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Figuração e Abstração: uma análise da crítica

de arte de Mário Pedrosa à obra de Cândido


Portinari
The Figurative and Abstract: an analysis of Mário Pedrosa’s art critique of the
work of Cândido Portinari

Ana Carolina Machado Arêdes1

RESUMO
Este artigo pretende analisar dois momentos distintos da crítica de arte de Mário Pedrosa em relação à
obra do pintor Candido Portinari. De 1930 até meados da década de 1945, Pedrosa defendeu uma arte
engajada, preocupada e voltada para a temática social. Suas críticas eram feitas com forte inspiração
marxista e baseadas no materialismo histórico. Nesse contexto, Portinari e seus quadros que evocavam
o homem simples e o trabalhador braçal aparecia como o artista ideal. Depois da Segunda Guerra em
1945, a crítica de arte internacional passou por profundas transformações que contribuíram para
especialização desse campo de atuação. Atento ao cenário mundial, Pedrosa foi um dos principais
baluartes dessa nova maneira de encarar a arte no Brasil. O crítico passou a pregar a arte abstrata
como uma expressão nova e autêntica, desinteressada pelo assunto e preocupada com a estética, com a
arte simplesmente dita. Assim, Portinari e sua pintura com forte cunho figurativo passou a ser alvo das
críticas de Pedrosa. Essa contenda e os caminhos que levaram a ela é o que buscaremos aqui abordar.
Palavras-Chave: Mário Pedrosa; Candido Portinari; crítica de arte; figuração; abstração.

ABSTRACT
This article intends to analyse two distinct moments of Mário Pedrosa’s art critique in relation to the
work of the painter Candido Portinari. From 1930 to 1945, Pedrosa defended an art that was involved
305
and concerned with social issues. His criticisms were greatly inspired by Marxism and based on
historical materialism. In this context Portinari appeared to be the ideal artist with his paintings that
portrayed the humble man and the laborer. After the Second World War in 1945, the criticism of
international art underwent profound transformation that contributed to the specialization of this field
of activity. Mindful of the world scenario, Pedrosa was one of the main bastions of this new way of
approaching art in Brazil. The critic began to preach abstract art as a new and authentic expression,
perceiving art as simplicity, disinterested in the subject and concern for aesthetics. Thus, Portinari and
his painting with their strong figurative nature became the target of Pedrosa´s criticism. This
contention and the paths that led to it, is what will be addressed here.
Key-words: Mário Pedrosa, Candido Portinari, art criticism, figurative, abstract.

1
Doutoranda em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), na área de
concentração História Social das Relações Políticas, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Almerinda da
Silva Lopes. Bolsista CAPES. E-mail: anacarolaredes@yahoo.com.br

REVISTA AQUILA. nº 21. Ano IX. Ago/dez, 2019.


ISSN: 1414-8846
e-ISSN: 2317-6474
No início do século XX, o Para Marcelo Ribeiro
modernismo brasileiro foi construído a Vasconcelos, através da crítica de arte
partir de uma atualização da temática de Mário Pedrosa à obra de Candido
nacional, em parte fundada em uma Portinari, é possível perceber duas
transição da ideia de miscigenação abordagens diferentes sobre o lugar do
racial para a de formação cultural. Na artista como agente da transformação,
Europa, após a Segunda Guerra, a onde ambas são fruto de interpretações
crítica de arte se institucionalizou e de agentes diversos, que demonstram
buscou fortalecer a autonomia da obra como a arte reflete os conflitos sociais
de arte, a partir da noção de que a arte de sua época. (VASCONCELOS,
deveria ter uma linguagem específica, 2013)
livre tanto do assunto quanto dos Patrícia Reinheimer salienta
nacionalismos. Essa discussão chegou que, em meados do século XX,
ao Brasil no mesmo período, em estabeleceu-se um campo internacional
defesa da arte abstrata como a mais de debates para os críticos de arte,
autêntica expressão artística. através da Associação Internacional 306
(REINHEIMER, 2013) dos Críticos de Arte e de algumas
O crítico de arte Mário outras instituições, como museus de
Pedrosa, antes um entusiasta da arte arte moderna e bienais. Naquele
social engajada, na segunda metade da contexto sociopolítico, especialmente
década de 1940, mudou suas após a Segunda Guerra, os críticos
concepções e foi um dos principais revisaram a ideia de autonomia da
defensores e propagadores da arte obra de arte e reafirmaram a
abstrata no Brasil. Em contrapartida, singularidade como valor
Portinari era um artista consagrado e preponderante para avaliação do
prezava pelo figurativismo, pelo fenômeno artístico, pela rejeição do
assunto e pela temática nacional em nacionalismo e da negação da
suas obras. Pedrosa, que outrora fez participação de artistas em projetos
críticas positivas ao trabalho do pintor, políticos. Pode-se considerar essa
passou a atacar sua maneira de fazer e mudança como uma especialização e
encarar a arte, o que gerou um maior autonomia tanto da arte, quanto
desgaste na relação de ambos.

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da crítica de arte. (REINHEIMER, participação de inúmeros artistas e
2013) intelectuais nos quadros de sua
Assim, abordaremos aqui as burocracia para a realização desse
duas fases da crítica de arte de Mário projeto. A arte, portanto, foi usada a
Pedrosa em relação à obra de Portinari. serviço da nação.
Pedrosa foi o principal representante Para os artistas e intelectuais,
da nova fase artística no Brasil da em contrapartida, o ingresso nas
corrente que defendia a abstração fileiras burocráticas passou a constituir
como uma forma pura de expressão êxito nas demais atividades do campo
artística. Ao passo que Portinari era cultural. Sergio Miceli sustenta que o
um consagrado pintor, representante poder público se colocou como o
do figurativismo, que atingiu o auge de principal concessionário dos padrões
sua carreira nas décadas de 1930 e de legitimidade intelectual.
1940. Encomendas, prêmios, viagens de
A década de 1930 representou representação, prebendas; tudo que
a consolidação do modernismo ostentasse o “timbre do oficialismo”
brasileiro. O movimento modernista passou a constituir a caução daqueles 307
defendia uma arte engajada que aspiravam ingressar no “panteão”
socialmente e que representasse da cultura brasileira. (MICELI, 1979)
elementos nacionais que contribuíssem Nessa conjuntura, Candido
para a construção, ou reconstrução, de Portinari aparecia como o
uma identidade nacional. Nesse representante ideal da arte moderna.
ínterim, o Brasil passa a ser visto Filho de imigrantes italianos que
como uma grande nação mestiça, tema vieram para o Brasil trabalhar na
amplamente explorado e trabalhado lavoura cafeeira, Portinari nasceu em
nas manifestações artísticas nacionais. Brodósqui, interior de São Paulo, em
Em paralelo, o governo de Getúlio 1903. Em 1919, foi para o Rio de
Vargas, que assumiu o poder após a Janeiro, então capital federal, com o
Revolução de 1930, defendia a busca objetivo de estudar pintura. No ano
ou o reforço de uma noção de seguinte, conseguiu ingressar na
identidade nacional que contribuísse tradicional Escola Nacional de Belas
para a integração do povo à nação. Artes. Nessa instituição, conhecida
Sendo assim, o Estado contou com a pelo rigor acadêmico, o pintor foi

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conquistando premiações e começou a Violinista, um retrato do músico Oscar
se destacar no cenário artístico Borgeth3.
nacional. Em 1928, em um dos salões Após o Salão de 1931, Mário
da ENBA2, Portinari obteve o prêmio de Andrade e Candido Portinari
de viagem à Europa com o retrato do construíram uma sólida amizade,
poeta Olegário Mariano. marcada principalmente pelo intenso
O pintor escolheu a França intercâmbio de ideias e favores e pela
como destino e lá se limitou a observar constante troca epistolar. Para
os mestres europeus e a visitar museus, Annateresa Fabris, Mário de Andrade
demonstrando baixíssima produção sentia orgulho por ter auxiliado o
artística. A viagem de estudos à pintor a engrenar na carreira artística,
Europa é vista por muitos críticos de uma vez que para o literato, Portinari
arte, como o marco divisório da arte era o tipo ideal de artista brasileiro,
portinariana. O pintor retornaria necessário àquele momento. O pintor,
daquele continente mais seguro do que por sua vez, sentia extrema confiança
queria pintar, elegendo a gente simples em pedir os conselhos do crítico e
e trabalhadora como fonte de amigo Mário de Andrade. (FABRIS, 308
inspiração para suas novas 1995)
composições. Micelli afirma que do
Em seu retorno ao Brasil, relacionamento entre Mário de
Portinari participou do Salão de 1931, Andrade e Portinari, ambos extraíam
conhecido por ser um “salão benefícios e obrigações. As
democrático”, sem júri de seleção, expectativas de Portinari em torno de
onde todos poderiam expor, Mário de Andrade se pautavam em
organizado pelo arquiteto Lúcio Costa, torno da promoção pessoal e
então nomeado diretor da ENBA.
Nesse salão, Portinari conheceu o 3
Portinari retratou em sua pintura o violinista
Oscar Borgerth concentrado antes de uma
crítico e literato Mário de Andrade, apresentação musical. Essa obra, conhecida
expoente do movimento modernista, como O Violinista, exposta no Salão de 1931,
foi muito elogiada por Mário de Andrade.
que se encantou por seu quadro O Mário afirma que foi nesse Salão que
conheceu o pintor paulista e ficou admirado
por seu trabalho. Ver: FABRIS, Annateresa.
Portinari, amico mio. Cartas de Mário de
Andrade a Candido Portinari. Campinas:
Mercado das Letras – Autores Associados/
2
Escola Nacional de Belas Artes. Projeto Portinari, 1995.

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institucional no mercado intelectual e Assim como Mário de
artístico da época. Mário de Andrade Andrade, Mário Pedrosa atuou como
desempenhou um papel decisivo no crítico de arte no Brasil desde a década
processo de legitimação e consagração de 1930. Segundo Reinheimer,
do nome do artista, tanto no campo naquela época, um pintor que seguia
nacional quanto no internacional. O indicações de um determinado viés
literato, por sua vez, desprovido do crítico poderia ser comparado a um
capital necessário à sua consumação, acadêmico que acolhia os
contava com Portinari para abrir novas ensinamentos de seus professores de
possibilidades de comércio. O pintor desenho e pintura. Na falta de
lhe confiava suas próprias obras para instituições que oferecessem critérios
venda ou colocava ao seu alcance de avaliação e direcionamento, eram
obras a um preço mais acessível, os críticos que cumpriam esse papel. A
concedendo-lhe o status de comprador expansão da imprensa, nesse período,
preferencial. (MICELI, 1996) com o surgimento de diversos
De acordo com Travassos, periódicos com colunas dedicadas à
Portinari realizava, sem o saber, a arte, abria espaço para a atuação desse 309
utopia nacionalista de Mário de campo de profissionais. Os críticos
Andrade: “o camponês tornado artista, eram mais do que os intermediários
cumprindo todos os requisitos de entre o artista e o público, eles
autenticidade para o papel de contribuíam para que os próprios
indivíduo biológico representante da artistas, que muitas vezes elaboravam
nação brasileira”. (TRAVASSOS apud seus trabalhos sem refletir sobre seus
REINHEIMER, 2013, p.69) Era fundamentos, construíssem um
comum essa relação próxima entre discurso sobre as suas obras.
pintura e literatura. Os literatos que (REINHEIMER, 2013)
atuavam na imprensa eram os que Jornalista e militante político,
faziam as críticas de arte e, portanto, Mário Pedrosa veio de uma família de
que contribuíam para o sucesso e para fazendeiros de Pernambuco. Parente
a projeção de um artista. A crítica de de José Lins do Rego, a família de seu
arte tinha, desse modo, um caráter pai era de senhores de engenho no
menos especializado e mais Nordeste, que viviam da cana-de-
romanceado. açúcar e do algodão. O pai de Pedrosa

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foi Senador da República e Ministro Em 1933, Pedrosa publicou sua
do Tribunal de Contas, e todos os seus primeira crítica de arte de repercussão:
irmãos foram devidamente As tendências sociais da arte de Käthe
apadrinhados em cargos públicos. Kollwitz, no jornal antifascista Homem
(REINHEIMER, 2013) Livre, fundado por ele no mesmo ano.
Mário Pedrosa ingressou na (VASCONCELOS, 2013) Kollwitz era
Faculdade de Direito da Universidade uma gravurista alemã que realizou
do Rio de Janeiro, onde teve contato seus trabalhos com forte apelo social.
com o pensamento marxista. Após Fundamentado no marxismo, Mário
concluir seus estudos, em 192,5 filiou- Pedrosa concebia a arte de Kollwitz
se ao Partido Comunista. Em 1927, foi como uma forma de explicitar os
enviado pelo PC à Escola Leninista, conflitos, estimulando a formação de
em Moscou. Mas acabou uma consciência de classe que levasse
estabelecendo-se em Berlim, onde à revolução. (REINHEIMER, 2013)
frequentou cursos de sociologia, Pedrosa defendia a necessidade
filosofia e estética da Faculdade de de compreender os movimentos
Filosofia de Berlim. Foi na Alemanha artísticos pelo método do materialismo 310
que iniciou sua formação em artes e dialético, o que negaria uma arte
desenvolveu seus primeiros estudos movida exclusivamente por suas
sobre a psicologia da forma (Gestalt). regras internas. Esta concepção do
Ainda em sua estadia na Europa, papel da arte no movimento
aproximou-se do trotskismo, do qual revolucionário foi pregada por
tomou partido após a cisão entre Stálin Trotsky, que defendeu que a arte
e Trotsky. Em 1929, retornou ao revolucionária não seria feita
Brasil, onde assumiu uma postura exclusivamente por proletários, seriam
crítica em relação ao Partido os intelectuais que disporiam de uma
Comunista e promoveu a primeira posição política passiva, marcada por
organização trotskista brasileira, o uma maior ou menor simpatia pelo
Grupo Comunista Lênin. Essa movimento revolucionário, que se
oposição ao stalinismo no Brasil empenhariam para tal fim. Assim, o
marcou a militância política de Partido não deveria intervir
Pedrosa na década de 1930. diretamente sobre a arte.
(VASCONCELOS, 2013) (VASCONCELOS, 2013)

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Para Trotsky, a arte necessário que os temas sociais
revolucionária seria uma arte tivessem destaque. (PEDROSA apud
transitória, que levaria à arte socialista VASCONCELOS, 2013)
que ainda estava em vias de surgir. A A concepção de Pedrosa sobre
arte revolucionária deveria ser o materialismo dialético e sua relação
impregnada do ódio social, que na com a arte na década de 1930 se
ditadura do proletariado, constituiria aproxima fortemente das ideias de
um fator criador nas mãos da história. Trotsky, que defendia que o artista
A arte socialista não poderia ser moderno seria como o catalisador
construída pelo partido do responsável pelo processo que levaria
proletariado, iletrado em educação à ditadura do proletariado, o construtor
estética, mas artisticamente sensível de uma tradição estética que se
(TROTSKY apud VASCONCELOS, consolidaria com o socialismo.
2013). (VASCONCELOS, 2013)
De acordo com Vasconcelos, a Em 1934, Pedrosa escreveu sua
crítica de arte de Pedrosa nesse primeira crítica em relação ao trabalho
período pode ser entendida como um de Portinari: Impressões de Portinari. 311
esforço na criação dessa arte Nesta, Pedrosa tratou da trajetória do
revolucionária no Brasil. Uma arte que artista, dividindo-a em diferentes
possibilitasse a crítica ao capitalismo. fases. Com temas que abordavam o
(VASCONCELOS, 2013) Para homem simples e o universo do
Pedrosa, a arte refletiria a sociedade na trabalho, Portinari ganhou elogios do
medida em que todo fenômeno estético crítico, pois se mostrava como o artista
moderno surgia a partir das ideal à arte engajada, defendida por
transformações no modo de produção. Pedrosa.
Se a arte era um reflexo da sociedade, A primeira fase apontada por
ambas deveriam ser entendidas pelo Pedrosa seria a “fase marrom” ou
mesmo método, o materialismo “brodosquiana”. Tais pinturas
dialético. Pedrosa acreditava que o caracterizavam-se por forte apelo
capitalismo e sua transformação sentimental, já que nelas o pintor
técnica teria afastado o artista e a arte recordou os tempos em que viveu no
do restante da sociedade e dos seus interior de São Paulo. As obras dessa
problemas vitais. Era, portanto, fase distinguem-se pela superfície

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marrom dominante, que simboliza a
terra roxa de Brodósqui. Os céus das
paisagens são turvos e o artista abusou
de efeitos de luz trabalhando os
contrastes entre claro e escuro. Os
exemplares mais representativos desta
fase são: Circo, 1933 (fig.1),
Futebol4,1935 e Morro,1933 (fig.2).
(PEDROSA, 1934/ 2004)
Passada a “fase marrom”,
Portinari se entregou a uma pesquisa
exaustiva de técnicas e materiais. Os
problemas do espaço e da perspectiva
o atormentavam. O pintor buscava
traduzir a realidade plástica por meio
de abstrações geométricas de planos e
dimensões. Essa fase permeia os anos 312
de 1934 e 1935 e nela se enquadram
obras como Estivador, 1934 (fig.3) e
Sorveteiro, 1934 (fig.4). (PEDROSA,
1934/2004)

4
Pedrosa salienta que seria a primeira versão
do quadro Futebol, antes dos retoques, que
para ele prejudicaram a composição. Ver:
PEDROSA, Mário. Dos Murais de Portinari
aos espaços de Brasília. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1981.

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Figura 1. Candido Portinari, Circo, 1933. Óleo sobre tela. 60 x 73 cm.
Coleção Particular. Fonte da Reprodução: Projeto Portinari.

313

Figura 2. Candido Portinari, Morro, 1933. Óleo sobre tela. 114 x 146 cm.
Museum of Modern Art, New York, NY. Fonte da Reprodução: Projeto Portinari.

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Figura 3. Candido Portinari, Estivador, 1934. Óleo sobre madeira. 46 x 58.8 cm.
Coleção Particular. Fonte da Reprodução: Projeto Portinari.

314

Figura 4. Candido Portinari, Sorveteiro, 1934. Óleo sobre tela. 44 x 59 cm.


Coleção Particular. Fonte da Reprodução: Projeto Portinari.

Após esta fase idealista formal, formal aumentaria e o conteúdo social


marcada pela dialética entre abstração e material diminuiria. Portinari estava
formal e figuração desumanizada, preocupado não apenas com a
surgiria outra fase, na qual o rigor composição, mas com as exigências

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expressivas das cores, buscando buscou enfatizar a densidade dos
enfatizar o homem. Na primeira versão corpos e objetos. O modelado do
da tela Café, Portinari conseguiu artista ganhou uma forma bruta
fundir matéria e composição em uma fazendo com que as figuras ganhassem
unidade satisfeita de si. (PEDROSA força monumental e estatuária. São
Apud VASCONCELOS, 1934/ 2013) dessa fase Preto da Enxada, 1933,
Na fase posterior, Portinari Mestiço, 1934 (fig.5) e Índia e Mulata,
iniciou uma nova etapa, na qual 1934. (PEDROSA, 1934/2004)

315

Figura 5. Candido Portinari, Mestiço, 1934. Óleo sobre tela. 81 x 65.5 cm.
Pinacoteca do Estado de São Paulo, SP. Fonte da Reprodução: Projeto Portinari.

Para Mário Pedrosa, Portinari levou ao mural. (PEDROSA,


teria superado os limites do quadro a 1934/2004) Pedrosa afirmava que o
óleo e este impasse o fez caminhar muralismo poderia ser o futuro da arte
para o muralismo. Não foi e que a genialidade de Portinari estaria
simplesmente influenciado pelos justamente em sua capacidade de
pintores muralistas mexicanos, a seguir em tal direção. (PEDROSA
evolução interior da sua pintura o apud VASCONCELOS, 2013)

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De acordo com Fabris, o permaneceu por mais ou menos um
engajamento social foi o que marcou ano e participou da IV Internacional,
as pinturas de Portinari. Suas obras organização dirigida por Trotsky.
poderiam ser resumidas em uma única Depois foi para os Estados Unidos,
preocupação: o homem. O homem, em estabeleceu-se em Nova York e, em
especial o trabalhador braçal negro e seguida, em Washington.
mulato, seria o responsável pelo De lá, escreveu nova crítica,
progresso nacional. O trabalhador em 1942 - Portinari: de Brodósqui aos
braçal era alheio aos meios de murais de Washington. Nesta, Pedrosa
produção e aos frutos de seu trabalho, volta a fazer um apanhado geral da
que realizava por necessidade de trajetória artística de Portinari, passa
sobrevivência, muitas vezes não por por alguns dos trabalhos que o pintor
escolha ou vontade. O negro e o havia feito na nova sede do MES5 e
mulato eram o símbolo do termina com a análise dos murais da
proletariado, representantes da Biblioteca do Congresso. Esses
oposição à elite branca. (FABRIS, trabalhos foram realizados na ala da
1990). Fundação Hispânica, portanto, os 316
Portinari consagrava-se como temas deveriam ser comuns a toda a
pintor no cenário nacional. O artista América Latina. Portinari pintou
aparecia como a figura mais indicada quatro painéis: Descobrimento,
para a realização de trabalhos para o Desbravamento da Mata, Catequese e
Estado. Em 1936, foi convidado pelo Descoberta do Ouro.
Ministro da Educação e Saúde, Para Pedrosa, nos Estados
Gustavo Capanema, a fazer os murais Unidos, Portinari demonstrava mais
do novo edifício sede do ministério. liberdade na execução dos seus
Alguns anos depois, foi convidado a afrescos:
realizar pinturas em afresco nas Nesses painéis de agora a intenção
profunda do artista não é mais
paredes da Biblioteca do Congresso, definir formas abstratas, mas
reduzir formas à abstração criadora.
em Washington. No período em que As suas finalidades já não são
puramente construtivistas, num
esteve trabalhando nos Estados sentido de montagem ou de
Unidos, Mário Pedrosa lá estava estrutura, mas a criação livre. É a
sua fase de libertação criadora, a
exilado. Pedrosa foi primeiramente conversão do plástico no abstrato

para a França em 1937, onde 5


Ministério da Educação e Saúde.

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dentro da matéria pictórica defendia que a arte deveria ser
(PEDROSA, 1942/1981).
independente de qualquer dogma ou
O crítico atribuía essa liberdade
ideal político como condição ao seu
do artista ao distanciamento dos
caráter revolucionário.
literatos, por não estar no Brasil. Anos
(VASCONCELOS, 2013)
mais tarde, Pedrosa comentaria sobre
Atento a estas transformações,
isso:
Pedrosa retornou ao Brasil. Para o
(...) comentava eu,
entusiasticamente, a maneira crítico, a forma mais autêntica da arte
atrevida com que o pintor reduzia
os detalhes figurativos, pé, nariz,
desinteressada seria a abstração, que
cabeça, camisa, peneira, batel, água, outrora foi criticada como uma forma
pedra, etc., a manchas coloridas, a
signos, a formas geométricas como alienada de arte. De acordo com
triângulos, por exemplo, para
realçar a força plástica significativa Reinheimer, o prestígio de Portinari
do todo, quando ele, com aquele
jeito esperto, à caipira, o bonachão, como artista no cenário nacional fez
interrompe: ‘– pois é, eu aqui me
sinto mais livre do que no Brasil.
com que Pedrosa não atacasse
Os literatos me atrapalham’. Ele veementemente o figurativismo em um
queria dizer com isso que as ideias
forçosamente literárias dos primeiro momento. Portinari, por sua
intelectuais amigos interferiam
frequentemente com as suas, ou os vez, já não contava mais com o apoio 317
seus projetos puramente pictóricos
[...] no princípio de sua carreira, eu do crítico e amigo Mário de Andrade,
também, então seu amigo e
frequentador, me incluo entre
que faleceu em 1945. (REINHEIMER,
aqueles intelectuais. (PEDROSA 2013)
apud REINHEIMER, 2013)
Pedrosa se restabeleceu como
Segundo Vasconcelos, o tempo
crítico de arte no Brasil e passou a
que Pedrosa passou no exílio
escrever regularmente para o Correio
transformou o teor de sua crítica de
da Manhã e o Jornal do Brasil. Em
arte. Após o fim da Segunda Guerra e
1948, publicou uma crítica referente
do Estado Novo, a arte passaria por
ao quadro Primeira Missa no Brasil,
uma transformação que buscava
1948 (fig.6), de Cândido Portinari.
especializar seu campo de análise, em
Pedrosa dessa vez analisava uma obra
defesa da arte desinteressada, a arte
isoladamente, o que demonstrava a
pela arte, não atrelada a interesses
especialização da categoria dos
partidários ou nacionais. O próprio
críticos de arte. Além disso, sua
Trotsky, junto com Breton, publicou
crítica perdeu aquele vocabulário
um manifesto em 1938 no qual
marxista, com forte inclinação

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político-partidária. (VASCONCELOS, missa não era, do ponto de vista
2013) A especialização da imprensa e cultural, tudo o que podia haver de
a delimitação mais precisa do papel do mais antinatural, de mais estranho ao
crítico de arte haviam contribuído para Brasil intacto, selvagem, fetichista,
a profissionalização desse campo de pagão daqueles dias?”. (PEDROSA,
atuação e a sua separação dos 1948/1981) Portinari não se prendeu às
romancistas. (REINHEIMER, 2013) descrições da carta de Pero Vaz de
Na crítica, Pedrosa analisa o Caminha, seu quadro concentrou-se no
quadro de Portinari em comparação ao ato mesmo da missa. O ambiente,
de Vítor Meirelles. Segundo ele, perfeitamente iluminado, dá um
enquanto Meirelles abordou o tema de aspecto teatral à pintura, parece um
forma naturalística, subordinada à cenário. Para Pedrosa, A Primeira
suposta realidade histórica, na Missa de Portinari demonstrou um
composição de Portinari essa realidade pintor com pleno domínio dos seus
histórica não existe: “E a primeira recursos. (PEDROSA, 1981)

318

Figura 6. Candido Portinari, A Primeira Missa no Brasil, 1948. Têmpera sobre tela. 266 x
598 cm.
Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, RJ. Fonte da Reprodução: Projeto Portinari.

Em 1949, Portinari foi convidado a em Cataguases, cujo tema seria


executar um painel para um Colégio Inconfidência Mineira. Sobre esse

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painel, a crítica de Pedrosa foi dos acontecimentos foi criticada por
implacável. Acontece que o crítico sua falta de ritmo e clareza. As cores
estava convivendo de perto com as escolhidas para o sombreamento
manifestações artísticas internacionais. conferiam uma aparência alegre que
Em 1948, passou a participar não condiziam com a tragédia
assiduamente das reuniões da AICA6 e representada no quadro. (PEDROSA,
a defender uma arte de expressão pura, 1948/1981)
uma arte original, inovadora, que para Nesses diferentes momentos,
ele seria a abstração. Tiradentes foi representado de maneira
Quando escreveu a crítica indistinta, sem que houvesse uma
sobre Portinari e os murais de ligação entre as figuras. Só
Washington, em 1942, Pedrosa havia compreenderiam as imagens aqueles
afirmado que Portinari era muito preso que conheciam a história. Segundo
ao assunto na pintura e que isso o Pedrosa, alguns estrangeiros não
impedia de realizar pintura abstrata teriam compreendido a obra devido à
pura: “os elementos constitutivos de falta de um tratamento pictórico que
seus quadros são, ao fim, unidos por desse um nexo entre as imagens. 319
um pensamento sempre presente que, (PEDROSA apud VASCONCELOS,
embora sem sugestão realista 2013)
específica, implica a existência de um Além disso, Pedrosa afirmou
assunto”. (PEDROSA, 1942/1981) que Portinari teria caído no erro do
Na crítica ao painel Tiradentes, exagero do gênero realista, ficando
1949 (fig.7), Pedrosa ataca a radical muito preso ao assunto na composição.
horizontalidade da composição, na Mesmo nas obras de cunho histórico, é
qual tudo se estende imprescindível que o artista imponha a
desmesuradamente para os lados, sua própria concepção da realidade.
prejudicando uma representação épica Caberia ao artista “vencer as
do herói. Assim, importantes dificuldades do assunto e quando
elementos tiveram que se postar a uma necessário, violar, desrespeitar a
posição secundária, sem verdade conjuntural da história, em
dramaticidade. A representação linear nome da verdade artística”.
(PEDROSA apud VASCONCELOS,
6
Associação Internacional dos Críticos de
Arte. 2013, p.176)

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Figura 7. Candido Portinari, Tiradentes, 1949. Painel a têmpera sobre tela. 309 x 1767 cm.
Fundação Memorial da América Latina, São Paulo, SP. Fonte da Reprodução: Projeto Portinari.

Em 1954, a declaração de próprio Trotsky defendeu uma arte


Pedrosa de que Portinari e Lasar livre e desatrelada da política e dos
Segall não fizeram falta na II Bienal de nacionalismos. Pedrosa era atento e
São Paulo causou um escândalo, que partícipe do que era discutido nos
resultou no seu afastamento da encontros internacionais e nacionais
Tribuna da Imprensa, comandada pelo dos críticos de arte. Para ele, a arte
jornalista Carlos Lacerda. Para deveria ser desinteressada, inovadora,
Pedrosa, Portinari e Segall estavam original. O artista não deveria se
acomodados com a fama que atingiram prender a rótulos ou fórmulas. No 320
e isso não era a essência da nova arte, Brasil, com o aumento dos museus de
a arte deveria inovar sempre. Neste arte moderna e as bienais, a arte
período, Pedrosa era um respeitado alcançou este patamar de
crítico que influenciou muitos artistas, independência e autenticidade.
como Abraham Palatnik e seus Portinari adoeceu intoxicado
aparelhos cinecromáticos premiados pela química das tintas que utilizava
na I Bienal Internacional de São Paulo. em suas pinturas. No final de sua vida,
(REINHEIMER, 2013) sua produção pictórica diminuiu
Muitos afirmam que Pedrosa consideravelmente, já que foi proibido
abandonou suas concepções políticas de pintar pelos médicos. Faleceu em
ao defender a arte pura, a arte pela 1962. Muito preso à arte figurativa e
arte. Mas Pedrosa continuou fiel ao engajado com os temas sociais,
socialismo mesmo após se decepcionar Portinari não conseguiu realizar
com a postura de Trotsky em defesa da satisfatoriamente pinturas de cunho
União Soviética, quando esta estava puramente abstracionista. O ataque de
adotando uma postura imperialista. O Mário Pedrosa à sua maneira de

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encarar a arte no final da década de com enfoque nas questões sociais. Em
1940 o deixou bastante decepcionado. meados da década de 1940, após o
Este artigo procurou mostrar intenso período de mecenato do Estado
como o conceito de arte muda ao Novo, os críticos passam a atacar a
longo do tempo, muitas vezes em arte ligada aos temas sociais e de
confluência com as transformações cunho político-ideológico, defendendo
sociais no mundo. No Brasil, nas uma arte pura e desinteressada, uma
décadas de 1920 e 1930, intelectuais e arte pela arte, que teria sua expressão
artistas eram estimulados a produzir pela abstração.
uma arte ligada à temática nacional,

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Referências
FABRIS, Annateresa. Portinari, pintor social. São Paulo: Editora Perspectiva/
Editora da USP, 1990.

_________________. (organização, introdução e notas) Portinari, amico mio. Cartas


de Mário de Andrade a Candido Portinari. Campinas: Mercado das Letras – Autores
Associados/ Projeto Portinari, 1995. (Coleção Arte: Ensaios e Documentos).

MICELI, Sergio. Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo:


Difel, 1979.
PEDROSA, Mário & AMARAL, Aracy (org.). Dos murais de Portinari aos espaços
de Brasília. São Paulo: Editora Perspectiva, 1981.

_____________. Imagens Negociadas: retratos da elite brasileira (1920-1940). São


Paulo: Cia das Letras, 1996.

PEDROSA, Mário & ARANTES, Otília (org.) Acadêmicos e Modernos. Textos


Escolhidos III. São Paulo: Editora da USP, 2004.

REINHEIMER, Patrícia. Candido Portinari e Mário Pedrosa: uma leitura


antropológica do embate entre figuração e abstração no Brasil. Rio de Janeiro:
Garamond, 2013.

VASCONCELOS, Marcelo Ribeiro. Revista Enfoque, nº12, vol.1, 2013. Disponível


na internet via: https://revistas.ufrj.br/index.php/enfoques/article/view/12653.
322
Consulta dia 23/03/2019.

Imagens reproduzidas: Projeto Portinari http://www.portinari.org.br/#

O(s) autor(es) se responsabiliza(m) pelo conteúdo e opiniões expressos no presente


artigo, além disso declara(m) que a pesquisa é original.

Recebido em 24/03/2019
Aprovado em 22/06/2019

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