitor um leitor em voz alta, que se dirigia a um publico de
ouvintes. Assim a leitura era destinada tanto ao ouvido como à visão. As-
sim a obra escrita, lida, jogava com formas e procedimentos aptos para
102 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

submeter o escrito às exigências de uma performance oralizada. Assim a


forma escrita estava amalgamada com a oralizada, ou com a forma de sua
presentação (CHARTIER, 1992 [1899], p.55).
Vamos acompanhar de perto o desenvolvimento histórico desse pro-
cesso do teatro improvisado, que é interessante para a nossa compreensão
do melodrama que irá nascer.
O elemento visual desses espetáculos era dominado pelo pitoresco da
decoração, dos truques cênicos e pela misé en scène, no qual a alusão ao
escatológico, em todos os seus sentidos, era uma constante. Este tipo de
espetáculo originado nas feiras, dentro do espírito comercial do deixa fa-
zer, deixa passar, não buscava uma forma pura, ao contrário, propunha a
mistura de gêneros ou um gênero das misturas, de épocas, de tons, com
audácia de linguagem, transgressão calculada, utilizando a irreverência co-
tidiana, os lazzi, as acrobacias, o jogo de palavras, a sátira, os sarcasmos,
as ironias e piadas a granel.
Dentro desse tipo de teatro, a assimilação explícita das estruturas dos
outros gêneros existentes, como as músicas repetidas de operetas ou das
comédias musicais, ou da paródia contínua traziam não apenas a introdu-
ção dessas estruturas ou elementos destes outros estilos dramáticos, mas
também implicitamente uma crítica aos limites preestabelecidos dos gê-
neros ou formas teatrais contemporâneas. Assim, instala-se uma relação
dinâmica entre o enunciado citado e o citante, o que torna esta operação
de diálogo com outros textos uma parte fundamental da pantomima dia-
logada. O teatro da pantomima, mesmo emudecido ou gestual, estará
sempre em diálogo. Nesta forma, o que está em questão não é a citação,
mas a glosa, o discurso paralelo, o diálogo, a forma na qual ela é realizada,
sujeito e objeto do discurso cênico; um gênero que não se estabelece como
tal, pois o que tem em comum é um procedimento e não algumas caracte-
rísticas particulares de estilo, que podem mesmo ser contraditórias, entre
uma peça e outra.
Em sua procura pelo efeito teatral, pela invenção constante, pela re-
novação em moto contínuo, o teatro das feiras acabou produzindo-se como
Robson Corrêa de Camargo | 103

um local de experimentação das novas formas de manifestação teatral. As-


sim eram as barracas de feiras um constante experimentar do diverso, do
outro, do estabelecer diferentes condimentos, da troca de experiências e
de culturas. O sucesso desse procedimento com o público das feiras, ou
mesmo, por debilidade das companhias reais, atraiu até sua plateia o pú-
blico das cortes e chegou a receber, algumas vezes, o próprio
reconhecimento real. Por mais de uma vez, estes comediantes saíram das
feiras e apresentaram-se na Opéra, ou mesmo, no Palais-Royal para o du-
que de Orleans.
Por volta de 1570, numerosas companhias profissionais tinham se de-
senvolvido fora de Paris, nas suas cercanias ou em outras cidades, porém
poucas podiam representar na cidade. Brockett identifica a existência de
quatrocentas companhias de teatro fora da cidade de Paris entre os anos
de 1590 e 1710 (1999, p. 209).
A partir de 1570, companhias visitantes das províncias começam a
alugar o Hôtel de La Bourgogne, com seus 1.600 lugares, por curtos perí-
odos e cada vez mais o teatro foi aumentando sua ocupação temporária.
Não todas as companhias visitantes atuaram nos palcos do Hôtel, mas to-
das tinham de pagar uma taxa à Confrérie de La Passion, a companhia de
amadores que detinha o monopólio da representação desde 1402, caso se
apresentassem dentro dos marcos da cidade. Este fato, entretanto, se tor-
naria uma faca de dois gumes aos defensores do monopólio.
Como ainda não havia luz elétrica, o espetáculo das companhias visi-
tantes era representado durante o dia, por volta das 5 horas, dando tempo
suficiente para que a plateia retornasse às suas casas depois do espetáculo.
O programa diário era construído de peças curtas e entretenimento vari-
ado, assim como poderia incluir uma peça longa seguida de uma farsa. A
música era uma parte constante de todos os desempenhos.
Em 1595, o Parlamento quebrará o monopólio teatral da Confrérie,
mas este apenas permite determinada forma de representação no interior
das feiras, formas estas que não possibilitassem competição com os come-
diantes anteriormente estabelecidos. Isto possibilitou aos atores da
104 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

província tornarem às feiras de Saint-Germain e Saint-Laurent ilhas idi-


ossincráticas, enclaves teatrais totalmente abertos à grande variedade de
companhias e estilos.
Os feirantes fundamentaram-se em uma antiga ordenança de Fran-
çois I (1494-1547), que reconhecia na feira o lugar de comércio e jogo. As
feiras receberão farsas apresentadas em espetáculos variados, “anuncia-
dos” pelas parades, como eram chamados os pequenos números teatrais
feitos à porta ou nos balcões externos dos teatros de feira, para aglutinar
o público passante e levantar sua curiosidade sobre o espetáculo a ser
apresentado, para fazê-lo pagar e entrar em suas tendas.
Apenas quase cem anos depois, em 1680, Luís XIV lançará o edital
que funda a Comédie Française que será investida da exclusividade de en-
cenar peças teatrais em Paris, e assim os demais atores serão proibidos de
se estabelecer na cidade, a menos que fossem expressamente autorizados
por sua Majestade. Iniciou-se, então, uma série de novas medidas restriti-
vas com o fito de manter o monopólio e impedir o desenvolvimento da
representação nos teatros de feira. Estas medidas reais influiriam decisi-
vamente no estilo teatral a ser desenvolvido, posteriormente, pela
pantomima das feiras. A principal destas medidas foi a expulsão dos atores
italianos de commedia dell’arte de Paris, em 1697, após estes apresentarem
a comédia Le Fausse Prude (A Falsa Pudica) que tratava jocosamente Mme
de Maintenon, protegida de Luís XIV.
Até esta data, o que se via nas feiras eram, em especial, espetáculos
com marionetes, apresentação de animais ferozes, saltimbancos e os dan-
çarinos-equilibristas da corda bamba. Mas o ato inesperado de expulsão
dos irreverentes italianos propiciou que os barraqueiros da feira aprovei-
tassem os textos dos italianos recém-expulsos. Assim, o sucesso permitiu
a transformação de suas barracas em salas de espetáculo, onde procura-
vam igualar o sucesso das peças italianas, imitando o estilo e as
personagens.
O público das feiras, animado, vai assistir à nova versão do teatro
recém-desaparecido. Os forains (forasteiros, como eram chamados na
Robson Corrêa de Camargo | 105

época; de fora de Paris) interpretavam as peças italianas à sua maneira,


misturando ainda mais os estilos. No início, a polícia fechou os olhos e o
sucesso de público foi imenso. A partir daí, começou uma longa e árdua
batalha pela existência e desenvolvimento de formas teatrais mais dramá-
ticas nas feiras, quase sempre contestadas pela Comédie Française que
buscava manter seu monopólio. Os atores-dançarinos da feira foram deti-
dos, trazidos perante o tenente-geral da polícia e condenados pelo juiz.
Entretanto, apelavam da sentença ao parlamento, enquanto continuavam
sua representação sem nada mudar, esperando a decisão final. Se a paró-
dia da corte expulsara os italianos, ela continuaria pelas mãos dos atores
feirantes.
Três anos depois, o lento parlamento francês deu ganho de causa a
seus perseguidores, o que impeliu os artistas da feira a tentar driblar de
outras formas o monopólio dramático. Proibidos do diálogo, pois este era
o decreto, como primeira medida, os forains começaram a apresentar de-
terminada peça como se cada um de seus atos se constituísse em uma peça
curta independente, sem nenhuma ligação ou diálogo. Desse modo, sob a
falsa aparência de peças curtas e independentes havia uma versão disfar-
çada de uma peça integral. O público encorajou o subterfúgio e, graças a
seu zelo, a decisão do parlamento ficou longe de produzir os efeitos dese-
jados.
A Comédie Française, que se tornou detentora do monopólio da pala-
vra e da história dramatizada, era cruel e injusta com os rivais. Se em
qualquer barraca dos teatros de feira fosse encenado algum drama que
ultrapassasse a pantomima permitida, os responsáveis iriam encontrar
duro tratamento.
Alexandre Bertrand (1684-1723), famoso por suas marionetes, ocu-
pou por alguns dias o Hôtel de La Bourgogne, imediatamente, após a
expulsão dos italianos. Em 1689, Bertrand comprou a permissão de apre-
sentar seu número em Saint-Germain. Houve tanto sucesso que, no
próximo ano, ele adicionou ao espetáculo uma equipe de comediantes.
106 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Mas, apesar de seu protesto, suas instalações foram completamente demo-


lidas pela polícia real.
Nesta disputa sobre o estilo do espetáculo de feira, que se inicia na
passagem para o século XVIII, uma época de batalhas legais, os atores da
Comédie não conseguiam mais restabelecer sua boa bilheteria, e este mal
não faria mais que piorar o ânimo de seus componentes.
Nas feiras, as farsas multiplicavam-se. Já em 1706, havia sete estabe-
lecimentos para apresentação teatral em Saint-Germain e suas
programações incluíam os mesmos gêneros de espetáculo: dança de corda,
farsas e pequenas comédias que misturavam o italiano e o francês, o que
reforçava o aspecto gestual, entremeadas pela dança e intermezzos.
Em 1707, em nome da liberdade de comércio existente nas feiras, um
príncipe da Igreja assumiu pessoalmente a causa dos artistas das feiras.
Mas apesar da intervenção favorável até do Cardeal d’Estrées, proprietário
dos terrenos da Abadia de Saint–Germain des Prés, os dançarinos de corda
e os farsistas foram censurados. Depois de 1709, qualquer forma de repre-
sentação de comédia ou farsa por diálogo ou outra forma estava
totalmente proibida nas feiras. Esta decisão promoveu novas formas de
burlas.
É interessante perceber a descrição de um comissário de polícia de
um desses espetáculos sem diálogo, após a proibição. Escrevia ele:

o espetáculo começava por dois dançarinos de corda, seguido de dois acroba-


tas. Surge então o Doutor que fala sozinho, e sai. Entra em cena um Pierrot
que fala sozinho. Outra personagem, Marinet, vem encontrar Pierrot, mas não
se falam, depois os dois retiram-se. Em seguida, Arlequim aparece e fala sozi-
nho em voz alta. Na sequência Pierrot aparece no palco e fala de suas desgraças
a si mesmo. Arlequim retira-se, Pierrot fica e fala sozinho (Archives des
Communes, nº 1.290. Voy, Campardon, Les Spectacles de la Foire, in: Bar-
beret, 1887, p. 233).

A descrição do comissário continua na mesma toada, até que o co-


missário conclui brilhantemente que “não havia diálogos e que apenas
existiam dois tipos de monólogos: o de um ator ou atriz que falava sem
Robson Corrêa de Camargo | 107

dirigir-se a outras pessoas e os monólogos em que atores ou atrizes diri-


giam-se a outras pessoas, mas sem obterem resposta” (idem).
O desafio à autoridade real, premido pela subsistência, entusiasmava
público e atores. Se o diálogo falado atrapalhava os ouvidos das autorida-
des e dos atores da Comédie, nas feiras o monólogo tornou-se a atração
principal, como foi chamado: um monólogo à moda da feira.
A mudança, como se constata pela descrição de nosso leal comissário,
teve como objetivo fazer falar um ator de cada vez e impedir a contracena
simultânea dialogada. Se um ator falasse, o outro responderia por meio de
gestos, mas não com palavras. Outra forma desenvolvida para manter o
diálogo consistia na apresentação de um ator em cena dizendo seu texto,
para sair de cena em seguida, o que possibilitaria a entrada de um segundo
ator, que viria dar a réplica em cena, saindo também para permitir a en-
trada de outro comediante ou de seu antagonista falador.
Outro procedimento peculiar consistia na presença de dois atores em
cena, um falando em voz alta e o outro replicando em voz baixa. Neste
caso, o primeiro resgataria em voz alta tudo que o segundo havia recém-
dito. Se a feira já era o local da farsa, ela agora passa a se desenvolver
plenamente por meio do irônico procedimento, chamado na época L’art
de parler seul inventé par la Comédie Française ou a arte de dialogar sozi-
nho criada pela Comédie.
Literalmente, era uma batalha dramática. Quando já não havia mais
nada a perder, num ato de grande audácia, os forains resolveram apelar
ao Grande Conselho da proibição do parlamento, enquanto os comédiens
de dentro exigiam a execução da ordem de arresto3 que tinham conse-
guido.
Apesar do protesto do grande Conselho, que resolveu apreciar a ques-
tão, a Comédie ignorou essa manobra e tentou forçar por manus própria
o cumprimento da sentença. Deste modo, os teatros da feira foram demo-
lidos, os cenários despedaçados e as poltronas quebradas; entretanto, oito

3
Os atores da Comédie conseguiram uma ordem de apreensão dos bens dos feirantes, que não foi realizada.
108 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

dias mais tarde, tudo voltou a ser como dantes, no quartel de Abrantes. O
público encheu novamente as salas de espetáculos das feiras para aplaudir
sua ressurreição.
Nesse ínterim, os atores da Comédie foram condenados a ressarcir os
danos por não haverem respeitado a letra escrita pelos Altos Conselhos e
por terem partido para o gesto radical. Mas o rei finalmente intercedeu e
tirou das feiras o pouco de verbo monologar que nelas ainda havia. Em
1710 vetaria o monólogo inventivo e, assim, iniciar-se-ía o processo da peça
muda nas feiras, ou, como veremos mais adiante, quase muda, pois nada
fala mais alto que o gesto.
É aí que surge a pièce à la muette, peça à maneira emudecida, visto
que os feirantes passaram a ser condenados à mais pura pantomima,
agora realmente sem texto ou monólogo. Estas formas teatrais mudas ti-
veram por mestres os melhores dramaturgos franceses do período: Alain
René Lesage (LESAGE,1668-1747), D’Orneval (p. 1776), Louis Fuzelier
(1672-1752) e depois Alexis Piron (1689-1709). O irreverente Lesage, ou
LeSage, o grande autor do teatro das feiras, foi também introdutor ou tra-
dutor da personagem picaresca na língua francesa com o seu romance
L’Histoire de Gil Blas de Santillane (1715-1735), adaptador de Lope de Vega,
de Calderón e tradutor das Histórias das Mil e Uma Noites.
Mas a feira não deixaria seus teatros emudecidos por muito tempo.
Enquanto interpretavam sem falar, respeitando as ordens reais, os come-
diantes praticavam a diferença entre escrita e fala e desenrolavam o texto
de seus bolsos, mostrando à plateia, contendo o indispensável ou indi-
cando apenas o sentido da passagem de uma cena a outra. Os atores
podiam recitar, mas desde que fossem palavras sem sentido e que con-
viriam ao sentido da gestualidade. Entretanto, no teatro tudo significa e,
muitas vezes, estes grunhidos lembravam explicitamente a melodia dos
versos alexandrinos de várias peças que estavam sendo apresentadas pelos
atores reais. Depois a prática sugeriu que cartazes fossem colocados acima
do palco, fazendo com que as pièce a la muette se transformassem em pièce
par écriteaux, peças com cartazes. Outra descrição policial possibilita
Robson Corrêa de Camargo | 109

visualizar esta forma de espetáculo com cartazes, descrevendo igualmente


melhor que muitas análises críticas. Em 1711, este outro comissário des-
crevia:

note-se que há um palco elevado em cerca de um metro e meio, com candela-


bros acima e uma orquestra abaixo do nível do palco. A orquestra tem seis ou
sete instrumentos. […] Acima do palco citado, vêm atores e atrizes vestidos
como Pierrot ou Arlequim ou com vestuário francês ou outros disfarces. Estes
representavam cenas silenciosas sobre temas distintos com cartazes seguros
por dois garotos suspensos no ar, que eram levantados e abaixados por cordas
e máquinas. Os cartazes citados continham letras de canções que eram canta-
das por várias pessoas na plateia, assim que o violino desse a melodia. Estas
canções eram escritas nos dois lados do cartaz, servindo tanto como indicação
como resposta de um ao outro, dando assim uma explicação das cenas silen-
ciosas. (CAMPARDON, 1970).

Como vemos, a história do teatro em muito se deve à presença em


sua plateia de dedicadas autoridades eclesiásticas e policiais, já que a outra
crítica preocupava-se mais em normatizar os gêneros que olhar e descre-
ver o que acontecia nos palcos. A farsa do teatro das feiras tomou uma
dimensão importante no processo artístico que se abria, no qual a gestua-
lidade, muitas vezes, acompanhada pela música, iria adquirir uma
importância basilar, tornando-se o texto feito verbo dispensável, auxiliar.
Levando-se em conta a tradição francesa do teatro fundamentado na
palavra escrita que se estabeleceu posteriomente, pode-se ver claramente
que nesse caso existe outra dinâmica de encenação. Um teatro tão impor-
tante como o oficial. Os antigos dançarinos de corda dedicar-se-ão também
à paródia dos gestos e das histórias representadas pelos atores da Comédie,
pronunciando suas palavras, agora sem sentido em um suposto ritmo ale-
xandrino, melodia sem letra. Esta forma claramente influenciada por
alguns personagens da commedia dell’arte, como o dottore, também deve
levar em conta a própria experiência do público parisiense diante dos es-
petáculos "estrangeiros".
Se bem que falar em "estrangeiro" é meio complicado nesta época,
pois não havia um francês como idioma falado em toda França, e as
110 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

representações estrangeiras eram fato comum em Paris, o público certa-


mente estava acostumado a não entender necessariamente todo o texto
dito. Eric Hobsbawm chega a descrever que em 1789 apenas cinquenta por
cento da população francesa falava o francês, que não era falado nos su-
búrbios, e nem ao sul ou ao norte da França (Nations and Nationalism
since 1780, 1990 p. 80-81).
As partes obscuras do espetáculo sem voz foram sendo transforma-
das em pequenos cartazes, enrolados e colocados nos bolsos das
personagens, para serem, em seu devido tempo, desenrolados e abertos
um a um diante dos espectadores.
Segundo Margot Berthold havia cerca de vinte a cinquenta cartazes
por apresentação (Berthold, 1991, p. 59), e os escritos inicialmente eram
em prosa, mas logo veio a ideia de colocá-los em rima com nova letra em
cima de canções conhecidas. Dois cantores contratados pela companhia
eram colocados espalhados na plateia e davam a melodia ao público que
corria a imitar. Em meio a este coro geral, no palco, os atores desenvol-
viam sua gestualidade. Surgia um espetáculo que questionava a forma
dramática estabelecida no teatro da Comédie, colocando-a em xeque. Um
espetáculo épico e com estranhamento épico avant-la-lettre em pleno sé-
culo XVIII. Em 1713, esta forma de entretenimento tornou-se famosa com
a obra em três atos de René Lesage, música de Gillier, apresentada por três
vezes na Foire de Saint Germain: Arlequin, roi de Serendib (Arlequim, rei
de Sérendib), uma misteriosa ilha árabe.
Por ser um exemplo concreto da discussão que aqui se trava, cabe
destacar o trecho inicial da obra, representée par écriteaux, como era
anunciada na barraca de feira da senhora Baron ou dame Baron. O texto
conta a história de Arlequim e de três ladrões refinados, com gestos que,
por casualidade, se assemelham aos nobres da corte, pois roubam pouco a
pouco a já ilícita fortuna de Arlequim, mas como extrema e fidagal ceri-
mônia. Este texto descreve metaforicamente a história do próprio teatro
de feira, pois os larápios poderiam estar representando os atores da Co-
médie, ou mesmo, até toda a corte, assim como, no teatro de feira, esse
Robson Corrêa de Camargo | 111

novo Arlequim já havia tomado emprestado tudo que havia utilizado para
seus efeitos teatrais.
O texto abaixo, descritivo e sem diálogos, apresenta vários persona-
gens, Arlequin; Rei de Serendib; Mezzetin; o Grande Prêtreffe; o bando de
Prêtreffes; Pierrot; o Grande Vizir; o Grande Sacrificador; a Ordem do
Grande Sacrificateur; o Harém do Sultão; o Chefe dos Eunucos; os Oficiais
do Palácio; um Pintor; um Médico e uma Troupe de Ladrões, acompanha-
dos com suas respectivas mulheres.

O texto inicia-se desta forma:4

O teatro apresenta um local ermo onde se pode ver rochas escarpadas.


Arlequim (só)
Arlequim, depois de haver naufragado na Côte de Sérendib, chega à ilha.
Ele segura uma bolsa e aparenta estar um pouco consolado com sua desgraça.
Isto é expresso por um cartaz onde está escrito:

Melodia 144 (air 144): Deixo tudo ao destino (Je laisse à la fortune)

Perto desta praia


Ai de mim! Nossa embarcação,
Com toda a bagagem,
Afundou no mar profundo!
Um procurador do Maine
Naquela límpida planície,
Encontrou sua tumba;
Mas eu, graças ao meu talento,
Soube salvar minha vida
E o dinheiro daquele senhor.

Auprès de ce rivage,
Hélas! Notre vaisseau,
Avec tout l’equipage,
Vient de fondre sous l’eau!
Un prucureur du Maine,

4
As traduções procuram não respeitar o francês original, mas a rima e as situações de palco, para os entendedores
da língua original, transcrevo o texto em francês.
112 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Dans la limpide plaine,


A trouvé son tombeau;
Moi, gráce à mon génie,
J’ai su sauver ma vie,
Et l’argent du manseau.

In Lesage, René and D'onerval (1968) Le Théâtre de La Foire ou L'Opera Comi-


que. Genève, Slaktine Reprint.

Uma nota descritiva, situada ao pé da página do texto publicado, des-


creve como se desenvolvia esta cena à ecriteaux aqui citada. As letras
escritas numa espécie de rolo, basicamente uma tela colada num bastão,
registravam a letra das coplas, com tipos grossos, contendo o nome da
personagem a que pertencia o verso. O rolo descia no centro do palco car-
regado por duas crianças vestidas como cupidos. Os garotos, suspensos no
ar por meio de contrapesos amarrados em uma corda, desenrolavam os
cartazes. No momento preciso, a orquestra devia dar o início da frase me-
lódica aos espectadores, que cantavam o texto escrito, com ajuda de alguns
atores espalhados pela plateia, enquanto os atores no palco adequavam
seus gestos. O texto segue descrevendo a ação a ser desenvolvida pela per-
sonagem que está no palco.
Depois da copla cantada, Arlequim senta-se na terra e começa a con-
tar seu dinheiro. Enquanto ele realiza a contagem, aproxima-se um
homem com uma bandagem nos olhos e uma carabina nos ombros. Faz
muitas reverências a Arlequim que, desconfiado com tanta amabilidade,
diz à parte por meio de um cartaz.

Melodia 5 (air 5): Quando o perigo é agradável

Uh! Temo por minhas posses!


Este canalha aparenta ser um ladrão.
Robson Corrêa de Camargo | 113

Minha pança se mexe com terror


A cada reverência que ele faz.
Ouf! Je crains fort pour ma finance!
Ce drôle a tout l’air d’un voleur.
Le gésier me bondit de peur
A chaque révérence.

O homem coloca o seu turbante no chão, faz um gesto para Arlequim colocar o
dinheiro dentro, e desaparece gritando: gnaff, gnaff.
Lesage, René and D'onerval (1968) Le Théâtre de La Foire ou L'Opera Comique.
Genève, Slaktine Reprint.

O texto, sempre sem diálogos falados, segue nessa toada, no estilo dos
roteiros de commedia dell’arte, os lazzi, também sem diálogos que conti-
nham apenas um roteiro ou a rotina descrita da história que os atores
deveriam representar.
A dramaturgia do texto procurava apenas ser descritiva, um roteiro
descritivo de ações, muito diferente dos textos registrados pelos autores
clássicos, mas aqui ela era construída pelo ator e por sua companhia para
desenvolver a personagem. Fazia parte da tradição oral que cativava a pla-
teia de seu tempo. Mais afeito ao espetáculo que ao diálogo, o texto
preocupava-se com as rubricas ou didascálias, pois este diálogo, proibido
ou evitado, estava implícito ou explicitamente desenvolvendo-se em um
dinâmico jogo teatral com a plateia.
O texto de Lesage e D’Orneval segue esta tradição e continua descre-
vendo o aparecer, em seguida, de outro nobre e educado ladrão. Se o
primeiro era cego de um olho, este vem com uma perna de madeira cava-
lheirescamente despojando Arlequim de seus bens, mudando apenas seu
grito: gniff, gniff. Finalmente, aparecerá o último augusto ladrão com seus
gnoff, gnoff. Em seguida, há uma briga entre os três larápios, que será
dançada em volta de Arlequim, interrompida pelo surgimento de uma
charrete puxada por um asno e conduzida por um selvagem que tem à
mão um grande porrete.
114 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

No fundo da cena, um bando de gentis ladrões ocupa-se de esvaziar


furtivamente a charrete, três outros avançam e dançam com três graciosas
mulheres de seu bando. A dança será reforçada por duas coplas cantadas,
a primeira por um dos ladrões e a segunda por uma das mulheres que os
acompanham, conforme descreve o texto, os dois solos deverão ter a
mesma melodia: Pierrot se plaint que sa femme (Pierrot queixa-se de sua
mulher). E, assim, segue todo o descritivo texto de Lesage, com detalha-
mento pormenorizado das ações a serem desenvolvidas pelos atores,
assim como da letra das canções ou couplet.
Os versos rimados recebiam o nome de couplet, aqui cantados pelos
atores e, muitas vezes, pela plateia traduzidos como coplas no teatro bra-
sileiro, forma usual nas revistas de final do século XIX, em especial, no
teatro de Arthur Azevedo.
O termo coplas deve ter se solidificado, apoiado na tradução espa-
nhola, possivelmente, estimulada pelas companhias internacionais que
passavam pelo Rio de Janeiro, em direção a Buenos Aires.
No exemplo seguinte, está um famoso couplet comum na época do
teatro das barracas de feira. O tema é ostensivo contra os romains (roma-
nos), como eram apelidados os tradicionais atores da Comédie,
jocosamente aqui chamados de heróis do Capitólio e, como já foi notado,
era a companhia que detinha as benesses reais. Esta companhia era um
dos temas recorrentes neste gênero que Lesage chamava divertisement à
la muette, diversão na forma muda. Neste caso, esta copla é um manifesto
dos teatros de feira, como podemos ver, de rico conteúdo literário.

Vocês acreditam reinar neste lugar,


Heróis do Capitólio,
E que Arlequim e seus camaradas,
Foram privados da palavra;
Mas ele fez prender sua voz
Para sustentar o seu papel.
Voux croyex régner cette foix,
Héros de Capitole,
Et qu’Arlequin et aux bois
Robson Corrêa de Camargo | 115

Prive de la Parole;
Ma il a fait peindre sa voix
Pour soutenir son role.
Lesage, René and D'onerval (1968) Le Théâtre de La Foire ou L'Opera Co-
mique. Genève, Slaktine Reprint.

Observem que o texto e os seguintes são repletos de ironias, ambi-


guidades e duplo sentido: “Prender sua voz para sustentar o seu papel”,
em uma clara alusão às cordas que sustentavam os desenroladores ou por-
tadores das placas de letras, sem se referenciar diretamente a ordem que
se impôs.
A intolerância dos atores da Comédie fez surgir esta peculiar forma
de espetáculo cômico. A Comédie tirou a fala da boca dos atores das feiras,
o que obrigou a que se colocassem os versos eliminados na boca da plateia
da feira, que passou a funcionar como trilha sonora para o desenvolvi-
mento da interpretação. Os atores, desprovidos da fala em cima do palco,
refinaram ainda mais o movimento corporal, acompanhados por uma pe-
quena orquestra de cinco ou seis músicos, auxiliados por uma
impressionante maquinaria de efeitos cênicos.
A representação a que o público assistia nas feiras preocupava-se em
burlar as exigências reais. Arlequino ou Arlequim podia cantar palavras
sem sentido, que mesclavam o italiano ou seus dialetos muito comuns no
sul da França, desenvolvendo na gestualidade os sentidos necessários. Ou
ainda cantariam, com a voz da plateia, em tom irônico de desafio e glosa:

De vossa cólera
Não faço caso
Tenho o dom de agradar
Ao não mais falar!
De votre colère
Je fais peu de cas
J’ai le don de plaire
En ne parlant pas!
Lesage, René and D'onerval (1968) Le Théâtre de La Foire ou L'Opera Co-
mique. Genève, Slaktine Reprint.
116 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Lesage e D’Orneval descrevem que o público gostou, e muito, dos


espetáculos com cartazes suspensos com canções e que, a partir daí, impe-
didos da fala, os produtores trataram de adquirir na Opéra, proprietária
da patente do canto no teatro, a permissão de cantar. Quem não pode falar,
canta. Assim, graças ao aluguel desta patente, cedida pelas dificuldades
econômicas crescentes da Opéra, a partir de 1714, porém, não por muito
tempo, foram compostas peças puramente cantadas, sendo permitidas em
cena a música, o canto e o espetáculo, mas não o texto falado.
A partir daí o público começou a chamar esses espetáculos de opéra-
comique, não por haver qualquer relação de estilo ou gênero com a ópera,
mas pela permissão remunerada da Opéra. Como vemos, a relação da peça
emudecida, agora cantada, com a ópera é por conveniência e aluguel e não
por estilo, vocação ou “evolução” de gênero.
O teatro das barracas de feira, com seu vínculo estrito com as formas
cômicas e a mímica, assim como por proibição de mercado, rompia com
convenções de unidade de tempo, ação e lugar. Não tinha nem era desejo
ter unidade, nem compromisso de estilo, distante, portanto, do que se ge-
rava nos palcos oficiais.
Felizmente não existiam teóricos que impusessem limites ou rigor a
esta arte, nem aqueles que pudessem reconhecer um estilo em seu meta-
estilo. Seu compromisso último como arte era com o público que devia
encher seu auditório, na busca das formas artísticas que agradassem mais
a plateia, que passaria previamente pela bilheteria.
Destas complexas e proteicas formas teatrais irão evoluir vários as-
pectos apresentados pelo teatro no século XVIII. Em seu discurso
substancialmente paródico ou paralelo, sem unidade e com multiplicidade,
veremos surgir diversificadas formas do drama. A norma deste teatro, por
circunstância e anteposição, era a procura da desunião de estilos, por meio
da fusão, imitação, transformação, justaposição, colisão, transposição, pa-
ródia, pastiche, ou mesmo apropriação desregrada de estilos ou gêneros.
A antropofagia do drama das feiras.
Robson Corrêa de Camargo | 117

A plataforma do teatro das barracas de feira não era a de só se ante-


por ao teatro que possuía a permissão real, embora a formalidade
tradicional da Comédie e da Opéra fossem subsídios frutíferos para seus
números. A seus atores era exigida uma prova de destreza, sendo a impro-
visação parte constante de seu método de interpretação. A restrição
policial contribuía para estimular a velha tradição do saltimbanco a qual
deveria recorrer em momentos difíceis, mudando a cena, saltando do
diálogo improvisado e voltando aos números de entretenimento, depen-
dendo do humor e da determinação das autoridades de plantão.
Independentemente do repertório apresentado, mesmo quando mos-
travam histórias que se desenvolviam baseadas em uma unidade
dramática, estas companhias, seguindo a tradição das feiras, continuariam
com seus números variados em seu programa.
A estrutura em vaudeville, sequência ou em suíte (continuada), com
apresentação sucessiva de números e quadros diferentes não ligados ne-
cessariamente por uma história contínua, constituía-se como parte
essencial desse tipo de espetáculo que não pode ser visto apenas como uma
versão imperfeita da forma unitária e coerente do drama, como a usual
nos palcos da Comédie Française ou propagada nos manuais dos drama-
turgos neoclássicos.
Nas feiras, era tecida a generalidade dramática em discordância ou
em anteposição com as unidades de ação, tempo e espaço ou, se repensar-
mos melhor a questão, produziam-se formas teatrais com novas
formulações estéticas de apresentação do drama como ação, em uma re-
estruturação de espaço e tempo em presentação. Assim outra dimensão do
drama e da formulação mais profunda do conceito de unidade estava
sendo colocada em prática.
Se estas apresentações não se definem pela unidade composicional, o
teatro das feiras é composto então pela heterogeneidade, é um heterogê-
nero, sem características fixas predeterminadas. Compõe-se por um
método prismático constante na utilização aleatória de diferentes formas
de espetáculo, o que mostra outra unidade composicional produzida, o que
118 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

fez com que esta fosse considerada uma forma dramática impura por al-
guns, sem os atributos exclusivos que, anteriormente, haviam definido a
tragédia e a comédia em seus antigos tempos gregos. Esse entendimento
limitado fez com que se determinasse a esta forma dramática uma impre-
cisa definição de forma menor. Então poderíamos dizer que esta
característica heterogênea em seus procedimentos a transforma numa
forma dramática mais complexa, que se forma em diálogo constante com
seus contemporâneos.
Em relação a esta adequação ao gosto da plateia, sua estrutura for-
mada de números rápidos e curtos, mesmo quando interpretados à la
muette, adequavam-se não apenas ao humor dos espectadores, a seu es-
tado de espírito, mas também às rápidas trocas de cena em caso de
insucesso, assim como a um acréscimo de tempo necessário em caso de
aprovação, para o desenvolvimento do trabalho do ator. Se o teatro francês
havia produzido e elaborado, sob o manto real, uma estrutura clássica e
rigida que o caracterizaria por muito tempo, nas feiras estavam sendo de-
cretados e praticados a flexibilidade e o não classicismo. Era o gênero das
diferenças dramáticas e da experimentação, sem regras definidas, apoiado
na arte do ator e de seu espetáculo, não no texto dramático que se escrevia
a partir de regras da academia.
Uma das possibilidades desta forma espetacular assistemática era a
seguinte: depois dos malabarismos ou dos números de corda cantados,
havia uma sessão estritamente “dramática” desse tipo de comédia que, ge-
ralmente, continha três partes, uma trilogia de números curtos ou com
dois atos e um prólogo. Cada ato podia ser único ou ligado ao outro, con-
forme a conveniência.
Em sua obra Les Théâtres de la Foire, Maurice Albert descreve que os
forains tiravam boa vantagem das dificuldades que apareciam por meio da
utilização múltipla de todos os estilos teatrais (Albert, 1900). Nesta forma,
entremeando os cantos de vaudeville podiam caber malabaristas, o monó-
logo, os cartazes e a pantomima. Um teatro que não se baseava no texto
Robson Corrêa de Camargo | 119

dramático escrito a ser seguido como forma organizativa, mas no espetá-


culo. Esta era sua unidade, melhor, seu princípio.
A divisão de classes e de classificação entre os dois teatros, o das feiras
e o oficial não podia durar muito. De um lado, a Comédie não conseguiu
sustentar seu monopólio e as proibições, e isto teve um efeito sobre o estilo
teatral que ela desenvolvia. A repressão começou a ser suavizada e a pala-
vra falada foi permitida por algum tempo na pantomima. Em 1722, Piron
divertia toda Paris com seu monólogo cômico em três atos Deucalion Ar-
lequin. Com um sucesso cada vez maior, o espaço físico das barracas de
feira começou a tomar formas mais duradouras: sendo construídas de ma-
deira, começaram a concentrar-se agora, em local permanente, le
Boulevard du Temple.
O Boulevard du Temple foi construído entre 1656 e 1705, um local de
recreação e passeios, os cafés e teatros que se localizaram nas feiras de
Saint-Laurent e Saint-German mudaram-se então de lugar. Recebeu ele
também o apelido de Boulevard du Crime pelos muitos crimes que preen-
cheram sua ribalta.
Os textos do teatro de feira introduziram-se no reino da palavra im-
pressa. Lesage e D’Orneval, no seu prefácio à edição de Le Théâtre de La
Foire ou L’Opéra-Comique, de 1737, publicado com autorização do rei, o
imprimatur, descrevem como era a recepção do gênero na época, mos-
trando preconceito que parece arraigar os próprios autores. Estes quase
se desculpando, afirmam ser conscientes de que o gênero “não seguia exa-
tamente os preceitos aristotélicos” e que os espetáculos do teatro de feira,
“de nenhuma maneira poderiam ser comparados àqueles regulamentados,
exibidos pela Opéra e pela Comédie”.
Os referidos dramaturgos consideraram que nominar seu livro como
teatro de feira apenas importava uma ideia do baixo e do vulgar, o que
poderia prevenir o leitor contra a edição da obra, mais um motivo para
acrescentarem o subtítulo ópera-cômica por necessidade, ou seja não ti-
nham nada a ver com a ópera. Os autores desta publicação assumem o
preconceito de inferioridade desta forma espetacular e, por decisão real ou
120 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

necessidade de impressão, Lesage e D’Orneval relatam que os critérios de


seleção das peças impressas nos vários volumes editados para registrar a
história e a obra do teatro de feira tinham mais a ver com questões de texto
que de espetáculo.
Nos volumes em que pretendem recuperar a memória do teatro de
feira, infelizmente, publicaram-se, por opção deliberada dos editores, ape-
nas textos com algum “valor” ou “mérito” como leitura, evitando os que
apresentavam, como principal atração, o jogo cênico dos atores ou a pre-
sença dos balés. Os editores acrescentam que retiraram também aquelas
inspiradas no teatro italiano (LESAGE; D’ORNEVAL, 1737, p.7-8). Na cons-
trução da nacionalidade impressa francesa, evitam o jogo teatral e o
reconhecimento da contribuição dos elencos de fora de Paris, dois impor-
tantes suportes no desenvolvimento do que veio a se constituir como
teatro de feira.
Se as peças do teatro de feira alcançaram um reconhecimento tam-
bém com esta publicação, mostram que também havia em curso um
processo de normatização e “limpeza” desse gênero, idêntico ao que acon-
teceu na commedia dell’arte italiana com Carlo Goldoni (1707-1793) e
mesmo com Carlo Gozzi (1720-1806).
Ao assumir o critério que priorizava o registro da palavra impressa
dialogada, os autores deixam de lado uma parte fundamental da constitui-
ção dessa arte, justamente a do trabalho de improvisação do ator e da
construção do texto espetacular. Paradoxalmente, ao se escrever o teatro
de feira, restringia-se sua parte principal, seu elemento improvisacional e
seu caráter espetacular. Por volta de 1740, esta ópera cômica começa a se
tornar menos farsesca e mais sentimental, e o sucesso dessa nova opção
fez com que agora a Opéra iniciasse uma batalha contra os feirantes, le-
vando a coroa a proibir os espetáculos da agora chamada ópera cômica.
Entre 1745 e 1751, anos da proibição, foi a vez da pantomima inglesa ser
introduzida nas feiras para preencher o vazio deixado. Mais uma vez o
sucesso foi tremendo, sendo esta mais uma das tendências introduzidas
no cadinho dos teatros de feira como ressalta Brockett, acrescentando uma
Robson Corrêa de Camargo | 121

nova variante de estilo teatral nesse dinâmico teatro parisiense que se de-
senvolve até o final do século XVIII (Brockett, 1995, p. 280).
Mas se a irreverência e a improvisação vivas das barracas do teatro
de feira esmaeceram nas páginas do importante livro de Lesage e D’Orne-
val, sendo mesmo proibidos vez ou outra pela manifestação real, elas irão
se fortalecer também em outro endereço, o Théâtre du Boulevard.

A pantomima no Boulevard du Temple

Para fornecer elementos estruturais ao melodrama, o Théâtre du


Boulevard parisiense procurará uma coordenação desses elementos dra-
máticos, superando a forma em suíte, ao buscar contar uma história que
organizasse e desenvolvesse o apresentado, convergindo cantos e danças
ao redor de uma única trama ou fio condutor. Isto trouxe a fábula de ar-
ranjo moral para junto da pantomima; a ligação da trama com fenômenos
habituais que empregavam a experiência da audiência e certo cientificismo
que embasava a construção dessas histórias. Procurou-se agregar também
um caráter de reportagem à representação, processo que será usual no
melodrama, ocasionando aí alguns passos em direção à construção cada
vez mais apurada da mímica “realista” da cena.
Ao organizar o eixo da representação em torno de uma história, o
caráter paródico comum nas pantomimas será deslocado, colocando como
fator central o desenvolvimento do elemento sentimental nas histórias,
aproximando o real ou cotidiano à representação. Nesta mudança, uma
das forças centrais no desenvolvimento da ação será o caráter do herói, a
virtude e moral da heroína. Elas se tornarão as personagens centrais, con-
vertendo-se no segundo plano os procedimentos cômicos. A trama é
construída baseada na existência de uma ordem estabelecida, ameaçada
por determinadas personagens, contrárias a esses procedimentos: os vi-
lões.
O Boulevard du Temple era um grande calçadão com fileiras de ár-
vores frondosas, utilizado como local de encontro, passagem e diversão,
existente até hoje no centro de Paris, embora sua arquitetura tenha sido
122 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

modificada. Entre seus frequentadores estavam também prostitutas, ven-


dedores e malandros de todas as espécies que dividiam alguns dos cafés e
bares de nomes sugestivos como Café Apollo ou O Jardim Turco. Rousse-
auu, o suposto criador do melodrama, descreve o bulevar da época como
lugar de gente de baixa extração, pessoas de outro mundo.
O bulevar era um lugar de estranhos e estrangeiros, onde os teatros
de feira foram se aglutinando, lado a lado, e em ruas contíguas a partir de
1760. Na época, enquanto se construíam as condições que gerariam a Re-
volução Francesa, houve uma maior distensão para todos os teatros não
oficiais. Esses começaram a estabelecer-se no local e eram dirigidos mais
à enorme plebe rude que à burguesia emergente, dividiam o espaço com
leitores de sorte, músicos, apresentações de fogos de artifício e, como no
teatro de feira, apresentavam pantomimas, números de corda, acrobacia,
teatro de bonecos, animais e pequenos números teatrais. A moda do Boule-
vard du Temple, embora tenha marcado época, dura praticamente cem
anos.
Em 1862, estes teatros foram reduzidos a pó, por problemas, sobre-
tudo, de urbanização; dos transferidos para outros lugares só três
conseguiram sobrevida. Entretanto, esta vida centenária permitiu ao bu-
levar uma torrente criativa que marcará o principal gênero teatral do
século XIX, o melodrama.
A apresentação das pantomimas, recheadas de anti-heróis, renderam
ao Boulevard du Temple cerca de vinte mil espectadores pagantes aos do-
mingos em seus vários teatros. O bulevar desenvolveu-se como uma
espécie de extensão dos teatros das feiras, possibilitando que as compa-
nhias se apresentassem praticamente o ano todo, não sem trazer muito
dos problemas anteriores havidos com as autoridades. Vejamos alguns da-
dos mais de perto.
Nicolet, fundador do Théâtre de la Gaîté, foi o primeiro a abrir no
bulevar uma verdadeira casa de espetáculos, apresentando pequenas co-
médias, pequenos textos intercalados com cantos, acrobacias e saltos,
números de dança na corda e teatro de bonecos.
Robson Corrêa de Camargo | 123

Anos depois, este entusiasmado ator-empresário resolveu trazer os


atores à ribalta e substituir as marionetes, colocando aqueles ao lado dos
acrobatas o que levará à intervenção em seu teatro, como veremos adiante.
Em 1764, o Conselho de Comerciantes deu a Nicolet a permissão de
executar seu teatro em uma estrutura permanente no Boulevard du Tem-
ple, no número 58. Apesar das limitações que pairavam, o enorme sucesso
trouxe a competição e a companhia de N. M. Audinot com seu Théâtre de
l’Ambigu-Comique e suas pantomimas.
Esses teatros e suas companhias tinham lemas (mottos) próprios, o
de Nicolet era: De plus en plus fort, comme chez Nicolet (cada vez mais
forte, como Nicolet), o de Audinot, Sicut infantes audi nos (escute-nos falar
como as crianças falam) num evidente trocadilho com seu nome.
No bulevar, a subsistência do fenômeno teatral também não foi pací-
fica. Em 1769, nove anos depois de seu início, agora sob demanda da
Opéra, uma ordem do Conselho os interdita, reduzindo-os novamente à
pantomima muda. Para que se mostre o caráter dos espetáculos não ofici-
ais, por vingança e com sucesso, Nicolet ensina a um macaco os
maneirismos de um famoso comediante da Comédie, François-René Molé
(1734-1802) e apresenta, para gáudio da plateia dos bulevares uma panto-
mima animal.
A situação limitadora sofrida pelos Théâtre du Boulevard seguiu pra-
ticamente toda a sua existência até o período próximo à Revolução. Em
suas memórias Audinot descreve que, dez anos antes da Revolução Fran-
cesa, a Opéra impedira a admissão nesses teatros do canto, das danças e
da existência de uma orquestra. Isto impossibilitou o desenvolvimento do
espetáculo de pantomima que havia se estabelecido anteriormente com a
Ópera Cômica.
Ironicamente, agora era a Comédie-Française que iria garantir o texto
e a declamação ao teatro, embora a Comédie-Italienne proibisse os ariettes5
(pequenas canções) e os vaudeville (atos variados).

5
Em italiano arietta, termo musical que define uma pequena melodia em forma graciosa.
124 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Provavelmente, por esta nova limitação, ou mesmo por um satura-


mento daquela forma espetacular, a companhia de Audinot modificou, de
maneira radical, o caráter da pantomima à moda italiana que seguia de
perto a tradição das feiras. Audinot era um antigo tenor da ópera italiana
em Paris, o que mostra o trânsito intenso que havia entre as duas formas
distintas de espetáculo. Como Nicolet, este montou espetáculos de bonecos
que satirizavam a ópera italiana e seus atores. Assim que a moda dos bo-
necos começou a dar indícios de saturação, introduziu crianças e depois
adultos em suas pantomimas. Assim, na companhia de Audinot o destaque
foi o fato de ter aberto seu teatro a um novo e competente dramaturgo,
Arnould (Mussot, Jean François, 1734-1795). Este com seu reconhecido ta-
lento tornar-se-ía o dramaturgo preferido e produtor associado do teatro
de Audinot, o Ambigu-Comique.
Depois de uma década escrevendo pantomimas à maneira da com-
media dell’arte apresentadas em vaudeville, Arnould apresenta um texto
com um caráter dramático que procurava uma história como fio condu-
tor:6 Les Quatre Fils Aymon (Arnould, 1779; Os Quatro Filhos de Aymon).
O antigo teatro das feiras que havia glosado tanto as companhias re-
ais de Paris, chega ao tempo de nova reciclagem e se volta contra si mesmo
e sua própria herança. A pantomima dava seus primeiros sinais de exaus-
tão e encontrava os seus primeiros reformadores. No programa de
apresentação do texto Les Quatre Fils, Arnould ironiza os espetáculos de
pantomima, como vinham sendo apresentados, criticando a falta de orga-
nização interna de seus números:

Existem pantomimas sublimes que, como a eternidade, não começam nem


acabam e onde a ação principal consiste de vinte números cochichados que
irão mover a visão, assim como as máquinas. Não importam a beleza e a mul-
tiplicidade de cenários, a força dos hábitos, a imensidão inominável de
incidentes aglutinadas uns nos outros; nem importa a música murmurante e
incessante, nem a infinidade de gestos repetitivos e ininteligíveis, ou que não
exprimem nada nem uma quantidade de danças bem ou mal agrupadas;

6
Conceito utilizado por Neide Veneziano em seu Teatro de Revista Brasileiro (1996, p. 23) para definir o desenvolvi-
mento dramático das Revistas Brasileiras.
Robson Corrêa de Camargo | 125

“Il est de ces pantomimes sublimes qui, comme l’éternité, n’ont ni commen-
cement ni fin, et dont l’action prin cipale consiste dans une vingtaine de coups
de sifflet qui font mouvoir à vue autant de machines. La beauté et la multipli-
cité des décorations, l’éclat des habits, une multitude innombrable d’incidens
entassés les uns sur les autres; une musique bruyante et sans cesse, une infi-
nité de gestes souvent inintelligibles, ou qui n’expriment rien, une quantité de
ballets bien ou mal amenés, n’importe. (MASON, 1912, p. 8)

A inovação de Les Quatre Fils, ao recompor a estrutura de quadros


sucessivos e isolados existentes na pantomima, está no maior desenvolvi-
mento da história que conduzia a ação da peça.
É importante que observemos a complexa estrutura do espetáculo
das pantomimas, vinte anos antes do surgimento oficial do melodrama.
Apoiados nas críticas de Arnould, além do maquinário complexo da cons-
trução dos efeitos, percebe-se que havia cerca de vinte cenas com músicas
e danças constantes, atravessando a apresentação. Deste modo, a crítica
de Arnould dirigia-se à construção do espetáculo, à amarração no desen-
volvimento dramático e cênico da história que solicitava, segundo seus
critérios estéticos, uma certa unidade.
Gostaria de me deter neste texto, pois nele se concentra a maioria das
características do melodrama que iria nascer. Tratando-se, na verdade, de
um melodrama precoce (1779), 21 anos antes de seu batismo oficial. O dra-
maturgo Arnould, distanciando-se do maravilhoso, em vez de de centrar o
conflito em torno das trapalhadas de Pierrot e Cassandre, mostrará mo-
mentos da história francesa, por meio da aventura de três nobres e
valentes cavaleiros numa fantástica pantomima histórica. A ação desen-
volve-se em torno da chegada de Carlos Magno ao Castelo de Montauban
e de seus passos para vingar-se dos filhos de Aymon pelo assassinato de
seu sobrinho Berthelot.
As primeiras cenas são reservadas às lutas, fugas e aprisionamentos.
O conflito central desenvolve-se em torno dessas lutas e tentativas de re-
conciliação. O clímax é atingido na cena final, quando Carlos Magno, a
ponto de decapitar Claire, vê Regnaud em vias de matar Rolland. A
126 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

situação será resolvida em rápido desenlace com a anistia geral declarada


pelo Imperador, que salvará o herói da peça. Como pode ser percebido, a
pantomima inclui números variados dentro do próprio espetáculo no iní-
cio e ao finalizar-se com um divertissement de danças e manobras
militares.
Nesta nova etapa os elementos importantes são: primeiro, uma apro-
ximação com o tema histórico o que modifica a tendência do fantástico,
comum na pantomima do teatro de feira e possibilita um maior desenvol-
vimento da história a ser contada, agora de forma mais coerente. Esta
aproximação traz consigo uma passagem do cômico dominante, centrado
nas personagens das pantomimas das feiras e do bulevar, para o senti-
mental determinado pela situação histórica.
Nesta nova manifestação da pantomima, esta predominância não eli-
minará a presença do cômico que entrará agora em cena de forma
alternada, o que acentua seu estilo de mistura e imperfeição genérica.
A representação figurada de situações históricas, com um grande nú-
mero de cenários e personagens, exigirá um desenvolvimento mais
elaborado da trama e de sua correspondente ambientação cênica, cami-
nhando assim em direção a um realismo e uma estrutura dramática que
centralizará a ação. Em pleno palco havia batalhas e danças variadas; além
de uma elaborada cenografia e vestuário; inseridos em episódios ligados à
História. Por último, o rápido desenlace da trama que, quase como um
deus ex-maquina, resolvia rapidamente o conflito, dotado de extrema com-
plexidade, tanto pela quantidade de ambientações cênicas como pelo
número elevado de personagens.
Na pantomima, esta inovação não se impôs imediatamente, o público
e os artistas levaram algum tempo para adequar-se à nova formalização.
Os roteiros passaram a ser tão intrincados que havia necessidade de pro-
gramas impressos para guiar a audiência – o que certamente não facilitava
a compreensão de espectadores iletrados da época, cerca de um terço da
plateia.
Robson Corrêa de Camargo | 127

O fato fez com que Audinot escrevesse Dorothé, uma pantomime à


spectacle, com uma história mais simples e também com a retomada do
emprego de cartazes impressos à moda dos écriteaux comuns no tempo
de Lesage e D’Orneval. Dorothée introduziria, além da aventura, outro ele-
mento caro ao melodrama do século posterior – o elemento sentimental
na trama. Com um desenrolar endereçado, sobretudo, à plateia feminina,
neste espetáculo, o autor sublinhava com a história “a recompensa do
amor e o triunfo da virtude”.
A lenta mudança transformava mais uma vez esta forma dramática
sempre repleta de experimentações. A pantomima não se preocupava com
nenhuma legislação ou tradição crítica determinada sobre a maneira cor-
reta de dispor seu espetáculo. Seus ditames eram frutos da conformação
de seus elementos ante o gosto do público e das necessidades de seus ar-
tistas. Não vinha para emergir como gênero entre a tragédia e a comédia,
mas, para confrontar as novas necessidades do drama diante de seu pú-
blico. Dorothée exerce um papel importante, acrescentando elementos que
serão desenvolvidos ulteriormente no novo gênero que está sendo gestado,
em especial, o caráter do herói, a virtude e a moral da heroína. A história
começa com uma festa rural na qual a personagem central, que empresta
seu nome à peça, evita de todas as formas as investidas sensuais do pre-
feito da vila. Este, com uma falsa acusação, coloca na prisão a querida
Dorothée, na tentativa de ganhar também seu coração e tudo que vier
junto.
Ao negar bravamente as sucessivas investidas, Dorothée quase acaba
na fogueira, se não fosse Dunois, o cavaleiro de Swan, que irá libertar a
desprotegida mulher no exato momento em que seria tragada pela fo-
gueira. Seu marido, um general, aparece ao final e, depois de ouvir toda a
história, pune o prefeito e verte lágrimas de gratidão diante do herói. A
pantomima termina com dança e festa.
A encenação de uma história complexa em pantomima, mas compre-
ensível para o público, só seria totalmente implementada por Arnould. No
final do século XVIII, Arnoud utiliza um procedimento já familiar aos
128 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

forains do teatro de feira: a encenação de uma história familiar à plateia.


Se o teatro da feira vivia de parodiar a cena teatral da Comédie ou da
Opéra, o teatro do bulevar procurou fazer um pastiche7 teatral de um in-
cidente familiar amplamente conhecido.
Muitos jornais da época haviam destacado uma façanha policial
verídica em razão do heróico modo de resgate de uma jovem das mãos de
seus algozes, fato que arrebatara ampla atenção de Paris. Detenhamo-nos
na descrição da história do texto Marechal-des-logis, prestando atenção a
seu evidente caráter melodramático. Esta aventura passa-se na floresta de
Ville-Cotterets. Uma linda e casta jovem vai atravessar sozinha a floresta,
mas inesperadamente é cercada por dois ladrões que, depois de tirarem
todos os seus bens materiais, a amarram em uma árvore, pois pretendiam
fazê-la sofrer outros tormentos. Entretanto, por obra e graça do destino,
por ali passava um bravo oficial da rainha. Este, ao compreender o sofri-
mento da vítima, afugenta os ladrões, devolvendo a jovem, intocada, ao
conforto de seus pais.
Trata-se do primeiro melodrama precoce de caráter jornalístico visto
por toda a Paris, contando com a presença do próprio oficial, na qual a
trama se inspirara, sentado na plateia e vestido à caráter.
Com o grande sucesso alcançado, havia que seguir o caminho encon-
trado, assim, a pantomima começa a desenvolver ainda mais a trama
unificadora. O público não quer mais números variados intercalando-se,
quer uma história que lhe pareça próxima. A atração seguinte é L’Héroine
Américaine, na qual o aspecto histórico é unido a elementos da fábula e
também do exótico. O texto de Arnould também possui inspiração cientí-
fica, pois se fundamentava no tratado histórico e filosófico Des
établissemens et du commerce des Européens dans les deux Indes.
O autor explica que a fundamentação em fatos históricos era neces-
sária ao desenvolvimento da ação teatral. A história é sobre dois ingleses,
que viajavam nas velhas Índias Orientais e que, ao procurarem escravos

7
Imitação sem função satírica. A proximidade entre paródia e pastiche é multiforme, a presença ou não do cômico
um elemento de distinção. Ver Genette (1989, p. 30-40).
Robson Corrêa de Camargo | 129

são atacados: um é morto e outro feito prisioneiro. Uma jovem índia ajuda
o prisioneiro a escapar, mas depois será feita prisioneira por ele. Quando
a jovem estava para ser levada ao navio, chega o chefe da tribo e liberta-a.
A pantomima termina com a partida do inglês. Como se lê, o melodrama
não apenas se gestava, como gestava o naturalismo com todas as cores
usadas ao final do século XIX, ou melhor, diríamos que o melodrama já
antecipava o naturalismo e que, suas raízes, retiraram do substrato de sua
época a fantasia das pantomimas e o realismo das novas relações sociais
que se construíam.
Outra pantomima de Arnould que seria digna de destaque é Le Troi-
sième Voyage de Cook (1785), sobretudo porque inverte a tendência
predominante de “final feliz” e traz a moralidade de punição do vício e
premiação da virtude, terminando radicalmente com a morte da persona-
gem principal. Ao final, o Capitão Cook, o herói, será assassinado pelos
habitantes da ilha, os “selvagens” que ele havia tratado tão generosamente.
Nas pantomimas de Arnould, existiam assim manifestas muitas das carac-
terísticas do melodrama que surgiria no século XIX, portanto havia muito
de melodrama no teatro, antes do período pós Revolução Francesa o no-
mear como tal.
De qualquer forma, o drama de Arnould, com suas reconstituições
históricas, abriu o caminho para o pleno desenvolvimento do teatro de
Réné-Charles Guilbert de Pixérécourt (1773-1844), hoje, o principal nome
da dramaturgia ligado ao melodrama. Mesmo no início do século XIX, mui-
tas das pantomimas de Arnould vieram a ser impressas, agora com a
adição de diálogos e monólogos, transformadas em melodramas tout
court. Segundo Mason, Arnould teria levado a pantomima a seus limites
de expressão, limites estes que só poderiam ser ampliados com a adição
de palavras. Apesar das restrições impostas a este tipo de teatro, as peças
do bulevar atraíram também a entourage real.
Bachaumont descreve que, na época, uma farsa podia encher teatros
por meses a fio, detalhando que “não apenas o populacho, mas a cidade e
a corte estavam correndo em massa para lá”; ministros de estado também
130 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

estariam indo ao espetáculo e corria a boca pequena que determinada peça


seria de Maurepas, um ministro de estado de Louis XVI (1754-1793, rei de
França 1774-1791).
Os teatros do Boulevard contavam com a grande participação da pla-
teia e mesmo quando estes pequenos teatros ganharam o direito à palavra,
continuaram a prover o gosto de seu público com seu repertório, em vez
de tentar concorrer com a tradição da Comédie. A revolução, que cortaria
cabeças e decretos, poria fim a todas as limitações, libertando a pantomima
das amarras do silêncio obrigatório, deixando surgir um novo tipo de tea-
tro, o melodrama. O corpo teria agora uma voz e um texto.

O corpo, o gesto e a voz

Com a Revolução de 1789, uma nova ordem se estabelece nas ruas de


Paris, e o velho regime foi sendo cortado aos pedaços, muitas vezes come-
çando-se pelas cabeças. Vejamos um trecho da crônica de Restif de la
Bretonne (1734-1806) sobre este processo de decomposição. No oitavo dia
após a queda da Bastilha, em 22 de julho de 1789. Bertier acabara de ser
preso pela turba:

Ao longo da rue Saint-Martin, mulheres jovens e bonitas gritavam das janelas:


‘Enforquem, enforquem!… Ao poste!’ Insensatas…pois neste momento um
desgraçado maltrapilho mostra a Bertier a cabeça enforcada de seu sogro!… e
uma das mulheres que acabava de gritar ‘Ao poste’ demaiou; outra abortou;
outra morreu com o choque… (Bretonne, 1989, p. 87)

Com a velha ordem sendo decapitada, o silêncio imposto a cena foi


rompido e a voz definitivamente incorpora-se ao corpo da cena pantomí-
mica. O período revolucionário impulsionou intensa atividade teatral, a
performance das ruas vai ao teatro e este teatro ocupa todos os palcos an-
teriormente interditos. Bretonne registra um aspecto desta, descrevendo
como o francês da província gastava seu dinheiro para se divertir nos tea-
tros e o valor de cada espetáculo. O visitante paga
Robson Corrêa de Camargo | 131

qualquer dinheiro, trinta ou quarenta e oito vinténs, e vê no teatro National,


representadas com pompa e verdade, as obras primas de Corneille, de Racine,
de Moliére, de Voltaire, […] Ele paga vinte e quatro vinténs e vê no teatro Ita-
lien a pequena ária satírica, ou a terrível moral do drama; ou o vaudeville
libertino. Ele dá quarenta e oito vinténs e vê no Opéra… Phèdre e Sainthuberti
[...] Ele dá vinte vinténs e as Variétés o divertem como a um monarca (Bre-
tonne, 1989, p. 117-118).

Como podemos deduzir Corneille, Racine, Voltaire e os espetáculos


do Opéra cobravam quase o dobro do teatro de variedades “libertino” e do
drama “moral”. A questão do “valor” dramático das obras destes citados
dramaturgos não era apenas de ordem literária. E não apenas o valor do
ingresso era distinto, Bretonne registra também a atitude do público em
relação a espetáculos tão diversos: “Como é que os espectadores, que se
mostram tão exigentes no teatro de la Nation, no teatro de L’Ariette, no
Drama, no Opéra e no Monsieur e aceitam entregar seu gosto e sua moral
no Variétés no Danseurs, ou no Ambigu?” (Bretonne, 1989, p. 130).
Reparem a descrição de Bretonne sobre o que se encenava no Am-
bigu, local onde surgiria o primeiro melodrama de Pixérécourt em 1800:
“Há […] um senhor Mussot Arnoud, que faz pantomimas, cujo efeito é
atrair todos os operários e aprendizes de tipógrafo, joalheiros, relojoeiros,
armeiros, chapeleiros, marceneiros e até padeiros (Bretonne, 1989, p.
130). Pequenos burgueses e operários se mesclavam nestas plateias. Em
13 de janeiro de 1791, a liberdade dos teatros do bulevar e das feiras seria
legalmente alcançada, até que chegassem os novos limites a serem impos-
tos pela restauração napoleônica.
A pantomima ganharia oficialmente direito à palavra falada, assim
como os teatros teriam acesso à flexibilização dos gêneros. Esta distinta
forma de espetáculo, sem unidade, sucedia seus quadros, inspirada que foi
pelos teatros de bulevar e das feiras, ganhava agora até nomenclatura,
uma delas foi de um certo senhor Flins. Réveil d’Epiménide, uma peça em
um ato, foi composta no estilo de gavetas (Pièce à Tiroir), como eram cha-
madas as representações onde cenas se sucediam sem ligação evidente
umas com as outras nem com a ação global. A trama compreendia cenas
132 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

estranhas à ação principal, mas, implícitas de alguma forma (Bretonne,


1989, p. 118). O teatro que se instalava na nova ordem já era pós-moderno
e liquefeito.
A Assembleia Nacional decretava a possibilidade de todos os cidadãos
poderem construir teatros públicos e fazerem representar peças de todos
os gêneros. Além disso, dispunha que as obras dos autores falecidos, de-
pois de cinco anos, passassem a ser propriedade pública, além da abolição
dos privilégios anteriores à Revolução. Eliminados os monopólios prévios,
houve um rápido crescimento do número de teatros, na época pós-Revo-
lução, Paris teria mais de duzentos teatros, sendo 23 deles na região do
Boulevard du Temple.
No entanto, esta liberdade de estilos e gêneros foi acompanhada de
outras limitações. Em 2 de agosto de 1793, a Assembleia decide usar os
teatros para servir aos princípios de liberdade e o espírito revolucionário,
seguindo proposição de Danton, que será guilhotinado um ano depois, 5
de abril de 1974, mas não por esta medida.
Desse modo, três vezes por semana, em cada ano, no período de 4 de
agosto a 1º de novembro, os teatros designados pela municipalidade se-
riam obrigados a representar gratuitamente peças que propagassem os
“princípios da liberdade”, como Gaïus Gracchus, Brutus, Guillaume Tell e,
em troca, receberiam uma certa indenização do governo. Certamente uma
das primeiras leis de incentivo. A Revolução Francesa não separou a arte
da política, ao contrário, determinou que os teatros cujos espetáculos pu-
dessem “corromper o espírito público”, apresentando qualquer
sentimento restauracionista, seriam peremptoriamente fechados e seus
proprietários colocados na prisão.
O teatro, considerado espaço público, tornou-se palco também de dis-
putas morais, éticas e políticas. Certamente este espírito influenciou o
valor moral a ser defendido ou negado na escritura dos textos dramáticos
pós-revolucionários, valores que deveriam ser transportados à cena pelas
personagens desse novo drama que se formava. O que se questionava não
era mais o direito à palavra ou ao gesto, mas o valor do que era dito. A
Robson Corrêa de Camargo | 133

interpretação estreita da decisão do que pudesse vir a corromper o espírito


público causou também problemas aos proprietários dos pequenos tea-
tros, acarretando uma severa censura, agora antimonarquista. O estado
revolucionário caminhava pelas ruas e invadia os espíritos, enquanto de-
voraria seus líderes. Não foram apenas os decretos emanados pela
Assembleia a causa da perturbação da paz teatral – o assalto aos céus pro-
movido pela Revolução exigia que tudo e todos se incorporassem aos
novos tempos. Mas o que seriam os novos tempos?
A tradicional Comédie, por exemplo, submetida agora à autoridade
da Comuna de Paris, dividiu-se por si mesmo em duas facções: os rouges
(vermelhos), a facção de François-Joseph Talma e os noirs (negros), logi-
camente os conservadores com René Molé. Em 3 de setembro de 1793, os
noirs foram presos por quase um ano pela encenação de Paméla, conside-
rada incorreta, sendo quase deportados e Molé escapa por pouco da
guilhotina. Os comediantes foram salvos graças à queda de Robespierre.
Em 31 de Maio de 1799, praticamente dez anos depois, a Comédie
encerraria o período de foro de discussões políticas e as duas facções unir-
se-íam na encenação de Cid e L’École des Maris. Depois do 18 de Brumário,
em novembro de 1799, com a recomposição da ordem napoleônica, a Co-
médie conseguiu mais estabilidade, pois a onda restauracionista do futuro
imperador propôs-se a restituir os antigos privilégios e a “primitiva glória”
desse teatro. Assim a restauração napoleônica atingiu a todos, sendo limi-
tada a percepção do melodrama como uma arte restauradora por alguns
críticos.
Como não poderia deixar de ser, frente ao caráter da Revolução Fran-
cesa, os teatros populares acabaram sofrendo bem de perto o caudal
revolucionário. A audiência necessitava um teatro que acompanhasse pari
passu a nova realidade que invadiu as ruas, desejando ainda mais o estra-
nho e o peculiar, assim como as histórias de diabos, de fantasmas, regadas
de muitas batalhas e assassinatos. Não foi difícil para o teatro de bulevar,
herdeiro e portador das tradições de assimilação e dialogismo do teatro de
134 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

feira, passando por uma fase de incorporação de histórias verdadeiras,


adaptar-se às exigências múltiplas da nova ordem.
A forma de atuação, totalmente contaminada pela pantomima, com
sua gestualidade acentuada, era continuação direta do modo de interpre-
tação usual dos teatros de feira e de bulevar da França pré-republicana. A
grande exterioridade da forma pantomímica anterior encontrava-se agora
logicamente em nova chave, com diálogos, cenas e tramas desenvolvidos,
o que resultou também em um realismo grandiloquente que reforçou a
época vivida que era de grandes gestos, não apenas teatrais.
A pantomima passa a ser a base desse novo teatro, sua forma vai va-
riar enormemente e a mais comum assemelhava-se às pantomimas de
Arnould. O novo nome expressa bem esta evolução: no início conhecida
como pantomime dialoguée. Além da gestualidade exagerada, marca do
melodrama até o despertar do século XX, outros aspectos da pantomima
anterior ao século XIX influenciariam o teatro que se desenvolvia. É bom
que se anote, pois são muitos: a ênfase maior nos efeitos da encenação e
nos truques que a acompanham, em detrimento do desenvolvimento ela-
borado do texto; o objetivo primordial de satisfazer o gosto do público; a
presença de animais; a tendência ao final feliz; o ritmo intenso e exagerado
da interpretação, totalmente relacionado com a pantomima, mas que sem-
pre foi uma característica própria dos gêneros cômicos; a formação no
melodrama de cenas independentes que deveriam desviar a ação de ma-
neira inesperada, a presença do “maravilhoso” e do impossível,
rompendo-se ou quebrando-se os elementos ficcionais, a impureza de es-
tilo e a incorporação ou alternância variada de estilos (por paródia,
pastiche ou simples transposição); a presença incidental da música antes,
durante e ou depois do texto falado, conforme conviesse ao efeito teatral.
Temos ainda a predominância de histórias que desenvolvessem situações
inspiradas na realidade; o final rápido empregado como desfecho, na me-
dida em que a ação dramática está centrada no desenvolvimento e no
espetacular da apresentação da trama e de seus efeitos; situações e perso-
nagens antinômicas ou opostas. Finalmente, a questão do tema da
Robson Corrêa de Camargo | 135

perseguição, que embora comum desde os primeiros romances de cavala-


ria, seria reconhecida por M. Pitou, como a grande contribuição da
pantomima teatral ao melodrama.
A peça Baron de Trenck (Barão de Trenck) de Mayeur de Saint Paul,
representada no Ambigu em 1791, foi um dos primeiros exemplares dessa
pantomime dialoguée, em três atos com final feliz e a esperada lição moral.
Para que se note a importância da gestualidade e da composição cênica,
nesta forma de espetáculo, Masson comenta que, como de costume, o uso
da palavra poderia ser dispensado, sendo inteligível do mesmo modo. A
trama desenvolve-se numa conspiração contra o Barão de Trenck, preso
sob falsa acusação. Logicamente, ao final, o Barão é libertado, não se cor-
tam cabeças e tudo acaba em música.
A fim de que notemos o emprego da música que se alterna com diá-
logos, detenhamo-nos num trecho da peça cujas anotações de seus
compassos estão explícitas, permitindo um tempo determinado para o de-
senvolvimento da expressão gestual do ator e das canções. Não é um
trecho de muito importância no desenvolvimento da trama, mas elucida-
tivo dos procedimentos notados.

Trenck:

O desejo de meu rei me desvia de ser galanteador


Depois que a amizade partilha minha felicidade
Ce bien de mon roi me devient plus flatteur
Depuis que l’amitie partage mon bonheur.
(8 compassos)

Melodia:
Antes da trombeta guerreira
Déjá la trompette guerriêre

Trenck:

Que ele é terno como um guerreiro


Brilhante do amor e da glória
Para recolher um belo laurel
Dentro dos campos da Vitória
136 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Qu‘il est doux pour un guerrier


Brûllant de l’amour de la gloire
De cueillir un beau laurier
Dans les champs de la victoire.
(7 compassos)

Tristen:

Seu valor é sua defesa


Seu nome vive dentro da memória
Sa valeur est son bouclier
Son nom vit dans la mémoire
(4 compassos)

Thinski (à parte):

Ele ignora a tempestade


Que se dirige contra ele;
Se o rei me crê hoje
Ele brilhará sobre a cabeça
Il ignore la tempête
Que je dirige contre lui;
Si le roi me croît aujurd hui
Elle éclatera sur sa tête
(8 compassos) (MASON, 1912, p.24)

As indicações apontam que os atores continuavam a carregar a pan-


tomima durante os interlúdios musicais. Os compassos serviriam para
determinar o tempo musical que deveria ser preenchido apenas pela ges-
tualidade dos atores e atrizes, sem o texto, num procedimento de chamada
(call) e resposta (response),8 comum nas festividades populares desde os
tempos de antanho. Tocava-se a música para que o ator desenvolvesse seu
número em interação com o ritmo ou a melodia. As músicas eram com-
postas baseadas em canções bem conhecidas, às vezes apenas sugestões

8
Agradeço à etnomusicóloga Adriana Fernandes a referência ao procedimento comum nas festas e cantos populares.
Call é, geralmente, traduzido como pergunta, mas chamada é a tradução para mim mais apropriada ao procedimento
musical. Ver também Titon, Jeff T. Worlds of Music. New York: Macmillan,1992, p. 25.
Robson Corrêa de Camargo | 137

para os músicos, que também improvisavam. O texto poderia sugerir air


de combat (melodia de luta), musique brillante (música brilhante), air
d’action (música de ação), sur un air qui peint la felicité générale (melodia
em que destaca a felicidade geral).
Este diálogo da melodia com a interpretação pode ser encontrado na
pantomima desde o tempo de Lesage e D’Orneval, entre 1716-1730, e asse-
melha-se à música incidental praticada nas partituras dos pianistas e
organistas que acompanhavam as primeiras projeções do cinema sem fala
no início do século XX. Igual procedimento é verificado na apresentação
das trilhas sonoras dos filmes ou das novelas atuais, nos quais se busca
determinada música para composição de determinado clima, creditado fal-
samente por muitos como uma técnica melodramática, mas pertence a
uma tradição muito mais antiga. Na pantomima dialogada as interrupções
dos diálogos pela música eram tão numerosas que a ação dramática era
praticamente conduzida pela gestualidade do ator. Os jornais de 1791 pre-
feriram chamar a montagem de Baron de Trenck de peça dramática ou
pantomima. O Ambigu a apresentou como pantomime, ignorando o nome
pantomime dialoguée.
Depois de 1800, o termo pantomime dialoguée foi substituido quase
totalmente por melodrama. Para quem ainda tinha dúvidas sobre as pos-
síveis ligações do melodrama teatral com a pantomima, em 1802, na Revue
de tous les Théâtres de Paris, um crítico descreveu haver visto 12 panto-
mimas dialogadas, chamadas melodramas ou appelées mélodrames. Antes
de 1800, no edifício teatral, apenas duas pantomimas teriam sido chama-
das de melodrame: Michelin ou l’humanité récompensé, melodrame en un
acte (1790) de Moline e Adoni ou le bon nègre, mélodrame en 4 actes (1794),
de Rosny e de la Rochelle. Mas depois de tão detalhada exposição que des-
creve não apenas a gestação do melodrama, como de seu nome,
detenhamo-nos um pouco mais na questão do batismo desse novo gênero
dramático.
138 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

O surgimento do termo melodrama

O melodrama pode ser considerado um hipertexto em permanente


reformulação, ou seja, como um “gênero” novo em permanente reformu-
lação de um “gênero” antigo. Esta “nova” pantomima, produz e é produto
de um texto artístico formado por absorção, multiplicidade, ajuntamento,
collage,9 ou mera justaposição de outros textos e estilos anteriores e esta
dinâmica se perpetuará em seu desenvolvimento. Oscila por entre os gê-
neros em voga, sejam precedentes e ou presentes. A tragédia, a comédia,
o drama burguês, o romance francês e inglês, a novela de cavalaria, a pi-
caresca, o vaudeville, a ópera cômica, a comédia lacrimosa são alguns dos
gêneros que podem ser citados como contribuintes para esta forma mis-
turada, este hipertexto. A era industrial não tem o lento erigir de fórmulas
teatrais genéricas como na velha Hélade, a combustão da máquina é po-
derosa e joga dentro da fornalha todo material que possa ser combustível.
No período entre 1791 e 1800, ao se iniciar a moda das pantomimas
dialogadas, a nova forma que surgia parecia não ter um nome definido.
Algumas representações chegaram a ser chamadas scène lyrique et mélo-
dramatique (em Anniversaire – Aniversário), ou scène lyrique (em Féte de
Travail – Festa do Trabalho), e ainda mélodrame pantomi-lyrique (no
texto Féte de l’Égalité – Festa da Igualdade). O termo scène lyrique, como
supõe Mason, era uma analogia de tragédie lyrique que foi muito utilizado
no final do século XVII, também como sinônimo de ópera. A scène lyrique,
como gênero propriamente dito, foi um fracasso e não teve seguidores.
Como vemos seguidamente os teatreiros do bulevar, por paródia ou sim-
ples anexação, sempre estabeleciam diálogos com a cena oficial que se
desenvolvia na Comédie ou na Opéra.
Em 1798, Coffin-Rosny chama seu Affrico et Menzola de melodramé
dialogué. Para Masson, essa peça marcaria a exata transição do termo pan-
tomima dialogada para o melodrama teatral e o ponto em que a palavra se
torna usual entre os homens de teatro de bulevar. Segundo Masson, o

9
Composição intencional de obra artística com elementos heterogêneos preexistentes.
Robson Corrêa de Camargo | 139

nome melodrama tinha duas vantagens: oferecia um melhor substituto ao


termo pantomima dialogada, assim como seria boa alternativa àqueles que
estavam querendo elevar o padrão do teatro de bulevar e iniciar um novo
gênero. Pode-se acrescentar que a nova terminologia também serviria
para dar um perfil “mais elegante” à velha pantomima.
Vejamos um pequeno resumo dos espetáculos parisienses chamados
mélodrame, seja a nova forma de ópera ou de melodrama teatral, desde
Pygmalion de Rousseau até Coelina de Pixérecourt (1770-1800).10

Ano Espetáculo Teatro Autor/Compositor Gênero


1770, Pygmalion Comédie Fran- Rousseau/Coignet Scène lyrique
Lyon çaise/1775
1779 L’Amour Vengé Th. des Élèves de Parisau/Rochefort Mélodrame
L’Opéra
1779 Le Jugement de Pâris Variétés-Amusantes Moline/ ? Mélodrame et ballet-pantomime
1780 L’anti-Pygmalion ou Th. des Élèves de Poultier d’Elmotte/ Ro- Scène lyrique
L’Amour Prométhée L’Opéra chefort
1780 Le Prince Noir et Blanc Ambigu-Comique Audinot e Mussot/ ? Féerie Mêlée de dialogues, de
musique et de danse
1781 Ariane Abandonée Comédiens-Italiens Brandes (trad. Mélodrame imité de l’allemand
Fr. Dubois)/Benda
1782 L’Élève de la Nature Grands Danseurs du Mayeur de Saint- Mélodrame
Roi Paul/Rochefort
1783 Pyrame et Thisbé Comédie Française Larive/[Baudron] Scène lyrique
1784 Héro et Léandre Ambigu-Comique Florian/ ? Monologue Lyrique
1785 Pyrame et Thisbé Cassel Le Boeuf/Rochefort Mélodrame
1785 Annette et Basile Th. de Beaujolais Guillemain/Chardiny Mélodrame comique
1786 Alexis et Rosette Th. de Beaujolais Guillemain/Chardiny Mélodrame
1786 Echo et Narcisse Ambigu-Comique ? / Rochefort Mélodrame
1788 Estelle et Némorin Ambigu-Comique Gabiot/Rigel Mélo-drame pastoral
1789 Pandore Th. de Monsieur D’Aumale de Corsen- Mélo-drame
ville/ Beck
1790 Michelin ou l’humanité Orient Moline/Deresmond Mélo-drame
récompnsée
1791 Mutius Scoevola au camp Rouen 1791 ?/Grenier Mélodrame
de Porsenna Th. de Molière 1792
1793 La Fête de L’Égalité Th. de la Cité Planterre/Desvignes Mélodrame pantomi-lyrique
1795 Galatheé Th. de la République Poultier d’Elmotte/ Scène lyrique
Bruni
1797 Le génie Azouf ou les deux Th. de la Cité Cuvelier/Vanderbroek Féerie
coffretts mélo-dramatique
1797 La Forêt Perilleuse ou les Th. de la Cité Loaisel de Tréogate/? Drame;
Brigants de la Caladre /Ambigu 1800 1800 Mélodrame

10
Esta tabela é feita com base na relação de Emilio Sala (SALA, 1995, p. .25-26)
140 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

1797 Les Akanças Th. de la Cité Cuvelier/Vanderbroek e Prologue


Cuvelier mélo-dramatique
1797 Le Moine Th de L’Émulation Camaille Saint-Au- Comédie mêlée de chants, dan-
Gaîté 1802 bain/Foment ses,
pantomime;
1802 Mélodrame a spectacle
1797 L’Enfant du Bonheur Gaîté Baioit e Ribié/Leblanc Mélodrame-féerie à grand spec-
tacle, orné de chant, danse,
combats, pantomime, évolutions
militaires, tournois, etc.
1798 Affrico et Menzola Ambigu-Comique Coffin-Rony/Blasius mélodrame
1798 L’Anniversaire ou la FêteAmbigu-Comique Cuvelier e Mittié/Van- Scène lyrique et mélodramatique
de la Souveraineté derbroek mêlée de pantomime, combats et
danses;
1798 La Naissance de la Panto- Th. de la Cité et de la Cuvelier e Hapdé/Navoi- Scène mélodramatique et allego-
mime Pantomime gille e Bauneux rique, mêlée de danses et à grand
spectacle
1798 Victor ou L’Enfant de la Ambigu-Comique Pixérécourt/[Solié?] Drama à grand spectacle
Forêt Porte de Saínt-Martin 1802 mélodrame à grande spec-
1802 tacle
1798 Adonis ou le Bon Nègre Ambigu-Comique Béraud e Rosny/? Mélodrame avec danses, chan-
sons, décors et costumes créoles
1798 Julia ou les Souterrains Jeunes-Artistes Sewrin / ? Mélodrame
1799 Roland de Monglave du Ambigu-Comique Loaisel de tréogate/[Bla- Drame
Château de Mazzinni sius]
1800 Coelina ou L’Enfant du Ambigu-Comique Pixérécourt/[Quaisain] Drame à grand spectacle
Mystère
Tabela realizada com base na relação descrita por Emilio Sala (SALA, 1995, p. 26-26)

Se o melodrama havia herdado a gestualidade extremada da panto-


mima e a capacidade de absorção e reaproveitamento de outros gêneros e
estilos, surge destes ainda sua capacidade de adaptação e sua estrutura em
amálgama permanente – possibilitando absorver e ser absorvida. Pode-se
ainda mencionar que a pantomima e o melodrama têm como caracterís-
tica principal imitar a vida e, ao mesmo tempo, mimicar a arte. Seus
procedimentos utilizam a paródia, o pastiche, a transposição ou a pura e
simples imitação.11 A pantomima do teatro de feira, ao parodiar e distorcer
constantemente o gênero objeto de seu escárnio, tinha de copiar, por meio
da mímica ou do espetáculo, a estrutura ou os elementos do objeto da crí-
tica ou da paródia.

11
A problemática desta conceituação está bem desenvolvida por Genette.
Robson Corrêa de Camargo | 141

Este processo de intromissão e introspecção gerou uma forma intro-


jetiva de drama que está na origem do melodrama. A introjeção é um
termo psicológico que descreve um indivíduo que, inconscientemente,
passa a considerar seus os valores e características alheias. No caso do me-
lodrama, como da pantomima, a introjeção tornou-se um procedimento,
que é parte de sua forma. Se seu diálogo era constante com outras formas
dramáticas, a transposição para o palco da realidade vivida pela plateia
será um caminho evidente a ser percorrido. Sendo o melodrama até o mo-
mento um gênero em sua essência teatral, a ser absorvido por todas as
artes posteriores, a pantomima constitui-se em um dos elementos dinâ-
micos de sua formação. O crítico e pesquisador Jacó Guinsburg acrescenta
que “a pantomima tem como característica fundamental a gestualidade,
em síntese, e, o melodrama sendo herdeiro também da pantomima, vai
incorporar esta gestualidade extremada, sintética como um importante
elemento de sua forma”.12
Em 1911, Alexis M. Pitou afirma que as personagens centrais do me-
lodrama, os “heróis” do melodrama, não seriam, como relatavam alguns,
as personagens do drama e da tragédia, reduzidas a estereótipos ou sim-
plificados. Com muita razão o autor citado afirma que esta redução
acarretaria uma desvalorização das personagens do melodrama se com-
paradas às da tragédia. Para Pitou, as personagens da pantomima
exprimiam por gestos um determinado número de sentimentos. O ponto
de vista de Geoffroy, por outro lado, embora relacione o melodrama com
a pantomima, não evita a discussão de sua relação com a tragédia. Des-
carta a hipótese do melodrama como um mero redutor, porém afirma que
o melodrama surge de uma deformação da tragédia. Posição não muito
diferente da que será desenvolvida por M. de Granges ao considerar o me-
lodrama um estado “anormal” da tragédia clássica. Se considerarmos esta
deformação anormal como um simples desenvolver, sem características

12
Anotações de encontro pessoal em 24 de agosto de 1999.
142 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

de valor, sim podemos concordar com esta questão. Não haveria como re-
petir a forma da Tragédia em um mundo totalmente reconfigurado.
O fato de ter ou não o melodrama evoluído da tragédia clássica, mais
de mil e quinhentos anos depois do ocaso desta, é de segunda ordem, em-
bora possam ser observados pontos em comum e incomuns nos dois
estilos. Todas as estruturas do teatro, falado ou emudecido, têm pontos de
contato, entretanto, o melodrama faz um diálogo muito mais rico e pode-
roso com a pantomima, forma dramática contemporânea e imediatamente
precedente.
Mesmo entre a crítica o reconhecimento da ligação entre a panto-
mima e o melodrama não é novo. No início do século XIX, o temido crítico
francês Julien-Louis Geoffroy (1743-1814) destacava os elos entre o melo-
drama e a pantomima histórica dos tempos de Arnould, que existiria desde
o último terço do século XVIII.
A nova forma melodramática vai confundir parte da crítica da época
que a tentava examinar com as ferramentas do modelo neoclássico, não
compreendendo assim toda a sua dinâmica. Mas a confusão da análise do
novo gênero não se explica apenas pela adoção de um ponto de vista limi-
tadamente literário no exame desta forma teatral. A análise do valor do
melodrama também espelha muitas das lutas políticas ideológicas que su-
cederam a Revolução Francesa e têm frutos até os dias de hoje.
O melodrama é considerado produto e afirmação do nacionalismo
francês e por isto a junção desta forma teatral com a ópera. Este raciocínio
segue um processo de tentativa de valorização do gênero ao colocá-lo como
filho dileto de uma variação nacional operística, afastando-o da impureza
dos teatros de bulevar e das feiras que haviam tido forte influência italiana
em determinado momento. O teatro de feira muito se desenvolveu a partir
da proibição dos italianos da commedia dell’Art, assim como da incorpo-
ração de seus procedimentos.
O encontro do melodrama com gêneros previamente estabelecidos
como a tragédia e a comédia, seja em reformulação e ou degeneração, de-
pendendo do gosto do crítico, é fruto da absorção das características desses
Robson Corrêa de Camargo | 143

gêneros clássicos pelo híbrido melodrama. Este carácter de cruzamento do


gênero permite que todas estas possibilidades citadas sejam de alguma
forma contempladas, dando-lhes um aspecto proteico, não apenas multi-
forme na estrutura, mas de constante mudança e absorção na gênese.
Determinada crítica procura evitar as origens populares do melo-
drama, condenando-o ao mal de suas próprias tramas, separando-o de
seus verdadeiros ancestrais: a pantomima, o teatro de feira e do bulevar.
Ao colocá-lo ao lado da literatura reconhecida e excessivamente analisada,
rouba seu enredo e sua história, despojando-o de suas raízes populares,
relegando-o à orfandade e ao abandono. O melodrama teatral rompe as
limitações das fronteiras que se estabeleciam e não pode ser considerado
francês, inglês ou mesmo alemão.13 Seria um espírito do tempo?
Esta forma híbrida de teatro de função exponencial cruzou os mares,
canais e continentes, mesclando-se e dinamizando todas as possíveis for-
mas espetaculares. O melodrama multiforme, grande gênero popular e
comercial do século XIX, rompe as limitadas análises que dividiam o reino
teatral de passado longínquo, entre apenas duas formas, a comédia e a
tragédia, tornando-se o principal pilar do teatro em grande escala que san-
graria os próximos séculos, sem fronteiras ou palcos definidos.

13
August von Kotzebue (1761-1819) foi um dos proeminentes dramaturgos melodramáticos alemães, com sua obra
Spanier in Peru (Espanhóis no Perú, 1796), considerada um dos predecessores do melodrama teatral, foi adaptada
aos palcos ingleses por Richard Sheridan (1751-1816) como Pizzaro (1799).
3

A máquina do melodrama e o início da cena moderna

A tragédia tem sobre a epopeia a vantagem da música e do espetáculo,


o que não é pouco, pois são meios muito eficazes para o prazer integral

Aristóteles (1992). Poética (1462 a 15-17).


Edição trilíngue de Valentín Yebra.

Se o melodrama teve como principal motor de seu desenvolvimento


a pantomima das feiras e do bulevar, como explicar a confusão terminoló-
gica a que o termo está submetido até os dias de hoje?
Alguns fatores já foram discutidos, mas o principal é que o melo-
drama foi o fenômeno teatral marcante no século XIX. Elemento dinâmico
de uma indústria do espetáculo que se iniciava e um dos vagões na loco-
motiva da Revolução Industrial. Sua produção mobilizou centenas de
atores, autores, produzindo milhares de peças e sabores, conquistando
uma plateia cativa e participante em todos os estratos sociais da população,
daí se espalhar e espraiar nos folhetins, no rádio, no cinema, na televisão,
nas revistas impressas do século XX e no streaming de vídeos do XXI.
Quem viveu o século XX, com o extensivo desenvolvimento da indús-
tria de comunicação de massas, com o rádio, o cinema, a televisão e os
espetáculos da Broadway podem facilmente compreender o fenômeno
desse teatro de massas que se iniciara há mais de dois séculos passados. A
Revolução Industrial iria concentrar cada vez mais os trabalhadores e a
nova classe média nas cidades, formando um público imenso que lotará a
indústria de diversão de turno, naquela época o teatro de bulevar com seus
melodramas e vaudevilles.
Robson Corrêa de Camargo | 145

Um dos ideais estimulados e praticados pela Revolução Francesa:


acabar com a injustiça e punir os responsáveis, será o pano de fundo do
gênero, determinando a polarização de suas principais personagens. A fi-
losofia moral impressa no melodrama, de inspiração rousseauniana,
fundamentava-se no princípio de que o homem nasce bom, mas a socie-
dade o corrompe.
Manter-se fiel a este princípio de bondade será a força-motor de suas
personagens. Contra ventos e marés, deverão enfrentar todos os percalços
naturais e seus agentes humanos, que tentarão corromper o estado de
“bondade” original dessas personagens, de seus individuos e, pretensa-
mente, de toda a nova sociedade que surgia.
Desse modo, suas personagens positivas serão cidadãos comuns,
muitas vezes passivos, enfrentando a cada momento uma nova força so-
brenatural, o destino do indivíduo submetido à sociedade industrial e a
seus pecados capitais, que poderão surgir a cada momento por meio de
todos os subterfúgios possíveis. Os negativos serão os agentes dessa força
antijustiça social. O melodrama invadiria inclusive os discursos de poder.
Para manter este sentimento de bondade humana aceso e cativo no
espírito da plateia, a indústria espetacular do melodrama fez surgir uma
quantidade nunca antes experimentada de textos e montagens, produzi-
dos em grande escala, mostrados nos grandes centros industriais, seja
Londres, Paris ou Nova York. Traduziu e adaptou seus temas e histórias
para outras línguas e costumes, porém a demanda exigida pela plateia, que
fazia grandes filas em frente a seus teatros, trouxe, como era de se esperar,
uma qualidade literária irregular.
Para se ter uma ideia da quantidade de espetáculos apresentados em
Paris, nos primeiros anos do século XIX, houve a apresentação de 125 tex-
tos diferentes em apenas um ano, isto sem incluir óperas, shows equestres
e vaudevilles. Essas montagens espalharam aos quatro ventos a nova filo-
sofia do singular homem comum, cidadão vitorioso ao final, apesar de tudo
(Marcoux, 1992, p.5).
146 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

No processo de produção da arte teatral para um grande público, que


iria colocar sobre novas bases seus parâmetros, três problemas metodoló-
gicos distintos envolveram diretamente a conceituação daquilo que tem
sido chamado melodrama no teatro. O primeiro, o da extensão, mesmo
teatralmente a palavra melodrama serviu para designar mais do que ape-
nas os espetáculos de Pixérécourt e daqueles que seguiram seu estilo. O
termo melodrama foi sendo designado a distintos fenômenos teatrais ex-
cluídos das normas canônicas, aqueles que não seguiam os critérios
clássicos, e, sob o teto desta definição abrigaram-se então todos os espetá-
culos afastados das normas consideradas inteiramente clássicas e ou
estabelecidas, amalgamando e inserindo-se com ou sem nas fronteiras me-
lodramáticas.
A primeira classificação recebida por Coelina, o melodrama inaugu-
ral, foi drame à grand spectacle. Esta definição, mais do que a relação
música e texto, descrevia sua natureza, antes de tudo um drama. Um
drama mélos, com melodia ou efeitos musicais ou música incidental, como
chamaríamos hoje, mas definitivamente um drama. O epíteto de melo-
drama serviria para designar qualquer produção teatral que misturasse
gêneros e estilos ou não portasse a pureza dos chamados gêneros
clássicos, ou seja, este procedimento de amálgama e mistura tornou-se
característica central naquilo que o melodrama definia como seu. Um não
termo que caracteriza tudo pelo que não é.
Vamos encontrar, assim, fantasias melodramáticas, cenas líricas e
melodramáticas, melodrama pantomimo-lírico, peças melodramáticas e
alegóricas, etc. (Thomasseau, 1989, p. 16). Este campo intermediário, do
teatro produzido em escala industrial, afastou-se cada vez mais de um
drama estruturado, segundo algumas normas, e o melodrama acabou
sendo o nome de quase tudo o que buscasse novas combinações dramáti-
cas. Lembra um pouco o termo performance ao final do século XX e além.
Como espetáculo, o sucesso do melodrama acarretou o segundo pro-
blema em sua definição, o outro lado da moeda do fenômeno da
generalização: elementos singulares da linguagem de seus variados
Robson Corrêa de Camargo | 147

espetáculos têm sido tomados pelo todo da linguagem desse gênero.


Chamo isto de a parte pelo todo. Seguindo esse procedimento define-se
uma determinada apresentação como melodrama apenas por conter um
dos muitos procedimentos que podiam ser usados em seus espetáculos,
seja a união entre música e texto em determinada forma; o emprego de
gestos eloquentes e exagerados; ou mesmo, pela utilização de personagens
fixos e antinômicos. Isto parte da crítica cinematográfica tem feito à so-
capa.
Conforme este processo nominar a presença de apenas uma dessas
características contaminaria qualquer texto teatral e transformaria o es-
petáculo em um melodrama. Qualquer texto que tomasse de empréstimo
uma das características usuais no teatro das feiras, durante todo o século
XVIII, estaria corrompido e transformar-se-ia em um melodrama ou pos-
suiria, ao menos, um estilo melodramático. Estas duas formas comuns de
análise, a extensão e a parte pelo todo têm obstruído o reconhecimento
da estrutura do melodrama. Nestes tempos de pós-modernidade, nos
quais as fronteiras se entrecruzam e são descontruídas, justapostas e
amalgamadas, o melodrama se torna central pela generalidade e plasma a
tudo por seus efeitos. Um buraco negro, melodramático, que suga a tudo.
Aprofundando algumas das posições colocadas por Thomasseau, um
de seus grandes historiadores contemporâneo, pode-se afirmar que todos
os gêneros teatrais da época e não apenas o melodrama procuravam um
desenvolvimento cênico de muito movimento, com uma elaboração mais
cuidada do vestuário e da decoração, o que mostrará a dominância estilís-
tica da trama pantomímica e novelesca sobre todos os gêneros teatrais do
período, sendo o melodrama o grande depositário desse processo (Tho-
masseau, 1989, p. 21).
Dentro desse processo, o melodrama, pantomima reelaborada, é
forma teatral que se caracteriza pelo hibridismo. Se o século XIX procurava
novas identidades, a do cidadão, das fronteiras nacionais, dos gêneros te-
atrais, o melodrama seria o gênero (ou antigênero) das misturas e
148 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

ambiguidades, e esta é uma de suas qualidades. O chamaríamos pós-mo-


derno ou moderno? Pouco importa, liquefaçamo-nos.
Outra grande questão que tem contaminado a análise do melodrama
e sua correta avaliação, como fenômeno espetacular e mesmo literário,
deve-se à tendência dominante da construção do espetáculo que se impôs
no teatro europeu a partir do naturalismo. A literalidade imposta, como
destacamos anteriormente, transformou a cena dramática no terreno do
realçar da palavra, da arte do bem-dizer e do pouco movimentar, do ex-
pressar-se sem movimentos excessivos, de um representar contido em sua
gestualidade, mas não em sua sonoridade. Em sentido inversamente pro-
porcional o corpo cedia sua expressão à palavra falada. A Revolução
Francesa continuava expondo em suas hastes as cabeças sem corpo.
O teatro tornou-se extensão do reino literário, no movimento das pa-
lavras ditas. No Ocidente, a tendência dominante dos processos da arte do
ator na maior parte do século XX, procurou produzir um ator estático e de
poucos movimentos ou, parafraseando Laban (1879-1958), um ator que
procurava mais o movimento das cordas vocais que os corporais.
No final do século XX, a mímica e depois o teatro-dança desenvolve-
ram-se como se fossem fenômenos fronteiriços à arte do teatro. Laban
descreve este fenômeno como o de uma reação de dramaturgos, atores e
produtores, cansados da exagerada e dançada modalidade de representa-
ção teatral, “saturada do sentimentalismo melodramático” (grifos do
autor). Conclui-se que estes se voltaram para a imitação, no palco, da con-
tida “vida do dia a dia”, o que, segundo ele, produziu um “estilo morto de
atuação, originado da imobilidade cênica por eles cultivada (Laban, 1978,
p.149)”.
Neste contexto deve-se entender a negação e a simplificação da beleza
do melodrama e de seus “gestos exagerados”, pois nosso gênero cami-
nhava na contra corrente da história evolutiva do drama que se tornou
canônico, assim também podemos entender o processo “rejuvenescedor”
que envolve o drama nos dias atuais. O aspecto fundamental de sua con-
tribuição nos desígnios da história do teatro, o da figura do encenador-
Robson Corrêa de Camargo | 149

melodramaturgo, acabou não sendo relevada na história de seus principais


historiadores, como já vimos brevemente.
O autor-diretor melodramatista havia feito um teatro que ia na con-
tramão do gosto dominante que se estabeleceu ao início do século XX. A
estética do melodrama plasmará a grande arte popular que surgiria, o ci-
nema mudo ou o rádio, e nem todos quiseram acompanhar este seu
caminho. Por estes e outros fatores, hoje, o termo melodrama está espa-
lhado pelos céus, sem lenço e sem documentos e com significados díspares.
Entretanto, seus principais elaboradores na cena foram mais precavidos
em sua utilização.
René-Charles Guilbert de Pixérécourt, dramaturgo, diretor, produtor
e cenógrafo, com mais de cem textos escritos, alguns que tiveram mais de
400 representações, como veremos, denominou a maior parte de sua pro-
dução, sessenta definidos como melodramas. Pixérécourt aplicou este
nome à sua obra apenas, em 1802, e com alguma hesitação, pois chamaria
sua montagem do texto La Femme à Deux Maris (A Mulher com Dois Ma-
ridos) primeiro de melo-drama e depois melodrama.
No entanto, na edição escolhida de suas obras (1841), em um quadro
crítico elaborado pelo próprio autor, Pixérécourt afirma haver estreado
Rosa (1800) como melodrama, sendo este seu primeiro texto melodramá-
tico, apresentado em 9 de agosto, no Théâtre de la Gaîté, quase um mês
antes de Coelina e que alcançou um total de 335 apresentações, 82 em Pa-
ris e 253 nas províncias (Pixérécourt, 1841, p. LVII).
Pixérécourt relata, em seu Théâtre Choissi (1841), que, antes de es-
crever Rosa, já havia redigido outros textos dramáticos, como Victor ou
l’Enfant de la Forêt (1798; Victor ou as Crianças da Floresta), anunciado e
publicado como drama em três atos, em prosa e em grande espetáculo,
chamando-o tragicomédia ou um drama lírico. No entanto, seu primeiro
grande sucesso de público, ultrapassando as mais de mil representações e
considerado pela crítica o inaugurador oficial do gênero foi Coelina ou l’En-
fant du Mystère (1800; Coelina ou os Filhos do Mistério), estreada em 2 de
setembro de 1800, texto central em nossa análise. Entretanto, se Coelina
150 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

foi um êxito, Pixérécourt já havia mostrado suas habilidades de drama-


turgo e de diretor, vejamos abaixo sua produção anterior, locais e números
de representações, não apenas em Paris e a diversidade de repertório.
PEÇA GÊNERO TEATRO Apres. ANO
Paris Província Soma
LES PETITES Comédia em Ambigu 73 39 112 16 set 1797
AUVERGNATS um ato
com arietas
LA NUIT Comédia em Ambigu 7 8 15 30 set
ESPAGNOLE dois atos 1797
e em prosa
VICTOR Drama lírico Favart 392 422 814 9 nov 1797
três atos
LA FORÊT DE Drama lírico Feydeau 82 76 158 24 jan
SICILE em dois atos 1798
CHATEAU DE Drama em Ambigu 41 5 46 27 jun
APENNINS cinco atos 1798
e prosa
BLANCHETTE Paródia de Montansier 15 0 15 18 out
Blance e Mon- depois Lou- 1798
tcassin vois
Vaudeville em
um ato
LA SOIRÉE Provérbio em Montansier 87 29 116 24 jan
DES CHAMPS um ato 1799
ÉLISSÉES en vaudeville
LÉONIDAS Tableau lírico Ópera 3 3 15 jun
em um ato em 1799
verso
ZOZO Comédia em Montan- 67 58 125 17 out
um ato em sier/Feydeau 1799
prosa jan 1800
San Martin
mar 1803
L'AUBERGE DU Folie em dois Montansier 1 0 1 29 jan
DIABLE atos em prosa 1800
LE PETIT PAGE Ópera cômica Feydeau 43 135 178 14 fev
em um ato e 1800
prosa
LA Ópera cômica Ambigu 496 0 496 mai 1800
MUSICOMANIA em um ato
RANCUNE Paródia de Troubadors 25 0 25 mai 1800
Hécuba
LA JARRETIÈRRE Paródia de Troubadors 12 0 12 25 jul
Praxitèle 1800
ROSA Melodrama Gaîté 82 253 335 9 ago 1800
em três atos

TOTAL 1426 1025 2451


Robson Corrêa de Camargo | 151

Antes de Coelina abrir as cortinas, Pixérécourt já havia escrito 15 tex-


tos, mostrando-se um autor de sucesso, tanto em Paris como nas
províncias. Escreveu paródias, comédias em prosa ou com arietas (peque-
nas árias), duas óperas cômicas, um tableaux lírico, dramas líricos, um
provérbio e mesmo um melodrama. Seus espetáculos chegaram a um total
aproximado de 2.300 representações, se não contarmos Zozo que reestreia
em 1803.
Mesmo após o sucesso de Coelina, a grafia melodrama não designaria
plenamente as peças do gênero. Em seis de abril de 1801, o teatro Ambigu
representa o melodrama Le Pèlerin Blanc ou les Orphelins du Hameau (O
Peregrino Branco ou os Órfãos da Vila) e, em 27 de setembro, o Théâtre
da Porte Saint-Martin apresenta Pizarre, ou la Conquète du Pérou (1802;
Pizarro ou a Conquista do Peru), chamando-o de mélo-drame histórico. O
ano de 1802 pode ser considerado aquele em que o termo mélodrame
unifica-se como grafia (grifos meus).
Como era usual aos melodramaturgos, Pixérécourt vai se aventurar
também em outros estilos. Escreve La Rose Blanche et la Rose Rouge
(1809; A Rosa Branca e a Rosa Vermelha), que classificou de drame lyrique
(drama lírico); em 1910, escreve Les Trois Moulins (Os Três Moinhos), um
divertissement allègorique (divertimento alegórico), em um ato, com can-
tos e danças, que ele descrevia como mêlé de chantes et de dances
(entremeado com cantos e danças); o texto L’Ennemi des Modes ou La
Maison de Choisy (1813, O Inimigo das Boas Maneiras ou A Casa dos Es-
colhidos) foi anunciado como uma comédia em três atos e prosa, entre
tantas outras.
Uma nota escrita pelo dramaturgo para a apresentação do espetáculo
Les Maures d’Espagne ou Le Pouvouir de L’Enfance (1804; Os Mouros da
Espanha ou o Poder da Infância) descrevia assim seu melodrama em três
atos e em prosa, “apresentado em grande espetáculo”, como era habitual
no anúncio de todos os seus melodramas. Esta peça foi apresentada no
teatro da ambiguidade cômica, o Ambigu-Comique, primeira casa a
152 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

receber as obras do poeta, e sua leitura esclarece alguns dos procedimen-


tos utilizados pelo dramaturgo.
Pixérécourt descreve ter tirado elementos do texto de August von
Kotzbue (1761-1819), Les Hussites à Naumbourg (Os Hussitas em Naum-
bourg), mas com a observação de que o interesse principal do drama
alemão era sobre a guerra religiosa que seria desconhecida do público
francês. O dramaturgo achou mais apropriado adaptar o episódio para ou-
tra fábula igualmente histórica, porém mais conhecida do público
parisiense, Os Mouros da Espanha (Pixérécourt, 1841).
Em 1816, modificando ainda mais as regras de seu gênero, escreveu
um melodrama, agora em dois atos, Le Suicide ou le Vieux Sergent (O Sui-
cídio ou o Velho Sargento) e depois um melodrama em um ato, La Muette
de la Forêt (A Muda da Floresta).
Ao final de sua longa carreira, escreveu L’Oiseau Bleu, (1832; O Pás-
saro Azul) que chamou mélodrame-férié (melodrama festivo) em dois atos,
misturado com cantos e danças e Guillaume Tell (1828), melodrama em
seis partes, imitado agora de Schiller.
Se ainda existe alguma dúvida sobre as intenções conscientes dos te-
atreiros do bulevar para com o tratamento irreverente ou subversivo das
normas do teatro clássico francês da época, o nome Ambigu-Comique
(ambíguo-cômico), pertencente a um de seus teatros, palco privilegiado do
melodrama em seu início, comprova que, mais que um simples nome,
serve de plataforma de princípios estéticos. Ambíguo, nos lembra o Dicio-
nário Aurélio, vem do latim ambiguu, e é aquilo que se pode tomar em
mais de um sentido, equívoco, impreciso, incerto e cujo procedimento de-
nota incerteza, uma paráfrase do que significaria melodrama nos dias de
hoje.
Pixérécourt, como Molière, foi diretor, produtor e dramaturgo. A na-
tureza da encenação melodramática, que tinha como centro a elaboração
do espetáculo, transforma o autor citado em um dos primeiros encenado-
res do teatro moderno. Em suas memórias, descreve seu ponto de vista:
“Uma peça teatral somente poderá ser bem concebida, bem construída,
Robson Corrêa de Camargo | 153

bem escrita, bem ensaiada e muito bem atuada sobre a direção e cuidado
de uma única pessoa que tenha um único gosto, julgamento, espírito, sen-
timento e opinião” (Pixérécourt, 1841, Théâtre choisi, IV, p. 497).
O amigo e frequente colaborador musical de suas obras, Alexandre
Piccini, relatava o processo de trabalho de Pixérécourt: ele não era apenas
o autor de suas peças, mas também desenhava figurinos, providenciava os
esboços para as cenografias e explicava o movimento do maquinário do
palco aos maquinistas. Segundo Piccini, Pixérécourt orientava cena por
cena, estabelecendo com os atores as intenções que as personagens deve-
riam estar atuando (Marcoux, 1992 p. 35).
No desenvolvimento do espetáculo melodramático a cenografia era
um elemento fundamental, e não primava pela decoração. A representação
do elemento natural, parte criativa do dramático, serviria como um esti-
mulador das peripécias que envolviam todas as personagens da trama. As
inundações, os incêndios de grandes proporções, os terremotos, as tem-
pestades de neve, as batalhas, os desastres de trem ou naufrágios de navios
foram alguns dos efeitos espetaculares que davam mote à trama melodra-
mática.
O aparato cênico não apenas serviria como pano de fundo do efeito
teatral de grande beleza para o deleite da plateia, mas exercia uma função
orgânica no desenvolvimento do espetáculo. A invenção era de tal ordem
que se apresentavam até mesmo corridas de cavalos, com o emprego de
animais vivos em cena. A necessidade de uma direção teatral era, portanto,
evidente, pois as personagens tornavam-se, de certa maneira, secundárias
diante dos efeitos teatrais de determinada parte da apresentação.
A técnica de interpretação teatral era muito objetiva e exteriorizada,
não se havia ainda entrado no terreno da interiorização das emoções,
como as sugeridas por alguns dos métodos de interpretação do século XX.
Freud ainda não havia se debruçado sobre a histeria. O ator não procurava
mostrar o conflito das personagens de maneira sutil, tanto as mudanças
de estado de espírito como o objetivo das personagens eram demonstrados
em gestos, prosa e, algumas vezes, no canto.
154 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

O diálogo curto e com ações rápidas acontecia em frente ao público.


Não se procurava um texto com diálogos excessivos, as personagens eram
vetores puros das forças que lutavam na peça, mas isto não significa, como
consideram alguns, que as personagens do melodrama eram esquemáti-
cas, pois tinham de ser plenamente desenvolvidas pelos atores em seu jogo
cênico interpretativo.
Os atores e a direção seguiam o processo estabelecido pela tradição
da commedia dell’arte e pelo teatro de feira. As personagens eram estru-
turadas para a ação cênica, assim, o desenvolvimento da ação era
determinante, com pouco tempo para a exposição do conflito interior ou
das dúvidas das personagens, pois o conflito maior dava-se entre as forças
em movimento.
Conforme pode ser percebido, há, portanto, uma clara introdução ou
apropriação pelo melodrama de dois elementos típicos da comédia: o
tempo rítmico acelerado das ações encadeadas e o desenvolvimento da
trama por meio de ações manifestas ou fatos, mas a maior preocupação
ocorre com a atividade exterior, a movimentação das personagens e os
efeitos cênicos, sem grandes espaços para o monólogo interior, as pausas,
o tempo e as indecisões.
O monólogo interior, totalmente verbalizado e manifesto, seria reser-
vado a momentos cruciais da peça, como o esperado arrependimento do
vilão. A psicologia ainda hibernava. No melodrama, como na comédia, a
ação deve ser sempre manifesta.
Desse modo, os caminhos abertos pela Revolução de 1789 estabele-
ciam uma cultura do mundano e do público, colocando-se em plano
inferior o que se escondia. Os gestos e a fala apregoada acabaram à frente
da ribalta. Ao contrário do que se pode pensar, o sucesso econômico do
melodrama não o tornou uma arte marginal na apresentação, mas um tre-
mendo sucesso que atraiu os melhores atores e atrizes do teatro do século
XIX. E isto fez uma diferença.
Esses atores, pertencentes ao teatro considerado clássico (que não es-
tava bem de bilheteria), foram também responsáveis pelo
Robson Corrêa de Camargo | 155

desenvolvimento cênico detalhado das personagens do melodrama. Esta


participação é fundamental, pois, tanto na comédia como no melodrama,
a interpretação, mais que a história, é o sustentáculo do espetáculo. A co-
média, como a pantomima, possui uma tradição de interpretação que
explicita melhor a construção da ação cênica sobre o palco, já que muitas
vezes ela é contruída sobre rotinas ou esquemas cênicos, que são comple-
xas rotinas de interpretação na apresentação.
Não basta ser apenas um bom texto escrito ou, dito de outra maneira,
ele não precisa estar totalmente detalhado para a leitura do público, mas
é necessário um intérprete excepcional que aperfeiçoe, detalhe, dê o poli-
mento preciso à personagem e amplie o espetáculo. Os grandes
dramaturgos-encenadores, como Shakespeare, não se preocupavam com
as edições de suas obras para o público-leitor, como supõe Darton: “Para
ele, aparentemente, o que contava era a encenação, e ele provavelmente ia
modificando os roteiros, à medida que a ação no palco se desenvolvia”
(Darton, 2004, p. 10). Para utilizar as palavras, agora de um grande cômico
do cinema chamado mudo, Harold Lloyd (1894-1971): “Há alguma coisa
especial no grande comediante. Ele é tridimensional” (Cahn, 1957, p. 5).
Conforme Lloyd, deve-se dizer que uma comédia sem um grande ator
pode deixar até de ser comédia. O melodrama também exige atores tridi-
mensionais, pois o “esquematismo” dramático e os diálogos curtos
solicitam a dimensionalidade de uma boa interpretação.
As personagens do melodrama não possuíam um grande conflito in-
terior nem necessitavam deles, porque estavam compelidas a agir para
manter suas normas morais, pois as forças do destino sempre em mãos de
personagens inescrupulosas, até quase o final, mudariam a todo momento
suas condições.
A grande dimensão das personagens era exterior, funcionavam como
vetores, dependia da ação a que se submetia e dos valores que defendia.
Este era o grande conflito moral: o homem e a mulher diante do seu des-
tino individual e das suas grandes batalhas cotidianas. Os oponentes
156 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

poderiam ser desde as desgraças naturais e ou vilões que fariam sofrer as


“boas” personagens.
Assim, a virtude triunfará quase sempre, de um modo ou de outro,
apesar dos percalços encontrados. O cidadão entrará em cena para mos-
trar os problemas de seu entorno, suas personagens de moral positiva
serão: o nobre herói, a heroína sofredora, com seus caracteres puros e, as
negativas, o vilão de sangue-frio e seus agentes, os propulsores da ação
melodramática pelos obstáculos criados. Sem eles o melodrama paralisa.
A espetacularidade técnica desse espetáculo, marca do século XIX,
não foi elemento exclusivo apenas do melodrama, ou mesmo da ópera, já
que estamos entrando na era da máquina. Para que se perceba a busca da
arte e do público pelo espetacular na cena, deve-se acompanhar um pouco
o desenvolvimento do panorama, um entretenimento de certa repercussão
no século XIX.
Este havia sido criado em 1787 e constituía-se de uma construção cir-
cular, uma tenda, no qual a plateia, sentada em uma plataforma central,
era totalmente circundada por uma pintura que, inicialmente, tinha cerca
de 18 metros de diâmetro, que chegou na média de 40 metros em suas
versões mais tardias.
O panorama era primeiro pintado em rotundas fixas, depois foi de-
senvolvido para o cenário em movimento, no qual uma cena contínua era
pintada em uma enorme tela, sustentada na parte superior e ligada aos
dois lados por dois cilindros que movimentavam a tela. Esse procedimento
passa a ser usado no teatro, quando a tela pintada movia-se no fundo ou
nas laterais do palco e o local da cena poderia ser trocado. Assim, os atores
com suas carruagens ou outros objetos de cena, moviam-se de um lugar
ao outro, em frente à tela, sem necessidade de uma grande troca de cena
ou do fechar das cortinas, criando também um efeito artístico de outra
qualidade.
Louis Jacques Mandé Daguerre (1789-1851), um pintor de panora-
mas, que havia trabalhado em cenários para a ópera e um dos inventores
da fotografia, foi responsável pela invenção de outra forma espetacular: o
Robson Corrêa de Camargo | 157

diorama, no qual a audiência sentada em uma plataforma, em movimento


circular, via pinturas em uma forma que se assemelhava ao de um cenário
teatral, este permanecia fixo em seu local e agora o público é que se movia.
Daguerre criava a ilusão de mudança da cena pelo controle da luz em
cenários semitransparentes, com cortinas que subiam e desciam, para
acentuar o efeito tridimensional. O panorama foi mais popular que o dio-
rama em razão de questões de complexidade técnica que envolviam o
segundo e exigiam o movimento da audiência em plataformas mecânicas.
Entretanto, a configuração do panorama original foi alterada para absor-
ver a ilusão tridimensional buscada pelo diorama. Os temas comuns destas
pinturas eram batalhas ou vistas de cidades, como Londres ou Rio de Ja-
neiro.
A exibição dos panoramas chegou mesmo a ser acompanhada por
palestras sobre o tema e por músicas incidentais, assim como por efeitos
sonoros, fumaça e neblina. Já havia uma busca de algo “científico” nessa
forma de apresentação. Não eram apenas os panoramas, esta outra forma
de espetáculo de diversão misturava teatro e imagem em movimento, pro-
curando trazer para a cena o desenvolvimento industrial que estava em
curso na época.
A partir de 1822, diante do grande interesse gerado pelos efeitos e
maquinarias cênicas em voga, os livros de ponto do teatro melodramático
tornaram-se verdadeiros modelos de montagem, ou mesmo, cadernos de
direção. Eram publicados não apenas com a descrição dos cenários e da
forma de elaboração dos efeitos especiais, mas também de como poderiam
ser adaptados aqueles efeitos aos teatros de menores recursos. Os efeitos
especiais, cenários e mesmo jogos de interpretação feitos pelos atores fa-
riam parte dos textos e do modelo de montagem em outros locais.
A importância do maquinário no melodrama e de seu efeito na apre-
sentação foi de tal ordem que se organizou como categoria: sensation
melodrama, melodrama das sensações. Este foi o termo cunhado pelo me-
lodramaturgo, ator e empresário anglo-irlandês Don Boucicault (1820-
1890), para designar as peças que procuravam representar pelo menos
158 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

uma cena com um acidente ou efeito em forma espetacular. Boucicault foi


o artista dessa categoria melodramática, tendo iniciado a produção dos
melodramas com Os pobres de Nova York (The Poor of New York, 1857),
no qual um apartamento pega fogo e uma das cenas acontece durante um
nevasca. Alguém se lembra de Em Busca do Ouro do Chaplin, onde uma
tempestade é a personagem de algumas cenas e pano de fundo de todo o
filme? Pode ajudar a entender. Apenas lembrando que Chaplin levou a
equipe para filmar numa verdadeira cidade, mas terminou suas filmagens
se contentando com os efeitos das cenas realizados em estúdio, que é o que
vemos pois a realidade precisa ser sintetizada.
A grandiosidade do espetáculo melodramático exigiu uma melhoria
musical compatível com a arquitetura teatral que se desenvolvia. A música
incidental, executada ao vivo, tinha três finalidades: reforçar o aspecto
emocional das desgraças naturais ou pessoais das personagens, servir
como elemento enfático do jogo de rápidas mudanças dessa forma de es-
petáculo e, por último, ser um elemento exteriorizador ou construtor do
estado introspectivo da personagem, de sua ação ou do estado emotivo de
toda uma cena.
A continuidade da trama era sempre improvável, pois os elementos-
surpresa faziam parte do jogo cênico e espetacular em suas constantes re-
viravoltas, revertendo expectativas e modificando a correlação de forças
sempre em detrimento das personagens boas, até a cena ou ato final,
quando a resolução dar-se-ia no sentido inverso, na maioria das vezes.
Neste processo, a música servia como condutora subliminar do pú-
blico ao novo estado emotivo. Como artifícios para mudar o
desenvolvimento cênico, encontram-se cartas recebidas, testamentos des-
cobertos tardiamente, explosões, acidentes, mortes inesperadas que agem
sobre o ritmo do espetáculo e o destino das personagens, levando a peça a
caminhos totalmente inusitados.
A forma incidental que atua no melodrama, não é exclusiva apenas
de sua música, mas é um procedimento contido em sua forma-espetáculo
e, como função representacional, tem a mesma função que o quiproquó ou
Robson Corrêa de Camargo | 159

a confusão na comédia. O elemento incidente surge de modo alternado,


girando a história e tudo que dela depende em sentido distinto, como as
personagens, os efeitos musicais e os fenômenos naturais em caminhos
totalmente inesperados. Além de dinamizar o espetáculo teatral do melo-
drama, torna-se um elemento metateatral, uma interferência do autor-
produtor-ator-regente no desenvolver da representação. É, este espetáculo
de diretores, uma interferência direta de seus criadores no discurso da
cena. Os tableaux que descreveremos detalhadamente mais à frente expli-
citam bem este processo, pois, ao segurar a cena congelada, serviam como
uma focalização e realce da cena em tempos onde a luz elétrica ainda não
podia mostrar sua potencialidade.
Este procedimento só foi possível porque na sua elaboração havia a
plena consciência e experimentação da construção da montagem teatral
dirigida ao diálogo com as sensações do público. O incidente não era um
procedimento capaz de causar demérito às qualidades do melodrama, os
antigos gregos haviam-no utilizado ao final da representação trágica: o
deus ex-machina. O efeito tornava-se central na cena e em sua resolução,
e no envolvimento do público. Como o teatro não é totalmente divino, um
efeito exterior é sempre uma intervenção que revela aqueles que o produ-
zem.
Durante todo o século XIX, o desenvolvimento técnico aperfeiçoa
ainda mais o gênero, procurando um maior realismo possível e maior ên-
fase no espetacular. O naturalismo, na ânsia de construir como efeito a
realidade, procurou esconder qualquer intromissão que não estivesse ple-
namente organizada dentro da história. Mas nem sempre foi assim, o
teatro é a casa dos efeitos, e, como na mágica, uma boa execução coloca no
centro não apenas o truque, mas aquele que o praticou. Brecht e Meye-
rhold, entre tantos, procuraram trazer novamente à ribalta a casa dos
efeitos teatrais. Se uma análise social fosse feita, poder-se-ia dizer que o
melodrama, como nenhum outro, foi o gênero que melhor expressou o
sentimento da população que vivia nas grandes cidades, com seus sonhos
160 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

de ascensão social e as reviravoltas a que se impunha a vida, constante-


mente.
Os trabalhadores nestes novos tempos, submetidos aos novos desíg-
nios das máquinas e ante as distintas limitações desta nova liberdade
individual conquistada, identificavam-se muito com as peripécias sofridas
pelos heróis do melodrama. A maquinaria dos efeitos teatrais e as peripé-
cias de seu drama tragavam suas personagens, amplificando o conflito de
seu público, submetido aos desígnios imprevistos das novas máquinas na
era do capital. Prenunciavam-se os tempos modernos.
Mas qual era realmente o público do melodrama? Esta forma artística
que se originou no calor dos processos sociais, que produziram a Revolu-
ção Francesa, expressa o gosto conflitivo das classes e estamentos que dela
participaram. O teatro de bulevar, conforme revela a pesquisa de Gabriele
Hyslop, atrairia, sobretudo, o novo público burguês e pequeno burguês em
ascensão e não os grupos marginais, como alguns fazem acreditar. Hyslop
realiza um estudo denominado Pixérécourt e o melodrama francês, em que
mostra ser expressiva, na audiência dos primeiros melodramas, a pre-
sença de um público letrado (Hyslop, 1987, p. 79). A nova classe média
seria importante degustadora do teatro de Pixérécourt (Marcoux, 1992, p.
33) que continuaria seus desígnios no cinema e nas series televisivas.

Um por todos, todos por um: o público acima de todas as coisas

Outro fato explica o valor negativo atribuído, muitas vezes, à forma


melodramática por grande parte da crítica: o desenvolvimento do melo-
drama é concomitante ao processo acelerado de incompatibilidade da
tragédia com os novos tempos, como forma e discurso dramático, com a
organização econômica e social que se impunha aos habitantes das cidades
partir do século XVIII. A tragédia moderna abandonaria as dimensões me-
tafísicas anteriores, enveredando cada vez mais por debates morais,
adotando uma estrutura novelesca mais patética que trágica, com a mul-
tiplicação dos efeitos teatrais. Assim, o melodrama estava florescendo
Robson Corrêa de Camargo | 161

como conduto de algumas das características que a tragédia não conseguia


evitar e não conseguiria resolver. O que florescia no melodrama era o
ponto negativo das novas tentativas trágicas.
Thomasseau aponta esse processo em 1756, com o comentário de
Grimm, na Correspondance Littéraire, ao analisar a peça Astyanax de Cha-
teaubrun. Além do preconceito contido no estilo daquele autor, percebe-se
que os parâmetros dessas tragédias em mutação, os valores dramáticos
que elas começam a exercer, assemelham-se aos elementos estruturantes
que serão pertencentes ao melodrama:

Tome dois personagens virtuosos e um mau, seja ele um tirano ou um traidor


perverso; faça que haja sempre discórdia entre os dois personagens virtuosos
e que sejam desafortunados durante os quatro atos. Haverá neste tempo uma
recompilação de máximas espantosas, tudo isto enriquecido com venenos, pu-
nhais, oráculos, etc., enquanto isso os personagens virtuosos recitam seu
catecismo de máximas morais. No quinto ato, o poder do tirano será aniqui-
lado por alguma sublevação ou traição do malvado descoberta por algum
personagem episódico e compassivo; e que o mal morra e os bons se salvem
(Thomasseau, 1989, p. 17).

Os críticos saudosos da forma trágica tradicional, em contínuo pro-


cesso de perda de seus traços mais marcantes, como os castelos sentiam a
ausência de seus condes e duques, não poderiam aceitar o melodrama, que
parecia ser composto por aquilo que eles negavam, assim o entendendo
como uma tragédia “degenerada” em nova roupagem. Ao contrário, o me-
lodrama era uma nova articulação dramática que nascia, mas não da
tragédia, recuperava-se o efeito cênico pela articulação em nova chave, de
elementos presentes na pantomima, no teatro das feiras e na desestrutu-
ração “decadente” daquela forma clássica.
Ao final de sua carreira, Pixérécourt não se preocupava mais tanto
com esta crítica, órfã da tragédia clássica, e apontava abertamente a in-
fluência de outro gênero em seu trabalho. Assim, para Pixérécourt, o
drama burguês influenciou as suas concepções sobre o melodrama. O
drama burguês, como categoria, é uma prova da crise dramática da
162 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

tragédia ou da dramática crise da tragédia, diante das novas plateias e ao


padrão de gosto que se construía na vivência dos novos tempos. Na opinião
de Thomasseau, o melodrama estaria realmente próximo das teorias do
drama burguês, mas não das obras dramáticas produzidas por Denis Di-
derot (1713-1784), Michel-Jean Sedaine (1719-1797) e Louis Sébastien
Mercier (1740-1814), os principais dramaturgos desse tipo de drama. O
que mostra a separação da reflexão crítica do período da produção teatral
que se realizava.
O drama burguês levantava o mesmo programa dramático, com cer-
tas semelhanças de estrutura, mas não teve o mesmo alcance do
melodrama, pois teve pouco sucesso com o público da época. Um dos pres-
supostos fundamentais desta escola encontra-se em chave oposta ao de
nosso objeto principal, pois o que diferenciava o melodrama do drama
burguês eram os princípios que colocava em movimento. Vejamos breve-
mente. Pois alguns críticos apontam o drama burguês como o verdadeiro
construtor do melodrama.
Em 1758, Diderot, em sua poesia dramática, preocupado com o esta-
belecimento de princípios do gênero, no meio do caminho entre comédia
e tragédia, procurava entre tantos fundamentos dramáticos estabelecer
uma quarta parede que dividisse o público e a representação. Diderot ci-
tava: pense na plateia como se ela não existisse. Ora, o princípio dos
gêneros populares e intrínseco ao melodrama era justamente o reverso.
Parodiando o autor citado, em prol do autor do primeiro melodrama, po-
deria ser afirmado: pense na plateia em primeiro, segundo e em terceiro
lugar, como se ela existisse do primeiro ao último momento, tanto na cons-
trução do espetáculo como na interpretação dos atores e atrizes. Na
comparação estrutural com o drama burguês, existiam semelhanças, mas
seus princípios eram díspares, isto explica algumas das particularidades
estruturais do melodrama.
O melodrama se construiu sobre uma conformação estética que se
dirigia ao público, os monólogos eram quase “apartes” dirigidos total-
mente à plateia. A interpretação, de traço distintivo e marcado, era
Robson Corrêa de Camargo | 163

composta fundamentalmente por grandes tons. A música incidental podia


comentar, anunciar e ou preparar os climas de cada cena. Os efeitos espe-
taculares e a mudança súbita da história procuravam sempre surpreender
os espectadores. As personagens eram submetidas à ação e não ao pensa-
mento, pois se constituíam como uma síntese de qualidades antinômicas,
assim como o final feliz.
Este gênero pensa o público em primeiro lugar, seja na elaboração de
seu discurso cênico como na interpretação dos atores. É uma arte teatral
que procura a diversão dramática do espectador em primeira e última ins-
tâncias e em formas simplificadas. Para que se entenda melhor o
melodrama, é necessário que se tire o olhar da tragédia e do drama bur-
guês, a atenção necessita ser colocada ainda na transposição para o teatro
de uma modalidade nada teatral, porém muito dramática, o romance de
folhetim, que também havia sido tomado em pouca estima pelos ambien-
tes literários e irá servir ao melodrama como fonte alimentadora de suas
histórias e peripécias (Thomasseau, 1989, p. 19). Mas não o folhetim em
seu processo de intenso desenvolvimento de mercado, quase ao final do
século XIX. Estamos falando do seu início. Embora não devamos nos es-
quecer do caráter absorvente do melodrama, que assimila todos os
gêneros.
Dois dos primeiros sucessos teatrais de Pixérécourt, Victor (1798) e o
melodrama inaugural Coelina (1800), foram adaptações dos folhetins do
mesmo nome do romancista francês François-Guillaume Ducray-Duminil,
que havia lançado estes romances apenas dois anos antes das respectivas
adaptações teatrais de Pixérécourt. Ducray-Duminil terá também outros
romances adaptados para o melodrama, com suas narrativas ricas em epi-
sódios e maquinações complicadas.
O folhetim não apenas proveu o melodrama com muitas de suas tra-
mas, como também manteve com ele vínculos muito estreitos desde seus
primeiros passos. A segunda geração de melodramaturgos realizou, inclu-
sive, trabalhos para os dois gêneros. De qualquer maneira, o teatro
utilizava o romance de folhetim para seus propósitos, da mesma forma
164 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

que o cinema empregará fartamente o melodrama teatral em seus primei-


ros 30 anos.
Em seu estudo sobre o melodrama, Thomasseau afirma que este im-
portante fenômeno de transferência e passagem dos mesmos temas de um
meio de expressão a outro revelava a gravitação das técnicas e da imagi-
nação do romance de folhetim sobre todas as formas de manifestação
teatral, desde o começo do século XVIII e durante todo o XIX (Thomasseau,
1989, p. 20).
Entretanto, se acrescentarmos a esta fórmula o espetáculo das feiras
e de bulevar dos séculos XVI e XVII, observaremos que esta dinâmica de
gravitação, transferências e passagem de estilo entre um gênero e outro já
estava em pleno desenvolvimento e não pertenceria apenas ao folhetim.
Os teóricos do teatro clássico procuravam limitar e definir as frontei-
ras puras de cada gênero, as formas artísticas teatrais “marginais” e não
canônicas, no entanto, trabalhavam uma estrutura artística genérica “gra-
vitacional” que se construía pelo somatório, simbiose e inter-relação de
gêneros envolvidos. Esta estrutura matricial não procurava determinar a
pureza de um gênero, mas definia padrões e relações que estariam pre-
sentes nas formas contemporâneas e permitiam a ampla troca de
elementos de estilo dos gêneros envolvidos, independentemente do meio
de expressão, seja o texto falado ou o romance escrito.
Estes estilemas não se resumiam apenas aos temas tratados, mas
também a todas as técnicas e procedimentos artísticos envolvidos em cada
um deles. Neste processo construía-se, entre esses “gêneros” envolvidos,
uma estrutura artística superior em contínua elaboração de novas ope-
rações, formas e procedimentos. A esta estrutura matricial estou
chamando de arquitexto, pois ela extrapola as classificações usuais e indi-
viduais de gêneros ou estilos. Para entender melhor esta questão vamos
mergulhar em aspectos da obra de Pixérécourt, o “pai”do melodrama.
Robson Corrêa de Camargo | 165

René-Charles Guilbert de Pixérécourt e sua obra

Não apenas as querelas literárias, mas questões de outra ordem au-


xiliariam a polissemia do termo melodrama. Acompanhemos o trabalho
do primeiro melodramatista, René-Charles Guilbert de Pixérécourt, em
sua época.
Pixérécourt nasceu em Nancy em 25 de janeiro de 1773, escreveu du-
rante toda sua vida artística 120 obras: sendo nove comédias, oito
pantomimas e féeries, 21 dramas líricos, 17 vaudevilles, 59 melodramas,
quatro dramas e mesmo duas tragédias elaboradas no período de 1793 a
1835.
Noventa e quatro desses textos subiram ao palco, o que é uma grande
marca, considerando-se que o autor só conseguiria ter sua primeira peça
encenada, Les Petits Auvergnats (1797; Os Pequenos Auvergnats), depois
de haver escrito 15 textos. Esta peça seria aceita pela companhia do
Théâtre de L’Ambigu-Comique, alcançando 73 representações na cidade
de Paris e mais 39 nas províncias francesas.
Pelo sucesso desta comédia em um ato, em prosa e com arietas,
torna-se um dramaturgo profissional. Para que possamos entender a re-
percussão das 112 representações de seu primeiro texto basta saber que os
espetáculos dos grandes teatros, no caso a Opéra e a Comédie, dificilmente,
alcançavam mais de três dezenas. A capacidade de conseguir atrair o pú-
blico seria o grande apelo dos espetáculos de Pixérécourt e mudaria
substancialmente os destinos do teatro de bulevar e, como se vê, de todo o
teatro moderno.
Quando Pixérécourt inicia sua carreira, não havia ainda as leis do di-
reito autoral, assim, como forma de pagamento. Os dramaturgos do
bulevar, geralmente, recebiam uma pequena quantia por representação
que o texto conseguisse, algo em torno de seis a sete francos (Brooks, 1976,
p. xi), o equivalente ao preço de uma entrada nos grandes teatros. Por-
tanto, o número de funções públicas de cada texto e seu público eram
fundamentais para a continuidade da produção dramática de determinado
166 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

autor. Nos pequenos teatros, esta remuneração era o suficiente para dar
apenas uma vida de certo conforto, mas o sucesso que Pixérécourt conse-
guiu com seu trabalho e com o contínuo desenvolvimento do melodrama
possibilitou que uma montagem se acercasse ou ultrapassasse frequente-
mente as mil representações. Este fato transformaria a vida desses
humildes artistas, aumentando também o valor de suas produções
O melodrama foi o principal motor dessa mudança no valor do tra-
balho do artista teatral de bulevar no início do século XIX; com o sucesso
crescente esta remuneração iria até mesmo aumentar. Em 1826, o Théâtre
de L’Ambigu-Comique pagava o dobro da quantia oferecida em 1800, re-
munerando a seus dramaturgos 12 francos por representação e o Théâtre
de la Porte Saint-Martin oferecerá ainda mais, 18 francos e alguns outros
benefícios (Przybos, 1987, p. 15).
O sucesso do melodrama exigia rapidamente mais textos, causando
um problema de oferta e demanda por textos melodramáticos. Os novos
dramaturgos que surgiam tentavam escrever seus textos seguindo não
apenas a fórmula conhecida, mas copiando muito das páginas escritas por
seus antecessores. Assim, este crescimento de público impulsionou tam-
bém outros gêneros teatrais, pois apenas metade das produções desses
teatros era melodrama. No ano de 1809, estiveram no palco do Ambigu
132 peças diferentes, sendo 62 melodramas, praticamente a mesma quan-
tidade da temporada de 1814, 120 peças, sendo 73 melodramas.
O processo de enriquecimento do bulevar é concomitante à introdu-
ção das leis de competição por mercado, divisão de trabalho e produção
em série na produção artística teatral, surgindo, inclusive, uma regula-
mentação trabalhista, com os dramaturgos tendo o direito autoral
regulamentado em cinco de fevereiro de 1810.
Na época, um texto de sucesso daria a um dramaturgo, por apenas
um dia de representação de sua peça, o equivalente a três vezes o ganho
de todo um dia de um trabalhador de escritório (Przybos, 1987, p. 15). Esta
mania de ir ao bulevar causa inclusive problemas sociais, sendo o melo-
drama, conforme nos relatam os cronistas da época, um dos grandes
Robson Corrêa de Camargo | 167

responsáveis pela ausência de empregados no trabalho (Przybos, 1987, p.


13).
As formas de produção artística elaboradas pelo teatro das feiras e
bulevar no século XVII intensificaram-se a partir do surgimento do melo-
drama. O sucesso de público desse gênero acarretou uma produção
dramática que potencializou as formas artísticas desenvolvidas no teatro
popular daquela época inicial.
O melodrama também estava em completo acordo com as novas for-
mas de produção capitalista que adentravam o século, não apenas na
divisão social de trabalho entre seus artistas, como na maneira pelas quais
se processavam as formas artísticas existentes. O melodrama, como gê-
nero misturado, incorporava todas as conquistas teatrais existentes,
dinamizando-as por meio dos efeitos e maquinários teatrais de três mo-
dos: primeiro a adaptação sem cerimônia de diferentes gêneros literários,
como o romance e notícias de jornal; depois a adaptação intergêneros,
apropriando e mesclando formas teatrais passadas ou presentes de carac-
terística não necessariamente semelhantes e, por fim, intragênero, com a
tradução e adaptação de peças de diferentes idiomas e culturas e mesmo a
cópia realizada abertamente ou não entre distintos autores, com base em
certo “modelo” melodramático.
Os teatros de bulevar alcançaram enorme desenvolvimento, con-
forme o público os buscava, como modo de entretenimento, encontro,
distração e diversão. Esta atividade econômica “sanguinária” empregava
uma imensa massa de trabalhadores, que ía desde o vendedor de bilhetes
até os trabalhadores que confeccionavam os cenários.
Cada teatro envolvia duas ou três centenas de famílias, movendo algo
em torno de 100 mil francos mensais (Przybos, 1987, p. 13). A divisão de
trabalho foi introduzida a todo vapor no teatro de bulevar, abarcando
desde a construção dos cenários até a redação de textos, feitos, muitas ve-
zes, em parceria. O sucesso do melodrama trouxe necessidade por novas
peças.
168 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Nesta busca de saciar o prazer da plateia e auferir algum ganho, mui-


tos se aventuram a escrever seu primeiro texto. Na procura por assuntos
sensacionais utilizados para produzir suas peças, surge uma nova meto-
dologia dramática. Simonnin chama de “corsários dramáticos”, os que
reescreviam, sem muito modificar, trechos de obras alheias já apresenta-
das, pirateando-as para seu proveito próprio (Przybos, 1987, p.18).
Como estamos vendo, o melodrama não era uma resultante apenas
da intromissão ou diálogo das regras do espetáculo popular com as formas
dramáticas mais estruturadas, mas também uma intromissão das formas
de produção capitalista na produção teatral. Praticamente, é um espetá-
culo dentro de uma linha de montagem, e a montagem de Coelina é uma
das iniciadoras desse processo de introdução das normas de produção in-
dustrial no espetáculo teatral, que a crítica mundial reconhece como um
dos primeiros grandes melodramas. Apresentado em Paris, no Ambigu
Comique, no alvorecer do novo século, em dois de setembro de 1800, Co-
elina alcançou 387 representações na cidade. Mas seu sucesso foi ainda
superior nas províncias: 1.089 apresentações. Isto era um êxito absoluto.
Pixérécourt potencializava a produção teatral de seu tempo, possibilitando
a representação de um espetáculo mais de mil vezes. Esta marca causa
inveja certamente no teatro de nossos dias.
Mesmo após Coelina, o dramaturgo não se limitou às características
do melodrama, pois buscava atrair público para o seu teatro de bulevar e
não construir princípios para determinado gênero, o que mostra seu do-
mínio na carpintaria do espetáculo. Pixérécourt redige, então, uma
comédia Marcel ou L’Héritier Supposé (1801; Marcel ou O Suposto Her-
deiro) para o Théâtre Favart, terminada em 12 de fevereiro, que não
chegou a ser encenada; depois a “ópera cômica com vaudevilles (sic)” Le
Chansonnier da la Paix (1801; Os Cantores da Paz) estreada no Théâtre
Feydeau, em 18 de fevereiro, alcançando um total de 26 representações em
Paris e 41 nas províncias; um drama lírico para o Théâtre des Arts Flami-
nius à Corinthe (1800; Flaminius em Corinthe), estreado em 27 de
fevereiro, que conseguiu apenas uma representação.
Robson Corrêa de Camargo | 169

Quando atingiu o grande sucesso com Coelina, o público encontrou


um autor com 15 peças encenadas, desde sua estreia inicial no palco do
Ambigu em 1797. Antes de Coelina, o autor vinha com um sucesso cres-
cente, mostrando seus trabalhos nos teatros Favart, Feydeau, Montansier,
Louvois, San Martin, Troubadours e Gaîté e mesmo na Ópera (1799), per-
fazendo um total de 2.451 representações de seus espetáculos nos últimos
três anos, sendo metade dessas na própria Paris.
Entre suas peças havia diferentes modalidades: três comédias: Les
Petits Auvergnats, em um ato com arietas; La Nuit Espagnole (1797; A
Noite Espanhola) em dois atos e Zozo (1799) em um ato; dois dramas líri-
cos em três e dois atos, respectivamente Victor (1797) e La Forêt de Sicile
(1798; A Floresta da Sicília); um drama em cinco atos e em prosa Chateau
de Apennins (1798; O Castelo de Apenino); três paródias, uma de Blance e
Montcassin (1798; Blanchette), apresentada na forma de vaudeville em um
ato e outras duas, uma de Hécuba (1800; Rancune) e outra de Praxitèle
(1800; La Jarretièrre). Entre seus trabalhos havia formas teatrais desapa-
recidas nos dias de hoje: um provérbio em um ato em vaudeville La Soirée
des Champs-Élisées (1799; A Festa dos Champs Élisées); e um tableau lí-
rico em verso com duração de um ato, Léonidas (1799).
O enorme sucesso de Pixérécourt no Ambigu proporcionou-lhe mai-
ores poderes na confecção do espetáculo e na produção. Mesmo após
Coelina, a produção de outros gêneros também lhe dará um bom retorno
econômico, como Le Chansonnier de la Paix (1801; O Cantador da Paz),
uma ópera cômica de um ato com vaudevilles apresentada no teatro
Feydeau, que alcançou um total de 67 representações. Mas isto era muito
pouco diante do sucesso aberto pelo melodrama.
Le Pélerin Blanc (1801; O Peregrino Branco) foi seu próximo melo-
drama, tendo alcançado 386 representações em Paris e 1.147, um total de
1.533. O Peregrino seria também uma adaptação de outro romance de Du-
cray-Duminil, estreando no Ambigu em 6 de abril de 1801, o público não
apenas compareceu em massa, como o espetáculo superou o sucesso de
Coelina em mais 57 espetáculos.
170 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

O Peregrino foi escrito em menos de duas semanas, geralmente, o


tempo que Pixérécourt declarou dedicar-se à escritura de cada texto, in-
troduzindo agora, na estrutura de personagens mais ou menos fixos que
utilizara em Coelina, duas crianças órfãs e uma cena de prisão que também
se tornou uma marca registrada do gênero, influência do romance gótico
inglês. As duas peças foram representadas com praticamente o mesmo
elenco do Ambigu, apresentando-se, tanto em Paris como nas províncias
circunvizinhas.
Mas nem sempre o melodrama conseguiu o mesmo sucesso estron-
doso. Se no início as adaptações ao palco dos romances de Ducray-Duminil
davam material para atrair e manter um grande público, o mesmo não
acontecia com a adaptação e a tradução de outro autor teatral de sucesso
no melodrama e figura tão importante como o dramaturgo francês na his-
tória do melodrama: o alemão August Friedrich Ferdinand Kotzebue
(1761-1819).
O próximo texto de Pixérécourt seria a tradução/adaptação do texto
original de Kotzebue Spanier in Peru ao francês (1796; Os Espanhóis no
Peru) que se chamaria Pizarre ou la Conquète du Pérou (1802; Pizarro ou
a Conquista do Peru), sendo apresentado no teatro da Porte Saint-Martin,
em três atos em prosa com balés de M. Aumer e música de MM. Darondeau
et Gerardin. Esta obra já havia sido estreada na Inglaterra com enorme
aceitação do público, traduzida ao inglês por Richard Brinsley Sheridan
(1751-1856) com o nome de Pizarro (1799). Mas, em Paris, embora com os
efeitos cênicos deste melodrama histórico, Pizarre de Pixérécourt termina
a temporada com uma boa marca, mas apenas com 163 espetáculos apre-
sentados, tanto em Paris como nas províncias. Cifra extraordinária, se
considerarmos a média dos gêneros da época, mas muito abaixo da média
de outros melodramas elaborados pelo autor.
Depois de Pizarre foram escritas Les Mines de Pologne (1803; As Mi-
nas da Polônia) traduzidas e depois encenadas também em polonês, inglês
e italiano, alcançando 6.601 representações na França e o mélo-drame his-
tórico Tékéli, ou le Siége de Montgatz (1804; Tékéli, ou a Tomada de
Robson Corrêa de Camargo | 171

Montgatz), apresentado em três atos e grande espetáculo, que alcança


1.334 representações, tanto em Paris como na província. Mesmo com o
sucesso avassalador do melodrama, Pixérécourt continuou escrevendo ou-
tros gêneros, tendo estreado uma comédia em dois atos Le Sac de Le
Portefeuill (1802; A Pilhagem do Cofre), um vaudeville em um ato La
Chaumière et le Trésor (1803; A Cabana e o Tesouro).
A partir de 1804, com o início do império de Napoleão (1804-1814), o
termo melodrama começará a se impor totalmente em suas obras e será o
nome utilizado na imensa maioria deles. Do total de melodramas escritos
por Pixérécourt, 44 serão representados.
Os outros estilos teatrais escritos por Pixérécourt, a partir de 1804,
serão: cinco féeries, quatro vaudevilles, sendo um deles um vaudeville fée-
rie L’Oiseau Bleu (1831; O Pássaro Azul), quatro óperas cômicas, uma
mascarada, uma ópera lírica, uma comédia e uma tragédia. Além disto,
durante esse período, apenas cinco de suas obras serão chamadas drama,
sendo um drama lírico La Rose Blanche et la Rose Rouge (1809; A Rosa
Branca e a Rosa Vermelha), um drama heróico Charles-le-Téméraire ou Le
Siége de Nancy (1814; Charles o Aventureiro ou a Autoridade de Nancy),
dois dramas históricos Christophe Colomb ou La Découverte du Nouveau
Monde (1815; Cristóvão Colombo ou a Descoberta do Novo Mundo) e Les
Chefs Écossais (1819; Os Chefes Escoceses) e um drama propriamente dito
La Lettre de Cachet (1831; A Carta Sigilosa).
A importância da representação mimada no melodrama, ou ainda, da
intensa relação com o teatro das feiras e da linguagem gestual do ator na
representação de seus papéis, pode ser notada com a montagem de A For-
taleza do Danúbio, em 1805. Esta peça foi escrita por Pixérécourt baseada
em uma adaptação de texto dramático do alemão August Kotzebue, La For-
teresse du Danube (A Fortaleza do Danúbio), que obtivera também grande
sucesso de público na Inglaterra e Alemanha. A peça conta a história de
uma heroína que se disfarça em atriz mambembe, para poder entrar na
fortaleza onde seu pai encontra-se prisioneiro.
172 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Esta versão estreia em 3 de janeiro de 1805 na Porte Saint-Martin,


sendo o papel principal de Mlle. Quériau, uma conhecida atriz do mimo,
interpretando seu primeiro papel falado, fato que se tornou um grande
chamariz de bilheteria para a peça, que iria alcançar um total de 604 re-
presentações. A crônica da época nota que Pixérécourt a ensaiara
exaustivamente, como diretor e dramaturgo.
A utilização de artistas da pantomima representando papéis centrais
do melodrama seria repetida quatro anos depois, na peça La Citerne (1809;
A Cisterna), quando Mlle. Caroline Soissons, importante dançarina e mí-
mica conhecida por sua destacada atuação na danse pantomime, ficaria
com o papel da heroína (Marcoux, 1992 p. 37).
Ducray-Duminil não foi apenas um romancista, mas também crítico
de um jornal, descrevia esse espetáculo como “uma verdadeira enciclopé-
dia do melodrama”, acrescentando que a intriga do espetáculo era tão
complicada que ele preferia não analisar. Afirmava que os cenários e os
figurinos eram de grande beleza, sendo os balés realizados com elegância
e executados de “maneira brilhante”, conseguindo os atores um conjunto
e uma inteligência digna de elogio (Pixérécourt, 1841, p. 582-583).
O ingresso no Ambigu ou no Gaîté, os locais privilegiados do melo-
drama, podia custar cerca de um franco ou até menos. Era o que se pagava
para sentar-se no paraíso, como era chamado o lugar mais alto e mais ba-
rato da plateia, reservado aos menos abastados. As filas eram longas, mas
a diversão valia a pena.
Um dos aspectos desse teatro revela um detalhe interessante na re-
cepção dos espetáculos do início do século. Nos teatros da “alta” cultura e
da “popular,” a iluminação era realizada de forma distinta. Todos os tea-
tros eram grandes e a audiência podia passar de dois mil espectadores,
havia também grandes lustres pendurados no centro do auditório, acesos
durante toda a representação. Ir ao teatro era um evento de destaque so-
cial, assim a iluminação do público igualmente importante. Na Comédie,
todos queriam ver e serem vistos, mesmo durante o espetáculo, mas no
bulevar, nos teatros Ambigu, Gaîté e Porte Saint-Martin este lustre seria
Robson Corrêa de Camargo | 173

suspenso antes do início da representação, para que se pudesse vê-la me-


lhor e menos a plateia.
A suntuosidade do palco e os efeitos do espetáculo começavam a su-
perar o que poderia ser visto na plateia, o que mostra a importância da
encenação nesses teatros, iniciando-se o processo de progressiva escuridão
a envolver a plateia para que se fruísse o espetáculo teatral. Escuridão essa
uma condição sine qua non para a “ilusão da quarta parede”, para o natu-
ralismo e a iluminação elétrica, e para a projeção do futuro espetáculo
cinematográfico. Marcoux afirma acertadamente que o procedimento dos
lustres suspensos mostra a maior importância e o grande desenvolvi-
mento do espetáculo teatral no bulevar (Marcoux, 1992, p. 30).
No bulevar as peças apresentavam filas nas portas de seu teatro, e,
por muito tempo, as representações nos teatros tradicionais não conse-
guiam o mesmo sucesso, mesmo apesar da restauração napoleônica que
estabelecia uma censura e uma divisão legislada de gêneros entre os tea-
tros.
Em 1806, um decreto impedirá o estabelecimento de novos teatros
em Paris e deixará a encargo do ministro do interior a função de determi-
nar qual gênero pertenceria a que teatro. A questão da generalização
dramática não pertenceu meramente a uma questão acadêmica, mas de
Estado, em que se legislavam os estilos de cada gênero. Que diferença da
anarquia dos tempos imediatos da Revolução Francesa!
De acordo com estas novas medidas, os quatro grandes teatros naci-
onais, a Comédie, o Odéon, a Ópera e a Ópera-Comique, receberiam um
subsídio e teriam seus gêneros definidos, devendo mostrar peças neoclás-
sicas, comédias selecionadas, óperas e balés, conforme o repertório de cada
um e cujo assunto derivaria da mitologia e da história.
Os heróis seriam deuses e reis e as peças utilizariam o verso, po-
dendo-se usar árias e coros na representação. Os pequenos teatros do
bulevar estavam condenados apenas a viver da bilheteria, sem subsídios,
e seriam limitados basicamente às formas que haviam anteriormente de-
senvolvido, sendo proibidos de encenar as peças dos grandes teatros. A
174 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

ordem napoleônica traria novamente ao bulevar limitações dos tempos de


Luiz XIV, limitações estas que durariam até 1831.
Os Théâtre de la Gaité e o Ambigu-Comique, a partir de 1806, foram
designados, por decreto, quase que exclusivamente ao melodrama, à pan-
tomima e a outras formas similares de espetáculo. Como em todos os
teatros “secundários”, repetindo algumas das limitações dos tempos da
monarquia, somente fragmentos de canções ou de canções populares po-
deriam ser ouvidos.
Os Théâtre de Vaudeville e Théâtre de la Variétés seriam restritos a
peças curtas com canções de melodias conhecidas ou paródias e comédias
em estilo de vaudeville.
Em 29 de julho de 1807, foram acrescentadas novas determinações e
os teatros secundários foram ainda mais cerceados, agora limitados ao nú-
mero de quatro, e os outros forçados a fechar (Marcoux, 1992, p. 32).
Entretanto, a produção artística sempre encontra uma forma de re-
cusar seus grilhões, apesar das medidas de subsídio napoleônico, como um
prêmio de dez mil e cinco mil francos anuais, respectivamente, para a me-
lhor tragédia e comédia apresentadas no Comédie, os grandes teatros
continuariam a sofrer a ausência do grande público, e o teatro de bulevar
expandiria seu papel explícito ou implícito de renovação dramática,
atraindo inclusive o novo público burguês que apoiava a grande ordem
napoleônica.
A nova designação dos teatros como locais exclusivos de determina-
dos gêneros (relação que não importava tanto aos homens do teatro de
bulevar), determinaria que se chamasse de melodrama a maioria das pe-
ças apresentadas nos Théâtre de la Gaité e no Ambigu-Comique, para dar
cumprimento às ordens imperiais.
O processo seria repetido também com outros gêneros em seus res-
pectivos teatros, o que vai auxiliar a regulamentação estatal desses gêneros
e sua transformação em fórmula. Ao se determinar o melodrama para es-
tes tipos de teatro, era estabelecido um modelo de como deveria ser. Se já
eram fatos corriqueiros a cópia, a adaptação e a influência de outro gênero
Robson Corrêa de Camargo | 175

teatral no melodrama, agora, com as novas limitações impostas no impé-


rio napoleônico, melodrama será o nome dado não apenas às peças que
seguiam a característica do gênero, mas também às que procuravam ser
apresentadas naqueles teatros, seguindo mais ou menos as regras em
questão, dependendo dos artistas e dos reguladores de turno.
Enquanto Napoleão normatizava o teatro, os escritores do bulevar
buscavam produzir o produto dramático que saciasse o apetite de seu pú-
blico, não importando em nomeá-lo como melodrama. Eis aqui outro dos
motivos para esta miscelânea no entendimento do que realmente é o me-
lodrama. Até Napoleão imperou esta confusão!

O melodramaturgo e o drama das unidades

O dramaturgo Pixérécourt, como diretor, era um extremo disciplina-


dor, exigia perfeição e inquestionável obediência. Um de seus atores,
Claude-Louis de Rochefort descrevia algumas das atitudes do encenador:

quando Pixérécourt chegava para os ensaios matinais, ele era implacável e im-
piedoso. Os atores tremiam como escravos sob o chicote do mestre. Ele não
esquecia a menor transgressão, o último atraso em representar uma cena […]
e quando um ator se distinguia num papel, ele não dirigia nenhum cumpri-
mento, ao contrário o reprovaria por não ter sido bom ou completo o suficiente
(Marcoux, 1992, p. 35).

Um dos críticos da época, Charles Nodier reconhecia o trabalho do


dramaturgo-diretor, pois descrevia que Pixérécourt, além de redigir suas
peças, desenhava os settings e executava a mise-en-scène, achando os me-
lhores atores para cada papel e resolvendo como mover o público dentro
das situações. Segundo Nodier, para monsieur de Pixérécourt, o ensaio era
para educação dos atores, ao passo que o desempenho era para educação
da plateia (Marcoux, 1992, p. 36).
Oscar Brockett afirma: “Se Pixérécourt é reconhecido como um dos
fundadores do melodrama, ele também merece o reconhecimento como
176 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

um dos precursores da direção teatral e do conceito de unidade da produ-


ção” (Marcoux, 1992, p. 36).
Embora o melodrama seja um gênero em constante mutação, por
proposição ou conveniência, é importante que observemos brevemente a
posição de Pixérécourt sobre as unidades de tempo, ação e lugar que pul-
savam nos corações dos néoclássicos.
Nove anos após o sucesso de Coelina, Pixérécourt começa a modificar
de maneira mais contundente as regras de suas peças melodramáticas. Em
1809, La Citerne (A Cisterna) foi representada como um melodrama e
acrescentou-se um ato à estrutura usual de três atos. A Cisterna foi apre-
sentada em prosa, “em grande espetáculo em quatro atos”, embora
Pixérécourt vá admitir sua violação das regras dramáticas, apenas cinco
anos depois em 1814: “É a primeira vez que me permito esta violação das
regras dramáticas e peço perdão aos meus juízes”.
Em 1821, encena Valentine ou la séduction (Valentine ou a sedução),
melodrama em três atos e, em prosa, no Gaîté em de dezembro. Essa mon-
tagem afastou-se ainda mais do considerado modelo inicial estabelecido
até aquele momento no melodrama, aproximando-se bem mais da fór-
mula estabelecida pela tragédia burguesa.
Este foi dos motivos para o pesquisador Frank Rahill, que escreveu
um interessante trabalho sobre o melodrama (1967), avaliar Valentine
como “a melhor peça de Pixérécourt”. Paradoxalmente, Rahill considera o
melhor melodrama aquele que quase deixa de ser um melodrama. Para o
autor citado, Valentine representa o acordar no front moral do melo-
drama, seu mérito como peça ocorreu, segundo ele, pela “violação do
draconiano código de conduta em que o autor havia se metido anterior-
mente” e, portanto, imposto a todo o gênero. Em lugar de se preocupar
com a violação da regra encontrada, Rahill deveria ter olhado a estrutura
instável e em constante movimento do melodrama desde seu nascedouro
e não procurar padrões que estariam sendo determinados por um gênero
nada fixo.
Robson Corrêa de Camargo | 177

Ao ler Valentine ou la séduction, o citado autor destaca o papel da


heroína que foge do modelo clássico do melodrama. Para ele Valentine não
poderia ser o modelo do sexo feminino no gênero, pois não era mais a
“inocente” mulher perseguida. Valentine persiste em seu amor, mesmo
sendo condenada pela autoridade paterna, e o dramaturgo sentiria apenas
um carinho e piedade pela personagem, pois não a defende “acima de to-
das as coisas”. Uma nova noção de feminino se construía e o critico não
percebeu. Para o citado pesquisador, o texto estaria apenas a um degrau
da anarquia moral do drama romântico (Rahill, 1967, p.65-66), embora
seja de seu gosto pessoal, seu comentário informa a importância do melo-
drama e sua força centrípeta diante dos outros gêneros teatrais em voga,
ao afirmar que o drama romântico apenas conseguiu sobreviver no palco
ao se tornar um “franco melodrama” (Rahill, 1967, p. 75).
A respeito da análise de Rahill, ao supor que o drama romântico ape-
nas teria sobrevivido pela sua incorporação ao melodrama; pode-se
concluir que sua qualidade seria sim sua limitação: o drama romântico
havia se tornado, ao fim e ao cabo, quase um melodrama.
Mas, na verdade, sua análise mostra que parte da crítica afeiçoou-se
mais aos rígidos modelos, supostamente estabelecidos pelo melodrama
que ao real e instável melodrama exibido nos palcos. A crítica imersa nos
padrões neoclássicos, mesmo quando tentava fugir destes critérios, ten-
tava normatizar gêneros e não vê-los em viva trimensionalidade cênica.
Assim, nem a inocente mulher perseguida pode ser tomada como padrão
melodramático. Estaria o melodrama fugindo de seu dacroniano código de
conduta ou, realmente, esta seria mais uma de suas características como
gênero contraditório e movediço?
Esta resposta pode ser encontrada nos textos escritos por Pixérécourt
que sucederam Valentine. Já no final de sua carreira, em 1834, o autor es-
treou Latude ou trente–cinq ans de captivité (1834; Latude ou trinta e cinco
anos de cativeiro), um melodrama em cinco atos, que veio ao palco em 15
de novembro no Gaîté, seu antepenúltimo melodrama. Nesta peça a ação
acontece em lugares diferentes como o palácio de Versailles, a Bastille e
178 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Hollanda, percorrendo, além disso, um tempo de 35 anos, rompendo to-


talmente o ideal neoclássico das unidades de tempo e lugar que nunca foi
completamente respeitado.
Em uma de suas últimas manifestações públicas em vida, Pixérécourt
dava sua opinião sobre as peças românticas. Em 1844, ainda se mantinha
fiel aos mesmos princípios e ideias do gênero que havia criado. Além de
manifestar sua profunda opinião sobre o grande número de peças român-
ticas que estavam sendo produzidas naqueles tempos no bulevar, tentando
desmistificar a suposta relação que estas teriam com o melodrama, seu
parecer não foi muito favorável:

Pelos últimos dez anos, um largo número de peças românticas está sendo en-
cenada, trabalhos imorais, perigosos, fracos, sem qualidade, não tendo nem
interesse, nem verdade. No alto deste movimento, eu escrevi Latude, obede-
cendo aos mesmos princípios e ideias que me guiaram por mais de trinta anos.
Esta peça foi um sucesso para os mais velhos... Por que, então, os autores de
hoje não fazem o mesmo que eu fiz?... (as novas peças) não têm minha sensi-
bilidade, nem meus sentimentos e, certamente, não têm minha consciência.
Sem dúvida, não fui eu que estabeleci o gênero romântico! (Pixérécourt,
Choissi IV, p. 498)

Para Paul Marcoux, as diferenças entre o melodrama francês do final


dos anos XX do século XIX e a produção dos dramaturgos românticos do
começo dos anos 30 do século XIX seriam mais de cunho filosófico, pois
do ponto de vista teatral as linhas demarcatórias tendiam a desaparecer.
Pixérécourt dirigia um movimento para o fatalismo e à melancolia, ao
mesmo tempo que relaxava os códigos éticos, morais e estruturais em que
metia suas personagens. Mas se, por um lado, as peças românticas tinham
uma atitude mais política e liberal em relação às suas personagens, de ou-
tro, estas peças também dependiam dos mesmos efeitos teatrais e das
respostas emocionais dos espectadores para sua sobrevivência, portanto,
o que unificaria o drama romântico e o melodrama seria mais a arte do
espetáculo usada por ambos (Marcoux, 1992, p. 50).
Robson Corrêa de Camargo | 179

Pixérécourt, conhecido por sua grande biblioteca pessoal, não apenas


modifica as regras morais em que metia suas personagens. No início de
sua carreira, o diretor dizendo-se formalmente respeitador das estabeleci-
das normas neoclássicas, as reiteradas unidades de tempo, ação e lugar,
havia determinado, muito humildemente, que o melodrama deveria ter
apenas três atos, pois os cinco atos poderiam ser mantidos na tragédia,
este sim um gênero “superior”. Entretanto, talvez motivado pelo sucesso
contínuo do melodrama que se estabelecia definitivamente como gênero
ou pela simples necessidade de reinventar-se em contínuo, ele, depois de
1818, cada vez menos adere às leis das unidades. Se os padrões de defesa
moral fossem cada vez mais inflexíveis, no final de suas peças, a tendência
de recompensar os bons e de punir os maus seria conservada como cons-
tante.
Entretanto, mesmo o suposto final feliz, regra que pertenceria a um
dos cânones do melodrama, deve ser colocado em questão. Os seguintes
melodramas de Pixérécourt não tiveram a boa sorte de um final feliz como:
a citada Valentine ou La Séduction, melodrama em três atos com música
de M. Alexandre e balés de M. Lefèbvre (1821); Le Chateau de Loch-Leven
ou L’Évasion de Marie Stuart (1822; A Mansão de Loch-Leven ou A Fuga
de Marie Stuart), melodrama histórico em três atos; La Tête de Mort ou
Les Ruines de Pompeïa (1827; Perigo Mortal ou as Ruínas de Pompeia),
melodrama em três atos com música de M. A. Piccini, decoração de M.
Gué; Alice ou les Fossoyeurs Écossais (1829; Alice ou os Coveiros Escoce-
ses), melodrama em três atos, em sociedade com MM. Desnoyer e Edan,
música de M. Alexandre Piccini.
Apoiado na problemática aqui contestada do final “feliz” do melo-
drama, Brockett levanta uma hipótese muito mais interessante sobre a
resolução desse texto melodramático, pois para ele o melodrama seria um
gênero teatral com dois finais, um no qual as personagens de bom caráter
são salvas e premiadas, e outro em que as de mau caráter são descobertas
e punidas (Brockett, 1969, p. 48). Como vemos, o engessamento do melo-
drama em uma fórmula ou princípio geral tem evitado discussões
180 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

candentes sobre o produto do gênero e as opções de execução do espetá-


culo teatral no século XIX, como estas propostas por Brockett.
Na sua estrutura, estas duas finalizações do espetáculo melodramá-
tico desvelam uma existência de elementos distintos presentes de forma
simultânea em sua composição, oriundas tanto da tragédia como da co-
média. Se a esta fórmula acrescentarmos os elementos da construção
dramática e espetacular que havia evoluído do teatro de feira e bulevar,
como demonstramos até aqui, se conclui que o melodrama não é apenas
um texto de determinado gênero, pois contêm textos que são camadas vi-
síveis justapostas de diferentes “gêneros”, camadas que podem existir
coladas e ou em contraste e ou de maneira relacional. Por praticar, de
forma consciente o espetáculo e sua construção, o melodrama estrutura-
se não apenas a partir de diferentes formas teatrais pré-existentes e com
elas dialoga, mas com elas se exibe em uma relação palimpséstica.
O melodrama se constitui como um texto espetacular em palimp-
sesto. O termo palimpsesto não é novo na análise literária, mas ao utilizá-
lo aqui na compreensão do espetáculo teatral melodramático o estou utili-
zando de forma especial. Vejamos seu sentido, assim como o de texto
espetacular.
O sentido literal da palavra grega palimpsestos é raspado novamente,
palim (grego, de novo) e psestos (grego, raspar). Este se origina da forma
de escrever dos antigos manuscritos, antes da era do papel industrializado.
Estes manuscritos eram feitos da erva papiro, mas, sobretudo, em perga-
minhos de pele de animal, em um tempo que o papel não havia ou era
escasso. Este pergaminho era reutilizado, várias vezes, apagado ou lavado
com leite e farelo de aveia, branqueados com gesso e cal, gerando novo
meio para um texto escrito sobreposto, aparente sobre texto anterior que
era coberto. Estes textos escritos tinham características muitas vezes dife-
rentes e não eram necessariamente relacionados, mas se encontravam no
mesmo meio, um aparente e o outro latente. Um evidente e o(s) outro(s)
apagado(s), borrado(s), mas esses algumas vezes se tornavam aparentes
com técnicas de revelação ou pelo tempo.
Robson Corrêa de Camargo | 181

Assim o texto (ou textos) submerso(s) emergia(m), revelando-se, en-


tão, uma publicação com dois ou mais textos igualmente integrais e
importantes à mostra, totalidades que existiam sobre o mesmo material,
não meras referências a serem consideradas sobre o texto mais recente.
Técnicas modernas recuperam os vários textos submersos nesse material,
enquanto outras, mais antigas, que podiam utilizar raspagem com pedra
pome, o chegaram a danificar totalmente.
Estes escritos superpostos revelados, de modo acumulado um sobre
o outro, apresentam o palimpsesto envelhecido como uma forma polies-
critural. Num mesmo espaço dois textos aparentes.
Palimpsesto é um conceito que tem sido utilizado principalmente na
análise literária para evidenciar assim possíveis textos contidos, citados,
parodiados, plagiados, imitados em um texto principal de análise, revelado
pelo olhar analítico. O texto descoberto pelo crítico, no qual sua análise
seria a técnica de revelação. E isto é o que se tem feito até aqui em minha
análise, porém, o que interessa destacar no melodrama teatral é também
a relação dinâmica entre textos existentes simultâneos e aparentes. Não o
texto de origem revelando um texto anterior, mas aquele que é encon-
trado, nem sempre escondido e está visualmente revelado, à mostra,
amalgamado.
O texto palimpséstico do espetáculo teatral, texto presentado, ence-
nado, é um local de encontro dos textos coexistentes, onde o tablado, a
cena, é o meio que os carrega e os exibe em seus vários e diferentes textos.
E, se olharmos o melodrama teatral na perspectiva do dialogismo bakhti-
niano, o melodrama como palimpsesto tem de ser entendido como um
encontro evidente de vários textos, escritos e espetaculares, durante o qual
o texto escrito/falado e o texto espetáculo dialogam, afirmando-se, tradu-
zindo-se, contradizendo-se, parodiando-se e, muitas vezes, negando-se.
Neste palimpsesto da cena teatral revelada nenhum dos textos inscri-
tos e escritos é o principal, mas compõem-se de maneira polidimensional,
numa operação onde o que interessa é a relação desses textos no mesmo
espaço-texto e espaço-tempo ou, em nosso caso, espaço-espetáculo.
182 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Tempo memória construída. Assim se corporifica o espetáculo nas suas


formas espetaculares, tecido, teia e cruzamento emaranhado de estilos,
modos, narrativas, discursos e gêneros, não apenas os citados, mas ainda
os sujeitos ocultos que convivem simultâneamente com a mesma força. O
texto espetacular, na perspectiva palimpséstica, se afirma como um en-
contro de tensões, seu diálogo não ocorre apenas entre as personagens,
mas também entre textos
Texto, conformem o definem Ducrot e Todorov (1988, p. 268), é um
conceito muito utilizado na análise do que é escrito e se define por sua
autonomia e fechamento. Texto é um sistema que se relaciona com o sis-
tema da língua falada e escrita, mas não é palavra nem frase, se definindo
pelo seu aspecto verbal, sintático e semântico.
A escrita teatral, porém, se constrói em seu espaço utilizando vários
textos de sua “linguagem”, textos coexistentes. No teatro existem várias
unidades que se compõem além do aspecto verbal e escrito, o texto do ce-
nário, dos gestos, dos figurinos, das músicas, da iluminação, da sombra,
da luz, textos que conformam outras unidades que são, ao mesmo tempo,
semiautônomas e semifechadas no complexo espetacular, pois existem
apenas em sua múltipla relação espetacular. Este texto cênico ou texto es-
petacular se configura como conceito e prática empírica do teatro, pois
todas estas unidades são escritas e convivem simultaneamente, sinais re-
presentados e vivenciados de palavras, ideias, relações, sentimentos, etc.
Isto configura o texto espetáculo, o texto espetacular.
Este texto espetacular se realiza em cena por confrontação, ten-
são e complementação entre o texto escrito/dito e a(s) cena(s)
textualizada(s), formando a textura do espetáculo em sua teia tecida.
A lógica do texto espetacular é uma reunião sem síntese, onde coexis-
tem o discurso que pode ser monológico (sintético, histórico,
descritivo) e o dialógico numa poliescrita dos seus textos em convi-
vência.
O melodrama não é uma “unidade” genérica coerente, porém um
movimento conflitivo e relacionado de textos-espetaculares que se
Robson Corrêa de Camargo | 183

superpõem e sobrepõem-se, velada ou aparentemente. Esta é a dinâmica


do espetáculo do melodrama, composto por um acúmulo de elaborações
superpostas de diferentes formas artísticas e de si mesmo, arquétipos e
paradigmas. Assim, o teatro do melodrama e o melodrama no teatro de-
vem ser compreendidos, textos sobretextos, palimpsestos acumulados,
entrelaçados em suas formas aparentes e veladas.
Se no palimpsesto o tempo revelava os textos, o melodrama os expõe
no tempo de sua cena e os relaciona consciente e publicamente. Se no pa-
limpsesto papíreo esta relação era revelada ao acaso, no palimpsesto
melodramático da cena encenada ela é provocada, aberta, está em seu pro-
cesso aparente de composição. Tem a realimentação como procedimento,
ela é consciente e exibe suas conquistas como troféus em suas paredes e
espaços.
A noção de palimpsesto melodramático, como vemos, não é usada
aqui apenas no sentido que lhe dá Genette, como paratextualidade ou
transtextualidade, segundo sua definição de 1981, ou seja, na vinculação
entre os textos grafados sobre o meio impresso: “Que coloca o texto numa
relação, se óbvia ou encoberta, com outros textos (Genette, 1997, p. 1).
Aqui o que importa mais é a relação concomitante e tensional dos tex-
tos espetaculares evidenciados no espaço teatral.
O palimpsesto do texto espetacular melodramático teatral deve ser
entendido como uma forma poliescritural, estabelecida como processo di-
nâmico que configura o meio que o suporta, não apenas a pele ou o papiro,
mas as escrituras textuais tecidas no espaço tridimensional que as exibe,
texto(s) e não texto(s), sons e pausas. Escritos e apagados, sobrepostos e
acumulados, textos cênicos que se mostram simultânea e espacialmente
em uma relação que pode ser óbvia e ou encoberta. Não apenas um texto
que se relaciona com outros semelhantes ou em oposição, mas o(s)
texto(s) que se ligam dinamicamente naquele espaço, formando um novo
produto, uma estrutura dinâmica multidimensional em que não se deve
identificar apenas o texto ou os textos, mas, sim, observar a relação que
184 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

desvela uma nova forma e relação tensional resultante do inscrito e do


insculpido no espaço criativo.
Desse modo, as formas sobrepostas e justapostas exibem não apenas
a presença de um texto dentro, atrás, acima, abaixo, ao lado ou na frente
do outro, porém a relação conflitiva e tensional que ocorre entre a(s)
forma(s) espetacular(es): figurinos, cenários, músicas, focos de luz, corpo-
reidades, palavras, silêncios e subtextos, olhares, movimentos no espaço,
no tempo ou, dito de outra forma, estes elementos textos, imagens e sono-
ridades, navegando no espaço múltiplo teatral formam o texto espetáculo
em sua complexidade: um texto espetacular.
Essa forma palimpséstica espetacular do melodrama teatral no uni-
verso da arte, que descrevo até o momento, pontificando suas influências
evidentes e esquecidas, se adensa ao percebê-lo como uma forma de texto
espetacular.
A estrutura do espetáculo teatral e não apenas do melodramático é
composta de múltiplos textos internos (cenário, interpretação, luz etc.). As
várias escrituras cênicas internas contidas no espetáculo do palco com-
põem a sua estrutura espetacular e emergem como síntese imanente, estas
escrituras se encontram numa relação de semelhança e ou contradição.
Elas existem numa relação instável. Não há presença de um texto dentro
de outro, mas uma relação de afirmação e negação, de forma e fundo, de
diálogo entre os textos que ocorrem e se relacionam no espaço teatral, o
texto-luz, o texto-som, o texto-gesto, o texto-palavra etc. Aliás, só interes-
sam porque se relacionam num teia densa, não na existência particular.
Não é a relação da história coerente entendida pelo leitor ou proposta
pelo produtor, mas, o embate, a atração, a repulsa e o diálogo que as for-
mas espetaculares melodramáticas estabelecem dentro do espaço teatral,
relação estabelecida de distintas formas entre os que a produzem e recor-
tada de diferentes formas e sentidos pelos que a fruem.
Visto nesta perspectiva, o melodrama é simbiose genérica, pois
trabalha em uma relação dinâmica com os gêneros teatrais incorpo-
rados e explicitados em seu discurso, na busca de estabelecer uma
Robson Corrêa de Camargo | 185

vida comum entre eles, visto que não são, portanto, nem uma dege-
neração, nem uma corrupção de gêneros envolvidos, mas, uma forma
em palimpsesto, existente numa relação espacial dinâmica, como to-
talidade e, ao mesmo tempo, na relação conflitiva e dinâmica entre as
partes.
Como o melodrama é uma estrutura em tensão, seja entres os vários
textos históricos que o compõem, formam e deformam, seja com os textos
contemporâneos com quem dialoga e, finalmente, em sua forma espeta-
cular, ele, melodrama, exibe estilemas, unidades mínimas de estilo, e
estruturas de outros textos que dinamizaram e dinamizam seu espetáculo,
em maior ou menor grau. Sendo assim sempre serão encontradas “in-
fluências” suas no espetáculo teatral contemporâneo, influências
absorvidas de outras generalidades no eixo histórico do espetáculo dramá-
tico ou presentes pela múltipla simbiose do melodrama. O melodrama
encontra-se em processo constante de retroalimentação.
Neste sentido, a análise ou reconhecimento de alguns destes estile-
mas utilizados não revela o melodrama como processo, mas rudimentos,
esboços de suas partes. E, também neste caso, o todo é muito maior que a
exibição de alguma de suas partes e a parte nunca é o todo. Sendo assim,
o melodrama não é apenas fundante no reconhecimento consciente do es-
petáculo como acontecimento teatral, mas, nesta tensão estimulada entre
estilos e gêneros, assenta-se o alicerce de uma percepção múltipla para o
espetáculo teatral.
O melodrama espetaculocêntrico coloca a teatralidade em pri-
meiro plano e o texto em seu devido lugar na construção do espetáculo
teatral.
O acompanhamento mais detalhado da peça Coelina, a ser feito a se-
guir, irá revelar alguns desses e permitir conhecer novos aspectos
intrínsecos ao melodrama.
186 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Coelina ou l’Enfant du mystère: o “gênero” inaugurado

Ao examinar algumas particularidades da obra Coelina, considerada


instauradora do gênero melodrama, pretendo demonstrar como funcio-
nam concretamente certos elementos do melodrama baseados na obra
inaugural.
Como estou dizendo, muitas de suas análises têm carregado o pre-
conceito de sua época ou das posteriores, limitando o entendimento e o
alcance do gênero; outras repetem uma “fórmula” melodramática desco-
berta como se este fosse um gênero engessado no tempo. Entretanto, nem
o melodrama nem seu público permaneceram iguais. Os novos textos, as-
sim como a tradução e a adaptação sucessiva de seus sucessos foram
construindo o que se poderia chamar de a estrutura da estética melodra-
mática.
Dentro do melodrama certamente existem muitos, muitos melodra-
mas, e estes não são só um modelo, porque durante toda sua existência
houve várias tendências internas que deram constante reformulação ou
modificação ao gênero.
É falsa a ideia de que o melodrama é uma prática única constante ou
simples fórmula que se impõe e se repete. Não apenas interage com as
outras formas dramáticas de seu tempo, modifica e é modificada, mas
também processa um diálogo constante entre as formas que se originam
de seu próprio desenvolvimento, estabelecidas pelos seus mais diversos
melodramaturgos.
O melodrama é um espetáculo teatral formado como texto de outros
textos, que incorpora e modifica algumas das contribuições de outros tex-
tos teatrais presentes no palco europeu. Foi construído em constante
diálogo com seu público, com a colaboração dos principais dramaturgos
de sucesso nos teatros de Paris, Londres, Berlim e Nova York. Para melhor
entendimento desse processo, vamos acompanhar a primeira montagem
de Coelina, em Paris.
Robson Corrêa de Camargo | 187

A crítica recebeu muito bem a estreia de Coelina no Théâtre de L’Am-


bigu-Comique em dois de setembro de 1800. O crítico Lepan afirmava no
Courrier des Spectacles:

Os boulevards têm oferecido peças sobre diabos, fantasmas, lutas e espetáculo


e, nós, corremos aos boulevards e aplaudimos os diabos; mas, apesar do su-
cesso destas produções monstruosas e gigantescas nenhuma pode ser
comparada ao que foi apresentado ontem no Ambigu-Comique sob o título de
Coelina […] nenhuma delas teve um sucesso tão merecido. Temos a satisfação
de dizer que esta obra é um trabalho que dá grande honra a pena do seu autor,
o cidadão Guilbert de Pixérécourt. (Pixérécourt, 1841, p. 8) .

O crítico Lepan destacava os atores, o trabalho de interpretação e a


construção das personagens:

O interesse sustentado por toda a representação, as situações fortes e encade-


adas que se sucedem, asseguram a esta peça um sucesso de grande duração
[…] que se faça justiça aos atores que participam da montagem, entre eles,
Mesdames Corse (Tiennette) e Lévêsque (Coelina), e os cidadãos Tautin (Tru-
guelin) e Boicheresse; este último mostrando grande inteligência no papel do
mudo Francisque. (Pixérécourt, 1841, p. 8).

O melodrama inaugura o novo século com a consagração do público


e o parecer quase unânime da crítica ao espetáculo Coelina, que recebe o
título de primeiro melodrama “verdadeiro”. Ducray-Duminil, crítico e es-
critor do folhetim que deu origem à peça, descreve detalhadamente o
espetáculo. A respeito da adaptação de seu romance ao palco, podemos
perceber os elementos desse processo de tradução e diálogo com outras
formas de espetáculos do bulevar e a importância do processo de encena-
ção:

o primeiro ato é um trabalho de mestre; o segundo oferece divertimento, um


balé charmoso, detalhes tão fortes ligados a uma catástrofe muito interes-
sante; quanto ao terceiro, que pertence exclusivamente ao dramaturgo, é
talvez mais impressionante que os outros dois anteriores, pois encontra a ne-
cessidade de manter um vivo interesse, enquanto resolve a complexa intriga
tão fortemente tecida. Pixérécourt oferece situações bem dramáticas e
188 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

vigorosamente concebidas. A chegada de Michaud, depois do monólogo de


Truguelin; a cena dos arqueiros onde Michaud vê a cicatriz; a entrada de Fran-
cisque dentro do moinho; a saída e a fuga de Truguelin são cenas de grande
interesse e que comandam a atenção mais viva. É um ato muito bonito, o estilo
é apropriado, quente, tenso, amarrado e acima de tudo natural; oferecendo
pensamentos fortes expressos vivamente. Finalmente, notamos com prazer
que as unidades de tempo e ação foram escrupulosamente observadas nesta
peça. (Pixérécourt, 1841, p. 6).

O Journal d’Indications recebeu muito bem Coelina. A crítica de F.


Babié chama-o pelo longo nome de “drama (pantomima dialogada em três
atos)”, descrevendo que a peça no primeiro ato marcha bem, com cenas
cheias de interesse, um diálogo natural e bem nutrido, no qual as perso-
nagens são bem apresentadas. Para o crítico, o único senão seria um
melhor desenvolvimento na cena dos tiros de pistola na 16ª cena do pri-
meiro ato.
No segundo ato Babié cita que segue o interesse e o espectador atento
agarra-se aos votos pelo triunfo da inocência e punição do crime: O ter-
ceiro ato marcha maravilhosamente, com acontecimentos bem
encadeados, […] com situações bem dramáticas e detalhes bastante inte-
ressantes.
Babie, ao analisar a interpretação, ressalta a atuação de Mme Corse
(Tiennette), por seu trabalho cheio de entusiasmo, possuindo “uma inteli-
gência profunda em sua arte”. O crítico descreve que Mademoiselle Levès
foi bastante aplaudida no papel de Coelina por desenvolver uma figura de-
liciosa e uma personagem encantadora. Ao ator, encarregado do papel do
mudo Francisque (Boicheresse), considera que este transmitiu uma ver-
dade marcante. Por sua vez, o cidadão Tautin conseguia fazer com que o
vilão Truguellin transmitisse um constante temor e este seria “o mais belo
elogio que se podia fazer à sua interpretação”.
Naquele tempo a crítica tinha o bom hábito de assistir a mais de uma
vez ao espetáculo e, assim, Babié descreve aspectos da quinta apresentação
do espetáculo: “Havia uma fila imensa de curiosos e a sala estava repleta
de gente procurando por ingressos”. Nesse espetáculo, foi interessante a
Robson Corrêa de Camargo | 189

observação de Babié de que existiram reparos ao espetáculo da estreia


mas, dizendo que o autor havia sido dócil ao conselho de amigos e da crí-
tica “imparcial”, provavelmente, ele mesmo, fazendo mudanças
importantes nas últimas cenas do primeiro ato e no final da peça nas apre-
sentações posteriores (Pixérécourt, 1841, p. 10) .
As personagens que desenvolvem a trama de Coelina são as seguin-
tes: o idoso e enfermo Doufour, doente de gota e pai de Stéphany,
responsável pela zelosa administração da fortuna de sua sobrinha órfã,
Coelina; o vilão Truguelin, outro tio de Coelina, apenas interessado em
arrumar um casamento entre seu filho e a rica sobrinha, com o claro in-
tento de aumentar sua fortuna pessoal; Francisque, um homem
empobrecido, mudo e maltratado que havia sido encontrado por Coelina e
conseguiu asilo temporário na casa de Doufour. Francisque será revelado,
no decorrer da peça, como o verdadeiro pai de Coelina; Coelina representa
a delicada e pura órfã que se pretende casar com Stéphany, este também
apaixonado por Coelina; Andrevon, um médico; Tiennette, a antiga gover-
nanta da casa de Doufour, confidente de Coelina e importante na trama,
como portadora das notícias ou na descrição da índole das personagens;
Faribole, uma empregada de Doufour; Michaud, um alegre e inocente mo-
leiro, sempre a cantar; Germain, servente e confidente do interesseiro
Truguellin; um oficial, policiais, camponeses e camponesas.
A peça desenvolve-se em três atos, a ação toma lugar no estado de
Haute-Savoie, na parte norte dos Alpes franceses, em 1770. O primeiro e o
segundo atos passam-se em Sallanches, uma pequena vila do maciço de
Mont-Blanc, na casa de Monsieur Dufour, ao pé do rochedo de Arpennaz.
Este rochedo será importante na cena final do vilão.
É interessante perceber que Pixérécourt interpreta uma das regras
clássicas da dramaturgia neoclássica, que ele dizia seguir fielmente, de ma-
neira pouco ortodoxa. Não existe uma unidade rígida de lugar, pois o
primeiro ato passa-se dentro da casa e o segundo, no jardim exterior à
casa, onde se prepara a festa de casamento de Coelina e Stéphany, que não
190 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

ocorrerá. O terceiro ato será realizado em um lugar selvagem, conhecido


por Nant de Arpennaz, bem mais distante da mansão de Dufour e Coelina.
No primeiro ato, a anotação inicial descreve que o palco deve repre-
sentar uma sala dentro da casa, com uma porta ao fundo, duas portas
laterais, mesa e mobília de qualidade e, à direita, uma grande poltrona com
um brasão. São sete horas da noite, ao entardecer. Há duas velas acesas
em cima da mesa. A didascália ao pé da página descreve que todas as indi-
cações de direita e esquerda dadas, dentro do texto, serão consideradas em
relação ao ponto de vista do espectador (Pixérécourt, 1841, p. 13).
Vejamos toda a primeira cena que expõe muito do estilo do melo-
drama, com diálogos curtos e rápidos, nos quais todas as informações são
dadas em poucas palavras. Isto implica que a cena deve ser interpretada
com uma gestualidade cheia de significação, com olhares e atitudes vários
que a devem preencher. Atenção maior deve ser dada ao trabalho dos ato-
res, pois muito das expressões das personagens irão definir sua relação
com as outras personagens. A primeira cena inicia-se com o encontro da
experiente governanta Tiennette com a jovem e apaixonada Coelina, em
conversa com sua aia; que lembram alguns diálogos de Romeu e Julieta
(1595) de Shakespeare (1564-1616). A cena começa com a descrição que
mostra o rápido ritmo da peça e informa sobre a atitude das personagens:
Tiennette atravessa rapidamente a sala, preocupada com seus muitos afa-
zeres, Coelina entra pela porta do fundo e a detém, seu diálogo é carregado
da inocência juvenil, no entanto, o diálogo que se segue não será nada des-
critivo, Coelina não diz “eu amo Stéphany”, mas indica isto por meio de
algumas de suas falas quando cita seu desgosto com relação ao filho de
Truguellin e seus sentimentos por Stéphany: “Detesto profundamente um,
enquanto o outro…”. A divisão das cenas é sempre feita, a partir da entrada
e saída das personagens. Vejamos o texto:

CENA I.
COELINA, TIENNETTE.

(Tiennette atravessa rapidamente a sala,


Coelina entra pela porta do fundo e a detém)
Robson Corrêa de Camargo | 191

(Tiennette traverse rapidement la salle,


Coelina entre par la porte du fond et l'arrête.)

COELINA.

Onde vai assim tão apressada,


minha boa Tiennette?
Você parece apressada
Ou cours-tu donc si vîte,
ma bonne Tiennette?
Tu parois bien pressée.

TIENNETTE.

Meu Deus… perdão! Como se eu não tivesse mais nada para fazer
nesta casa e ainda me trazem mais trabalho.

Dieu merci, quoique la besogne ne manque


point dans cette maison, il vient de m'en arriver
un surcroît dont je me serois bien passée.

COELINA.

Por quê? O que aconteceu?


Qu’est-ce donc?

TIENNETTE.

Tenho de preparar um quarto para


Monsieur Truguelin e seu filho.
Ne faut—il pas préparer un appartement
pour M. Truguelin et son fils?

COELINA.

Será possível?!
Meu tio e meu primo vão chegar aqui?
Est-il possible! mon oncle et mon cousin reviennent ici?
192 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

TIENNETTE.

Chegam hoje à tarde ou amanhã de manhã.


On les attend ce soir ou demain.

COELINA.

Eu estou muito contrariada com esta notícia!


J’en suis bien fâchée!

TIENNETTE.

A verdade é que eu não fiquei mais contente que você. Eu não gosto muito desses Trugue-
lin, possessivos, falsos e desonestos. Que diferença entre Monsieur Truguelin e o bom
Monsieur Dufour, seu tio paterno.
A dire vrai, je ne suis pas plus contente que vous. Ils me déplaisent à moi, ces Truguelin, je
les crois jaloux, faux et méchants. Quelle différence entre cet oncle-lá, et ce bon M. Dufour,
votre oncle paternel!

COELINA.

E entre meus dois primos!


Aqui temos uma grande diferença….
Detesto profundamente um, enquanto o outro…
Et entre mes deux cousins!
Je crois qu’elle est encorre plus grande,
car je déteste l’un, bien sincèrement, tandis...

TIENNETTE,
Souriant (Sorridente).

…você ama mais profundamente ainda,


não é verdade?
Que vous aimez l’autre plus sincérement encore,
n’ est-ce pas?

COELINA.

Você sabe se ele o merece, boa Tiennette.


Tu sais s’il le mérite, ma bonne Tiennette.
Robson Corrêa de Camargo | 193

TIENNETTE.

E não é? Ele a viu nascer.


Stéphany é o melhor rapaz que eu conheço
e eu estou certa que ele irá fazer sua mulher muito feliz.

Ce n'est pas, parce que je l'ai vu naître.


Ce cher Stéphany, c’est le meilleur enfant que je conaisse,
et je suis sùre qu’il rendra sa femme heureûse.

COELINA,
(com alegria e inocência).
vivement et avec naïveté

Não é !? Eu sempre pensei assim também.


N’est-ce pas? Je l’ai toujours pensé comme toi.

TIENNETTE.

Você já tem estas ideias? Ainda há tempo senhorita!


Você é muito jovem. Não é na sua idade que alguém deve se…
Nããão, não é este o problema, eu tenho certeza de que se não fosse M. Doufour seu tutor,
ele permitiria que você se casasse com o seu primo Stéphany sem nenhuma dúvida.

Oui da! vous pensez donc à cela quelquefois? Il n’est pas encore temps,
Mademoiselle, vous êtes trop jeune. Ce n’est pas à votre âge qu’on doit...
Ce n’est pas l’embarras, je crois que, si M. Dufour n’était pas votre tuteur,
il ne serait point éloigné de vous marier au petit cousin.Uh! Uh!

COELINA,
(vivamente) vivement.

Você acha, Tiennete?


Tu crois, Tiennette?

TIENNETTE.

Tenho certeza disto.


Você sabe bem que ele não é menos inteligente que o outro,
a ponto de não perceber que vocês se amam.
Mas, céus! A conveniência, a delicadeza, …
194 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

ele está com medo de que falem que ele tomou vantagem de você
apenas para fazer seu filho ficar rico. É simples. Eu me coloco no lugar dele;
quando uma pessoa é honesta e sensível....

J’en suis sùre.


Vous entendez bien qu'il n'est pas moîns clairvoyant qu'un autre,
et qu'il n'en est point à s'apercevoir que vous vous aimez.
Mais dam! les convenances, la délicatesse...
il craint qu’on ne dise dans le pays qu’il a profité de l’ascendant
qu’il avait sur vous pour enrichir son fils.
C’est tout simple ça, je me mets à sa place; quand on est honnête et délicat…

COELINA.

Tinennette, eu vou destruir esta preocupação sem fundamento;


eu recusarei a qualquer pretendente que se apresente;
direi a meu tio que somente a Stéphany é quem amo e poderei amar,
e que pretendo oferecer a ele todo meu amor e minha fortuna.

Tiennette, je me charge de détruire ses scrupules à cet égard;


je refuserai tous les partis qui se présenteront;
je dirai à mon oncle que Stéphany est le seul que l’aime,
que je puisse aimer; et je lui offrirai moi-même mon coeur et ma fortune.

TIENNETTE.

Deixe este assunto para seu tutor resolver, eu vou...


Laissez faire votre tuteur, et soyez sùre que...

DUFOUR
(fora de cena) en dehors
Tiennette! Tiennette!
Tiennette! Tiennette!

TIENNETTE.

M. Dofour me chama.
Ele vai ficar resfriado naquela sala.
Tenho que ir.
Je l’entends qui m’appelle.
Robson Corrêa de Camargo | 195

Sans doute il veut prendre le frais dans cette salle.


Je vous quitte.

COELINA.
Espere um pouco, Tiennette.
Un moment, Tiennette.

TIENNETTE.

Eu não posso.
Quando aquela gota o atormenta
ele fica impaciente.
Je ne puis.
Quand sa goutte le tourmente,
vous savez que le cher homme n’est pas endurantx.

DUFOUR,
(fora de cena e mais alto) En dehors et plus haut

Tiennette!
Tiennette!

TIENNETTE.

Estou indo, Monsieur.


(Ela faz um movimento rápido perto do jardim)
Não fique triste minha criança.
Stéphanie já, já retorna da caça
e deve fazer companhia a você.
Você adoraria, não é verdade?
Eu aposto que você não iria querer minha companhia
nem que eu oferecesse para ficar.

J’y vais, Monsieur


[(Elle jette un coup-d'oeil du côté du jardin.)]
Consolez-vous, mon enfant,
voilà Stéphany qui revient de la chasse,
il vous tiendra compagnie.
Vous ne perdrez pas au change, n’est-il pas vrai?
Je parie qu’à présent vous ne voudriez pas de moi,
quand je vous proposerais de rester.
196 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

COELINA.

Tiennette, minha boa Tiennette,


você sabe que para você eu não tenho segrêdos.
Tu sais, ma bonne Tiennette,
que je n’ai pas un secret qui ne t’appartienne.

DUFOUR,
(fora de cena e ainda mais alto).
en dehors, toujours plus haut

Tiennette! Tiennette!
Tiennette! Tiennette!

TIENNETTE.

Estou indo, Monsieur (sai)


Me voilà, Monsieur. (Elle sort).

A partir desta cena inicial podemos discutir a afirmação da ausência


de profundidade ou de conflitos interiores nas personagens do melo-
drama. A ação do melodrama é exteriorizada, faz parte de sua estética,
mas, de uma estética que não é ou foi somente sua, como veremos mais à
frente. Na cena anterior, observem, primeiramente, a governanta Tien-
nette, cuidando da casa, preocupada com o aumento de afazeres e com
novas visitas, podemos perceber alguns dos conflitos de sua personagem
nesta fala:

TIENNETTE.

Você já tem estas ideias? Ainda há tempo senhorita! Você é muito jovem. Não
é na sua idade que alguém deve se… Nããão, não é este o problema, eu tenho
certeza de que se não fosse M. Doufour seu tutor, ele permitiria que você se
casasse com seu primo Stéphany sem nenhuma dúvida.
Robson Corrêa de Camargo | 197

Ou, então, como esta personagem introduz os conflitos a que está


submetido M. Doufour, tutor e tio de Coelina e por que este não quer per-
mitir que Stéphany, seu filho, seja o prometido de Coelina.

TIENNETTE.

Tenho certeza disto. Você sabe bem que ele não é menos inteligente que o
outro, a ponto de não perceber que vocês se amam. Mas, céus! Decoro, pro-
priedade, … ele está com medo de que falem que ele tomou vantagem de você
apenas para fazer seu filho ficar rico. É simples. Eu me coloco no lugar dele;
quando uma pessoa é honesta e sensível....

Na primeira cena, Coelina expõe o conflito que irá carregar sua per-
sonagem durante a peça:

COELINA.

E entre meus dois primos! Aqui temos uma grande diferença... Detesto pro-
fundamente um, enquanto o outro…

Ao voltarmos ao texto podemos ver os cuidados de Tiennette com


Dufour e Coelina, tentando interferir e ajudar nos problemas da casa, não
se mantendo imparcial em relação ao tio de Coelina, que está para chegar.
Sua forma de expressão indica cuidados ao falar de certos assuntos com a
personagem-título, mostra-se surpresa diante das palavras da garota ao
querer se casar. Seu diálogo e suas ações mostram uma personagem pre-
ocupada com os detalhes psicológicos/interiores da casa, certamente são
personagens com profundidade. Ou para voltarmos uma vez mais a um
assunto já tratado, uma personagem que necessita de atores tridimensio-
nais. O melodrama não apenas necessita de adequados intrumentos
críticos para a análise do processo dramático tão contraditório, mas, so-
bretudo, exige atores adequados para sua exposição, pois a dinâmica desta
peça, como usual na comédia, desenvolve-se apoiada no desempenho par-
ticular e individual de cada ator e da performance.
198 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Às vezes, o texto, aparentemente simples, está na dependência estrita


da interpretação e detalhamento do ator. Assim também acontecia com a
commedia dell’arte, arlequim era um tipo, uma personagem fixa, mas seus
intérpretes construíam-na moldando sua forma de atuação que suplantava
os esboços das situações propostas. Isto não era próprio apenas desta
forma de teatro popular. Outro teatro, d’além-mar, ou melhor, do outro
lado do canal, também expunha características semelhantes.
Para uma melhor compreensão do processo de interpretação desta
peça em particular, e do melodrama em geral, observemos não apenas o
estilo que se compunha nas feiras e bulevares, considerado marginal, po-
rém, aquele que se construía no interior dos principais teatros da cena
europeia. A forma de interpretação teatral, comuns na França e Inglaterra
e não apenas no teatro das feiras francesas, não era antagônica, ao contrá-
rio.
Em sua História do Teatro Ocidental, Grose e Kenworthy, dois histo-
riadores ingleses, afirmam que a tradição do teatro inglês também era
mais gestual, e isto em plena era shakespeareana. Supõe-se que o estilo de
atuação fosse mais gestual por dois motivos: “a proximidade entre os ato-
res e a plateia”, assim como a “ausência de quietude durante as
performances”. Estes autores relatam a certeza de que o estilo seria mais
expressivo que os padrões que se desenvolveram no teatro falado europeu
e que, como os diálogos, os movimentos eram, sem dúvida, rápidos para
sustentar o domínio da apresentação diante de um público bem atuante
(Grose ; Kenworthty, 1985, p. 215-216).
Na verdade, o estilo “marcado” e gestual do melodrama era compo-
nente da cena francesa da época, usual na Comédie Française, o que não é
de se estranhar, pois, o melodrama buscava legitimização e avocava para
si não apenas o respeito às três unidades, mas ser parte do estilo da cena
existente nos principais teatros contemporâneos.
No texto de Pixérécourt, a força interior de Coelina está plena da cer-
teza adolescente, frágil, incerta; este é o comentário da governanta sobre
os sentimentos da personagem pelo amado, Stéphany. Lembram o amor
Robson Corrêa de Camargo | 199

de Julieta por Romeu, na cena de suas confissões com a aia, isto não im-
plica que a personagem perca sua poesia ou profundidade. Na qualidade
da ação, há uma diferença, em Romeu e Julieta existe uma luta pelo lívre-
arbítrio, ao se contrariar mais expressamente a vontade da sociedade, dos
costumes e dos pais.
No melodrama, na maior parte das vezes, o controle social é maior;
as personagens submetem-se quase totalmente a seu destino e apenas se
desvencilham pela interferência de fatores externos, e o acaso e a natureza
determinam o humano. Estamos longe da lealdade e da honra perseguida
pelos cavaleiros da Távola Redonda ou do destino que persegue cegamente
Édipo, apesar de sua luta por tê-lo nas mãos.
O melodrama afirma o poder das normas sociais sobre o indivíduo,
não abre largos caminhos às pulsões ou desafios. Mas esta é uma questão
moral, não dramática, embora tenha consequências na elaboração desses
textos.
Grose e Kenworthy compreendem de outro modo, ao afirmarem que
as lutas a que a personagem melodramática se submetia eram de ordem
externa, fazendo que estas forças estivessem além do controle de seus pro-
tagonistas. Esta dependência, como apontam estes autores, dá ao
melodrama “sua particularidade especifica de um drama de total ação e
reação” (Grose; Kenworthy, 1985, p. 369).
Em Pixérécourt, as personagens submetem-se a forças superiores
maiores que as movem, como o amor de Coelina ou os valores morais de
Dufour e seu amor paternal por Coelina, ou mesmo, Tiennette com seus
sentimentos quase maternais por Coelina.
Em algumas das peças de Shakespeare, as personagens irão contra-
riar a ordem estabelecida ou podemos pensar em Macbeth onde a
personagem central irá contrariar a ordem natural, mas determinado e
subserviente ao sobrenatural.
Em nosso melodrama, as personagens dependem mais de forças ex-
ternas que as envolvem para resolução da trama, mais que do
enfrentamento de seus desafios. Os objetivos que movem estas
200 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

personagens, os valores universais que carregam, estão mais perto da di-


mensão do homem comum e o fato não diminui a força dramática do texto
de Pixérécourt. Os deuses agora são contemporâneos, parecem menos
poéticos ou exigem novos poetas.
Para melhor observação desta cena inicial, entre Coelina e Tiennette,
podemos dialogar com uma afirmação poética de Peter Brooks sobre o me-
lodrama.
De acordo com Brooks, o desejo de expressar todas as coisas parece
ser a fundamental característica do modo melodramático, pois nada deve
ser restrito nem deve ficar sem ser dito, nem sem estar expresso, pois não
são apenas as palavras que interessam. A personagem depende do tablado
e deve exprimir o indizível, devendo dar voz a seu mais profundo senti-
mento, dramatiza não apenas por meio de suas pesadas e polarizadas
palavras, mas da ação que deve ser construída.

O desejo de tudo expressar parece ser uma característica fundamental do


modo melodramático. Nada é poupado porque não há o não dito. A persona-
gem para no palco e diz o indizível, dá voz a seus mais profundos
sentimentos, dramatiza por meio de suas palavras e gestos marcados e
polarizados, o evangelho total de seu relacionamento. Eles assumem papéis
físicos primários, de pai, de mãe, de filha e expressam suas condições fisicas
elementais.
(The desire to express all seems a fundamental characteristic of the melo-
dramadic mode. Nothing is spared because nothing is left unsaid; the
characters stand on stage and utter the unspeakable, give voice to their deepest
feelings, dramatize through their heightened and polarized words and gesture
the whole lesson of their relationship. They assume primary psychic roles, fa-
ther, mother, child, and express basic psychic conditions (Brooks, 1976, p. 4,
grifos do autor).

No melodrama, esta atitude de exprimir o indizível, de explicitar o


profundo sentimento, solicita a participação deliberada do ator na cons-
trução do texto na cena que se representa. No capítulo quatro, quando
iremos nos deter na intepretação do melodrama feita no Teatro de Arte de
Moscou, detalharemos mais a questão, concentrando-nos, então, no
Robson Corrêa de Camargo | 201

processo de construção da personagem melodramática, conforme o enten-


dimento do diretor russo Stanislavski.
Agora vou me dirigir à afirmação de Brooks sobre esta personagem
que diz o indizível e não apenas por meio das palavras, mas, de toda sua
expressão física, de seus olhares, gestos, respiração, postura... É preciso
entender que isto exige uma interpretação complexa e requer atores que
tenham a habilidade da construção dessa cena e da forma, pois não podem
ser apenas presas das palavras sugeridas pelo texto.
A formação dos atores no terreno da pantomima muito serviu a este
tipo de teatro; a razão do esquematismo crítico melodramático que, muitas
vezes pode surgir de uma leitura superficial da escrita, repousa também
na incapacidade de alguns de seus leitores observar a profundidade das
relações humanas apresentadas, abordadas dentro de seu modo de inter-
pretação.
Embora coloque em primeiro plano a importante questão da fala do
indizível, Brooks considera a interpretação do ator do melodrama subme-
tida plenamente à divisão maquineísta que sua moral propõe. Isto é
parcialmente verdadeiro. Continuando o ponto de vista que estou desen-
volvendo, partindo, sobretudo, da tradição interpretativa dos atores
contemporâneos e da experiência expressiva dos atores e atrizes formados
no teatro de feira, com elementos similares à da commedia dell’arte, deve-
mos entender que a presença cênica desses artistas tinha uma qualidade
que possibilitava desenvolver o texto da cena com profundidade, ironia e
ambiguidade, por mais “maniqueísta” que fossem os valores morais que
envolviam o texto escrito.
Desse modo, aos atores e atrizes do melodrama cabia dar a dinâmica
e a particularidade da interpretação e, ao ator e atriz do melodrama, trans-
formar a “generalidade” do papel do vilão ou da mocinha em uma rica e
complexa personagem, que conseguisse levar a interpretação com inte-
resse até a última cena.
As personagens do melodrama enquadram-se no meio social exis-
tente, não procurando o rompimento das regras da trama estabelecida.
202 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Entretanto, toda a experiência da pantomima presente no teatro de bule-


var; a qualidade dos artistas envolvidos, contando com importantes
artistas em seus papéis principais, faz concluir que o detalhamento reali-
zado pelos atores no espetáculo era de grande importância na construção
da encenação.
Não é por acaso que as duas críticas contemporâneas anteriormente
citadas, de Lepan e Ducray-Duminil, reconhecem o trabalho dos atores
como de “grande inteligência”, assim como não notam o esquematismo
suposto pela crítica posterior. Além dos atores, coube ao diretor-drama-
turgo Pixérécourt dinamizar a encenação, para que esta tivesse toda a
dimensão necessária em seus cenários, figurinos e na maquinaria cênica.
Sem estes elementos, o melodrama seria apenas um calhamaço de finas
folhas de papel escrito.
No melodrama há um código moral, seu pano de fundo, pois requer
que as personagens se posicionem contra ou a favor desse código. Umas
agem rapidamente contra as adversidades, outras, pró. As três persona-
gens principais do melodrama são o herói, a heroína e o vilão, que
representam os motores da ação. Algumas vezes, são acompanhados por
uma dupla cômica e por pelo menos uma personagem de idade avançada.
O melodrama requer que haja pouca mudança na característica moral das
personagens, nada deve existir no caminho da ação, nem mesmo a razão.
A atuação é, por consequência, de alguma forma estilizada e conta com
uma participação ativa tanto do ator como da plateia.
Vamos nos deter um pouco mais nas formas de interpretação na
França do século XVIII. Ainda conforme Grose e Kenworthy, o estilo de
atuação predominante no teatro clássico francês, durante o século XVI, ha-
via se desenvolvido a partir da retórica. A expressão falada era
declamatória e a física controlada, permanente e tendia a ter uma compo-
sição mais marcada que a da expressão humana corrente, cotidiana. Não
havia necessidade de integração com o diálogo, podendo a ação física ocor-
rer, antes ou após o texto falado. Este estilo orátório era predominante em
Robson Corrêa de Camargo | 203

toda Europa continental. Mas ser predominante não significa ser o único
e o teatro clássico não alcançou grandes plateias, ao contrário.
A partir de 1630, começa a ocorrer uma mudança de estilo, mais co-
erente com a leitura que a Renascença fazia dos clássicos. O estilo que
surgiria, seria mais “natural” que seu antecessor, com a voz menos decla-
matória, mais perto do que seria considerado “natural” e mais
sincronizado com as ações físicas realizadas. Esta maior relação entre fí-
sico e voz possibilitaria maior expressão do conteúdo emocional, o que
seria uma das preocupações crescentes e não apenas do teatro, a partir do
século XVII (Grose; Kenworthy, 1985, p. 29).
Ao final do século XIX, a intepretação “natural” que irá se estabelecer
com o naturalismo, certamente será bem diferente do “natural” dos tem-
pos de Pixérécourt. Assim, tudo que não for considerado “natural” na
interpretação, será visto como exagerado ou excessivo, sendo o natural
mais ligado ao gosto de determinada época que a normas de certo estilo.
O material sobre a forma de interpretação dos artistas da pantomima
e do bulevar é escasso, pois muito se deve à tradição oral. Sua prática e sua
crítica encontram-se nos tempos da oralidade e na tradição popular. Mas
podemos entender alguns desses procedimentos pelas anotações de alguns
de seus contemporâneos. Um artigo do ator e melodramaturgo Thomas
Holcroft (1745-1809), no Westminster Magazine de Londres, em 1780, ex-
pressa alguns dos elementos presentes na interpretação da época. Esta
certamente não é a única forma interpretativa de seu tempo, mas reflete
um modo de tratamento do trabalho do ator na época, tendo influenciado
importantes atores contemporâneos na Inglaterra e Estados Unidos da
América.
Thomas Holcroft é adaptador de Coelina ao inglês, com o novo nome
de A Tale of Mystery (1802; Um conto de Mistério), tendo assistido à re-
presentação, após uma visita de praticamente um ano na vizinha Paris, em
1801. Holcroft já havia estreado em Londres, antes de A Tale of Mystery,
outro “melodrama” de sucesso The Road to Ruin (1792; A Estrada da Ru-
ína), sendo também conhecido como autor pela sua adaptação das Bodas
204 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

de Fígaro (1784), de Beaumarchais, ao inglês e pelo seu importante desem-


penho no papel de Fígaro na mesma peça. No trecho do artigo a seguir
exposto, Holcroft discute seu ponto de vista sobre a melhor forma de tra-
balho de interpretação do ator, utilizando, como exemplo, o monólogo de
Macbeth (SHAKESPEARE, 1605) na cena primeira do segundo ato, quando
Macbeth imagina a adaga. Vejamos o comentário deste prócer do melo-
drama inglês da época.

Um ator que fale o monólogo […] apenas tendo observando o trabalho de ou-
tros atores e não a partir de uma forte concepção dos sentimentos de um
homem perdido em seus pensamentos confundido pela paixão tulmultuada
que agita sua mente […] usará todas as outras emoções mecânicas que obser-
vou, mas seus olhos terão um brilho vazio; seus passos irão confessar a
confusão do seu estado da mente e seu comportamento irá contradizer seus
lábios: será evidente que ele não tem aquelas emoções que ele dizia possuir e
a indignação da audiência vai levantar-se contra o impostor que teve a afronta
de insultar ao mesmo tempo seu sentimento e o seu entendimento [...] Suas
palavras devem aparentar o efeito de uma ação predeterminada ou de uma
proposição resolvida em sua mente e por esta razão cada sentença deve ser
pronunciada em intervalos. Durante estas pausas, seu comportamento silen-
cioso deverá mostrar o que sua próxima sentença deverá confirmar. Nesta sua
apresentação silenciosa estará a parte difícil de seu trabalho, pois nesta repre-
sentação emudecida é que os atores são geralmente deficientes. Quando um
ator, sem dizer uma palavra, apenas pela ação e pelo seu comportamento,
faz a audiência entender o que ele está para dizer, a plateia se sente vai-
dosamente gratificada. Eles primeiro aplaudem a si mesmo pela seu
entendimento e então irão voluntariamente aplaudir o ator pela sua arte. […]
os olhos, a ele deveria ser ensinado, são a parte mais expressiva […]

An actor who speaks […] from observation of other Actors, and not from a
strong conception of the feelings of a man lost in thought, bewildered by the
tumultuous passions which agitate his mind, […] use all the other mechanical
motions he has observed; but his eyes will have the glare of a vacancy; his very
feet will confess the confused stare of his ideas; and his whole deportment will
contradict his lips: it will be evident he has not those emotions which he says
he has; and the indignation of the audience will rise against the imposter, who
has effrontery thus to insult both their feelings and their understanding […]
His words should appear to be the effect of an action predetermined, or
Robson Corrêa de Camargo | 205

proposition resolved in his own mind; and for that reason each sentence should
be uttered at intervals. During the intervals of silence, his deportment should
in dumb shew describe what the next sentence will confirm. It is in this dumb
shew that the difficulty consists; it is this dumb show that Actors are in general
deficient. It gratifies the vanity of an audience when an Actor, before he speaks
a word, makes them understand by his action and deportment what he is going
to say: They first applaud themselves for their penetration, and then willingly
applaud him for his art.The eyes, he would be taught, are more expressive than
any other feature […] (Woodbury, 1954, p. 4, negritos do autor).

Algumas conclusões podem ser tiradas; primeiro que estas páginas


não foram tiradas de um livro de Stanislávski, mas, de um importante me-
lodramaturgo e ator inglês na aurora do melodrama, e certamente
explicita uma forma de desenvolvimento do trabalho do melodrama ence-
nado e explica de forma detalhada a importância da interpretação no
melodrama e como preencher os olhos da personagem.
A atuação silenciosa no palco era importante, não apenas no teatro
das feiras e do bulevar, e a qualidade exigida nesta forma interpretativa
era considerada “superior” àquela que determinaria apenas uma forma
retórica da fala, com apoio gestual minimizado, contido. Ao mesmo tempo,
havia uma constante observação pelos atores contemporâneos dos traba-
lhos de seus colegas, o que sugere um raciocínio que pretende favorecer a
busca da competência individual contra o processo de simples imitação,
afirmando Holcroft que não basta a observação.
Por último, é bastante presente nos diversos gêneros teatrais desta
época, inclusive, no melodrama, uma preocupação com a representação
física das emoções. Na verdade, Holcroft propõe combater as “emoções me-
cânicas” do ator com a representação silenciosa. Mesmo com toda a
representação concentrada na elaboração física da personagem, havia uma
grande preocupação da integração da parte física com a expressão dos sen-
timentos. Obviamente podemos perceber que toda a atuação tinha como
grande preocupação, em primeira e última instâncias, o público que assis-
tia ao espetáculo, mas seria por acaso diferente no teatro?
206 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Como já foi descrito, era grande a presença de importantes artistas


na cena dos melodramas de bulevar. A grande maioria realizava mais de
um gênero, havendo grande trânsito entre suas técnicas e estilos, não ne-
cessariamente ligados a uma determinada escola literária. O comum era o
cruzamento entre as técnicas teatrais: artistas de determinadas propen-
ções interpretando outros estilos.
Já vimos que a encenação do melodrama utilizava artistas da panto-
mima em seus principais papéis, ao mesmo tempo, que, ao conter
particularidades da tragédia e da comédia em seus textos, necessitava de
atores e atrizes de diferentes estilos para seus distintos papéis. Neste sen-
tido, podemos supor que o cruzamento de estilos de atuação era também
um procedimento comum entre os artistas de todos os gêneros teatrais,
certamente não havia apenas uma técnica de interpretação tipificada e ex-
clusiva do melodrama.
Erika Fischer-Lichte (1943) em seu artigo Theatre and the Civilizing
Process (Teatro e o Processo de Civilização) contesta justamente a com-
preensão determinista de unidade dos estilos de atuação em face das
mudanças históricas. Neste ponto de vista criticado, estas mudanças pare-
cem ser causadas apenas por princípios estéticos ou filosóficos gerais que
guiariam as produções artísticas de uma determinada época, pouco tendo
em comum com a situação histórica e a prática social na qual ocorrem
(Fischer-Lichte, 1997, p. 21).
Acrescento ao ponto de vista de Fischer-Lichte que, além da situação
histórico-social, também, deixamos de lado a evolução intrínseca e contra-
ditória da forma de interpretação teatral da época e da construção do
espetáculo que age radicalmente e de forma particular nesse processo.
Com o cruzamento dos atores entre os diferentes gêneros teatrais em mu-
tação no surgimento do melodrama, havia também um intenso
cruzamento entre as técnicas de interpretação em curso nessa época. Se as
fronteiras entre os gêneros teatrais estavam em grande movimentação,
fruto da novidade, da experimentação, do sucesso e dos “tempos da mer-
cadoria”, os estilos interpretativos mesclavam-se igualmente.
Robson Corrêa de Camargo | 207

É comum pensar o estilo de representação do melodrama como uma


série de gestos predeterminados, clichês congelados que serviriam à ex-
pressão mecânica e sem sentimento das personagens em seus modelos
fixos, do vilão, da heroína, etc. Nada mais incorreto. Havia certamente
uma normatização, e a busca da norma reguladora era essencial, pois pro-
curava-se uma nova regulamentação diante da superação das normas
depostas da monarquia decapitada. Logicamente, cada personagem de
cada melodrama tinha tantas diferenças entre si quanto os atores que in-
terpretavam estas distintas personagens.
Devemos acrescentar que a percepção da atuação do melodrama
como uma fórmula pouco tem a ver com a forma interpretativa da época.
Esta procurava, sim, uma “identificação” do ator com a personagem, assim
como buscava “a emoção que a personagem dramática deveria sentir”. Se-
ria diferente em outro teatro?
Certamente, este processo precisa ser entendido na perspectiva de
seu tempo. Não é a identificação ou o estranhamento como o percebemos
hoje. A construção individual da interpretação do melodrama por parte de
cada ator era filtrada por distintos processos.
Na época, estas menções a respeito das formas de interpretação aju-
dam a reconstruir melhor o melodrama e sua aventura nos palcos. Uma
cena muito comum ao gênero e que deve ser destacada pelas suas grandes
ligações com a pantomima é a quinta cena de Coelina, com destaque espe-
cial na personagem muda Francisque. O teatro de bulevar colocou no
melodrama não apenas atrizes da pantomima muda, falando no palco pela
primeira vez, como era muito comum também haver personagena emu-
decidas. Francisque exerce em cena uma grande atração no espetáculo,
pelo que não fala. Vejamos a cena:

SCENE V.

DOUFOUR, COELINA, FRANCISQUE, TIENNETTE


(Francisque avança lentamente com um ar tímido)
(Francisque s'avance lentement et d'un air timide.)
208 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

DUFOUR, (para Francisque)

Aproxime-se, meu amigo, Tiennette, fique aqui;


se eu não entender bem os seus gestos, você me explicará.
Sente-se, bravo homem; eu gosto do seu jeito: ele joga a seu favor.
Minhas crianças, deixem-nos a sós: vossa presença pode incomodá-lo

Approche, mon ami, ne crains rien. Tiennette, reste là;


si je n'entends pas bien ses gestes, tu me les expliqueras.
Assieds-toi, brave homme; j'aime ta physionomie: elle prévient en ta faveur.
Mes enfans, laissez-nous: votre présence pourroit le gêner.

(Stéphany e Coelina fazem um movimento para sair;


Francisque se levanta rapidamente, toma-os pela mão,
e eles permanecem no lugar,
agradecendo-lhe por ficar.)

(Stéphany et Coelina font un mouvement pour sortir;


Francisque se lève précipitamment, les prend par la main,
et les ramène à leur place, en les priant d'y rester.)

DUFOUR.

Agora, fique à vontade.


Meu amigo, aqui está uma caneta e papel;
aproxime-se da mesa e responda por escrito,
quando você não possa fazê-lo de outra forma;
mas acima de tudo diga-me a verdade.
Allons restez, puisqu'il le veut.
Mon ami, voilà une plume et de l'encre:
approche-toi de cette table,
et tu me répondras par écrit,
quand tu ne pourras le faire autrement;
[mais] surtout dis-moi la vérité.

(Francisque manifesta que é incapaz de mentir.)


(Francisque témoigne qu'il est incapable de mentir.)
Robson Corrêa de Camargo | 209

DUFOUR.

Como é seu nome?


Comment te nommes-tu?

(Francisque escreve e Tiennette coloca-se atrás dele e lê em voz alta.)


(Francisque écrit, et Tiennette placée derrière lui lit à haute voix.)

TIENNETTE.

Francisque Humbert.
Francisque Humbert.

DUFOUR.

Quantos anos você tem?


Quel est ton âge?

TIENNETTE.

Quarenta
Quarante ans.

DUFOUR.

O que o levou a esta situação?


Qui a causé tes malheurs?

TIENNETTE.

O amor e a ambição.
L'amour et l'ambition.
[…]

DUFOUR.

Tiennette contou-me
que ela viu você um dia perto do moinho de Arpennaz,
esfaqueado e banhado em sangue
210 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Tiennette m'a raconté


qu'elle t'avoit trouvé un jour près du moulin d'Arpennaz,
percé de coups et baigné dans ton sang...
.
TIENNETTE.

É verdade.
C'est vrai.

DUFOUR.

Quais são os montros que o deixaram neste estado?


Você os conhece?
Quels sont les monstres qui t'ont réduit en cet état?
les connois-tu?

FRANCISQUE faz um gesto afirmativo.


FRANCISQUE fait un geste affirmatif

DUFOUR.

Pode dizer
Nomme-les.

TIENNETTE.

Eu não posso,
pois traria o mal a todos os que me são queridos.
Je ne le puis,
sans faire le malheur de tous ceux qui me sont chers.

(Francisque olha expressivamente para Coelina.)


(Francisque jette un regard expressif sur Coelina.)

[…]

DUFOUR.

Você sabe se eu os conheço?


Penses-tu qu'ils me soient connus?
Robson Corrêa de Camargo | 211

TIENNETTE.

Muito.
Beaucoup.

DUFOUR.

Que enigma!
Quelle énigme!
[…]

Esta quinta cena não pode ser entendida apenas como um relatar es-
crito por uma personagem daquilo que não deve ser expresso pelas
palavras, o que a tornaria uma representação totalmente aborrecida no
palco. Mas deve ser observada como uma forma de criar expectativa na
plateia sobre o que escreve o silencioso Francisque, como ele expressa seus
sentimentos interiores sobre seus algozes, sobre Coelina e sua vida e colo-
car a atenção totalmente nas expressões, olhares das personagens,
inclusive as não emudecidas.
É desenvolvida uma cena que envolve todas as personagens, e a ex-
pressão física e o olhar serão o centro das atenções, das emoções ou do
diálogo gestual. Nesta cena Tiennette cumpre uma importante ação ao tra-
duzir na entonação o que escreve Francisque, pois ela terá a primeira
notícia de suas informações e deverá ler em voz alta o que sabe, tentando
ser fiel ao que Francisque escreve. Outro destaque que, certamente, evi-
dencia a participação de todos na construção do clima da cena, será
quando Dufour pergunta a Francisque se ele mesmo teria conhecimento
dos malfeitores. A resposta positiva de Francisque deverá causar um
grande desconforto e dúvida em todas as outras personagens, atitude que
deve ser expressa visualmente. Em seu início esta cena mostra, nas falas
de Dufour a construção visual e interpretativa que ela implica. As falas:
“Aproxime-se”, “fique aqui”, “eu gosto do seu jeito”, no seguinte diálogo
são evidentes:
212 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

DUFOUR, (para Francisque.)

Aproxime-se, meu amigo, Tiennette, fique aqui; se eu não entender bem os


seus gestos, você me explicará..Sente-se, bom homem; Gosto da sua fisiono-
mia: avisa a seu favor. Meus filhos, deixem-nos: sua presença pode
constrangê-lo.

A didascália seguinte, da cena anterior, que transcrevemos, mostra


uma ação cheia de curiosidades e tensão entre as personagens, demonstra
a importância dos tempos, gestos e olhares entre elas. Atitudes importan-
tes em todo o melodrama e em sua pantomima.

(Stéphany e Coelina fazem um movimento para sair; Francisque levanta-se


rápidamente, toma-os pela mão, e eles permanecem no lugar, implorando-
lhes por ficar).

Segundo Lacey, o problema do melodrama não está na ausência do


conflito interior das personagens. Particularmente, em Coelina, sua opi-
nião é que o conflito físico é de natureza violenta e excitante, pois coloca
inteiramente nas sombras o elemento da luta interior contida na peça.
Para Lacey, existem cenas que consistem inteiramente no que deve
ser chamado tableaux mouvants (quadros vivos em movimento), nos
quais nenhuma palavra é falada, a atenção da audiência é dirigida apenas
à ação das personagens, engajadas em uma luta amarga, tensa, uma con-
tra a outra (ato III, cena 10). Dentro desse raciocínio, Lacey afirma,
inclusive, que, na maioria dos casos, estes quadros vivos poderiam ser
“omitidos da peça sem prejudicar a trama” (Lacey, 1928, p. 9).
A avaliação de Lacey é parcialmente correta. Chama, sim, atenção
para o fato da ação externa das personagens ser o ponto principal da peça,
o que concordamos, por isso a ligação extrema da forma de interpretação
melodramática com a pantomima. Mas não é correto afirmar que a ação
interior seja colocada nas sombras, ao contrário, se o ponto fulcral do me-
lodrama encontra-se na ação exterior das personagens, concentra-se a
ação interior em um segundo plano, mas não a omite. No teatro, a ação
interior é sempre evidenciada pela manifestação física do ator, ou seja,
Robson Corrêa de Camargo | 213

existe exteriormente, deve ser entendida como contraponto, pano de


fundo, subtexto, à ação exterior.
Quanto à exclusão dos quadros vivos, este procedimento só pode ser
correto do ponto de vista do leitor da trama, que a percebe apenas como
uma história a ser seguida e não como um espetáculo teatral, porque estes
efeitos teatrais são cenas imprescindíveis ao melodrama que está sendo
mostrado, são momentos condensados de tensão, não meros congelamen-
tos. Aqui vemos, claramente, como a visão apenas do texto escrito por este
critico limita o entendimento do espetáculo teatral.
Esta é a outra parte característica do melodrama que, mais uma vez,
aponta no sentido espetacular do gênero. Os tableaux movants são cenas
com uma composição de todos os atores nelas envolvidos, que congelam
por um instante seus gestos ou fazem-no em cadência diferente do res-
tante do espetáculo, o que sublinha a cena vista, mas, que não são cenas
vazias, congeladas. Não é uma fotografia inerte, e a gestalt comprova que
nem as fotografias são inertes. O tableaux deve carregar a tensão dramá-
tica da cena que antecede e continuar a sequência da história. Esta poderia
ser ao final de cada ato, como forma de segurar o suspense de algum fato
ou durante a cena, como veremos.
O exemplo a seguir, é tirado de Coelina, acontece na interrupção da
festa de noivado de Coelina e Stéphany, causada por uma correspondência
reveladora. Em um primeiro momento, todos paralisam com a entrada de
Germain, que não era uma pessoa bem-vinda na casa nessa altura dos
acontecimentos: depois, na cena seguinte, com as notícias da carta dizendo
que Dufour não seria o tio de Coelina, ficam todos estupefados. Os atores
agem quase como supomos ser a ação de um coro clássico grego, durante
ação coletiva. No momento anterior, entra Germain, o ajudante de Tru-
guellin, para entregar uma carta a Dufour dizendo apenas “velho
imprudente, leia!”. Em seguida….

Todo mundo pára, congelados com a atitude extrema;


a dança que estava sendo realizada cessa e todos ficam imóveis;
Germain retira-se de cena com um ar de satisfação.
214 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

(Tout le monde se lève [de table et paroît frappé d'étonnement];


la danse cesse et chacun demeure immobile;
Germain se retire [avec un air de satisfaction].)

SCENE VI

Depois de um momento de silêncio e de indecisão


Dufour abre o envelope e começa a ler. Ele aparenta estar muito agitado
pela leitura e, ao final, exclama:

Après un moment de silence [et d'indécision]


Dufour ouvre le paquet et lit. Il paroît vivement agité
[pendant cette lecture]; à la fin il s'écrie:

DUFOUR

Que vergonha! Eu fui traído, desonrado!…


O honte! je suis trahi, déshonoré!...

STÉPHANY

Que você está dizendo?


Que dites-vous?

COELINA

O que aconteceu?
Qu'entends-je?

TIENNETTE

Oh! Céus!
O ciel!

FARIBOLE

Oh! Meu Deus.


Ah! mon dieu.
Robson Corrêa de Camargo | 215

(Francisque aparenta grande desespero.)


(Francisque paroît au désespoir.)

DUFOUR

Casamento! Amor! A dor e a repugnância...


Estes são os frutos de minha triste idade.
Plus d'hymen! plus d'amour! la douleur et la haine...
voilà le partage de ma triste vieillesse.

STÉPHANY

Explique, por favor…


Expliquez-vous...

COELINA

Fale, meu tio…


Parlez, mon oncle...

DUFOUR, repelindo-a.
DUFOUR, (la repoussant)

Eu não sou seu tio.


Je ne suis point votre oncle.

TODOS
TOUS.
(Assombro geral.)
(Stupéfaction générale.)

Meu Deus!
Oh mon Dieu! (Ó meu Deus!)

DUFOUR.

Não, ela não é minha sobrinha…


é uma criança, filha do crime e do adultério!
Non, elle n'est point ma nièce...
216 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

c'est l'enfant du crime et de l'adultère!


[…]

Como se percebe, a ausência da cena congelada faria falta ao desen-


volvimento do espetáculo. Primeiro, a rubrica mostra a importância da
mudança do movimento entre as duas cenas, da dança ao tableaux,
quando descreve: “Todo mundo pára, congelado com a atitude extrema; a
dança que estava sendo realizada cessa e todos ficam imóveis”. Em se-
guida, descreve a gestualidade durante a representação:

Depois de um momento de silêncio e de indecisão,


Dufour abre o envelope e começa a ler.
Ele aparenta estar muito agitado pela leitura e,
ao final, exclama:

Après un moment de silence [et d'indécision]


Dufour ouvre le paquet et lit. Il paroît vivement agité [pendant cette lecture];
à la fin il s'écrie:

Os tableaux mouvant são um artifício da encenação não apenas res-


tritos ao melodrama, mas uma variante dos tableaux vivant (quadros
vivos) ou tableaux. Alguns registros descrevem o tableaux como parte da
construção da encenação em apresentações dos séculos XVIII e XIX (Berg-
man, 1960, p. 209). Os tableaux eram quase uma manifestação à parte,
que podem ter sido uma influência da pintura no teatro, em que se procu-
rava imitar em cena quadros conhecidos. A representação da Paixão de
Cristo ou muitas das instalações dos dias de hoje, comuns em cidades bra-
sileira, seguem a tradição dos tableaux, que não incluem necessariamente
atores, mas, pessoas. Goethe chega a ser apontado como criador desta es-
pécie de espetáculo, mas em 1809, ou seja, nove anos após a estreia de
Coelina.
Bergman descreve este procedimento em um espetáculo da Comedie
Italienne de 1761, Les Noces d’Arlequim, quando, no meio do segundo ato
a cortina levantava-se e a plateia podia observar uma reprodução quase
exata da pintura de Greuze, L’accorde de Village, que estava em exposição
Robson Corrêa de Camargo | 217

no Louvre (Bergman, 1960, p. 218). A tentativa de reprodução foi tão forte


na montagem desta peça que Arlequin teria abandonado seu traje habitual
para participar do tableaux, inserido na peça como se fosse pintura. Como
vemos há muitas debilidades no levantamento histórico das performances
teatrais.
Outra cena que gostaria de descrever, nesta tentativa de desvela-
mento do melodrama em seu espetáculo, agora o início do terceiro e
último ato de Coelina. Episódio importante pelo espetáculo da tempestade
ao seu início, anunciando o provável desastre por acontecer, mas também
por ser o pano de fundo do solilóquio da fuga de Truguellin que acontece,
a seguir. Neste gênero os vilões são talvez as personagens mais interessan-
tes e difíceis de interpretar, as únicas que podem carregar e modificar a
ação e sua moral. Tinham de cativar a atenção da plateia e criar, ao mesmo
tempo, alguma reprimida simpatia para com ele, se de outra forma fosse,
o vilão transmitiria todo seu potencial dramático em sua primeira entrada
e não subsistiria a todo o espetáculo, mas ele deve se disfarçar, esconder
seus verdadeiros objetivos. Antes de mais nada, o ator que o interpretasse
deveria evitar o clichê do vilão e, ao mesmo tempo, ter uma presença cê-
nica acentuada que valorizasse as personagens que estavam sendo
submetidas a seus desígnios.
Vejamos a cena:

Ato III
Acte Troisième

O teatro representa um lugar selvagem, conhecido pelo nome de montanha do Nant-d’Ar-


pennaz; ao fundo entre dois rochedos, num lugar bem elevado, há uma ponte de madeira,
ao lado desta, há um corredeira que atravessa a cena, vindo passar por detrás de um moi-
nho, colocado à direita no segundo plano. A porta do moinho dá de frente aos bastidores,
suas janelas dão de frente à plateia; há um banco de pedras perto da janela

Le théâtre représente un lieu sauvage, connu sous le nom de montagne du Nant-d'Arpen-


naz; dans le fond [, entre deux rochers très-élevés,l est un pont de bois, au-dessous duquel
se précipite un torrent [écumeux,] qui [traverse le théâtre et] vient passer derrière un
218 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

moulin, placé à droite [au second plan]; la porte du moulin fait face à la coulisse, et les
croisées sont vis-à-vis des spectateurs; il y a un banc de pierre au-dessous des croisées

(…)

Durante o entreato, uma tormenta começa a acontecer. A tempestade aumenta. Ao levan-


tarem-se as cortinas, toda a natureza parece em desordem. Raios caem em todas as partes.
A corredeira aumenta o volume de água. Os ventos são fortes, ruidosos, a chuva cai brutal-
mente e os golpes de trovão se repetem cada vez mais fortes, multiplicando-se com o eco
das montanhas, trazendo um terror profundo dentro da alma.

Pendant l'entr'acte on entend le bruit [éloigné] du tonnerre [; bientôt l'orage augmente, et


au lever du rideau toute la nature paroît en désordre; les éclairs brillent de toutes parts, le
torrent roule avec fureur, les vents mugissent, la pluie tombe avec fracas, et des coups de
tonnerre multipliés qui se répètent cent fois, par l'écho des montagnes, portent l'épou-
vante et la terreur dans l'âme].

CENA PRIMEIRA

TRUGUELIN, disfarçado de camponês.


TRUGUELIN, déguisé en paysan.

Chega com um ar perdido,


percorrendo a cena enlouquecido.
Il arrive avec un air égaré,
et parcourt le théâtre comme un insensé.

Para onde fugir?… Para onde carregar minha humilhação e meus remorsos? Caminhando
desde a madrugada por estas montanhas, procuro em vão um refúgio onde possa tirar
minha alma deste suplício… Eu não posso descobrir uma gruta tão obscura, uma caverna
tão profunda para enterrar meus crimes. Sob estas roupas grosseiras, tornei-me desconhe-
cido aos olhos mais penetrantes, eu traí a mim mesmo e arrastando-me na terra, minha
face perdeu a cor, eu respondo tremendo as perguntas a mim dirigidas. – Toda a natureza
reuniu-se para me acusar... Palavras terríveis atordoam sem cessar os meus ouvidos: de-
tenham o assassino! Vingança! Vingança!… – (Ao escutar seu próprio eco, Truguelin volta-
se com terror.) Oh! Sou eu? E aquela voz ameaçadora?….céus!… O que estou vendo?… este
lugar… estas rochas… esta corredeira… é ali.. ali.. que minha mão criminosa fez brotar o
sangue de um infeliz… Oh, terra! Abra-se!.. abismo, dentro de seu seio, um monstro, in-
digno de estar vivendo… Oh, meu Deus! Você que de há muito me conhece… veja meus
Robson Corrêa de Camargo | 219

remorsos, meu arrependimento sincero… despeje sobre mim um bálsamo consolador…


Páre, miserável! Não ultraje mais os céus com estas preces!… Traga consolo para si
mesmo!… Este favor só pode ser reservado a inocentes, você não sentirá este gosto jamais.
A desonra… As lágrimas… O patíbulo… espero que você encontre a sorte… da qual não
poderá escapar. (Ele cai abatido sobre um banco de pedras e diz com uma voz penetrante).
Ah! Se eles soubessem que ele está por cessar sua virtude, seria muito pouca malvadeza
vsita sobre a terra (absorve-se em seus pensamentos). (durante toda esta cena, a tempes-
tade deve continuar)

Où fuir?... où porter ma honte et mes remords? Errant depuis le matin dans ces montagnes,
je cherche en vain un asile, qui puisse dérober ma tête au supplice... Je n'ai point trouvé
d'antre assez obscur, de caverne assez profonde pour ensevelir mes crimes. Sous ces habits
grossiers, rendu méconnoissable à l'oeil le plus pénétrant, je me trahis moi-même, et bais-
sant vers la terre mon front décoloré, je ne réponds qu'en tremblant aux questions qu'on
m'adresse. – Il me semble que tout, dans la nature, se réunit pour m'accuser... – Ces mots
terribles retentissent sans cesse à mon oreille: Point de repos pour l'assassin! vengeance!
vengeance!... – (On entend résonner l'écho. Truguelin se retourne avec effroi.) Où suis-je?
et quelle voix menaçante?... Ciel!... que vois-je?... ce pont... ces rochers... ce torrent... c'est
là... là... que ma main criminelle versa le sang d'un infortuné... [O terre! entr'ouvre-toi!...
abîme, dans ton sein, un monstre, indigne de la vie...] O mon Dieu! toi que j'ai si longtems
méconnu... vois mes remords, mon repentir sincère... [verse sur moi ce baume consola-
teur...] Arrête, misérable! et n'outrage plus le ciel [par de telles prières!...] Des consolations
à toi!... cette faveur n'est réservée qu'à l'innocent, tu ne la goûteras jamais. [La honte...] les
larmes... l'échafaud... voilà le sort qui t'attend... et auquel tu ne pourras échapper. (Il tombe
anéanti sur un banc [de rocher, et ajoute d'une voix pénétrée].) Ah! si l'on savoit ce qu'il en
coûte pour cesser d'être vertueux, on verroit bien peu de méchans sur la terre. (Il est absorbé
dans ses réflexions.) (Pendant cette scéne, l’orage a continué.)

Esse solilóquio evidencia que a grande cena de Truguellin tem mo-


mentos de autopunição, de diálogo e conflito interior, de um possível
arrependimento, de uma mente dividida, de um animal acuado. As cenas
posteriores mostrarão que ele não mudou em nada sua natureza, pois na
sua fuga ameaça novamente de morte a Francisque: “Se você fizer algum
movimento, te matarei”, e também joga na correnteza um dos arqueiros
que o perseguiam.
Mostrando a constante e rápida troca de humor entre as cenas, neste
tipo de peça teatral, imediatamente, após a cena da tempestade, irá surgir
220 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

na ponte o alegre moleiro Michaud que chegará cantando em cena. A troca


não é imediata. A cena de Michaud acontece em progressão, pois este, des-
conhecendo o disfarçado Truguellin dar-lhe-á esconderijo e comida. A
cena acontece, como uma fusão do estado de espírito do acuado e ansioso
Truguellin com a felicidade do feliz e cantante e moleiro, estabelecendo-
se uma união do andamento alegre da cena de Michaud com a cena ante-
rior da natureza em tormenta. Como pode ser percebido, o melodrama
procurava na encenação o terreno da ambiguidade e não o da dicotomia.
Vejamos a entrada do cantante moleiro, alegre na tempestade.

CENA II SCENE II
TRUGUELIN, MICHAUD.
MICHAUD aparece na ponte, ele chega cantando.
MICHAUD paroît sur le pont; il arrive en chantant.

Melodia
Air (de Toberne)

Durante todo o dia, eu trabalho.


Com o sol sobre a cabeça
Dos trovões, não tenho medo;
Com a tempestade, eu me alegro,
Que bravo amigo é o perigo.
Franco, feliz e generoso,
Eu temo apenas a morte;
Este dia só deve ser temido
Pelos que algum crime cometeram.

Pendant le jour, je bêche.


La foudre sur ma tête
Gronde sans m'effrayer;
Je ris de la tempête,
Et brave le danger.
Franc, joyeux, charitable,
Je crains peu le trépas;
Ce jour n'est redoutable
Que pour les scélérats.
Robson Corrêa de Camargo | 221

Infelizmente, não vamos nos deter em todos os elementos desta im-


portante obra dramática, mas, já que falamos de melodrama, finalizemos
com a grande festa e dança final que contrasta com o início perturbador
do terceiro ato, ou como já disse Brockett, o desenrolar do duplo final desse
melodrama. No final, a dança acaba em um quadro grotesco, mas apoteó-
tico. É importante que se saiba que esta anotação final “quadro grotesco”,
pertence aos manuscritos para a encenação e foi retirada para a publicação
de 1841. O texto final, após afirmar que “não se deve acobertar nenhum
crime, pois cedo ou tarde será descoberto”, pede a compaixão da plateia,
porque afinal de contas todos podem cair no mau caminho, por azar do
destino. A dança e a música servem para amarrar o espetáculo em gran
finale. Escutemos ou melhor, leiamos um pouco a apresentação:

FARIBOLE
Em boa hora…Eu gosto das bodas, eu gosto.
Se dança, se canta e depois esta é uma ocasião
de mostrar nossos talentos nestas festas.
Ah! E por falar em festas,
espero que se ache umas horas a mais e um malvado a menos,
esta é a hora de termos mais alegria.
M. Doufour está muito cansado e quer
voltar à sua casa em Sallenche, não é verdade?
Antes que ele responda, Michaud vai nos cantar
uma canção de roda. Hum! Que dizem vocês?

A la bonne heure... [j'aime les nôces, moi.


On danse, on chante, et puis c'est une occasion
de montrer ses petits talens pour les cérémonies.]
Mais [, parbleu, à propos de cérémonies,]
puisque voilà un méchant de moins et des heureux de plus,
c'est bien le cas ou jamais de nous réjouir.
M. Dufour est trop fatigué pour retourner
de suite à Sallenche;
pas vrai, monsieur?
Pendant qu'il va se reposer,
le père Michaud nous chantera une ronde.
222 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Hein! qu'en dites-vous?

TODOS.
TOUS.

Sim… sim
Oui... oui...

FARIBOLE.

Vamos, Michaud qualquer coisa alegre.


Allons, père Michaud, quelque chose de joli.

MICHAUD.

Então, vamos lá.


M'y voilà.

(Todos dançam e repetem o refrão.)


(Tout le monde danse en répétant le refrein)

RODA.
RONDE
Air (melodia): Un rigodon1, zig, zag, don, don.

Vocês vêem, meus caros amigos,


Inutilmente tenta-se acobertar,
Os crimes que alguém cometeu
Mas cedo ou tarde, ele será descoberto.
Sejamos bons, francos e virtuosos;
Façamos as pessoas felizes;
E, então, dancemos alegre
Le rigodon

Vous le voyez, mes chers amis,


De l'ombre en vain l'on couvre,
Les crimes que l'on a commis;

1
Rigodon ou Rigaudon: melodia e dança de origem provençal em dois tempos de movimento vivo.
Robson Corrêa de Camargo | 223

Tôt ou tard ça s'découvre.


Soyons bons, francs, vertueux;
Faisons souvent des heureux;
Alors gaîment on danse
Le rigodon

Zig, zag, don, don.


Nada ajuda mais a cadência,
Que uma grande e boa ação.
Zig, zag, don, don.

Zig, zag, don, don.


Rien n'échauff' la cadence
Comme un' bonne action.
Zig, zag, don, don.

Não empurremos mais ao pobre;


Que nos pinta a sua desgraça;
Com um revés, um acidente,
Podemos acabar em seu lugar.

Ne r'poussons jamais l'indigent


Qui nous peint sa disgrâce;
Demain un r'vers, un accident,
Peut nous mettre à sa place.

Sejamos sempre generosos;


Quando alguém comete um erro.
Coloque mais alegria na sua dança
O rigodon
Zig, zag, don, don.
Nada ajuda mais a cadência
Que uma grande e boa ação.
Soyons toujours généreux;
Quand on a fait un heureux,
Bien plus gaîment on danse
Le rigodon
Zig, zag, don, don,
Rien n'échauff' la cadence
224 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Comme un' bonne action.

Muitas pessoas crêem achar a felicidade


Apenas no seio da riqueza;
Mas ela estará apenas na paz do coração
Sem isso não há alegria
Nos campos nossos desejos se realizam.
Um vê e faz os outros felizes;
Toda a tarde e noite todos dançam
O rigodon
Zig, zag, don, don.
Nada ajuda mais a cadência,
Que uma grande e boa ação.

Bien des gens croyent trouver l'bonheur


Au sein de la richesse;
Mais il n'est qu'dans la paix du coeur,
Sans ça point d'allégresse.
Aux champs tout comble nos voeux;
On voit, on fait des heureux;
Soir et matin l'on danse
Le rigodon
Zig, zag, don, don,
Rien n'échauff' la cadence
Comme un' bonne action.

(Se forma um quadro grotesco e a cortina cai)

F I M DE COELINA

Antes que se despeça definitivamente de Coelina, observe a impor-


tância da dança na representação deste melodrama. Há dois momentos
em que a dança aparece, neste ato final e no ballet do segundo ato, quando
a festa é interrompida bruscamente.
Para constar, Brockett considera que a dança melodramática com-
põe-se do drame lyrique e da híbrida pantomime dialogue (Brockett, 1959,
p. 154). O autor citado descreve que os teatros parisinos tinham em seu
corpo profissional um mestre de ballet que treinava, coreografava e
Robson Corrêa de Camargo | 225

supervisionava a execução do corpo de baile. Os três teatros de bulevar em


que Pixérécourt apresentava suas peças usualmente, Ambigu-Comique,
Gaîté e Porte Saint-Martin, tinham um corpo de baile permanente.
Em 1816, Brockett contabilizou no corpo de baile do Ambigu 18 mem-
bros e 6 dançarinos principais, além de 19 estudantes; o Gaîté agrupava 6
dançarinos principais, 14 membros e 11 crianças; a companhia do Porte
Saint Martin tinha 8 dançarinos principais, 26 membros e 13 crianças
(Brockett, 1959, p. 155-156). Entre as muitas funções dramáticas, o coro de
dançarinos compunha um contraste dramático, preparando ou ressal-
tando a cena de revelação ou de maior tensão que viria, a seguir.
Brockett destaca que o melodrama urgia que suas cenas ocorressem
em local público ou, pelo menos, em um lugar onde muita gente tivesse
acesso, como uma festa. Outra das funções de composição cênica, que faria
inveja aos futuros naturalistas, era a construção ou reconstrução de locais
distantes no espaço ou no tempo.
Pixérécourt, ao escrever seus dramas, realizava uma intensa investi-
gação histórica para dar um sabor local às suas peças e estas pesquisas,
muitas vezes, eram editadas com os textos, o que ressalta a importância
da ilusão de representação, autenticidade ou cópia da locação “original”.
Montagens de textos como Christophe Colombe e Robinson Crusoé vinham
com cenários montados em cenas caribenhas e os movimentos dos dança-
rinos eram realizados respeitando-se aqueles de seus locais de origem
(suivant l’usage de leur pays) como afirma Pixérécourt em sua obra. Os
programas ou edições de suas obras vinham como de costume com suas
bibliografias, sustentando a autenticidade “naturalista” da representação,
seja dos cenários, dos gestos ou das marcações (Pixérécourt, 1841-1843,
Theatre Choissi II, p. 197).
O historicismo e a preocupação de reconstrução dos lugares inóspi-
tos, certamente, serviram de inspiração aos naturalistas que povoaram o
teatro já ao final do século XIX, mas eles apenas repetiam Pixérécourt.
Coelina é um dos poucos melodramas que tem sua ação centrada na
França, embora em lugar ermo, não sendo uma peça urbana. Estes
226 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

distintos locais procurados pela diversidade melodramática exigiram tam-


bém uma cor diferente em relação aos ritmos utilizados, valsas, fandangos,
quadrilhas, etc.; assim como em relação aos movimentos de grupo, que
poderiam incluir briga de espadas, marchas, danças de sabre realizadas
por bandidos tártaros, malabarismos. Com o advento do drama român-
tico, nesta tendência de economia crescente do gestual, a dança terá seu
papel diminuído dentro da representação, senão eliminada (Brockett,
1959, p. 160-161).

A manufatura do melodrama

Rahill chama o processo de criação do melodrama de a manufatura


do melodrama (Rahill, 1967 p. 171). Apesar da precisão desse termo, que
compreende o melodrama como parte integrante da sociedade que se in-
dustrializava, Rahill usa-o apenas ironicamente, pois o descreve como uma
adaptação, citando que, para fazer um melodrama, o autor tinha “apenas”
que dispor o material achado em um romance, balada, história ou artigo
de jornal, colocando-o dentro da moldagem do melodrama. Eis sua receita
ou moldagem: “Uma quantidade de personagens de repertório, uma trama
desenvolvida numa sequência de incidentes excitantes, alternando o tema
de perseguição com canções e momentos de alívio, muita moralidade e um
final, no qual a justiça é contemplada”. Uma critica que poderia ser dirigida
a todos os musicais que traçaram o largo caminho da Broadway, dentro e
fora.
Embora esta seja uma maneira esquemática de ver o melodrama, fa-
zendo-o depender muito mais da execução desta suposta receita que da
mistura dos ingredientes e da qualidade criativa do cozinheiro, ela nos
ajuda a relacionar alguns dos elementos que estão presentes no gênero.
Trata-se de uma análise formal, e como tal não explica a profundidade do
fenômeno e o melodrama em seu movimento.
Este reconhecimento como “fórmula pré-fabricada” envolve determi-
nada crítica ao melodrama até os dias de hoje, carrega muito do
Robson Corrêa de Camargo | 227

preconceito geral que atinge certos gêneros e ganha força quando parecem
chegar a determinado nível de exaustão estética.
Entre os responsáveis por esta campanha de detratar o “velho” me-
lodrama, simplificar e reduzir seu conteúdo a uma fórmula esquemática,
estão certamente os precursores das escolas que imediatamente o suce-
dem, utilizando-se dos exemplos infelizes do gênero para postular
aspectos de sua nova estética. Booth traz outro exemplo desse procedi-
mento crítico ao publicar os comentários de Owen Davis sobre o popular
melodrama norte-americano.
Nas primeiras décadas do século XX, Davis tenta equacionar uma fór-
mula para que dramaturgos escrevam melodramas, como se fosse apenas
isto:

Ao invés de se evitar o óbvio, você deve insistir sobre ele, do primeiro ao último
minuto e a todo o tempo. Você deve progredir diretamente numa escala as-
cendente de emoções. O herói deve ser reconhecido na primeira entrada. Nada
deve ser deixado para ser inferido. É quase indispensável que ele colida com o
vilão nos primeiros dois minutos depois de sua entrada. Da mesma forma que
o comediante deve conseguir risadas do público assim que pisar o palco. Ao
invés de perseguir a heroína com alguma coisa abstrata como a fé, ela deve ser
perseguida por um vilão tangível que se debruça, a fim de cortar o seu pescoço.
Acrescente catástrofe após catástrofe. Quando o herói colocar seus braços pro-
tetores em volta dela no último ato, ela deve estar sendo quase escalpelada
pelos índios, a ponto de ser afogada num moinho, quase atropelada por um
trem, a ponto de ser esfaqueada e baleada pelo vilão (…) A peça só pode ter-
minar quando você explorou exaustivamente cada calamidade. Mas termina
bem, deve sempre terminar bem. E o herói deve permanecer o herói e o vilão
deve morrer, tão desgraçado quanto ele apareceu pela primeira vez (Booth,
1965, p. 15).

Na verdade, esta crítica descritiva mostra apenas suas limitações ao


não perceber o fenômeno melodramático em sua complexidade. Estas ca-
racterísticas redutoras do melodrama, apontadas por Davis, necessitam
ser comentadas, pois foram utilizadas para denegrir o valor do melo-
drama, dando um caráter demasiadamente simplista ao gênero. Mesmo
Michael Booth, um dos grandes pesquisadores e defensores do gênero,
228 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

aceita esta generalização como verdadeira para todo o melodrama (Booth,


1965, p.15).
A respeito da repetição cabe ressaltar que esta é uma intromissão do
procedimento cômico no terreno do drama, agora sobre outra forma, já
que a comédia utiliza e necessita também da repetição para atingir seu
efeito, mas nem por isto seria menor, como acontecem muitas vezes com
os vaudevilles de Georges Feydeau (1862-1921). O melodrama também o
emprega, não para efeito cômico na maioria dos casos, mas, para subli-
nhar seu caráter dramático ou trágico, o que faz emergir esta característica
estranha de tragédia incompleta ou forçada. A repetição é também utili-
zada no drama, como a fuga de Édipo de seu destino ou a busca da verdade
em Hamlet, ou as feiticeiras em Macbeth com as constantes aparições e
repetições de suas premonições, mas a repetição nas formas cômicas é
procedimento quase obrigatório.
O herói, o vilão, o comediante e todas as personagens do melodrama
devem ser reconhecidos ao pisar a cena no primeiro momento. No en-
tanto, isto não significa a representação de uma caricatura, mas, a
necessidade de uma forte presença cênica por parte do ator de um teatro
para três mil espectadores, muito influenciado pela pantomima, que não
deve deixar nada para ser inferido. Como um ator de vaudeville ou cômico,
ele precisa agradar e mostrar sua potencialidade no primeiro minuto.
O fato exige atores desenvolvidos na arte de conquista e manutenção
da atenção da plateia durante toda a peça, plenos de presença cênica. Uma
interpretação apoiada em clichês irá apenas esvaziar o sentido do melo-
drama e irritar a plateia e, como temos visto, os teatros eram enormes e
as apresentações teatrais na Inglaterra podiam durar até seis horas.
Havia competição pela atenção do público, inclusive, e com o espetá-
culo anterior apresentado no mesmo teatro. O espetáculo melodramático
necessita de uma evolução crescente, de uma técnica apurada com um
rítmo muito bem acentuado e marcado, que traga uma novidade atrás da
outra.
Robson Corrêa de Camargo | 229

Tudo no melodrama é exterior, seus efeitos devem estar aparentes,


suas evoluções, trama, olhares. Ao se adaptar constantemente um ro-
mance ou uma história conhecida, não se podia preocupar apenas com o
suspense do final, cujo desfecho era quase do conhecimento do público. O
que contava era o desenvolvimento da história, e esta precisava ser sus-
tentada por todos os elementos da produção artística melodramática, por
uma interpretação candente e por constantes golpes de surpresa para o
público.
Vamos nos deter um pouco nas condições de trabalho do melodra-
maturgo na Inglaterra. O irlandês Dyonisus Lardner Boursiquot, de nome
artístico Dion Boucicault (1820-1890) é considerado o melhor melodrama-
turgo britânico. No início de sua carreira, em 1844, recebeu trezentos
pounds por London Assurance (A Certeza de Londres), sua primeira comé-
dia de sucesso. Seus trabalhos seguintes baixariam de valor, recebendo
apenas 50 a 100 pounds por texto produzido. Quando Boucicault reclamou
da diferença de pagamento, ouviu do gerente do teatro Adelphi a seguinte
lição de economia melodramática: “porque eu devo pagar quinhentas
pounds por uma peça original que pode falhar, se eu posso ter traduções
de um sucesso assegurado em Paris por apenas vinte e cinco pounds?”
Frente ao peso dos argumentos, Boucicault foi a Paris, fez sua adap-
tação e ganhou seus 25 pounds (Rahill, 1967 p. 175). Mais tarde, o citado
autor lutará na Inglaterra, como havia feito Pixérécourt na França, para
implantar regras mais leais ao trabalho dos autores dramáticos, conse-
guindo seu intento parcialmente, mas só após administrar a montagem de
seu próprio texto, em 1860, com The Colleen Bawn (As Senhoritas Bawn).
O problema da cópia e do tipo de cópia do melodrama francês feito
na Inglaterra pode ser acompanhado pela verificação da adaptação de Co-
elina ao idioma inglês. Vejamos:
230 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Thomas Holcroft e a adaptação de Coelina ou há mais diferenças entre


os melodramas do que sonha nossa vã filosofia

A edição do melodrame A Tale of Mystery de 1802 por Holcroft foi


vendida no teatro por dois shillings, seu texto revela muitas características
da adaptação da peça de Pixérécourt. Em seu prefácio, o autor expressa
um pouco do clima da época. Observemos a utilização do termo drama
para classificar A Tale of Mystery:

Quando multidões concordam em seu sentimento e se simpatizam na emoção,


quando elas se manifestam com semelhante fervor e aplaudem com calorosa
unamidade, o prazer deste elogio torna-se intoxicante. No drama (…), temos
o resultado de uma grande combinação de talentos. (…) Eu não posso esquecer
a ajuda que eu recebi do drama francês, do qual retirei os principais incidentes,
muito dos pensamentos e muito da forma de contar a história. (…) Eu não
posso esquecer os atores, o compositor da música, o cenário e as danças; (…)
Eu estaria tentado a dizer alguma coisa da natureza, dos poderes e dos efeitos
cênicos do Melo-Drame; (…) Outros dramaturgos poderão produzir estes efei-
tos numa forma madura e em estado mais perfeito; e o prazer que eles tiverem
eu estarei muito feliz em compartilhar (Holcroft, 1802).2

Ao encontrar-se com a tradição dramática existente no país de Sha-


kespeare, o texto de Pixérécourt sofrerá mudanças radicais, apesar de a
trama ser muito semelhante. O local dos acontecimentos deslocar-se-á dos
Alpes franceses para a Itália e as dramatis personae, como o autor inglês
chama as personagens, terão nomes bem diferentes. O melodrama inglês
passou a ter um confronto de classes sociais que o original francês não
apresentava. O autor inglês desloca o drama para um conflito de interesses
da família com o rico Conde Romaldi, o novo nome do vilão Truguellin, na
adaptação de Holcroft.

2
When multitudes agree in sentiment, and sympathise in feeling, when they pronounce with equal fervor, and applaud
with unanimous warmth, the enjoyment of such general praise becomes intoxicating. In the Drama (…) are the result
of a great combination of talents. I cannot forget the aid I received form the French Drama, from which the principal
incidents, many of the thoughts, and much of the manner of telling the story, are derived. (…) I can little overlook the
Performers, the Composer of the Music, the Scenery, and the Dances; (…) I should be tempted to say something of the
nature, powers, and scenic effects of the Melo-Drame;(..) Other Dramatic writters will certainly produce these effects
in a much more mature and perfect state; and of the pleasures they yeld I shall be happy to partake.
Robson Corrêa de Camargo | 231

Coelina e a governanta Tiennette tornam-se, respectivamente, Selina


e Fiametta. Monsieur Dufour agora se chamará Bonamo, não havendo
mais nenhum parentesco entre o vilão e Bonamo, este ainda considerado
como tio de Selina no início da peça. Stéphane, filho de Dufour, o par ro-
mântico de Selina, e o mudo Francisco, terão nomes semelhantes,
Stephano e Francisco. Malvoglio, criado do Conde Romaldi, será o novo
nome do criado do vilão, antigo Germain. O signor Montano desempe-
nhará a mesma função dramática do médico Andrevon, sem ser médico.
Michelli será o nome do novo molineiro Michaud. Piero um criado da casa,
dois jardineiros, camponeses, músicos e bailarinos. A cena se passa tam-
bém em Savoy, que agora é um vilarejo na Itália.
Além das personagens, a edição apresenta a música de dr. Busby,
danças dos senhores Bologna, Dubois e Byrne, cenários pelos senhores
Phillips e Lupino. Vestimentas do Senhor Dick e Senhora Egan. O texto de
Holcroft reduziu a peça para dois atos, assim como retirou a sutileza e a
importância da interpretação dos atores no texto de Pixérécourt que ia in-
troduzindo a problemática da peça apoiado nas ações das personagens
envolvidas, dando mais tempo ao jôgo cênico.
Agora os conflitos são relatados imediatamente na versão inglesa,
como se as personagens entrassem para contar o que está por acontecer.
Na primeira cena, a governanta já chega dizendo que tem péssimas notí-
cias, porque o conde Romaldi chega querendo casar seu filho com Selina,
porque esta é uma rica herdeira.
O problema familiar torna-se de toda a vila, pois o conde é temido
“por toda a vila de Savoy”. No original francês, o vilão irá revelando aos
poucos seus atributos; na inglesa, já na sétima fala de Fiameta ela afirma
que “toda a vila teme o poder do conde”. Esta é uma enorme mudança,
pois Holcroft não busca pormenores, detalhes, mas, sim, expõe todos os
conflitos na fala das personagens e dicotomiza suas ações. Na cena se-
guinte, será Seline quem dirá a Stephano que o conde está por chegar, um
conde “egoísta e violento”.
232 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Na versão de Pixérécourt, o galã iria provocando uma desconfiança


cada vez maior do conde e os propósitos do vilão seriam revelados paula-
tinamente a alguma das personagens. A relação amorosa entre os dois
também é exposta sem vacilações por Holcroft, quando a governanta diz
na primeira cena que o tio sabe que “vocês se amam ardentemente” e que
Selina é “uma rica herdeira”.
As personagens têm aumentadas suas determinações e vontades no
texto inglês. O que foi um lento convencimento do bom e paciente tio Du-
four, no texto inglês torna-se um conflito de interesses, quase um drama
de capa e espada. Observando o diálogo seguinte da governanta com seu
patrão, no qual ela tenta convencê-lo de que não pode colocar o pobre e
mudo Francisco para fora da casa, verifica-se que existe muito menos es-
paço para sutilezas na adaptação inglesa.

Fiam3

Não ele, sua maneira de ser;


porque pobre criatura, ele é mudo.
Mas apenas observe seu olhar triste.
O que é eu não sei,
mas há alguma coisa em seu jeito tão ..
Not he, himself, for certain;
because poor creature he is dumb.
But only observe his sorrowful looks.
What it is I don’t know,
but there is something on his mind so —

Bona

Você é uma tonta!


You are a fool!

3
Sigo a grafia do texto inglês original.
Robson Corrêa de Camargo | 233

Fiam

Tonta ou não.
Eu tenho servido o senhor fielmente por 23 anos;
assim, o senhor pode me colocar
para fora de sua casa, se lhe agrada.

Fool, or not,
I have served you faithfully these three-and-twenty years;
so you may turn me out
of doors at last,
if you please.

Bona

Eu?
I?

Fiam

Sim. Isto mesmo.


Se o senhor colocar Francisco para fora,
eu nunca entrarei aqui novamente.

Yes; for;
if you turn Francisco out,
I’ll never enter them again.

Bona

Você certamente sabe muito


mais sobre a vida deste homem
do que aparenta!
You centainly know more,
concerning this man?

Fiam

Já que precisa ser dito, sim, eu sei.


Since it must be told, I do.
234 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Bona.

Then speak.
Então, fale!

Fiam.

É uma grande tragédia!


It is quite a tragedy!

(Holcroft, 1802, p. 5)

(…)

As mudanças ocorridas na adaptação do texto francês ao inglês po-


dem ser vistas em outras cenas, como na primeira entrada em cena do
mudo Francisco, na primeira parte da peça em seu encontro com Bonamo.
Francisco vai descrever o que aconteceu com ele, escrevendo em um papel
suas palavras que serão lidas por Stephano, mas alguns de seus diálogos
serão feitos totalmente por mímica e esta será traduzida por Fiametta. Ve-
jamos parte da cena:

Bona

(…) diga somente a verdade.


(…) be strict to the truth.

Fran
(com dignidade aponta para o céu e seu coração.)
(with dignity points to heaven and his heart.)

Bona

Quem é você?
How are you?
Robson Corrêa de Camargo | 235

Fran.

(escreve; e STEPHANO de pé atrás dele pega o papel e lê as respostas.)


(writes; and STEPHANO, standing behind him, takes up the paper and read the an-
swears.)

“Um nobre Romano!


“A noble Roman!”

Bona.

Sua família?
Family?

Fran.
(dá um repentino sinal de recusa e escreve.)
(gives a sudden sign of Forbear! and writes.)

“Não deve ser conhecida”.


“Must not be know”.

Bona.
Por quê?
Why?

Fran.

“Está desgraçada.”
“It is disgraced.”

Bona

Por você?
By you?

Fran
(gesticulates)
(gesticula)
236 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Fiam
(interpreting)
(interpretando)

Não, não e não!


No, no, no!

(…)
Bona

Você conhece os traidores?


Do you know the traitors?

Fran
(gesticula)
(gesticulates)

Fiam
(com raiva)
(eagerly)

Ele sabe! Ele sabe!


He does! He does!

Fran

“Os mesmos que me esfaquearam no meio das rochas!


“The same who stabbed me among the rocks.”

(Uma expressão geral de horror)


(A general expression of horror)

Bona

Diga o nome deles


Name then.

Fran
(gesticula violentamente, expressando dolorosa lembrança; então, escreve)
(gesticulates violenty, denoting painful recollection ; then writes.)
Robson Corrêa de Camargo | 237

“Nunca”.
“Never!”

(…)

Bona

São eles ricos?


Are they rich?

Fran

“Ricos e poderosos.”
“Rich and powerful.”

Bona

Surpreendente! Sua recusa em dizer os nomes


parece muito suspeita. Eu devo saber mais:
diga-me tudo ou saia de minha casa.

Astonishing! Your refusal to name them


gives strange suspicious.
I must know more:
tell me all, or quit my house.

(Music to express pain and disorder.)


(Música para expressar dor e confusão.)

(Holcroft, 1802, p. 8-9)

De modo geral, as intromissões musicais e bem descritivas no texto


de Holcroft são inúmeras, ao passo que no texto de Pixérécourt eram pou-
cas, pois este, o criador do original, obviamente escreveu o texto que
encenava.
O texto de Holcroft objetiva a encenação baseada no espetáculo visto
na França, o que faz com que o texto inglês esteja repleto de anotações que
refletem ou tentam a incorporação ao texto da encenação francesa, com
238 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

contribuições da direção, dos atores e dos músicos, mesmo com as mu-


danças que ocorreram na representação/adaptação inglesa.
Holcroft modifica o texto que viu representado, seu ponto de partida
é a representação de um texto com o qual dialoga. Esta cena citada anteri-
ormente, por meio dos diálogos de Bonamo, Stephano, Fiametta e
Francisco torna evidente o procedimento. No texto de Pixérécourt não há
tantos detalhes escritos sobre a forma de interpretar. No entanto, no in-
glês, os textos gesticulados de Francisco devem ser “enfaticamente”
interpretados por Fiametta, quando o autor acrescenta “interpretando” ou
“com raiva” nas didascálias do texto.
O texto de Holcroft é repleto destas indicações, o que não ocorre na
escrita de Pixérécourt, a música entra inúmeras vezes no texto, com indi-
cações como música “confusa” ou alarmante, ou ameaçadora, ou rápida,
mas, “meio piano”, indicações que não existem no texto francês. Ao
mesmo tempo, aborda a descrição das ações físicas das personagens como:
Selina (numa voz baixa), Romaldi (retornando seus olhares ameaçadores),
Bonamo (sai com olhar de suspeita. Música de dúvida e terror). Mesmo a
dança que é apenas mencionada no texto de Pixérécourt, no texto inglês
será cuidadosamente descrita. Vejamos:

(Aqui começa a dança que deve ser alegre, cômica e de estilo grotesco; com
gestos e atitudes cômicas, imitando os montanheses, os cabritos que eles pos-
suem, etc., ou seja, a dança cheia do humor dos camponeses italianos. No meio
desta festa, o relógio bate e a música cessa. A música seguinte inspira alarme
e tristeza.)

(Here the dancing, which should be of the gay, comic, and grotesque kind; with
droll attitudes, gesticulations, and bounds, in imitations of the mountaineers,
the goats they keep, etc.. that is, the humorous dancing os the italian peasants.
In the midst of the rejoicing the clock strikes; the dancing suddenly ceases; the
changing music inpires alarm and dismay (Holcroft, 1802, p. 29).

A cena da fuga do Conde Romaldi em seu encontro com o moleiro


Michelli, cuja versão francesa transcrevi no capítulo sobre o melodrama
Robson Corrêa de Camargo | 239

francês, será totalmente reduzida no texto de Holcroft, como pode-se per-


ceber.

Entra Romaldi vindo das rochas,


disfarçado como camponês, aterrorizado,
como se fosse perseguido por céus e terra.
Enter Romaldi from the rocks,
disguised like a peasant, with terror;
pursued as it were by heaven and earth.

Rom

Para onde, fugir? Onde me abrigar da perseguição, da morte e da


desonra? Minha hora chegou? Os amigos que me tentaram agora me di-
famam (trovão mortal). Os céus lançam seus raios contra mim! Protejam-
me! Me amparem! Oh! Me amparem! (cai no banco)

Whither fly? Where shield me from pursuit, and death, and


ignominy? My hour is come? The friends that tempted now
tear me. (dreadful thunder). The heavens shoot their fires
at me! Save! Spare! Oh spare me! (falls on the bank).

Música, granizo, etc. continuam; depois de uma pausa, ele levanta


sua cabeça. Outros trovões perigosos são ouvidos e novamente ele
esconde sua cabeça. A tempestade gradualmente termina. Pausa
na música. Uma voz distante é ouvida. [Ola!] A música continua.
Ele se levanta parcialmente, corre de um lado para o outro;
olhando e ouvindo. A música cessa. Vozes novamente. [Olá!]

Music, Hail, etc continue; after a pause, he raises his head. More
fearful claps of thunder are heard, and he again falls on his face.
The storm gradually abates. Pause in the music. A very distant
voice is heard [Holla!] Music continues. He half rises, starts, and
runs from side to side; looking and listening. Music ceases. Voice
again. [Hola!]

Rom
240 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Eles estão atrás de mim! Alguém me denuncia! Nenhuma caverna,


nenhum buraco onde me esconder! (Olha para o caminho que ele veio).
Eu não posso retornar por ali. Eu não posso. É um lugar coberto de san-
gue! Um irmão roubado e desgraçado. “Este é o seu sangue do qual estou
coberto” Oh! Alí! Alí, eu conseguirei um abrigo! Debaixo daquelas pedras!
Oh, isto deve dar certo! Cubra-me terra! Cubra meus crimes! Cubra minha
vergonha! (cai sem movimento novamente).

They are after me! Some one points me out! No den, no cave, can hide me!
(looks the way he came) I cannot return that way. I cannot. It is the place of
blood! A robbed and wretched brother! ‘Tis his blood, by which I am covered!
Ay! There! There have I been driver for shelter! Under those very rocks! Oh,
that they would oper! Cover me earth! Cover my crimes! Cover my shame!
(falls motionless again).

Música de doloroso remorso; depois muda para uma alegre pastoral, etc.
Music of painful remorse; then changes to the chearful pastorale, etc.

(Holcroft, 1802, p. 42-3)


(…)

A cena final será uma das que sofrerão mudanças radicais, porque
termina na captura e quase morte do vilão, não havendo o correspondente
da versão francesa ou do final da dança e a canção moralizante em que
todos se engajam, a cena da roda, com a melodia do rigodon. Embora tudo
acabe bem para algumas personagens, não existe o duplo final do texto de
Pixérécourt, com um final alegre após o outro trágico. Ao invés, teremos
uma grande cena de luta e perseguição de Romaldi, com várias ameaças
de morte e autosacrifício:

(…)

Romaldi aterrorizado sai da casa mostrando sua arma.


Francisco abre seu peito, para que ele atire,
se Romaldi desejar.
Selina fica entre os dois.
Robson Corrêa de Camargo | 241

Toda a cena se passa de forma rápida e misteriosa.


A música pára repentinamente.

Romaldi, in terror, enters from the house presenting his pistol.


Francisco opens his breast for him to shoot, if he pleases.
Selina falls between them.
The whole scene passes in a mysteriour and rapid manner.
Music suddenly stops.

Rom.

Não! Já derramei muito do seu sangue sobre minha cabeça!


Vamos, vingue-se justamente!
Derrame o meu sangue.

No! Too much of your blood is upon my head!


Be justly revenged:
take mine!

A música continua enquanto Romaldi oferece seu revólver; Francisco joga-o


longe e sugere que ele fuja pelo vale. Romaldi mostra que é impossível e corre
sem rumo de um lado para o outro: então, depois da sugestão de Francisco e
Selina vai para a ponte tentando atravessá-la. Encontra–se com um arqueiro,
ele volta; e lutam na ponte. A espada do arqueiro é tomada por Romaldi; que
tentando fugir será cercado por outros arqueiros. Romaldi consegue suportar
a luta defendendo-se. Fiametta. Bonamo, Stephano, Montano e camponeses
seguem os arqueiros. Francisco e Selina, em grande agitação muitas vezes in-
tercedem na luta colocando-se entre os arqueiros e Romaldi tentando ajudá-
lo. Quando os combatentes descem a montanha, Romaldi escorrega e cai.
Francisco entra na sua frente, impedindo que o atinjam. Neste momento, to-
das os personagens principais estão à frente do palco. Os arqueiros estão
preparados para atirar seus arcos e usar seus sabres; imediatamete, Francisco
e Selina protegem ainda mais Rimaldi. Os arqueiros hesitam por um mo-
mento; Francisco protege seu irmão. A música para.

Music continues as Romaldi offers his pistol; which Francisco throws to a dis-
tance, and intreats him to fly by the valley. Romaldi signifies the impossibility,
and runs distractedly from side to side: then, after Francisco and Selina in-
treaties, ascends to cross the bridge. Met at the edge of the hill by an Archer:
242 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

He is driven back; they struggle on the bridge. The Archer’s sword take by
Romaldi; who, again attempting fight, is again met by several Archers.
Romaldi maintains a retreating fight. Fiametta. Bonamo, Stephano, Montano,
and Peasants follow the Archers. Francisco and Selina, in the greatest agita-
tion, several times throw themselves between the assailants and Romaldi.
When the combatants have descendent the hill, Romaldi foot slips, he falls, and
Francisco intervenes to guard his body. By this time all the principal characters
are near the front. The Archers appear prepared to shoot, and strike with their
sabres; when the entreatis and efforts of Francisco and Selina are renewed. The
Archers forbear for a moment; and Francisco shieldes his brother. The music
ceases.

Sel.

Oh, parem!
Deixe que a virtude de meu pai seja oferecida
em troca dos erros de meu tio.
Oh, forbear! Let my father’s virtues plead
for my uncle’s errors!

Bon.

Nós todos pedimos misericórdia;


pois clemência é tudo que necessitamos:
por seu próprio bem e pelo nosso,
que sua liberdade seja concedida!
We all will intreat for mercy;
since of mercy we all have need :
for his sake, and for our own,
may it be freely granted!

A cortina cai vagarosamente e música solene.


The Curtain falls slow and solemn music.

FINIS

(Holcroft, 1802, p. 49-51)


Robson Corrêa de Camargo | 243

Como pode ser percebido, o vilão inglês será perdoado, graças à mise-
ricórdia de seu irmão e sobrinha, ao passo que no texto francês aquele irá
para a cadeia. A adaptação de Holcroft esquematiza muito os conflitos. Es-
tamos frente a uma redução artística do trabalho de Pixérécourt, duas
vertentes que mostram o quanto o talento dos artistas envolvidos influencia
o produto final. Não são assim todos os melodramas ingleses, mas, aqui ve-
mos como ocorrem a simplificação e a esquematização que se aponta em
alguns melodramas.
Segundo Brocket, o estilo de interpretação no século XVIII fundamen-
tava-se em uma mistura de tradição com renovação. As personagens e suas
respectivas interpretações eram passadas de uma geração a outra, mas no-
vas formas ou concepções de personagens ou formas de pronunciar o texto
eram não apenas bem-vindas como causavam sensação. Havia variações en-
tre a busca de uma formalização da personagem e do realismo (Brockett,
1999, p. 257). Certamente, a formalização desse realismo era limitada pela
compreensão do que era real, pela habilidade da representação desse real de
cada época, em particular, pela capacidade de percepção do público e pelos
meios técnicos que estavam nas mãos dos artistas.
Não apenas a pantomima e o melodrama moldaram o gesto do ator em
ponto maior, mas também a tradição de interpretação da tragédia. Esta era
considerada maior que a própria vida, portanto, a atuação procurava ser
mais extremada que o comportamento cotidiano. Booth descreve que tanto
na voz, no gesto, na atitute e na expressão facial o ator trágico concebia sua
arte como ideal, universalizando a experiência e o sofrimento humano.
A natureza pictórica e composicional na arte de encenação e da inter-
pretação incluía, na arte do ator, a transformação em imagem do sentimento
da personagem para que a plateia melhor o entendesse. Assim, a voz e o
corpo do ator compunham-se gestualmente quase como uma escultura.
Desde o século XVI, os próprios manuais de interpretação orientavam os
atores e atrizes a estudar a estatuária grega para a graciosidade das atitudes
e as expressões extremadas de paixão (Booth, 1991, p. 120).
244 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Ao que parece, esta tradição de forte tendência gestual no teatro inglês


vinha desde os tempos da produção shakespeareana, ao redor de 1600, o
que evidencia que a preocupação com a gestualidade não vinha apenas da
relação com a pantomima.
Grose aponta também que, pela ausência de quietude da plateia, muito
da entrega física dos atores era baseada no gesto e em largos movimentos
que foram certamente influenciados pelas técnicas da commedia dell arte e
pela pantomima. Mas aqui está sendo mostrado que esta gestualidade ex-
cessiva, para os padrões atuais, não era motivada apenas pela atitude
importuna da platéía. Na realização do fenômeno teatral, podemos ver que
esta atitude padronizada, silenciosa da plateia inglesa parece ser um fenô-
meno do século XX, o que mostra a mudança de qualidade a que se
submeteu o espetáculo teatral nessa época. Como os diálogos, os movimen-
tos também eram rápidos para sustentar o domínio da representação sobre
a plateia (Grose & Kenworthy, 1985, p. 215-216).
A partir de 1640, nota-se uma mudança, pois um teatro cortesão irá
tentar outra forma e seus atores procuram se aproximar dos gestos utiliza-
dos no cotidiano da corte, ou seja, uma mimésis da gestualidade cortesã com
gestos limitados e estilizados, em consonância com o praticado pela pequena
plateia real (Grose & Kenworthy,1985, p. 239-240). Inicia-se a conformação
de que a gestualidade excessiva seria plebéia e, portanto, deveria ser evitada.
Durante o século XVIII, Grose aponta uma coexistência dos estilos in-
terpretativos que oscilavam entre o “shakespeareano”, que considera
“exagerado” e o “natural cortesão” que dependia muito da característica dos
atores e das peças a serem apresentadas. Tentavam, os atores, representar
o que consideravam a realidade gestual ou “natural” da vida da corte (Grose
& Kenworthy, 1985, p. 348).
Dentro desse panorama, podemos entender melhor uma das técnicas
de composição gestual do melodrama que era chamada point, que pode ser
traduzido ao português por “momento” e processava-se como um congela-
mento de ação.
Robson Corrêa de Camargo | 245

O point dava-se quando uma determinada ação física ou emocional in-


tensa era por alguns segundos mantida numa atitude fixa ou quadro
(tableau). Booth descreve-a como um momento interpretativo que seria
uma individualização do tableau que finalizava os atos do melodrama, se-
gundo ele, mais antigo que o próprio tableau. Estes “momentos” eram
usualmente realizados no centro do palco, o mais perto possível da plateia e
dirigidos, tanto à audiência como ao ator que contracenava o diálogo.
Esta paralisação da interpretação levava a uma consciência da lingua-
gem para a audiência, pois interrompia o fluxo “natural” de representação,
o correspondente à pausa de tensão da música. Era um efeito teatral de alto
caráter dramático, um tipo teatral de slow motion, que teria se transpôsto
ao cinema. Se caminharmos mais de cem anos no tempo e nos dirigirmos a
um momento da encenação de Mãe Coragem de Brecht, mais especifica-
mente, naquela famosa cena do grito mudo da personagem-título, silenciosa
ao saber da morte do filho, mas realizando a gestualidade de um quadro
expressionista de Edvard Munch (1863-1944), poderemos entender muito
do teatro de Brecht, do melodrama e de sua relação, sem os preconceitos
que o tempo nos trouxe. O grito mudo de Brecht nada mais é do que a plena
utilização do point ou do tableau, como técnica ou momento de interpreta-
ção e ou encenação. Mãe Coragem nada mais é que um puro e bom
melodrama envelhecido, com quase 150 anos de idade, os efeitos de estra-
nhamento de seu teatro muito se fundamentam na tradição da arte teatral
popular e do melodrama, em especial4.
No século XIX, a forma de interpretação corrente era mais presentaci-
onal, ou melhor, o centro da atuação estava concentrado na presença cênica
mais que na construção psicológica, havendo mesmo a prática de se falar
mais à audiência do que à personagem ao lado. Nem a Psicologia nem o te-
atro sabiam ainda dos sonhos inconscientes dos pacientes de Freud, o
indivíduo e a personagem eram construídos no processo coerente de indivi-
duação.

4
Esta característica nos foi pontuada nos bancos escolares da Universidade, tese defendida por J. Guinsburg (1974).
246 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

O subtexto, no sentido de outra vontade ou contra-vontade ao que se


estava dizendo, não pertencia à plataforma de interpretação do século XIX.
No melodrama, as personagens urdiam uma direção constante na constru-
ção ou afirmação de sua personalidade e de suas ações. Pode ser dito que a
afirmação integral do indivíduo regia não apenas a concepção de mundo do-
minante, mas as técnicas de interpretação e ação da personagem, que
buscavam a sua unidade. Se a dialética marxista irá escrever suas contradi-
ções apenas em meados do século XIX, no vapor pleno do romantismo, no
anverso hegeliano, será apenas no começo do século XX que Freud irá reve-
lar o interno exterior do homem e seu esfacelamento psíquico.
Assim, o melodrama insere-se na tentativa de construção de todos uni-
tários da cultura contemporânea, o indivíduo, o cidadão, a pátria, a família
e a nação. A contradição como mote individual ou social irá lentamente in-
troduzir-se ao final do século XIX, questionando estas unidades construídas.
O melodrama é a plena certeza do indivíduo e de seus valores como produto
coerente das forças sociais. Força moral ao qual havia de se submeter ou se
antepor, não poderia haver meios termos. Ao final do século XX, o melo-
drama teatral se apossará da desconstrução da personagem, como
mostraremos com o Melodrama de Enrique Diaz e Felipe Miguez espalhando
em cacos a personagem do drama.
A quarta parede construída no naturalismo, ao mesmo tempo em que
a iluminação, desenvolvia um papel cada vez maior e centralizador da ence-
nação, esta retirou da plateia a função de espectadora consciente da
representação melodramática e partícipe de seus jogos e efeitos teatrais. O
melodrama, ao contrário, procurava o diálogo constante com a plateia e exi-
bia seus efeitos e achados, um drama sem paredes que afirma e saborea seu
domínio dos artifícios da linguagem. Se o homem se espantava com a má-
quina, no melodrama ele via seu domínio e sua potencialidade. Um processo
referente aos efeitos achados, como um mágico que tem prazer ao mostrar
seus truques e sua habilidade em construí-los e, ao mostrá-los, se mostra.
Outro aspecto teatral que necessita ser acrescentado, para que se en-
tenda o melodrama e suas traduções no século XIX: é a estrutura fixa de
Robson Corrêa de Camargo | 247

muitas das companhias de repertório (stock company). Estas tinham um


elenco formado com base em atores especialistas em determinado tipo de
interpretação: um primeiro ator galã (leading man), uma primeira atriz (le-
ading woman), um primeiro ator jovem (juvenil lead), um ator de
características trágicas (heavy man), um comediante, um ator e uma atriz
mais velhos e a criada (soubrette).
Como se percebe, havia uma boa diferença entre as características in-
dividuais de cada ator, o que significava que as peças escritas para esse tipo
de companhia deviam adequar-se às características desses elencos, como o
próprio melodrama. Isto significava que no palco haveria um ator especiali-
zado em um papel cômico e outro no trágico; este último, geralmente,
desempenhava o papel de vilão. Ou seja, havia uma diferença entre o estilo
de representação de um mesmo elenco, na mesma peça, baseado não apenas
nas diferenças individuais de cada ator, mas também em sua especialidade,
como ator de personagem cômico ou trágico.
Certamente, muitas das adaptações e traduções do melodrama esta-
vam sendo realizadas com o objetivo de adequar o texto a esta estratificação
da companhia que iria representá-lo.
No começo do século XX, o declínio do melodrama teatral está em certa
medida relacionado também com o progressivo desaparecimento desta
forma de companhia e de seu respectivo estilo de interpretação. Haverá um
grande numero delas que se dirigirá ao cinema mudo. A evolução do modo
de interpretação, que vai ocorrer no final do século XIX e início do XX, apon-
tava para a formação de companhias de arte que buscavam um ator
genérico, menos especializado, inadequado à interpretação dessas persona-
gens-tipo e aberto a um estilo de interpretação e de representação mais
variado. O ator especialista cede lugar ao ator que deveria poder desempe-
nhar possibilidades múltiplas de interpretação.
Uma ida mais ao leste, fora da velha Londres, ao leste asiático, pode
nos ajudar a apurar nosso olhar para o melodrama. Booth traz uma contri-
buição muito peculiar nesse sentido, ao relacionar a semelhança do estilo
interpretativo do melodrama ao mie do kabuki (Booth, 1991 p. 125).
248 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

No kabuki, as personagens são formadas por convenção, tipos, seus


gestos são bem marcados e muito exagerados, mais que as do melodrama.
O mie é uma dos momentos das sequências (katas) do Kabuki, nelas o ator
designa um momento extraemocional em que congela em certa posição por
um determinado período e não necessariamente breve no tempo.
O ator distorce a face, podendo mesmo cruzar seus olhos, enquanto
outro ator tsuke, vagarosamente, dá três batidas. O gesto ou pose marcada
do mie acontece para sublinhar o momento em que o equilíbrio entre o sen-
timento interior e o comportamento externo da personagem não podem
mais ser mantidos e a paixão, raiva, desespero, loucura ou violência vêm à
tona.
Várias vezes, o mie pode ser acontecer em uma representação e, tam-
bém, ao mesmo tempo, quando um conjunto de personagens atinge esse
estado no mesmo momento. Um efeito que domina a representação, como
se o espetáculo parasse numa ação concreta e coerente com a história, para
dizer, vejam como é bonito o que se está fazendo, uma auto-afirmação da
técnica e do efeito teatral.
Na época de industrialização acelerada, o homem orgulhava-se da téc-
nica que descobria. Muito diferente do discurso cênico que será imposto ao
final do século XIX, que procurará esconder a prática dos efeitos, a ilusão da
teatralidade, colocando o público como quem olha um buraco de fechadura,
ausente da cena. Assim, o melodrama é consciente de sua técnica e faz ques-
tão de mostrá-la, como as atrizes do velho império romando que tiravam
sua roupa.
É importante salientar que o público do melodrama é parte atuante do
espetáculo e está constantemente sendo requisitado, por meio de apartes,
dos tableaux, da construção da música do espetáculo que busca envolvê-lo.
O naturalismo abre as portas de seus teatros, maravilhado com a cópia fo-
tográfica, para dizer ao público, faça de conta que não está presente. O
melodrama, como um híbrido tragicômico, incorpora os elementos da co-
média e abre seus momentos de sentimento e paixão para serem
compartilhados com a plateia. Algo como o riso na comédia, que é a
Robson Corrêa de Camargo | 249

participação do público dentro do espetáculo, quando às vezes ralenta-se o


espetáculo para esperar a diminuição do riso do público.
Aproximar o teatro kabuki japonês com o melodrama é um exercício
muito interessante, conforme existem paralelos enormes entre estas duas
formas de espetáculo. No kabuki, como no melodrama, inexiste linha sepa-
ratória clara entre as formas e momentos cômicos ou sérios; sua
representação era de longa duração (8 a 12 horas), dividida entre várias pe-
ças de estilos distintos: um drama histórico, dança com forte apelo
emocional, um drama doméstico, terminando com uma peça cômica.
A interpretação do kabuki, como do melodrama, possui elementos de
uma postura estudada, convencional e exagerada, em um ponto maior que
a realidade cotidiana vivida pelo público. A música também é parte funda-
mental do Kabuki. As personagens seguem uma estratificação tipificada ou,
para usar um termo do século XX, são personagens arquetípicas e onde o
cenário exerce função funcional mas, ao mesmo tempo, decorativa.
No Ocidente, ninguém ousaria chamar o kabuki de ultrapassado, su-
perficial e exagerado, embora ele apresenta muitas das características de
nosso melodrama. Assim, reverenciamos o estranho, mas não nosso pas-
sado.
Existe certo vício de análise, quando as formas de interpretação dos
atores desse tipo de teatro são examinadas. As personagens que compõem
esta tradição teatral têm sua origem na comédia grega, e não podem ser
compreendidas como pertencentes a um esquema de uma personagem in-
completa.
Em seu trabalho sobre o teatro de revista brasileiro, Veneziano aborda
bem esta questão, ao afirmar que as personagens-tipo do teatro de revista
não são esquematizadas ou simplificadas, são máscaras sociais (Veneziano,
1991, p.122).
A dimensão humana das personagens do teatro de revista, do melo-
drama, da farsa, está na sua estilização do “ideal” homem comum. Esta
personagem é colocada na tridimensionalidade teatral, entronizada no
corpo do ator. Desse modo, seu calcanhar de Aquiles será a interpretação,
250 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

pois um bom ator desenvolverá a personagem e um ator “de segunda classe”


impediria sua completa existência, não conseguindo superar o “esquema-
tismo”. O processo pode ser entendido ao escutarmos o ponto de vista de
um dos mestres do teatro no século XX: Konstantin Stanislavski (1863-
1938).
Em outubro de 1927, este grande teórico da arte de interpretação des-
crevia seu ponto de vista sobre a tarefa do ator na arte de interpretação do
melodrama. Segundo ele, um ator de segunda classe não pode atuar no me-
lodrama, porque este vai exigir muito dele. “Um ator de segunda classe, sem
uma personalidade viva, não terá nada a adicionar ao seu papel. Isto é por-
que o nascimento do melodrama teve uma dependência direta da
participação de atores excepcionais e com cenários muito elaborados” (Ge-
rould, 1980 p. 89).
Esta forma de representação pode ser chamada de presença cênica,
pois compreende a percepção do momento teatral, a consciência do jogo
com a plateia, seu desenvolvimento físico-vocal e o ritmo da peça que está
sendo desenvolvida no palco. O melodrama não finge que não é teatro, e esta
qualidade na interpretação sempre foi fundamental nessa escola de inter-
pretação, que vem da pantomima e da commedia dell’arte, indo até o teatro
de revista, o music-hall e o vaudeville, e depois invadindo outras midias.
O domínio da técnica de interpretação, importante na relação palco-
plateia, era a alavanca da intepretação melodramática no melodrama. Sta-
nislavski descreve esse processo da relação do ator no melodrama de
maneira apaixonada:

Quando se representa um melodrama não pode haver frieza ou apatia no teatro.


Na noite da representação, tudo deve ser extraordinário e inesperado. Assim, o
espectador ficará eletrificado por antecedência e umas poucas fagulhas serão su-
ficientes para excitá-lo assim que a criatividade e a inspiração começarem a
tomar lugar no palco. Isto é, portanto, outra maneira do ator adquirir um sonoro
método criativo. O melodrama não tolera nenhuma convencionalidade (Ge-
rould, 1980, p. 89).
Robson Corrêa de Camargo | 251

Além de explicitar a relação do melodrama com a interpretação, estas


citações de Stanislavski ajudam a compreender a relação do melodrama com
a noção de real ou natural percebida pela plateia e presente nos palcos da
época.
Como sabemos, os defensores da nova linguagem teatral surgida no
final do século XIX, atacavam a prática teatral da época como antinatural.
Por isso, temos o naturalismo como novo gênero, negando o inatural da re-
presentação e da forma teatral dominante, que era basicamente a do
melodrama. O naturalismo foi uma arte de vanguarda em seu tempo.
Stanislavski ao auxiliar justamente a montagem de um melodrama na
União das Repúblicas Soviéticas Socialistas, em 1927, descreve a seus colegas
do Teatro Popular de Arte de Moscou que o fundamental no melodrama era
justamente a noção de realidade5, pois “tudo o que acontece no palco a pla-
teia deve acreditar inevitavelmente como se fosse na vida real”. Assim, para
o ator russo, o jogo a ser conseguido é o da realidade. O melodrama não
devia ser visto como uma teatralização e, para o ator e diretor russo, o con-
vencionalismo teatral seria a antítese do melodrama (Gerould, 1980, p. 89).
Como estamos vendo, foi precisamente ao contrário.
No entanto, talvez a melhor síntese desta discussão seja relatada pelo
ator francês Charles Dullin (1885-1949), tanto Stanislavski como Dullin fo-
ram atores que discutiram a tradição interpretativa dos palcos do final do
século XIX. Dullin, um dos renovadores da forma de interpretação dos clás-
sicos e do ator, preocupava-se fundamentalmente com a verdade cênica,
descreve suas dificuldades como ator em relação ao realismo teatral:

Gostaria que somente as lágrimas verdadeiras pudessem transformar uma pla-


teia (...) infelizmente, vi chorar lágrimas verdadeiras, vi o ator empalidecer,
sofrer na carne, levado por uma sinceridade absoluta e o público permanecer
insensível. Um histrião que o seguia, macaqueando a dor, deixava a plateia trans-
tornada. Custou-me muito tempo para aceitar essa humilhação. Foi preciso que
eu me desse conta de que o sucesso do histrião vinha do fato de que ele execu-
tava, por falta de sinceridade, uma ampliação necessária ao teatro, que

5
Grifo meu.
252 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

proporcionava não a dor, porém a máscara da dor e que atuando com exagero
estava no verdadeiro (Brooks, 1976, p. xi).

Este paradoxo da interpretação do ator, com o excesso que atinge o


verdadeiro, já tinha sido resolvido pelo melodrama, gênero da ampliação
teatral que buscava a máscara da dor e do riso, atuando com exagero. Não
podemos confundir a forma gestual interpretativa que parece excessiva no
melodrama, com sua busca pelo verdadeiro, que tem a ver mais com o do-
mínio de determinada técnica de interpretação do que com a cópia e vivência
da realidade por parte do ator.
Nitidamente, podemos perceber nesse quase diálogo, entre Dullin e
Stanislavski, que a noção de realidade teatral para ambos era bem mais am-
pla do que fazem crer alguns de seus seguidores nos dias de hoje. Na
evolução do código melodramático, ele construiu-se não apenas como inter-
gênero, mas, sobretudo baseado em ambivalências. Intervenções múltiplas
de vários gêneros e culturas em sua amalgamada estrutura determinaram
sua forma ambivalente (Bakhtin), seja pela intersecção da tragédia e comé-
dia em suas entranhas ou com outras formas de linguagem teatral, como
vimos e mesmo com a linguagem de massa que adentrou o século XIX.
Ao mesmo tempo em que o melodrama teatral dezenoveano enfatizava
progressivamente seu realismo cênico e “sua noção de realidade”, tensio-
nava cada vez mais seus efeitos teatrais. Isto criou um paradoxo na
linguagem6 do melodrama, o que é natural, já que o teatro é o palco e a
plateia dos paradoxos, conforme ressalta Diderot.
O melodrama tornava-se cada vez mais naturalista e, ao mesmo
tempo, cada vez mais teatralista na busca dos seus efeitos cênicos. Este pro-
cesso abriu caminho ou mesmo gerou o naturalismo, em um processo de
diálogo dessas duas formas ou, para dizer de outra maneira, o naturalismo
do final do século XIX surge tentando resolver a contradição paradoxal do
melodrama e da arte teatral, negando ou extirpando “excessivos” elementos
vistos como teatrais em sua forma “melodramática”. Excessivos dentro de

6
Linguagem como genérico sistema de signos.
Robson Corrêa de Camargo | 253

uma nova percepção que se construía da realidade em cena, naquela nova


idade da razão ou da razão em sua nova idade. O naturalismo é assim, em
certa forma, um melodrama sem os seus “excessos”, adaptado às novas con-
venções do real em seu processo de encenação e aos novos temas de seu
novo tempo.
Ao final do século XIX, o naturalismo é mais uma tentativa de adequa-
ção da linguagem teatral à nova percepção da plateia do que deveria ser a
representação da realidade no palco. Para o naturalismo, a questão central
é como poderia ser construída uma noção intensa de corte da realidade com
o drama. Com o advento do cinema e de sua majestosa construção do real,
o naturalismo teatral explodiria sua curta vida nos cacos do simbolismo, do
futurismo e do modernismo, num processo de autocrítica constante, pela
impossibilidade plena na construção artística da ilusão do real com a manu-
fatura teatral. As fotografias projetadas em movimento na tela
cinematográfica construíram novos limítes de percepção e empurraram a
linguagem dramática a abrir distintos caminhos.
Ao mesmo tempo em que o melodrama buscava um envolvimento sen-
timental da plateia e isto estava estritamente vinculado à noção de
realidade compartilhada pelos contemporâneos, sua gestualidade estudada,
sua montagem espetacular, seus quadros ou tableaux, seus momentos de
interpretação emudecidos, sua relação de justaposição entre tragédia e co-
média, a pantomima e a dança levavam a uma acentuada elaboração de seu
código linguístico ou cênico.
A elaboração ou prolongamento de seu momento interpretativo fez
com que se estabelecesse um atrito entre o drama que estava sendo mos-
trado e a realidade representada. Este conflito de procedimentos acarretou
um processo de estranhamento cênico ou choque entre os elementos que
aportavam na linguagem melodramática.
Ao estimular o paroxismo dos efeitos teatrais em seu público, o melo-
drama torna-se o primeiro gênero teatral da idade das máquinas com plena
consciência e elaboração da relação espetacular a ser estabelecida com seu
público. O fato das peças do melodrama apresentarem-se de 400 a mais de
254 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

1.000 vezes, por mais de um ano, e a necessidade de repetição, exportação e


tradução de seus desempenhos foram fundamentais nesse processo. Isto era
novo na história do teatro.
Brooks, analisando o melodrama francês, afirma que este produziu um
estilo coerente de teatro como diversão, ao abranger amplas camadas sociais
e conseguindo “uma autoconsciência de seus efeitos e de seus significados”,
e isto serve para todo o melodrama produzido no século XIX (Brooks, 1976,
p. xii), seja ou não francês.
Esta autoconsciência ajuda a entender muito do teatro do século XX,
pois com base na constituição desta teatralidade é que se constituíram as
grandes correntes teatrais neste século. Essas procuraram o efeito teatral,
separando-se completamente da tentativa de mímese com o real. Tanto o
dadaísmo como o surrealismo, o futurismo, as propostas de Meyerhold e do
teatro brechtiano, o teatro do absurdo, entre outros, formaram-se buscando
reverter, por excesso, síntese ou parcimônia, a relação paradoxal de valores
entre os efeitos da linguagem teatral e do realismo do representado, relação
esta iniciada, ou melhor, bem desenvolvida pelo melodrama.
No século XIX, o novo público teatral que emergia, não era intelectual
nem sofisticado no conhecimento da cultura grecoclássica. Como um idioma
popular reconhecido, o melodrama veio a ser a conformação de um ser tea-
tral poliforme, mutante, amoral, cujo foco de esplendor era a manipulação
dos recursos sensórios que atraíssem as amplas massas.
Apesar da violência, dos desastres naturais, o mundo do melodrama
não é trágico nem depressivo. Para Booth “o mundo em desarmonia é ape-
nas um prelúdio à felicidade e apoteose da virtude” (1965, p. 14).
O crítico Jacó Guinsburg considera o melodrama como um gênero de
transição de formas, de diálogo, de “composição do cômico com o trágico”.7
Este processo evolui desde Sófocles e Eurípedes, manifestando-se completa-
mente como gênero, quando o melodrama emerge como forma extremada
dos elementos dramáticos, como cruzamento da comédia lacrimosa com o

7
Conversa com o crítico em dezoito de novembro de 1999.
Robson Corrêa de Camargo | 255

drama burguês ou um subproduto dos dois. O melodrama é uma tragico-


média com um final sério e outro alegre, onde se sobrepõem e dialogam
estes estilos, o que é claramente oposto à norma clássica.
Assim, ao mesmo tempo, posso concordar e contradizer dois conheci-
dos motes do ator melodramático William Gillette (1853-1937), um dos
importantes atores ingleses de sua época, conhecido por sua adaptação e
interpretação dos romances de Conan Doyle (1859-1930), da série Sherlock
Holmes, interpretando a personagem-título.
Gillette comentava sobre o gênero, no início do século XX, aquilo que
tento provar durante todo este trabalho: “a única certeza que eu tenho é de
que melodrama não é drama com música” (Rahill, 1967, p. 120). Entretanto,
Gillette acrescentava em outro: “Ninguém que eu conheça ou tenha ouvido
falar parece saber aquilo que o melodrama realmente é (…) e somente um
tolo poderia tentar uma definição” (Rahill, 1967, p. xiii).8
Como um grande tolo posso dizer a você, que conseguiu seguir nossa
história até este ponto, e que aguarda ansiosamente pelos últimos capítulos
deste drama do melodrama: o melodrama trazia ao século XIX, na sua pro-
dução e na relação estabelecida com a plateia, uma realidade teatral muito
mais dinâmica que as precedentes e sua natureza, constituída de múltiplas
ambivalências, solicitava uma nova classificação que contivesse, na medida
do possível, toda a sua contraditória, flexível e híbrida dinâmica. O melo-
drama solicitava, para sua profunda análise, novos instrumentos ainda não
elaborados pela crítica dramática. Mas isto é matéria para os próximos ca-
pítulos que você irá certamente ler. Vejamos o que os formalistas e o
encenador Stanislavski tiveram a dizer sobre a nossa personagem central.

8
No one that I ever met or heard of has appeared to know what melodrama really is (…) that only a fool would
attempt a finition.”
4

O melodrama no império dos sovietes:


Stanislavski e os formalistas russos

Conhecer a flor é
tornar-se flor,
ser flor,
florescer flor
e deleitar-se tanto com o sol
como com a chuva...

Suzuki, D. Zen Budismo e Psicanálise. SP: Cultrix, 1979.

Ao chegar a uma das últimas estações de nossa viagem pelos cami-


nhos sinuosos do melodrama, vamos nos deslocar para a Rússia no tempo
dos sovietes. Tão longe e tão perto, vamos observar que o melodrama é
também o gênero das revoluções sociais, pré e pós, ou, talvez, seria melhor
dizer que as revoluções necessitam de seu melodrama. Por contraste, po-
deremos verificar formas mais particulares de configuração de nossa
personagem principal.
Os detalhados contornos do melodrama, como espetáculo e interpre-
tação, poderão ser percebidos pelos ensaios do mais conhecido teórico e
prático teatral russo Stanislavski e nas reflexões práticas daqueles que pre-
pararam, no terreno da arte, um contra-discurso: os formalistas. Tão
longe, tão perto, os russos, com seu apego, admiração e ausência de ceri-
mônia com a cultura popular, ajudar-nos-ão a desvendar melhor a saga
melodramática. Ressalte-se que estes dois trabalhos dão uma visão densa
sobre o fenômeno do melodrama como performance, mais que toda a sua
critica anterior e posterior.
Robson Corrêa de Camargo | 257

Durante todo o século XIX, na Rússia, em sua intensa vida teatral,


o melodrama esteve sempre presente em seus palcos. Este fenômeno, com
o processo dinâmico proporcionado pela Revolução de Outubro, trouxe
junto a mais importante reflexão a respeito dos desígnios do melodrama.
A atividade teatral melodramática foi intensa no início século XX e, sobre-
tudo, durante o vigoroso período revolucionário de 1917-29, quando
surgiram distintas proposições e estilos de teatro profissional, que irão de
Stanislavski a Meierhold, seu protegido, do espetáculo teatral tradicional
às monumentais festas-espetáculo comemorativas, realizadas com cente-
nas de atores por Evreinov (1879-1953) , o carnavalesco da Revolução
Russa e outros. Surgem ainda dezenas de milhares de grupos dramáticos
nas usinas, escolas e grêmios distintos, formados, em especial, por ama-
dores. Estes grupos amadores e profissionais exerciam uma prática teatral
com as massas, usando o melodrama como um de seus principais estilos.
Como descreve Silvana Garcia:

No repertório dos inúmeros grupos que atuam excursionando pelas cidades e


fronts, convivem o melodrama – agora tingido de vermelho pela mensagem
comunista; as montagens de textos e poesias e todas as versões imagináveis
de manifestações corais (recitação, canto e dança); os esquetes e as cenas cur-
tas inspiradas no cabaré literário e nas tradições do Teatro de Feira [...]
(Garcia, 1987, p. 22) (grifos meus).

Ressalte-se que este mesmo panorama, com alguns ajustes, poderia


ser constatado na Republica de Weimar (CAMARGO, 2009). Estas diversas
manifestações teatrais tinham um grande suporte dos dirigentes do estado
soviético da época. Em 4 de julho de 1923, Trotsky escrevia no Pravda que
a luta necessária contra o "burocratismo estatal" aliava-se a outras tarefas
fundamentais: "à reconstrução econômica e à elevação do nível cultural
das massas".
Para o líder soviético, o espetáculo, teatral ou o cinematográfico, de-
via desempenhar um papel importante no esforço para tirar o trabalhador,
tanto da bebida como do ritual religioso, ou seja, tratava-se de armar o
258 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

ritual dionisíaco-teatral e, mais ainda, o poder educativo do teatro contra


o “ópio” da bebida e da religião. Vejamos brevemente seus argumentos:

A afeição dos homens ao teatro – ver e ouvir algo novo brilhante, que os tire
do ordinário – é muito forte, indestrutível e insaciável desde a infância até a
idade avançada. Para que as amplas massas renunciem ao formalismo, ao ri-
tual da vida diária, não basta propaganda anti-religiosa. (Trotsky, 1978, p. 126-
127).

Em 1927, a montagem do melodrama aqui exposta pelo Teatro de


Arte de Moscou (TAM) não reconstruía um gênero esquecido e superado
pela história, mas um sucesso presente e marcante na história teatral russa
e sobretudo nos tempos pós-revolucionários. Vejamos outros exemplos,
para que se entenda seu entorno.
O melodrama não era novo mesmo para o TAM, pois, antes da revo-
lução de 1917, em 1914, a companhia encenou uma adaptação de Charles
Dickens (1812-1870) The Cricket on the Earth (O Cricket na Terra) adap-
tado e dirigido por Boris Sulerzhitski, e apresentado no primeiro estúdio
do Teatro de Arte de Moscou. Nos papéis principais, estavam Leopold Su-
lerzhitsky como comendador, Mikhail Checov que, após a metade da
década de 1920, tornar-se-ia um dos grandes divulgadores do método de
interpretação de Stanislavski nos Estados Unidos da América (EUA), no
papel de Caleb Plummer e Evgenii Vakhtangov, um dos importantes dire-
tores de teatro russo, interpretando Tackleton. Esta produção manteve-se
como uma das mais populares do TAM, um teatro de repertório, até 1920,
viajando por toda a União da Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e
muitos países da Europa (Gerould, 1980, p.77-78).
O melodrama estava tão em voga na Rússia pós-revolução que, em
janeiro de 1919, o Comissário da Educação (um cargo que equivaleria ao
de ministro), Anatoli Lunatcharski (1875-1933) publica um artigo de muita
repercussão: “Que espécie de melodrama nós precisamos?” Em suas li-
nhas escrevia que o melodrama como teatro seria superior a outros
Robson Corrêa de Camargo | 259

gêneros dramáticos1 porque, atenção, era “livre do retrato quase fotográ-


fico da vida cotidiana” e das “minúcias psicológicas” que não funcionam
no palco e requerem uma “transição pronunciada de um teatro para as
massas para um teatro intimista”.
Para Lunatharski, o melodramaturgo necessita tomar partido contra
e a favor, e não apenas o melodrama, mas o mundo precisava ser polari-
zado, pois, “ao menos quando escreve” , o dramaturgo deveria colocar de
lado dúvidas e ceticismos, porque o palco não é lugar para isso. O ministro
terminava mencionando ser o melodrama superior ao drama simbolista e
à tragédia (Gerould, 1980, p.78-79).
A inteligentzia russa sempre teve fascínio pelo melodrama. Em 1908
o grande romancista Gorki achava que o gênero apontava “a futura dire-
ção do teatro russo”. Em 1910, em uma carta ao diretor do Primeiro Studio
do Teatro de Arte de Moscou, Leopold Sulerzhitsky (1872-1916), Gorki vol-
taria a ideia: “Tenho pensado sobre o melodrama, mas um melodrama de
tipo especial. Eu considero o melodrama a mais genuína necessidade de
nosso tempo e da Rússia” (Gerould, 1978a, p. 39).
Esta não era apenas uma forma russa de se apropriar o melodrama,
o fenômeno é mundial, o francês Romain Rolland (1866-1944), ideólogo
do Teatro do Povo (publicado em 1903, Rússia em 1908), afirmou que o
melodrama seria o teatro do futuro e Lunatcharski o considerava “a mais
alta forma de teatro”. Entre os revolucionários, a admiração pelo melo-
drama era tanta que, em 28 de fevereiro de 1919, aparece um artigo em
Zhizn' Iskusstva anunciando um concurso de melodramas, apoiado pela
Seção Teatral do Comissariado da Educação. As regras eram as seguintes:
as peças deveriam ser em quatro atos e a escolha da época histórica e na-
cional seria deixada a cargo dos autores.
Havia certa compreensão maquineísta do melodrama por parte des-
sas autoridades bolcheviques, pois vemos que seu edital exigia, além de
músicas bonitas, coplas rimadas, duetos etc., e que o autor devia deixar

1
Grifos do autor.
260 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

claro e explícito suas “simpatias e antipatias” em relação às personagens.


Entre os jurados, estavam personagens centrais da vida cultural russa,
como Gorki e Lunatcharski (Gerould, 1978a, p. 34).
Infelizmente, o concurso não teve o primeiro prêmio, pois, segundo
seus organizadores, a maioria das peças era “puras descrições da vida co-
tidiana”.
Nesta época, Gorki, que se transformará no principal idealizador do
realismo socialista, não se mostrava impaciente apenas com o realismo,
também, não suportava “peças de propaganda”. O professor e crítico norte
americano Daniel Gerould (1928-2012) destaca que, o período de 1918 a
1928, podia ser considerado a década do melodrama na Rússia (Gerould,
1978a, p. 38- 40). Gorki, Lunatcharki e o poeta Blok haviam tentado for-
mar uma companhia teatral no ano de 1918: o Teatro Dramático do
Bolshoi, que procurava um estilo distante do realista, totalmente melodra-
mático, tendo como slogan "teatro heróico para um povo heróico” e o estilo
de atuação que buscava era grandioso e romântico com gestos largos, ex-
pressivos, falando diretamente às massas sobre tirania e opressão
(Gerould, 1978a, p. 40).
A influência estrangeira e, predominantemente, francesa na arte e no
teatro da Rússia era anterior a existência do melodrama francês e havia
começado na época de Pedro, o Grande (1682-1725), que foi o primeiro
czar a procurar uma conexão com o chamado mundo ocidental. Catarina,
a Grande, Imperatriz da Rússia (1762-96), também realizou um grande
esforço para importar os princípios e práticas do iluminismo europeu e,
assim, a ópera cômica italiana e a francesa tornaram-se o passatempo fa-
vorito das cortes russas. Isto demonstra que, mesmo na Rússia, naqueles
tempos pré-comunicação de massa, os padrões modelares da arte teatral
que se exibiam na França mostravam-se dominantes, o que explica tam-
bém a introdução do melodrama em seus palcos. Lembre-se que o francês
foi o idioma de várias cortes ate princípio do século XX.
A grande tradição teatral russa construiu-se em constante comunica-
ção ou diálogo com as chamadas formas artísticas ocidentais. Esta relação
Robson Corrêa de Camargo | 261

sofreria uma mudança de qualidade no início do século XX, justamente


com a Revolução Russa de 1917, quando a Rússia soviética começaria a
exportar estéticas, normas e produtos artísticos, período no qual o melo-
drama exerceria um papel central no desenvolvimento do jovem
experimentalismo artístico-soviético.
O melodrama teatral, nascido durante o processo da Revolução Fran-
cesa, encontrou sua idade madura no início do século XX, como parte de
dois processos fundamentais que suportam a arte teatral russa. O pri-
meiro, político, nos dez primeiros anos da Revolução Russa, desenvolveu-
se como parte de um experimentalismo artístico de massas, que tomou de
assalto todas as formas artísticas precedentes, utilizando e reelaborando
velhas e novas formas. Dentre estas, certamente, sobressaíram-se aquelas
que conseguiram estabelecer um diálogo com amplas camadas da popula-
ção. Frente à sua estrutura amalgamada, o melodrama iria amoldar-se
positivamente nesse processo.
O segundo, no desenvolvimento da narrativa, pois seu estilo quase
fantástico e antinaturalista, potencializaria a narrativa cinematográfica em
seus primeiros passos. Esta nova possibilidade técnica de produção colo-
caria o melodrama em diálogo constante com uma massa humana nunca
dantes imaginada. Na década de XX, o cinema mudo foi a tela privilegiada
do melodrama.
Este é o gênero que se desenvolve a partir das revoluções, francesa,
inglesa ou russa, burguesa ou proletária, econômica ou social. Ao ser colo-
cado em constante contato com essas massivas plateias, podemos
acompanhar o desenvolvimento de elementos que o constituem. Como es-
tamos vendo, trata-se de um gênero proteico. Proteico, de Proteu,
Πρωτεύς, nome do deus grego que tinha o dom da premonição, entre-
tanto, Proteu não gosta de contar os acontecimentos que estão por vir,
assim quando algum humano de aproxima ele foge ou se metamorfoseia.
É necessário ser um homem ou mulher corajosos para se aproximar do
deus, e assim ele admite contar a verdade que esta por vir. O melodrama
262 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

é um gênero ou estrutura que se modifica constantemente, em devir, pro-


teico.
Apesar do preconceito de parte da intelectualidade, contrariamente
ao que se pode pensar, as principais figuras do teatro russo e soviético
confrontam-se com o gênero. Ao nos dirigirmos à sua prática cotidiana,
na versão dos palcos e debates públicos moscovitas, poderemos acompa-
nhar melhor a evolução de sua essência e estilo.
Como veremos, no assim chamado mais oriental dos países ociden-
tais o assalto aos céus feito pelos bolcheviques veio trazer sua conta à
tradição melodramática, aprofundando e dinamizando a relação do teatro
e da teatralidade em um tempo de plena formação cinematográfica. Ouso
dizer que o trabalho de Eisenstein (1898-1948) se desenvolve a partir de
um reestruturar das formas melodramáticas. Não à-toa que grandes figu-
ras do cinema mudo, como Chaplin, Buster Keaton, Griffith, fundamentais
no desenvolvimento do cinema, como lugar de ver e ouvir histórias, tive-
ram prévia carreira teatral e experiência melodramática.
O diálogo com a forma melodramática russa dar-se-á também em
um estágio teórico de produção profunda, como veremos, na contribuição
dos chamados formalistas russos, assim como na elaboração da produção
teatral, enquanto duraram os átimos de liberdade no processo da revolu-
ção vermelha, até o pleno estabelecimento do “realismo” absoluto, imposto
pelo terror stalinista na década de 1930.

O ator, o diretor e o leitor do melodrama

Com as anotações dos ensaios realizados por Stanislavski para a


montagem de um melodrama, feitas pelo diretor do espetáculo, Nikolai
Mikhailovich Gorchakov (1898-1958), podemos acompanhar o trabalho de
construção das personagens como foi realizado pelo Teatro de Arte de
Moscou (TAM), uma das principais companhias do século XX.
Assim, pela encenação do melodrama podemos seguir o processo de
tradução para a linguagem oral e tridimensional realizada pelo teatro.
Robson Corrêa de Camargo | 263

Mostrar o processo do melodrama por intermédio da composição dos ato-


res, para que, então, possamos cotejá-lo com as principais questões que
lhe foram imputadas pelos teóricos do melodrama literário. Graças às ano-
tações de ensaio de Gorchakov podemos acompanhar o trabalho de
direção do melodrama na versão Stanislavski.
No período em que Stanislavski auxiliava na montagem do melo-
drama As Irmãs Gérard, apresentado em outubro de 1927, no palco menor
da Teatro de Arte de Moscou, encontramo-nos ainda no final do amplo
processo criativo de busca de formas artísticas “revolucionárias” abertas
desde 1917. Muitas vezes, o processo inspirava-se no melodrama, no teatro
de feira e, mesmo, na exibição de filmes norte-americanos, como veremos,
a seguir.
A partir de 1928, o realismo socialista e o terror introduzem-se na
URSS e, paulatinamente, serão silenciados os caminhos alternativos da
arte e seus pregoeiros, assim como as influências externas, estimuladas
pelo “internacionalismo proletário” serão contidas. Em 1927, a teatrali-
dade melodramática e seu domínio das técnicas do palco ainda eram
permitidos, podendo exercer fascínio público nos teatreiros russos.
Stanislavski ficou conhecido erroneamente como ativador do teatro
emocional e ligado ao teatro naturalista, entretanto, o mestre foi encena-
dor de óperas e peças simbolistas, importante conhecedor e diretor de
operetas, vaudevilles e melodramas. Seu método não é uma construção
cênica do realismo, ao contrário, procurava os fundamentos da arte da in-
terpretação em todas as suas formas. Aqueles que carregam este lugar
comum, estranhariam uma orientação como a dada, em 1925, pelo diretor
russo, durante o ensaio dos atores de Sinitchkin, um vaudeville: “Vocês
devem falar o texto no ritmo da melodia, mas dizê-lo e pronunciá-lo como
no drama, revelando seu relacionamento com as palavras sem emoção”,2
e o sábio encenador concluía: “use a técnica do aparte” (Gorchakov, 1954,
p. 230).

2
Grifos do autor.
264 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Alguns pensariam erroneamente em ser este um momento brechti-


ano do grande diretor, não foi, o aparte era um procedimento comum em
muitos dos gêneros teatrais do século XIX, entre eles, o melodrama 3.
Para a operação que ora realizamos, vamos nos deter no processo de
ensaio do melodrama histórico As Irmãs Gérard, escrito por Vladimir Mass
e dirigido por Nikolai Gorchakov, que é uma adaptação de dois textos, Dois
Órfãos de Adolphe D’Ennery e Eugène Cormon e ainda da versão cinema-
tográfica de D. W. Griffith, Órphans of the Storm (Órfãos da Tempestade)
de 1921, com Lilian e Dorothy Gish nos papéis principais, projetado nas
telas da URSS, em 1925.
Nesta montagem estreada em 29 de outubro de 1927, Stanislavski
será conselheiro e ensaiador dos atores. Mass o autor do texto, famoso
parodista, coloca o centro de sua história em um conflito entre a aristocra-
cia e os famintos e descontentes da França de Luís XV. Na época, jovens
diretores do Teatro de Arte de Moscou estavam começando a realizar pro-
duções próprias, como parte de sua formação. Inicialmente, Gorchakov
pretendia, nesse experimento, transformar esse melodrama em uma peça
“histórico-realista”, eliminando as convenções do melodrama e seu pathos
e incluindo música na representação. Na verdade, tentava evitar as con-
venções do melodrama, frente ao qual Stanislavski opor-se-á
veementemente, dedicando-se a explicitar pacientemente aos diretores as
importantes convenções do gênero.
Para que entendamos uma das discussões que faz pano de fundo a
esta montagem na URSS, o trabalho do cineasta norte-americano, D. W.
Griffith, de 1921, mesmo tendo sido apresentado nos cinemas da URSS,
tinha como objetivo, segundo seu autor-diretor, “ser uma propaganda an-
tibolchevique que mostraria os perigos do governo das massas”.

3 Questiono também este falso part pris de que o teatro brechtiano evitava a emoção no artigo E que nossa emoção
sobreviva... Brecht, Marx e o Tratado Védico Natyasastra, copias em https://periodicos.ufpb.br/index.php/mo-
ringa/article/view/7534 ou em https://www.researchgate.net/publication/318317896_E_QUE_A_NOSSA_
EMOCAO_SOBREVIVA_BRECHT_MARX_E_O_TRATADO_VEDICO_NATYASASTRA_Revista_Moringa_Joao_Pesso
a_Vol_1_n_2_35-43_juldez_de_2010.
Robson Corrêa de Camargo | 265

A encenação de As Irmãs Gérard foi reestruturada em sentido in-


verso, como pró-revolucionária, embora tenha sido criticada como
inapropriada por alguns, não pela história, mas, por ir contra determinada
tradição realista de interpretação. Esta montagem tomou três vezes mais
tempo de preparação que o usual nas produções do TAM, praticamente
um ano. Outro aspecto desse trabalho que nos interessa diretamente é a
intepretação dos atores na construção de cena do melodrama, pois, por
meio dos diálogos estimulados por Stanislavski, ficará clara a estratégica
composição do trabalho do ator em uma peça melodramática.
Ao iniciar o processo de ensaio desse melodrama, Stanislavski chama
os participantes a evitar as armadilhas que podem ser estabelecidas pelo
próprio melodrama, pois estas poderiam dificultar a encenação e o traba-
lho de construção da personagem. A respeito da tentativa de suprimir o
código melodramático da encenação, pretendido inicialmente pelo diretor
Gorchakov, dizia Stanislavski: “É mais diícil libertar um gênero de suas
convenções tradicionais que um ator de seus clichês” (Gorchakov, 1954, p.
282).
Na interpretação desta montagem, o grande obstáculo que poderia
surgir estava implicito, não seriam as convenções do melodrama, mas, o
esquematismo na compreensão do texto e no trabalho do ator com a per-
sonagem no melodrama.
Stanislavski sempre lutava contra qualquer forma de esquematismo
e estas precauções acentuavam-se ao enfrentar um texto melodramático.
Conforme o mestre russo, não podemos entender esquematicamente o
melodrama. Acompanhemos esse processo para perceber a abordagem do
melodrama, do ponto de vista do encenador russo, que era avesso a qual-
quer simplificação.
Esse texto foi encenado aos completar dez anos da Revolução Russa,
não por acaso, sua ação desenvolve-se na Paris também revolucionária de
1789. Conta a história de duas irmãs, Henrietta e Louisa que chegam do
interior em uma carruagem, elas devem encontrar seu tio Martain. Louisa
é cega, mas espera uma operação restauradora de um médico da cidade.
266 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Infelizmente, quando as duas chegam, o tio não estava presente, pois dor-
mia em um quarto no fundo de uma taberna, iniciando-se assim uma série
de contratempos. É noite, Henrietta é raptada, separando-se assim as ir-
mãs. A cega Louisa encontra Tia Frochard, uma mendiga profissional, que
rouba crianças e jovens moças para iniciá-las em sua profissão.
Ao final da peça, começará a Revolução Francesa e a Bastilha será
tomada pelo povo, e todos os nós dramáticos serão desfeitos, com as irmãs
reencontrando-se, Louisa tem sua visão recuperada e Henrietta casa-se
com Roget.
Podemos entender Stanislavski (agora com cerca de 64 anos) por
meio da montagem do melodrama e ainda um pouco de seu processo de
preparação de atores nesse período. O encenador ressaltava, mostrando
sua grande compreensão do melodrama, que era um gênero muito difícil
de encenar, pois o diretor nos ensaios deveria “dirigir a peça para grandes
ideias humanas”, testar tudo e jogar fora o que fosse apenas efeito, o que
poderia pertubar a ideia central. Trabalhem intensamente e “não tenham
medo de erros”, dizia. E, mais importante, segundo seus próprios conse-
lhos, os atores deveriam evitar até o método de trabalho desenvolvido por
ele.4 Caso, tivessem problemas quanto à concentração, ao relacionamento
entre eles ou à correta expressão de seu pensamento, característicos da
preparação stanislavskiana, isto deveria ser trabalhado em ensaios sepa-
rados.
Aqui vemos claramente que o diretor russo compreendia o espetáculo
melodramático como polidimensional. Para Stanislavski, o melodrama
exigia muita “liberdade nos ensaios”, evitando a sistematização comum de
seu trabalho de formação. Os atores e atrizes deveriam ser levados a en-
saiar sem autocontrole. Dizia: “ajude os atores a serem livres nos ensaios,
ajude-os a trabalhar num estado criativo. Para ele era importante que os
atores não fossem colocados em um banco de escola por um minuto se-
quer” (Gorchakov, 1954, p. 283).

4
Grifos do autor.
Robson Corrêa de Camargo | 267

Stanislavski cita que o ator deveria estar presente nos ensaios apenas
para criar seu papel, sendo livres no ensaio e não ser este uma forma
para estudar o método O ator deve usar tanta iniciativa quanto possível.
Coloque os problemas certos e as perguntas certas, mas nunca os ensine,
dizia. Stanislavski sublinhava, falando contra os esquematismos no traba-
lho do ator: “Cada gênero solicita que seja feita uma abordagem especial
do trabalho do diretor com o ator” (Gorchakov, 1954, p. 284). Inicie um
trabalho de exploração com o ator para descobrir como a personagem vive
e o que ela faz na situação diferente, apresentada pelo melodrama. Há que
se notar que o TAM era uma companhia com muitos atores com vasta ex-
periência profissional. Segundo Stanislavski, para cada gênero teatral
deveria haver uma abordagem diferente a ser realizada, não ficando preso
a fórmulas de interpretação que se sobrepusessem a qualquer texto e es-
tilo.
No melodrama “a paixão sincera” deve ser trazida em seu mais alto
nível. Para Stanislavski o melodrama é mais que excesso, é condensação,
agregação.5 Aí pode ser observado o entendimento profundo que o diretor
russo possuia do melodrama, pois perceber-se apenas o melodrama como
um excesso, um ponto que ultrapassa determinada forma representacio-
nal é, por mais que se tente recuperá-lo, na cena ou na análise estética,
uma forma de não captar sua essência.
Aqui, certamente, estou me utilizando do mestre para nos contrapor-
mos, mais uma vez, com as análises que tentam caracterizar o melodrama
como o modo do excesso (Brooks) e entendendo, em seu modo de repre-
sentação teatral, a melhor definição do que é o gênero. Outra questão
importante sobre a encenação do melodrama feita por Stanislavski é a res-
peito do papel do cômico no texto melodramático, o que revela uma das
técnicas composicionais do gênero: “o drama deve tocar as bordas da co-
média levemente e sutilmente”. Isto porque, no melodrama, as cenas

5
Grifos do autor.
268 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

dramáticas invariavelmente se alternam com as da comédia, de outra


forma, “ninguém poderia suportá-lo”.
No melodrama, dizia, os heróis estão sempre sobrepondo dificulda-
des tremendas e sofrendo constantemente. Em 1927, quase uma década
antes da publicação de seu primeiro livro sobre o método de interpretação
(publicado em 1936, nos EUA, versão muito reduzida pelos editores sendo
a edição russa muito modificada publicada em 1938 ano de seu faleci-
mento). O mestre russo já relatava aquilo que tinha sido sempre
importante em seu trabalho, as ações físicas dos atores na estruturação e
composição da personagem do melodrama: “em melodrama, é extrema-
mente importante interpretar nossas ações fisicas verdadeiramente,
expressivamente e interessantemente (…)” (Gorchakov, 1954, p. 300).
Ao buscar desenvolver a interpretação do ator no melodrama Stanis-
lavski descreve um procedimento fundamental para que se compreenda
como desenvolver no palco suas personagens e também seus efeitos cêni-
cos o que, na verdade, se torna a principal questão do melodrama, como
procedimento estético. Primeiro, ressaltava a necessidade de transmitir as
ações das personagens “num caminho inesperado para a plateia (Gorcha-
kov, 1954, p. 300). Mais que um procedimento gestado apenas na história
contada, o mestre russo aponta que este deveria ocorrer também na inter-
pretação, fazendo-o o centro do modus vivendi melodramático. A surpresa
e a mudança constante são assim um aspecto central no modus operante
do melodrama (grifos do autor).
Partindo-se desta compreensão, percebe-se que este modus operante
questiona frontalmente o caráter sem dimensão que poderia ser dado à
personagem, e o esquematismo da representação e da análise crítica que
têm acompanhado muitos estudos sobre o gênero. Uma personagem tipi-
ficada, comum em determinadas formas da comédia e da farsa, muito
dificilmente leva a plateia a um caminho inesperado, ao contrário, ela deve
reificar esta dinâmica e aí está sua graça. Pensemos em Arlequim Servidor
de Dois Amos, Arlequim levará o público para os caminhos tradicionais da
Commedia Dell’ Arte, suas incontáveis trapalhadas. Para me expressar de
Robson Corrêa de Camargo | 269

outra forma, ao contrário, a personagem do melodrama é polidimensional,


construindo-se muitas vezes em direção oposta ao que caracteriza sua di-
nâmica e objetivos. As personagens-tipo do melodrama são elementos que
se estabelecem em contraste com as outras e consigo, na medida em que
mudam a chave de sua interpretação.
Outro elemento importante que o diretor russo desvela, é o procedi-
mento da encenação e da interpretação que se incorporaram ao texto
melodramático, registrado pelas didascálias que descrevem ou sugerem as
ações. Gorchakov conta que, ao ensaiar uma das cenas desse texto – a cena
na qual a personagem Tio Martin é sorrateiramente colocada para dormir
com algum sonífero –, os atores não a conseguiam realizar a contento,
para Stanislavski, isto após ensaiarem repetidamente sem muito sucesso,
procurando seguir as rubricas do texto. Observem com atenção. Ao tentar
auxiliar a resolução desta cena, Stanislavski chama a atenção dos atores
para as indicações da cena: os escritos entre parênteses. Ele revela àqueles
atores soviéticos que esta descrição de como colocar o sonífero no copo do
outro está escrita. registrada porque “os dois atores que interpretaram a
cena originalmente o fizeram tão bem que se acabou tornando parte da
montagem inserida no texto”.
A questão colocada ao leitor-intérprete, segundo Konstantin, é que ao
tentar realizar estas marcações, seguindo apenas o texto, descritivamente,
o ator o fez “de maneira banal” as ações anotadas, tornando-as sem im-
portância. A dificuldade de encená-la devia-se a incompreensão dos atores
daquela cena e não do texto original; eles deveriam achar o jogo adequado
aos dois, na cena. Quando o sonífero deveria ser colocado sem que um dos
atores o veja. Este jogo deve ser claro para a plateia, não sendo apenas uma
marca que uma das personagens tenta iludir a outra, mas com olhares,
desconfianças ou acasos que impeçam a resolução automática do pro-
blema, a dramaturgia silenciosa da cena.
Conforme reporta o diretor russo, em cada teatro que se remontava
o melodrama, o ator deveria compor as suas marcas de maneira particular.
A tradição do melodrama, conforme nos informa Stanislavski, deixa
270 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

completa liberdade ao ator para que ele transmita as ações físicas natural-
mente, mantendo-se dentro da lógica e dos conflitos da peça (Gorchakov,
1954, p. 303). Stanislavski acrescenta a necessidade de muito improviso e
jogo na construção das cenas entre as personagens do melodrama, “não,
necessariamente, seguindo fielmente as rubricas do texto”, pois elas per-
tencem a determinado jogo resultante do trabalho dos atores dentro do
processo de construção de uma encenação prévia, na elaboração de uma
ação física verdadeira pertencente àquela prévia montagem. Na gestuali-
dade e respiração daqueles atores prévios.
Para a reencenação do texto do melodrama, para a recuperação des-
ses momentos estabelecidos pelos atores-encenadores originais, seria
necessária muita improvisação nos ensaios para a reconstrução do texto
espetacular melodramático, o que, na visão de Constantin Stanislavski,
não seria permitido num texto de Ibsen ou Dostoievski.6 No melodrama o
trabalho de construção da gestualidade de cada cena, realizado nos en-
saios, deveria sofreria ainda uma redução ou síntese pelo diretor em sua
fase final, pois na sistematização final, para apresentação do espetáculo à
plateia, o tempo e o diálogo das cenas “devem ser muito rápidos” (Gorcha-
kov, 1954, p. 306). Um tempo de comédia, ou quase de comédia.
O diretor deveria adequar ou buscar na gestualidade dos atores as
ações físicas que melhor se adequassem aos atores daquela nova monta-
gem, na busca da melhor linguagem e jogo cênico do melodrama,
representado com a nova conformação dos atores. Estes deveriam cons-
truir sua cena exercitando-se com o improviso as cenas ou parte delas, não
necessariamente seguindo as rubricas do texto, mas, procurando ações fí-
sicas que fossem verdadeiras. Como podemos perceber, nesta leitura feita
do melodrama pelo encenador russo, a preocupação na montagem e a re-
alização do espetáculo melodramático não era apenas seguir um jogo
esquemático de reconstrução. Ao contrário, temos de volta o procedimento
usual de interpretação nos textos do teatro de feira, que partiam de um

6
Grifos meus
Robson Corrêa de Camargo | 271

esquema a ser desenvolvido mas sendo completado pelos atores em cada


apresentação.
Ao contrário do que se pensa atualmente, como afirma Stanislavski,
o melodrama “não tolera o convencional” (Gorchakov, 1954, p. 306). Me-
lodrama é “vida condensada”, o que o joga no terreno da síntese como
linguagem, dispensando o detalhamento que exigiria, por exemplo, uma
cena naturalista.
A respeito das pausas cênicas, o mie e os tableaux melodramáticos
como apontamos, acrescenta Stanislavski, o diretor deveria permiti-los so-
mente para um verdadeiro efeito e possibilitar este recurso apenas ao ator
que pudesse carregar esta pausa convincentemente. Quando a audiência
vê o melodrama, deve estar absolutamente convencida de que aquilo visto
no palco também poderia acontecer na vida real.
O melodrama enquadra-se em uma preocupação de mimese do real,
caminhando no sentido da síntese e não do detalhamento que iria se con-
formar com o naturalismo e o realismo. Para Stanislavski, “as convenções
teatrais são impossíveis no melodrama”, ou assim, a convenção da tea-
tralidade melodramática realiza-se com a construção da ilusão da
realidade em cena, numa forma sintética e intensa, não permitindo o
romper os limítes da ilusão do real. Sim, também acho que não é fácil.
Conforme Stanislavski cita a plateia necessita acreditar, ver no que se
exibe no palco melodramático, precisa crer que realmente pode acontecer
o mesmo em sua vida cotidiana, só assim será tocada e “rirá ou chorará
sobre qualquer coisa que estiver acontecendo em cena” (Gorchakov, 1954,
p. 306).
É interessante perceber que Stanislavski compreende a construção
do riso melodramático como parte do ensaio e da construção da peça me-
lodramática, embora a clareza de suas ideias e de seu método de trabalho
sempre nos leve a pensar que, os procedimentos que ele elabora para a
arte do ator no melodrama não devem ser sorvidos apenas dentro desse
estilo e podem e devem servir a outras estéticas. Considera o encenador
russo que a produção do riso é resultado da “reação de uma audiência que
272 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

está sendo levada pelo espetáculo, ou seja, o riso deve ser promovido por
uma personagem ou situação, não por um truque, um efeito” (Gorchakov,
1954, p. 306).
Assim, quando a peça está sendo realizada frente à plateia, os truques
que porventura houver, deverão ser partes da peça e tão bem justificados
que “a plateia não se preocupe com eles”. Quando a peça estiver sendo
executada, os truques devem estar “contidos na peça” (Gorchakov, 1954,
p. 306), invisíveis acrescentaria eu.

O olhar sem palavras: a presença cênica.

Em outro ensaio Stanislavski solicita que os atores realizem uma cena


sem palavras: “Fale o texto somente com os seus olhos. Não pronuncie
uma palavra, diga seu texto a você mesmo. Faça suas ações fisicas como se
você estivesse falando suas linhas em voz alta” (Gorchakov, 1954, p. 314).
Em outra oportunidade, ainda trabalhando sobre a expressão gestual
nos ensaios do melodrama As Irmãs Gérard, Stanislavski sugere que os
atores conduzam-se como se estivessem em uma casa em frente a uma
janela, sem escutar nada, observando a conversa entre uma jovem e um
senhor de meia-idade. Para entender o que se passava, os atores deveriam
concentrar-se nos olhos da garota e de seu acompanhante (Gorchakov,
1954, p. 315) e imaginar o que acontecia. Stanislavski procurava consertar,
por meio do melodrama, um grande equívoco de muitos atores ocidentais.
Atores, conforme descreve o mestre, supõem que “apenas devem abrir
suas bocas e dizer o texto alto”, pensando que assim estarão atuando (Gor-
chakov, 1954, p. 318).
Contra esta tendência aprofundava a descrição da atuação melodra-
mática: você precisa “ganhar o direito de abrir sua boca e dizer as palavras
de sua personagem”. Ao contracenar, “a primeira regra” que deveria ser
seguida pelo ator no diâlogo deveria ser a “ilimitada atenção ao seu par-
ceiro”. Pois, no melodrama, tudo deve ser preenchido com pensamentos e
significados, a língua deve se portar como se estivesse “amarrada” e,
Robson Corrêa de Camargo | 273

apenas, “os olhos falam” (Gorchakov, 1954, p. 318). Antes de escrever seu
primeiro livro sobre a técnica do ator, Stanislavski já pensava no teatro
como expressão do trabalho físico.
Em outro ensaio, numa atitude antinaturalista, Stanislavski sugere,
como cenário, a construção de uma carruagem ilusória ou de parte dela,
que aparecesse em uma cena. Aí aparece o seguinte conselho dado aos ato-
res pelo mestre, no qual se percebe a compreensão profunda do código
melodramático, como mimese de seus processos cênicos e no qual, por
incrível que pareça aos mais desavisados, Stanislavski verbera contra o
naturalismo e mostra-se consciente dos procedimentos revelados:

Eu quero lembrá-lo da regra fundamental do teatro: estabeleça detalhes ver-


dadeiros, precisos e tipicos para que a plateia tenha um sentido de totalidade,
por causa da especial habilidade de imaginar, e de se completar na imaginação
o que você sugeriu. Mas o detalhe deve ser característico e típico do que você
queira que a plateia veja. Esta é a causa pela qual o naturalismo envenenou
o teatro. O naturalismo suprime a audiência de seu principal prazer e da sua
maior satisfação, de criar com o ator e completar em sua própria imaginação
o que o ator, o diretor e o cenógrafo sugerem com as técnicas teatrais (Gor-
chakov, 1954, p. 333) (grifos meus).

Assim, observa-se o entendimento do mestre das qualidades teatrais


e, principalmente, de sua falta de apego ao naturalismo e podemos mos-
trar que seu método de trabalho não se prende a uma determinada
corrente estética, como alguns ainda o compreendem.
Nos seguidos ensaios, nos quais Stanislavski trabalha cada ator, nota-
se a dimensão que buscava em cada personagem. Conversando com o ator
(Ershov) que interpretava o vilão Conde de Lenier, os conselhos do velho
mestre no ensaio são profundos. É central a composição da gestualidade,
do diálogo interior e do olhar a ser desenvolvido pelo ator do melodrama.
Podemos perceber a grandeza não apenas do melodrama, mas, de um
grande encenador.

Ershov está certo ao não interpretar o Conde de Lenier, como um vilão em sua
primeira aparência. (…) Eu sei que é muito difícil sentar-se sem movimento,
274 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

sem mesmo um leve gesto de mãos, quando você está queimando por dentro
e somente seus olhos podem expressar isto. Mas todos os grandes atores que
interpretaram o melodrama, conseguiram isto com perfeição. Eles desenvol-
veram a arte do diálogo interior (Gorchakov, 1954, p. 295, grifos meus).

Em outro trecho, Stanislavski acentua a importância do ator melo-


dramático, de suas qualidades, e as particularidades do trabalho do ator
na escritura desses textos.

Sobre o ator que atua no melodrama, eles são sempre atores de primeira linha,
ocupando a mais alta posição na companhia. Um ator medíocre não pode atuar
no melodrama. No melodrama atores têm que usar muito de si mesmo, e o
ator medíocre, sem uma pesonalidade viva, não tem nada a acrescentar ao
papel. Autores de melodrama sempre têm um determinado ator em mente
(Gorchakov, 1954, p. 295, grifos meus).

Novamente no diálogo com outro ator, Rayevsky, podemos observar


a intensa e proposital manipulação dos signos teatrais melodramáticos pe-
los atores, a habilidade na procura da surpresa como elemento da
construção do espetáculo e a busca da ilusão cênica, tentando fugir do li-
mitado naturalismo.

O caminho que você está desenvolvendo com sua personagem, era fazê-la sen-
timental e doce. Estas são más qualidades através das quais péssimos atores
são famosos no melodrama. Um grande ator melodramático deve jogar es-
condido e explorar o tema da peça. Ele deve levar a audiência tão longe
quanto possa na direção oposta de seu real caráter (Gorchakov, 1954, p.
294).

Este elemento é de importância suprema na construção da interpre-


tação melodramática, os grandes atores do cinema utilizam-no, e isto
torna sua atuação ímpar. Um dos exemplos que vêm imediatamente à
mente é o ator Anthony Hopkins interpretando Hannibal, um repugnante
assassino serial, um “vilão” típico que mata e devora literalmente suas ví-
timas. Hopkins porta-se no filme, ao contrário do que se poderia esperar,
com extrema doçura e leveza do que seria um elegante, delicado e contido
Robson Corrêa de Camargo | 275

gentleman inglês tomando seu chá. Este fator, surpresa na interpretação,


de reversão nas expectativas do público, acentua o caráter do vilão, tor-
nando-o uma espécie suprema de vilão que se imprime na mente do
público, não um louco e desesperado canibal, mas alguém com supremo e
refinado prazer por aquilo que mais gosta, de comer suas vítimas vivas,
principalmente o cérebro.
Neste viés, Gerould e Przybos afirmam que o melodrama, pelo poder
da ênfase, arremessa suas personagens ora numa tristeza infinita, ora
numa alegria sem medida, sendo suas paixões ilimitadas. Desse modo, ad-
mitem a aplicação de elementos grotescos de composição, ao unificar os
elementos contrastantes em seu expressivo desenho cênico.
Como afirmam os autores citados, esta forma leva o melodrama a
uma maneira variada e numerosa de composição. Pode ser dito que a uni-
dade dramática que se forma, seu princípio único e geral, é o da revelação
dos distintos elementos da teatralidade, ricamente mantidos em forma
contrastante, pois as personagens são de modo constante diferenciadas.
Este contraste é unificado pelo poder da síntese e do ritmo cênico, pela
relação entre as diferentes personagens e entre as distintas características
que uma mesma personagem pode assumir, reestruturando, assim, seu
caráter anterior.
No melodrama, o único aspecto impossível, e nisto concordam Sta-
nislavski e Gerould, é a maneira ordinária de interpretar (Gerould &
Przybos, 1980, p. 81).
Ao discutir o trabalho da atriz que interpretava Tia Frochard, a men-
diga que roubava crianças e adolescentes para iniciá-las em sua profissão,
dizia o encenador, “ninguém deve suspeitar de sua ocupação, ao contrário,
todo mundo deve imaginar que ela é uma santa”, sua verdadeira face será
mostrada apenas, quando estiver só em casa. As personagens devem sur-
gir como resultado de suas ações, de seus atos, “você deve enganar a
audiência”. Durante esses ensaios uma das atrizes pergunta a respeito da
situação do melodrama, o que permite que percebamos, na resposta do
mestre encenador, o melodrama como projeto de encenação, a existência
276 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

de um texto em que as rubricas compõem um modelo de encenação para


as outras companhias.

Um melodrama famoso é criado apenas uma vez. (...) o nascimento do melo-


drama sempre depende de grandes atores e da mais elaborada das produções.
A primeira produção é sempre caríssima, quando esta é execu- tada magnifi-
camente, outros teatros no mundo copiam. Atores em diferentes teatros
atuam, imitando o que eles ouviram das outras atuações feitas pelos grandes
atores. Os diretores imitam todos os planos e sets das ideias do palco destas
montagens. Vocês irão notar que sempre existem notas dos diretores e planos
em todos os textos do melodrama. Pixérécourt introduziu isto. Eu tenho um
de seus textos, disse, onde há detalhadas ins- truções, planos e desenhos dos
cenários (Gorchakov, 1954, p. 296).

Em outro ensaio, em que se aperfeiçoava a interpretação de uma das


personagens do papel-título, a cega Louise, tentou-se, no ensaio, reprodu-
zir a situação de abandono nas cenas iniciais na estação, colocando a atriz
em plena escuridão do palco. De acordo com as anotações do diretor Gor-
chakov, Stanislavski preocupava-se em estabelecer que a atriz estivesse
frente a uma ação inesperada e, assim, o ator não deveria estar preparado
ao que acontecesse; seu trabalho era que a atriz atuasse como se não co-
nhecesse realmente o lugar e, na realidade, estivesse procurando
cegamente, não interpretando um cego; que a voz estivesse sufocada e su-
plicante; que a cegueira fosse entendida pela atriz como um sentimento
interior e não um defeito externo (Gorchakov, 1954, p. 299).
Aí podemos perceber como Stanislavski tenta estabelecer a todo mo-
mento a intensa vivência do aqui e agora do palco. Para que a surpresa
melodramática se estabeleça é preciso que a vida que corre no palco pela
veia das atrizes e atores, seja presente e não elaborada, construída men-
talmente. Não há presença nem surpresa cênica, sem que as personagens
vivam realmente como se estivessem frente à ação cênica pela primeira
vez.
Podemos perceber o tratamento de outro elemento tão caro ao gê-
nero, na encenação desse melodrama russo, a música. Quando
Robson Corrêa de Camargo | 277

Stanislavski e Gorchakov discutiam sobre a música a ser utilizada no es-


petáculo, o mestre sublinhava:

Geralmente, a música é colocada no melodrama para criar um estado de espí-


rito para o ator, preparando-o para as cenas de grande emoção. Eu não penso
que você precise desta espécie de música neste melodrama. (…) Não se esqueça
da variedade. Algumas vezes, você pode aflorar a intensidade de uma cena
dramática com música numa forma de contraste. Numa determinada cena,
você pode ter uma música leve, claro, não tão leve, mas um compositor expe-
riente saberá o que eu quero dizer (Gorchakov, 1954, p. 310).

Ao mesmo tempo, esta montagem desvela o melodrama e revela


algumas das importantes características do trabalho de Stanislavski.
Conforme afirmam Gerould e Przybos, os princípios estruturais do
melodrama são: fino contraste; uma ação crescente e de crescimento
permanente até a tensão máxima; surpresa como modo de construção
dramática e a presença em cada ato de um ou mais momentos de choque
que pretendem excitar ao extremo a emoção do espectador que dividem o
melodrama em uma série de partes diferenciadas ritmicamente.
Isto faz com que os autores citados afirmem que “a busca por novas
formas de realização do melodrama no palco podem levar a afirmar que o
ritmo é a base da ação melodramática” (Gerould & Przybos, 1980, p. 81,
grifos meus).
Na verdade, a variação e o contraste rítmico serão os principais motes
da construção melodramática neste sentido e, apenas neste, deve-se
observar que sua construção assemelha-se ao de uma sinfonia com
movimentos variados, instrumentos que aparecem no meio da frase
melódica sem prévio aviso etc.
O ritmo e a musicalidade eram fundamentais para o diretor russo-
soviético, tanto na construção da personagem pelo ator como na
encenação. Assim, a síntese melodramática, mais que a percepção da
organização rítmica ou sintética de sua variedade cênica, como afirmam
Gerould e Przybos (Gerould & Przybos, 1980, p. 81), é a da rítmica, como
procedimento composicional. Mas para desenvolver melhor este ponto
278 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

vamos em direção a um outro olhar russo, o do formalista Sergei


Balukhatii (1892-1945).
O formalismo considerava a arte como resultado de formas puras e,
como reconheceu Leon Trotsky em seus escritos de 1924, apesar de duras
críticas, os formalistas alçaram o estudo da arte do estado de alquimia ao
da química, e, segundo o revolucionário russo, “parte do trabalho de busca
dos formalistas é realmente útil”, apesar dos formalistas, desejarem ser os
únicos representantes da nova arte (TROTSKI, 1980 [1924], p.143).

Diálogo com um formalista na terra dos sovietes

Para passar pela penúltima paragem de nossa saga, após termos dis-
cutido e analisado distintos momentos de um determinado melodrama,
desde sua concepção e gestação até a maneira de interpretação dos atores,
é preciso que se estabeleça um diálogo produtivo com a reflexão de um
formalista russo produzida em 1926.
Assim, será feita uma confrontação do que estamos até aqui demons-
trando e discutindo com as questões levantadas por Sergei Balukhatii
sobre a poética do melodrama.
Balukhatii não fazia parte constante do grupo dos formalistas, mas
este estudo foi publicado em uma das revistas do grupo no ápice de sua
existência, em 1927, mesmo ano da montagem de As Irmãs Gérard, que
acabamos de acompanhar com Stanislavski. Como já notado, nos anos
posteriores, o domínio stalinista e burocrático, cada vez maior da máquina
estatal, irá erigir o “realismo socialista” como política oficial do Estado so-
viético para a arte e, assim, a arte produzida e o artista que não seguisse
sua fórmula, seria taxado de formalista, sendo levado, muitas vezes, à
morte, como aconteceu literalmente com Piotrovski, Meierhold e tantos
outros fuzilados.
Neste sentido, o melodrama aparece registrado em um momento
muito especial da história da arte na ex-URSS, no final do interregno em
que brotaram os mais dinâmicos experimentos artísticos em todas as
Robson Corrêa de Camargo | 279

artes, conformados pelo bordão “não há arte revolucionária, sem forma


revolucionária”. Na medida que apresentamos determinados pontos de
vista expostos, iremos desenvolvendo ou contrapondo algumas das prin-
cipais teses. Para aqueles que desejarem apreciar os originais, uma
necessidade para todo estudioso do gênero, este ensaio foi publicado no
jornal dos formalistas de Leningrado Poetika, vol. III.
Assim, este artigo pode ser encontrado em inglês, sumariado nos tra-
balhos editados por Gerould (1978b), nossa fonte, com outras
contribuições sobre o tema. Para que possamos superar a barreira linguís-
tica e o ineditismo em português, deter-nos-emos mais que o necessário
em alguns de seus pressupostos, para que possamos ter um acesso mais
detalhado a algumas dessas importantes reflexões ainda inéditas em nosso
idioma.
Como é sabido, os formalistas eram pouco preocupados com a análise
das artes do espetáculo, desde Aristóteles esta é uma tarefa que os literatos
entendem como importante, mas quase todos a colocam de lado. Obser-
vou-se que o melodrama foi um objeto de exame para alguns formalistas,
mas, não o principal, pois estes tentavam focalizar seus estudos em formas
distintas de ficção, como os contos transmitidos por tradição oral. Em seus
estudos das correntes, modelos e estruturas dos gêneros e obras literárias
comumente estudadas, ao invés de se deterem nas categorias genéricas
existentes, os formalistas dirigiam-se ao estudo concreto de determinada
produção da cultura popular, uma tendência sempre muito acentuada en-
tre os artistas e intelectuais russos.
O exame que aqui focalizamos, aponta para os mecanismos do melo-
drama, suas técnicas e princípios estéticos, precedendo em muitos anos os
estudos do melodrama que surgiriam com maior abundância, apenas na
segunda metade do século XX. Balukhatii estava preocupado com o enten-
dimento do melodrama encenado e projetado, como forma e organismo
das estruturas dramáticas.
280 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Balukhatii: o melodrama e sua poética

Sergei Balukhatii foi sem dúvida o maior teórico do melodrama, entre


aqueles, que, de alguma forma, aliaram-se aos formalistas. Seu trabalho
certamente está em os principais na análise do gênero. Publicou também
vários estudos sobre o drama de Tchecov, um deles chamado Problemas
da Análise Dramática (Balukhatii, 1927) e outra publicação sobre a mon-
tagem de Stanislavski A Gaivota (publicado pela Dobson em Londres, em
1952).
Depois de 1930, com a perseguição burocrática a todos que fugissem
dos ditames dos governantes do estado soviético, ele precisou voltar seu
trabalho para o terreno seguro da biografia de Gorki.
O estudo de Balukhatii sobre a poética do melodrama possui a mais
profunda e sistemática análise de suas estruturas e técnicas. Seu objeto é
determinar e decompor o propósito funcional e composicional do gênero.
Balukhatii, evitando os caminhos de uma análise histórica ou evolutiva, ou
ainda, identificar a caracterização do melodrama em diferentes nacionali-
dades, procura centrar seu estudo baseado nos melodramas franceses
traduzidos e encenados na Rússia nos últimos 25 anos do século XIX. Este
material encontrava-se nos manuscritos da Biblioteca Central de Teatro
Russo de Leningrado e propiciou o estudo das versões encenadas. Ba-
lukhatii desejava evitar uma interpretação puramente literária e
determinar a real forma teatral do melodrama, aquela que produziu im-
pacto no espectador e não no leitor. Um melodrama do palco.
A primeira grande definição de Balukhatii é que a “paixão é o motor
melodramático” (Gerould 1978b, p.154, grifos do autor). Concordava o
formalista com a perspectiva de Stanislavski. Assim, a paixão é conside-
rada como a força motivadora e propulsora do teatro melodramático, o
princípio organizador que estabelece a ligação orgânica do gênero, seu vín-
culo e meio conector.
Conforme Balukhatii, a tarefa fundamental do melodrama é “expor
as paixões que constituem a força motiva da ação das personagens”.
Robson Corrêa de Camargo | 281

Este painel de paixões torna-se central para a estruturação do melodrama


e é a corrente principal de seu argumento e construtor de suas técnicas.
O autor considera que a paixão está a serviço de “explicar a ação dra-
mática resultante”, esta é sempre extraordinária e deve ser justificada por
um alto grau de sentimento, que deve ser vívido e maximizado, tanto
quanto possa, construindo, consequentemente, uma ligação de interação
mútua entre a emoção impulsionadora, a trama e a força artística peculiar
da forma melodramática.
A consideração da paixão como seu motor e o alto grau de sentimento
que devem envolver a personagem no melodrama, permitem que se dis-
cuta uma vez mais e sob outra perspectiva a interpretação dos atores no
melodrama. No teatro, mesmo no naturalista, que pretendeu criar uma
ilusão de representação da vida cotidiana na cena teatral, exige-se sempre
uma expressão na interpretação do ator que é acentuada ou carregada em
relação a nosso cotidiano.
A voz e o gesto do ator colocados no palco para centenas de pessoas,
às vezes, 30 metros de sua emissão, necessitam ser amplificados pelos
meios técnicos do ator. Pois o melodrama exige esforço ainda maior, por
relevar mais a interpretação. Seu objeto não é criar a vivência natural, mas,
a sublinhada ou condensada.
Todos os elementos do melodrama, os temas de suas peças, seus
princípios técnicos de estilo e construção são subordinados a um objetivo
estético: suscitar e expor as emoções puras e vívidas, pois a trama, as per-
sonagens e os diálogos trabalham em uníssono, estando a serviço do
envolvimento do espectador na vivência intensa dos sentimentos expos-
tos.
Balukhatii considera que a teleologia emocional do melodrama, a
emoção como propósito primeiro e último condicionam a escolha de seus
elementos poéticos que são “limitados em número”, mas, efetivos no tea-
tro. O melodrama é percebido como primordialmente caracterizado por
seu método de movimento ou jogo das emoções (Gerould, 1978b,154).
282 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Se aliarmos esta compreensão do autor citado às considerações feitas


por Stanislavski de que o melodrama não é excesso, é condensação, agre-
gação, no qual a paixão sincera deve ser trazida a seu mais alto nível,
conseguiremos compreender a profundidade do discurso melodramático
e de sua técnica.
Assim, esta “teleologia emocional do melodrama”, este estudo e vi-
vência emocional das relações humanas manifestam-se destacadamente
no enredo e condicionam os acontecimentos, pois o melodrama usa-o
como propulsor das bases emocionais e a partir dele serão evidenciados
“os estados emocionais” (GEROULD, 1978b, 154)
Este ponto necessita ser analisado detidamente. O melodrama pro-
cede como uma violação extrema as conexões usuais da vida cotidiana,
como fator que insere uma surpresa na vida da personagem, geralmente,
desagradável.
Esta surpresa reestrutura, tanto para o espectador, como para o ator,
a vivência do lugar-comum em que está inserido. Esta violação normativa
e o desejo do espectador de observar seu desenvolvimento favorecem o
surgir de uma forte relação emocional com a plateia. O problema dramá-
tico vivido no melodrama propõe constantemente inserir o espectador na
possível vivência da situação, como se a ação melodramática sempre se
submetesse à Natureza e ao acaso que nos envolve.
Ao passo que, em sua evolução histórica, o teatro procurou cada vez
mais a organização unidimensional e linear da trama, o melodrama sub-
mete constantemente os atores e a plateia ao jogo do imprevisto. As tramas
que frequentam o melodrama, como as acusações de uma pessoa inocente
de assassinato, o fado, a sina de uma garota inocente, uma pessoa forçada
a cometer ações contrárias às de sua consciência são detonadores de cho-
ques emocionais na plateia e ou de momentos de estranhamento.
Na maioria das vezes estas situações colocam cidadãos que vivem
uma vida comum, frente ao absolutamente inesperado. Aí se percebe o
papel do acaso na composição melodramática, pois ele se torna o elemento
ameaçador que pode jogar o espectador a qualquer momento naquele
Robson Corrêa de Camargo | 283

turbilhão, em sua vida comum fora das paredes do teatro. Sim, os filmes
de terros utilizam muito este procedimento.
O enredo necessita desenvolver a reviravolta de uma situação comum
(um encontro, uma carta) que evolve, evoluciona quase ao acaso, as suas
personagens. Daí o aspecto restaurador de seu final, que promove o con-
trole e alívio da situação, fazendo de sua apresentação uma catarse para a
plateia. Se lembrarmos das Irmãs Gerard, seu abandono na urbanidade
inóspita ou da trama de Coelina, poderemos entender que o inesperado,
a surpresa e o choque que se produz na plateia, fazem parte do discurso
e da vivência melodramática, no palco e na plateia.
O inesperado, a surpresa e o choque revelam a segunda característica
apontada por Balukhatii, a troca rápida de normas dramáticas apontando
para um caminho diferente para onde se levaria o drama teatral, como era
usualmente estabelecido e escrito. Este se formou no drama com ações que
se acumulavam paulatinamente e personagens que, de modo lento, diri-
giam-se a uma ação finalizadora, lembremos de Romeu e Julieta ou Hamlet
ou ainda os grandes textos de Tchecov e Lope de Vega. No melodrama, ao
contrário, existem trocas imediatas entre o feliz e o infeliz, oscilações que
se desenvolvem alternadamente até o final feliz ou o duplo final: infeliz/fe-
liz.
Na construção da trama, este procedimento acarreta cortes que re-
vertem total e rapidamente o que está acontecendo, características das
personagens que não têm uma evolução linear, assim como sua trama.
Não se trata de uma falha de composição, uma imperfeição de cópia trágica
ou das leis do drama, mas uma nova forma de representar o processo que
envolvia o ser humano em sua passagem pela sociedade capitalista em
pleno desenvolvimento industrial. Este é o mundo da mercadoria e da era
da máquina, que “ao acaso” nos envolve ou nos esfacela, conduzindo-nos
a situações inesperadas e pessoalmente ameaçadoras de uma hora a outra,
como a peste.
O desemprego, a doença, o chegar à cidade da massa camponesa, são
introduzidos bruscamente no aspecto inusitado e inesperado da vida
284 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

cotidiana da grande urbe, distantes da estabilidade espacial e temporal vi-


vida no campo e nas pequenas cidades. Desse modo, o ser humano começa
a viver uma nova percepção afetiva, temporal e espacial que o desloca da
sensação do cotidiano estável ou como o compreendia.
Assim também se mostraram os processos políticos que envolveram
o século XIX, não assim foi a Revolução Francesa nem a vida política que
se seguiu, prenhe de golpes e contragolpes, cabeças levantadas e cortadas?
Mais que uma forma restauracionista ou decadente de drama, o melo-
drama adequa suas personagens e seu enredo ao mundo multifacetado do
homem como mercadoria. Esta foi a mola propulsora de seu sucesso e o
que o torna tão atual, não são os seus tipos, efeitos ou suas tramas.
Este procedimento do inesperado inserido na trama melodramática
reverte a todo momento a ação encenada e determina a fortuna de todas
as suas personagens, resolve ou aprofunda todos os conflitos e estabelece
uma dinâmica de ordem-desordem-ordem, acumulada, deixando o espec-
tador na expectativa sobre o destino das personagens ou da história.
O contínuo adiamento da resolução do conflito, mais que “uma enro-
lação”, serve para enfatizar a relação do acaso, como determinante da
ordem em que se vive. Como se alguém saísse de sua casa para comprar
um simples peixe, e acabasse fortuitamente se tornando um selvagem sol-
dado na guerra. A organização inicial do melodrama, suas personagens
vivendo o lugar comum e a vida doméstica criam a empatia da vida coti-
diana com o público, determinam a base para uma identificação que deve
ser estabelecida para que se transporte o espectador às surpresas do des-
tino que se avizinha. Nenhum oráculo precisará ser desrespeitado para o
enfrentamento do destino, o destino é a incerteza, o acaso e a surpresa.
Embora o melodrama seja um local de condensação, tanto na ence-
nação como na interpretação, é necessário que exista um sentimento de
realidade, de identidade com a plateia, para que o público possa ser iludido
ou envolvido na representação, na possibilidade extrema daquela trama
de arrebatá-lo, antes que saia da casa de espetáculo. São sentimentos
Robson Corrêa de Camargo | 285

próximos, não a traição da rainha, mas o honesto casamento que pode ser
rompido, não a luta entre reis pelo trono, mas, a hipoteca da casa.
Aprofundando as ideias de Balukhatii, podemos dizer que o final feliz
que resolve a trama, serve, como seu início, para manter o espectador ilu-
dido na proximidade dos perigos que envolvem as personagens nos
problemas da vida cotidiana. Eles existem e serão superados ou, pelo me-
nos, nisto devemos crer para que a vida seja mais leve.
Neste processo, a mimese transporta o espectador ao inusitado. A
surpresa do melodrama contém uma instabilidade na construção do texto
dramático que inicia a desconstrução e decomposição da personagem ao
propor a instabilidade de sua existência.
A atuação melodramática, iluminada pela paixão, além da instabili-
dade, deve ser um ponto ou dois mais carregada que aquela que serve a
constituição do que convencionalmente se estabelece como o "natural" na
interpretação teatral, e não apenas pela influência da pantomima com seus
gestos carregados. Seus motes são a paixão e o sentimento em um grau
maior de intensidade. Paixão antepõe-se à lucidez e à razão, normalmente
pertencentes ao código gestual do contido, pois a razão é este lugar.
O melodrama expõe o mundo irracional e desorganizado a que o ser
humano foi submetido, o mundo oscila em uma tempestade, longe da cal-
maria e da contínua evolução temporal a que o drama havia sido
submetido. E a força do acaso promove uma troca rápida dos códigos de
atuação, rompendo-se o sistema evolutivo e gradativo que já compunha a
personagem no drama.
No melodrama, as personagens expõem suas emoções interiores e as
expressam em suas falas por meio de palavras e gestos que marcam esse
tipo de interpretação. Não deixa de ser um metadiscurso, pois a persona-
gem verbaliza aquilo que sente e pensa, como se pudesse controlar seus
sentimentos numa forma de psicanálise dramática.
Existe um certo paradoxo estabelecido na compreensão da interpre-
tação do ator e na representação do ser humano, como se a naturalidade
e o contido na interpretação fossem o terreno da razão e do irracional, e o
286 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

do excesso ou da condensação seriam o terreno do melodrama. Se a psi-


cologia freudiana implodiu este edifício racional, ao se acender as
primeiras luzes do século XX, o melodrama já o havia abalado.
Balukhatii aponta que as personagens do melodrama, em suas falas
e diálogos, arranjados de forma dinâmica e expressiva, estão sempre a
postos para demonstrar publicamente seus sentimentos.
Desse modo, estas personagens devem estar sempre prontas para
trocar, de modo rápido, não apenas o tema, mas a coloração de suas falas,
do alegre ao triste, do subserviente ao transgressor, etc... Desnudam-se de
suas experiências emocionais, expressam-nas em falas plenas de emoção
que, como aponta o autor, não apenas contêm uma “expressão direta de
forte emoção, mas também uma análise da emoção sendo experimentada”.
Por isso Stanislavski dizia que o melodrama necessita grandes atores,
pois esta é uma tarefa difícil. A personagem do melodrama é técnica e
emocionalmente mais desafiadora que aquela naturalista.
Balukhatii reitera a importância das didascálias nos textos do melo-
drama, o mesmo comentário realizado por Stanislavski. Para o formalista,
a natureza expressiva das falas é reforçada pelas rubricas que acompa-
nham os textos. Nos melodramas, o número delas “era imenso”, e a
variedade dessas especificações é um exemplo da tentativa do melodrama-
tista de descobrir penetrantes tons de voz. Para Balukhatii, as falas
“sobrecarregadas do melodrama, chegam nos mais agudos e significantes
momentos, reforçam a dinâmica da trama e sublinham a situação dramá-
tica (GEROULD, 1978b, 155).
Além da teleologia sentimental, Balukhatii aponta a existência de
uma teleologia moral no melodrama, uma finalidade moral, pois a trama
sempre será tratada moralmente (grifo meu). Os bons serão sempre tra-
tados dessa forma e os maus, estarão a procurar o inverso. Este “sistema
perfeito de recompensa e punição é percebido pelo espectador como natu-
ral”, refletindo as leis da moralidade, que é predeterminada pelo curso dos
eventos. O melodrama “ensina, consola, pune e recompensa; submete o
fenômeno da vida e as condutas humanas às imutáveis leis da justiça e
Robson Corrêa de Camargo | 287

oferece reflexão sobre a ações e sentimentos dos homens”. Com a revela-


ção final, como destaca Balukhatii, as normas violadas são corrigidas e os
problemas resolvidos no espírito da moralidade ideal (GEROULD,
1978b,156).
Este esquema norma-rompimento-reconstrução da norma faz parte
do discurso melodramático, prepara o público para o acaso da vida cotidi-
ana na esperança que o mesmo aconteça na resolução de seu destino.
O aspecto estabilizador ou restaurador do melodrama abriu a possi-
bilidade que muitos o considerassem dirigido à conservação do status quo.
Penso que esta questão conservacionista é secundária, o que se abre
é a vivência pelo espectador de uma situação de recuperação de uma esta-
bilidade perdida. É isto que promove o melodrama. A arte é o único lugar
no qual o ser humano pode vivenciar a recuperação da perda moral; na
vida, isto não é possível. O melodrama promove idealmente a experiência
artística da recuperação da alienação humana, da unidade de caráter sem
contradições, ao menos, pelo curto tempo da representação e de seu final,
daí sua necessidade e permanência. Um lugar de psicanálise público. Ah!
Como é boa a morte do vilão! Se não existisse o melodrama, seria neces-
sário inventá-lo.
Balukhatii aponta alguns princípios de composição técnica que con-
formam a teleologia do melodrama. O primeiro é o do alívio, as
personagens envolvidas, no que ele chama de inclinação a um “psicolo-
gismo primitivo”, desenvolvem funções de vítima, vilania, de um dedicado
servente, etc. Este “psicologismo primitivo” estabelece uma relação à flor
da pele, no qual os sentimentos não procuram ser disfarçados, encobertos
e, sim, evidenciados pela fala, pela interpretação e pela música. Seus diá-
logos, embora desenvolvidos sobre um tema trivial, numa tonalidade
singular, devem ser realizados com uma emoção vívida e expressiva, colo-
rida em seus sentidos pela gestualidade e entonação.
Se o psicologismo das personagens é colocado em destaque, suas von-
tades são expostas com menos controle, as ações são absolutas e se o
288 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

formalista destaca a ausência de nuanças de transição, precisa destacar a


existência múltipla de nuanças de situação.
A técnica de construção dramática e interpretativa do melodrama
exige as quebras, os cortes, a ausência de uma passagem gradual, mas uma
intensa diversidade daquilo que se mostrava justamente pelo seu “psico-
logismo primitivo”.
O vilão precisava executar sua vilania de forma e maneiras distintas,
matizadas, detalhadas, quanto mais detalhado o vilão, melhor. As sutilezas
e os contrastes acontecem no universo das personagens e no confronto
entre elas. Esta interpretação do ator que carrega os “excessos” e nuanças
da pantomima, contrasta com a vivência das situações cotidianas da pla-
teia que se urbanizava. A interpretação dos atores coloca determinadas
características humanas em destaque, e serve como uma lente de au-
mento.
Se o melodrama se desenvolve em partes ou blocos, os acontecimen-
tos movem-se de forma isolada, como um crucial momento da resolução
dramática, mais que “coordenados por um momento ou uma ação central”
(GEROULD, 1978b, p.156).
Aqui, podemos ver, novamente, que o melodrama contém as técnicas
que foram depois desenvolvidas pelo teatro épico ou, de outra forma, co-
locadas de cabeça para baixo pelos próceres da narrativa do drama épico.
O melodrama, em sua encenação e interpretação, com seus diálogos auto-
referentes e apartes, sua composição em blocos, desenvolve a narrativa no
drama em sentido diverso. Nesta forma, mantém a dramaticidade intensa
em cada cena, em alta intensidade, obtendo a máxima força de cada cena,
na história e na interpretação. É uma dramaturgia de partes.
Outro dos princípios levantados por Balukhatii, que necessita ser aqui
analisado, é o do contraste. O gênero faz extensivo uso de justaposição de
material diverso, intertecendo o destino das personagens “em diferentes
estágios da escala social (mendigo e conde) ou de níveis morais distintos
(vítima e vilão)”.
Robson Corrêa de Camargo | 289

Balukhatii descreve que o contraste também pode existir na mudança


oposta e imediata do caráter de uma personagem, do vício para a virtude,
ao final da peça. O amor pode se transformar em vingança. O contraste
pode ser encontrado em uma situação na qual a “face qualitativa é antité-
tica ao lugar que é representado (uma inocente vítima vivendo no meio de
vagabundos)”. Como dito, o contraste também se dá entre as personagens,
ao lado do vilão, o inocente, ao lado do escrúpulo, a fidelidade vivida por
personagens que carregam estas características. Como vemos o melo-
drama tem mais material dramático que os gêneros que o antecederam.
As personagens moralmente antitéticas reforçam umas às outras,
continuamente. Balukhatii acrescenta que, dificilmente o melodrama
mantém-se no mesmo tom dramático, mas alterna-se entre situações cô-
micas e falas de intensidade trágica. Esta técnica composicional tem como
objetivo torná-lo suportável, pois viver extremamente o deixaria insupor-
tável, para lembrarmos o comentário de Stanislavski, já citado. Este
revezamento dá ao melodrama uma “textura excitada”, conferindo uma
vivacidade a seus temas emocionais, por meio de uma constante ilumina-
ção (GEROULD, 1978B, 157). A existência em contraste é o que propicia ao
melodrama uma alimentação de outras formas dramáticas, tornando-o
uma massa dramática em constante movimento e expectativa.
A técnica de contraste transporta consigo a da dinâmica. Na estru-
tura do argumento melodramático e do desenvolvimento narrativo, cada
fase é seguida pelo que “aparenta ser uma nova fase” em relação à anterior
ou, ao menos, por “novo grau de expressividade”. Assim, considera Ba-
lukhatii, as emoções do espectador são constantemente apresadas num
grau mais alto de tensão (GEROULD, 1978b,157).
As personagens são constantemente confrontadas com obstáculos
em seu caminho. O sucesso temporário e os reconhecimentos que aconte-
cem, podem ser absolutamente falsos, dando sequência a novas lutas. Isto
forma um drama instável ou de falsa segurança dramática. Se a escritura
dramática existente, até então, centralizava a história e atuava por acúmu-
los, o melodrama utiliza vários artifícios para estilhaçar a ação principal,
290 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

seja por meio da intriga interposta pelo vilão ou retardamento da ação,


pela falha ocasional de um encontro ou reconhecimento de circunstâncias
adversas e inesperadas. Assim, o retardamento da resolução e ou a insta-
bilidade que insere a cada situação dramática, acrescentam uma força
expressiva que coloca o espectador em fases falsas de julgamento em cada
fase ou bloco de ação, quando ele deseja ou necessita ver a situação resol-
vida. Criam-se falsas resoluções. É como se o melodrama mostrasse ao
espectador a parcialidade do julgamento, pois sempre pode existir um ou-
tro lado da questão. É uma construção multifacetada que foge da
construção linear, usual na dramaturgia. O fim de cada parte procura mos-
trar a incoerência do observado em uma discussão intensa entre essência
e aparência. Sempre quando chegamos a entender algo, ele nos aparece
como fugaz, pois existe outra camada de fatos e acontecimentos que po-
dem mudar tudo.
Este processo composicional é uma crítica ao drama em sua
forma tradicional, pois utiliza a construção dramática para criar cada
momento de estabilidade e, ao mesmo tempo, instabiliza-o.
Assim, podemos perceber a intromissão proposital do inesperado na
ação, ele é quem “viola o curso dos eventos”. O conhecido torna-se nova-
mente desconhecido, subvertendo o que havia sido entendido pelo
espectador (GEROULD, 1978b,157).
O novo elemento mostra um mundo que pode se dirigir para direções
ainda desconhecidas pelo distinto elemento adicionado, daí a intromissão
de chegadas súbitas, raptos, achados, reconhecimentos que podem ser de-
sencadeados por simples elementos cênicos, como cartas, segredos,
reconhecimentos, etc. que adiam ou podem levar à resolução rápida da
história.
Esta forma composicional, frequentemente utiliza o segredo como
mola propulsora, ao que eu acrescentaria, o segredo e sua revelação.
Balukhatii afirma que o segredo é o mais poderoso fator na dinâmica
do melodrama, permitindo ao melodramaturgo segurar o interesse do es-
pectador ininterruptamente durante a representação. Mas, na dualidade
Robson Corrêa de Camargo | 291

melodramática, o segredo carrega consigo a revelação. O autor citado


afirma que o uso do segredo tem várias formas, pode haver um segredo
total desconhecido para as personagens e o espectador, no qual nenhum
personagem tem sua chave. Ele será revelado gradualmente, de maneira
opaca, e a tentativa do espectador de descobri-lo dá ao melodrama sua
“tensão composicional’.
Um segundo tipo é o segredo para as personagens, mas não ao espec-
tador, neste caso, considera Balukhatii a tensão composicional se exerce
ao revelar as situações que encobrem a solução do enigma. As personagens
aproximam-se da solução, mas, em seguida, distanciam-se. A solução é
continuamente quebrada por “desentendimentos fatais”. O espectador,
como partícipe direto do evento, sente um desejo intenso de que o segredo
seja descoberto ou revelado às personagens, mas este desejo deve manter-
se tenso até o final da peça, momento da revelação final.
Como observa Balukhatii, a dinâmica do melodrama reside não ape-
nas na trama, mas na linguagem, no gesto e na dinâmica do tempo
acelerado e condensado do estilo melodramático, em sua construção.
A mais importante característica da composição melodramática, das
registradas por Balukhatii é o movimento em camadas, pois o melo-
drama não se configura, como um caminho direto que vai por acúmulo até
sua conclusão, mas como um movimento em camadas, nos quais “cada
nova fase da trama acrescenta novos obstáculos e não resoluções”, abrindo
espaço para um novo grau de intensidade dramática. Esta nova qualidade
cria “uma intensidade na percepção dramática por parte do espectador
que não será resolvida até o momento final (GEROULD, 1978b,158). As
melhores telenovelas brasileiras apresentam exemplos claros deste movi-
mento.
Balukhatii destaca que as personagens do melodrama não são impor-
tantes por si mesmas, mas como portadoras da ideologia emocional do
melodrama e como ponto de ligação ou desvio da história. As personagens
assim consideradas não carregam “o peso total da vida”, são destituídas de
individualidade, pessoal ou de caráter realista. Elas são interessantes ao
292 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

espectador, não por causa de sua substância rica e original, mas, pela fun-
ção que causa a intensidade dramática.
O autor citado destaca que o melodrama não possui heróis que façam
seus próprios destinos, pois o central não é a personagem, mas, “a trama
com sua base emocional”. Neste sentido, o contraste exerce um fator de
convergência no melodrama. As personagens, como descreve Balukhatii,
são apenas uma ferramenta para avançar a progressão da trama, daí a
unidimensionalidade da personagem no melodrama, seus princípios são
determinados pelo seu papel na trama (GEROULD, 1978b,159) e a trama
necessita de personagens antitéticos.
As personagens do melodrama existem por contraste, este apresenta
a dimensionalidade: é na relação entre herói e vilão, que são descobertas e
testadas as possibilidades das situações, o caráter das personagens e os
positivos valores trazidos pela trama. Isto pode trazer uma reversibilidade
das personagens, pois elas são sujeitas a mudanças contrastantes. A habi-
lidade das personagens em se transformarem no seu oposto, pode
acontecer ao final, mas sempre do negativo ao positivo, para servir ao tema
moral.
No melodrama, o desenvolvimento da trama não é orgânico nem ne-
cessita ser “orgânico” ou psicologicamente motivado. A cadeia de eventos,
predeterminada somente pelos objetivos técnicos e emocionais é um fim
em si mesmo. O acaso é o elemento unificador das partes separadas. Elas
começam a ação dramática e solicitam novos “acasos” para seu desdobra-
mento. É um procedimento estrutural do melodrama, e um dos motivos
do seu sucesso.
O acaso permite novos e inesperados giros da trama que devem estar,
tanto quanto possível, ligados à trama, pois o uso automático desses acasos
enfraquece a trama e seu poder artístico. Neste percurso, uma coisa, um
elemento, algo pode servir ao propósito de complicar o curso normal dos
eventos ou “violar uma harmônica série de interações das personagens
(GEROULD, 1978b, p.161)”. Esta coisa pode ser uma carta, um nome, uma
voz (grifos meus).
Robson Corrêa de Camargo | 293

Para terminar, mencionamos com Balukhatii, que o melodrama é o


mais cênico de todos os gêneros, pois foi escrito para ser efetivo no palco,
é “composto para a cena”. Seus elementos estruturais foram escolhidos
para funcionar principalmente para o espectador, não ao leitor. Esta cons-
ciência cênica possibilita uma estilização particular de seus efeitos.
5

As múltiplas faces do melodrama brasileiro 1

Será que você percebe


na sombrancelha do papagaio
a lua que cresce?

Nenpuku Sato. Um mestre de Haikai no Brasil.


Mendonça, M. 1999.

Melodrama, de Filipe Miguez, é uma versão contemporânea dos pro-


cedimentos do Melodrama, uma releitura do gênero realizada por um
jovem e promissor grupo teatral no final século XX. Certamente um dos
grandes textos teatrais brasileiros do final do século. Aponta os procedi-
mentos dos grupos brasileiros na produção de seus espetáculos, assim
como desenvolve uma releitura crítica de determinadas formas do melo-
drama, numa perspectiva brasileira, mais que decolonial, antropofágica.
Encenada pela Companhia dos Atores, da cidade do Rio de Janeiro, estreia
em 11 de agosto de 1995 no Centro Cultural do Banco do Brasil, com o
suporte financeiro da Fundação Banco do Brasil e da Fundação Vitae. A Cia
dos Atores conta com Bel Garcia, Drica de Moraes, César Augusto, Gustavo
Gasparani, Marcelo Olinto, Marcelo Valle e Susana Ribeiro, coordenados
pelo diretor e também ator Enrique Diaz.
O objetivo desta nova companhia, como se percebe em seu material
de divulgação, é o de "experimentar novas possibilidades da cena teatral",
conseguem. Em 2004 a companhia abre uma sede nos baixos da Lapa

1
Este capítulo foi publicado com modificações em Brazilian Theater, 1970-2010: Essays on History, Politics and
Artistic Experimentation (English Edition). MacFarland, 2012, com o título de Melodrama and Companhia dos Atores
of Rio de Janeiro.
Robson Corrêa de Camargo | 295

onde promove cursos e organiza seus trabalhos, contando agora com


apoio da Petrobrás. Sua marca produtiva é o processo colaborativo, termo
usual nos principais coletivos teatrais brasileiros, que pontua um fazer que
procura, na sua criação, incluir a produção dos seus artistas vários na sua
construção artística, onde o diretor exerce um trabalho de edição e orga-
nização do material. Nestes anos produz Ensaio Hamlet, anunciado como
"uma desmontagem" do velho clássico shakespeariano, onde se apresen-
taram fantasmas/atores que cercavam o tablado da encenação
experimentando suas personagens. Ensaio Hamlet recebeu o prêmio de
melhor espetáculo estrangeiro em 2005 na França. Melodrama é o espetá-
culo mais premiado da Companhia dos Atores, sendo apresentado nos
Festivais de Miami, Nova York, Almada (Portugal) e Porto Rico.
Foi na temporada paulista de Melodrama, apresentado no Teatro da
Universidade Católica (TUCA), em 1996, que este espetáculo conseguirá
uma repercussão exponencial. Melodrama tornou-se assim uma das mais
importantes montagens da temporada brasileira nos anos de 1995-1996,
premiado pela crítica tanto no Rio de Janeiro (1995) como em São Paulo.
O ator Marcelo Olinto descreve a qualificada plateia que, pela primeira vez
chegava aos espetáculos do grupo, trazendo seu grande reconhecimento:
Melodrama foi visto no Rio de Janeiro por Fernanda Montenegro e Vera
Fischer, duas renomadas atrizes brasileiras, e em São Paulo terá na plateia
Sílvio Santos e Antunes Filho, "passando por Haroldo de Campos". Assim
melodrama uniria favoravelmente o gosto da antiga e sempre revivida
vanguarda concretista dos celebrados irmãos Campos até o do apresenta-
dor mais popular das tardes televisivas de domingo, Sílvio Santos,
ganhando aclamação nacional por sua extremada qualidade.
Melodrama se torna também, por seu sucesso e reconhecimento, um
ícone da dramaturgia e das técnicas de encenação brasileiras
desenvolvidas com sucesso nesta passagem de século: do texto escrito no
processo de encenação, construído pelo processo de montagem. Sua
análise nos permite conhecer alguns dos procedimentos técnicos exibidos
por esta nova forma dramaturgia de encenação, fragmentada.
296 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

A pesquisa/encenação de Melodrama procurava entender e


representar “elementos da extensa tradição melodramática brasileira”
elaborando a relação do melodrama com os procedimentos da cultura de
massa. Como descrevia o programa do espetáculo paulista, o projeto
objetivava a “união da linguagem teatral com os elementos ficcionais
utilizados como clichê pela indústria cultural”. Assim foram selecionados,
como foco central da exposição dramática, crítica e de análise teatral, os
clichês de interpretação do eloquente radioteatro carioca.
Em seu site a Cia dos Atores alardeia outro procedimento de suas
produções, o uso sem cerimônia de todas possíveis influências ou, como
definido pelo grupo, uma "antropofagia ampla, geral e irrestrita". Uma re-
ciclagem geral da cultura, filtrada e mesclada pela existência simultânea
de distintos fluxos narrativos, muitas vezes contraditórios e colidentes,
sem a preocupação de uma sequência estilística a ser respeitada ou mesmo
podendo conter uma narrativa dentro da outra, desenvolvendo uma nar-
rativa em abismo, algumas vezes como as Matrioshka, aquelas lindas e
pequenas bonecas russas que perpetuam a maternidade, saindo uma den-
tro das outras, cada vez menores, ou ao revés, engolindo-se uma dentro
da outra. Um procedimento usual em tradicionais contos populares, como
o das mil e uma noites, onde uma história existe dentro da outra, muitas
vezes com interrupções de enredo. Mas em Melodrama este é usado até a
exaustão. Outra de suas proposituras se constitui na metalinguagem, com
o próprio processo de construção cênica exibido em cena, como se fossem
atores-aranhas tecendo conscientemente na nossa frente a linguagem nar-
rativa do(s) espetáculo(s) que se exibe(m), dúvidas pirandellianas de
atores, personagens e dos seres humanos que os carregam. Concomitan-
temente vemos o tempo da história mostrada juntado ao tempo das
indecisões abertas pela linguagem artística que foi construída, trazendo ao
público os elementos de uma poética da construção cênica que estabelece
pontos de vista múltiplos no colidir de cenas que se fragmentam.
Em 1990, cinco anos antes de Melodrama, o grupo encenara A Bao A
Qu (Um lance de Dados), construído com as urdiduras incertas
Robson Corrêa de Camargo | 297

apresentadas pelos contos de Jorge Luiz Borges, em seu Livro dos Seres
Imaginários, e de Lances de Dados de Stéphane Mallarmé, produzindo fa-
rinha de ótima qualidade. Mais ainda, para eles, como definem seus
autores, o teatro se torna "o instrumento dos personagens para tentar se
relacionar com o mundo", como se os personagens, além dos atores, fos-
sem seres que procurassem as portas e tablados do teatro para emitir suas
vozes, subtextos, impressões, silêncios, sobre a história que se conta com
eles. Personagens épicos, não apenas atores épicos.
O radioteatro, matéria prima de melodrama, ou radionovela como
era chamado, teve grande popularidade no Rio de Janeiro nas décadas de
50 e 60 do século XX. Por incrível coincidência, estas radionovelas e outros
programas da Rádio Nacional, como PRK-30 e o seriado Jerônimo, o Herói
do Sertão (escrito por Moysés Veltman entre 1951-1968), fizeram parte de
minha infância e pude ouvi-los, enquanto morava nos subúrbios da cidade
carioca, onde nasci e vivi entre os anos de 1952-1960.
A investigação/montagem de Melodrama durou cerca de dois anos,
seguidos por sete meses de preparação das cenas. O elenco de Melodrama,
na temporada brasileira de 1995-1996, era composto por Bel Garcia, César
Augusto, Drica Moraes, Gustavo Gasparani, Marcelo Olinto, Marcelo Valle
e Susana Ribeiro. Uma das atrizes do jovem e competente elenco teatral,
Drica Moraes, tem participação ativa como atriz nas telenovelas da Rede
Globo de Televisão (O Cravo e a Rosa, Top Model, A Lua Cheia de Amor e
Quatro por Quatro), a principal rede de telenovelas do País.
Para que tenhamos uma ideia dos textos que fazem parte do criativo
repertório da Companhia dos Atores: O Rei da Vela (2000) e A Morta
(1992-1993) de Oswald de Andrade; Cobaias de Satã (1998) e Tristão e
Isolda (1996) de Filipe Miguez; O Enfermeiro (1997-1998) de E. Alland Poe;
Cidades Invisíveis (1994) de Italo Calvino e A Baú a Qu inspirado no Livro
dos Seres Imaginários de Jorge Luiz Borges (1990-1994).
É importante que se descreva a forma de produção do espetáculo Me-
lodrama, no qual a dramaturgia foi desenvolvida simultaneamente com a
construção do espetáculo, um procedimento que se torna regra em muitos
298 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

grupos de teatro brasileiro e fundamental em muitas encenações colabo-


rativas. Assim descreve o programa da companhia:

Após dois anos de pesquisas teóricas (…), iniciamos os ensaios sete meses an-
tes da estreia, sem uma linha (de texto) escrita qualquer. Tudo foi novidade
neste processo, para ambas as partes (elenco e dramaturgo). Pela primeira
vez, a Cia. Dos Atores trabalhou com o acompanhamento direto de um autor.
In Diaz, Cordeiro, Olinto (org.) Na Companhia dos Atores. RJ: Aeroplano,
2006, p.15)

Estamos diante de um espetáculo construído em um processo simul-


tâneo: texto, espetáculo e interpretação. O processo de criação dramática
resultou, como descreve seu autor Filipe Miguez, na criação das persona-
gens, tramas, cenas e diálogos “sob medida para a embocadura de cada
ator e para a concepção de espetáculo do diretor”. No processo de trabalho
o diálogo entre o autor e a cena proporciona uma maior apropriação por
todos os seus integrantes, e a elaboração de um discurso teatral que trans-
cende o da história contada.
A crítica brasileira, de maneira geral, analisou o espetáculo dentro
das perspectivas apresentadas pela direção: “A peça se dedica a apresentar
um panorama do gênero melodramático como referência cultural, com
situações turbulentas e diálogos pomposos. Melodrama é composto de
pequenas e significativas histórias que se entrelaçam com humor.”2 Mas,
como veremos, o texto-espetáculo atinge outras dimensões que
necessitam ser abordadas. Melodrama supera o simples panorama. O
espetáculo constitui-se a partir do entrelaçamento de três histórias que se
desenvolvem paralelamente, aparentemente sem relação, construindo um
discurso crítico que discute a própria linguagem teatral, uma reflexão
sobre a forma de compor e de presentar.
Alternando-se exibem-se três histórias “dramáticas” em forma domi-
nante: cortes que apresentam momentos das histórias de dois
personagens, o “Ébrio e Amnésico”, a segunda história “Laços de Sangue”

2
www.ciadosatores.com.br , acesso em 27 de abril de 2001.
Robson Corrêa de Camargo | 299

e, por último, “Na Saúde e na Doença”. Não bastassem estas três histórias
“dramáticas”, teremos o cruzamento ou choques de interferências narra-
tivas constantes nestas histórias, algumas feitas em tom de diálogo com a
plateia pelos próprios personagens, como apartes. A interrupção torna-se
parte do jogo e o próprio jogo. Tudo se entrecruza, tudo se interrompe.
Estas interferências acabam trazendo outra dimensão dentro da peça,
modificando o desenvolvimento e a compreensão das histórias apresenta-
das. A interferência acontece pela manipulação ou introdução de
elementos das linguagens narrativas dos meios de comunicação de massa
na representação, como o cinema, a televisão e o próprio rádio. Estes en-
contros ou diálogos da Cia trazem para a ribalta não apenas a história de
palco, mas o embaralhar da própria forma narrativa, o autor/narrador/di-
retor/atores ocultos passam também a serem personagens. Trago em
seguida alguns elementos destas histórias principais que alimentam o es-
petáculo.

História Principal: o Amnésico e o Ébrio

A primeira história que denomino como principal, pois abre e fecha


o espetáculo, conformando uma sutil amarração, embora não tenha o
maior tempo de exposição, muitas vezes solilóquios. Ela é formada por
duas personagens masculinas que começam e terminam a representação.
Inicialmente são apresentadas como indefinidas e antitéticas, meras cria-
turas arquetípicas, são as menores cenas das três histórias aqui listadas.
O espetáculo inicia-se quando surgem duas personagens em cena:

“Entram no palco, o Amnésico e o Ébrio. Se reconhecem por um instante e se


atracam, num movimento de atração e repulsa”.3

Em seguida, esta cena curta e inicialmente incompreensível, será in-


terrompida pelo início da segunda história ou trama: Laços de Sangue, esta

3
Texto enviado pela produção do espetáculo, via internet, em novembro de 2000.
300 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

sim uma “verdadeira” história ou melhor um drama tradicional. Mas, por


enquanto, vamos nos deter na cena desta história "principal". Não conhe-
cemos ainda, como espectadores, o nome das duas personagens de fraque
que se atracam ou seus desejos, pois estão emudecidas. Numa cena em
pantomima, sem nenhum diálogo, abraçam-se e golpeiam-se num jogo
inicial de atração e repulsa que se apresenta a nossos olhos na “porrada”.
A cena será repetida na metade do primeiro ato, quando, então, as
duas personagens se apresentam agora, uma a cada vez. Seguindo o mo-
nólogo podemos saber que Ébrio era um homem feliz, casado, a esposa
amava-o, mas era um ciumento contumaz. Amnésico, em outra ocasião,
entrará em cena interrompendo bruscamente uma das tramas e dirigir-
se-á à plateia, informando sua condição de haver acordado em uma sarjeta
sem memória: “Eu sou um rosto sem história, um corpo sem idade, um
coração sem calor….”. São personagens que serão acompanhadas na pro-
fundeza psicológica do mal que as aflige, a bebida e o esquecimento,
enquanto procuram expor a dor motivadora de suas atitudes ante a pla-
teia.
No segundo ato as personagens aparecem, algumas vezes, em entra-
das rápidas e paralelas, alternando-se com os quadros de Laços de Sangue
e Na Saúde e na Doença. Aparentemente distantes das duas histórias, que
se apresentam sucessivamente, a cena desenvolvida por Ébrio e Amnésico
serve como praticamente um entreato. Entretanto, este procedimento mu-
dará ao final. O entreato revelar-se-á como o de uma trama unificadora.
A plateia não entende bem o que acontece com os dois, até quase o
final da peça, pois há poucos diálogos entre Ébrio e Amnésico, que são
personagens monológicas até praticamente o término da representação.
Aos poucos, estas duas figuras serão percebidas em seus solilóquios nar-
rativos. Personagens que aparecem como um segredo do autor, sem nome
e sem destino, que será revelado aos poucos. Se, em tom confessional, du-
rante suas entradas, Amnésico e Ébrio dirigiam-se diretamente à plateia,
descrevendo seu drama individual com apelos desesperados ao público, ao
final isto mudará. A procura e ou repulsa angustiada do Amnésico pelo
Robson Corrêa de Camargo | 301

encontro de sua identidade, de seu rosto identificador, vai adquirir um sig-


nificado que só será restabelecido plenamente ao final da representação.
Na grande revelação total, da cena final.
Ébrio é umas das personagens em polaridade oposta a Amnésico,
que, como o nome descreve, de nada se lembra; Ébrio, ao contrário, é ci-
ente de seu passado e seu destino, relatando seu objetivo ardente de, meio
da bebida, para conseguir o esquecimento de um rosto que o persegue
constantemente:

Eu fui o homem mais feliz que essa cidade já viu... Como médico, eu salvei
vidas. Como homem, eu tive o amor da mais magnânima das mulheres. Mas
dentro do meu peito crescia uma doença. O ciúme. Varado dia e noite, eu con-
trolava cada gesto, cada passo, cada olhar, cada suspiro da minha amada. Até
que um dia, decidi forjar uma viagem a negócios. Na surdina daquela madru-
gada, esgueirei-me para dentro de meu quarto e, munido de um castiçal,
percebi, para meu horror, que Lucíola não dormia sozinha! Traindo-me em
minha própria cama! Cego de ódio, três tiros desferi, e quando ía fazer o
mesmo com o homem que me roubara o amor, vi surgir, por debaixo das co-
bertas, o rosto de minha filha, assustado pelos estampidos do revólver. Desde
aquela madrugada sinistra, fujo de meu passado. Mas o mundo é pequeno,
senhores, e meu passado tem o peso do chumbo. Está aqui, comigo, agora.
Está onde quer que eu vá. E é por isso que suplico... tenham piedade deste
pobre verme, conservado em álcool! Uma dose, apenas mais uma dose! E eu
juro que me vou! (Diaz, E. (org) Na Companhia dos Atores. Rio de Janeiro,
Aeroplano, 2006, p. 30)

Na busca complementar de ambos, um personagem procura o esque-


cimento da morte que cometeu indevidamente (Ébrio) e o outro a
memória (Amnésico) – percebe-se que uma personagem carrega em ex-
cesso o que falta completamente na outra, a memória, a culpa, o
esquecimento. Estas duas personagens, aparentemente, marginais ao es-
petáculo, iniciam um processo de fusão ao se aproximar o final da peça,
cedendo, Ébrio a Amnésico, seu passado e sua memória. Descobre, assim,
Amnésico seu nome: Geraldo, médico de profissão, casado.
Ao terminar a peça, Geraldo encontra sua identidade e com ela sua
sina e o mote de sua culpa e, em seguida, desfere um tiro na cabeça,
302 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

desesperado pela descoberta daquilo que tanto procurava. Ao fundo, a pla-


teia verá uma foto projetada, com a sobreposição do rosto dos dois atores
e ou personagens agonizantes, Ébrio/Amnésico, que são agora apenas um.
Na verdade, as duas personagens antitéticas, são parte de um mesmo ho-
mem cindido, descontruído, vistos como dois diferentes, mas parte da
mesma totalidade em pugna. Como a peça desvelam um quebra-cabeças
que se monta, mas que só pode ser construído ao final. História das per-
sonagens, história da encenação, pois agora farão mais sentido as cenas
interpostas e intercaladas. Ao final ouvem-se vozes soltas na escuridão,
enquanto se finaliza o espetáculo. Vejamos como descreve exatamente o
texto a sua cena final:

AMNÉSICO – Eu sou um assassino!


ÉBRIO – Bebo para esquecer...
AMNÉSICO – É meu o sangue que bebo!
ÉBRIO – Não suporto mais viver!
AMNÉSICO – Três tiros desferi...
ÉBRIO – Apenas um tiro certeiro...
AMNÉSICO – E flutuo no ar...
ÉBRIO – Um vento de fogo em meu tímpano...
AMNÉSICO – Minha cabeça parece rebentar!
Ouve-se um tiro. O Ébrio grita e o Amnésico cairá morto. Surge ao fundo do palco, a
imagem de um rosto formado pela junção das faces do Ébrio e do Amnésico.”
Em seguida, a luz começa a diminuir até a escuridão total, enquanto se ouve:
ÉBRIO (OFF) – Faz frio...
MARLI 1 (OFF) – Levem-me até ele...
ÉBRIO (OFF) – Vejo apenas cabeças que se inclinam...
MARLI 2 (OFF) – O Geraldo não...
AMNÉSICO (OFF) – Olhos de nojo e fascínio...
MARLI 3 (OFF) – Qualquer um menos o Geraldo!
ÉBRIO (OFF) – Quem é a moça que chora?
MARLI 2 (OFF) – Geraldo não pode ser...
AMNÉSICO (OFF) – Uma mosca pousa em minha boca e logo voa...
ÉBRIO (OFF) – As pessoas falam...
AMNÉSICO (OFF) – Nada ouço...
ÉBRIO (OFF) – Shhh!
AMNÉSICO (OFF) – Silêncio!
Robson Corrêa de Camargo | 303

Sim silêncio. As duas personagens conseguem agora uma identidade,


um nome e um rosto, Geraldo. O final da peça acontece imergindo na es-
curidão total, entre vozes que se ouvem e com a voz da personagem morta,
pedindo silêncio. Com o suicídio desta personagem cindida e agora unifi-
cada no ato de morte, a peça termina, como um possível devaneio de Ébrio
e ou Amnésico em seus últimos momentos de vida. Esta fusão também
mostra, com a intromissão das personagens Marli 1, 2 e 3 que todas histó-
rias se superpõem em uma fusão das camadas das histórias que estavam
cerzindo o drama. Por trás da dicotomia aparente de toda a peça, havia
uma unidade que o público só pode perceber, com muita atenção, ao final.
Como se os autores afirmassem que a visão do público é simplista e dico-
tômica, mas não as personagens.
O diretor Enrique Diaz afirma que estas duas personagens são a
ponta contemporânea de seu Melodrama, mas, mais do que isto, são a
chave para a compreensão do espetáculo e de sua urdidura dramática. A
representação teatral construída pela dupla diretor-autor, apenas aparen-
temente se apresenta como um painel ou como mostra de alguns dos
estilos em que se teria multiplicado o melodrama. Vejamos este aspecto
mais detalhadamente.
Com o melodrama, o teatro entra no alvorecer da era da comunicação
de massa e alguns de seus textos chegarão a ser encenados mais de mil
vezes, poderia se dizer que o melodrama é o gênero da media em seus
diferentes aportes, jornalismo, comerciais, séries televisivas, teatro, circo,
rádio, cinema, fakenews. Este fato, o desenvolvimento da comunicação de
massas, resulta no desenvolvimento maior da dramaturgia, na abertura
de uma grande habilidade dos autores de manter a atenção da plateia em
todos os seus meios, desenvolvendo-se inúmeras de técnicas dramáticas
com este fim.
Assim, algumas destas técnicas seriam utilizadas para segurar a aten-
ção do espectador de uma para a próxima cena, desviando a ação do curso
esperado, promovendo bruscas viradas na trama, ou de uma para outra
304 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

transmissão que pode levar meses ou anos. Por meio desses desvios de
percurso, procura-se um reforço no desenvolvimento da trama o que,
muitas vezes, traria uma revelação inesperada após a outra, até a grande
revelação final que solucionava então a peça, ou anunciava uma nova ver-
são de De Volta ao Futuro. Na tessitura do melodrama este procedimento
é conseguido com o uso do segredo.
Sergei Dmitrievich Balukhatii (1893-1945), como vimos anterior-
mente, aponta duas das formas comuns de utilização da técnica do segredo
no gênero melodramático (Balukhatii, 1926). O segredo era considerado
pelo crítico formalista como o mais poderoso fator na dinâmica do melo-
drama, permitindo ao melodramaturgo segurar a atenção do espectador
continuamente durante a representação. Este segredo poderia ser apre-
sentado como um fato desconhecido por parte das personagens ou de
todas as personagens envolvidas no texto, ou ainda, das personagens e do
espectador, configurando-se como um segredo total, ocultado pelo drama-
turgo e pelos atores ao público.
Neste processo, o espectador será levado a adivinhar a natureza do
segredo, enquanto vai se descortinando a peça teatral, ou, se pensarmos
no Melodrama em seu desenvolvimento histórico, como programa de rá-
dio, cinema, tv, série de assinatura, desenhos animados, com algumas
pistas que serão espalhadas pelo autor no desenrolar da história, e, certa-
mente, muitas pistas falsas. Esta gradual revelação, como aponta
Balukhatii dava ao melodrama sua “tensão composicional” (Gerould, 1978,
p. 157). Como um simples ato de magia leva-se o espectador a um olhar
para um lado, enquanto a mão esperta constrói outro caminho.
O segredo total será um dos fundamentos composicionais na cons-
trução do espetáculo Melodrama da Cia dos Atores. A simbiose do Bêbado
e de Amnésico será a grande revelação que finaliza o espetáculo. O slide
mostra as duas figuras unificadas e ouvimos um diálogo que permeia o ato
de suicídio.
No início da representação, estas personagens são mostradas como
seres que se assemelhavam a arquétipos (do grego arché, origem,
Robson Corrêa de Camargo | 305

princípio) ou modelos originais, vão os dois caminhando durante a apre-


sentação por um processo de individualização. O reconhecimento de seu
rosto, de seu passado, de sua história e de sua culpa ocorre até surgirem,
finalmente, como um só. A jornada das duas personagens inicia-se em um
caminho esquemático tipificado para tornar-se um indivíduo complexo
que, na verdade, sempre foram.
O esquemático era a representação ou nossa compreensão. O conflito
particular de cada uma dessas duas personagens em foco é conformado,
já que a exclusão de uma personagem em relação a outra não é uma antí-
tese. Uma tem o que a outra personagem procura, são complementares.
Não é um conflito entre o bom e o mau caráter, que se tornou comum em
muitas das personagens de determinado tipo de melodrama, mas, sim,
elementos do conflito interior de uma personagem cindida, um conflito
complementar de exclusão. Talvez, por isso, vejamos a morte teatral des-
sas personagens ao final de Melodrama. Ao perder seu caráter arquetípico,
assumindo uma personalidade, Geraldo fica impossibilitado de continuar
a existir no mundo polarizado que o melodrama parece apresentar. Com
o encontro da memória, da culpa, do conflito interior, do passado, a per-
sonagem ganha uma dimensão tridimensional.

Segunda História: Laços de Sangue

As duas outras histórias desenvolvidas no espetáculo são elaboradas


de uma maneira mais convencional, se levarmos em conta apenas a cons-
trução e a apresentação delas. A “tensão composicional” destas continua
acompanhando os mesmos procedimentos até agora sublinhados: o se-
gredo e o segredo total.
Uma destas tramas chama-se Laços de Sangue e tem como tema os
problemas da paixão, dos incestos e do adultério em uma família. Laços de
Sangue desenvolve-se em cinco capítulos bem divertidos que se repetem,
como uma novela, em cinco quadros distintos que permeiam a peça. É in-
teressante acompanhar como o autor apresenta as personagens dessa
306 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

trama, são quatro (o pai, a mãe e um jovem casal apaixonado) que vivem
o inusitado drama das revelações de incesto e das notícias de provável
adultério em uma família num determinado tempo histórico.
Um dado da escritura espetacular desta encenação e uma grande sa-
cada que leva a plateia ao delírio é a forma de apresentação. Se a história
de Laços de Sangue tem uma continuidade lógica no desenvolvimento do
conflito em cada um dos cinco episódios apresentados, o lugar histórico e
o estilo de desenvolvimento de cada capítulo da trama e o nome das per-
sonagens serão mudados.
Vejamos com mais detalhes: no primeiro ato, o primeiro episódio terá
inicio no Rio de Janeiro dos anos cinquenta do século XX, sendo encenado
como um melodrama ao estilo de um Nelson Rodrigues um pouco exage-
rado, ou de um programa de rádio-novela; continua depois a historia
sendo desenvolvida no segundo episódio numa masmorra francesa, reme-
tendo-nos agora a uma caricatura melodramática do teatro clássico
francês pré Revolução Francesa; a terceira parte, parodiando os filmes de
faroeste, tem sequência numa fazenda do oeste norte-americano, em
Oklahoma City. A história vai sendo desenvolvida, mas em diferentes tem-
pos históricos, e estilos que não se compõem num desenvolvimento linear.
No segundo ato, esta mesma trama vai se desenvolver primeiro num ca-
baré portenho do início do século XX, num frenético ritmo de tango,
finalizando num quadro ao estilo de uma ópera italiana. Sim os auto-
res/atores querem bagunçar nossas referencias e nossas cabeças.
Vejamos alguns trechos do texto. A situação detonante do conflito
será dada por um jovem e enamorado casal (Maria Silvia e Carlos Arthur)
que deseja casar, apesar dos protestos vigorosos do pai. Cônscios da pro-
vável recusa do pai, a noiva vai revelando no diálogo as provas que
deveriam fazer o pai aceitar inapelavelmente a união dos dois, entretanto,
vejamos:

GOMIDE (explodindo) – Você não vai me contrariar! Não vai se casar com esse rapaz
e ponto final!
MARIA SÍLVIA – É tarde, papai.
Robson Corrêa de Camargo | 307

GOMIDE – Repete!
MARIA SÍLVIA – É tarde demais para qualquer retaliação.
GOMIDE – Repete!
MARIA SÍLVIA – Eu já fui de Carlos Artur!

A cena terminará logo após esta drástica revelação de rompimento


prático de um código moral: a união antes do casamento. Entretanto, se-
guindo o código folhetinesco, o desfecho desta cena deve se dar num
clímax que mantém a atenção do público para o próximo episódio de Laços
de Sangue, temos assim a apresentação de uma nova descoberta que com-
plica esta trama na última fala do pai neste primeiro episódio, repetida
para ênfase:

GOMIDE – Que erro você cometeu, não dando ouvidos ao seu velho paizinho. Porque
Carlos Artur, Maria Sílvia... Carlos Artur, Maria Sílvia! Carlos Artur é teu irmão!
Transição Coreográfica. Desmancha-se a cena de Gomide.

Aqui deve ser observada a constante repetição que a personagem Go-


mide faz de suas falas num crescendo da tonalidade vocal que busca
ressaltar o texto pela importância retórica do que era dito, em uma ênfase
própria da forma de atuação do radioteatro brasileiro em meados da dé-
cada de 1950. O espetáculo utiliza também a repetição para carregar não
apenas no padrão de interpretação, mas, a exposição dos conflitos.
Esta repetição exagerada não foi uma característica do melodrama
teatral em seu surgimento, mas, essencial ao radioteatro. Nos próximos
capítulos de Laços de Sangue, ou melhor, nos próximos trechos teatrais a
ação dramática será retomada donde foi deixada pelo último episódio
apresentado, mas em outro estilo e época histórica.
Após a primeira cena da família Gomide, Laços de Sangue tem um
corte e a entrada da primeira cena de outra trama de nosso texto original
Melodrama, agora, veremos Na Saúde e na Doença, que detalharemos mais
à frente.
O segundo episódio de Laços de Sangue será desenvolvido em um
castelo na França, no período anterior à Revolução Francesa, mas com a
308 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

mesma situação dramática em que se encerrou o trecho anteriormente ci-


tado de Gomide. Este agora se torna o Conde de La Rochefoucauld.
Diferentes personagens, mas, mesmas funções. A mesma história em ou-
tras histórias, não é apenas o melodrama que se repete, mas, a
humanidade. Observemos as falas iniciais desta personagem em compa-
ração com as finais de Gomide no primeiro episódio:“Que erro tu
cometeste, Mirabelle. Que erro tu cometeste não dando ouvidos ao teu ve-
lho pai. Porque Jean-Louis, Mirabelle, Jean-Louis é teu irmão”.
Aqui se repete, inclusive, a construção frasal feita por Gomide ao ter-
minar a cena de Laços de Sangue: “Porque Carlos Artur, Maria Sílvia...
Carlos Artur, Maria Sílvia! Carlos Artur é teu irmão!”
Os nomes das personagens são mudados, mas a situação é a mesma.
Neste episódio, Mirabelle vai revelar-se grávida de seu atual amante, irmão
pelo destino. Fruto do desconhecimento, ela compartilhara não apenas o
mesmo leito com amante/irmão, mas, um filho.
Vejamos o próximo episódio de Laços de Sangue, desenvolvido agora
em Oklahoma City. Mirabelle, antes Maria Sílvia, agora está em trajes que
se assemelham ao das famílias do oeste norte-americano, na versão que o
cinema divulgou e a televisão fez conhecida, seu nome agora é Mildred,
que se debate com os problemas de ter um filho de uma relação incestuosa,
mas, com o apoio materno decide deixá-lo nascer. O pai, agora Billy John,
antes Gomide e Conde de La Rochefoucault, não suporta a humilhação e
exige o aborto. O conflito será solucionado com a revelação de outro se-
gredo, mantido por anos pela esposa Dorothy. Esta resolve revelar que os
irmãos (Mildred e Cameron) “nunca foram e nunca serão irmãos”. Na ver-
dade, Mildred era filha de outra relação de Dorothy. Nada mais imoral que
a própria moral, o incesto, na verdade, não foi completo, pois eles eram
apenas meio-irmãos, graças à traição materna.
Estamos ao final do primeiro ato, temos aqui o ápice da peça que
atinge o máximo de seu clima trágico e cômico. Cada vez que se afirma
uma verdade em cena, ao final ela será contraditada. Agora temos uma
interrupção com a confissão da mulher adúltera.
Robson Corrêa de Camargo | 309

Neste momento, o espetáculo não apresenta mais cenas de melo-


drama, estamos diante de um jogo farsesco. Se a linha entre a tragédia e a
comédia sempre foi tênue, na perspectiva dos artistas que a representam,
aqui o melodrama é uma farsa de estilo.
A irreverência, a interpretação exagerada, os elementos da comédia
de costume nos levam a um polo oposto ao do melodrama. O público ri
muito das imensas e rápidas reviravoltas não apenas da situação do episó-
dio, mas de todo o episódio em si. Assim, com esta cena termina o primeiro
ato, como uma grande farsa, a farsa do melodrama.
As cenas de Laços de Sangue continuarão no segundo ato, seremos
transportados primeiramente a um cabaré argentino, porém, o segundo
ato não tem espaço para a farsa. A música, a direção e os conflitos das
personagens e o estilo da encenação nos levam a outra dimensão dramá-
tica. Dorothy torna-se agora a esposa Remedios. O diálogo deste quadro
será iniciado com Remedios (sic) dizendo em alto e bom-tom e num im-
pecável sotaque portenho: “Tranquila, Consuelo. Tranquilos, todos.
Consuelo e Julio José puedem amarse! No son ni nunca fueran hermanos”.
Mas, o pior, Remédios implicitamente está afirmando que é uma mulher
adúltera, pois Consuelo é filha de outro homem. Gutierrez, o pai, ante o
inusitado da revelação, atira três vezes em Remedios que agora agoniza.
Cada episódio de Laços de Sangue intercala-se com as outras tramas.
Cada episódio se passa em um momento e estilo histórico diferentes, o que
os unifica são realmente os atores que vivem as mesmas personagens, o
pai, a mãe, e os dois jovens que desejam se casar. O estilo carregado da
locução do radioteatro mantém-se também por igual em todas as cenas.
Esta interpretação carregada e polarizada, que oscila entre o grotesco e o
natural, auxilia o tom de falsidade presente na interpretação destas cenas.
Agora o que está em cena é a interpretação, dos atores em seus diferentes
papéis, e do público perdido neste caleidoscópio que tenta organizar.
Estes episódios são representados em cenários diferentes e carregam
uma revelação ou um ponto de tensão que será sempre desfeito. Aqui
310 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

também temos o segredo, mas é o que uma personagem escondeu da outra


por muito tempo.
Na encenação, este encadeamento sucessivo atrai o público a se inte-
ressar por outro segredo, a leitura do espetáculo. Pela repetição,
Melodrama vira farsa, vira radioteatro, vira melodrama e vira quase uma
tragédia. Neste mundo dramático teatral, onde não se procura a realidade
naturalista, o jogo de representação que se estabelece é de constante ques-
tionamento da aparência, no qual a vida é um melodrama e tudo o que é
estabelecido está em mutação.
Se a representação mudar a cada instante, qual será o próximo
passo? Para onde seremos levados? Não sabemos. O grupo nos quer per-
didos a montar um quebracabeças que parece simples, mas não é. Como
num parque de diversões, esperamos o próximo efeito teatral que nos sur-
preenderá. O equilibrado e antitético mundo moral do melodrama
encontra-se seriamente abalado pelo movimento frenético impingido pelo
grupo na rotação das cenas, de seus valores e estilos. Um melodrama es-
tranhado que foge da unidade e da identificação.
Embora as personagens de Laços de Sangue sejam distintas em cada
episódio pela caracterização, pelo nome e estilo da ação representada, os
atores vivenciam personagens que embora diferentes carregam a mesma
ação. Se Ébrio e Amnésico são arquétipos iniciais que vão paulatinamente
transformando-se em indivíduos com história, as personagens tipificadas
de Laços de Sangue vão se tornando personagens arquetípicas. Sucessiva-
mente, Fernando Eiras interpreta sucessivamente, nos episódios de Laços
de Sangue, os maridos Gomide, Conde de La Rouchefoucault, Billy John
Buster, Gutierrez e Don Manfredo. Todos têm a mesma atitude de pai au-
toritário, machista, apesar da mudança do momento histórico da situação.
Mais do que personagens são ações, são vetores de força e sua atitude
monotonizada frente aos problemas morais e amorais que surgem, apesar
da mudança da situação histórica, frente a uma plateia, que não entende
da mesma forma os mesmos valores que ele defende, produzem um cho-
que. O momento histórico muda-se no estilo, ao passo que, na verdade,
Robson Corrêa de Camargo | 311

nada muda, ou melhor, a verdade não se muda. Os valores morais só têm


vigência porque estão congelados na história.
O procedimento é uma constante entre as personagens de Laços de
Sangue. Susana Ribeiro interpreta Eunice, Mathilde, Dorothy, Maria de
Los Remédios e Giuseppina, e o mesmo também ocorre com o casal vivido
pelos atores Marcelo Olinto e Bel Garcia.
Estas quatro personagens adquirem em caminho inverso ao constru-
ído com Ébrio e Amnésico, uma dimensão cada vez maior, pois tornam-se
agora O Pai, A Mãe, Os Filhos e Amantes, portadores que são de forças
maiores que os transportam, adquirindo uma força quase trágica ao final.
Com a repetição lograda por meio da manutenção do intérprete, com a
reprodução do mesmo conflito básico, ao redor do ciúme, esta parte da
trama acaba manifestando uma dimensão crítica, maior que apenas a da
exposição panorâmica do gênero melodrama.
Para Balukhatii, a composição melodramática não se constrói em um
caminho direto, linear até o ponto culminante e com um rebaixamento
desta tensão dramática, depois do ponto culminante até o término da re-
presentação.
No melodrama, esta tensão constrói-se agora como um movimento
em camadas, pela qual se acrescenta uma nova fase ao conflito, com novos
obstáculos e adiamentos da resolução (non resolutions), nesta medida,
tem-se acesso a um novo degrau de intensidade dramática. A nova “quali-
dade” da intensidade dramática, construída em camadas cria um reforço
da percepção dramática por parte do espectador. Esta intensidade dramá-
tica em camadas não terminará até a resolução final (Gerould, 1978, p.
158). O Melodrama gênero polimorfo é, na verdade um novo gênero, que
apresenta novas regras para o contar histórias e muito mais poderoso que
os anteriores.
Laços de Sangue é uma mostra desse procedimento de construção
por camadas no gênero melodrama com a reiterada repetição. Nós, elenco
e plateia, agora estamos no final do século XX, sentados adentrando um
novo. Fazem parte das camadas melodramáticas não apenas o misturar
312 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

explícito de distintos gêneros, mas o próprio estilo e linguagem, não é o


contar histórias apenas, mas o como se conta está também em cena.
Na última parte desses episódios, veremos Don Manfredo e Giu-
seppina, personagens da Nápoles do século XIX, como partícipes de uma
ópera em que se repete, o julgamento público moral de Remedios/Giu-
seppina e seu assassinato. Mas antes do final, agonizante, ela revelará seu
grande segredo. Contrariando expectativas, ela é inocente. Giuseppina
fora estuprada por um ladrão que invadiu sua casa e seu leito. Vejamos
detalhadamente como a cena é apresentada no texto:

Entra Don Manfredo. O pai da Família Italiana.


DON MANFREDO – Não suporto ver-te viva!
Entra Giuseppina, a mãe, para quem Don Manfredo se dirige.
DON MANFREDO – Gargalhas da minha dor!
GIUSEPPINA – Clemência!
DON MANFREDO – Ide, dor! Finda, agonia! Morra, Giuseppina!
Don Manfredo esfaqueia Giuseppina três vezes. Michaella, a filha, entra a tempo de
assistir à cena. Giuseppina vira-se, sangrando.
GIUSEPPINA – Dor! Dor!
MICHAELLA – Sangue merecido, lava o chão deste mercado!
GIUSEPPINA – Horror! Borbulha, sangue de meu ventre!
DON MANFREDO – Sangue traidor, teu destino é o mar!
GIUSEPPINA – Que morra a traidora! Deixa sangrar.
GIUSEPPINA – Filha ingrata, filha minha? Tens vergonha do ventre que agora san-
gra? Pois, há mais do que te envergonhar!
GIUSEPPINA E CORO – Michaella! És filha de um ladrão!
MICHAELLA – Calúnia! Infâmia! É azul o sangue de minhas veias!
Giuseppina, fraca, cai de joelhos.
DON MANFREDO – Cala-te, por caridade...
GIUSEPPINA – Sim, Don Manfredo, jamais traí teu amor. O destino, cruel senhor
dos gracejos mórbidos. Fez um ladrão entrar em meu leito. E deixar em meu ventre
esta cria!...
DON MANFREDO – Fatal engano!
GIUSEPPINA – Letal bainha...
DON MANFREDO – Cruel destino!
GIUSEPPINA – A nívea lâmina que me trespassa...
DON MANFREDO – Perdoa-me, Giuseppina!
Robson Corrêa de Camargo | 313

GIUSEPPINA – Perdooa ti. Perdooa quem me dá perdão. Não perdôo, Michaella!


MICHAELLA – Teu perdão me é inútil. Assim como tua morte! Meu amado se foi,dei-
xando em meu ventre seu filho!
GIUSEPPINA – Dor!
DON MANFREDO – Pára teu curso, tempo voraz!
Giuseppina morre, nos braços de Don Manfredo.

Laços de Sangue termina o segundo ato com o cruel assassinato da


mãe, inocente. Este acontece quase ao mesmo tempo que o suicídio de
Ébrio e de Amnésico, na cena final já mencionada.
Se, no melodrama, o final era o espaço onde o universo adquiria uma
ordem reestabelecida e feliz, um final duplicado, com a morte, prisão ou
arrrependimento do vilão, o final de Melodrama é o final das mortes, atro-
pelamentos e suicídios das personagens, inocentes ou culpadas. Seu final
agora é o unificado das tragédias e do drama, depois do desmonte do gê-
nero feito pelos atores e artistas em todos os momentos da peça. Geraldo,
recuperado da Amnésia, é o marido que se suicida por haver matado erro-
neamente sua esposa, por ciúme.
O espetáculo caminha aqui a seu final. Enquanto se resolve nesta cena
a trama de incestos e ciúmes de Laços de Sangue, Amnésico, paralela-
mente, em seu processo de recuperação de memória, lembra-se do
assassinato que cometeu e inicia-se o processo de fusão, não apenas de sua
personagen com a do Ébrio, mas também desta trama com a do assassi-
nato de Laços de Sangue. Ao mesmo tempo, que Don Manfredo esfaqueia
Giuseppina três vezes, Amnésico recorda: “três tiros desferi”.
O assassinato de Giuseppina será uma reiteração das lembranças do
assassinato cometido por Amnésico Geraldo. Quase imediatamente após o
assassinato de Giuseppina, um segundo depois, dar-se-á o suicídio de Am-
nésico e o surgimento da projeção que funde o rosto de Ébrio e de
Amnésico.
Não são apenas o melodrama e suas histórias que são apresentadas,
não é apenas o estilo ou os procedimentos do melodrama, que são o tema
desta representação. Estamos frente a uma reconstrução do melodrama
que o submete a procedimentos, tanto da comédia como da tragédia. Como
314 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

num jogo, o autor e o elenco divertem-se em trocar as expectativas do gê-


nero e levá-lo a outras paragens dramáticas. Mariângela Alves de Lima,
crítica de O Estado de São Paulo é uma das que aponta este processo: “A
direção de Enrique Diaz (…) reza pela cartilha da tendência contemporâ-
nea, ou seja, admite que o efeito estético repousa mais sobre os meios de
construção da arte que sobre os temas (4/5/1996).”
Uma descrição acurada do jogo da Cia dos Atores que produziu Me-
lodrama vai aparecer no Diário de Cádiz, numa entrevista do próprio autor
ao diário da cidade: “a obra se entrelaça com o absurdo (…) (n)uma estru-
tura cubista porque os detalhes vão se distorcendo” (Miguez, 28/10/2000,
p. 66). Esta ideia é reforçada pelo depoimento da atriz Susana Ribeiro na
mesma entrevista. A atriz aclara que a manipulação desses fragmentos foi
definida dentro do processo criativo dos ensaios, o que denota o significado
da participação dos atores no processo de construção do espetáculo e de
sua linguagem:

Trabalhamos com uma dramaturgia flexível e fragmentada, com a ideia simul-


tânea de comédia e tragédia, de várias possibilidades para uma mesma cena.
Sempre com o objetivo de dizer ao público que este é um jogo e que estamos
fazendo teatro e comemorando-o como uma possibilidade de estar presente
no tempo.

Não são apenas o melodrama e seus estilos que estão em cena. A


equipe artística de Melodrama consegue fazer perceptível seu objeto, o me-
lodrama, ao inseri-lo em confronto com uma realidade artística distinta,
ao estendê-lo a diferentes níveis de expressão. O grupo utiliza o melo-
drama como um caleidoscópio, onde os fragmentos juntam-se em uma
nova medida e isto cativa o espectador. Não é apenas a mimeses o que
interessa, mas, o jogo com o procedimento artístico (Chklóvski). Frente a
outras dimensões dramáticas, os artistas interpretam não apenas a mi-
mese da realidade com suas histórias, mas a mimese do próprio teatro.
Não apenas representam, mas presentam. Os autores realizam um deslo-
camento semântico, separam o melodrama de seu ambiente original e
colocam-no em contraste com outras séries semânticas. O melodrama,
Robson Corrêa de Camargo | 315

gênero que devorava seus contemporâneos, mostra-se adequado a este


tipo de apresentação.

Terceira História: Na Saúde e na Doença

Esta é a terceira história a alternar-se na representação, retrata a vida


de uma moça pobre, Doralice (Malui Galli) que tem a felicidade de con-
quistar a atenção de Adolfo (Marcelo Valle), filho do rico proprietário da
empresa onde trabalha. Antes do casamento, descobre-se que Adolfo tem
um irmão gêmeo, Augusto. Este se aproveita da situação e consegue com
Doralice um encontro amoroso, fazendo-se passar por Adolfo. No segundo
ato, descobrimos que, na verdade, Adolfo e Augusto são a mesma pessoa.
Adolfo é apenas um esquizofrênico. Ao final, a dedicação e o amor de Do-
ralice por Adolfo vão levá-lo a cura da doença que impedia a felicidade do
casal, pelo menos, é o que ouviremos, contado pela voz de Doralice.
Na Saúde e na Doença, utiliza o procedimento narrativo como parte
do espetáculo. Aparentemente, é a história mais tradicional das três. Mas
aqui os detalhes revelam muito das intenções do autor/diretor/elenco ao
construir a representação. Na Saúde e na Doença, vai incorporando vários
níveis narrativos, um após o outro até se revelar como a representação de
uma radionovela. Esta trama inicia-se com a personagem Doralice nar-
rando:

TRANSIÇÃO COREOGRÁFICA. DESMANCHA-SE A CENA DE GOMIDE E DORALICE


ENTRA, INDO ATÉ O PROSCÊNIO.

DORALICE (narrando) – Eu já completara 16 primaveras e cursava o último ano


colegial quando meu pai faleceu, após uma longa e terrível enfermidade, deixando-
nos inconsoláveis e em má situação financeira. Já estava disposta a procurar um em-
prego, quando veio visitar-me uma amiga...
ZULMIRA SURGE EM CENA, BATENDO PALMAS.

ZULMIRA – Doralice, querida!

DORALICE – Zulmira!
316 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

Como vemos, após apresentar sua personagem, em primeira pessoa,


Doralice imediatamente entra no jogo cênico e dialoga com Zulmira (Bel
Garcia). Estabelece-se na cena um nível narrativo e outro dramático.
Doralice continuará com este jogo até o final da trama, alternando a
personagem que interpreta com a narradora que apresenta os fatos de sua
vida. Doralice conta sua própria história à plateia. As outras personagens
da trama não assumem esta atitude narrativa. Como personagens agem
dramaticamente em relação a Doralice, dramatizando sua narrativa. Apa-
rentemente, estamos diante de uma representação teatral, porém,
enquanto a cena progride, elementos cênicos serão inseridos como parte
da narrativa, sobretudo os efeitos sonoros que sublinham a cena. Ouvimos
ruídos de máquina de escrever produzidos pela sonoplastia, sem o corres-
pondente objeto cênico, ruídos noturnos de sapos, pássaros, grilos,
introdução de trechos de boleros com letras que comentam a ação que se
desenvolve, etc. Esta atitude narrativa acentua-se particularmente,
quando o casal enamorado, Doralice e Adolfo, se encontra no Teatro Mu-
nicipal, são espectadores da peça Laços de Sangue.
O espetáculo Laços de Sangue a que os dois irão assistir, é o mesmo
episódio aqui já comentado que ocorre na França pré-revolucionária, no
Castelo de La Rochefoucauld. Aqui temos uma intervenção de uma trama
na outra. Não é apenas a narração da personagem Doralice indo ao teatro,
ela se confunde agora com a narração do autor do texto dramático. Dora-
lice e Adolfo são, portanto, as personagens que vão ao teatro assistir a
mesma peça a que os espectadores assistem.
Assistimos aos dois assistindo o mesmo episódio que vemos. Para
sublinhar o caráter de representação, a cena de La Rochefoucauld será in-
terrompida por aplausos duas vezes: a primeira por um aplauso gravado
em off, com o consequente agradecimento do elenco e, ao final, com uma
aclamação pública, também em off, com os quatro atores agradecendo e
saindo de cena.
Robson Corrêa de Camargo | 317

Num crescendo, os elementos externos invadem a trama de Na Saúde


e na Doença, cada vez mais torna-se a transmissão de uma novela de radi-
oteatro. Entra em cena um sonoplasta com uma placa produzindo ruídos
de trovão; surgem dois microfones para Doralice e Adolfo, que agora re-
presentam a cena como se estivéssemos vendo uma radionovela em um
estúdio de gravação.
Modifica-se, assim, o espaço da representação teatral, nesta cena do
teatro ao estúdio de radioteatro. Em outro microfone, um sonoplasta
chupa uma manga, fazendo aquilo que foi convencionado como o ruído
característico do beijo das duas personagens, para ilustrar a cena român-
tica. Entramos no terreno total da narrativa no drama, num comercial um
locutor interrompe a cena e anuncia uma edição especial de Laços de San-
gue, num capítulo inédito que poderemos ouvir após a transmissão de Na
Saúde e na Doença.
No início do segundo ato, a representação desta trama será de uma
novela de rádio com os atores virando personagens. Doralice e Adolfo
agora terão atores ficcionais que os representam, introduzidos na trama
pela representação do radioteatro que escutamos e vemos, conforme o
texto descreve a situação:

INTERLÚDIO TRISTE. MARLI ESTÁ SENTADA À MESA, OUVINDO RÁDIO. AO


FUNDO, MARLY CRISTINA E JARBAS FONSECA (OS ATORES DA NOVELA
RADIOFÔNICA QUE INTERPRETAM DORALICE E ADOLFO), O DIRETOR E O
LOCUTOR DA RÁDIO INICIAM A TRANSMISSÃO.

LOCUTOR – No capítulo de ontem, Doralice expulsa Augusto de sua casa e chora,


prevendo para si o triste futuro da solteira desonrada. Na manhã seguinte, manhã
de suas núpcias com Adolfo, Doralice procura o noivo para dar-lhe a inefável notícia.

Até o final do primeiro ato, estávamos frente apenas a Doralice nar-


rando a história de Doralice, mas, agora teremos Marly Cristina e Jarbas
Fonseca, do elenco do radioteatro representando as personagens Doralice
e Adolfo; além de um diretor e um locutor que apresenta os comerciais da
Água de Colônia Royal Briar.
318 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

A narrativa vira drama. Seguindo os traços do melodrama, muda-se


o estilo, e a linguagem se contradiz; procurando um espectador diferente,
a representação busca por um espectador que siga a história, mas observe
constantemente como ela está sendo mostrada. Não será apenas a fruição
“pós-moderna” da linguagem, mas a beleza das histórias como estão sendo
mostradas.
Depois de Doralice anunciar o tratamento médico feito pelo seu par
romântico, a radionovela chega a seu final quando o locutor anuncia:

LOCUTOR – Numa gentil e exclusiva oferta das Indústrias Reunidas Três Glórias,
acabaram de ouvir a radiofonização "Na saúde e na doença", de Dulce Régis, baseada
na carta da ouvinte Doralice Rabelo, de São Cristóvão.

Para que não nos detenhamos apenas nas infinitas surpresas que
também esta trama nos apresenta, como leitores, e mostrou como espec-
tador, concentremo-nos no fato de que estamos dentro de uma narração
construída em abismo. Um fato leva a outro, que leva a outro e, assim,
sucessiva e indefinidamente, como nos contos das histórias das Mil e Uma
Noites.
Os atores de radioteatro Marly e Jarbas contam a adaptação da histó-
ria vivida pela ouvinte Doralice Rabelo, na versão de Dulce Régis. Uma
história dentro de outra história, dentro de outra história. E isto se consi-
derarmos o nível aparente do espetáculo ficcional que vemos
representado. A trama de Na Saúde e na Doença foi composta com cenas
extraídas de uma verdadeira radionovela apresentada pela Rádio Mauá:
Conselhos e Confidências, da verdadeira radiodramaturga Dulce Régis. Se
a história narrada de Doralice chega a seu final feliz, em Melodrama, isto
não acontecerá com o drama da atriz Marly Cristina, que interpreta Dora-
lice. Assim que termina a peça, seus colegas vêm avisá-la que seu filho,
Geraldo foi atropelado e faleceu. A notícia do falecimento é acompanhada
pelo simultâneo ato de tomada de consciência do Amnésico, reconhe-
cendo-se como Geraldo, vejamos a cena:
Robson Corrêa de Camargo | 319

ATRIZ QUE FAZ ZULMIRA – Você vai ter que ser forte, querida!
JARBAS FONESCA – Marly... o Geraldo...
SURGEM NO PALCO, ÉBRIO E AMNÉSICO.
AMNÉSICO – Geraldo!...
MARLY (chorando)- Não! O Geraldo, não!
ÉBRIO – Sim!
MARLY – Qualquer um menos o Geraldo, o Geraldo não!
ÉBRIO – Este é o nome com que foi batizado, mas não tenha a pretensão de memó-
rias tão longínquas...
AMNÉSICO – Mas posso até sentir-me no ventre de minha mãe!

O autor converge as três histórias apresentadas para um mesmo fi-


nal, aqui temos não apenas a fusão das personagens Ébrio e Amnésico,
mas também a incorporação de Geraldo de uma trama a outra, ou diría-
mos, o nascimento de um Geraldo baseado em outro que acaba de morrer.
Constituem-se as cenas como se existissem vasos intercomunicantes entre
as histórias. É uma unificação por justaposição. Ninguém nos diz que as
personagens de Ébrio e de Amnésico são as mesmas pessoas, vemos uma
fusão ótica por justaposição das personagens. As diferentes camadas das
distintas histórias expostas requerem que o público amarre os pontos se-
melhantes e construa uma narrativa unificadora. Mas a plateia pode
buscar outras leituras.

O Discurso do Melodrama

Ao final do primeiro ato, uma das didascálias do texto quase ao des-


crever a entrada da família de Oklahoma na cena de Laços de Sangue,
utiliza o termo “continuação transtemporal”, para definir a relação destas
diferentes famílias que se constituem em cada episódio em relação às an-
teriores. Trans, prefixo latino que define uma coisa além, através ou fora
do tempo; algo que transcende o temporal.
Ao colocar os conflitos em seu tempo histórico, o dramaturgo pre-
tende é retirá-lo do histórico num tempo fora do tempo. Este texto e ou
espetáculo de Melodrama tem como eixo central do discurso o contínuo
320 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

deslocamento do objeto abordado. Neste sentido, procura uma reflexão


crítica do que é mostrado, transformando o objeto teatral em metalingua-
gem, colocando-o sobre outros padrões, desviando-o do percurso original.
Procura-se uma nova perspectiva de recepção do objeto ao colocá-lo em
nova chave.
Este movimento de um gênero teatral em outra direção inesperada,
semelhante, mas inusual, cria um diálogo entre a representação do melo-
drama e suas diferentes formas apresentadas. Há uma tensão entre as três
histórias representadas e os elementos narrativos superpostos.
O melodrama é um gênero formado como hipertexto, utiliza em sua
produção a usurpação consciente dos elementos literários e espetaculares
dos outros gêneros em voga ou que o precederam.
Nos primeiros anos do século XIX, o melodrama utilizou a tragédia,
a comédia, o drama burguês, o romance francês e inglês, a novela de ca-
valaria, a picaresca, o vaudeville, a ópera cômica e a comédia lacrimosa,
retirando elementos para a produção de seus textos. Com o surgimento de
novas escolas, como o romantismo, o realismo e o naturalismo estas tam-
bém tiveram sua contrapartida melodramática. Estes são alguns dos
gêneros que podem ser citados como contribuintes desta forma misturada.
A Companhia dos Atores inverte este processo ao desmontar o melo-
drama, desvelando os processos de sedução que o gênero tem construído.
O melodrama é um gênero em permanente reformulação, produz seu
um texto artístico por absorção, multiplicidade, ajuntamento, collage4 ou
mera justaposição de outros textos anteriores. Como característica central,
ele oscila por entre os gêneros em voga, sejam precedentes e ou presentes
colhendo os frutos que se submetem à sua linguagem. Não é um gênero
estático, regulamentado e delimitado como costumam ser contabilizadas a
tragédia e a comédia gregas.

4
Composição intencional de obra artística com elementos heterogêneos préexistentes.
Robson Corrêa de Camargo | 321

O espetáculo Melodrama desmonta e evidencia este processo, colo-


cando o melodrama sobre outras chaves. O melodrama aqui é o
alimentador das novas tendências procuradas pelo elenco.
A respeito deste fato Elena Soárez, responsável pela pesquisa de dra-
maturgia do grupo, tece a seguinte nota exposta no programa de estreia
da peça:

Há (no texto) decerto o lugar do “comentário” ou do hipertexto, como se usa


dizer hoje. A opção do encadeamento do roteiro e certas linhas narrativas cum-
prem esta função delimitada. São veículos do nosso traço autoral. Do
Melodrama que queremos oferecer hoje, no ano de 1995 (Programa apresen-
tação TUCA, 1996, p. 3).

Na segunda cena do texto, podemos citar uma das evidências desta


operação. A personagem Gomide, antes de iniciar a história de Laços de
Sangue, liga a televisão e a assiste, comenta o que vê ao telefone. Ao assis-
tir, observa a mesma cena que o público também assiste, na televisão,
vendo o que ele vê e no palco. A realidade da televisão é praticamente a
mesma que está sendo representada no palco, numa duplicidade desne-
cessária, se levarmos em conta apenas o discurso da história e não um
princípio estético de tratamento da representação que estamos começando
a ver. Há um espetáculo dentro do espetáculo. Vejamos o texto:

RIO DE JANEIRO, ANOS 50. GOMIDE ENTRA EM SEU GABINETE, FALANDO AO


TELEFONE. LIGA A TELEVISÃO E SENTA-SE EM SUA POLTRONA.

GOMIDE – Fotofóbico, Altair. Indivíduo que tem aversão, horror à luz. (...) Exato. É
o meu caso. (...) São excelentes artistas. (...) Coloca no oito, vai começar.

NA TV COMEÇA A CENA QUE VEMOS TAMBÉM AO VIVO NO FUNDO DO PALCO.


MULHER ESTÁ SOZINHA E APREENSIVA. HOMEM ENTRA.

HOMEM – Marli?

O que vemos é o início do constante processo de deslocamento que


se faz com as cenas representadas, uma cena teatral será vista, ao mesmo
322 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

tempo, em sua representação televisiva e em um teatro. A cópia é reitera-


tiva no melodrama, pois este herdou o procedimento da pantomima do
século XVIII, além da gestualidade extremada e da capacidade de absorção
e reaproveitamento ilimitado e consciente de outros gêneros e estilos.
Não se trata de um procedimento novo, a pantomima do teatro das
feiras francesas colocava abertamente a linguagem como elemento discur-
sivo. Desta relação, surge a enorme capacidade de adaptação do
melodrama teatral e sua formação em amálgama que se constrói perma-
nentemente – possibilitando absorver e ser absorvido por qualquer gênero
artístico existente ou por surgir.
Pode-se dizer que a pantomima, assim como o melodrama imitam a
vida e mimicam a arte. Seus procedimentos utilizam a paródia, o pastiche,
a transposição ou a pura, simples e descarada imitação. Nenhum desses
elementos deixou de mostrar sua face em Melodrama.
Paulatinamente, as personagens do Melodrama nos envolvem em sua
trama e, com isto, o dramaturgo evita que a linguagem teatral seja o único
assunto central. O elenco, o diretor e o dramaturgo que construíram a his-
tória, em conjunto, pouco a pouco desvelam as várias formas do
melodrama, utilizando-se dos artifícios do gênero. Como num jogo de eco,
o espectador vai descobrindo alguns dos procedimentos do melodrama há
uma superexposição de seu procedimento e de seu estilo, no qual uma cena
se transforma na outra.
No espetáculo de 100 minutos, o autor tenta uma visão panorâmica
do gênero melodramático, mas, ao final, inverte as expectativas e o que
era para ser um clichê, uma paródia do melodrama aparece com a força
renovada do gênero. As reviravoltas e repetições procuradas acrescentam
um caráter trágico ao final, o que à primeira vista parece ser apenas um
painel dos estilos do melodrama, aos poucos vai se revelando uma cons-
trução dramática em labirinto.
As sendas do Melodrama nos enviam em direção a caminhos inespe-
rados. Aparentemente, estamos seguindo apenas o caminho do
melodrama como gênero e história. Entretanto, Melodrama utilizava a
Robson Corrêa de Camargo | 323

narrativa, a descrição épica, os apartes, não como elementos de distancia-


mento e reflexão de seu espetáculo, mas, como uma forma de
envolvimento do espectador em sua teia dramática. Estamos frente a um
espetáculo que também fala sobre si mesmo e também admite, discursa
sobre o efeito estético e sobre a sua linguagem. Seu foco dramático re-
pousa, tanto sobre os meios de construção da arte como na apresentação
e desenvolvimento das personagens.
No programa de estreia do espetáculo em São Paulo, Enrique Diaz
nos relata que: os atores são “a um só tempo o centro manipulador e a
matéria deste drama”. Este ator-manipulador tem em suas mãos a forma
narrativa do espetáculo, mas não sob qualquer perspectiva. Há uma
construção de cenas em abismo, como um lugar sem fundo, onde a queda
é constante, não há fim. Como numa apresentação de mágico, uma cena
sai de dentro da outra, dentro da outra, em cenas que possuem vasos
comunicantes. Matrioshkas. Um melodrama que nos lembra a forma
composicional do escritor Jorge Luiz Borges e os exercícios de estilo de
Raymond Queneau.
Assim, ao mesmo tempo Melodrama é uma homenagem, um distan-
ciamento e uma releitura do melodrama. Utiliza adequadamente alguns
de seus procedimentos e os coloca em nova chave. Da mistura da lingua-
gem teatral com a linguagem do rádio e da televisão e da experiência que
a plateia adquire com esta linguagem, surgiram muitos dos elementos que
foram desenvolvidos na construção dramática das cenas desse espetáculo,
sobretudo nas fusões e superposições de uma cena em outra, assim como
no entrelaçamento final das três histórias que se interpenetram. Um me-
lodrama que elabora os elementos de seu passado e mostra que o gênero
ainda tem muitos caminhos a percorrer, não é apenas a linguagem simpli-
ficada corrente nos meios de comunicação de massa, nem apenas uma
simples relação da música com o texto.
O Duende (considerações finais)

A chegada do duende pressupõe sempre


uma mudança radical em todas as formas
sobre planos velhos,
trazendo sensações de frescor
totalmente inéditas
Garcia Lorca
(2000, p.115 [1933])

O melodrama reúne e desconstrói os estilos e estilemas teatrais numa


relação dialógica e hipertextual. Sem cerimônia, o melodrama reutiliza-se
dos elementos da tragédia, da comédia, do drama burguês, do romance
inglês e francês, da novela de cavalaria, da picaresca, da ópera cômica, da
comédia lacrimosa, do romance gótico. Retirou destes os elementos para
a produção justaposta de seus textos e de sua cena, compondo-se como
estrutura dramática dinâmica na qual se trabalha a reorganização de dife-
rentes estilos. Compondo-se então como forma misturada de distintas
matrizes que se organizam por contradição ou justaposição, ele mesmo
um não gênero, uma matriz, um procedimento. Esta operação é funda-
mental na compreensão do drama melodrama, seja em sua modernidade
ou naquilo que lhe segue, pois assim se constrói a cena contemporânea, na
(re)montagem dos elementos líricos épicos e dramáticos, daí a constante
remanência melodramática. O melodrama em sua complexidade, eviden-
cia o esquema simplista da crítica que tenta compreendê-lo.
Existe uma influência determinante da pantomima e do teatro das
feiras nas suas raízes. O melodrama retira desses elementos ou amalgama
ou entrecruza a elaborada técnica de interpretação do ator, a composição
de sua gestualidade e, sobretudo, o procedimento da construção de seu
espetáculo. Reelaborando a prática teatral, o melodrama estabeleceu, no
Robson Corrêa de Camargo | 325

palco, a relação explícita de cumplicidade com a plateia e, como parte cen-


tral desse processo, o uso consciente de todos os estilos, dramáticos ou
não, e sua reelaboração constante em nova chave.
O melodrama instaura uma prática teatral desregrada que não se im-
põe fronteiras ou fidelidades estilísticas, ao contrário, procura rompê-las
e renová-las. Não tem compromisso com as regras, mas, na relação com o
gosto da plateia. No entanto, não é subserviente, como querem alguns,
pois a sua propositura artística procura, na surpresa de sua escrita e da
interpretação das personagens, elementos que não fazem parte do gosto
sonolento do público. Em sua estrutura, contém a prática de levar o pú-
blico a novas paragens.
O melodrama se assume diretamente como um fenômeno texto-es-
petacular, uma inscrição espetacular sensória, auditiva, visual e memorial;
uma anatomia – forma e estrutura – do corpo sonoro-gesto-visual da cena,
no qual o verbo e o silêncio que o acompanha, estão a serviço do espetáculo
como unidade construída e elaborada no palco, com a plateia. Antecipa ou
desenvolve uma linguagem teatral que se apoia na corporeidade da cena.
Nesta perspectiva, o melodrama teatral torna o indivíduo partícipe de
seu espetáculo, o ator e o espectador, substrato e o eixo presente e real de
sua arte. Ao extrapolar seus sentimentos, no palco e na plateia, introduz
conscientemente e explicitamente na sua exposição, na cena que se cons-
troi, o espectador e seus ditames.
Assim, seu discurso cênico procura falar mais aos sentidos da plateia
em sua sinestesia que ao entendimento racional. Ao invés de construir
uma quarta parede, como quiseram alguns, ele traz o espectador ou, pelo
menos, seus sentimentos para o centro da cena.
A trama, no melodrama, é uma tela para o desenvolvimento potencial
da arte dos sentidos. Forma-se, na encenação melodramática, um texto
icônico que fala na intersecção e sinestesia da sonoridade e ou visualidade
musical, gestual e verbal.
Se o excesso é a linguagem do melodrama, não apenas em seus mo-
mentos musicais, mas, na expressividade sonora e verbal sintetizada pelo
326 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

corpo do ator e pela cena, este traz (não seria melhor dizer inicia?) para o
palco moderno a consciência de um novo patamar de representação.
O melodrama é o fenômeno artístico que permite às massas urbanas
um novo processo simbólico de vivência social. Esta iconicidade se produz
na relação do que se mostra com a plateia, o espetáculo, como estímulo da
sensação sinestésica da audiência. Os signos cênicos do melodrama obje-
tivam conscientemente ao constante deslocamento entre as diferentes
sensações percebidas, uma sensação visual leva a uma sonora, que leva a
uma sensação visual e ou corporal, com todas as suas possíveis combina-
ções. O melodrama acrescenta, em sua propositura estética, para a história
do teatro, uma elaboração consciente dos códigos sentimentais que podem
atingir a plateia.
A dramaturgia melodramática, sua construção espetacular, sua
forma de atuação e a relação que estabelece com a audiência, tornaram-se
elementos determinantes e fundadores da constituição do que estava se
chamando teatro moderno. A experiência da recepção da plateia proporci-
onada pelo gênero; a organização da sua produção em espetáculos que,
pela primeira vez na história do teatro, alcançaram mais de 1.000 repre-
sentações; a complexa constituição de sua espetacularidade e o trabalho
dos atores necessário para sustentar o desenvolvimento do gênero e suas
especificidades são fundantes no desenvolvimento do espetáculo teatral
contemporâneo.
O melodrama estabelece, em grau mais intenso, a infidelidade gené-
rica e a promiscuidade estilística, estabelecendo um corpus de produção e
estilo que tem como poética a contaminação e interrelação com os distin-
tos estilos dramáticos, estabelecendo a cópia e o pastiche como
procedimento de criação. Assim, torna-se mais que um gênero, é uma
forma introjetiva em diálogo interno, intenso, constante com outras for-
mas dramáticas ou com a transposição para o palco dos códigos da
representação da realidade vivida pela plateia. Este caráter de entrecruza-
mento genérico configura ao melodrama um caráter proteico, não apenas
Robson Corrêa de Camargo | 327

multiforme na estrutura, mas de constante mudança e absorção na sua


gênese. Isto explica sua fácil intromissão nas novas mídias.
A música incidental, executada sempre ao vivo no melodrama em
seus primeiros passos, tinha três finalidades objetivas: reforçar, anunciar
ou preparar o aspecto emocional das desgraças naturais ou pessoais das
personagens; serviria como elemento enfático do jogo de rápidas mudan-
ças desta forma de espetáculo e, por último, no seu jogo proposto com os
sentimentos da plateia, seria um elemento exteriorizador do estado intros-
pectivo da personagem, de sua ação ou do estado emotivo de toda uma
cena.
Entretanto, a relação do elemento sonoro (palavras, silêncio e mú-
sica) contraposta com o gestual, permite uma percepção mais complexa
que do simples encontro da música com o texto. Dentro desta espetacula-
ridade teatral, dentro deste texto-espetacular, o ator apresenta sua
personagem como texto sonoro-gestual, um texto fragmentado no icônico
da representação, texto silencioso que fala, significa, na intersecção e si-
nestesia da sonoridade/visualidade musico-gesto-verbal. Se
considerarmos que o excesso gesto-sonoro é central na linguagem do me-
lodrama, contrapondo-se a fala sintética das personagens, este encontro
excesso/economia verbal nos coloca frente a um paradoxo ou a um contí-
nuo deslocar no discurso. O que fala no melodrama? O gesto, a música, a
pausa, o olhar? Realmente não há um excesso no discurso gestual, nem
economia de linguagem verbal, mas sim um deslocamento sinestésico
constante dentro do espetáculo do melodrama, do olhar ao escutar, do es-
cutar ao olhar, ao sentir, em todas as suas possíveis possibilidades.
A expressividade sonora e a verbalizada sintetizadas através do corpo
do ator e pela cena do melodrama teatral, não apenas nos seus momentos
musicais, traz para o palco a consciência na elaboração de um novo pata-
mar de representação. Esta iconicidade produzida coloca o representado
como estímulo para a sensação sinestésica da audiência. Os signos cênicos
do melodrama objetivam conscientemente ao constante deslocamento en-
tre as diferentes sensações percebidas, uma sensação visual leva a uma
328 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

sonora, que leva a uma sensação visual e ou corporal, com todas as suas
possíveis combinações. Na verdade, poderíamos dizer que a literalidade
crescente nos palcos truncou o desenvolvimento maior de uma linguagem
teatral que se apoiava na corporeidade e na sua iconicidade. Não é à toa
que o melodrama, ou a preocupação com seus códigos cênicos, retorna
com mais força no contexto de uma cultura que o corpo, a imagem e o
gesto se tornam centrais.
Sua trama representada era sempre improvável, por mais que os áu-
dio-espectadores sempre soubessem de seu provável final. O centro não
era a conclusão, como nunca foi no teatro, mas o processo de contar ou
exprimir a história.
Os elementos-surpresa no desenrolar do melodrama fazem parte do
jogo cênico e espetacular, revertendo expectativas e modificando a corre-
lação de forças sempre em detrimento das personagens boas. Esta seria
uma constante, mas até a cena final, quando a resolução dar-se-ia no sen-
tido inverso ao praticado até aquele momento. Mas, o público nunca sabe
qual será a cena final, ficando em situação de suspense ou suspensão, es-
perando o possível reverso que pode não ocorrer.
Neste processo, a música, mas não apenas ela servia como indutora
subliminar do público ao novo estado emotivo. A forma incidental que atua
no melodrama não é exclusiva apenas da sua música, mas é um procedi-
mento contido em sua forma-espetáculo.
O elemento incidente surge alternadamente, girando a história e tudo
que dela depende em outro sentido, como as personagens, os efeitos mu-
sicais, os fenômenos naturais, os gestos em caminhos totalmente
inesperados. O elemento incidental dinamiza o espetáculo teatral do me-
lodrama, vindo a ser um elemento metateatral, uma interferência ex
machina do autor-produtor-ator-regente na evolução da representação.
Este procedimento só é possível, porque existe a plena consciência e expe-
rimentação da montagem teatral e da interpretação do ator dirigida à
conquista das sensações do público.
Robson Corrêa de Camargo | 329

O melodrama, como forma artística teatral, executa uma estrutura


artística genérica gravitacional que se constrói pelo somatório, simbiose e
inter-relação dos gêneros envolvidos. Forma misturada incorpora as con-
quistas teatrais existentes, dinamizando-as por meio dos efeitos e
maquinários teatrais de três maneiras: primeiro a adaptação sem cerimô-
nia individual de diferentes gêneros literários, como o romance e notícias
de jornal, etc.; depois a adaptação intergêneros, apropriando e mesclando
formas teatrais passadas ou presentes e, por fim, intragênero, com a tra-
dução e adaptação de peças de diferentes idiomas e culturas, e mesmo a
cópia realizada abertamente ou não entre distintos autores, baseados em
um certo modelo melodramático.
O melodrama, por fazer historicamente parte da consciência do es-
petáculo e de sua construção, estrutura-se com as formas teatrais com
quais dialoga numa relação palimpséstica. Nenhum dos textos é o original
e o citado, os dois ou três que se interlaçam conformam o texto principal,
fazem parte de uma composição tridimensional, no qual o que interessa é
a relação desses textos no espaço texto ou, no nosso caso, no espaço texto-
espetacular. Trata-se da corporificação do espetáculo melodramático. Não
é uma unidade genérica coerente, mas um movimento de textos-espeta-
culares que se superpõem e sobrepõem-se, velada ou aparentemente. Esta
é a dinâmica de seu teatro, composto por um acúmulo de elaborações su-
perpostas de distintas formas artísticas e de si mesmo.
Assim, deve ser compreendido o teatro do melodrama e o melodrama
no teatro. Não apenas um texto que se relaciona com outros semelhantes
ou em oposição, mas o(s) texto(s) que se relacionam dinamicamente na-
quele espaço, naquele espetáculo, formando um novo produto e uma
estrutura dinâmica multidimensional em que não se deve identificar ape-
nas o texto mas, sim, a relação que desvela uma nova forma resultante do
inscrito e do insculpido no espaço criativo.
Formas sobrepostas, não apenas a presença de um texto dentro, atrás
ou acima do outro, mas a relação conflitiva e tensional que ocorre entre
330 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

a(s) forma(s) espetacular(es) com seu espaço ou do texto-espetacular em


seu espaço múltiplo.
O melodrama, nesta perspectiva, é a simbiose genérica, pois trabalha
em uma relação dinâmica com os gêneros teatrais incorporados em seu
discurso, na busca de estabelecer uma vida comum entre eles, uma vez
mais, não sendo, portanto, nem uma degeneração nem corrupção de gê-
neros envolvidos, mas uma forma em palimpsesto.
O melodrama incorpora de outros textos os estilemas e as estruturas
que dinamizam seu espetáculo, em maior o menor grau, torna-se assim
lugar de passagem, uma matriz onde sempre serão encontradas influên-
cias ou inscrições suas no espetáculo teatral contemporâneo. A cópia não
é seu problema é o seu método.
Dentro do melodrama, existem certamente muitos melodramas, pois
este não foi somente um modelo, porque em toda a sua existência, houve
várias tendências internas que lhe deram constante reformulação ou mo-
dificação. É falsa a ideia de que o melodrama é uma prática única constante
ou uma simples fórmula que se impõe e se repete. Confunde-se matriz
com molde. O melodrama não apenas interage com as outras formas dra-
máticas de seu tempo, modifica e é modificado, mas também se processa
em um diálogo constante com as formas que se originam de seu próprio
desenvolvimento, formas estas estabelecidas pelos seus mais diversos me-
lodramaturgos.
O melodrama tem uma consciência profunda das técnicas de inter-
pretação do ator para com a plateia. Estas plasmam sua estética.
Influenciado nos processos interpretativos pela pantomima, são seus ele-
mentos fundantes o contegno (comportamento, atitude, postura), a
presença cênica, a arte de fazer-se reconhecer na personagem represen-
tada, antes da ação que virá a ser realizada, pelo gesto que a caracteriza.
Como se vê, não é a música o central no indício da personagem. O
que é central é a relação ator-personagem; o gesto ou o complexo desen-
volvimento da gestualidade da personagem em ação, o que faz com que
seu espetáculo seja todo gestualizado, marcado; o ostentio, a exibição ou
Robson Corrêa de Camargo | 331

mostra, a arte de fazer-se entender ou de contar, ou atuar a história sofrida


pela personagem e o complexo gestual que é a capacidade de apresentar
no espetáculo esta totalidade da presença, da gestualidade espetacular, do
entendimento da história mostrada.
Mesmo com toda a representação concentrada na elaboração física
da personagem, há também uma grande preocupação com a integração da
parte física com a expressão dos sentimentos. O ator e primeiro melodra-
maturgo inglês Thomas Holcroft, preocupado com as técnicas de
interpretação de seu tempo, propunha combater as emoções mecânicas do
ator com a representação silenciosa. Não foi outra a compreensão de Sta-
nislavski sobre o processo de interpretação da personagem
melodramática. Vejam suas palavras:

Quando se representa um melodrama não pode haver frieza ou apatia no tea-


tro. Na noite da representação tudo deve ser extraordinário e inesperado.
Assim, o espectador ficará eletrificado por antecedência e umas poucas fagu-
lhas serão suficientes para excitá-lo, assim que a criatividade e a inspiração
começarem a tomar lugar no palco. Isto é, portanto, outra maneira do ator
adquirir um sonoro método criativo. O melodrama não tolera nenhuma con-
vencionalidade (Gerould, 1980, p. 89).

Estas são algumas das considerações de Stanislavski para o ator e


atriz do melodrama: trabalhar em estado criativo; trazer a paixão sincera
a seu mais alto nível; a interpretação do melodrama é mais que excesso, é
condensação, agregação. O drama deve tocar as bordas da comédia leve e
sutilmente; deve transmitir as ações das personagens num caminho ines-
perado para a plateia; a surpresa e a mudança constante são um aspecto
central no modus operante do melodrama; fale o texto somente com os
olhos; preste ilimitada atenção a seu parceiro. No melodrama, tudo deve
ser preenchido com pensamentos e significados; o ritmo é a base da ação
melodramática. Como pode ser percebido até aqui, o que o melodrama
teatral tem de excesso é a intensa elaboração de todos os códigos cênicos.
O melodrama é a intensa elaboração dos efeitos ou técnicas ou códigos
dramáticos, e ninguém poderia condená-lo por isto.
332 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

O fato de a interpretação do ator no melodrama ser considerada


como excessiva, tem que ser compreendida dentro do processo de intro-
missão, nas cadeiras do teatro, de uma plateia que se alfabetizava
crescentemente. Estas massas urbanas viviam um processo de valorização
da experiência da palavra lida e imaginada. Esta valorização impulsionou
às novas tendências teatrais a se dirigirem a caminhos similares, influen-
ciando as técnicas de interpretação e composição do espetáculo.
Contrariamente ao processo que se dava com o teatro de feira, a com-
media dell'arte e o próprio melodrama, as novas formas de interpretação
procuraram progressivamente sublinhar a palavra como forma expres-
siva, tornando o teatro seu condutor falado, propulsor central da
imaginação teatral na plateia, diminuindo a importância do gestual na in-
terpretação, que se desenvolvia com as formas teatrais citadas. Com a
alfabetização cada vez maior e com a respectiva valorização da leitura, pro-
curou-se, no espetáculo teatral europeu do final do século XIX e durante
quase todo o século vinte, que o ator fosse um porta-voz da palavra, que o
objetivo de sua interpretação fosse o pleno estabelecimento da expressão
desenvolvida a partir da palavra falada, pois esta deveria resultar ao es-
pectador teatral a mesma rica experiência que se descobria da palavra lida.
O ator com expressão contida se torna assim um porta-palavras onde
a retórica e suas nuances verbais devem permitir levar ao público o prazer
máximo da imaginação. O mundo europeu que lia e se alfabetizava, im-
prime seus ditames na interpretação teatral que, cada vez mais impedia o
corpo de se manifestar e movimentar, e impelia a palavra falada a simbo-
lizar. Frente a isto o melodrama pareceu anacrônico com sua gestualidade
que competia com a fala, pretendia substituí-la e mesmo superá-la. Os tons
gestuais, considerados muitas vezes dicotômicos, iam na contramão de
uma composição teatral que dirigiria, principalmente com o naturalismo
e o simbolismo, à plenipotência da palavra falada. Não é sem motivos que
esta visão preconceituosa pode agora iniciar sua superação, num mo-
mento em que o visual, o gestual, o fragmentário, a combinação de estilos,
o excesso procura, na experiência artística, superar a linear palavra escrita.
Robson Corrêa de Camargo | 333

Mesmo fragmentário, em seu projeto composicional, o melodrama


utilizou de todos unitários em sua construção: o indivíduo, o cidadão, a
pátria, a família, a moral. O melodrama que nasceu com Pixérécourt e
Holcroft, em seu código moral, é a plena certeza do indivíduo e de seus
valores como produto e produtor coerente das forças sociais. Força moral
ao qual havia que se submeter ou se antepor, não poderia permitir em sua
narrativa haver meios termos entre a velha e a nova ordem. Nestes tempos
atuais de desconstrução do moderno, ou de reelaboração do moderno,
onde se tenta dizer novamente aquilo que foi anteriormente dito, o melo-
drama se torna o discurso paradigmático da era em que vivemos, onde
tudo tenta ser novo sem realmente ser.
O espetáculo Melodrama de Enrique Diaz (1995-2000), um olhar te-
atral sobre o melodrama, traz uma excelente discussão sobre esta questão,
onde suas chaves atuais são o colidir de unidades, estilística e morais, que
se esfacelam mas que se encontram ou recompõem ao final, como num
quebra-cabeça, mas, compondo uma nova unidade estilhaçada, caleidos-
cópica, novas formas de apresentar o apresentado.
Embora o melodrama seja um local de condensação de tempo, espaço
e sentimentos, tanto na encenação como na interpretação é necessária a
existência constante de um sentimento de realidade, de identidade com o
que é vivido pela plateia, para que seja estabelecido o diálogo das sensações
com o público.
As personagens do melodrama, em suas falas e diálogos, arranjados
de forma dinâmica e expressiva, estão sempre a postos para demonstrar
publicamente seus sentimentos. Em sua concepção pública, nada pode ser
oculto no melodrama.
Vimos alguns princípios de composição técnica que conformam a te-
leologia do melodrama. O alívio, o contraste, a justaposição de material
diverso, o intertecer do destino das personagens, a dinâmica, a intromis-
são do inesperado na ação, o segredo e sua revelação, a construção em
camadas. O desenvolvimento da trama no melodrama não é orgânico, evo-
lutivo e não necessita ser, orgânica ou psicologicamente motivada ou
334 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

construída. O mundo do melodrama não é o da lógica evolutiva. O melo-


drama estrutura uma nova lógica no drama. A cadeia de seus eventos, pré-
determinados técnica e ou emocionalmente compõe um fim em si mesmo.
O acaso é o elemento unificador destas partes separadas. Esta cadeia de
eventos começa a ação dramática e solicita novos acasos para seu desdo-
bramento. O acaso permite novos e inesperados giros da trama, embora
devam estar estes, tanto quanto possível, ligados à trama, pois o uso auto-
mático ou excessivo destes acasos enfraquece a trama e seu poder artístico.
Neste percurso, uma coisa, um elemento pode servir ao propósito de com-
plicar o curso normal dos eventos violando ou desestabilizando a
harmônica série de interações estabelecidas até aquele momento pela his-
tória.
O que a prática do melodrama consegue e a sua dramaturgia teste-
munha, foi o questionamento do edifício crítico que se estabelecera no
projeto do drama. Edifício este que, com suas categorias, dirige sua aten-
ção na formação de todos unitários em torno da reflexão do drama, seja
em estilos, como o romantismo; o realismo; o naturalismo; o dadaísmo; o
surrealismo; o teatro do absurdo; o pós-moderno, etc. ou em formas pon-
tuais do discurso dramático, como a questão moral; o prazer, a
verossimilhança; personagens, inferiores ou superiores; unidades, de
tempo e ou ação e ou lugar. Dedicando-se à configuração de totalidades,
as ferramentas desta construção crítica não podem entender aquilo que
tem como elemento estrutural de sua composição a mistura diversa e o
diálogo de formas contraditórias.
Assim, muitas das análises enquadraram-no em esquemas simplis-
tas, não conseguindo entender o melodrama em toda sua complexidade,
já que sua composição se encaminha em direção contrária ao que se esta-
beleceu enquanto discurso crítico e como reflexão teatral. Sem conseguir
olhar o melodrama em toda sua extensão, não se compreendeu o melo-
drama teatral e as consequentes desestabilizações das leis reconhecidas do
drama que ele trazia. A crítica que esquematizou o melodrama mostra ape-
nas o esquema de seu instrumento crítico.
Robson Corrêa de Camargo | 335

Como fato dramático o melodrama exige para sua plena compreen-


são novos parâmetros que compreendam sua realidade matricial e sua
alimentação entrecruzada e entremeada, que, além de suas histórias e per-
sonagens, não procurava a simplificação ou a composição unitária de
estilo. Havia que se perceber o complexo estrutural que se escondia por
detrás de muitos de seus elementos aparentemente simplificados. Esta
percepção exige uma reestruturação dos modelos e valores dicotômicos
estabelecidos na análise do drama moderno (gêneros, moderno-pós, razão
e sentimento, realismo e ilusão, moralidade e verossimilhança, comédia e
tragédia etc.).
O melodrama foi escrito para ser efetivo no palco, composto para a
cena. Seus elementos estruturais e estilísticos foram escolhidos para fun-
cionar para o espectador, não para o leitor. Esta consciência cênica do
melodrama possibilita uma estilização particular de seus efeitos e de-
manda que o melodrama seja visto e compreendido principalmente pela
sua encenação. Realidade icônica pouco predisposta a esquemas.
O melodrama não baniu a contradição em seu mundo cênico, ela
ocorre, mas principalmente na relação entre as personagens, não em cada
uma internamente. O bom e o mal vivem onde e como gostaríamos ou
desejaríamos, em seu estado puro e claro, no embate de forças num
mundo onde tudo deveria ser claro, o bom seria bom e o mau mal. No
melodrama teatral, a natureza, ou melhor, os fenômenos naturais e hu-
manos incontroláveis, o acaso da vida, é quem conspira contra esta ordem,
a desestabiliza. Como plateia nos identificamos inicialmente com a apa-
rente estabilidade inicial mostrada por suas personagens, é o necessário
para que se permita a vivência artística contínua da instabilidade humana
que virá durante sua apresentação. Neste sentido o melodrama dialoga
melhor com a sensibilidade humana contemporânea que a tragédia antiga
poderia fazer, pois trabalha com os deuses contemporâneos que não tra-
mam apenas no Olimpo.
O melodrama promove a experiência artística da recuperação da ali-
enação humana, da vivência pela plateia de caráteres unitários, sem
336 | Gestual, Teatro e Melodrama: Performances, Pantomimas e Teatro nas feiras

contradições em cada uma de suas personagens, ao menos pelo curto


tempo da representação, daí a sua necessidade e permanência e a ânsia da
plateia pela sua recomposição final.
Entretanto, o fato mais importante é que sua forma composicional
matricial determina os principais traços da arte teatral contemporânea.
O melodrama é o drama na era do capitalismo.
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