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Revista
USP, São Paulo, N. 94, p. 9-18, Jun./Jul./Ago. 2012.
Aracy Amaral
O modernismo
brasileiro
e o contexto
cultural
dos anos 20
RESUMO
ABSTRACT
Keywords: modernism, Brazilian art in the 20th century, art deco in Brazil,
Brazilian modernist artists.
conduzem a Ouro Preto”, em evidente alusão possibilidade de renovação para a arte brasi- 2 Os preparativos pa
ra a celebração do
às viagens à Europa, e mais precisamente à leira. Cubismo, expressionismo, ideias futu- cent enário da Inde-
França, pelos modernistas, e ao reconheci- ristas, dadaísmo, construtivismo, surrealismo pendência em 1922
mento de uma “cultura” brasileira, a seu re- e o “clima” parisiense onde imperava, nos acirrariam os ânimos
nativistas. Desde a Pri-
torno do exterior, como no caso da já famosa anos 20, o art déco resultaram em inspira- meira Guerra Mundial,
viagem a Minas em 1924 em companhia de ções que, direta ou indiretamente, alimenta- a fundação da Liga de
Defesa Nacional, lide-
Blaise Cendrars. ram os artistas modernistas brasileiros nos rada pelo poeta Olavo
O nacionalismo viria como decorrência anos 20 e 30. Paris, em particular, forneceria Bilac, chamaria a aten-
ção para a importância
de uma ânsia de afirmação a partir, gradativa- o ambiente propício para essas inspirações do sentimento cívico.
mente, da implantação da República (1889), de ruptura. A Alemanha e a Suíça de língua Do ponto de vista ar-
estando daí em diante implícito o desejo de francesa seriam os outros dois polos igual- tístico, o intelectual
Oswald de Andrade,
rompimento da intelectualidade com o sé- mente procurados como centros de formação. já em artigo de 1912,
culo XIX e o academismo nas artes visuais. Mas, comparativamente ao artista argentino, demandaria caracte-
rísticas nacionais para
Esse sentimento nativista visou assumir ocorre uma diferença, pois, salvo exceções, a arte do país, reivin-
nossa realidade física e cultural, até então o brasileiro é breve em seu contato com o dicando uma forma
de expressão que não
menosprezada pelas elites, que se identifica- exterior, invariavelmente regressando a seu fosse a arte acadêmica
vam com a Europa. país após curta permanência na Europa. consagrada na Europa.
-Brasil publicado nesse ano, em livreto com Mas sem dúvida era Paris o parâmetro para Tarsila do Amaral,
capa de Tarsila, através de editora parisien- todos os jovens artistas, escritores e poetas. A Caipirinha, 1923
se. A mescla do “caipira” com a técnica dos Mesmo o futur ismo de Ma r inetti,
tempos modernos: “Obuses de elevadores, movimento cujo centenário, aliás, pouco se
cubos de arranha-céus, e a feiticeira preguiça comemorou entre nós em 2009, que já ti-
solar. A reza. O carnaval. A energia íntima. nha sido veiculado em nossa imprensa por
A ave canora. A hospitalidade algo sensual, Oswald de Andrade quando do retorno de
amorosa. A nostalgia dos chefes de tribo e sua primeira viagem à Europa, pouca in-
os campos de aviação militar ‘pau brasil’”. fluência6 teve com seus princípios destrui-
É claro que não foi somente a influência dores, embora muitos se refiram ao estilo
de Paris que trouxe armas para o modernis- “futurista” da Semana de Arte Moderna de
mo em sua tentativa de renovação no Bra- 1922, onde todas as artes se manifestaram,
sil, mas a informação vinha da Alemanha de maneira discreta, contudo, se comparados
igualmente, via Segall, assim como de Theo esses eventos com o que se fez na Europa na
dor Heuberger, além da formação de Anita década anterior.
Malfatti (que estudou com Lovis Corinth), e Apesar de certa frivolidade visível – e
mesmo de Guignard. E dos Estados Unidos, hoje o reconheço sem nenhum desdouro para 6 Apesar, sem dúvida, da
onde Anita passara a estudar até seu regresso ambos – dos modernistas brasileiros Tarsila grande presença ita-
liana na população de
ao Brasil, em 1916, com suas revolucionárias e Oswald de Andrade em seus anos parisien- São Paulo, assim como
telas fauve em sua bagagem, que fariam eclo- ses da década de 20, foram eles os que mais em sua imprensa, de
jornalistas e poetas
dir a revolução por uma alteração nas artes a laços estabeleceram – depois de Rego Mon- descendentes de ita-
partir de sua exposição em 1917. teiro, claro – com a vanguarda francesa da lianos.
tilo asteca é bastante significativo, conjugado ção dos anos 30 e 40 ombreia com a mais
às formas geométricas. monumental obra art déco do Brasil, como
A tal ponto foi poderosa a influência do bem o afirma o historiador Flavio Motta: a
art déco, ou seja, do “moderno” em geral estátua do Cristo do Corcovado, inaugurada
sobre os artistas brasileiros, que alguns não em 1931, que domina o panorama da Baía de
acusam a influência de um ou outro artista Guanabara, no Rio de Janeiro9.
francês da Escola de Paris mas assinalam em Quanto a Rego Monteiro, com um tra-
seus trabalhos a influência do difuso “estilo balho que, na segunda metade dos anos 20,
art déco”. Foi o caso de Antonio Gomide, alcança um rigor estrutural em que está
Regina Graz, Vicente do Rego Monteiro, presente a redução cromática observada na
Brecheret e mesmo Tarsila, Ismael Nery e primeira fase do cubismo, sua pintura fre-
Di Cavalcanti. quentemente mostra-se sensível ao relevo
Nos dois primeiros a evidência é maior art déco, imitando os efeitos estilizados que
pois tanto Gomide como sua irmã Regina constam dos Laliques de vidro leitoso, evasi-
haviam estudado em Genebra, na Escola de vos em seu anonimato de tendência.
Artes Decorativas daquela cidade, e ela foi É curioso observar que artistas moder-
a pioneira, em São Paulo, na renovação de nistas de formação expressionista, sobretudo
interiores segundo a lição cubista a partir de de alguma forma admiradores do expressio-
seu retorno ao Brasil em 1920. Foi também nismo alemão, não foram absorvidos pela
ativa no artesanato seja em tapeçaria, seja em onda art déco. É o caso que observamos em
almofadas, luminárias e panneaux. Nesses Anita Malfatti e em dois modernistas da
últimos surgiriam as formas geométricas, segunda geração, como Flavio de Carvalho
abstratas, realizadas em veludos lisos ou (1899-1973) e Guignard (1896-1962).
amarfanhados, justapostos. Surgem igual- Tarsila também seria tocada pelo am-
mente nas tapeçarias os motivos indígenas tí- biente das novas artes decorativas10. Pode-se
picos do art déco, bem como as composições facilmente observar em suas obras de fins da
9 A escultura do Cristo com paisagens bucólicas com alongadas fi- década de 20 motivos tipicamente art déco,
do Corcovado é de guras femininas acompanhadas de galgos es- que passam a integrar suas composições: os
autoria do francês
guios. Já Antonio Gomide (1895-1967) estu- raios de sol em forma concêntrica (em Pôr
Paul Max Landowski,
a partir de desenho do dará a técnica do afresco com Marcel Lenoir, do Sol), o cáctus (em Abaporu), a fonte es-
artista Carlos Oswald. em Toulouse, e será um dos primeiros, com tilizada (no mesmo Pôr do Sol), aqui pre-
Di Cavalcanti, a realizar afrescos e painéis sente como um motivo híbrido, disfarçado
10 Aliás, a própria Tarsila- para decoração de residências, assim como pela coloração verde-vegetação, mas bem
-mulher era bem a
cartões para vitrais, sempre com a estilização claramente visível em Paris como elemento
personificação do art
déco. Estimulada por própria do estilo do tempo. Segall também se decorativo no jardim do Pavilhão da Manu-
Oswald de Andrade, incluiria nessas realizações, com a decora- fatura Nacional de Sèvres, na exposição de
depois de toalete de
Jean Patou (como ção do teto e paredes do “pavilhão moder- 1925 (projeto dos arquitetos Patoul e Rapin)
meu seu autorretra- no” de dona Olívia Penteado, estimuladora e, em geral, na presença constante da curva,
to, Le Manteau Rouge,
hoje no MNBA do Rio da arte moderna nessa década em São Paulo. da forma elíptica, em várias telas da época.
de Janeiro), vestia- No caso do escultor Victor Brecheret Pierre Legrain, famoso encadernador e
-se com o renomado
(1894-1955), deve-se observar que, mais for- artista, autor de móveis e de projetos para
costureiro Paul Poiret.
Também comprou te que a influência brancusiana, ele absorveu encadernação da Biblioteca Jacques Doucet,
tecidos desenhados a estilização art déco. Ou seja, aquilo que seria o realizador de discutidas molduras
por Sonia Delaunay,
almofadas de Domi- para o romeno Brancusi não passaria de um para suas telas expostas nesse ano na Galerie
nique, da butique de degrau em processo de depuração, para Bre- Percier. Molduras em pergaminho, espelhos
Poiret, móveis, segun-
do depoimento seu, cheret seria a elegância maneirista da linha recortados em forma geométrica, papelão
de Dim, e a mobília art déco é, nessa década, transformado em ondulado, couro. A crítica se referiria aos
de seu quarto viria, em
seu casamento com
característica de sua escultura em seu perí- tableaux objets de Tarsila em decorrência
Oswald, de Ruhlmann. odo mais significativo. Mesmo sua produ- das molduras de Legrain, mas elas fornecem
uma indicação da importância que a pintora sitação pública, com paisagismo moderno – e 11 Ver, por exemplo, a
sempre atribuiu ao elemento decorativo, as- tropical – de autoria de Mina Klabin, tendo proximidade de solu-
ções formais de Nery
sim como a uma possibilidade a mais de re- se constituído em um dos grandes aconteci- com as da artista Tâ-
conhecimento por ser apoiada por um nome mentos artísticos do ano. mara de Lempicka
(1898-1980), residente
reconhecido da cena francesa. A moda francesa mais atual fascinava a em Paris nos anos 20
Ismael Nery (1900-1934), o primeiro burguesia ilustrada. No entanto, Mário de e consagrada como
pintora da década do
artista a se filiar ao surrealismo como ten- Andrade era lúcido em relação a mais essa art déco.
dência, apesar do clima implícito em sua importação: “Nós brasileiros”, escrevia ele
produção (aquele da indagação do destino em 1928, “temos um dilúvio de motivos as-
do ser humano), também não ficaria imune sim pr’as nossas decorações, café, milho,
às tendências decorativas da época, como se borboletas, cobras, etc. No entanto, empre-
pode constatar em particular em suas aqua- gamos acanto, louro, óvulos, cabeças de
relas e desenhos que o aproximam de artis- carneiro e outras macaquices que só têm de
tas da época parisiense11. Ao mesmo tempo nacional serem macaqueações”.
deve-se registrar que, em sua fase surrealista Essa recusa da aceitação da realidade
visceral, seu último período, diminuem sen- nacional denunciada por Mário de Andra-
sivelmente esses elementos decorativos. de traz implícita a tradicional postura “co-
O art déco fundido com ideias da lonizada” do artista brasileiro (os Estados
Bauhaus estaria igualmente presente na de- Unidos, por exemplo, também vivenciariam
coração interior da Casa Modernista projeta- esse fenômeno até a eclosão de seu realismo
da por Warchavchik, e, em 1930, aberta a vi- e arte expressionista-abstrata, mesmo antes
Acervo MAC
particular à importância dos ritmos brasilei-
ros, para Darius Milhaud, em suas compo-
sições inspiradas em nosso país, depois de
aqui viver como secretário do embaixador
Paul Claudel no Rio de Janeiro, antes de
1920. Por outro lado, é certo que composito-
res franceses seriam observados por Villa-
-Lobos e mesmo Souza Lima, em suas vi-
vências parisienses. Tarsila igualmente teve
vínculo de conhecimento e mesmo amizade
com Eric Satie, que a presenteou com uma
partitura original (a grafite), tendo sido, ele
e sua mulher, a escritora Juliette Roche, fre-
quentadores do ateliê da artista, em Paris.
Terminando, os dois extremos do caráter
modernista, o internacionalista, procedente
do contato com a Europa e em particular com
Paris, e a pressão da realidade local, a chamar
o artista para o seu espaço, tradições e contra-
dições, através do pluralismo cultural de um
país como o Brasil, fariam com que surgisse,
a partir do modernismo, segundo a pesquisa-
dora Telê Ancona Lopez, uma nova perspecti-
va de atuação, a propor um duplo caminho: a)
romper com a arte de importação; b) pesqui-
sar o popular. Ou seja, através do dado popu-
lar, restaurar a dignidade da língua e das ma-
nifestações populares a influir na literatura.
Essa preocupação com a realidade local,
influenciada, sem dúvida, pelas alterações
político-econômicas que ocorrem no Brasil
Ismael Nery, Figura, 1927-28
(a partir das agitações internas dos anos 20,
como a revolução de 1924, por exemplo, mas
do pop). Mas o artista brasileiro experimen- em particular em função da chegada ao po-
taria, com a dificuldade das viagens para os der de Getulio Vargas em 1930), acentuaria
artistas a partir da crise de 1929, um isola- nos artistas que emergem na década de 30
cionismo que o obrigaria a se voltar para a uma preocupação com o social, menos evi-
sua realidade, ocasionando esse “necessa- dente na década anterior.
riamente nacional” a que Mário de Andrade Uma menor preocupação pelas realiza-
se refere. Esse dado seria, em certa medida, ções da vanguarda europeia (com exceção da
a característica operária e social, a despeito personalidade ímpar, nessa década, de Flavio
dos participantes, da Família Artística Pau- de Carvalho) estaria implícita na nova pos-
lista, em São Paulo, e do Núcleo Bernardelli, tura das artes visuais. Assim como, no plano
do Rio de Janeiro, grupos que expõem coleti- literário, significaria o início de todo um ci-
vamente na década de 30, em contraposição clo de produção baseado na realidade local,
marcada ao erudito ou cosmopolita. como nos demonstrou o romance nordestino
Mas uma outra vertente não menos im- com Jorge Amado, Graciliano Ramos, Lins
portante dos vínculos Brasil-França no mo- do Rego e Raquel de Queiroz, por exemplo.