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BANIWA E A RE-ANTROPOFAGIA
RESUMO: Este artigo apresenta uma discussão sobre como o artista plástico Denilson
Baniwa tensiona e ressignifica a relação do modernismo brasileiro com as culturas indígenas
do Brasil através de sua obra. Para atingir os seus objetivos, o artigo é dividido em quatro
seções. Na primeira, discute-se a perspectiva eurocêntrica de arte indígena e como
historicamente os artefatos produzidos por povos não europeus foram avaliados com base em
categorias binárias que discriminam entre a arte verdadeira e objetos utilitários. Na segunda
seção, é apresentado um breve contexto do movimento modernista no Brasil. Na terceira seção,
discute-se a influência do primitivismo modernista sobre vários modernistas brasileiros,
especialmente em Oswald e Mário de Andrade. Por fim, na última seção, apresenta-se uma
reflexão sobre como Baniwa desconstrói o movimento modernista através de sua obra, com
destaque para algumas de suas obras selecionadas e para sua poética da re-antropofagia.
ABSTRACT: In this article, we discuss how the Brazilian artist Denilson Baniwa redefines the
relationship between Brazilian modernism and indigenous cultures in his work. The article is
divided into four sections. The first section examines the Eurocentric perspective of indigenous
art and how non-European artifacts were historically evaluated based on binary categories
that discriminated between true art and utilitarian objects without artistic value. The second
section briefly presents the modernist movement in Brazil. The third section discusses the
influence of modernist primitivism on several Brazilian modernists. Finally, the last section
reflects on how Baniwa deconstructs modernism through his work, highlighting some of his
selected works and proposing a re-antropophagy movement.
1 Palavras iniciais
Este artigo tem como objetivo discutir sobre o modo como o artista plástico Denilson
Baniwa tensiona e ressignifica a relação do modernismo brasileiro com as culturas indígenas
do Brasil por meio de sua obra. Embora o movimento modernista, em especial em sua "fase
heroica" (BOSI, 1994), tenha conferido centralidade para o índio e as culturas indígenas em
suas discussões sobre a formação da identidade nacional, Baniwa e outros artistas indígenas
contemporâneos afirmam que o movimento se apropriou de elementos dessas culturas sem uma
compreensão adequada ou respeito por sua origem e significado. Em face desse contexto,
Baniwa busca desafiar os estereótipos presentes na arte e na literatura brasileiras em relação à
cultura dos povos originários e retomar o lugar de fala dos indígenas como sujeitos legítimos
para representar, artisticamente, suas próprias histórias, mitos e práticas culturais.
Para atingir seus objetivos, este artigo está estruturado em quatro seções. A primeira
traz uma discussão sobre a arte indígena na perspectiva do eurocentrismo, com a finalidade de
demonstrar que, historicamente, no Ocidente, artefatos produzidos por povos não europeus
foram descritos e avaliados com base em categorias binárias que discriminam entre a arte
verdadeira e objetos utilitários sem valor artístico. Na segunda seção, há uma breve
apresentação do movimento modernista no Brasil, com ênfase em sua fase inicial, com o
objetivo de fornecer um contexto para a compreensão da proposta estética e política de Denilson
Baniwa. Visto que vários modernistas brasileiros foram influenciados pela tendência do
“primitivismo modernista” que estava presente em alguns movimentos de vanguarda europeia,
esse conceito também é discutido, na terceira seção do artigo. Por fim, a última seção é dedicada
Todo mundo que eu conheço dança, canta, pinta, desenha, esculpe, faz tudo isso que
o Ocidente atribui a uma categoria de gente, que são os artistas. Só que em alguns
casos são chamados de artesãos e suas obras são chamadas de artesanato, mas, de
novo, são categorias que discriminam o que é arte, o que é artesanato, o que é um
artista, o que é um artesão (KRENAK, 2016 apud CESARINO, 2016, p. 192).
Um dos motivos que permitiu aos críticos de arte reduzir toda a arte dos povos
ameríndios à categoria de artesanato ao longo da história é o fato de que os povos originários
“não partilham nossa noção de arte” (LAGROU, 2010, p. 1). Estudos na área da antropologia
permitiram concluir que não existe, nas culturas indígenas, um termo equivalente ou
proporcional aos conceitos ocidentais de “arte” e “estética”, pois o modo de projetar e criar
belos artefatos, no campo artístico indígena, processa-se de modo diferente do ocidental.
Denilson Baniwa nos ajuda a compreender o lugar da arte na vida dos indígenas quando explica
que, “na comunidade, não há uma distinção do que é arte ou do que é vida, o cotidiano está
ligado entre o construir uma pintura com pigmentos naturais nas paredes da casa de rituais (tal
qual os afrescos) e fazer uma roça, ambos são conhecimentos que são passados através de
gerações” (BANIWA, 2019, n. p.).
4 Primitivismo
Em termos muito amplos, o primitivismo pode ser entendido como uma "idealização da
ideia do primitivo" (ETHERINGTON, 2018, p. VII), sendo que, originalmente, essa perspectiva
não teve início nos movimentos de vanguarda e tampouco no modernismo europeu, mas em
teorizações filosóficas realizadas já durante o Romantismo. Filósofos como Jean-Jacques
Rousseau, na França, e Johann Gottfried von Herder, na Alemanha, são exemplos clássicos de
como certos pensadores românticos contrastavam ideias de pureza essencial, bondade e
autenticidade com a ideia de civilização, a fim de representar a decadência e a alienação, estas
últimas associadas à vida urbana. Nos estudos pós-coloniais contemporâneos, esse tipo de
idealização é visto como “uma projeção ideológica unidirecional do colonizador sobre o
colonizado: um ‘discurso’ racial e imperialista segundo o qual artistas e pensadores ocidentais
idealizam aqueles povos não-ocidentais que eles supõem serem ‘primitivos’.”
(ETHERINGTON, 2018, p. VII)
Ao longo do século XIX, vários artistas europeus foram influenciados por essa oposição
entre o primitivo “autêntico” e “puro”, de um lado, e o civilizado “decaído”, de outro, o que os
levou a buscar inspiração para a produção artística em espaços e localidades considerados ainda
não corrompidos pelo processo civilizatório, tais como vilarejos remotos, cidades interioranas
e aldeias habitadas por camponeses e agricultores. Considerado pela crítica como um dos
precursores do primitivismo moderno, antes de seu contato com a cultura da Polinésia, o pintor
francês Eugène-Henri-Paul Gauguin, por exemplo, havia se mudado para a Bretanha, onde
acreditava ter encontrado um ambiente ideal para produzir uma arte mais autêntica e
“primitiva”. Em correspondência com sua esposa, ele se expressou da seguinte forma sobre
aquele lugar: “Eu amo a Bretanha. Acho algo selvagem, primitivo aqui. Quando meus tamancos
ecoam nesta terra de granito, ouço a nota surda, abafada, poderosa que busco na pintura”
(GAUGUIN apud PERRY, 1993, p. 8).
Posteriormente, Gauguin, assim como vários outros artistas europeus, passaram a buscar
os ideais associados ao “primitivo” também fora da Europa, nomeadamente nas culturas de
povos que habitavam os territórios colonizados pelas potências europeias da época. É
No “Manifesto Antropófago”, por sua vez, juntamente com os demais modernistas que
aderiram ao movimento, Oswald julgou ter encontrado essas origens na prática da antropofagia
realizada pelos povos ameríndios da América Latina.
Para concluir esta seção, ressalte-se que o termo “primitivo” — e seu derivado
“primitivismo” —, para designar formas artísticas e culturais não europeias, carrega um juízo
de valor negativo e aponta para uma perspectiva eurocêntrica segundo a qual não haveria
civilização evoluída fora da Europa, sendo essa visão de mundo utilizada como justificativa
para a ocupação de territórios ao redor do mundo e para a manutenção de relações de hegemonia
política e cultural. Nesse sentido, alguns artistas contemporâneos têm inclusive chamado a
atenção para diferentes formas de racismo que estão presentes em discursos de crítica de arte
que designam obras de artistas contemporâneos provenientes de países não ocidentais como
“primitivistas” (ARAEEN, 2005, p. 132).
Fonte: https://d2yzvs8qffn37r.cloudfront.net/wp-content/uploads/2019/03/27-Denilson-Baniwa.jpg.
Fonte: https://www.pipaprize.com/denilson-baniwa/23-40/.
Em 2019, Baniwa participou, como co-curador, da exposição intitulada “Re-
antropofagia”, a qual aconteceu no Centro de Arte da Universidade Federal Fluminense. Na
exposição, uma obra em especial foi considerada, por vários críticos, como um marco quanto à
Nessa pintura, Baniwa aborda a apropriação do mito indígena Makunaíma por parte dos
modernistas, ao mesmo tempo em que propõe sua reapropriação por parte dos povos indígenas.
A imagem está organizada da seguinte forma: sobre uma bandeja de cestaria, encontra-se a
cabeça decepada de uma pessoa negra, com óculos, com a fisionomia do escritor modernista
Mário de Andrade: “uma cabeça, fusão de Mário de Andrade com Grande Otelo (ator que
interpretou Macunaíma no filme homônimo de Joaquim Pedro de Andrade), ofertada em uma
bandeja de palha” (DINATO, 2019, p. 278). O cesto também contém a imagem do livro
Macunaíma e um bilhete. Ao lado, em outra cestaria, há plantas que lembram a mandioca e
temperos típicos das culinárias indígenas, como o urucum, a pimenta e o milho guarani
6 Palavras finais
REFERÊNCIAS
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