Você está na página 1de 55

a

6
O Modernismo e a
Busca de Raízes
As TRA SFORMAÇÔES radicais por que passaram as artes visuais na Europa, 6.1 Detalhe da ilust. 6.37.
durante as primeiras décadas deste século - fovismo, expressionismo, cubis-
mo, dadaísmo, pur isrno, construtivismo -, entraram na América Latina como
parte de uma "vigorosa corrente de renovação", começada nos anos 1920.
Esses movimentos europeus, no entanto, não entraram como estilos já pron-
tos e individualizados, mas foram, em geral, adaptados segundo as idios-
sincrasias, o espírito inovador e o jeito de cada artista. Quase todos que
abraçaram o modernismo o fizeram no estrangeiro. Alguns per maneceram
na Europa; outros, como Barradas com. seu "vibracionisrno ", criaram uma
maneira modernista distinta que lhes era peculiar [ilust. 6.2,3,4,5], ou no
caso de Rivera com relação ao cubismo e de Torres-García com o constru-
tivismo, eles próprios contribuíram, em momentos de vital importância,
para o desenvolvimento destes movimentos na Europa. O fato de ser ameri-
cano, porém, marcou a obra até mesmo daqueles que eram internacio-
nalistas dos mais convictos. Os artistas que voltaram para a América Lati-
na, depois de uma temporada relativamente curta no estrangeiro, passa-
ram a criar de um modo diferente, valendo-se de formas do modernismo
que eram especificamente americanas.
A relação entre arte radical e política revolucionária foi, talvez, uma ques-
tão ainda mais crucial na América Latina do que na Europa, por essa épo-
ca; a reação de escritores, artistas e intelectuais viu-se marcada, sobretudo, 6.2 Rafael Barradas, Estudo (1911), óleo sobre papelão,
46x54 cm; M useo Nacional de Artes Plásticas,
por dois acontecimentos: as revoluções mexicana e russa. O impacto da Montevidéu.
revolução mexicana foi enorme, e as atividades dos pintores muralistas ao
6.3 Rafael Barradas, Composição (1917), aquarela sobre
interpretar e disseminar os ideais da revolução, promovendo a idéia de uma papel, 51x54 cm; Museo Nacional de Artes Plásticas,
arte para o povo e ajudando na concretização de um nacionalismo cultu- Montevidéu.
ral sob condições revolucionárias, foram sentidas para além das fronteiras
do México e constituíram-se em importantes fatores nos debates relati-
vos à arte e à cultura contemporâneas.
Os diferentes grupos e movimentos que formavam a avant-çarde, bem
C01110 suas contrapartidas na Europa, se davam a conhecer através de ma-
nifestos, revistas, exposições e conferências. Entre as revistas, as mais sig-
nificativas foram: Klaxon (1922) e a Revista de Antropofagia (1928), em São
Paulo; Actual e EI Machete (1924), no México; Martln Fierro (1924), em
Buenos Aires, e Ama/.lta (1926), no Peru .' Os debates nelas desenvolvidos
e os pronunciamentos contidos nos manifestos (muitos dos quais figuram
no Apêndice) revelam que havia uma série de resistências fundamentais e
áreas de divergência. Enquanto muitos movimentos mantinham o princí-
pio da unidade orgânica da revolução na arte e na política (El Machete, como
a voz do Sindicato de Trabalhadores Técnicos, Pintores e Escultores, por
exemplo, e Amauta), outros insistiam na autonomia artística. As opiniões,
aqui, variavam bastante, e também variavam nos debates sobre outras ques-

125
o MODERNISMO E A BUSCA DE RAíZES

tões básicas do ponto de vista sociocultural, artístico e literário. A ruptura


com o passado, embora poucas vezes expressada tão brutalmente quanto
no futurismo ou no dadaísmo, era, em geral, de alguma maneira, afirma-
da; às vezes, na forma de um elogio mais ou menos direto à modernidade,
mas o mais freqüente era ver a tradição sendo reavaliada e rejeitados o
período colonial e a cultura europeizada do século XIX, em troca de uma
tradição cultural indígena de mais fortes raízes. (A tentativa de identificar
um nativo por oposição a um europeu de mesma época será investigada
mais detalhadamente no capítulo 9, ao tratarmos do "nativismo".) O na-
cionalismo por oposição ao internacionalismo e o regional como idéia
contrária àquilo que é central e cosmopolita foram também questões pri-
mordiais, especialmente no Brasil.
Para a maior parte dos artistas a iniciação no modernismo envolvia, antes
de tudo, uma completa ruptura com seu passado e sua formação artística.
Apesar de que a Europa houvesse sido, por longo tempo, a Meca cultural
para artistas e escritores, nela os contatos ficavam muito restritos a uma
tradição acadêmica e conservadora. Entre o período que vai, aproximada-
mente, de 1880 a 1910, não houve qualquer movimento nas artes visuais
que correspondesse à renovação literária que foi, pelo maior dos seus ativis-
tas, o poeta nicaragüense Rubén Darío, chamada de modernismo. Darío,
que viveu no Chile, na Argentina, em Paris e em Madri, "galvanizava a vida
literária", desafiando os tradicionalistas que queriam preservar a pureza do
castelhano da Espanha e valores literários ultrapassados.? Da leitura dos
poetas franceses contemporâneos, Darío "absorveu-Ihes os estilos e ritmos
que, brilhantemente, incorporou ao espanhol", e junto com outros de sua
geração que, como ele, tinham os olhos voltados para a avant-garde parisiense,
começaram a criar condições para uma vanguarda literária latino-americana.
6.4 Rafael Barradas, Gaúcho (1927), óleo sobre papelão,
60x40 cm; Museo Nacional de Artes Plásticas, Em contrapartida, o irnpressionismo e pós-impressionismo tiveram mui-
Montevidéu. to pouca influência sobre as artes visuais. As exceções foram: no México,
o artista Clausell, que adotara o impressionismo através de seu amigo Dr.
Atl; na Colômbia,Andrés de Santa María, que desenvolveu um estilo sim-
bolista de magnífico colorido; e o excepcionalmente talentoso pintor uru-
guaio Carlos Saez, que morreu aos 21 anos, em 1901. Entretanto, na épo-
6.5 Rafael Barradas, A adoração dos reis e dos pastores ca em que o impressionismo estava começando a ganhar força, alguns ar-
(1928), óleo sobre tela, 1,05xO,93 m; Museo Nacional de tistas já tinham entrado em contato com movimentos mais radicais, como
Artes Plásticas, Montevidéu.
o cubismo e suas variantes, que lhes proporcionavam uma linguagem vi-
sual sentida como mais capaz de exprimir as mudanças na percepção cau-
sadas pela rápida modernização e pela industrialização do mundo. Quan-
do Rivera voltou ao México em 1921,já então como pintor pós-cubista
e concebendo outra forma de expressão visual que se adaptava à maneira
popular de comunicação, ele criticou os pintores da academia ao ar livre
de Coyoacán por estarem ainda produzindo obras irnpressionistas.:'
A ruptura no caso dos latino-americanos foi bem maior do a que se
deu - digamos assim - com os cubistas propriamente ditos, pois por mais
radical que fosse o cubismo nas mãos de Picasso e Braque, a relação desta
escola com outras anteriores - sobretudo no caso de Cézanne - podia
facilmente ser percebida. Essa tradição vanguardista, derivada de Manet e
Cézanne, não teve paralelo na América Latina.
O encontro de Rivera com o cubismo fez-se por outras vias; na reali-
dade, o interesse por Cézanne chegou em épocas posteriores a seu perío-

126
o MODERNISMO E A BUSCA DE RAíZES

do cubista. A alegação de que foi à Europa para estudar com Cézanne e


outros mitos a fim de desenvolver-se como pintor - de que Posada foi seu
verdadeiro mestre e de que ele retornou ao México para lutar ao lado das
guerrilhas na revolução, se provou simplesmente mentirosa. Rivera pas-
sou toda a revolução na Europa, e Posada iria fazer parte de seus horizontes
somente alguns anos depois de ter ele já voltado ao México.Viajou para a
Espanha com bolsa de estudos do governador de Veracruz em 1907; era,
então, um precoce jovem pintor que fizera sucesso sob a orientação de
Velasco e Santiago Rebull, na Academia San Carlos, e agora contava cer-
to com uma carreira oficial que lhe rendesse fama. Em Madri, Rivera
começou a freqüentar círculos de vanguarda e conheceu, nessa ocasião, o
escritor e crítico Rarnón Gómez de Ia Serna;" sua pintura, no entanto, ainda
se mostrava vacilante, flutuando entre o simbolismo e um realismo costum-
brista, influenciado pelo pintor espanhol Zuloaga. Foi quando EI Greco
passou a absorvê-Io inteiramente e, sob a influência de Zárraga, um ami-
go do México, começaria timidam.ente a acentuar os planos angulosos das 6.6 Diego Rivera , Najonte perto de To/edo (1913), óleo
sobre tela, 65x80 em; coleção Dolores Olmedo.
paisagens toledanas e dos temas pitorescos [ilust. 6.6]. Por volta de 1912,
estabeleceu-se em Paris, junto com um grupo de pintores mexicanos de
que faziam parte Zárraga, Gerardo Murillo (Dr. Atl) [ilust. 6.7], Adolfo e
Emma Best Maugard, Jorge Enciso e Roberto Montenegro. Zárraga e
Rivera, estilisticamente, eram os mais audaciosos, mas foi Rivera quem se
entregou por completo ao cubismo.
O notável na pintura de Rivera, durante os três anos que se seguiram,
foi a maneira como ele passou pelos estilos cubistas de segunda mâo - sem
que isso o tornasse menos admirável, especialmente nas telas que mostram
a influência de seu vizinho Mondrian e nas que se baseiam no cubismo
6.7 Dr. Atl (Gerardo Murillo), 05 vulcões (1950), óleo
épico de Gleizes ou Delaunay [ilust. 6.9] - para chegar à vanguarda do sobre masonita, 1,37x2,60 m; Instituto Cultural Cabanas,
"movimento". Sua participação nos debates teóricos foi das mais ativas, e Patrimonio de Jalisco, Guadalajara.

127
o MODERNISMO E A BUSCA DE RAíZES

depois de iniciada a guerra de 191-+, seguida da dispersão dos cubistas 6.8 Diego Rivcra , Paisaoeni zapatista - A gllerrilha (1915);
Museo de Arte Moderno, Cidade do México (INBA).
franceses - com muitos indo para o [ront -, ele, ao lado de Picasso, Gris e
Severini, continuaram com suas invenções e buscas exploratórias. Em 1915,
Rivera pintou uma obra-prima indiscutivelmente cubista. "Lembro-me",
diria mais tarde, "que nesse tempo eu estava empenhado ern buscar no mais
fundo de minha alma a verdade sobre mim mesmo. A revelação mais escla-
recedora surgiu numa tela cubista, 05 zapotisras [sic], que pintei em 1916
[sic]. Ela mostrava um chapéu de camponês mexicano pendurado por cima
de um caixote de madeira, atrás de um rifle. Executada sem qualquer estudo
preliminar no meu ateliê em Paris, ela é provavelmente a expressão mais
fiel da atmosfera mexicana que já consegui captar."? A tela Paisagem zapatistn
- A guerrilha [ilust. 6.8], como certas obras dessa época de Picasso e Gris,
apresenta uma imagem central (uma natureza-morta) colocada contra uma
paisagem, mas em vez de ser percebida através da moldura de uma janela,
ela "flutua" no espaço aberto. O céu se desdobra num impossível reflexo
de intensa cor azul, abaixo do horizonte; uma paisagem montanhosa com
crateras vulcânicas faz, na parte superior, a moldura para o chapéu, enquan-
to, embaixo, copas de árvores viradas ao contrário penetram no azul. No
sofisticado diálogo cubista entre representação e realidade (no caso, o pa-
pel/rolllpe-I'O?il preso à tela por um prego pintado, os recursos à maneira
do jogo de formas positivas-negativas derivadas de papiers col/és e o uso
muito recente do pontilhismo decorativo), Rivera introduz especificamente
objetos mexicanos, como o chapéu e um serape (poncho mexicano) de cores
brilhantes. Parece não haver dúvida de que ele estava dando uma resposta
às notícias sobre a revolução, traz idas por nova leva de refugiados mexi-
6.9 Diego Rivera , Nat ure za morta (0111 iJOlldJOIII(1915),
canos chegada a Paris, entre os quais vinha seu amigo Martín Luis Guzmán.
óleo sobre tela, 92x73 cm; coleção jacques e Natasha
O México estava próximo do estado da anarquia e do caos;" mas, talvez, Gelman.
Rivera fosse movido pela visão de um país arrancado de seu sono e de uma
terra restituída a seu povo. Isso, o líder revolucionário Zapata, que ocupa-
ra por uns tempos a Cidade do México no final de 1914, havia prometi-
do em seu "Manifesto aos mexicanos", de agosto daquele ano.
Rivera rejeitou o cubismo antes da volta ao México. Em 1917, pôs-se
a estudar seriamente Cézanne, tendo, como Picasso, começado a fazer pre-
viamente uma série de retratos e naturezas-mortas de cunho realista. Mas,
diferente de Picasso, que sempre conservou um estilo cubista alternativo,
Rivera abandonou por completo o cubismo em 1918, embora sua fantás-
tica capacidade para compor espacialmente os murais lhe revelasse a for-
mação cubista, e o mural Criação [ilust. 7.6] estivesse diretamente ligado a
seus primeiros quadros cubistas. "Em seus desenhos ingrescos, Rivera, por
pequeno período, afastou-se de um certo cubismo, para assumir um estilo
de representar verdadeiramente moderno, onde complicadas construções
espaciais se acham disfarçadas por notório realismo. Já era o prenúncio de
uma tendência que ele iria firmemente manifestar enquanto elaborava os
rudimentos de um estilo de mural fundamentado no modernismo e no
realismo socialista."?

O aparecimento dos mura listas no México, depois de 1921, foi importante


fator nos debates, ocorridos nas décadas de 1920 e 1930, sobre o com-
promisso da arte com questões relacionadas à ordem social e política. De
modo geral, era mais a idéia de uma arte para o povo do que um estilo na

129
o MODERNISMO E A BUSCA DE RAíZES

linha do "realismo socialista" que importava. De fato, seria incorreto di-


zer que a criação de um estilo com bases no "realismo socialista" - não
importa qual sentido se dê a estas palavras - fosse a preocupação central.
Havia bastante divergência, para não dizer oposição, entre os pintores
muralistas, como veremos no capítulo 7, e no caso Siqueiros, ele se batia
sobretudo para que se fizesse uso de materiais modernos, de técnicas ex-
per imcntais e também para que se empregasse um estilo expressionista di-
nâmico, construído, até certo ponto, segundo o princípio de montagem.
A Ama~lta, revista dirigida por José Mariátegui, escritor e fundador do
Partido Socialista Peruano, ligava explicitamente a vanguarda artística e li-
terária à política revolucionária. No primeiro editorial (Apêndice, 6.7), es-
crevia ele: "A Amauta não é um fórum aberto para todas as correntes de
opinião. Nós, que fundamos a revista, não concebemos a cultura e a arte
como agnósticas. Somos militantes e polêmicos. Não fazemos concessão
alguma aos critérios de tolerância intelectual, quase sempre falaciosos." A
revista estava aberta a todos os "vanguardistas, socialistas e revolucionári-
os" comprometidos com a mudança. A posição de Mariátegui acha-se cla-
ramente exposta no artigo" Arte, Revolução e Decadência", saído no ter-
ceiro número da revista (Novembro de 1926):

Não podemos aceitar como nova a arte que meramente contribui para
novas técnicas. Isso seria brincar com as mais fala ciosas ilusões da atua-
lidade. Nenhuma estética pode reduzir a arte a uma questão de técnica.
A natureza revolucionária das escolas ou correntes contemporâneas
não reside na criação de nova técnica. Tampouco reside na destruição
de uma velha técnica. Reside, sim, na rejeição, na dispensa e no ridícu-
lo da idéia burguesa de absoluto."

Mariátegui sentia particular admiração pelos pais do surrealismo fran-


cês,André Breton e Louis Aragon (que, naquele ano, haviam entrado para
o Partido Comunista Francês); ele gostava especialmente de Les Pas Perdus
(1924), os textos escritos por Breton durante e após sua fase dadaísta.Apesar
de não ter a A mauta aderido ao surrealismo propriamente, a revista admi-
rava os ataques dos dadaístas e surrealistas contra os valores burgueses e as
convenções artísticas, além de que via com satisfação os contatos que ti-
nha com revistas como La Réuolution Surréaliste e a esquerdista Clarté, di-
rigida por Marcel Fourier; afora isso, a Amauta vinha anunciando o lança-
mento de uma nova revista coirmã, "La Guerre civile", por sinal, jamais
publicada. Contudo, dentro do enorme leque de tendências vanguardistas
e de correntes do internacionalismo de esquerda, a Arnauta mostrava-se
bastante eclética. Entre seus colaboradores contavam-se: CésarVallejo,José
Vasconcelos (o filósofo e ministro da educação que fundou o programa
para murais), Dr.Atl, Bela Uitz (que escreveu sobre "Arte Burguesa e Arte
Proletária") e o autor inglês de peças teatrais George Bernard Shaw (que
escreveu dando uma definição do socialismo). Entre os artistas que cola-
boraram estavam o argentino Pettoruti, José Sabogal, que pintava temas
nativistas numa linha das mais modernistas, e George Grosz, cuja confe-
rência "Arte e Sociedade Burguesa" foi especialmente traduzida para a
Amauta . Como suas contrapartidas dadaístas e surrealistas na Europa ha-
viam feito logo depois da Primeira Grande Guerra, a Amauta também
mantinha uma substancial rede de contatos entre as poucas revistas de

130
o MODERNISMO E A BUSCA DE RAíZES

vanguarda existentes. Em seu primeiro


número, ela anunciava: Renovacion
(Lima), Futurismo (Marinetti Valovaciones (La Pia ta) e Der Sturni
, Roma),
(Berlim); e no segundo: .Vlartíl/ Fierro (Buenos Aires), Aifar (La Coruna},
Sagitario (La Plata), Poliedro (Lima), Revista de Oriente (Buenos Aires), EI
Estudiante (Madri) e Repertorio Americano (San José de Costa Rica).
Ao mesmo tempo, no entanto, a preocupação específica da AlIla"ta era
com o Peru.A palavra "arnauta ", que em língua quíchua significa "homem
sábio" ou "professor", expressava a simpatia da revista pela população ín-
dia e, a partir de 1927, passou a publicar um suplemento que levava o nome
"Boletín de defesa indígena". (Seu envolvimento com o indioenisuio está
tratado mais minuciosamente no capítulo 9.)
Por outro lado, Martin Fierro, em Buerios Aires, fez a opção por um mo-
dernismo cosmopolita, rejeitanto tanto o passado como a "absurda necessi-
dade de promover o nacionalismo intelectual" (ver Apêndice, 6.5). Definin-
do-se como um "periódico quincenal de arte y crítica libre", em contraste
com a AI/lauta, politicamente comprometida, Martiu Fierro ao mesmo tempo
que defendia a independência americana não deixava de reconhecer a
inevitabilidade da influência européia." Martlu Fierro acredita na importância
da contribuiçào intelectual das Américas, depois que cada um dos cordões
umbilicais tiver sido cortado. Mas, o fato de estender o movimento da inde-
pendência, iniciado na língua por Rubén Darío, a todas as formas de mani-
festação intelectual não significa termos de abandonar ou mesmo fingir
que não estamos vendo a pasta de dente sueca, as toalhas francesas e o sabão
inglês usados todas as manhãs. (... )" Martlu Fierro , que teve como principal
colaborador Jorge Luis Borges, abordava questões desse tipo, mas sem dis-
pensar certa dose de ironia; seu nome fora tirado do famoso poema de José
Fernández - uma epopéia sobre a vida e a morte de Marrin Fierro, herói
gaúcho, individualista e solitário -, cujas raizes estavam na poesia popular
oral e se tornara uma espécie de canto nacional. A revista Martiu Fierro,
moldada em cima de textos dadaistas e futuristas, expressava sua fé no
modernismo em termos praticamente parafraseados do Manifesto e Fun-
danientos do Futurismo, de Marinetti, em 1909:" Martin Fierro sente-s mais
à vontade num ( ... ) moderno transatlântico de carreira do que num palá-
cio da Renascença e acredita que uma bela hispano-suíça é uma Olll~A I)E

ARTE muito mais perfeita do que uma cadeira Luis Xv."


Um modernismo ainda até mais agressivo e eclético marcava o manifesto
saído no primeiro número da revista Actual (1921), que se descrevia como
"Hoja de vanguardia". O "comprimido estride ntista" de ManuelArce (ver
Apêndice, 6.1) adotava um tom dadá-futurista altamente provocativo, ata-
cando a sociedade de consumo burguesa, seus corruptos e servis sistemas
políticos e sua cultura de publicidade e propaganda. Maples Arce, depois
de exigir que se procedesse a uma síntese de todos os "ismos" contemporâ-
neos, fazia uma citação tirada diretamente do Mauijesto de Marinetti ("Uma
corrida de carros é mais bela do que a Vitória de Samotrácia") e ajuntava
uma lista da qual constavam praticamente todos os nomes dos artistas e
escritores da época, inclusive os dos dadaístas, cubistas e construrivistas, bem
como os de Rivera, Siqueiros e de diversos intelectuais e artistas russos.
Os estridentistas combinavam uma posição de extrema vanguarda com o
compromisso político, e "aclamavam a revolução russa". O poema "Urbe",
de Maples Arce, de 1924, dedicado aos trabalhadores do México, declara:

131
o MODERNISMO E A BUSCA DE RAíZES

Os pulmões da Rússia
sopram em nossa direção
o vento da revolução social."

EI Machete, fundado pelo Sindicato dos Escultores, Pintores e Trabalha-


dores Técnicos, que se tornou órgão oficial do Partido Comunista Mexi-
cano ("Periódico obrero y campesino "), estava intimamente ligado ao
movimento muralista, e muitas das primeiras experiências com xilogra-
vura de alguns pintores de murais foram feitas para ele.
Os "modernistas" brasileiros formavam um grupo específico cuja pri-
meira manifestação pública foi a Semana de Arte Moderna de 1922 em
São Paulo, da qual constaram exposições, recitais de poesia, concertos e
conferências. Graça Aranha falou sobre o papel primordial da música e das
artes visuais: "a música de Villa-Lobos, a escultura de Brecheret, a pintura
de Di Cavalcanti,Anita Malfatti,Vicente do Rego Monteiro, Zina Aita",
bem como a "audácia dos jovens poetas ..." 10 Na verdade, as primeiras mani-
festações do modernismo brasileiro foram anteriores a uma exposição de
quadros de Anita Malfatti, em 1917, que havia provocado reações hostis
por parte da crítica e do público [ilust. 6.10]. Um extenso artigo, por exem-
plo, aproveitou a ocasião para atacar a arte moderna de modo geral, mais
especialmente o cubismo, afirmando aquilo que seu autor, por oposição,
via como os "imutáveis valores" dos "verdadeiros" artistas modernos, que,
segundo ele, seriam Rodin, Frank Brangwyn e Paul Chabas.!' Oswald de
Andrade, poeta e principal figura do grupo modernista, fez a defesa de
Malfatti dizendo que ela desafiara o "naturalismo fotográfico", então em
6.10 Anita Malfatti, O homem amarelo (Ia. versão),
(1915-1916), carvão e pastel sobre papel, 61x54,5 cm; moda, com audaciosas e ousadas telas. A obra de Malfatti era, de fato,
Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São modernista em sentido muito genérico e eclético; ela combinava a dis-
Paulo; Coleção de Artes Visuais Mário de Andrade. torção angular das figuras fazendo uso de cores complementares a uma ma-
6.11 Vicenre do Rego Monteiro, Lendas, crenças e neira mais livre do que fovista. É interessante que a ênfase, tanto no caso
talismãs dos indios da Amazôl1ia (1923, Paris, capa de livro);
de Andrade como no de Aranha, fosse posta na audácia e não em algum
Bibliothê que Nationale, Paris.
novo tipo de estética ou de estilo surgido, dando, com isso, a impressão de
que as maneiras modernistas valiam, antes de tudo, pela sua capacidade de
chocar e de que quanto mais extravagantes melhor seriam.
No mesmo ano da Semana da Arte Moderna foi fundado a Klaxon, uma
"revista mensal de arte moderna", ao estilo futurista, em São Paulo (ver
Apêndice 6.2). Ela se batia por uma arte que tivesse caráter internacional
e fosse inspirada na industrialização. "Uma nova escala (... ) anúncios que
produzem taller de literatura e não torres. E novas formas de indústria,
transporte, aviação. Postes de eletricidade. Bombas de gasolina. Ferrovias."
Tarsila do Amaral foi a artista que ficou mais ligada ao grupo modernis-
ta; ela achava, não por acaso, que o cubismo era um movimento destrutivo,
mas pelo qual se teria de passar. Embora faltassem aos escritos e manifestos
do grupo brasileiro o ceticismo dos dadaÍstas e a riqueza teórica do futu-
rismo, eles não deixavam de transmitir um sentido de ruptura e animação
em suas fragmentadas afirmações do mundo moderno. O manifesto de Os-
wald de Andrade, "Manifesto da Poesia Pau-Brasil" (ver Apêndice, 6.3), entre-
tanto, contém um novo elemento. Sem rejeitar o internacionalismo da re-
vista Klaxon e ao mesmo tempo afirmando claramente a ausência de um
credo estético ("nenhul11.a fórmula para uma expressão contemporânea do
mundo"), o "Manifesto da Poesia Pau-Brasil", usando a expressão "a selva

132
o MODERNISMO E A BUSCA DE RAíZES

e a escola", abordava, de maneira nova, o Brasil com sua cultura mulata e 6.12 Tarsila do Amaral, Antropojag)« (1929), óleo sobre
tela, 1,26x1,42 m; Fundação José e Paulina Nemirovsky.
sua atmosfera tropical contrastando com a indústria moderna. Isso repre-
sentava uma extraordinária mudança de consciência nos poetas e artistas
ricos, bem-educados e altamente europeizados que constituíam o grupo de
modernistas - uma mudança não para uma versão qualquer do nacionalis-
mo, mas num sentido que tinha a ver com a forma de colonização. Essa
consciência foi "levada ao paroxismo com o "Manifesto Antropófago" de
Oswald de Andrade, em 1928, que nos exortava a devorar nosso coloniza-
dor (... ) para apropriar-nos de suas virtudes e poderes, e transformar o tabu
num toterri"."? Nesse manifesto (Apêndice 6.4), Andrade procurou reunir
as contradições do' brasileiro: moderno z pr imitivo, indústrialindolência,
centralismo/regionalismo, Europa/ América. "Da Revolução Francesa ao

133

,\
o MODERNISMO E A BUSCA DE RAíZES

Romantismo, da Revolução Bolchevique à Revolução Surrealista (... ) pros-


seguimos sempre em nosso caminho. Jamais fOlTlOScatequizados. Mantemo-
nos através de sonolentas leis. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém,
no Pará. Mas jamais deixamos o conceito de lógica invadir nosso meio."
O "Manifesto Antropófago" foi publicado no primeiro número da Re-
vista de Antropofagia e ilustrado com um desenho de Tarsila , onde se via uma
figura nua de pés incrivelmente largos, alguns cactos e o Sol- idêntico motivo
ao dessa pintura, Abaporu, seria reproduzido
intitulada no ano seguinte no
quadro Antropofagia [ilust. 6.12]. O título ela o encontrou num dicionário
de tupi-guarani que dá para aba o significado de homem e poru 'aquele que
come'. De 1922 a 1923, a pintora morou em Paris; foi quando os primeiros
traços dos ternas relativos ao "Pau-Brasil" começaram a surgir e ela, então,
estava apenas iniciando-se nos princípios básicos do cubismo. Apesar do
cornedimento de sua paleta nos quadros cubistas, as telas, onde de alguma
6.13 Tarsila do Arnaral, Calmaria 11 (1929), óleo sobre forma aparece a idéia de "selva e escola", têm cores fortes e um fundo singe-
tela, 75x93 em; Acervo Artístico-Cultural do Palácio do lamente geometrizado que se transforma, nas suas obras mais representativas
Governo do Estado de São Paulo.
(A negra) por exemplo [ilust. 6.14]) num padrão perfeitamente abstrato. A
posição sentada e a planta selvagem que são mostradas na pintura de A negra
já prenunciavam o motivo dos quadros Abaporu / Antropofagia.
Em Paris, Tarsila estudou com André Lhote e freqüentou o ateliê de
Léger; suas figuras de ar sereno e membros cilíndricos, bem como as co-
res fortes, sugerem que Léger tenha sido importante para ela, embora sua
obra continue idiossincrásica.
Através de Léger ela conheceu o poeta-viajante Blaise Cendrars, e um
desenho da Negra serviu para capa do livro Peuilles de Route (1924) desse
escritor. Em 1924, ela, Oswald de Andrade e Cendrars voltaram a São Paulo;
nessa cidade, Cendrars deu uma palestra sobre os poetas modernos fran-
6.14 Tarsila do Amaral, A negra (1923), óleo sobre tela,
1,00x 0,80 111; Museu de Arte Contemporânea da ceses, 13 propiciando ao grupo a oportunidade de visitar Minas Gerais e o
Universidade de São Paulo. nordeste do país; isto viria apressar o "redescobrimento" do passado co-
lonial brasileiro e da cultura popular nas pequenas cidades e vilarejos. Nesse
ano de intensas atividades, Tarsila produziu uma série de pinturas parti-
cularmente felizes, talvez devido à presença de Cendrars, que lhe propor-
cionava um incentivo extra. Os quadros de 1924, aproximadamente, se
agrupam em torno de dois temas contrastantes - a cidade e as favelas, sendo
que estas, aparentemente, estariam mais ligadas ao campo. Os primeiros
têm as fachadas planas dos edificios modernos e nenhuma perspectiva, em-
bora seja o espaço construído por meio de uma superposição e diminui-
ção da escala e através de bombas de gasolina vagamente antropomórficas,
mas nada de presença humana; neles, é usado uma mistura de cores muito
fortes e de tons pastéis do purismo [ilust. 6.15]. As vistas das cidades, das
ferrovias, etc. sugerem um tipo de primitivismo industrial. As favelas, em
contraste, estão regurgitando de vida - cheias de gente, bichos, bandeiras,
plantas e intensos tons de laranja, vermelho e verde-escuro, ainda aplica-
dos de foma batida e provenientes de cores próprias da arte popular brasileira.
Como Tarsila, Di Cavalcanti pintou cenas regionais e pitorescas em es-
tilo simples e extremamente colorido [ilust. 6.16].
Os modernistas brasileiros dos anos 1920 formavam um grupo de elite
e de privilegiados que levavam uma vida cosmopolita e viajavam tão fa-
cilmente à Europa como ao interior do país. Um crítico, posteriormente,
iria observar o espetáculo que era ver Tarsila voltando de Paris, com seus

134
6.15 Tarsila do Amaral, Estrada de Ferro Central do Brasil (1924), óleo sobre tela, l,42xl,26 m; Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo.
o MODERNISMO E A BUSCA DE RAíZES

vestidos de Poiret, para ensinar o povo a ser brasileiro. 14 No entanto, ape-


sar de que o grupo não estivesse diretamente envolvido com os tumul-
tuados acontecimentos da vida política da década de 1920, a partir de 1930
muitos deles se tinham tornado simpatizantes da esquerda.Tarsila visitou
Moscou em 1931 e sua obra passou, desde então, a caminhar na direção
do realismo socialista.
Em oposição a esse grupo de modernistas - cosmopolita e basicamen-
te urbano -, estava Gilberto Freyre batendo-se por uma política social, eco-
nômica e cultural, expressa em seu "Manifesto Regionalista" de 1926. Re-
cife e o nordeste brasileiro sempre foram centros de intensas atividades ar-
tísticas, e convém não esquecer que a arte popular no Brasil tem um forte
componente regionalista."
Em 1932, foram criados dois grupos para dar apoio à arte moderna no
Brasil: o da Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM) e o do Clube das Ar-
tes Modernas (CAM); este último fora concebido pelo artista e arquiteto
Flávio de Carvalho, dentro de um espírito que se opunha ao elitismo da
SPAM. Em 1951, a primeira Bienal de São Paulo estabeleceu o Brasil como
um centro internacional para a arte contemporânea.

Para aqueles artistas desejosos de adotar um idioma moderno, o cubismo era,


quase invariavelmente, a porta de entrada. Pettoruti, que ganhara uma bolsa
e viajara para a Europa em 1913, entrou, primeiro, em contato com os fu-
turistas e depois, em 1924, com o cubismo. De modo geral, sua dívida para
com Picasso sempre foi alta, mas alguns de seus trabalhos mais interessan-
tes são uma adaptação das formas planas e dos contornos bem definidos
do purismo, que se mostrava, na ocasião, extremam.ente abstrato [ilust. 6.17].
Amelia Peláez era a mais jovem e a menos radical dos artistas que par-
ticiparam da exposição organizada pela Revista de Avance em 1927, órgão
fundado em Havana pelo grupo minoritário do qual faziam parte Jorge
Maiíach e o romancista Alejo Carpentier (ver Apêndice 6.10). Todos eram
admiradores dos muralistas mexicanos e de figuras como José Vasconcelos
e o poeta espanhol García Lorca. Peláez, no entanto, estava entre os artis-
tas que melhor entenderam o cubismo, que ela usará mais de maneira
excepcionalmente original.
No final da década de 1920, ela trocou Havana por Paris e lá permane-
ceu por sete anos, quando, de 1912 a 1913, faria um aprofundado estudo
do cubismo, mais especialmente o de Picasso e o de Braque no seu sinté-
tico estilo. Objetivando, assim, um cu bisrno onde a construção, a compo-
sição de uma superfície com elementos quase abstratos em combinação
com objetos era mais importante do que a análise da forma, Peláez deu
provas de coerência em sua abordagem, mesmo que, no todo, sua obra, nes-
ses anos, fosse demasiado eclética, como ela mesma sublinha neste comen-
tário: "Os artistas que mais me interessam são, da França, Ingres, Seurat,
Cézanne, Picasso, Braque e Matisse." Além das sintéticas colagens cubistas,
Peláez elaborou um estilo curvilíneo, como aquele de seu quadro Siesta
(1936), onde uma monumental figura a Ia Picasso repousa numa paisagem
de formas orgânicas, sem relevos e pesadamente delineadas, lembrando as
telas do Léger pós-1920. Em 1931, ela ingressou na Académie Contem-
poraine de Léger, onde estudou com Alexandra Exter. Depois de sua vol-
ta a Cuba, fez, de maneira totalmente original, uma síntese dos elementos

136
o MODERNISMO E A BUSCA DE RAíZES

de seus primeiros trabalhos em pinturas que apresenta naturezas-mortas e


interiores, frutas e flores tropicais de cores brilhantes, com superfícies planas,
delineadas por pesadas linhas negras inspiradas nos rendilhados de ferro
batido dos balcões, impostas e portões das casas de Havana do final do século
XIX [ilust. 6.19].16

Pedra Figari foi uma figura única, e sob certos aspectos, também à parte
na história da pintura latino-americana. Advogado com uma carreira públi-
ca de sucesso, começou a dedicar-se exclusivamente à pintura em 1921,
aos sessenta anos de idade. ào era, como muitas vezes ele mesmo disse,
interessado na pintura pela pintura - no ofício de pintor propriamente,
mas, de preferência, parecia considerar-se uma espécie de guia para as futu-
ras gerações de artistas:"Minha convicção sempre foi no sentido de elevar
nossa cultura e de nos fazer amar as coisas americanas que são realmente
nossas."!"
o romancista cubano Alejo Carpentier descreveu o amor de Figari pelas
formas de expressão americana:

Para Figari, nada mais adorável no mundo do que aquelas coisas que as
pessoas ridículas, artificiais e bem-nascidas de nosso país consideram
como" defeitos", desoladas por não verem as cidades tropicais se tor-
narem reproduções de Piccadilly. Pátios coloniais, bandas locais saindo
pelas ruas, festas de negros, danças e canções populares, guitarras, tam-
6.18 René Portocarrero, Diabinho /10. 3 (1962), óleo
bores, cores brilhantes, blocos de carnaval, sedas e percais escandalosos; sobre [ela, 50,5x-l5,5 cm; Museo acional, Palacio de
são estes os temas que o inspiraml" Bellas Artes, Havana.

Os temas das pinturas de Figari estão "algo fora do tempo e do espaço",


como disse Borges referindo-se a seu livro de contos EI Injorme de Brodie. 6.16 Emiliano di Cavalcanti , Cinco moças de
Muitos desses contos, como as pinturas de Figar i, se passam nas últimas Cuoratiuouetà (1930), óleo sobre [ela, 90x70 cm; Museu de
Arte de São Paulo.
décadas do século XIX, nas vastidões dos pampas, tendo rústicos gaúchos
serni-analfabetos como protagonistas e o duelo como a ação mais característica. 6.17 Emilio Petror uti , 50/ arge/lli/lo ou Intiuii dade (194·1),
As vastidões dos pampas tinham um marco: o u mbu , árvore vista com óleo sobre [ela, 99,5x65 cm; Museo Nacional de Bellas
Artes, Buenos Aires.
freqüência na pintura de Figari [ilust. 6.22]. O naturalista W.H. Hudson,
que viveu numa estância nos parnpas quando menino, nos últimos anos
da ditadura de Rosas, descreve assim a planta:
6.19 Amelia Peláez, O niautel branco (1935), óleo sobre
[ela, 64x79 cm; Museo Nacional, Palacio de Bellas Artes,
O urnbu é realmente uma árvore muito peculiar. (... ) Ele pertence à Havana.
rara família das fitoláceas, e seu tronco forma uma imensa circunferên-
cia - em alguns casos com 12 até 15 metros de diâmetro; ao mesmo tem-
po, a madeira é tão macia e esponjosa que pode ser cortada com uma
faca e de modo nenhum serve para lenha, já que, depois de cortada,
jamais seca, simplesmente apodrece como uma melancia madura. Tam-
bém cresce devagar e suas folhas largas, lustrosas e verde-escuras, como
as do loureiro, são venenosas; e, como não presta para nada, o umbu
provavelmente será extinto (... ), mas antes, quando ainda não haviam
plantado outras árvores, o velho e majestoso urnbu já teve sua utilida-
de: ele servia como um marco gigantesco para os viajantes na mono-
tonia das grandes planícies, além de oferecer, no verão, sombra fresca
para o cavalo e o cavaleiro; enquanto o médico ou herbanista do lugar
colhia, às vezes, uma folha para algum doente precisando de um remé-
dio muito forte para curar o mal que o afligia."?

137
TrrrrrrrrrrrrnT· m

6.20 Pedra Figari, Dulce de membrillo (s/d), óleo


sobre papelão, 60x81 em; Museo Nacional de
Artes Plásticas, Montevidéu.

6.21 Pedra Figari, Dança de crioulo (c. 1925), óleo


sobre papelão, 52, 1x81,3 em; The Museum of
Modern Art, Nova York; doado pelo Sr. e Sra.
Robert Woods Bliss.
o MODERNISMO E A BUSCA DE RAíZES

o sentido de um mundo desaparecendo ou já desaparecido também está


presente nas pinturas de Figari retratando reuniões sociais e acontecimentos,
como funerais, que são marcados por algum tipo de ritual. Ele pintou com
freqüência cenas de candombe, que contrapõe ao "per icón ", e outras dan-
ças crioulas já mais europeizadas. Candombe era o nome que se dava tanto
às reuniões semanais das populações negras do Uruguai - descendentes
de escravos fugidos das plantações brasileiras - como à dança de origem
fundamentalmente afr icana.ê? (É uma variante da palavra candomblé, que
tem, no Brasil, conotações mais de caráter sociorreligioso.) Dançava-se aos
domingos e em dias de festas cristãs, apesar de ser as celebrações afro-Ia-
tinas "essencialmente profanas". Figari pintou o candombe por diversas vezes,
como no quadro Nostalgia africana [ilust. 6.23], onde a dança está mostra-
da segundo suas lembranças de criança, entre os anos que vão de 1860 a
1870, durante uma época em que ela ainda, em sua essência, permanecia
inalterada. A energia e o tamanho das figuras que dançam e tocam tam-
6.22 Pedra Figari, Cavalos 1'105 pampas (s/d), óleo sobre
bor nas cenas de candombe contrastam com a observação fria e distante das madeira, 62x82 cm; coleção particular, Buenos Aires.

139
O MODERNISMO E A BUSCA DE RAíZES

reuniões empertigadas e pomposas dos ambientes do crioulo branco, com


seus candelabros e retratos emoldurados, e também diferem das cenas de
danças dos camponeses com moças e .figuras de gaúchos.
Em 1930, em Paris, Figari publicou a Historia Kiria, um relato sobre um
mundo utópico e, como todas as utopias, uma crítica e sátira à sociedade
contemporânea, especialmente à do rio da Prata. O povo kiria desconhecia
qualquer distinção de raça, não tinha superstições, nem guerras e nenhum
sentido do trágico (a vida não era um vale de lágrimas); para eles, o útil
era mais importante do que o decorativo e riam da idéia de uma arte pela arte.
A obsessiva preocupação de Figari com a reforma das instituições jurí-
dicas, pedagógicas e de arte (sobre o que, aliás, ele tem, de certo modo,
idéias parecidas com as de Ruskin e de William Morris), sua preferência
pela natureza sobre a civilização e pelo racional sobre o maravilhoso aju-
dam a explicar a falta de interesse que demonstrou por formas mais radi-
cais da arte moderna, embora vivesse e pintasse na Paris da época áurea
6.23 Pedro Figari, Nostalgias africanas (s/ d), óleo sobre de seu domínio artístico. Apesar de, até certo ponto, estar em débito para
papelão, 80x60 cm; Museo Municipal Juan Manuel
Blanes, Montevidéu. com a maneira "intimista " de Bonnard e de Vuillard, por sinal uma apro-

140
o MODERNISMO E A BUSCA DE RAíZES

ximaçâo que precisa ser abordada com precauções. A maneira de Figari, 6.24 Pedro Figari, Toque de oraciôn (s/ d), óleo sobre
papelão, 69x99 cm; Museo Nacional de Artes Plásticas,
comparativamente, é mais grosseira e rudimentar; ele pintava fazendo bor- Montevidéu.
rões de modo a generalizar particularidades, mas sempre restringindo os
motivos decorativos que, em Vuillard, se espalham pela superfície inteira,
enquanto, nele, são colocados onde naturalmente ocorreriam - nos vesti-
dos de algodão, por exemplo [ilust. 6.24].
Ninguém como Borges explicou tão claramente a peculiar natureza da
memória num país onde o investimento no novo envolve uma total ne-
gação do passado. A respeito de Figari, escreveria Borges:

Falei da memória argentina e sinto que há uma camada de modéstia


protegendo este assunto e que cornprazer-sc com ele é traição. Pois neste
canto da América, pessoas de outras nações do mundo têm conspirado
para esvaírem-se na pele de novo homem ou mulher que ainda não é
quaisquer de nós e a quem predizemos como sendo argentino para poder
aproximarmo-nos do almejado objetivo. É uma inusitada conspiração:
uma extravagante aventura de raças, não para sobreviver, mas para aca-
bar, no fim, permanecendo desconhecida: o sangue pedindo a noite. O
crioulo faz parte dos conspiradores. O crioulo, que moldou a nação in-
teira, escolheu agora ser um de muitos. Caso haja maiores honras nesta

141
o MODERNISMO E A BUSCA DE RAíZES

terra, ele terá de esquecê-las. Lembrá-Ias é quase remorso, uma censura


que fazem as coisas abandonadas sem a intercessão do adeus. É uma
memória duplamente reverenciada porque o destino do crioulo assim
o requer, para maior bravura e perfeição do sacrifício. Figari é justa-
mente esta tentação da memória.( ... ) 21

Tanto Figari como o argentino Xul Solar (Alejandro Solari) adaptaram


certos estilos de origem européia a uma singular temática, mas enquanto
a Figari interessavam as maneiras de expressar-se de um povo, as preocupa-
ções de Solar eram mais dirigidas a um mundo místico e misterioso. Solar
voltou para Buenos Aires depois de viver doze anos na Europa. Logo foi
atraído pelo grupo do "Martín Fierro", passando a colaborar na revista (para
a qual, por exemplo, traduziu um dos poetas favoritos dos dadaístas, Chris-
tian Morgenstern) e também a fazer ilustrações para Borges, como no caso
6.25 Xul Solar, Bri, país y gente (1933), aquarela sobre
papelão, 40x56 cm; coleção Marion e Jorge Helft, Buenos das que apareceram no livro Idioma de 105 Argentinos [ilust. 6.25,26,27]. Solar
Aires. não apenas pintou quadros "em cima de idéias", onde reproduz diversa-

••

142
o MODERNISMO E A BUSCA DE RAíZES

6.27 (à esquerda) Xul Solar, Los quatro plurentes (1949),


têmpera sobre papel em cima de prancha de madeira e
moldura pintada, 49,5x37,5 em; coleção Felisa e Mario H.
Gradowczyk, Buenos Aires.

6.28 Capadócia, Turquia.

mente o idioma de pintores como Klee e Malevich, e o expressionismo


alemão, como também inventou duas linguagens: o "neocreol" e a "pan
6.29 Xul Solar, Vale profundo (1944), têmpera sobre papel
lengua",22 além de ter sido um estudioso da astrologia. Realmente, não é em cima de prancha de madeira, 35x50 crn; Galería
difícil imaginar Solar como colaborador de Borges e servindo de assunto Kramer, Buenos Aires.
para as Ficções borgesianas.
As paisagens de Solar, que às vezes se tornam cidades de torres e às ve-
zes vistas de montanhas, estão ao mesmo tempo ligadas à pintura japone-
sa e às estranhas erosões na Capadócia, no interior da Turquia [ilust. 6.28].23
Numa das primeiras versões dessa paisagem (1921), uma aquarela feita en-
quanto ele ainda vivia na Europa, os picos com janelas e portas esculpidas
na rocha visivelmente inspiraram-se nos terrenos rochosos da Capadócia.
Posteriormente, Solar iria acrescentar escadas e arcos, numa referência
metafórica a algum tipo de experiên~ia transcendental, como sugerem seus
quadros Paisagem (1938) e Vale profundo (1944) [ilust. 6.29,30] que já fo-
ram propriedade de Borges.

Nem Xul Solar nem Figari formaram uma "escola", a despeito de terem 6.30 Xul Solar, Paisagem (1938), aquarela sobre papel
sido ambos artistas de sucesso em Buenos Aires.Já Joaquín Torres García, fixado em prancha, 31,7x37 em; coleção particular,
Buenos Aires.
mesmo tendo passado a maior parte de sua carreira longe da terra natal, o
Uruguai, vivendo na Espanha e na França, e mais tarde nos Estados Unidos,
ao regressar, em 1933, fez muitos seguidores, exercendo duradoura influência, 6.26 Xul Solar, Dança de santos (1925), aquarela sobre
papelão, 25x31 cm; coleção Marion e Jorge Helft, Buenos
inclusive sobre o desenvolvimento de uma tradição construtivista na América. Aires.

143
o MODERNISMO E A BUSCA DE RAíZES

Torres García compartilhava a fé no internacionalismo da geração de


construtivistas do pós-guerra: Moholy-Nagy, Mondrian, Richter,Vordem-
berge Gildewart, Sch~",itters;24 mas, ao mesmo tempo, havia um forte sen-
tido de pátria em sua arte. Em seu texto "Escuela dei Sur" (1935,Apêndi-
ce 6.11), esta dualidade é clara. Assim, evoca .ele Montevidéu, cujo

especial caráter não se encontra no mate, no poncho ou na música; é


algo mais sutil, que tudo permeia e tem a mesma limpidez, a mesma
luz que a cidade.( ... ) E cá estarnos nós, elos das correntes dos ventos
redemoinhadores dessas regiões que perturbam a mente e o corpo jus-
to nessa margem do grande rio, quase uma península, como se ele qui-
sesse varar o continente para pôr-se na vanguarda. E assim, nossa posi-
ção geográfica sela nosso destino.

Ele sentiu que já havia acabado o tempo para renovações e importações:


"Acredito que a época do colonialismo e das importações tenha passado
(falo, agora, antes de mais nada, sobre aquilo que chamamos cultura), por
isso, que sumam todos os que se expressam, em termos literários, numa
língua diferente da que é naturalmente nossa (não me refiro ao crioulo),
sejam eles escritores, pintores ou compositores' Se não aprenderam a li-
ção da Europa enquanto ainda era tempo, pior para eles, porque o mo-
mento já passou.( ... )"2õ
Mas era inevitável, claro, que ele não poderia pintar esquecido de sua
experiência parisiense. Em 1935, fundou a AsociacÍon de Arte Constructivo
e a revista Círculo y Cuadrado (1936-1943), revivendo o nome do movi-
mento "Cercle et Carré" do qual fora membro fundador em Paris, em 1930.
A prestigiosa revista de Torres-GarcÍa, para a qual colaboravam os princi-
pais construtivistas do mundo e que lhes reproduzia as obras, exerceu lar-
ga influência na América Latina, e isto, junto com a revitalizaçào de seu
Tal/er (oficina de artes e ofícios) e mais seus escritos e conferências serviu
corno instrumental na propagação de suas idéias.
Em 1938, Torres-García erigiu o Monumento cósmico [ilust. 6.31J, um
"muro" levantado solto, livre de encaixes e outras paredes, num parque
de Montevidéu, do lado de fora do Museu de Belas-Artes. O gradeado
na pedra encerra muitos dos signos e símbolos de sua pintura: sol, ânco-
ra, escada, relógio e outros que são invenções dele mesmo. Apesar de suas
referências às nativas civilizações americanas - ou "Indoarnér icas", como
ele as chamava, sobretudo para referir-se à teogonia andina - terem, nesta
ocasião, brotado com mais força, elas já existiam durante seus dias em
Paris, quando fez trabalhos inspirados na civilização pré-incaica de Tihua-
naco - visando tanto à iconografia quanto à estrutura (há um molde de
gesso da Porta do Sol, no Trocadéro - e nas formas das figuras e cores da
cerâmica de Nazca [ilust. 6.32,33]. Também tinha fascinação pela fotos
que via das maciças obras de alvenaria em Cusco e da fortaleza de Sacsa-
h uaman, e as pesadas sombras, num irregular gradeado, fei tas pelas bor-
6.31 joaquin Torres-Carcía , Monumento côsmico (1938); das chanfradas das gigantescas pedras, estão presentes nas pinturas preto
Parque R.odó, Montevidéu. e branco. Já suas "máscaras, permaneceram muito genéricas; nelas, por
exemplo, vêem-se os símbolos indicativos de homem e mulher que sào
universalmente reconhecíveis.
6.32 JoaquÍn Torres-García, Formas abstratas metaiisicas Embora Torres-García estivesse em contato com Mondrian, os dois não
(1930), óleo sobre tela, 1,46x1, 14 111; coleção Sucesión
Augusto Torres, Nova York.
pensavam igual com relação ao abstracionismo. Ele, no entanto, compar-

144
o MODERNISMO E A BUSCA DE RAíZES

6.34 Joaquín Torres-García, Pachainama (c. 1942), óleo


sobre madeira, 76,1 x85, 1 em; coleção lndivisa de los
herederos dei artista, Nova York.

tilhava a mesma fé que Mondrian quando a questão era de equilíbrio, de


uma equitativa distribuição de forças opostas: no caso de Torres-GarcÍa,
entre razão e natureza, e entre vida e abstração. Enquanto o ex-dadaísta
Hans Arp (como Mondrian, também membro do "Cercle et Carré) pre-
tendia que o natural, o irracional e o orgânico prevalecessem sobre o hu-
mano e o ponderado, Torres-García procurava um equilíbrio com a razão.
Pesquisando os diferentes modos de representação - naturalista versus sig-
no geométrico - ele remontou a épocas primitivas em busca de fontes tanto
na Europa pré-histórica quanto na arte pré-colombiana." O signo, escre-
veu ele, constitui a Tradição do Homem Abstrato:

Qualquer cultura primitiva progride nesta linha. Sua arte, sempre geo-
métrica na expressão, é um ritual, qualquer coisa de sagrado.
Esse é o problema que o artista dos dias de hoje tem de enfrentar;
esse também é o desejo que está manifesto na moderna expressão ar-
tística.
Ao elevarmos o termo "estrutura" a um plano universal, podemos
determinar o signo como algo natural e, com isso, ele pode apreender
a essência daquele ponto de incidência entre o existente e o abstrato.
Bem, seria essa a melhor explicação daquilo que entendemos por Arte
Construtivista. rr

Apesar de modificada posteriormente, existe no início certa obrigação 6.35 Armando Reverón, Figura com V (s/ d), óleo sobre
tela, 50x45 em; coleção Sawas.
para com um aspecto do modernismo europeu que está presente na maioria
das obras incluídas nesta seção. O pintor venezuelano Armando Reverón,
no entanto, bem como Dr.Atl e Figari, praticamente permaneceram imunes
às radicais transformações por que passava a pintura nos anos que imedia-
6.33 Joaquín Torres-García, Arte construtiva COI/l grande sol,
tamente precederam à Primeira Grande Guerra. Ele teria sido, mais do que (1942), óleo sobre papelão, 75x48 em; coleção Sucesión
por estas, influenciado pela rejeição que, desde o começo, a pintura aca- Augusro Torres, Nova York.

147
o MODERNISMO E A BUSCA DE RAíZES

6.37 Armando Reverón, Paisagem do porto de Cuaira (s/ dêmica manifestou contra os impressionistas, e, depois de seu retorno da
d), óleo e têmpera sobre tela, 65xSl crn; coleção Sawas.
Europa em 1915, abandonou definitivamente os estilos em moldes acade-
micistas que caracterizaram sua formação em Caracas; telas dessa época
mostram ter sido Reverón um talentos o colorista. Estimulado pelo Cir-
culo de Bellas Artes (fundado em 1912 para opor-se às restritivas aborda-
gens da Academia de Bellas Artes) - uma organização da qual faziam par-
te artistas e escritores e exercia grande influência sobre a nova geração de
artistas venezuelanos -, ele se dedicou à pintura da natureza, sobretudo às
6.36 Armando Reverón, Praia de Macuto (c. 1934), óleo
e têmpera sobre tela de aniagem, O,96xl ,OS m ; coleção paisagens a céu aberto. Em 1921, Reverón mudou-se para Macuto, no li-
particular. toral, onde viveu pelo resto da vida. Começando em 1916 a fazer um uso

148
o MODERNISMO E A BUSCA DE RAíZES

monocromático do azul, irá, entre 1926 e 1932, aproximadamente, produzir


uma série de paisagens de surpreendente originalidade [iJust. 6.36,37].As
telas, no seu branco quase puro, põem-se corno metáforas de uma luz pura
que une e transcende todas as cores do espectro. Em geral, são numa pin-
tura fina, com a tela permeando-a, como nos quadros produzidos mais tarde,
onde a cor começa novamente a infiltrar-se.
Reverón passaria a levar uma existência cada vez mais isolada e excên-
trica; dado a crises nervosas, com uma aparência de ferocidade [ilust.6.38]
e cercado pela fama de eremita, seu estúdio acabou virando, no fim, um
palco povoado por bonecas e "brinquedos". Embora fosse apoiado pela
elite de Caracas e, a partir de 1940, expusesse todos os anos no Salão Ofi-
cial dessa cidade, sua vida nada tinha de convencional, era a de uma pes-
soa que, voluntariamente, se excluíra da sociedade e vivia no isolamento
- como muitos artistas em Paris no final do século passado ao levarem "Ia 6.3tl Armando Reverón, Auto-retrato COI'/1 bonecas e barba
vie de bohêrne" -, simbólico da condição do artista. Reverón estabeleceu (c. 1949), carvão, giz, creiom e pastel sobre papelão,
64,7x83,5 cm; Galeria de Arte Nacional, Caracas.
uma distância entre si e o mundo ao qual um dia pertencera, se não geo-
graficamente, como no caso de Gauguin ao mudar-se para o Taiti, pelo
menos espiritualmente.

149
7
O Movimento
Muralista Mexicano
Os MURALlSTAS mexicanos produziram a mais importante arte revolucio-
nária, de sentido popular, ocorrida neste século, e a influência deles em
toda a América Latina - mais recentemente, por exemplo, em murais pin-
tados na Nicarágua - tem sido contínua e de longo alcance. Houve tem-
pos, durante a década de 1930, em que ela também se fez sentir na Ingla-
terra e nos Estados Unidos, mas depois disso só raramente encontramos
as idéias dos muralistas fazendo parte do discurso artístico.'
A grande dificuldade está em encontrar uma maneira que possibilite a
apresentação do mural, pois embora já se tenham produzido murais por-
táteis, eles não conseguem transmitir a sensação que dão quando vistos em
seus ambientes. Foram pintados murais por todo o México, nos lugares mais
variados: em palácios e encantadoras igrejas coloniais, em pátios de pré-
dios ministeriais, em escolas, museus e câmaras legislativas, em lugares,
enfim, que vão desde escuras e mal projetadas escadas até imponentes fa-
chadas de modernos edificios.
Os muralistas constituíam o grupo mais atuante e criativo que formava
a vanguarda cultural revolucionária do México, com forte sentido do valor
social de sua arte. A violenta revolta de 1910 contra o regime de Porfir io
Díaz que, por dez anos ficaria explodindo e sendo abafada, frequentemente
deixava vazia a cadeira presidencial do México. A revolução, um aconteci-
mento de proporções cataclísmicas,jamais totalmente atrelado a qualquer
programa ou corrente de opiniões - apesar de que a luta de Zapata pela
reforma agrária em Morelos fosse e ainda continua a ser uma questão funda-
mental-, veio trazer uma nova consciência ao México." A posse do primei-
ro líder revolucionário, Alvaro Obregón, no cargo de presidente, em 1920,
iniciou um período de esperança e otimismo durante o qual nasceria o
movimento muralista. "A revolução revelou-nos o México", disse Octavio
Paz. "Ou melhor, deu-nos olhos para enxergar. E deu olhos aos pinto-
res.( ... )"3 Diferente da reação dos romancistas, em que se percebia certa
falta de firmeza, os pintores inundavam as paredes com torrentes de ima-
gens, reproduz idas das mais variadas formas: realista, alegórica, satírica e
apresentando as muitas faces da sociedade mexicana, com suas aspirações
e conflitos, sua história e múltiplas culturas.
Muitas foram as razões para o predomínio das artes visuais e a primazia 7.2 Juan O'Gorman, Francisco 1- Modero (estudo
cultural do muralismo. A primeira diz respeito ao compromisso que ti- preliminar para o mural da sala da revolução no castelo de
nha o filósofo e revolucionário José Vasconcelos - nomeado, por Obregón, Chapultepec), (s/d), lápis sobre papel e tela, um dos cinco
painéis, 4,50x1, 10m; coleção Vicky e Marcos Micha.
presidente da Universidade e ministro da Educação - com o programa
do mural; o que havia de extraordinário nesse projeto, quando compa-
rado com outros lançados sob as mesmas condições revolucionárias, era
7.1 Diego I~ivera, detalhe de O homem, controlador do
a ausência de qualquer imposição concernente ao estilo e à temática.Vas- universo(1934), afresco, Museo deI Palacio de Bellas Artes,
concelos deixava os artistas livres para escolher seus temas, com !mpre- Cidade do México (lNBA).

151
o MOVIMENTO MURALlSTA MEXICANO

7.3 Fernando Leal, A epopéia de Bolívar: "Bolivar quando visíveis conseqi.iências. Seu plano visionário estava fundamentado numa
menino", "O libertador", "A morre de Bolívar" (1930),
teoria social que se inspirava ao mesmo tempo em conceitos pitagóricos
aquarela sobre papel, 52x47,5 em (cada um); coleção
Fernando Leal Audirac. e no positivisrno de Cornte. Sustentava ele que a evolução de uma socie-
dade se dá através de três estágios, sendo o mais avançado o da estética,
no qual o México revolucionário não tardaria a entrar. "Embora Vascon-
celos compartilhasse poucos pontos de vista da Corporação dos Pinto-
res com sua estética coletivista, acreditava piamente que os mexicanos
somente seriam ganhos para a causa quando tivessem sua sensibilidade
estética despertada.":' Convicto de que os mexicanos eram mais sensíveis
às artes visuais do que à música, ele foi o primeiro a permitir que se en-
tregassem as paredes da recém-construída Escuela Nacional Preparatoria
(ENP)Õ a um turbulento grupo de jovens artistas que ele buscava nas es-
colas de arte e nos ateliês, ou no caso de Rivera e Siqueiros, artistas já
maduros, na Europa, atraindo-os de volta ao México.
A segunda razão deve-se ao fato de que, no México, a idéia de projetos
para murais é parte de uma tradição que vinha de longa data." Dr. AtI
(Gerardo Murillo), durante o breve tempo que passou como diretor da
Escola de Belas-Artes em 1914, escreveu: "Os arquitetos, pintores e esculto-
res, em vez de trabalhar visando a uma exposição ou a um diploma, deve-
riam construir prédios ou de corá-Ios". 7 E, apesar da maior parte dos pin-
tores não ter tanta consciência dos murais de sua terra quanto dos afrescos
italianos,já em épocas pré-colombianas os muros das cidades eram cobertos
de pinturas." A pr irncira vez que Rivera se deu conta disso foi quando,
acompanhando Vasconcelos a Yucatán, em 1921, em Chichén-l tzá, conhe-
ceu o templo dos Jaguares. Por motivos práticos, no entanto, qualquer "tra-
dição só realmente existia em teoria, e a alegação dos pintores jovens de
que estavam começando a partir do zero não era apenas uma questão de
retórica. Os estudos que tinham feito não os preparara para a pintura mura-
lista, e as histórias que se contam sobre como eles se haviam metido, por
conta própria, a fazer murais, às vezes chegam a ser de extrema comicidade.
No início, houve uma guerra entre os adeptos da encáustica" - usada por

152
o MOVIMENTO MURALlSTA MEXICANO

Rivera em seu primeiro mural, Criação [ilust. 7.6] - e agueles a favor do


verdadeiro afresco gue acabou sendo a técnica vencedora. Muita coisa foi
feita em impressão pelos artistas gue redescobriram antigas técnicas, em
1923, durante a primeira fase da pintura do Ministério da Educação, mas
parece gue se tratava de algo mais do gue simplesmente mergulhar pincéis
num balde de água contendo folhas de cactos nopal. Também, talvez deva-
se levar em conta, sobretudo no caso de artistas, como Rivera e Sigueiros,
que haviam estado na Europa, o fato de gue vários artistas, anteriormente
ligados ao cubismo, começassem a ter ambições de produzir obras de pro-
porções avantajadas - COITlO as de Delaunay, por exemplo e, ern termos mais
próximos de uma orientação popular, as de Fernand Léger.
A terceira razão diz respeito ao "problema do índio", novamente rea-
vivado pela revolução, sob o qual rugia a grande guestão de ser ou não o
México duas nações, e gue, por implicar a discussão sobre o papel da arte,
dava a esta considerável peso. O argueólogo e antropólogo Manuel Gamio
"explicaria em sua obra Forjando Patria, publicada em 1916, o motivo por
que a arte não é uma intrusa social nos trabalhos de um país onde os usos
dela são tão consumidos guanto pão. Assim, escreveria Jean Charlot, conti-
nuando a citar Manuel Gamio:

Pontos divergentes COlTl relação à estética contribuem su bstancialmen-


te para gue seja radical a separação das classes sociais no México. O índio
preserva e produz uma arte pré-colombiana. A classe média preserva e
produz uma arte européia temperada pelo pré-colombiano ou pelo índio.
A dita classe aristocrática alega ser a sua arte puramente européia.
Deixando de lado a última com seu purismo duvidoso (... ) investi-
guemos as outras duas. Elas já são separadas uma da outra por diferen-
ças étnicas e econômicas. O trabalho do tempo e a melhoria econômi-
ca da classe nativa contribuirá para a fusão étnica da população, mas a
fusão cultural também se mostrará importante fator.( ... ) Quando as clas-
ses nativa e média compartilharem um só critério no gue diz respeito
à arte, estaremos culturalmente redimidos, e a arte nacional, uma das
bases mais sólidas da consciência nacional, se tornará um fato. 10

Estas idéias, ao botarem em evidência as artes visuais, ajudaram a assentar


as bases culturais e políticas sobre as quais o muralismo, como arte nacional,
se estabeleceu e se promoveu, mas não necessariamente elas coincidem com
a concepção gue os próprios muralistas tinham de seu papel, nem com a
mensagem social gue a arte deles transmitia. Na passagem acima citada, é
curioso o fato de estarem os índios ocupando a posição gue a classe traba-
lhadora teria segundo o modelo marxista, mas este modelo não é agui per-
feitamente aplicável na medida em gue existe profunda diferença cultural
entre os dois maiores grupos sociais e também porgue nem todos os índios
pertencem às classes trabalhadoras e nem todas as classes trabalhadoras são
formadas por índios. Mais do gue a fusão cultural mencionada acima, os
muralistas, pelo menos em princípio, exigiam a erradicação da arte burguesa
(a pintura de cavalete), e apontavam a tradição indígena como o modelo
do ideal socialista de uma arte aberta, para o povo: "uma arte gue fosse
aguerrida, educativa e para todos".
Em 1922, a "Declaração dos Princípios Sociais, Políticos e Estéticos"
do recentemente fundado Sindicato dos Trabalhadores Técnicos, Pintores

153
o MOVIMENTO MURALlSTA MEXICANO

e Escultores repudiou, em nome de uma estética nativa, séculos de depen-


dência artística à Europa:

o trabalho nobre de nossa raça, desde suas mais insignificantes expres-


sões físicas e espirituais, é nativo (e essencialmente indígena) em sua ori-
gem. Com admirável e extraordinário talento para criar o belo, que é
peculiar a nossa gente, a arte do povo mexicano é a mais completa ex-
pressão espiritual no mundo, e sua tradição, o nosso maior tesouro. Gran-
de, porque pertence exclusivamente ao povo, eis a razão por que nosso
principal objetivo estético tem de ser aquele que socializa a expressão
artística e destrói o individualismo burguês. 11

Na prática, entretanto, as diferenças entre uma arte "popular" nativa e


a arte dos muralistas "para o povo" não foram resolvidas.

Os elementos dessa polêmica arte nacional começaram a ganhar forma nas


paredes e se mostraram, na verdade, muito diferentes dos murais inicialmen-
te encomendados por Vasconcelos. Esses eram elegantes alegorias de sentido
universal, concebidas na "doce calmaria estética que prenunciava a iminente
tempestade plástica" .12 Roberto Montenegro, que naquele momento go-
zava de considerável sucesso - ao lado de Adolfo Best Maugard e Carlos
Mérida, com pinturas no suave estilo do pitoresco nacionalista, então em
voga - e que também participara com Dr. Atl da importante exposição de
Arte Folclórica, em 1921, fora encarregado de decorar a velha igreja do
convento de San Pedro y San Pablo. Ele pintou uma Dança das horas, onde
se viam doze moças envoltas por leves drapeados dançando ao redor de
"um cavaleiro vestido numa armadura, recostado contra uma esplendorosa
árvore de gigantescas flores, e pássaros chilreando sobre um fundo dou-
rado" .13 A nave da igreja foi decorada por Xavier Guerrero (cujos bons e
generosos sentimentos, além da competência técnica, seriam de grande
ajuda para os novos artistas) com guirlandas de flores.Já num espírito algo
mais dinâmico e flamejante, Dr.Atl realizou no pátio uma resplendente pin-
tura figurando o cenário mexicano - noites tropicais com milhares de estrelas
coloridas e ondas azuis sob carregadas nuvens cor de laranja que batiam con-
tra rochas vermelhas", usando as transitórias "cores-Atl" de sua fabricação.
O desprazer que dava a Diego Rivera a obra de Dr.Atl era igual ao des-
prezo que sentia pelos monótonos arabescos decorativos de Montenegro;
não obstante, seu primeiro mural, Criação, iniciado já quase no final de 1921,
no auditório da ENP, fosse na linha do gosto de Vasconcelos por indefinidas
alegorias. A grande composição de Rivera reunia figuras representando tipos
mexicanos trajados de forma pitoresca [ilust. 7.6] e outras representando
as artes e as virtudes cívicas e teologais (justiça, esperança, fé, etc); o conjun-
to era encimado por um símbolo que designava "A PRIMEIRA LUZ OU
A ENERG IA PRIMAL". 14 O ponto crucial e que mais chamava a aten-
ção nesse mural do já famoso artista, recentemente chegado de Paris onde
fizera brilhante carreira como pintor cubista, era a arrojada mistura de
volumes e simplificações cubistas com empréstimos tomados ao quattrocento
e ao Renascimento italianos, especialmente a Giotto e Michelangelo.
Siqueiros, sempre um hábil e lúcido polemista,já havia lançado de Barce-
7.4 e 5 Diego Rivera, Dois esboços do caderno de
lona uma bomba contra o insosso e arcaico estilo da arte nacionalista pito-
Tehuantepec (1922), lápis sobre papel, 22,2x16,5 cm
(cada um); Galería Arvil, México. resca. Sempre também o mais comprometido dos muralistas com o mundo

154
moderno, tanto em termos da temática como do elnprego de técnicas, a 7.6 Diego Rivera, A criação (1922-1923), encáustica e
palavra de ordem dele - "Uma Nova Direção para uma nova geração de folha de ouro; Anfiteatro Bolívar, Escuela Preparatoria
Nacional, Cidade do México.
pintores e escultores americanos" - clamava por uma arte nova, dinâmica
e construtiva: "Precisamos viver nossa maravilhosa e dinâmica época!" As
raizes de sua linguagem estavam na estética modernista do cubismo e do
futurismo que, com a reavaliação pelos cubistas da arte "primitiva", iria a-
judar a confirmar a nova atitude para com a cultura nativa do México:"Pre-
cisamos absorver (... ) a força construtiva de suas obras, nas quais existe e-
vidente conhecimento dos elementos da natureza", e, ao mesmo tempo, pedia
ele que se evitassem "as lamentáveis reconstruções arqueológicas (indianisrno,
primitivismo, americanismo) que, apesar de tão em. moda hoje, estão nos
conduzindo para efêrneras estilizações." 15 Siqueiros dava ênfase "às gran-
des massas primárias - cubos, cones, esferas, cilindros, pirâmides - que de-
veriam ser as vigas de toda a arquitetura plástica. Deixem-nos impor o es-
pírito construtivo sobre o puramente decorativo (... ) a base essencial de uma
obra de arte é a estrutura da forma, magnífica e geométrica (... )" - idéias
que provavelmente contribuíram para a futura realização de alguns dos mais
brilhantes e descornprometidos murais, como A velha ordem de Orozco (1926),
Afesta da cruz (1924), de Montenegro, e a Usina de açúcar (1923), de Rivera ,
nos quais a "estrutura geométrica da forma" escapa de suas amarras cubistas
para fundir-se esplendidamente com. a verdadeira arquitetura.
O movimento rnuralista concentrava-se cada vez mais nas mãos de "Los
Tres Grandes": Rivera, Orozco e Siqueiros. Mas no princípio, nos heróicos

155
o MOVIMENTO MURALlSTA MEXICANO

anos compreendidos entre 1922 e 1924, os jovens artistas que Vasconcelos


encarregou de ajudar na decoração das paredes da ENP - Fernando Leal,
Ramón Alva de Ia Canal, Fermín Revueltas,]ean Charlot, Emilio García
Cahero - deram importantes passos para sua consolidação. Foi Revueltas,
de acordo com Charlot, o primeiro a usar o "hierático índio vestido de
branco" que se tornaria UITla imagem familiar depois da Devoção à Virgem
de Gu.adalupe, de Rivera. Leal, por sua vez, deu a conhecer uma nova for-
ma mais dramática do indianismo com seu mural Festa em Chalma [ilust.
7. 7J; ele pegou para tema um acontecimento recentemente ocorrido num
vilarejo de Puebla:"( ... ) No decorrer de uma dança religiosa em torno da
estátua da Virgem, o rebuliço foi tanto que ela acabou caindo dentro de
sua redoma de vidro, deixando exposta uma pequena estatueta de pedra
da deusa da água que havia ficado escondida, desde não se sabe quando,
debaixo do rico manto de Nossa Senhora."!"
Para pintar seus murais, Leal e Charlot haviam escolhido as paredes que
ficavam uma em frente à outra no alto da escada principal da ENP; em-
bora o lugar fosse escuro e desajeitado, havia a vantagem de que o "em-
puxo diagonal" da parede se achava em completo contraste com a for-
ma retangular da pintura de cavalete. Charlot, que fora assistente de Rivera
no mural Criação, começou a pintar o dele em abril/maio de 1922 - em
afresco, diferente de Leal, que executou o seu mural em encáustica - e
tomou para tema o Massacre no Templo Mayor. O resultado foi uma extra-
ordinária mistura de U ccello e Léger, e o primeiro mural a abordar o tema
da conquista, com os espanhóis reproduzidos como robôs vestidos de ar-
maduras e sem rostos, enfiando lanças ensagüentadadas em indefesos sa-
7.7 Fernando Leal, Festa em Chalma (1921), estudo para
um mural no Ministério da Educação, aquarela sobre cerdotes índios e nas pessoas que faziam suas celebrações no templo em
papel, 52x91 cm; coleção Fernando Leal Audirac. Tenochtitlán.

156
o MOVIMENTO MURALlSTA MEXICANO

7.8 José Clem.ente Orozco, Cristo destruindo sua crus:


(1943), óleo sobre tela, O, 93xl ,30 m; Museo de Arte Alvar
y Carmen T. de Carrillo Gil, Cidade do México (INBA).
Versão posterior do mural destruído em 192-1.

Outro gue não poderíamos deixar de mencionar neste contexto é Fran-


cisco Coitia, merecedor do título de pioneiro: ele é "o primeiro artista a
pintar para o povo" .17 Como Sigueiros, Dr. Atl e Orozco, ele participou
ativamente da revolução, guando, ao lado do exército de Pancho Villa, pôde
produzir in loco "pinturas e desenhos vigorosos e realistas da guerra civi I".
Embora tenha conseguido ficar fora do alcance dos longos braços de Vas-
concelos e deixado de completar até os mais simples afrescos gue se pro-
pusera a fazer, seus estudos figurando as consegüências da guerra e a gen-
te pobre, sobretudo os gue mostram mulheres Índias chorando seus mortos,
constituíram, sem dúvida, uma forte base para a nova pintura [ilust. 9.11].
O apogeu dessa primeira fase do muralismo é marcado pelo ciclo de
afrescos pintados por Orozco no pátio principal da ENP, e pelos murais
de Rivera no andar térreo do Ministério da Educação. Orozco divergia
profundamente de Rivera com relação à atitude gue um e outro tinham
para com a arte nacionalista, o indianismo, as interpretações da história
mexicana e até para com. a própria revolução, e seus murais, por evitar as
mensagens históricas e políticas gue, em Rivera, aparecem bem definidas,
podem parecer ambíguos. Os primeiros afrescos, entretanto, no andar térreo
da ENP, eram, como a Criação, universalistas e alegóricos. Destes, somente
um, relativamente inofensivo, intitulado Maternidade, chegou até nós; o mais
chocante de todos, o gue leva o nome de Cristo destruindo sua cruz [ilust.
7.8], estava entre os gue foram bastante danificados por adversários, alu-
nos da ENP, e gue seriam repintados por Orozco em 1926. Mas nada têm
de ambíguas as sátiras grotescas e cheias de força gue estão no andar do
meio: Asforças reacionárias, Monturo político, Liberdade, Falsos líderes, etc., onde
o início da carreira de Orozco como cartunista se mostra mais evidente.
No último andar, uma següência já não tão exaltada gue inclui O adeus
da mãe, O coveiro e Retorno ao campo de batalha) aborda os invisíveis efeitos
dos anos de violência sobre as famílias.
Rivera começou, em março de 1923, os murais para o recentemente
restaurado Ministério da Educação em meio a uma publicidade um tanto

157
o MOVIMENTO MURALlSTA MEXICANO

ruidosa; nus o acarinhado desejo de Vasconcelos de ver uma decoração com


motivos de mulheres vestindo os trajes típicos de cada um dos estados do
México não foi concretizado [ilust. 7 .4,5J. Rivera completou a planejada
paisagem mexicana na parede que ladeava uma escada; ela começava mos-
trando uma vista ao nível do mar com plantas tropicais e prosseguia na
direção do planalto para culminar com os vulcões. 18 Contudo, no primeiro
pátio, em vez das simbólicas e decorativas figuras planejadas, ele pôs-se a
pintar o cotidiano da vida do trabalhador mexicano, retratando desde a
índia tecelã, o oleiro e o lavrador até as oficinas de fundição, usinas de açúcar
e minas, e, por cima das portas, poemas astecas e símbolos da revolução.
Os três painéis dedicados ao tema da redistribuição da terra estão coloca-
dos no pátio das festas e reproduzem formas particulares de ritos, festejos
7.9 Pátio interno do Ministério da Educação, Cidade do
México. de rua no Dia dos Mortos e alguns rituais pré-colombianos que sobrevi-
veram (a dança dos cervos e a colheita do mi lho}.'" Dispostas à sombra da
arcada, as pinturas têm cores que vão das tonalidades sombrias à luz dou-
rada brilhando como espigas de milho [ilust. 7.11, 12J.
Na medida em que Rivera rodeava os pátios com suas pinturas, a obra
dos outros pintores também encarregados de fazer painéis ia sendo cober-
ta - somente restaram dois trabalhos de Charlot (Lavadeira e Carregadores)
e dois de De La Cueva (O filhote de touro eLos Santiagos). Nesses pátios, já
dá para perceber o prazer que tinha Rivera em contrastar o moderno mundo
industrial- que tem no afresco Indústria de Detroit, de 1932-1933 [ilust. 7.13],

7.10 Murais de Rivera no primeiro andar do Ministério


da Educação.

7.11 a e b Diego Rivera, Dia de Finados - Festa na cidade


(1923-1924), afresco; Ministério da Educação, Cidade do
México.

7.12 Diego Rivera, Dia de Finados - A oferenda (1923-


1924), afresco; Ministério da Educação, Cidade do
México.

158
(
7.13 Diego Rivera , Indústria de Detroit (parede sul) sua expressão mais espetacular, no sentido próprio desta palavra - COI11 uma
(1932-1933); The Detroit Institute of Arts, comprado pela forte crítica social relacionada à exploração dos trabalhadores. Caracterís-
sociedade dos fundadores, Edsel B. Ford Fund e doado
por Edsel B. Ford. tico também é o contraste entre o México industrial e o México rural; este
último celebrado por Rivera mais como vital e pitoresco do que como atra-
sado e indigente. (Uma apresentação mais na linha de Gam.io COI11 contrastes
entre o México rural, atrasado e supersticioso, e o moderno México indus-
trializado, cujas riquezas naturais são amplamente exploradas, aparece num
afresco de Juan O'Gorm.an, intitulado O crédito transforma o México [ilust.
7.15], pintado nos anos 1960 para aquele que, hoje, é o Banco Internacio-
nal, na Cidade do México.) A maneira como passa Rivera da representação
da vida cotidiana, num realismo simplificado, para a alegoria e o símbolo é,
em parte, possível por tratar-se de composições destinadas a painéis; mais
tarde, ele iria absorver os mesmos elementos em complexos padrões for-
mais de grande precisão, como se vê em sua obra Homem lia encrueiih adaí"

Quando Obregón estava perto de concluir seus quatro anos de mandato


presidencial, ressurgiram os problemas políticos. A hostilidade contra os
murais, sobretudo por parte dos alunos mais conservadores da ENP, leva-
páJ!illas seonintes
7 .16 Diego Rivera, Nas trincheiras (1928), afresco; ram à "ação direta", e os estragos regulares e acidentais contra os quais os
Ministério da Educação, Cidade do México. pintores sempre haviam lutado se tornaram sérios, sendo as obras de Orozco
7.17 Diego Rivera, OI'J!ia - Noite aos ricos (1926), as que mais sofreram. Em 1924,Vasconcelos renunciou e os artistas, agora
afresco; Ministério da Educação, Cidade do México. sem sua proteção, tiveram as encomendas suprimidas; estava, assim, encer-

160
7.14 Juan O'Gorman, Cidade do México (1942), têmpera sobre maso nita, O,66x1 ,22 m; Museo de Arte Moderno, Cidade do México (INBA).

7.15 a e b Juan O'Gorman O crédito transforma o México (1965), afresco, 2,40x3,OO m; Banco Internacional, Cidade do México.
7.18, 19 e 20 Diego Rivera , 1 de maio em Moscou
0

(1928), três aquarelas 10,3x16 em (cada uma);The


Museum of Modern Art, Nova York; doado por Abby
Aldrich RockefeJler.
o MOVIMENTO MURALlSTA MEXICANO

rada a primeria fase do muralismo. A maior parte dos pi ntores afastou-se


ou dispersou-se; alguns se dirigiram para Guadalajara, onde Siqueiros foi
ajudar Amado de Ia Cueva num trabalho encomendado pelo governador
Zuno. Guadalajara continuaria a patrocinar os muralistas e seria, mais tar-
de, sede das grandes obras de Orozco - na universidade, no palácio do
governo e no Hospicio Cabanas - entre os quais o grande painel do he-
rói da independência, Hidalgo [ilust. 1.29].
Rivera, entretanto, ainda na metade de seus trabalhos no Ministério da
Educação, conseguiu conquistar o novo ministro e, por uns tempos, pra-
ticamente, teve só para si o campo da Cidade do México. Entre 1926 e
1927, pintou a capela e parte do prédio da administração na Escola N aci-
onal de Agricultura, em Chapingo. A enorme alegoria sobre a terra cria-
dora (A terra libertada com as jorças naturais controladas pelo homem), na pare-
de do altar da capela, está ladeada por cenas que remetem à revolução, in-
clusive à jamais esquecida imagem dos corpos enterrados de Zapata e
Moutano: O sallg/./e dos mártires revolucionàrios fertilizando a terra, como se,
com isso, o pintor quisesse, triunfante, contradizer os reacionários que
haviam. jurado durante a revolução "exterminar para sempre da terra a
semente zapatista para que ela nunca mais tornasse a germinar" 21 Em 1927,
Rivera completou os murais no último andar do Ministério da Educação;
logo depois de uma viagem a Moscou [ilust. 7.18,19,20], passaria a intro-
duzir a iconografia revolucionária russa: a estrela vermelha, a foice e o 7.21 Segundo andar do Ministério da Educação, com
murais de Rivera.
martelo e, de imagem para imagem, foi cada vez mais dando ênfase à uni-
dade revolucionária - o trabalhador, o soldado e o camponês - e à clássi-
ca oposição entre ricos e pobres [ilust. 7.21]. As obras que compunham
todo o ciclo eram ligadas por uma extensa bandeira vermelha com dize-
res saídos de algum corrido ou algum canto da revolução agrária, como os
que aparecem na gravura usada por Guerrero na capa de EI Machete, em
1924 [ilust. 7.22]: "A Terra é de Quem nela Trabalha com as Mãos."
Talvez nada tenha de surpreendente o fato de que essas imagens do
México, que combinam a crítica social com a fé no progresso e, ao mes- I..•
mo tempo, enaltecem o índio mexicano, houvessem contado com a sim- P E R 1 O D 1 C 01 Q
patia dos governos que iriam suceder-se. Poder-se-ia argumentar que es-
ses murais, por encerrarem as promessas da revolução, teriam inevitavel-
mente de ficar para sempre na consciência do povo, por mais lenta e difí-
cil que fosse a ação para levá-Ias a cabo. Octavio Paz analisou a situação
com brutal clareza: "Essas obras que se dizem revolucionárias e que, nos
casos de Rivera e Siqueiros, expressam um simples marxismo maniqueísta,
eram encomendadas, patrocinadas e pagas por um governo que jamais foi
marxista e havia deixado de ser revolucionário (... ) essa pintura ajudou a
dar-lhe uma feição que, gradativamente, se foi tornando revolucionária."22
Já a obra de Orozco é mais dificil de ser assimilada. Forçado a inter-
romper os trabalhos na Escuela Nacional Preparatoria em. 1924, ele, no
entanto, retor nará em 1926 para pintar uma nova série de afrescos no andar
térreo: O banquete dos ricos enquanto os trabalhadores se desentendem, A trin-
dade revolucionària, A greve, A trincheira e A velha ordem. Os dois primeiros
reproduzem uma sociedade sem direção e rachada por divergências, onde
os pobres são incapazes de unir-se contra seus opressores. Em A trindade
revolucionária [ilust. 7.23,251, o pintor parece sugerir uma das causas para
isso: duas vítimas ajoelhadas (inicialmente figuradas como engenheiro e

165
I

7.25 (acima) José Clemente Orozco, A trindade


revolucionária (1923-1924). Primeira versão do mural
destruído.

7.23 (acima à esquerda) José Clemente Orozco, A


trindade reuoiucianària (1926-1927), afresco; Escuela
Nacional Preparator ia , Cidade do México.

7.24 (acima à direita) José Clemente Orozco, A


trincheira (1926-1927), afresco: Escuela Nacional
Preparator ia , Cidade do México.

7.26 (à direita) José Clemente Orozco A trincheira


(1923-1924), lápis sobre papel, 55x46 cm; Instituto
Cultural Cabanas, Guadalajara (lNBA).
o MOVIMENTO MURALlSTA MEXICANO

7.27 David Alfaro Siquciros, Zapnt a (1966), piroxê nio


sobre maso nira, 1,22xO,91 rn ; Museo de Arte Alvar y
Carmen T. De Carrillo Gil, Cidade do México (IN13A).

operário, depois modificadas para fazendeiro e trabalhador, por serem de


caráter mais genérico) estão sendo separadas à força por um soldado re-
volucionário, encoberto pelo chapéu meio tombado na cabeça e pintado
com a cor vermelha da liberdade. Já se sugeriu que "o soldado represen-
taria o poder de um Estado pseudo-revolucionár io'<.ê" e não resta dúvida
de que em murais posteriores, como o que retrata Hidalgo, existe uma in-
tenção de crítica aos erros da revolução e às traições cometidas contra ela.
A iconografia cristã, em A trindade revolucionària, contrapõe-se em, O ban-
quete dos ricos. ( ... ), à iconografia das classes sociais. A cristã se acha evocada
de maneira visualmente mais explícita em A triuclieira, onde o soldado do
meio está deitado de braços abertos como se pregado numa cruz [ilust.
7.24,261. Rivera usou metáfora cristã semelhante para retratar o sofrimento
em A saída da uiina; contudo, nenhum dos dois artistas a usou no sentido
7.28 José Clemente Orozeo. Ofra/lcisfa/lo (1930),
da devoção cristã. Ambos foram ferrenhos inimigos do clero. É dificil para litografia, 31 ,3x26,-+ em; The M uscurn of Modern Art,
nós, vivendo numa Europa secular, compreender esse aspecto, aparente- Nova York; l nrer-Arnerican Fund.

mente contraditório, que só pode ser percebido no contexto de um país


onde a Igreja, oficialmente considerada C01110 inimiga, conta, no entanto,

167
o MOVIMENTO MURALlSTA MEXICANO

7.29 José Clemente Orozco, Prometeu (1930), têmpera com uma grande massa de devotos católicos. Os zapatistas, por exemplo,
sobre masonita, 61,2x81 cm; Museo de Arte Moderno,
Cidade do México (INBA).Versão do mural executado iam para as batalhas, montados em seus cavalos, sob a proteção da bandei-
no meSITlOano para o Pomana College, Califórnia. ra da Virgem de Guadalupe [ilust. 7.17].
Orozco achava que seus colegas pintores, no nacionalismo deles, confun-
diam pintura com arte folclórica. "A pintura", dirá ele, "em sua mais alta
expressão e a pintura como arte menor folclórica diferem essencialmente
nisto: a primeira possui imutáveis tradições universais de que ninguém pode
separar-se (... ) a segunda tem apenas tradições locais." Ele negava-se a "pin-
tar índios com sandálias e calças de algodão sujas, e é claro", dirá ainda, "que
desejo de todo o coração que as pessoas vestidas assim possam, um dia, aban-
donar estas roupas e tornar-se civilizadas". 24Também se negava a pintar pro-
paganda: "Uma pintura não deveria ser um comentário, mas a coisa em si;
7.30 David Alfaro Siqueiros, Et/w}?rafia (1939), esmalte não uma reflexão, mas uma compreensão; não uma interpretação, mas a coisa
sobre prancha de composição, 1,22xO,82 111; The Museurn
of Modern Art, Nova York; Abby Aldrich Rockefeller a ser interpretada." Mais tarde, numa carta aberta de 1944, Siqueiros avisa-
Fund. va-o de que sua "expressão ideológica estava perdendo em clareza" 25 Mas

168
o MOVIMENTO MURALlSTA MEXICANO

7.31 José Clemente Orozco, Hisp anoamcrica (1932- Orozco persistiu em sua recusa de comprometer-se ideologicamente. Sua
1934), afresco; Dartmouth College, New Hampshire,
Estados Unidos. pintura estava estruturada segundo uma dialética interna entre o poder e
os perigos dos tradicionais ícones e mitos políticos da revolução na qual,
7.32 José Clemente Orozco, Al'Igloamerica (1932-1934),
também ele, uma vez, "cheio de entusiasmo, havia depositado fé".
afresco; Darmouth College, New Hampshire, Estados
Unidos. É interessante a comparação que se pode estabelecer entre o tratamento
dado à história por Orozco nos murais do Darmouth College e o que é
dado por Rivera no imenso friso do mural que está no Palácio Nacional da
Cidade do México. Na Baker Library do Dartmouth College, Orozco pintou
o curso da civilização americana e sua moderna condição industrial. Na
ocasião, disse ele: "As raças dos dois continentes americanos estão, agora,
adquirindo consciência da própria personalidade que emerge de duas corren-
tes culturais, a indígena e a européia [ilust. 7.31,32]. O grande mito ameri-
cano, Quetzalcoatl [ilust. 7.33,34], está bem vivo; ele abrange os dois elemen-
tos e, por sua natureza profética, chama a atenção para a responsabilidade
que têm igualmente as duas Américas na criação de uma autêntica civilização
americana.":" Ambos os pintores tratam a história da América como uma
progressão, mas Orozco fará, depois, a era moderna retroceder, satiricamente,
como se fosse uma grotesca imagem espelhando o passado: em Dartmouth,
o Moderno sacrifício humano e a Moderna migração do espírito são, no fim, con-
frontados com o A ntigo sacrifício humano e a Antiga migração. Eisenstein, "vi-
sitando Orozco e pedindo-lhe para pôr no mítico Quetzalcoatl a barba de

170
7.33 José Clemente Orozco, A cabeça de Quetzalcoatl (c.
1932-1934), creiom sobre papier calqué, 81,7x61 em; The
Museum of Modern Art, Nova York, doado por Clemente
Orozco.

7.34 José Clem.ente Orozco, A expulsão de QIIetzalcoatl


[detalhe (1932-1934)), afresco; Dartrnouth College, New
Harnpshire, Estados Unidos.
7.35 Diego Rrvera, A história do México: da conquista ao um Marx guerreiro", ficou apreensivo com o ambiente ao seu redor. "O espí-
futuro(1929-1930), afresco; Palacio Nacional, Cidade do
México (INBA). rito dos livros de consciências adormecidas passa, sem fazer perguntas, diante
daquele poema de horrores e pesadelos, refém das prateleiras da biblioteca."
As largas pinceladas e o vigor expressionista de Orozco contrastam vi-
vamente com a superficie sem ressaltos de Rivera, onde ele faz desenrolar
uma narrativa intricada e apinhada de figuras. A história do México [ilust.
7.35], no Palácio Nacional, começada a partir do símbolo de Tenochtitlán,
o cactos com a águia (embaixo, no centro) vai, em seguida, desfilar cenas
da conquista espanhola, episódios do período colonial, guerras de inde-
pendência, invasões estrangeiras no século XIX, até chegar no último mural
(na parede à esquerda, e completado em 1935), com pinturas que falam
"da exploração do povo mexicano, das raízes do rnalsocial , da repressão
às greves, do levante armado no centro da Cidade do México, e culmi-
nam com o retrato de Karl Marx, emoldurado por um sol "científico"
indicador de um futuro onde a ausência de classes sociais e a abolição da
propriedade privada asseguram paz, progresso e prosperidade para todos.
Para estruturar a organização desse gigantesco panorama, Rivera ins-
pirou-se na escrita boustrofédon, uma forma de narrativa sinuosa que, em
7.36 Códice Vindobonensis; Nationalbibliothek, Viena.
épocas pré-colombianas, os toltecas, mistecas e astecas usaram, pictorica-
mente, ern documentos sanfona dos, para r,istrar-Ihes a história e os ri-
7.37 Diego Rivera, A civilização huasteca (1950), afresco; tos; Rivera era o único de "los tres grandes" que ainda continuava a pro-
Palacio Nacional, Cidade do México (INBA). curar fórmulas que solucionassem a questão de uma "arte para o povo"

172
o MOVIMENTO MURALlSTA MEXICANO

7.38 Diego Rivera , História da medicina no México: o pOIlO em termos realmente indígenas, não através da pura e simples reprodução
clama por unia saúde melhor [detalhe (1953»), afresco;
Hospital de Ia Raza , Cidade do México. de imagens do passado pré-colombiano, como o fizera, anteriormente, ao
pintar a estátua de Xochipilli na parede da escada do Ministério da Educa-
ção, e quando quis figurar fantasiosamente as civilizações pré-hispânicas
que se encontram nos corredores do Palácio Nacional (1942-51), mas
tentando entender e usar, criativamente, as estruturas e a iconografia pré-
colombianas. Suas ilustrações para o livro maia Papal Vuh [ilust. 9.16,17] e
o mural que pintou no Hospital de Ia Raza, intitulado História da medicina
no México: o povo clama por uma saúde melhor (1953) [ilust. 7.38], revelam
seu enorme interesse pelo pensamento científico e mágico das civilizações
indígenas, e o uso, cada vez mais acentuado, que faz de uma estrutura
dualística (o sol e a lua, por exemplo, que presidem as duas partes da História
da medicina) provavelmente deriva da mesma fonte.
De todas as obras dos muralistas, a de Siqueiros é de longe a mais difícil
de ser reproduzida com algum sucesso. Isso se deve ao estilo, à técnica e
aos espaços escolhidos para situá-Ia. Os lugares foram selecionados por ele,
ou modificados, ou construídos de modo a permitir que toda a área da
parede ficasse completamente envolvida pelo clima pictórico da criação.
É o caso, por exemplo, do imenso mural que fez para o Hospital de Ia Raza,
onde, de maneira ininterrupta, a pintura ocupa as paredes sem quinas e o
teto ovalado. Siqueiros empregava tintas industriais, pistola de jato e se

174
7.39 David Alfaro Siqueiros, D. Porflrio e suas cortesãs (1957), afresco; Museo Nacional de Historia, Cidade do México (INAH).

7.40 David Alfaro Siqueiros, Revolucionário a cavalo (1957), afresco; Museo Nacional de Historia, Cidade do México (INAH).
7.41 David Alfaro Siqueiros, O povo pega em armas também valeu da técnica da fotografia quando usou um projetor para
(1957), afresco; Museo Nacional de Histor ia , Cidade do
México (INAH). distender as imagens sobre a parede, como ele mesmo explica em seu
importante livro Como pintar um mural.
Diferente de Orozco e Rivera, ele raramente pintou temas ligados à
história mexicana, estando muito mais absorvido pela luta de classes no
México de sua época. O "pôs ter-mural" Retrato da burguesia (originalmente
chamado "Retrato do Fascismo") é o "primeiro trabalho no gênero a
empregar fotografias contemporâneas para figurar um tema político, no
caso a Guerra Civil Espanhola e suas conseqüências". Esse mural tem uma
complexa relação com a dificil administração de Lázaro Cárdenas e com
as próprias experiências de Siqueiros quando lutava por um governo repu-
blicano na Guerra Civil Espanhola." A primeira vez que usou o tema da
revolução diretamente num mural foi no Castelo de Chapultepec, numa
sala com paredes especialmente construídas e alas arredondadas e salientes.
A revolução contra a ditadura de Poifirio Díaz é uma fantástica mistura de in-
teligência e sátira no retrato que faz da decadente corte de Díaz e na
emocionante descrição dos momentos cruciais da revolta que conduziria
à revolução, "cheia de retratos reais feitos em cima de fotografias dos heróis
revolucionários (...)" 28 Situado como está num lugar de recreação pública,

176
o MOVIMENTO MURALlSTA MEXICANO

esse mural tem também uma função didática que ele diariamente exerce
[ilust.7.39,40,41].
Siqueiros também desenvolveu um tema baseado na invasão espanhola
do México, "Cuauhtémoc contra o mito", no qual o último imperador
asteca que, diferentemente de seu tio Moctezuma, tentara defender o povo
contra os espanhóis e se recusara a sucumbir aos mitos fatalísticos que iden-
tificavam Cortés com o retorno do deus Quetzalcoatl, sendo, por isso, trans-
formado em símbolo da resistência contra a exploração colonial/capitalista.
A ênfase posta numa arte de caráter histórico e voltada para o povo sem-
pre esteve presente - e isso nada tem de surpreendente - na obra dos

7.43 José Clemente Orozco, Paisaoeu, metnfisica (1948),


piroxilina sobre masonita, 2, 15xl ,22111; Instituto Cultural
Cabanas, Guadalajara (INBA).

7.42 José Clemente Orozco, Repolhos (1944), óleo sobre


tela, 1,00x1 ,20 m; Museo de Arte Alvar y Carmen T. de
Carrillo Gil, Cidade do México (INBA).

7.44 José Clemente Orozco, Ressurreição de Lázaro


(1943), materiais diversos sobre tela, 52x74 cm; Museo de
Arte Moderno, Cidade do México (INBA).

177
7.45 David Alfaro Siqueiros, Torso feminino (s/ d),
piroxênio sobre masonita, 1,14xO,93 rn; Museo de Arte
Alvar y Carmen T. de Carrillo Gil, Cidade do México
(INBA). Estudo para o torso da figura central em A nova
democracia (1944-45), Museo del Palacio de Bellas Artes.

7.46 David Alfaro Siqueiros, Três abóboras (1946),


piroxilina sobre masonita; Museo de Arte Alvar y Carmen
T. de Carrillo Gil, Cidade do México (INBA).
o MOVIMENTO MURALlSTA MEXICANO

muralistas; por outro lado, todos eles deixaram também pinturas de cavalete 7.47 Diego Rivera, Natasha Celman (1943), óleo sobre
tela, 1,55xl ,20111; coleção Jacques e Natasha Gelman.
que, muitas vezes, repetem os temas e assuntos tratados nos murais. A in-
constância do patrocínio freqüentemente os levava a aceitar encomendas
particulares para murais e retratos. As pinturas de cavalete de Orozco permi-
tiram que ele não só pintasse cenas independentes que achava inapropriadas
para a arte do mural, como também imagens abstratas como ·as de seu
quadro Paisagem metafísíca, de 1948 [ilust. 7,43]. Em uma escala menor da
pintura de cavalete, também Siqueiros produziu dinâmicas e fortes imagens
que não caíram, como algumas vezes aconteceu com seus murais, na arma-
dilha da confusão e do exagero pictóricos [ilust. 7.45,46]. As pinturas de
cavalete de Rivera tanto incluem retratos de figuras da sociedade como
imagens que, embora vinculadas muito de perto com certos fragmentos
de seus murais, se bastam a si mesmas [ilust. 7.47].

179

Você também pode gostar