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AMARAL, Aracy. O modernismo brasileiro e o contexto cultural dos anos 20.

Revista
USP, São Paulo, N. 94, p. 9-18, Jun./Jul./Ago. 2012.

Aracy Amaral

O modernismo
brasileiro
e o contexto
cultural
dos anos 20

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dossiê Semana de Arte Moderna

RESUMO

O modernismo brasileiro visto em análise comparativa com outros mo-


vimentos modernistas de países do Mercosul. Influências de tendências
como o art déco em artistas modernistas brasileiros. Nacionalismo na arte
e características da produção das principais figuras do movimento nos
anos 20 e 30.

Palavras-chave: modernismo, arte brasileira no século XX, art déco no


Brasil, artistas modernistas brasileiros.

ABSTRACT

Brazilian modernism is viewed in comparison to other modernist movements


taking place in Mercosul countries. The article dwells on the influences from art
deco trends on Brazilian modernist artists, nationalism in art and the features
of the works by the leading figures of the movement in the 1920s and 1930s.

Keywords: modernism, Brazilian art in the 20th century, art deco in Brazil,
Brazilian modernist artists.

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O
modernismo bra- O regionalismo foi um dos primeiros si- ARACY AMARAL
é historiadora,
sileiro constitui nais – visível na literatura como na pintura – professora aposentada
interessante inter- a acusar essa preocupação, focalizando pela da FAU-USP
e autora de, entre
mediação entre os primeira vez o homem da área rural com sua outros, Tarsila,
dois polos do mo- cultura peculiar2. Sua Obra e Seu Tempo
(Editora 34).
dernismo latino- Há muitos anos, dois críticos de arte
-americano, repre- latino-americanos, o mexicano Jorge Alber-
sentados pelo México e pela Argentina, no to Manrique e o peruano Carlos Rodriguez Este texto é parte modi­
panorama das artes plásticas nos anos 1920 Saavedra, já se referiram ao movimento ficada de trecho publica-
do no livro Artes Plásticas
em nosso continente. O primeiro, nacionalis- pendular, sístole e diástole, que se sucede na Semana de 22 (Editora
ta-americanista, em função dos propósitos da na criação artística do continente latino- 34, 1998).

revolução social mexicana. E o segundo, na -americano. Essa oscilação de movimentos


Argentina, com a direção internacionalista já corresponderia à preocupação nativista e à
em fase de afirmação. inquietação internacionalista que perseguem
O objetivo no México, dentro das ideias o meio artístico do continente. Ou seja: ve-
da revolução, é a valorização do homem mos, de um lado, a consciência de nossa re-
nativo e sua cultura e, nesse contexto, seu alidade tal como ela é, o compromisso com
trabalho rural. essa realidade e, de outro, a natural ansieda-
Já a Argentina constrói aos poucos seu de pela renovação formal, por meio da busca
internacionalismo característico com as es- da informação nos grandes centros metro-
tadas prolongadas, nos anos 20, de seus mais politanos, assim como através dos meios de 1 Butler, assim como
destacados artistas na Europa, como Pettoru- comunicação de massa. Aquiles Badi, estudou
ti, Xul Solar, Del Prete, Berni, Spilimbergo e Se México e Argentina explicitam bem com André Lhote,
além de Othon Friesz.
Horacio Butler1. os dois extremos dessa postura em perma- Del Prete, por sua vez,
No Brasil, internacionalismo e naciona- nente contradição e alternância, paralelismo expõe em Paris com
o grupo Abstraction-
lismo foram simultaneamente as caracterís- ou sucessão, no Brasil percebemos que o in- -Création em 1932, ao
ticas básicas do movimento modernista ocor- ternacionalismo será exaltado como recur- passo que Pettoruti, de
volta de longa vivência
rido nas letras e artes a partir de meados da so para o rompimento com o academismo, nos meios artísticos
segunda década do século passado. Mas a re- através da informação que chega via Paris. da Itália, já em 1924
descoberta do país, como escreveu Lourival Assim, atualizar as ideias estéticas a par- é artista da galeria de
Léonce Rosemberg,
Gomes Machado, “viaja o duplo roteiro dos tir de modelos europeus recentes, sobretudo reputado galerista
navios que levam ao Havre e dos trens que na área de artes plásticas, surgiu como uma parisiense.

conduzem a Ouro Preto”, em evidente alusão possibilidade de renovação para a arte brasi- 2 Os preparativos pa­
ra a celebração do
às viagens à Europa, e mais precisamente à leira. Cubismo, expressionismo, ideias futu- cen­­t enário da Inde-
França, pelos modernistas, e ao reconheci- ristas, dadaísmo, construtivismo, surrealismo pendência em 1922
mento de uma “cultura” brasileira, a seu re- e o “clima” parisiense onde imperava, nos acirrariam os ânimos
nativistas. Desde a Pri-
torno do exterior, como no caso da já famosa anos 20, o art déco resultaram em inspira- meira Guerra Mundial,
viagem a Minas em 1924 em companhia de ções que, direta ou indiretamente, alimenta- a fundação da Liga de
Defesa Nacional, lide-
Blaise Cendrars. ram os artistas modernistas brasileiros nos rada pelo poeta Olavo
O nacionalismo viria como decorrência anos 20 e 30. Paris, em particular, forneceria Bilac, chamaria a aten-
ção para a importância
de uma ânsia de afirmação a partir, gradativa- o ambiente propício para essas inspirações do sentimento cívico.
mente, da implantação da República (1889), de ruptura. A Alemanha e a Suíça de língua Do ponto de vista ar-
estando daí em diante implícito o desejo de francesa seriam os outros dois polos igual- tístico, o intelectual
Oswald de Andrade,
rompimento da intelectualidade com o sé- mente procurados como centros de formação. já em artigo de 1912,
culo XIX e o academismo nas artes visuais. Mas, comparativamente ao artista argentino, demandaria caracte-
rísticas nacionais para
Esse sentimento nativista visou assumir ocorre uma diferença, pois, salvo exceções, a arte do país, reivin-
nossa realidade física e cultural, até então o brasileiro é breve em seu contato com o dicando uma forma
de expressão que não
menosprezada pelas elites, que se identifica- exterior, invariavelmente regressando a seu fosse a arte acadêmica
vam com a Europa. país após curta permanência na Europa. consagrada na Europa.

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O aguçamento da percepção sensível em e São Paulo) a primeira grande exposição de


relação à nossa realidade local se daria, con- arte contemporânea da Escola de Paris em
traditoriamente, em decorrência da amplia- iniciativa compartida com Géo-Charles, a
ção dos horizontes culturais pela vivência quem se liga por amizade3.
europeia: assim é que Tarsila (1886-1973) Outro modernista de origem europeia
se sente tocada pelo dado popular brasilei- – eslava – é Lasar Segall (1891-1957), que
ro quando na França em 1923 (“quero ser a ocupa posição peculiar no ambiente moder-
caipirinha de São Bernardo…”, escreve em nista de São Paulo. De formação vinculada
carta à família, e pinta A Caipirinha e A Ne- ao expressionismo alemão, tendo frequen-
gra, inspiradas em memórias de sua infância tado os ambientes artísticos de Berlim e
nesse ano, ainda em Paris). Como ela, outros Dresden, depois de radicar-se em São Paulo,
artistas descobririam as novas correntes de onde passa a viver a partir de 1923, não dei-
arte vigentes na Europa somente com seu re- xa, contudo, de manter seus vínculos com a
torno ao Brasil. Esse foi também o caso de Europa, tendo igualmente vivido em Paris
3 T ambém poeta e ar-
Brecheret ao regressar ao país em meados da por algum tempo em fins da década de 20 e
tis­­t a gráfico, Rego segunda década, e o mesmo ocorreria com início dos anos 304.
Monteiro funda em
Portinari, com sua volta da Europa em 1931. Um outro vínculo europeu, não forço-
Paris, em 1946, La Pres-
se à Bras, em período Diferentemente de importantes artistas samente com a França, mas com a Suíça
de intensificação de latino-americanos de uma geração próxima de língua francesa, conforme dissemos, se
sua produção poética
em detrimento de sua ou similar, como Torres Garcia, Pettoruti, Ri- estabelece entre modernistas, artistas e fu-
pintura. Obteve como vera e outros argentinos já citados, os brasi- turos escritores, em seu período de forma-
poeta, em 1960, o Prê-
mio Guillaume Apolli- leiros se mantiveram – salvo Rego Monteiro ção. Refiro-me ao artista das cenas noturnas
naire, que dividiu com – em presença discreta no meio parisiense, Oswaldo Goeldi (1895-1961), autor das pri-
Marcel Beaulu.
realizando exposições individuais em ga- meiras gravuras de teor moderno do Bra-
4 Segall foi amigo de lerias particulares, assim como os demais sil, e poderíamos citar igualmente Antonio
S c h m i d t- R o t t l u f f,
Kandinsky, Kollwitz e brasileiros invariavelmente participando de Gomide (1895-1967), Regina Gomide Graz
outros, e expôs pela coletivas de salões oficiais, dos Indépendants (1897-1973), ambos formados na Escola de
primeira vez em São
Paulo em 1913, sendo e dos Surindépendants. Artes Decorativas de Genebra, sem esque-
um artista amadure- Vicente do Rego Monteiro (1889-1970), cer John Graz (1891-1980), artista suíço e
cido ao se fixar aqui.
desde sua formação como artista, passaria marido de Regina, além de Sergio Milliet e
Sua pintura acusa, em
meados dos anos 20, longas temporadas em Paris, diferentemente Rubens Borba de Moraes, todos regressando
contudo, um contágio dos artistas brasileiros que circulavam pela ao Brasil em inícios dos anos 20 e passando
breve com a exube-
rância cromática que capital francesa mais como turistas cultu- a integrar o grupo modernista5.
o país tropical lhe co- rais (me refiro a Di Cavalcanti, Ismael Nery Ocorria, por certo, uma contradição laten-
munica.
e mesmo a Tarsila e Oswald de Andrade, por te: falava-se muito da redescoberta da terra,
5 Rubens Borba de Mo-
exemplo). Monteiro, em 1923, já pertence ao em assumir nossas tradições, no ideário mo-
raes seria o fundador
e o primeiro diretor da grupo da reconhecida galeria L’Effort Mo- dernista, evidentemente ao sabor das celebra-
Biblioteca Municipal derne, de Léonce Rosemberg, ilustra livros ções do centenário da Independência (1922) e,
de São Paulo, respon-
sável pela planifica- em Paris, inclusive de autoria de Fernand Di- ao mesmo tempo, pouco antes se publicavam
ção de sua construção voire, do L’Intransigeant, expõe na Galerie livros de poemas escritos por eles em francês,
em seu local atual. E,
curiosamente, Sergio Fabre, prefaciado por Maurice Raynal, em como foi o caso de Sergio Milliet, e mesmo
Milliet seria o conti- 1925, e, em 1928, é introduzido por Ozen- a parceria ocorrida entre Oswald de Andra-
nuador dessa obra,
por longos anos dire-
fant na Bernheim-Jeune. Ao mesmo tempo, de e Guilherme de Almeida – que juntos es-
tor da BMSP, ao mes- liga-se a latino-americanos em Paris, parti- creveram em francês (!) a peça teatral Mon
mo tempo em que cipando da primeira exposição do Grupo La- Coeur Balance. Leur Âme – antes de 1920.
exerceu a direção do
Museu de Arte Mo- tino-americano de Paris, ao lado de Torres, Na verdade, Oswald de Andrade acredi-
derna de São Paulo Figari, Orozco e Rivera, entre outros, na Ga- tava, em 1924, no simultaneísmo das duas
em sua primeira fase
após sua criação em lerie Zack. Seria igualmente Rego Monteiro forças – internacionalismo e nativismo –,
fins da década de 40. quem, em 1930, traria ao Brasil (Recife, Rio sendo esse o conteúdo do Manifesto Pau-

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Caixa Modernista, Edusp/Editora UFMG/Imprensa Oficial, São Paulo, 2003

-Brasil publicado nesse ano, em livreto com Mas sem dúvida era Paris o parâmetro para Tarsila do Amaral,
capa de Tarsila, através de editora parisien- todos os jovens artistas, escritores e poetas. A Caipirinha, 1923
se. A mescla do “caipira” com a técnica dos Mesmo o futur ismo de Ma r inetti,
tempos modernos: “Obuses de elevadores, movimento cujo centenário, aliás, pouco se
cubos de arranha-céus, e a feiticeira preguiça comemorou entre nós em 2009, que já ti-
solar. A reza. O carnaval. A energia íntima. nha sido veiculado em nossa imprensa por
A ave canora. A hospitalidade algo sensual, Oswald de Andrade quando do retorno de
amorosa. A nostalgia dos chefes de tribo e sua primeira viagem à Europa, pouca in-
os campos de aviação militar ‘pau brasil’”. fluência6 teve com seus princípios destrui-
É claro que não foi somente a influência dores, embora muitos se refiram ao estilo
de Paris que trouxe armas para o modernis- “futurista” da Semana de Arte Moderna de
mo em sua tentativa de renovação no Bra- 1922, onde todas as artes se manifestaram,
sil, mas a informação vinha da Alemanha de maneira discreta, contudo, se comparados
igualmente, via Segall, assim como de Theo­ esses eventos com o que se fez na Europa na
dor Heuberger, além da formação de Anita década anterior.
Malfatti (que estudou com Lovis Corinth), e Apesar de certa frivolidade visível – e
mesmo de Guignard. E dos Estados Unidos, hoje o reconheço sem nenhum desdouro para 6 Apesar, sem dúvida, da
onde Anita passara a estudar até seu regresso ambos – dos modernistas brasileiros Tarsila grande presença ita-
liana na população de
ao Brasil, em 1916, com suas revolucionárias e Oswald de Andrade em seus anos parisien- São Paulo, assim como
telas fauve em sua bagagem, que fariam eclo- ses da década de 20, foram eles os que mais em sua imprensa, de
jornalistas e poetas
dir a revolução por uma alteração nas artes a laços estabeleceram – depois de Rego Mon- descendentes de ita-
partir de sua exposição em 1917. teiro, claro – com a vanguarda francesa da lianos.

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que o poeta suíço fez ao Brasil em inícios
de 1924, a convite de Paulo Prado (que se
tornaria seu maior amigo brasileiro, tendo
em vista o caráter instável e pouco confiável
de uma personalidade como Oswald de An-
drade, sobretudo depois de 1928).
Se acredito que a poesia de Oswald de
Andrade teve muita influência de Cendrars,
é inegável que a influência Brasil-Cendrars,
ou seja, a recíproca, seria também verdadei-
ra. A prova disso são os inúmeros livros que
escreveu sobre o Brasil ou a partir da fanta-
sia nutrida por ele sobre nosso país. Livros
publicados a partir dos anos 20 inspirados
em nosso país permeariam grande parte de
sua obra posterior, e, assim sendo, nunca será
demais dizer que o poeta foi um grande arau-
to dos mistérios do Brasil tropical que ele
viu e amou e imaginou. Além de Feuilles
de Route, narrando as impressões poéticas
no trajeto de sua primeira viagem ao país,
grande parte dos livros de prosa posteriores
são igualmente sobre o Brasil, como Trop

Vicente do Rego época. Mas o mago dessas ligações foi, sem


Monteiro, Retrato dúvida, Blaise Cendrars, o poeta suíço-fran-
de Joaquim Rego cês que os apresentou a “toda Paris” desses
Monteiro, 1920;
anos. Encantado com a personalidade de Tar-
ao lado, O Boto,
1921; na sila, fascinado com os diálogos estimulantes
outra página, de Oswald de Andrade, apresentou-os a um
Antônio Gomide, sem-número de amigos: Divoire, Léger, o ca-
Composição sal Delaunay, Eric Satie, Cocteau, Brancusi.
com Parte de Espetáculos teatrais, jantares, almoços
uma Ponte, 1923
em seu ateliê com comida brasileira regada
a cachaça, tudo era sorvido pelo casal brasi-
leiro, em particular de 1923 a 1927.
Se, para Tarsila, esse convívio foi fun-
damental para a repercussão de suas duas
exposições em Paris (em 1926 e em 1928),
para Oswald o mesmo se daria, pois a última
redação de Memórias Sentimentais de João
Miramar foi feita em Paris. Lembro-me de
Tarsila dizer-me que ele escrevia e reescrevia
Imagens: Acervo MAC

seu texto até a versão definitiva, que o satis-


faz, finalmente, em 1924.
A amizade selada com Cendrars seria sa-
cramentada, por assim dizer, com a viagem

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c’est Trop, D’Oultremer à Indigo, L’Homme
Foudroyé, La Vie Dangereuse e La Tour
Eiffel Sidérale, sendo este último inspirado
na cativante fazenda Morro Azul, próximo a
Limeira, no interior de São Paulo.
Por outro lado, pouco enfoque fei- 7 Embora eventos bem
to hoje é devido a análise da obra de recentes, como o da
exposição de Fernand
ar tistas brasileiros nos anos 20 e 30 Léger na Pinacoteca
considerando-os sob as inf luências re- do Estado de São Pau-
lo, já tenham sido uma
cebidas em suas idas e vindas a Paris7. interessante tentativa
Hoje me parece fora de dúvida que a de analisar esse artista
em suas relações com
personalidade artística francesa que mais artistas brasileiros da
marcou nossos pintores foi Fernand Léger, década do moder-
nismo.
em particular em Tarsila e também – por
que não? – em muitos trabalhos de Di Ca- 8 Na década de 70, es-
crevendo sobre a sua
valcanti. Todavia, não se pode esquecer De própria experiência
Chirico e Chagall, ou ainda, em particular, como artista brasi-
leiro e latino-ameri-
Tâmara Lempicka, sobre Ismael Nery. Ou cano vivendo num
Brancusi, em certos trabalhos de Brecheret. grande centro como
Nova York, Antonio
Assim como o douanier Rousseau no caso de estilo art déco, ou seja, as manifestações que Henrique Amaral faz
Tarsila, inconfessada influência, contudo, por dominam Paris nessa década como decorrên- referência comparati-
parte da artista, e mesmo de George Grosz, cia direta da renovação das artes aplicadas va com os artistas da
década de 20: “Mas
ainda no caso de Di Cavalcanti. Isso é o que a partir das experiências do cubismo, diluí- será que alguns deles
podemos denominar de “espírito do tempo”, da na linguagem decorativa. A consagração realmente se interes-
saram, na época, em
visível em trabalhos desses artistas brasilei- dessa tendência, ou as possibilidades de seu participar, dialogar
ros. Como também constatamos as admira- alcance, se torna mais visível sobretudo a e entrar mesmo na
problemática cultu-
ções geracionais visíveis quando da retros- partir do grande êxito da Exposição Inter- ral da época ou eram
pectiva de Iberê Camargo na Pinacoteca do nacional de Artes Decorativas, em Paris, em apenas turistas inte-
Estado ou, mais recentemente, na exposição 1925, que contou com pavilhões internacio- ressados, artistas de
passagem ‘sentindo
de Dubuffet em São Paulo. Mesmo Segall, nais das mais diversas procedências. a barra’, tendo experi-
artista que já chegou “adulto”, formado, ao Apesar da evidente intenção mercado- ências pessoais, mas,
de certa forma, meio
Brasil, em 1923, assinalaria a observação lógica, de pequenas e grandes exposições detached do meio cul-
atenta da pintura de Léger, através do mode- focalizando o art déco, têm sido levantados tural que ora observa-
vam como estrangei-
lado “metálico” de volumes. alguns pontos interessantes sobre a atmos- ros, ora participavam
Porém, sobre os modernistas, mais que fera de todo um tempo, sintetizada através porque lá estavam
uma influência autoral, de certos artistas, das artes decorativas (por vezes quase num acotovelando-se com
os ‘nativos’? Creio que
ocorreria uma poderosa influência do meio prolongamento do art nouveau na estilização a posição era dúbia,
ambiente parisiense, intensamente absorvido baseada no geometrismo cubista, ou filtrando ambivalente como é a
minha aqui. ‘Participo’
por nossos modernistas, fossem eles artistas uma fantasia requintada através de excentri- na forma de ver o que
plásticos ou músicos, como Villa-Lobos. cidades peculiares) dos anos 20 e 30. fazem, como fazem,
conheço gentes, vejo
As constantes viagens a Paris os colocam Vemos como essas diversas inspirações como pensam artistas
em contato com a “modernidade”, no sentido afloram também aqui entre nós, mesmo na americanos, latino-
dado por Baudelaire, com o cosmopolitismo e Semana de 22. Assim, um dos primeiros a -americanos, etc., mas
tenho a minha própria
o dandismo implícitos no viajar e com a absor- acusar motivos dessa ordem seria Antonio inner realidade cultu-
ção do ritmo vertiginoso do viver “moderno”. Moya (1891-1949), com seus projetos de mau- ral que é o meu dia a
dia, que é apenas to-
Isso propiciaria, não apenas a informação do soléus fantasiosos apresentados na Semana, cada superficialmente
que existia em arte em Paris, como também a lembrando monumentos pré-colombianos ou pelo que experimento
aqui” (carta de Anto-
sincronia com o momento cultural em geral8. do Oriente Médio, bem como seus projetos nio H. Amaral, de Nova
Nesse contexto cultural está implícito o de residências datados de 1926, em que o es- York, 9/abr./1974).

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tilo asteca é bastante significativo, conjugado ção dos anos 30 e 40 ombreia com a mais
às formas geométricas. monumental obra art déco do Brasil, como
A tal ponto foi poderosa a influência do bem o afirma o historiador Flavio Motta: a
art déco, ou seja, do “moderno” em geral estátua do Cristo do Corcovado, inaugurada
sobre os artistas brasileiros, que alguns não em 1931, que domina o panorama da Baía de
acusam a influência de um ou outro artista Guanabara, no Rio de Janeiro9.
francês da Escola de Paris mas assinalam em Quanto a Rego Monteiro, com um tra-
seus trabalhos a influência do difuso “estilo balho que, na segunda metade dos anos 20,
art déco”. Foi o caso de Antonio Gomide, alcança um rigor estrutural em que está
Regina Graz, Vicente do Rego Monteiro, presente a redução cromática observada na
Brecheret e mesmo Tarsila, Ismael Nery e primeira fase do cubismo, sua pintura fre-
Di Cavalcanti. quentemente mostra-se sensível ao relevo
Nos dois primeiros a evidência é maior art déco, imitando os efeitos estilizados que
pois tanto Gomide como sua irmã Regina constam dos Laliques de vidro leitoso, evasi-
haviam estudado em Genebra, na Escola de vos em seu anonimato de tendência.
Artes Decorativas daquela cidade, e ela foi É curioso observar que artistas moder-
a pioneira, em São Paulo, na renovação de nistas de formação expressionista, sobretudo
interiores segundo a lição cubista a partir de de alguma forma admiradores do expressio-
seu retorno ao Brasil em 1920. Foi também nismo alemão, não foram absorvidos pela
ativa no artesanato seja em tapeçaria, seja em onda art déco. É o caso que observamos em
almofadas, luminárias e panneaux. Nesses Anita Malfatti e em dois modernistas da
últimos surgiriam as formas geométricas, segunda geração, como Flavio de Carvalho
abstratas, realizadas em veludos lisos ou (1899-1973) e Guignard (1896-1962).
amarfanhados, justapostos. Surgem igual- Tarsila também seria tocada pelo am-
mente nas tapeçarias os motivos indígenas tí- biente das novas artes decorativas10. Pode-se
picos do art déco, bem como as composições facilmente observar em suas obras de fins da
9 A escultura do Cristo com paisagens bucólicas com alongadas fi- década de 20 motivos tipicamente art déco,
do Corcovado é de guras femininas acompanhadas de galgos es- que passam a integrar suas composições: os
autoria do francês
guios. Já Antonio Gomide (1895-1967) estu- raios de sol em forma concêntrica (em Pôr
Paul Max Landowski,
a partir de desenho do dará a técnica do afresco com Marcel Lenoir, do Sol), o cáctus (em Abaporu), a fonte es-
artista Carlos Oswald. em Toulouse, e será um dos primeiros, com tilizada (no mesmo Pôr do Sol), aqui pre-
Di Cavalcanti, a realizar afrescos e painéis sente como um motivo híbrido, disfarçado
10 Aliás, a própria Tarsila- para decoração de residências, assim como pela coloração verde-vegetação, mas bem
-mulher era bem a
cartões para vitrais, sempre com a estilização claramente visível em Paris como elemento
personificação do art
déco. Estimulada por própria do estilo do tempo. Segall também se decorativo no jardim do Pavilhão da Manu-
Oswald de Andrade, incluiria nessas realizações, com a decora- fatura Nacional de Sèvres, na exposição de
depois de toalete de
Jean Patou (como ção do teto e paredes do “pavilhão moder- 1925 (projeto dos arquitetos Patoul e Rapin)
meu seu autorretra- no” de dona Olívia Penteado, estimuladora e, em geral, na presença constante da curva,
to, Le Manteau Rouge,
hoje no MNBA do Rio da arte moderna nessa década em São Paulo. da forma elíptica, em várias telas da época.
de Janeiro), vestia- No caso do escultor Victor Brecheret Pierre Legrain, famoso encadernador e
-se com o renomado
(1894-1955), deve-se observar que, mais for- artista, autor de móveis e de projetos para
costureiro Paul Poiret.
Também comprou te que a influência brancusiana, ele absorveu encadernação da Biblioteca Jacques Doucet,
tecidos desenhados a estilização art déco. Ou seja, aquilo que seria o realizador de discutidas molduras
por Sonia Delaunay,
almofadas de Domi- para o romeno Brancusi não passaria de um para suas telas expostas nesse ano na Galerie
nique, da butique de degrau em processo de depuração, para Bre- Percier. Molduras em pergaminho, espelhos
Poiret, móveis, segun-
do depoimento seu, cheret seria a elegância maneirista da linha recortados em forma geométrica, papelão
de Dim, e a mobília art déco é, nessa década, transformado em ondulado, couro. A crítica se referiria aos
de seu quarto viria, em
seu casamento com
característica de sua escultura em seu perí- tableaux objets de Tarsila em decorrência
Oswald, de Ruhlmann. odo mais significativo. Mesmo sua produ- das molduras de Legrain, mas elas fornecem

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Acervo MAC

Di Cavalcanti, Pescadores, 1951

uma indicação da importância que a pintora sitação pública, com paisagismo moderno – e 11 Ver, por exemplo, a
sempre atribuiu ao elemento decorativo, as- tropical – de autoria de Mina Klabin, tendo proximidade de solu-
ções formais de Nery
sim como a uma possibilidade a mais de re- se constituído em um dos grandes aconteci- com as da artista Tâ-
conhecimento por ser apoiada por um nome mentos artísticos do ano. mara de Lempicka
(1898-1980), residente
reconhecido da cena francesa. A moda francesa mais atual fascinava a em Paris nos anos 20
Ismael Nery (1900-1934), o primeiro burguesia ilustrada. No entanto, Mário de e consagrada como
pintora da década do
artista a se filiar ao surrealismo como ten- Andrade era lúcido em relação a mais essa art déco.
dência, apesar do clima implícito em sua importação: “Nós brasileiros”, escrevia ele
produção (aquele da indagação do destino em 1928, “temos um dilúvio de motivos as-
do ser humano), também não ficaria imune sim pr’as nossas decorações, café, milho,
às tendências decorativas da época, como se borboletas, cobras, etc. No entanto, empre-
pode constatar em particular em suas aqua- gamos acanto, louro, óvulos, cabeças de
relas e desenhos que o aproximam de artis- carneiro e outras macaquices que só têm de
tas da época parisiense11. Ao mesmo tempo nacional serem macaqueações”.
deve-se registrar que, em sua fase surrealista Essa recusa da aceitação da realidade
visceral, seu último período, diminuem sen- nacional denunciada por Mário de Andra-
sivelmente esses elementos decorativos. de traz implícita a tradicional postura “co-
O art déco fundido com ideias da lonizada” do artista brasileiro (os Estados
Bauhaus estaria igualmente presente na de- Unidos, por exemplo, também vivenciariam
coração interior da Casa Modernista projeta- esse fenômeno até a eclosão de seu realismo
da por Warchavchik, e, em 1930, aberta a vi- e arte expressionista-abstrata, mesmo antes

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dossiê Semana de Arte Moderna

dernismo seria a da música. Refiro-me em

Acervo MAC
particular à importância dos ritmos brasilei-
ros, para Darius Milhaud, em suas compo-
sições inspiradas em nosso país, depois de
aqui viver como secretário do embaixador
Paul Claudel no Rio de Janeiro, antes de
1920. Por outro lado, é certo que composito-
res franceses seriam observados por Villa-
-Lobos e mesmo Souza Lima, em suas vi-
vências parisienses. Tarsila igualmente teve
vínculo de conhecimento e mesmo amizade
com Eric Satie, que a presenteou com uma
partitura original (a grafite), tendo sido, ele
e sua mulher, a escritora Juliette Roche, fre-
quentadores do ateliê da artista, em Paris.
Terminando, os dois extremos do caráter
modernista, o internacionalista, procedente
do contato com a Europa e em particular com
Paris, e a pressão da realidade local, a chamar
o artista para o seu espaço, tradições e contra-
dições, através do pluralismo cultural de um
país como o Brasil, fariam com que surgisse,
a partir do modernismo, segundo a pesquisa-
dora Telê Ancona Lopez, uma nova perspecti-
va de atuação, a propor um duplo caminho: a)
romper com a arte de importação; b) pesqui-
sar o popular. Ou seja, através do dado popu-
lar, restaurar a dignidade da língua e das ma-
nifestações populares a influir na literatura.
Essa preocupação com a realidade local,
influenciada, sem dúvida, pelas alterações
político-econômicas que ocorrem no Brasil
Ismael Nery, Figura, 1927-28
(a partir das agitações internas dos anos 20,
como a revolução de 1924, por exemplo, mas
do pop). Mas o artista brasileiro experimen- em particular em função da chegada ao po-
taria, com a dificuldade das viagens para os der de Getulio Vargas em 1930), acentuaria
artistas a partir da crise de 1929, um isola- nos artistas que emergem na década de 30
cionismo que o obrigaria a se voltar para a uma preocupação com o social, menos evi-
sua realidade, ocasionando esse “necessa- dente na década anterior.
riamente nacional” a que Mário de Andrade Uma menor preocupação pelas realiza-
se refere. Esse dado seria, em certa medida, ções da vanguarda europeia (com exceção da
a característica operária e social, a despeito personalidade ímpar, nessa década, de Flavio
dos participantes, da Família Artística Pau- de Carvalho) estaria implícita na nova pos-
lista, em São Paulo, e do Núcleo Bernardelli, tura das artes visuais. Assim como, no plano
do Rio de Janeiro, grupos que expõem coleti- literário, significaria o início de todo um ci-
vamente na década de 30, em contraposição clo de produção baseado na realidade local,
marcada ao erudito ou cosmopolita. como nos demonstrou o romance nordestino
Mas uma outra vertente não menos im- com Jorge Amado, Graciliano Ramos, Lins
portante dos vínculos Brasil-França no mo- do Rego e Raquel de Queiroz, por exemplo.

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