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Traduzido do alemão por

Marcelo Fagerlande

Revisão de texto de
Maria Teresa Resende Costa
e Myrna Herzog

Prefácio e notas de
Myrna Herzog
Nikolaus Harnoncourt

Caminhos para uma nova


compreensão musical
Título original:
Musik als Klangrede
Wege zu einem neuen Musikverständnis
Tradução autorizada da quarta reimpressão da primeira edição
publicada em 1984 por Residenz Verlag, de Salzburg, Áustria

Copyright © 1982, Residenz Verlag, Salzburg und Wien


Copyright © 1988 da edição brasileira:
Jorge Zahar Editor Ltda . rua México 31 sobreloja
20031 Rio de Janeiro, RJ
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A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação
do Copyright. (Lei 5.988)

Produção editorial Revisão: Wendell Setúbal, Lincoln Natal Jr., Nair Dametto, Carmem Moreno.
Diagramação: Celso Bivar. Capa: Gilvan F. da Silva. Composição e Impressão: Tavares e Tristão
Gráfica e Editora de Livros Ltda.

ISBN: 85-7110-020-9
Sumário
Prefácio à Edição Brasileira, por Myrna Herzog

I. Princípios Fundamentais
da Música e da Interpretação
A música em nossa vida
interpretação da música histórica .................................. 12
Compreensão da música e formação musical ....................... 21
A Interpretação da música histórica ..................................... 16
Problemas de notação .......................................................... 32
A articulação ....................................................................... 46
O andamento ........................................................................ 61
Sistema sonoro e afinação .................................................... 72
Música e sonoridade ............................................................ 84
Instrumentos antigos — sim ou não? ................................... 87
A reconstituição em estúdio
das condições sonoras originais .................................... 97
As prioridades
— hierarquia dos diferentes aspectos .......................... 111

II. Instrumentarium e Discurso Musical


Viola da brazzo e viola da gamba ...................................... 124
O violino — o instrumento barroco solista ......................... 132
A orquestra barroca ........................................................... 136
A relação palavra-som na música barroca instrumental ...... 145
Do barroco ao classicismo ................................................. 150
Nascimento e evolução do discurso musical....................... 159
III. Música Barroca Europeia — Mozart
Música programática — o op. 8 de Vivaldi ........................ 170
O estilo italiano e o estilo francês ...................................... 176
Compositores barrocos austríacos
— tentativas de conciliação ................................................. 182
Telemann — “Les gouts réunis” (os gostos reunidos)............... 194
A música instrumental barroca na Inglaterra ............................. 201
Concerto grosso, trio-sonata — na obra de Haendel ................. 204
O que diz um manuscrito autógrafo .......................................... 215
Os movimentos de dança — as Suítes de Bach ......................... 219
Música barroca francesa — novidade apaixonante ................... 229
A ópera francesa — Lully e Rameau......................................... 231
Reflexões de um músico de orquestra
sobre uma carta de W. A. Mozart ........................................ 239

Posfácio ............................................................................................ 243


Myrna Herzig

Se em muitos campos do conhecimento e das artes o Brasil caminha,


por assim dizer, a passos largos, não muito defasado em relação ao resto
do mundo, no campo da música o mesmo não acontece, principalmente
na área de formação musical. Contamos com um certo número de bons
músicos, e há inúmeros talentos despontando. Mas em geral o ensino de
música no país, mormente nos estabelecimentos oficiais (salvo honrosas
exceções, fruto mais do esforço individual que de uma política
educacional), é feito de forma insípida e fechada, deixando de cultivar
os hábitos salutares da dúvida, do questionamento, da indagação. Apesar
do talento e dedicação de alguns professores, o processo de formação do
músico no Brasil é muito mais de adestramento que de enriquecimento
(o que aliás não é apanágio nosso, como se pode constatar a partir da
leitura do presente livro). É dada primazia absoluta à técnica, enquanto
a interpretação e compreensão dos diversos estilos (sua relação com as
outras artes) é colocada em segundo plano ou inteiramente esquecida.
Os estudantes de música no Brasil, em geral, não criam hábitos de
leitura ou pesquisa (espontânea). Aqui, ainda prevalece, muitas vezes, a
ideia “romântica” de que o músico deve tocar apenas com a
“sensibilidade” e o “sentimento” (o “coração”), não necessitando ler,
analisar ou questionar. Frequentemente ainda, e por mais incrível que
possa parecer, o músico erudito brasileiro quase não ouve discos e não
vai a concertos. Se considerarmos o disco um equivalente do trabalho
científico (na área de medicina, por exemplo) veremos que o nosso
músico sofre de desatualização crônica. É como se o conhecimento que
lhe é oferecido pelo ensino oficial viesse acompanhado simbolicamente
de uma tarjeta “verdade absoluta e incontestável”, e assim sendo o
estudante de música, mais tarde o músico profissional, não se sente nem
com o direito nem com o interesse de procurar, de duvidar.
O livro de Nikolaus Harnoncourt, que vem fazendo furor na Europa,
com várias edições esgotadas, é sem dúvida uma resposta às indagações
dos músicos e de todos aqueles que se interessam de forma séria pela
produção musical da humanidade nos últimos séculos, Escrito em
linguagem simples e cristalina (característica dos que conhecem
realmente o seu assunto), o livro trata de questões fundamentais para a
apreciação e interpretação da música ocidental, introduzindo novos
conceitos e uma nova maneira de ver a produção musical do passado.
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Embora o livro aborde basicamente a música do passado (aí incluídos
Bartok, Schoenberg e Stravinsky), o faz através de uma ótica
extremamente moderna, revendo os velhos conceitos, analisando-os e
abrindo novos rumos para a reflexão e a compreensão musical. É, em
minha opinião, o mais importante lançamento da área de música feito em
língua portuguesa até o momento, e considero que o acesso a este livro
é um real privilégio para o estudante, o músico, enfim, todo aquele que
não se contenta com assuntos fechados e respostas pré-fabricadas.
Muitos temas importantes e questões controversas são objeto deste
livro, a começar pela própria função da música na vida do homem antigo
e moderno. A partir do conceito de “música histórica”, criado por
Harnoncourt, podemos entender o porquê do movimento de música
antiga e dos novos caminhos da interpretação. A necessidade de uma
interpretação viva e criativa, que associe o conhecimento à sensibilidade
musical, é uma das preocupações constantes do autor,
A notação musical e suas idiossincrasias, as práticas de orna-
mentação e improvisação, a interpretação dos recitativos são alguns dos
tópicos de grande interesse, bem como a relação entre a música e a
técnica a seu serviço, a música e seu instrumental, a distinção entre a
obra e sua execução.
São aqui tratados também a inégalité, uma das pedras de toque para
a execução da música barroca francesa, os problemas de andamento (os
títulos dos movimentos, sua origem, sua relação com o caráter dos
movimentos, etc.), o valor do trabalho com instrumentos antigos e
manuscritos originais, a multiplicidade de temperamentos (sistemas de
afinação) e sua importância como meio de expressão.
A velha querela “instrumentos antigos, sim ou não?” é encarada de
frente, bem como todos os preconceitos a ela ligados; os problemas de
acústica, disposição espacial e sonoridade são também discutidos.
No capítulo “Instrumcntarium e Discurso Musical”, ficamos sa-
bendo um pouco da história das modificações sofridas pelos instru-
mentos, do equilíbrio entre estes, de seus meios de expressão peculiares
(a diversidade de articulação, vibrato, etc.), das características da
orquestra barroca e seu modus operandi. A relação entre a palavra e o
som na música instrumental — a retórica musical — é um dos pontos
altos do livro.
“Do Barroco ao Clássico” aborda a história das interpretações
musicais, a relação da música com a dança, as origens da ópera, o
nascimento e a evolução do discurso musical, viagem fascinante que
possibilita a compreensão de toda a música que se segue ao renascimento
e desemboca no classicismo e no romantismo.
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Alguns compositores são aqui focalizados em maior detalhe:
Vivaldi, Telemann, Bach, Haendel, Biber, Lully, Rameau e Mozart. São
estilos, semelhanças, diferenças, um mundo de informações
surpreendentes, que Harnoncourt coloca em letra de forma, arrumando e
codificando uma série de conhecimentos adquiridos neste século sobre a
música do passado.
O grande mérito deste livro é não ser apenas mais um trabalho de
pesquisa intelectual sobre a música e os instrumentos do barroco e do
classicismo, mas o fruto de uma praxis genuína aliada a um
conhecimento profundo. Sua leitura constitui-se em experiência viva,
enriquecedora, por vezes emocionante.

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I
PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA MÚSICA E DA
INTERPRETAÇÃO
Da Idade Média à Revolução Francesa, a música sempre foi um dos
pilares de nossa cultura, de nossa vida. Compreendê-la fazia parte da
cultura geral. Hoje, no entanto, ela se tornou um simples ornamento que
permite preencher noites vazias com idas a concertos ou óperas,
organizar festividades públicas ou, quando ficamos em casa, com a ajuda
dos aparelhos de som, espantar ou enriquecer o silêncio criado pela
solidão. Donde o paradoxo: ouvimos, atualmente, muito mais música do
que antes — quase ininterruptamente — mas esta, na prática, representa
bem pouco, possuindo não mais que uma mera função decorativa.
Os valores que os homens dos séculos precedentes respeitavam não
nos parecem, hoje, importantes. Eles consagravam todas suas forças,
todos seus esforços e todo seu amor a construir templos e catedrais, ao
invés de dedicarem-se à máquina e ao conforto. O homem de nossa época
dá mais valor a um automóvel ou a um avião que a um violino, mais
importância ao planejamento de um aparelho eletrônico que a uma
sinfonia. Pagamos preço bem alto por aquilo que nos parece o cômodo,
o indispensável; sem nos darmos conta, rejeitamos a intensidade da vida
em troca da sedução enganadora do conforto — e aquilo que
verdadeiramente perdemos, jamais recuperaremos.
Essa modificação radical da significação da música processou-se
nesses últimos dois séculos com uma rapidez crescente. E ela fez-se
acompanhar de uma mudança de atitude face à música contemporânea,
aliás, face à arte em geral, porque, como a música era parte essencial da
vida, ela tinha forçosamente que nascer do presente. Ela era a língua viva
do indizível e só os seus contemporâneos podiam compreendê-la. A
música transformava o homem — tanto o ouvinte como o músico. Devia
ser sempre criada com o novo, da mesma forma que os homens deviam
construir para si novas moradas que correspondessem a um novo modo
de existência, a uma nova modalidade de vida espiritual. Da mesma
forma, já não se era mais capaz de compreender, nem de utilizar a música
antiga, aquela das gerações passadas; contentava-se, então, de admirar-
lhe meramente a perfeição artística.
Depois que a música deixou de ser o centro de nossa vida, tudo
mudou de figura; como ornamento, ela tem que ser antes de tudo “bela”.
Não deve de forma alguma perturbar ou assustar. Só que a música, em
nossos dias, não pode satisfazer tal exigência, porque, como qualquer

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arte, ela é o reflexo da vida espiritual de seu tempo, portanto do presente.
Mas, numa confrontação honesta e séria com a nossa condição espiritual
e intelectual, ela não pode ser apenas bela, já que intervém em nossa vida
e, por isso, perturba. Daí a contradição: nós nos afastamos da arte atual
por ser perturbadora, talvez pelo próprio fato de que a arte tenha de
perturbar. Não estávamos, entretanto, buscando nenhum tipo de
confrontação, só queríamos uma beleza que pudesse nos distrair do tédio
do dia-a-dia. Assim, a arte — e a música em particular — se tornou um
simples ornamento e nós nos voltamos para a música histórica, para a
música antiga uma vez que, nesta, encontramos a beleza e a harmonia
tão almejadas.
A meu ver, esse retorno 1 à música antiga — e por esta, entendo
qualquer música que não tenha sido composta pelas gerações atualmente
vivas — só se deu por causa de uma série de terríveis malentendidos.
Tudo o que consumimos é uma bela música que o presente não pode de
forma alguma nos oferecer. Ora, tal música, a simplesmente. “bela”,
jamais existiu. Se a beleza é componente de toda e qualquer música, nós
não podemos fazer disso um critério determinante, sob pena de estarmos
negligenciando e ignorando todos os demais componentes, Mas, depois
que deixamos de compreender, ou talvez que deixamos de querer
compreender a música como um todo, nos foi possível reduzi-la ao belo
e, de certa forma, nivelá-la. Só que, ao torná-la apenas um componente
agradável de nossa vida cotidiana, ficamos até incapazes de compreender
a música antiga — aquela que chamamos realmente música — em sua
totalidade, pois nesse caso já não podemos mais reduzi-la, à estética.
Encontramo-nos, hoje, portanto, numa situação praticamente sem
saída: acreditamos no poder e na força de transformação da música, mas
somos obrigados a constatar que, de modo geral, a situação intelectual
de nossa época a retirou de sua posição central,, impelindo-a para a
periferia — era movimento e vida e, hoje, é algo simplesmente belo. Não
é possível, porém, nos conformarmos com isso, eu diria mesmo que, se
fosse obrigado a admitir a irreversibilidade da situação da arte,
imediatamente deixaria de fazer música.
Acredito, por conseguinte e com esperança cada vez maior, que
dentro em breve todos nós vamos perceber que não podemos renunciar
à música — já que esta redução absurda de que falo não passa, na
verdade, de uma renúncia — e que podemos confiar na força da música
de um Monteverdi, de um Bach ou de um Mozart e no que esta transmite.
Quanto mais nos esforçamos para compreender e apreender esta música,

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mais percebemos o quanto ela ultrapassa a beleza e o quanto ela nos
perturba e nos inquieta pela diversidade de sua linguagem. E, no final,
teremos de, através da compreensão da música de Monteverdi, Bach e
Mozart, reencontrar a música de nosso tempo, aquela que fala nossa
língua, aquela que constitui nossa cultura e a prolonga. Muitas das coisas
que tornam nossa época tão desarmoniosa e tão terrível não resultariam
do fato da arte não mais intervir em nossa vida? Será que não nos
reduzimos, vergonhosamente, sem qualquer fantasia, apenas à
linguagem do “dizível”?
Que teria pensado Einstein, que teria achado se não tivesse tocado
violino? Não são as hipóteses audaciosas e inventivas frutos exclusivos
do espírito de imaginação até que possam, posteriormente, ser
demonstradas pelo pensamento lógico?
Não foi por coincidência que a redução da música ao belo, por
conseguinte àquilo que é por todos entendido, se tenha dado à época da
Revolução Francesa. Na história, sempre houve períodos em que se
tentou simplificar a música, reduzindo-a apenas ao elemento emocional,
de modo a torná-la compreensível por todos. Cada uma dessas tentativas
fracassou, conduzindo a uma diversidade e a uma complexidade novas.
A música só será por todos compreendida se for reduzida ao primitivo,
ou se cada um aprender sua linguagem.
A tentativa mais bem-sucedida de simplificar a música a fim de
torná-la compreensível a todos deu-se em seguida à Revolução Francesa.
Tentou-se, então, pela primeira vez, num grande Estado, colocar a
música a serviço de ideias políticas: o minucioso programa pedagógico
do conservatório foi o primeiro exemplo de uniformização na nossa
história da música. Ainda hoje, músicos são educados para a música
europeia, 11o mundo inteiro, através desses métodos e, por meio deles, se
explica aos ouvintes que não é preciso saber música para compreendê-la
— basta que a julguem bela. Desse modo, cada um sente-se com direito
e capaz de opinar sobre o valor e a execução de música — um ponto de
vista que possivelmente se aplica à música pós-revolução, mas que de
forma alguma vale para aquela composta nos períodos anteriores.
Estou firmemente convencido de que é de importância decisiva,
para a sobrevivência do espírito europeu, saber viver com a nossa
cultura. Para tal, no que concerne à música, coloco duas condições:
Primeira: os músicos precisam ser formados através de novos
métodos que correspondam àqueles de duzentos anos atrás. A música em

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nossas escolas não é ensinada como uma língua, mas somente como uma
técnica de prática musical; o esqueleto tecnocrático, sem vida.
Segunda: a formação musical geral deveria ser repensada e receber
o lugar que merece. Assim, iremos perceber as grandes obras do passado
por um novo prisma: aquele da diversidade que nos mobiliza e nos
transforma e que também nos prepara para absorver o novo.
Todos nós precisamos da música, sem ela não podemos viver.

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Pelo fato da música histórica desempenhar um papel preponderante
11a vida musical de hoje, vale a pena discutirmos, aqui, alguns problemas
a ela relacionados. Há dois pontos de vista básicos com relação à música
histórica que correspondem também a dois tipos de execução: um deles
a transporta ao presente, e o outro tenta vê-la com os olhos da época em
que foi concebida.
A primeira concepção é a mais natural e comum às épocas em que
há uma música contemporânea realmente viva. Ela é também a única
possível ao longo da história da música ocidental, desde os primórdios
da polifonia até a segunda metade do século XIX, e, ainda hoje, grandes
músicos mantêm esta concepção. Este conceito se originou do fato de
que a linguagem da música sempre foi considerada como sendo
absolutamente ligada a seu tempo. É, por exemplo, o que sucedia no
século XVIII. Uma peça composta nas primeiras décadas deste século já
estava — mesmo que se lhe reconhecesse valor
inteiramente fora de moda por volta da metade do século. É sempre
motivo de surpresa ver o entusiasmo com que os antigos apreciavam suas
composições contemporâneas, era como se estas fossem sempre
descobertas inéditas. A música antiga era considerada como uma etapa
preparatória, no melhor dos casos como material de estudo; ou ainda
mais raramente, usada para alguma execução especial, quando seria
rearranjada. Nestas raras execuções de música antiga — no século
XVIII, por exemplo, — considerava-se imprescindível uma certa
modernização. Em contrapartida, os compositores do nosso tempo, que
adaptam as obras históricas, sabem perfeitamente que as obras seriam
também facilmente aceitas pelo público sem tais modificações; esses
arranjos, portanto, não são de extrema necessidade como nos séculos
anteriores, quando a música histórica era modernizada de acordo com a
concepção pessoal do arranjador. Regentes como Furtwaengler ou
Stokowski, que possuíam um ideal romântico tardio, executavam a
música antiga com esse espírito. Dessa forma, obras de órgão de Bach
foram instrumentadas para orquestras wagnerianas, e suas Paixões foram
executadas de maneira ultra-romântica, com conjuntos gigantescos.
A segunda concepção, a chamada autêntica, é consideravelmente
mais recente que a primeira, e data aproximadamente do início do século
XX. Desde então, essa execução “autêntica” da música histórica tem sido
cada vez mais exigida, e importantes intérpretes pretendem fazer disso

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um ideal. Tenta-se fazer justiça à música antiga, recriando-a segundo o
espírito do tempo em que foi concebida. Esta concepção com relação à
música histórica — não trazê-la ao presente, mas recolocá-la no passado
— é sintoma da ausência de uma música contemporânea realmente viva.
A música de hoje não satisfaz nem o músico nem o público, que, em sua
maioria, a rejeita; e para preencher o vazio assim criado, nós nos
voltamos para a música histórica. Nesses últimos tempos, habituamo-nos
mesmo1 a compreender o vocábulo músico como significando, em
primeiro lugar, a música histórica e quando muito o aplicamos
secundariamente à música contemporânea. Esta situação é
absolutamente nova na história da música. Um pequeno exemplo para
ilustrar a afirmação: se hoje em dia retirássemos de uma hora para a outra
a música histórica das salas de concerto e só executássemos obras
modernas, as salas estariam rapidamente desertas — exatamente como
teria acontecido no tempo de Mozart se retirassem do público a música
contemporânea e só lhes fosse oferecido música antiga (a barroca, por
exemplo). Constata-se então que a música histórica, principalmente a do
século XIX, sustenta a vida musical de nossos dias. Desde o nascimento
da polifonia nunca se dera um caso como este. Da mesma forma, em
outros tempos, nunca se sentira necessidade, na execução da música
histórica, de uma autenticidade como a que hoje exigimos. A visão
histórica é absolutamente estranha a uma época culturalmente viva.
Observa-se o mesmo, também, nas outras artes: assim, por exemplo, não
havia antigamente qualquer escrúpulo em construir uma sacristia barroca
em uma igreja gótica, em jogar fora os mais maravilhosos altares góticos
e colocar os barrocos nos seus lugares, enquanto que hoje tenta-se
preservar e restaurar tudo. Esta concepção histórica tem, contudo, algo
de bom: pela primeira vez na história da arte cristã ocidental, podemos
adotar um ponto de vista livre e, dessa forma, apreender toda a criação
do passado. É isso que explica o fato da música histórica estar ocupando
cada vez um espaço maior nos programas de concertos.
Em música, a última época verdadeiramente viva e criativa foi a fase
final do romantismo. A música de Bruckner, Brahms, Tchaikovsky,
Richard Strauss, entre outros, ainda constitui uma expressão viva de seu
tempo. Mas depois disso toda a vida musical se petrificou: ainda hoje, é
esta música a que se escuta com mais frequência e agrado e a formação
de músicos nos conservatórios continua a obedecer aos ditam.es desta
época. Parece até que não queremos admitir que muitas décadas já se
passaram desde então.

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Quando executamos atualmente música histórica, não podemos
fazê-lo como os nossos predecessores das grandes épocas. Perdemos
aquela espontaneidade que nos teria permitido recriá-la na época atual;
a vontade do compositor é para nós a autoridade suprema: encaramos a
música antiga como tal, em sua própria época, e nos esforçamos para
recriá-la de maneira autêntica, não por motivos históricos, mas porque
isso nos parece, hoje, o único caminho verdadeiro para executá-la de
forma viva e digna. Mas uma execução só será fiel se ela traduzir a
concepção do compositor no momento da composição. Sabemos que isso
é possível, mas até certo ponto: a ideia original de uma obra deixa-se
apenas adivinhar, sobretudo quando se trata de música muito distante de
nós no tempo. Os indícios que nos revelam a vontade do compositor se
resumem nas indicações referentes à execução, na instrumentação e nas
várias práticas de execução, em constante evolução, e que o compositor
supunha fossem naturalmente do conhecimento de seus contemporâneos.
Tudo isso nos exige um estudo muito aprofundado que pode levar-nos a
cometer um sério erro: o de tocarmos a música antiga de acordo apenas
com os nossos conhecimentos. É assim que nascem estas execuções
musicológicas que vemos por aí: quase sempre irrepreensíveis
historicamente, mas que carecem de vida. É preferível uma execução
inteiramente errônea, do ponto de vista histórico, porém viva
musicalmente. Os conhecimentos musicológicos não devem constituir-
se um fim em si mesmos, mas apenas proporcionar-nos os meios de
chegarmos a uma melhor execução que, em última instância, será
autêntica se a obra for expressa de forma bela e clara.
Isto acontece quando o conhecimento e a consciência das res-
ponsabilidades se unem à mais profunda sensibilidade musical.
Até o presente, deu-se muito pouca atenção às transformações
contínuas da prática musical, chegando-se mesmo a considerá-las como
secundárias. O erro está na concepção de um “desenvolvimento” a partir
de formas originais primitivas passando por etapas intermediárias mais
ou menos deficientes até chegar a uma forma definitiva “ideal” que, sob
todos os aspectos, seria superior às “etapas preliminares”. Esta visão,
resquício de um tempo em que a arte era viva, ainda hoje é propagada.
Aos olhos dos homens de então, a música, a técnica de tocar e os
instrumentos musicais se teriam “elevado” e chegado ao nível mais alto,
o de sua época. Desde que chegamos à posição de podermos observar de
forma abrangente, esta opinião, no que diz respeito à música, inverteu-
se: não podemos mais estabelecer diferenças de valores entre a música

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de Brahms, Mozart, Bach, Josquin ou Dufay — a teoria do progresso não
é mais defensável. Atualmente, fala-se da intemporalidade das grandes
obras de arte, e esta concepção, tal como é comumente entendida, é tão
errônea quanto a do progresso. A música, como toda arte, é ligada a seu
tempo, ela é expressão viva de sua época e só é perfeitamente com -
preendida por seus contemporâneos. Nossa “compreensão” da música
antiga só nos deixa adivinhar o espírito no qual ela nasceu. Vemos que
a música sempre corresponde à situação intelectual de seu tempo. Seu
conteúdo não pode jamais ultrapassar as capacidades expressivas
humanas, e tudo o que se ganha de um lado deve ser pago com uma perda
do outro.
Em geral, as ideias sobre a natureza e a extensão das modificações
por que passou a prática musical, em inumeráveis etapas, não são muito
claras, por isso vale a pena determo-nos um pouco mais neste assunto; é
o caso da notação, até a metade do século XVII submetida a constantes
modificações e da qual certos sinais, tidos então por fixados, não
deixaram de ser utilizados de modo muito diverso até o fim do século
XVIII. O músico atual toca exatamente o que está escrito na partitura,
sem saber que a notação matemática e precisa só se tornou corrente no
século XIX. Uma outra fonte de problemas é a enorme questão da
improvisação que, até mais ou menos o fim do século XVIII, não pode
ser separada da prática musical. Para distinguir as diferentes fases da
evolução correspondentes a cada período, é preciso importantes
conhecimentos especializados, cujo aproveitamento aparece no aspecto
formal e estrutural da execução. O que, porém, faz uma diferença
perceptível é a imagem sonora, quer dizer, dentre outros elementos, o
caráter e a potência dos instrumentos. Da mesma forma que a leitura da
notação ou a prática da improvisação foram submetidas a constantes
modificações, segundo o espírito da época, a concepção e o ideal sonoro
transformaram-se simultaneamente e com eles, os instrumentos, a
maneira de tocá-los e até mesmo a técnica de canto. Ainda relacionada à
questão da imagem sonora, convém acrescentar a importância do espaço,
vale dizer, da acústica e das dimensões das salas de concerto.
Mesmo com relação à transformação do modo de se tocar —
portanto, da técnica — não se pode falar de um “progresso”; ela se adapta
sempre perfeitamente, como os instrumentos, às exigências de seu
tempo. Poder-se-ia contra-argumentar que as exigências em relação à
técnica de execução não pararam de crescer, o que é verdade, mas apenas
com respeito a uma pequena parcela da técnica, enquanto que as

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exigências em outros domínios desta foram continuamente diminuindo.
Certamente, nenhum violinista do século XVII poderia, por exemplo,
tocar o Concerto de Brahms, da mesma forma que um violinista que toca
Brahms não é capaz de executar irrepreensivelmente uma obra difícil da
literatura violinística do século XVII. Exigem-se técnicas diferentes num
e noutro caso, e cada uma (delas é igualmente difícil.
Constatamos mudanças semelhantes na instrumentação e nos ins-
trumentos. Cada época tem o seu gênero de instrumentos que melhor
convém à sua música. Na sua imaginação, os compositores ouvem os
instrumentos de seu tempo; eles escrevem frequentemente para certos
instrumentistas; sempre houve a exigência de que a música fosse tocável
em função das possibilidades de cada instrumento; intocáveis eram
somente as peças mal compostas, e os seus autores cobriam-se de
ridículo. Que se considere muitas obras de antigos mestres impossíveis
de ser tocadas (por exemplo, as partes para instrumentos de sopro na
música barroca) é uma consequência da maneira pela qual os
instrumentistas hoje em dia abordam tais obras, utilizando instrumentos
modernos e uma técnica também moderna. Infelizmente é uma exigência
quase impossível de ser cumprida, a de fazer com que músicos da
atualidade saibam tocar instrumentos antigos e com a técnica antiga. Não
se deve culpar os compositores antigos por uma passagem impossível de
ser tocada ou por qualquer outra dificuldade, ou. como comumente
acontece, considerar a prática musical de épocas anteriores como
tecnicamente insuficiente. Assim, chegamos à conclusão de que, em
todos os tempos, os músicos mais brilhantes eram capazes de executar
as obras dos compositores seus contemporâneos.
Tudo isso deixa adivinhar as monstruosas dificuldades que se
enfrenta na tentativa de fazer música com a chamada autenticidade.
Certos compromissos são inevitáveis: há tantas perguntas ainda sem
resposta, tantos instrumentos não mais encontrados, ou para os quais não
se acham mais músicos. Contudo, onde é possível atingir um alto grau
de autenticidade de estilo, somos recompensados por riquezas
insuspeitadas. As obras se revelam sob uma luz ao mesmo tempo nova e
antiga e vários problemas resolvem-se por si mesmos. Executadas desta
maneira, as obras não só soam historicamente mais corretas, como
também muito mais vivas, pois são apresentadas com os meios que lhes
são correspondentes. Com isto tem-se uma ideia das forças espirituais
que fizeram o passado fecundo. A prática da música antiga adquire,
então, para nós, além do prazer estético, um sentido profundo.

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Há vários indícios de que estamos caminhando para um colapso
total da cultura, do qual a música naturalmente não estaria excluída. Ela
é apenas uma parte da nossa vida espiritual e intelectual, e como tal só
pode expressar e refletir o que se passa no todo. Se a situação é realmente
tão séria quanto eu a vejo, não é correto que fiquemos de braços
cruzados, esperando que tudo se acabe de vez.
A formação dos músicos desempenha neste sentido um papel
importante — por músicos entendo qualquer profissão ligada à atividade
musical, incluindo os ouvintes profissionais e, no fundo, até o público.
Consideremos, neste sentido, primeiramente, o valor e o lugar que a
música ocupa na história. É interessante saber que em várias línguas
“poesia” e “canto” se exprimem pela mesma palavra. Ou seja, a partir do
momento em que a linguagem transcende a sua função de informação
prática e adquire profundidade, ela está associada ao canto, pois com a
sua ajuda, a mensagem, que ultrapassa a simples informação, poderá ser
expressa com maior clareza. Isto é difícil de compreendermos já que está
tão distante da nossa atual concepção musical. A palavra falada pode,
através de notas, melodias, harmonias, ter o seu sentido verbal
intensificado, permitindo-nos atingir uma compreensão que extrapola a
simples lógica.
Mas o efeito da música não ficou reduzido a um fortalecimento e
aprofundamento da expressão da linguagem; a música encontrou
rapidamente sua estética própria (cuja relação com a linguagem continua
reconhecível) e também um grande número de meios de expressão
particulares: ritmo, melodia, harmonia, entre outros. Desta forma, surgiu
um vocabulário que deu à música um enorme poder sobre o corpo e O
espírito do homem.
Basta observarmos pessoas ouvindo música, para perceber o quanto
ela incita ao movimento; ficar sentado imóvel exige realmente uma
concentração defensiva. Cada movimento pode intensificar-se até chegar
ao êxtase. Mas, o simples encadeamento de dissonância e resolução
produz sentimentos de tensão e descontração. Na melodia também
encontra-se o mesmo fenômeno: cada sucessão melódica obedece a
certas regras, e quando a melodia corresponde exatamente a estas regras,
sabe-se, após quatro ou cinco notas, quais serão a sétima e a oitava; este
ouvir antes produz então um certo relaxamento interior. Caso o
compositor queira provocar o estado de tensão no ouvinte, ele o fará.

22
frustrando a sua expectativa, levando a melodia alhures, para só em outro
momento satisfaze-lo com a sequência melódica esperada. Este é um
processo extremamente complicado, ao qual recorreram os compositores
durante os vários séculos da história da música ocidental. Quando
estamos num concerto que de fato estamos escutando e
concentradamente — admitindo-se, é claro, que esta seja uma boa
execução — sentimos os estados de tensão e descontração, bem como as
mudanças que se processam em nossa circulação, em nossa “audição
corporal”. O mesmo vale para a representação dos sentimentos, desde os
de natureza calma, leve, positivos, ou dolorosos, até aqueles de alegria
mais intensa, de fúria ou de cólera; todos eles são de tal forma expressos
na música que sacodem o ouvinte e provocam sensações corporais. A
todas estas transformações do homem através da música acrescentam-se,
naturalmente, as de ordem espiritual. Neste sentido, a música tem
também uma função moral, e esteve durante séculos na posição de
influenciar espiritualmente e transformar o homem.
Obviamente a música não é intemporal, ao contrário, está ligada ao
seu tempo e como toda expressão cultural do homem, é de importância
primordial para sua vida. Durante um milênio, música e vida
caminharam juntas no panorama musical do Ocidente, o que quer dizer
que a música era parte essencial da vida — a música do momento
presente. Em nossos dias, já que esta unidade não mais acontece,
precisamos encontrar uma nova compreensão para a música. Quando
pensamos na música atual, observamos, de imediato, que ela está
dividida em: “música folclórica”, “música popular” e “música séria”
(esta última expressão, para mim, inexistente). Dentro destes grupos,
encontram-se ainda parcelas da unidade — mas a unidade música e vida,
e a música como um todo se perderam.
Na música folclórica, pode-se ainda descobrir uma certa unidade,
dela com o povo que a produziu, mas tão logo seja reduzida a uma forma
de enclave, passará a fazer parte dos costumes, o que não deixa de
representar um declínio cultural, já que os costumes não deveriam ser
algo “cultivado”, mas sim algo pertencente à vida. A partir do momento
que a designamos “costume”, ela se torna objeto de museu. Na música
popular encontramos, todavia, ainda vestígios da antiga função da
música. Neste caso, a influência corporal do ouvinte é claramente
perceptível. Considero importante refletir sobre a seguinte questão: por
que há atualmente, de um lado, uma música popular que desempenha na

23
vida cultural um papel tão importante, mas nenhuma “música séria”
contemporânea, de outro, desempenhando algum papel?
Na música popular encontram-se vários aspectos da antiga
compreensão musical: a unidade poesia-canto, que nos primórdios da
música foi tão importante, a unidade ouvinte-artista, e ainda a unidade
música-tempo; a música popular nunca tem mais de uns cinco ou dez
anos, portanto, é parte integrante do presente. Talvez com a ajuda da
música popular possamos ter uma ideia do que a música antigamente
representava na vida das pessoas; de qualquer forma, em seu domínio,
apesar de restrito, a música popular é atualmente uma parte essencial da
vida.
Chegamos agora ao nosso “primo pobre”, à “música séria”, que nós
dividimos em “moderna” e “clássica”. A música moderna, “cultivada”
por importantes e ilustres músicos, desde séculos, existe apenas para um
diminuto círculo de interessados que viaja e é sempre o mesmo em toda
parte. Não o digo de maneira irônica, mas é que sinto realmente isso
como o sintoma de um colapso que não é simples de ser entendido e
explicado. Pois, quando a música se separa de seu público, isto não é
culpa nem da música nem do público. De qualquer maneira, o problema
não reside nem na arte em geral nem na música, mas na situação
espiritual e intelectual do tempo. É aí que seria necessário que algo
mudasse, pois a música é necessariamente um espelho do presente. Caso
quiséssemos mudar a música, haveria necessidade inicialmente de mudar
o presente. Não há uma crise da música, mas a música reflete uma crise
do nosso tempo. Tentar, pois, transformar a música seria tão absurdo
como seria para um médico tentar tratar dos sintomas do paciente e não
da doença propriamente dita. É impossível “curar” a música contempo -
rânea através de “medidas político-culturais”, como, por exemplo,
encorajando certas tendências que “agradam” — quem acredita ser isso
possível não compreende a função da música na vida humana. Um
verdadeiro compositor escreve, querendo ou não, aquilo que a situação
espiritual de seu tempo lhe exige — do contrário, ele não passará de um
simples parodista produzindo imitações sob encomenda.
E nós, o que fizemos? Nós “fugimos”, isto é, tentamos refugiar-nos
no passado desde que a unidade formada pela criação cultural e a vida
deixou de existir. Então, o chamado “homem culto” tenta salvar e trazer
ao presente a parcela da herança cultural e musical dos últimos mil anos,
que, pela primeira vez, tem a oportunidade de observar de forma
abrangente. Nesta tentativa ele toma, contudo, apenas um ou dois

24
aspectos do todo, que julga válidos e pensa compreender. Esta é a
maneira pela qual a música é feita e ouvida nos dias de hoje: nós
isolamos, do conjunto da música dos últimos milênios, os componentes
estéticos e, nesses, encontramos o nosso prazer. Utilizamo-nos apenas
dos trechos que agradam aos nossos ouvidos, do que é “belo”; com isto,
não percebemos que degradamos completamente a música. Não nos
interessa absolutamente se estamos deixando de ouvir o conteúdo
essencial desta música: procuramos apenas a beleza que talvez no
complexo geral da obra ocupe um espaço bem pequeno.
E, aqui, chego à seguinte questão: que posição deveria ocupar a
música nos dias de hoje? Seria possível uma mudança? E se for, essa
fará algum sentido? Seria absolutamente falso o papel que a música
desempenha na vida atual? Na minha opinião, a situação é grave, e se
não conseguirmos criar uma unidade entre o ouvir música, entre nossa
necessidade de música e nossa vida musical — seja através de um
equilíbrio entre a oferta e procura da música contemporânea, seja através
de uma nova compreensão da música clássica, antiga —, vejo o fim
próximo. Neste caso, somos ainda mais que conservadores de museus, e
não fazemos nada além de mostrar o que já houve um dia; eu me
pergunto se há muitos músicos interessados nisto.
Tratemos agora do papel do músico. Na Idade Média, havia uma
separação definida entre teóricos, práticos e músicos “completos”. O
teórico era aquele que compreendia a construção da música, mas não a
executava. Ele não tocava, nem compunha, mas entendia a montagem e
a construção teórica da música e gozava de alta estima por parte de seus
contemporâneos, pois a teoria da música era vista como uma ciência
autônoma, para a qual a música tocada na verdade não possuía
importância alguma. (Ocasionalmente, encontramos certos reflexos
desta concepção nos musicólogos atuais.) O prático, ao contrário, não
possuía qualquer conhecimento teórico a respeito de música, mas sabia
tocá-la. Sua compreensão musical era instintiva; mesmo que ele nada
pudesse explicar teoricamente, mesmo que não conhecesse as relações
históricas, estava preparado para fazer a música que fosse necessária.
Como ilustração, tomemos um exemplo de linguagem: o linguista
conhece e compreende a construção e a história da língua. O homem da
rua, o contemporâneo, não tem ideia deste tipo de coisa, e mesmo assim
fala bem esta língua e a domina convincentemente, já que é a linguagem
de sua época. Tal é a situação dos instrumentistas e cantores durante mil

25
anos de história ocidental; eles não sabem, mas podem e compreendem
sem saber.
Havia ainda o “músico completo”, o que era tanto teórico quanto
prático. Este conhecia e entendia a teoria, mas não a considerava como
uma coisa isolada e dissociada de uma prática auto-suficiente; ele podia
compor e executar música, no sentido de que conhecia e compreendia
todas as relações. Era mais conceituado do que o teórico e o prático, pois
dominava todas as formas do conhecimento e saber.
Mas, quem seria essa figura, atualmente? O compositor de hoje é
certamente um músico nesse último sentido que descrevemos. Ele possui
o saber teórico, conhece as possibilidades práticas; mas falta-lhe o
contato vivo com o ouvinte, com as pessoas que têm uma imperiosa
necessidade de sua música. Sem dúvida alguma, ele carece daquele
desejo vivo de uma música nova, daquela que é precisamente feita para
satisfazer esse reclamo. Já o prático, o instrumentista, é em princípio tão
ignorante como o era há vários séculos. A ele, interessa principalmente
a execução, a perfeição técnica, a ovação num concerto, ou o sucesso.
Não cria música, simplesmente a toca. Como 1 não há mais uma unidade
entre sua época e a música que toca, falta-lhe o conhecimento natural
sobre esta música, ao contrário dos músicos das épocas anteriores que só
tocavam obras de seus contemporâneos.
Nossa vida musical, portanto, encontra-se numa situação fatal: por
todo lado há óperas, orquestras sinfônicas, salas de concerto, enfim, uma
rica e variada oferta para o público. Mas nós tocamos, nestes lugares,
uma música que não compreendemos, uma música feita para pessoas de
outras épocas; e o mais curioso desta situação é que ignoramos tudo
sobre este problema, pois acreditamos que nada há para ser
compreendido, já que a música fala diretamente ao coração. Todo
músico aspira à beleza e à emoção, o que lhe parece perfeitamente
natural, e constitui a base de suas possibilidades de expressão. O saber,
que seria indispensável pelo fato mesmo de ter deixado de existir uma
unidade entre a música e a época, não lhe interessa, aliás nem poderia
interessar, pois ele não avalia a importância deste conhecimento.
Resultado: expressa somente os componentes estéticos e emocionais da
música e ignora o restante do conteúdo. Esta situação é ainda reforçada
pela imagem do artista que se forjou no século XIX; o romantismo fez
do artista, gradativamente, uma espécie de “super-homem” que, com
ajuda da intuição, extrapola os limites do homem “normal”. Ele se tornou
numa espécie de “semideus”, se julgava como tal e como tal se fazia

26
devidamente incensar. Este “semideus” é um fenômeno absolutamente
incrível no romantismo — pensemos em Berlioz, Liszt ou Wagner, tudo
se encaixa perfeitamente na época. Se é verdade que se beijava a fímbria
do roupão de Wagner, isto é perfeitamente compreensível para o seu
tempo. Mas a imagem do. artista, tal como foi formada nesta época
decadente, ficou petrificada, como tantas outras coisas desse século.
Agora a pergunta: o que deveria ser o artista, na realidade? A
maneira como deveria ser compreendida a música hoje em dia nos
poderia dar a resposta. Se o músico tem realmente a missão de transmitir
toda a herança musical — em toda a extensão daquilo que nos interessa
— e não só nos seus aspectos estéticos e técnicos, para isso ele precisa
adquirir os conhecimentos necessários. Não há outra solução possível.
Devido ao seu distanciamento do presente, e à separação de sua época,
a música do passado tornou-se, no decorrer da história e em seu contexto
geral, uma língua estrangeira. Certos aspectos particulares podem até
possuir valor universal e intemporal, mas sua mensagem particular é
ligada à época e não pode ser reencontrada, a não ser que se tente um
tipo de tradução para os dias atuais. Dito de outro modo: caso a música
de outras épocas ainda seja atual para o presente, num sentido mais
amplo e profundo, caso sua mensagem deva ser transmitida — ou pelo
menos parte desta, como acontece hoje em dia, na maioria dos casos —
é necessário que a compreensão desta música seja reaprendida a partir
de suas próprias leis e regras. Precisamos saber o que a música quer
dizer, para compreender o que nós queremos dizer através dela. O saber
deve agora preceder o puro sentimento e a intuição. Sem este co-
nhecimento histórico, é impossível transmitir a música antiga, a chamada
“música séria”, de maneira adequada.
Quanto à formação dos músicos, esta se dava da seguinte maneira
em épocas anteriores: o músico formava aprendizes de acordo com a sua
especialidade; quer dizer, havia uma relação entre aprendiz e mestre na
música, similar àquela que, durante séculos, houve entre os artesãos. Ia-
se a um determinado mestre para aprender com ele o “ofício”, sua
maneira de fazer música. Tratava-se, antes de mais nada, da técnica
musical: composição e instrumento; a esta acrescentava-se a retórica, a
fim de se tornar a música eloquente. Sempre se pregou, especialmente
no barroco musical, desde cerca de 1600 até as últimas décadas do século
XVIII, que a música é uma linguagem de sons, que nela se trava um
diálogo, uma discussão dramática. O mestre ensinava ao aprendiz sua
arte, todos os aspectos desta arte. Ele não ensinava somente a tocar um

27
instrumento, ou cantar, mas também a interpretar a música. Nestas
circunstâncias, não havia problemas, a evolução dos estilos se
processava gradativamente, passando de uma geração à outra, de
maneira que qualquer mudança nos conceitos, nas ideias, não era uma
mudança propriamente dita, mas sim um crescimento e uma
transformação orgânicos.
Há em todo este desenvolvimento algumas interessantes rupturas
que passaram a questionar e modificar a relação mestre-aprendiz. Uma
destas rupturas é a Revolução Francesa. Dentre as transformações que a
Revolução promoveu, se distingue a função fundamentalmente nova que
passaram a ter a formação e a vida musical de modo geral. A relação
mestre-aprendiz foi então substituída por um sistema, por uma
instituição: o conservatório. Poder-se-ia qualificar o sistema deste
conservatório de educação político-musical. A Revolução Francesa tinha
quase todos os músicos de seu lado, e logo se percebeu que, com a ajuda
da arte, em especial da música — já que esta não trabalha com palavras,
mas sim com “venenos” de efeito secreto —, se poderia influenciar as
pessoas. Naturalmente que o aproveitamento político da arte para clara
ou imperceptivelmente doutrinar o “cidadão” ou o súdito já vem de longa
data; apenas isto ainda não tinha sido aplicado à música de forma tão
sistemática,
No método francês, tratava-se de integrar a música ao processo
político geral, através de uma minuciosa uniformização dos estilos
musicais. O princípio teórico era o seguinte: a música deve ser su-
ficientemente simples, para que possa ser por todos compreendida
(contudo, a palavra “compreender” perde aqui o seu sentido próprio); ela
deve tocar, excitar, adormecer... seja a pessoa culta ou não; ela deve ser
uma “língua” que todos entendam, sem precisar aprendê-la.
Estas exigências só foram necessárias e possíveis porque a música
da época precedente dirigia-se primeiramente aos “cultos”, às pessoas
que aprenderam a língua musical. A educação musical no Ocidente
sempre foi parte integrante e essencial da educação. Quando se
renunciou à educação musical tradicional, a comunidade elitista de
músicos e ouvintes cultos deixou de existir. A partir do momento em que
a música deve ser dirigida a todos, que o ouvinte não precisa mais
compreender nada da música, torna-se necessário eliminar qualquer
discurso que exija compreensão; o compositor precisa escrever uma
música que, da forma mais fácil e acessível possível, se dirija
diretamente à sensibilidade do público. (Os filósofos dizem a este

28
respeito: quando a arte nada mais faz do que agradar, ela serve apenas
para ignorantes.)
Nestas condições, colocou um termo na antiga relação
mestre-aprendiz no conservatório. Ele encomendou às grandes auto-
ridades da época obras didáticas, que deveriam realizar, na música, o
novo ideal de égalité (igualdade). Foi nesse contexto que Baillot
escreveu sua Arte do violino e Kreutzer seus Estudos. Os mais im-
portantes professores de música da França precisavam consignar as
novas ideias num sistema rígido. Tecnicamente, tratava-se de substituir
a retórica pela pintura. Foi assim que se desenvolveram o sostenuto, a
grande linha, o legato moderno. Evidentemente a grande linha melódica
já existia antes, mas constituída perceptivelmente de pequenas células
reunidas num bloco. Esta revolução na educação musical foi de tal forma
radicalmente levada adiante que, em algumas décadas por toda a Europa,
os músicos passaram a ser formados pelo sistema de conservatório.
Porém, o que me parece mais grotesco é que, ainda hoje, tenhamos
esse sistema como a base de nossa educação musical! Tudo o que era
anteriormente importante foi dissolvido.
É interessante realçar que o primeiro grande admirador da nova
maneira de se fazer música foi Richard Wagner. Ele regia a orquestra do
conservatório, e ficou entusiasmado ao ver como as arcadas dos violinos
se fundiam umas nas outras, como suas melodias eram amplas, e o que,
a partir daí, se poderia pintar com o auxílio da música. Em seguida,
repetiu constantemente que jamais havia alcançado tal legato com
orquestras alemãs. Estou convencido de que este método é perfeito para
a música de Wagner, contudo é absolutamente fatal para a música
anterior a Mozart. Estritamente falando, o músico atuai recebe uma
formação, cujo método é muito pouco compreendido, tanto pelo seu
professor, quanto por ele mesmo. Ele aprende os sistemas de Baillot e
de Kreutzer, que foram concebidos, para seus contemporâneos, e os
aplica à música de épocas e estilos inteiramente diversos.
Aparentemente, sem qualquer reflexão, são utilizados na educação
musical atual princípios teóricos que há cento e oitenta anos faziam
sentido, mas que, hoje em dia, não se compreendem mais.
Nos dias de hoje, onde a música atual é a música histórica (quer
queiramos ou não), a formação do músico deveria ser completamente
diferente e repousar sobre outros princípios. Esta formação não se
deveria restringir apenas ao ensino de onde colocar o dedo no
instrumento para produzir um determinado som, ou de como adquirir

29
virtuosidade. Uma formação demasiado técnica não produz músicos,
mas acrobatas insignificantes. Brahms dizia que para tomar-se um bom
músico era preciso empregar tanto tempo lendo, quanto estudando,
piano. Ainda hoje, isto é o essencial. Como executamos a música de
aproximadamente quatro séculos, precisamos, ao contrário dos músicos
das épocas anteriores, estudar as condições ideais para a execução de
cada gênero de música. Um violinista com a mais perfeita técnica de
Paganini e de Kreutzer não deveria acreditar-se “dono” das ferramentas
necessárias para executar Bach ou Mozart. Para tal, ele precisaria
conhecer as condições técnicas e o sentido da música “eloquente” do
século XVIII.
Tratamos aqui de apenas um lado da questão, pois o ouvinte
precisaria também aumentar e abranger seus conhecimentos. Sem o
saber, ele ainda é vítima da infantilização que se seguiu à Revolução
Francesa. Beleza e sentimento são para ele — assim como para a maior
parte dos músicos — os únicos componentes aos quais se reduzem a
percepção e compreensão musicais. Em que consiste a formação do
ouvinte? Na educação musical adquirida na escola e nos concertos aos
quais ele assiste. E mesmo aquele que não possui educação musical e
que nunca vai a concertos recebe, apesar disso, uma formação musical,
já que, atualmente, no mundo ocidental, não há ninguém que não ouça
rádio. Os sons que, cotidianamente, chegam ao ouvinte, formam-no
musicalmente, e, sem que ele o perceba, imprimem o valor e o
significado — positivo ou negativo — da música.
Ainda um aspecto do ponto de vista do público: a que concertos
vamos? Somente àqueles onde serão executadas músicas que co-
nhecemos. Este é um fato que pode ser comprovado por qualquer
organizador de concertos. Por mais que o programa desempenhe uma
função, o ouvinte só quer ouvir aquilo que já conhece. Isto tem a ver com
os nossos hábitos auditivos. Quando, no desenvolvimento de uma obra
musical, os efeitos são concebidos para que o ouvinte seja conduzido e
até mesmo literalmente dilacerado por essa obra, nesse caso, supõe-se
que nós não a conheçamos, a obra esteja sendo ouvida pela primeira vez.
Desta forma, o compositor pode, contrariando nossas expectativas, dar -
nos um choque, como por exemplo ao escrever a preparação de uma
cadência perfeita, que conduza a uma cadência interrompida; 1 só que

1Na terminologia alemã a cadência interrompida é denominada trugschluss — schluss


— cadência, final; Trug do verbo trügen = iludir, enganar sendo este um termo mais

30
uma cadência interrompida já conhecida não interrompe coisa alguma,
ela deixa de ser uma cadência interrompida. Existem infinitas
possibilidades dessa espécie e nossa música é justamente constituída
destes efeitos: conduzir o ouvinte à ideia da obra, ao seu conteúdo,
através de surpresas e choques. Porém, estas surpresas e choques não
mais ocorrem nos dias atuais: quando ouvimos uma sinfonia clássica, na
qual o compositor inseriu centenas de sustos desse tipo, nós já aguçamos
os ouvidos uns dois compassos antes da passagem em questão, para ouvir
“como ela deve soar”. Rigorosamente falando, se não fosse, talvez, pelo
como da execução, não haveria mais porque executar tal peça, pois afinal
ela já é tão conhecida, que é incapaz de suscitar qualquer susto, surpresa
ou encantamento. Ora, o encantamento, já não o sentimos tanto, pois não
queremos mais ser cativados, nem surpreendidos; nos interessa bem mais
extrair da música um certo prazer e saber: como será que esse ou aquele
músico irá tocar tal peça? Será que aquela “bela” passagem não poderia
ficar ainda mais bela tocada de outro jeito? Aquele ralentando não
poderia ser ainda mais ralentado, ou quem sabe, um pouco menos? E
assim, nessas pequenas comparações de diversas possibilidades se
esgota toda nossa audição musical e, com ela, chegamos a um estágio
ridicularmente primitivo de percepção. O desejo que possuímos —
totalmente estranho ao homem de outras épocas — de ouvir sucessivas
vezes uma obra que amamos, é suficiente para mostrar a diferença
essencial dos hábitos auditivos de ontem e de hoje. Estou certo de que
não há ninguém que queira deixar de repetir as obras que frequentemente
ouve, em favor de coisas novas. Somos como crianças que sempre
querem ouvir de novo a mesma fábula, pois se lembram de certos trechos
bonitos que guardaram na memória quando os descobriram pela primeira
vez.
Caso não consigamos despertar nosso interesse por aquilo que ainda
não conhecemos — seja antigo ou novo —, caso não consigamos
também recuperar a significação do efeito da música — efeito que atua
sobre nosso espírito e nosso corpo — é porque, então, a prática musical
terá perdido todo e qualquer sentido. Terá sido inútil o esforço dos
grandes compositores, quando preencheram suas obras com uma
expressão musical que, hoje, já não nos toca e sequer compreendemos.
Se eles houvessem desejado colocar nelas somente a beleza — a única

completo para a função da referida cadência. (N. do T.)

31
que tem, para nós, alguma significação, teriam poupado tempo, trabalho
e esforço.
O domínio técnico da música por si só não é suficiente. Creio que
quando conseguirmos que os músicos aprendam a linguagem, ou melhor,
as várias linguagens dos vários estilos musicais e que, na mesma medida,
os ouvintes possam ser levados, por sua formação, a compreender esta
linguagem, esta prática musical embrutecedora e estetizante não será
mais aceita, bem como a monotonia dos programas de concertos. (Será
que estas mesmas obras — tocadas igualmente em Tóquio, Moscou e
Paris — representam de fato a essência da música ocidental?) Como
consequência lógica, a separação entre “música popular” e “música
séria”, assim como entre a música e seu tempo, desaparecerá, e a vida
cultural irá encontrar novamente sua unidade.
Este deveria ser o objetivo da educação musical em nosso tempo. Já
que há instituições destinadas a este fim, deveria ser fácil mudar e
influenciar seus objetivos, dando-lhes um conteúdo novo. Do mesmo
modo que a Revolução Francesa conseguiu, com o seu programa do
conservatório, uma mudança radical na vida musical, a época atual
também poderia consegui-lo desde, é claro, que estejamos convencidos
da necessidade destas mudanças.

32
Um músico confronta-se, constantemente, com a questão de como
um compositor tentou fixar suas ideias e vontades e de como tentou
transmiti-las a seus contemporâneos e à posteridade. Percebe-se, fre-
quentemente, os limites dessas tentativas, e constata-se os esforços, de
vários compositores para expressar, de forma precisa, suas indicações,
evitando ambiguidade. Cada compositor desenvolve, então, sua escrita
pessoal, que só poderá ser decifrada, nos dias atuais, através de um
estudo baseado no seu contexto histórico. Contudo, é um erro fatídico
crer — como acontece em larga escala — que as figuras de notação, as
indicações de caráter e tempo, e as de dinâmica têm, ainda hoje, o mesmo
significado que antigamente. Este conceito errôneo sustenta-se pelo fato
de que, há séculos, vem sendo usado o> mesmo tipo de grafia musical;
o que se esquece, todavia, é que a escrita musical não é simplesmente
um método intemporal e internacional para transcrever a música, que
possa permanecer o mesmo com o correr dos séculos. Juntamente com
as mudanças estilísticas na música, com as ideias dos compositores e dos
executantes, transforma-se também o significado dos diferentes
símbolos da notação. Ela adquire um significado peculiar a cada época,
que pode, por um lado, ser estudado em obras didáticas, ou, por outro,
pode ser abstraído do contexto musical e filológico, o que. de certa
maneira, não exclui a possibilidade de haver conclusões incorretas. A
escrita musical é, portanto, um complicado sistema de códigos. Quem já
tentou colocar no papel uma ideia musical ou uma estrutura rítmica sabe
que é algo relativamente fácil de fazer. Quando, porém, se pede a um
músico para executar aquilo que foi escrito, percebe-se, de imediato, que
a execução não corresponde àquilo que a pessoa tinha em mente quando
escreveu.
Temos, portanto, uma escrita, que nos deve informar tanto a.
respeito de notas isoladas, quanto do desenvolvimento da obra musical.
Deveria ser claro para todo músico que esta notação é muito inexata, que
ela não nos indica com precisão as coisas que nos diz: nada informa a
respeito da duração de uma nota, sobre sua altura, nem sobre o
andamento, pois os critérios técnicos necessários a este tipo de
informação não podem ser transmitidos através da notação. A duração
de uma nota só poderia ser indicada e precisada através de uma unidade
de tempo; a sua altura só poderia ser representada através de uma

33
frequência; um tempo constante poderia ser fixado com a ajuda do
metrônomo — mas não existe tempo constante.
Não é surpreendente que obras tão diversas em sua essência e em
seu estilo, como, por exemplo, uma cena de ópera de Monteverdi ou uma
sinfonia de Gustav Mahler, sejam colocadas no papel com a mesma
escrita musical, com a mesma notação? Quando se tem consciência da
extrema diferença dos diversos gêneros de música, deve parecer no
mínimo curioso que se utilize, para a música de todos os estilos e de
todas as épocas, desde aproximadamente 1500, os mesmos signos.
Apesar dessa identidade dos signos gráficos, há dois princípios
básicos para sua utilização:

1. É a obra, a composição em si, que é notada, não sendo sua execução


indicada por esta notação;

2. É a execução que é notada, sendo a notação, ao mesmo tempo, uma


indicação da maneira de se tocar; ela não mostra (como no primeiro
caso) a forma e a estrutura da composição, mas sim a execução, tão
precisamente quanto possível: é assim que se deve tocar isso. A
partir de outras informações, devem-se encontrar a forma e
estrutura. A obra apresenta-se por si mesma, durante a execução, por
assim dizer.

Em geral, a música composta até cerca de 1800 é notada segundo o


primeiro princípio, o da obra e, em seguida, como indicação de
execução. Há, contudo, numerosas intercessões de um princípio no
outro: assim, por exemplo, as tablaturas (notação da situação dos dedos)
para certos instrumentos, já nos séculos XVI e XVII são verdadeiras
indicações de execução — mas que não representam a obra
graficamente. Estas tablaturas mostram exatamente onde o músico deve
colocar seus dedos da mão esquerda, ao dedilhar as cordas (de um
alaúde, por exemplo) — desta forma ocorrendo então na execução
sonora a música prevista. Quando examinamos uma tablatura, não
podemos de forma alguma imaginar sons. Vemos, apenas, diante de nós
as posições dos dedos, e este é o caso extremo de uma notação do
segundo tipo acima mencionado, indicativa da execução. Nas
composições posteriores a 1800, escritas com a notação habitual, isto é,
no sentido de exata descrição da execução musical (como em obras de
Berlioz, Richard Strauss e muitos outros), o resultado sonoro

34
corresponde às indicações; só com uma execução precisa destas notas,
respeitando-se todas as indicações, será possível que a música surja.
Se, ao contrário, desejamos executar uma música notada segundo o
princípio da obra, que é anterior ao limite que estabelecemos (cerca de
1800) falta-nos um “modo de emprego” preciso. Precisamos então
recorrer a outras fontes. Toda essa questão levanta, naturalmente,
também um grande problema pedagógico, pois aprende-se primeiro a
notação, para depois aprender-se a música propriamente dita, quer dizer,
a dar-lhe forma. A notação é tranquilamente ensinada como se válida
para todo tipo de música, e ninguém diz ao estudante que a música do
período anterior a este limite concernente à notação é para ser lida e
interpretada de maneira diversa da que foi composta em período
posterior. Há uma falta de conscientização geral, tanto por parte dos
professores como dos alunos, sobre o fato de que, em um caso, lida-se
com uma notação cheia de indicações prontas e precisas a respeito da
execução, ao passo que, no outro caso, lida-se com uma composição que
foi representada no papel de forma inteiramente diversa. Estas duas
possibilidades diferentes de leitura de uma única e mesma notação —
notação da obra e indicação do executar — deveriam ser explicadas a
todo aluno de música desde o início de seu aprendizado teórico,
instrumental e vocal. Do contrário, ele irá cantar ou tocar aquilo que “lá
está escrito” (uma exigência comum entre os professores de música), e
não pode absolutamente fazer justiça à notação da obra sem tê-la
analisado.
Talvez tudo isto possa ser explicado de forma mais clara com a
ajuda da noção de ortografia. Há uma ortografia musical que se origina
de tratados musicais, da teoria musical, da harmonia musical. Desta
ortografia musical resultam particularidades da notação; assim, por
exemplo, o fato de que ritardandos, trinados e apogiaturas, fre-
quentemente, não sejam escritos explicitamente na partitura, o que
sempre gera confusão: deve-se tocá-los ou não? Ou então quando a
ornamentação não é fixada: caso fosse ser escrita, estar-se-ia limitando
a fantasia criativa do músico; e esta é exatamente exigida na
ornamentação livre. (Para tocar bem um adágio, nos séculos XVII e
XVIII, um músico deveria improvisar livremente ornamentos que
correspondessem à expressão da peça e a reforçassem.)
Quando olho um trecho de música, procuro, em primeiro lugar, ver
a obra e constatar: como deve ser lida, o que significavam estas notas
para o músico daquele tempo? A notação das épocas em que não se

35
representava a maneira de tocar, mas a obra, exige de nós, nos dias
atuais, para sua leitura, o mesmo conhecimento que era requerido do
músico para o qual esta obra foi escrita na época.
Tomemos um exemplo que deve ser claro para todo músico atual: a
música de dança vienense do século XIX, uma polca ou uma valsa de
Johann Strauss. O compositor tentava integrar à notação o que na sua
opinião era indispensável aos músicos de orquestra sentados diante dele,
os quais sabiam exatamente o que era uma valsa ou uma polca e como
deveriam ser tocadas. Entregue a uma orquestra que não possua este
conhecimento, que não conheça estas danças, e cujos músicos toquem
exatamente o que está na partitura, a música que disto tudo resulta é
outra, totalmente diferente. Não se pode escrever esta música de dança
exatamente como deve ser tocada. Frequentemente é necessário atacar
uma nota um pouco antes ou depois, ou tocá-la mais longa ou mais curta
do que está escrito, etc. Poder-se-ia certamente tocar esta música de
maneira exata, metronomicamente exata, mas o resultado não teria
absolutamente nada a ver com a obra imaginada pelo compositor.
Se a compreensão correta da notação pode ser um problema já na
música de Johann Strauss, cuja tradição afinal não está tão distante assim
de nós, imagine-se como tudo fica muito mais problemático no caso da
música cuja tradição foi inteiramente perdida, a ponto de não se saber
mais como realmente a tocavam na época de; seus compositores.
Suponha-se que Strauss não fosse mais tocado durante um século, e
depois fosse “redescoberto” e executado, renovando-se o interesse por
sua música. É impossível imaginar-se como soaria! O mesmo, acredito,
deve acontecer com os grandes compositores dos séculos XVII e XVIII,
com cuja música não mais temos qualquer relação de continuidade, já
que suas obras não foram tocadas durante séculos. Não há ninguém que
possa afirmar, com toda certeza, como esta música deve ser decifrada,
como proceder quanto a seus detalhes, na execução.
Naturalmente, há muita informação a esse respeito nas fontes. Mas
cada um lê, no fim das contas, aquilo que ele próprio imagina. Quando
se lê nas fontes, por exemplo, que cada nota deve ser tocada com a
metade do valor indicado, isto pode ser entendido literalmente: cada nota
deve ser sustentada somente até a metade de seu valor, Poder-se-ia,
contudo, compreendê-lo de outro modo: com efeito, existe também uma
antiga regra que diz que toda nota deve terminar extinguindo-se aos
poucos. A nota nasce e morre como o som de um sino; ela termina
“perdendo-se”, sem que se possa escutar o final preciso, pois, a ilusão, a

36
fantasia do ouvinte, que prolonga a nota, são indissociáveis da
experiência real da audição. Deste modo não se pode determinar, com
exatidão, a duração de cada nota: pode-se considerar um som como uma
nota perfeitamente sustentada, ou também consideravelmente encurtada,
dependendo de se ter ou não em conta a ilusão.
Há, além disso, alguns casos., onde literalmente é impossível a
sustentação exata do som, estipulada na partitura, seja por motivos
técnicos ou por razões musicais; estes casos mostram, pelo menos, que
a escrita e a prática musical frequentemente diferem neste ponto, Como
exemplo claríssimo, temos a execução de acordes em instrumentos de
cordas (nos quais é tecnicamente impossível sustentar todas as notas) ou,
então, em instrumentos cujas notas não podem ser sustentadas por toda
a sua duração (como o piano, o cravo, e outros instrumentos de cordas
dedilhadas). Em um cravo ou alaúde, é impossível ouvir uma longa nota
sustentada até o fim; o que se ouve é apenas o ataque inicial de cada
nota, que depois vai sumindo — o resto dela é completado por nossa
fantasia; o som real se extingue. Esta extinção não quer dizer, contudo,
que o som cesse de existir mas que ele está sendo ouvido pelo “ouvido
interno”, até que entrada da próxima nota venha substituí-lo. Caso esta
nota continuasse a soar com toda a sua força, iria sem dúvida prejudicar
a transparência sonora da composição, além de que obscureceria a
entrada da próxima nota; pode-se constatar isto frequentemente nos
concertos de órgão (11o órgão, é possível teoricamente sustentar uma nota
tanto tempo quanto está indicado na partitura). A realidade (um som
sustentado) não é melhor que a imaginação e a fantasia (a ilusão deste
som); ao contrário, ela pode, em determinadas condições, atrapalhar e
confundir a compreensão do resto. Isto pode ser claramente ouvido na
Arte da Fuga de Bach, sobretudo nas fugas que comportam aumentação;
pode-se compreendê-las muito melhor num cravo do que num órgão,
apesar deste último poder sustentar rigorosamente as notas. No violino,
por exemplo, não existe acorde de quatro sons cujas quatro vozes possam
perdurar durante um com passo inteiro, pois no momento que se chega à
corda mi, não resta mais nada da nota do baixo na corda sol. Não se pode
fazer soar simultaneamente as notas do acorde, como está escrito, o que
quer dizer que a escrita musical deve ser considerada como uma imagem
gráfica da composição, e a execução como uma representação musical,
que deve corresponder às possibilidades técnicas e às possibi lidades de
assimilação por parte do ouvinte. Dito de outro modo. as notas do acorde
serão tocadas sucessivamente e não simultaneamente. O mesmo é válido

37
para as cordas, para o alaúde e, por vezes, também para o cravo e o piano,
quando um acorde nestes instrumentos ultrapassa a extensão da mão, ou
quando o cravista não deseja tocá-lo simultaneamente.
Não basta, portanto, munirmo-nos de obras didáticas históricas e
dizer: cada nota deve ser encurtada, cada nota tem sua força e sua
fraqueza. Mesmo se seguíssemos ao pé da letra as regras contidas nessas
obras, uma grande parte da música antiga poderia soar como uma
grosseira caricatura. Ela pareceria, sem dúvida, ainda mais desfigurada
do que se um bom músico a tocasse de forma “errada” por falta de
conhecimento. As regras dos tratados antigos só começam a tornar-se
interessantes para a prática a partir do momento em que as
compreendemos — ou pelo menos, quando cias fazem algum sentido
para nós, mesmo que ainda não compreendamos inteiramente seu sentido
original.
Tenho minhas dúvidas se uma total compreensão é possível nos dias
de hoje. É preciso termos em mente que os tratados foram escritos para
os contemporâneos dos autores, nos séculos XVII e XVIII, e que estes
autores podem ter imaginado que uma série de importantes
conhecimentos contidos em suas obras fossem evidentes e, por essa
razão, não tinham por que explicitá-los. Não foi a nós que dirigiram os
seus ensinamentos, mas aos seus contemporâneos. Todas estas
informações preciosas não fazem qualquer sentido para nós, a não ser
que tivéssemos os mesmos conhecimentos fundamentais das pessoas
daquela época. O não escrito, o suposto, seria, assim, de valor maior que
o escrito!
Considero, em todo o caso, que é comum, e possível, que o estudo
das fontes conduza a erros de interpretação, e as numerosas coletâneas
de citações publicadas nesses últimos anos nunca deveriam ser tomadas
como provas, pois poder-se-ia, com a mesma facilidade, provar o
contrário, com citações extraídas do seu contexto.
Gostaria, portanto, de alertar os músicos, dizendo-lhes que não
superestimassem a sua compreensão da música histórica. Somente
enxergando o sentido que se encontra por trás dos antigos escritos e
tratados, é que poderemos concluir alguma coisa sobre a interpretação
musical.
As informações que possuímos se originam de uma série de tratados
dos séculos XVII e XVIII. Quando lemos apenas um destes tratados,
como, por exemplo, o método de flauta de Quantz, achamos que já
sabemos uma porção de coisas. Mas, ao lermos um outro, encontramos

38
coisas bem diferentes, às vezes até contrárias. Quando se lê mais autores,
constata-se, então, muitas contradições em temas semelhantes; somente
comparando-se um grande número de tratados, é que se pode chegar à
conclusão de que estas contradições são apenas aparentes e, dessa forma,
alcançar uma imagem mais completa. Copiando-se diversas informações
lado a lado, observa-se com facilidade de que escola cada compositor
veio e qual a linha que seguiu. Música e prática musical não estavam de
forma alguma unificadas outrora. Um certo autor, por exemplo-, poderá
fixar-se naquilo que seu pai escreveu ou disse e a sua visão será mais
orientada para o passado. Já um outro poderá descrever os usos musicais
de um determinado lugar — ou ser influenciado por uma corrente
moderna. Tudo isto pode ser facilmente reconhecido na comparação de
tratados. Em princípio, percebe-se que as indicações mais óbvias não
figuram nestes textos. Uma determinada prática é codificada no momento
em que ameaça cair 11o esquecimento; ou então quando um adepto de
uma prática antiquada quer salvá-la. Um bom exemplo que nos permite
ver isso com muita clareza é a Défense de la basse de viole de Le Blanc.2
Há, naturalmente, também os autores que querem introduzir algo de
novo, e “vão à luta”, como o caso de Muffat que, no fim do século XVII,
quis mostrar e tornar conhecido o moderno estilo francês fora de seu país
de origem. Ele tentou resumir as características essenciais deste estilo, a
fim de torná-lo acessível aos músicos que não o conheciam. É preciso
também levar em conta as origens estilísticas de um tratado: se, por
exemplo, tocarmos uma obra de 1720 de acordo com indicações de 1756,
isto naturalmente fará pouco sentido. Todos estes elementos precisam
ser vistos de acordo com o seu contexto, e cada vez analisados e cri -
ticados de uma nova forma.
Se o exemplo de Johann Strauss, anteriormente mencionado, me
parece tão útil, é porque sua música, creio eu, ainda é tocada em Viena
na sua maneira original, natural e correta. Os músicos mais idosos
tiveram na sua juventude contato com gente que havia tocado sob a
regência do próprio Strauss e de seus sucessores. Nesta música, sabe-se
ainda espontaneamente — sem precisar de muitas reflexões — como o
jogo dinâmico de luz e sombra deve ser feito, onde é para se tocar mais
curto ou mais longo, enfim, de que maneira ela adquire o impulso

2
A defesa da viola da gamba contra as investidas do violino e as pretensões do
violoncelo, de Hubert Le Blanc, data de 1740, quando já se percebiam no horizonte os sinais
do declínio daquela em favor da ascensão destes. (N. da R.)

39
necessário à dança, e onde o espírito e o seu humor são encontrados. Na
música antiga, nos faltam estes conhecimentos — não existe uma
tradição contínua — somente as descrições nos permitem tirar
conclusões quanto aos tempi e aos refinamentos da execução musical que
não estão escritos. Nós sabemos muito pouco, pelo menos em termos de
sensação corporal, a respeito das danças antigas, que são muito
instrutivas para as questões de andamento. As regras dos passos de
dança, uma vez conhecidas, podem ser facilmente aplicadas à música.
Temos aí uma possibilidade concreta, fisicamente perceptível, de
interpretar a notação. As danças, que empregavam outrora muitos
elementos conhecidos por todos, como ritmos e tempi, são de
reconstituição relativamente fácil; podemos nos utilizar delas para tirar
conclusões a respeito da maneira de se tocar, do andamento, dos tipos de
acentuação, enfim utilizá-las como fonte de informações.
No restante da música é necessário achar o ritmo fundamental, o
andamento e a acentuação a partir da indicação de compasso e das barras
de compasso. Estas, por exemplo, não tinham qualquer outro sentido no
princípio do século XVII, a não ser o de simples orientação. Elas são
colocadas “não importa onde” (eu pelo menos ainda não descobri um
sentido). Somente no decorrer do século XVII é que a barra de compasso
foi colocada de maneira “correta”, como nós a conhecemos; e daí em
diante ela nos dá indicações muito importantes a respeito da acentuação
na música. Graças a ela, a hierarquia dos acentos — que já existia
implicitamente — oriunda da linguagem, torna-se um sistema visível.
Esta hierarquia é — como adiante esclarecerei de forma mais detalhada
— para a música dos séculos XVII e XVIII, talvez o dado mais
fundamental e importante. Ela expressa algo de muito natural, a saber:
(dito aqui de maneira muito esquemática), de acordo com o princípio da
acentuação na linguagem falada, com sílabas fortes e fracas, a algo de
pesado sempre sucede algo de leve, o que na música também acontece e
é expresso através da interpretação. É certamente por este motivo que os
instrumentos musicais (como os de corda, por exemplo) são construídos
de modo a permitir que esta alternância do forte e do piano, de leve e
pesado, possa ser executada da maneira melhor e mais natural possível.
Principalmente no que diz respeito ao arco barroco, a arcada para cima
será sempre mais leve e fraca do que a arcada para baixo. Por isso, os
tempos “bons” de um compasso (por exemplo em 4/4, o primeiro e o
terceiro) em princípio devem ser tocados com a arcada para baixo. Para
os de sopro há toda uma variedade de golpes de língua que exprimem

40
variações análogas e quanto aos de teclado, estes se valem de dedilhados
específicos para produzir efeito equivalente.
Os instrumentistas de hoje em dia afirmam com frequência que se
pode obter os efeitos desejados de outra forma; em alguns casos é
verdade, pois pode-se perfeitamente acentuar também uma arcada para
cima, se bem que o mais natural seja o inverso. Penso que, ainda hoje,
dever-se-ia primeiro procurar estas vias naturais, e só recorrer a uma
outra forma de execução caso os efeitos procurados não possam ser
expressos. Nos métodos de violino de Leopold Mozart e Geminiani, isto
está muito bem explicitado: o primeiro afirma que todo acento deve ser
feito com a arcada para baixo, e o segundo, que se deve também saber
fazer uma acentuação da outra maneira.
Na música de séculos anteriores, há regras escritas e não escritas,
que se presumia ser do conhecimento do músico daquele tempo; nós,
porém, precisamos fazer um esforço para obter novamente este
conhecimento. Uma destas regras diz o seguinte: toda dissonância deve
ser acentuada, sua resolução deve ser a ela ligada, e o som terminar se
perdendo. Muitos músicos — até mesmo aqueles que se ocupam bastante
da música antiga — não dão a atenção devida a esta importante e natural
regra e, com isto 1, omitem acentos interessantes que o compositor
colocou precisamente com a ajuda destas dissonâncias, quase sempre
contrários às regras habituais de acentuação; assim, algumas vezes deve-
se acentuar o quarto tempo (o que normalmente não ocorre), com o
acento morrendo no primeiro tempo, aquele que normalmente é
acentuado. Esta “perturbação” essencial é infelizmente negligenciada
pela maior parte dos músicos atuais.
Tomemos como outro exemplo dos diferentes significados da
notação, outrora e hoje, a maneira como é lida e executada uma figura
de notas pontuadas, hoje e no século XVIII. A regra moderna, oficial,
diz que um ponto deve acrescentar à nota exatamente a metade de seu
valor e que a nota curta que vem a seguir deve possuir o valor rítmico
deste ponto. Não há na nossa notação um método de representação que
permita diferenciar as infinitas possibilidades de execução de ritmos
pontuados; desde as notas de valores quase iguais até a mais incisiva
superpontuação; no papel, todos os ritmos pontuados são semelhantes,
qualquer que seja a sua significação. Está, porém, provado por diversos
livros e métodos das épocas as mais diversas, que há um número
praticamente incalculável de variantes para tocar estes ritmos pontuados,
as quais consistem essencialmente em prolongar o ponto. Isto quer dizer:

41
a nota curta após a pontuada deveria ser tocada depois do momento
“correto”, quase no último instante. A divisão habitual de hoje em dia
que corresponde à proporção de 3 para 1 era usada apenas em raras
exceções.
Nas interpretações “modernas” mantêm-se todos os valores de notas
rigorosamente segundo a sua duração exata (pelo menos aquela assim
considerada), e as figuras pontuadas são executadas com uma precisão
quase matemática. A razão pela qual se sublinha deste modo esta
exatidão rítmica é a seguinte: os músicos, por natureza — no que têm
razão —, possuem a tendência de tocar o ritmo de maneira pouco precisa,
o que faz com que o regente lhes exija uma precisão exagerada.
Sinais de articulação como pontos e ligaduras são também fre-
quentemente mal compreendidos, pois seus diversos significados na
notação anterior e posterior a 1800 não são suficientemente conhecidos
e, por isso, não lhes é dada a devida atenção. Nossa concepção está muito
ligada à música do século XIX, onde a liberdade criativa do intérprete
era limitada radicalmente pelo estilo autobiográfico da composição. Os
detalhes da interpretação eram fixados tão precisamente quanto possível,
cada nuance. cada pequeno ritenuto, a menor modificação de tempo, tudo
estava prescrito. Como a partitura continha informações de dinâmica,
tempo e fraseado, sem qualquer lacuna, os músicos habituaram-se a
traduzir em sons o texto musical, com todas as suas indicações, de
maneira praticamente servil. Esta maneira de se ler e tocar, se é
perfeitamente correta e válida para a música dos séculos XIX e XX, é
totalmente falsa para a música do barroco e do classicismo; mesmo assim
ela é largamente utilizada, por falta de conhecimento. O resultado se
torna ainda mais inexato, na medida em que os músicos do período
barroco faziam música com a priori inteiramente diferentes daqueles dos
músicos de hoje. As partituras do século XVIII quase não trazem
indicação de dinâmica, apenas algumas relacionadas ao andamento e
suas modificações, e praticamente nenhuma quanto à articulação e
fraseado Nas edições de música antiga do século XIX sempre eram
acrescentadas as indicações que estavam “faltando”. Nestas edições
encontramos, por exemplo, as grandes ligaduras ditas “fraseado” que
desfiguram gravemente a “linguagem” das obras e que praticamente as
transportam ao século XIX. Estava-se, então, consciente, de que era
preciso completar as ligaduras. O maior mal-entendido surgiu, no
entanto, na primeira metade do nosso século, com a onda de pretensa
autenticidade — as partituras antigas foram então “limpas” dos acrésci-

42
mos e mudanças feitos no século XIX, para serem executadas como se
dissecadas. Mas mantinha-se o princípio do século XIX, segundo o qual,
dentro do possível, tudo que o compositor houvesse escrito deveria estar
expresso na notação — e vice-versa: o que lá não figurasse não era
desejado pelo compositor e constituía-se numa deformação arbitrária da
obra. Os compositores barrocos e clássicos não podiam, contudo, ater-se
a esta regra, já que ela não existia em sua época. Para eles os princípios
da articulação, sobre os quais falarei mais adiante, estes sim eram
determinantes. Estes estão estreitamente ligados à problemática da
notação, pois exigem métodos de execução indicados apenas
ocasionalmente nas partituras a serem postos em prática pelo intérprete
segundo o seu gosto e concepção. Tais princípios encontram-se
claramente formulados por Leopold Mozart, entre outros: “Não é
suficiente que se toque estas figuras com o tipo de arcada indicada, deve-
se tocá-las de forma tal, que as mudanças (de arcada) não passem
despercebidas... É necessário não somente observar de forma muito
exata as ligaduras indicadas, mas também ... se nada estiver marcado, é
preciso que o próprio músico acrescente as ligaduras e os acentos, com
bom gosto e no lugar certo... Eu sentia muita pena, quando ouvia um
violinista já com uma certa formação... executar passagens muito
fáceis... de uma maneira tão oposta àquela concebida pelo compositor.”
Tratava-se,, portanto, por um lado, de respeitar uma articulação já
indicada através de pontos, arcadas e ligaduras — e, para isso, golpes de
arco ou golpes de língua não bastam; é necessário colocá-los em evi-
dência através de uma execução dinâmica — e, por outro, tratava-se
ainda de achar os modelos de articulação corretos, lá onde o compositor
nada escreveu a este respeito.
Em contradição com estas exigências, toca-se, já há algum tempo,
em muitos casos com partituras que foram “limpas”; e partindo desse
ponto cie vista da “autenticidade”, acontece das interpretações mais
vivas e imaginativas da música barroca e clássica serem tachadas com
frequência de “romantizadas” e estilisticamente falsas.
Problemas essenciais surgem também da notação de recitativos.
Quero aqui, antes de tudo, apontar a diferença entre o recitativo francês
e o recitativo italiano. Nos dois, ocorre um problema semelhante:
transportar para a música a melodia e o ritmo da linguagem. Os italianos
o fazem de maneira um tanto livre, de tal forma que o ritmo falado é
notado de maneira aproximada e, por causa da ortografia, sempre escrito
em compasso 4/4. Os acentos aparecem, então, em lugares de acordo

43
com o ritmo falado, o que pode acontecer no segundo, no quarto ou no
primeiro tempo de cada compasso. Os baixos, muito simples, são
colocados sob as outras vozes, em valores longos (está
incontestavelmente provado que estas notas longas devem ser
executadas curtas— mais um exemplo da diferença entre o texto notado
e a realização sonora desejada). Do cantor, espera-se que ele siga
exclusivamente o ritmo falado e não o escrito na partitura. É curioso que
sempre se conteste esta exigência muito clara, e que ela seja posta em
questão na montagem de óperas e no ensino de canto. Todos os tratados
que conheço falam em favor de um canto falado inteiramente livre, que
é notado num compasso 4/4, meramente por razões de ortografia. Assim,
Turk afirma, em 1787: “...A batida do compasso nos recitativos
puramente narrativos é um hábito absolutamente ridículo... é totalmente
contrário à expressão e demonstra grande ignorância do executante.”
Hiller escreve, em 1774: “É dada ao cantor... a possibilidade de querer
declamar lentamente ou rapidamente, e somente o conteúdo do texto...
deve servir-lhe de guia... É notório que o recitativo é cantado por todo
lado sem que o compasso seja respeitado.” Carl Philipp Emanuel Bach
escreve a esse respeito: “... Os outros recitativos se cantam sem levar em
conta o compasso, mesmo que a notação os tenha dividido em
compassos.” Enfim, o cantor é encorajado, constantemente, a falar muito
mais do que cantar num recitativo. Niedt: “... Este estilo deve aproximar-
se muito mais da fala do que do canto...” G. F. Wolf, 1789: “... Deve ser
um canto que se aproxime mais de um discurso, do que do próprio canto;
uma declamação musical.” Scheibe: “... Não se pode dizer do recitativo
que este seja um canto... mas sim... um discurso cantado.” E, por fim,
Rousseau na Encyclopédie: “... O melhor recitativo é aquele que é o
menos cantado.” (Este tipo de recitativo aparece com frequência na
música alemã.) Nos lugares onde o recitativo livre, com o ritmo baseado
na fala, deve ser interrompido, encontra-se a indicação a tempo ou outra
do mesmo gênero, o que significa que a passagem anterior não deve ser
executada rigorosamente no compasso, mas livremente, e que, a partir
daí, o compasso deverá ser novamente respeitado.
Este gênero de liberdade não corresponde de forma alguma ao
espírito racional dos franceses. Assim Lully — ele próprio italiano
retirou da patética linguagem dos atores franceses uma espécie de código
dos ritmos falados, que ele se esforça por representar de forma acurada
na notação. Desta tentativa, resultaram compassos complicados, em 7/4,
3/4, 5/4, completamente impossíveis de serem imaginados na ortografia

44
musical daquele tempo, onde se admitia apenas dois e quatro ou dois e
três ou quatro e três. Escrevia-se, então, 4/4 ou 2/2 ou 3/4; sendo o
compasso 2/2 exatamente duas vezes mais rápido.

Desta forma nos recitativos franceses encontra-se frequentemente


no espaço de cinco compassos, cinco diferentes indicações de compasso.
Por causa da sucessão de compassos 4/4, 3/4 e 2/2 formavam-se
compassos 7/4, 6/4, 5/4, 4/4 ou 3/4. Este sistema permite todas as
possibilidades, inclusive os compassos mais complexos, não se
esquecendo, aqui, de que o alia breve (2/2) deve ser, exatamente, duas
vezes mais rápido que o 4/4. Este sistema de notação muito preciso,
diferentemente do italiano, que corresponde ao gosto pela ordem dos
franceses, confere ao texto um maravilhoso ritmo escandido.
Eu talvez devesse ainda comentar a respeito de uma outra espécie
de notação “estenográfica”. Estritamente falando, um baixo contínuo
nada mais é que uma partitura estenográfica que mostra ao executante o
desenvolvimento harmônico da obra. O que ele tem que executar não é
fixado por esta escrita, depende simplesmente de seu conhecimento e de
seu bom gosto. As óperas francesas do século XVII e de parte do século
XVIII — ou seja, até Rameau — assim como um bom número de óperas
italianas, principalmente as venezianas, são de certa forma notadas
estenograficamente: quer dizer, são escritas de tal modo que o
executante só tem diante de si uma espécie de esqueleto da obra,
frequentemente contendo apenas a linha do baixo instrumental e a voz
do canto. Nas óperas francesas, a este acrescenta-se algumas vezes
indicações a respeito dos instrumentos a serem utilizados. Esta maneira
de escrever ópera dá ao intérprete numerosas possibilidades de
instrumentação, o qual comporá a tessitura orquestral de acordo com o
seu gosto e circunstâncias. Conservamos conosco certas partes de
orquestra assim elaboradas por ocasião de algumas execuções
contemporâneas e elas nos permitem interessantes comparações entre

45
estas execuções, verdadeiramente históricas, que divergem
consideravelmente umas das outras. Encontramos, então, uma mesma
ópera ora instrumentada com. trompas e trompetes na orquestra e ora
com uma pequena orquestra de cordas somente; e em cada material de
execução as vozes intermediárias são completamente diferentes;
algumas vezes uma determinada obra é realizada com apenas três vozes
e outras, com cinco.
Esta diversidade se origina do fato de que o compositor escrevia
apenas as vozes extremas, deixando todo o resto à responsabilidade do
executante. Infelizmente, não podemos estudar com muito rigor a
utilização destas possibilidades na ópera italiana, pois pouquíssimo
material de orquestra sobreviveu aos anos, ao contrário dos materiais
franceses dos séculos XVII e XVIII, que chegaram até nós. O princí pio
é o mesmo num caso e no outro. Há também partituras italianas cujas
linhas para as vozes instrumentais são deixadas vazias; o executante tem,
nestas, a possibilidade de completar a partitura orquestral nas passagens
em questão. Isto não era feito normalmente pelo compositor, mas
considerado como parte da própria execução. Obra e execução eram duas
coisas claramente separadas. O espaço criador do intérprete, através do
qual cada execução tornava-se um acontecimento único, não renovável,
é hoje em dia totalmente estranho ao músico que na maioria das vezes
nem mesmo a consciência desse fato tem. Contudo, para ser possível
realizar uma execução mais ou menos adequada deste tipo de música
teríamos que ressuscitar alguns dos conhecimentos, outrora evidentes,
desse gigantesco tesouro e fazer com que os músicos de hoje deles
compartilhassem, e não só os chamados “especialistas” de música antiga.
Mesmo que a questão de uma execução estilisticamente correta fique
para sempre insolúvel (graças a Deus!) — pois a notação é demasiado
ambígua — estaremos sempre à sua procura e descobrindo novas facetas
nas grandes obras-primas.

46
Articulação é o nome dado ao processo técnico do falar, a maneira
de proferir as diversas vogais e consoantes. De acordo com o Lexikon de
Meyer (1903), articular é “dividir, expor algo ponto por ponto; fazer com
que as partes separadas de um todo apareçam claramente, sobretudo os
sons e as sílabas das palavras. Na música, compreende-se por articulação
o ligar e o destacar das notas, o legato e o staccato, bem como a sua
mistura, para a qual muitos empregam abusivamente o termo fraseado”.
Deparamo-nos com o problema da articulação principalmente na música
barroca, mais precisamente na música de 1600 até 1800, pois esta é
fundamentalmente orientada pela linguagem. Os paralelos com a
linguagem foram acentuados por todos os teóricos daquele tempo, e a
música era frequentemente descrita como uma “linguagem de sons”.
Grosso modo, eu diria que a música anterior a 1800 fala e a música
posterior a esta pinta. Uma delas precisa ser compreendida, pois tudo o
que é dito pressupõe uma compreensão, enquanto a outra se expressa
através de atmosferas, sensações, que não precisam ser compreendidas,
mas sentidas.
A articulação musical (na música dos séculos XVII e XVIII) era,
por um lado, algo óbvio para o músico que deveria orientar-se apenas
pelas regras gerais de acentuação e de ligação, quer dizer, pela
“pronúncia” musical; por outro lado, existiam — e existem para
determinadas passagens que o compositor desejaria que fossem
articuladas de maneira particular, alguns signos (pontos, traços verticais
e horizontais, linhas onduladas, ligaduras) e palavras (spiccato, staccato,
legato, tenuto, etc.) que mostram a execução desejada. Temos aqui o
mesmo problema tal como ocorre na notação: os sinais de articulação
continuam os mesmos através de séculos, inclusive no período posterior
a 1800, mas o seu significado está sempre passando por mudanças
radicais. Caso um músico não conheça o caráter falado, dialogado da
música barroca, e leia os sinais de articulação desta música como se
fossem escritos no século XIX, o que ocorre com frequência, sua
interpretação irá (desgraçadamente) pintar em vez de falar.
Todos nós sabemos como se aprende uma língua estrangeira; para
nós, a música barroca é também uma língua estrangeira, pois não somos
mais homens do barroco. Precisamos então, tal como se aprende os
vocábulos, a gramática e a pronúncia de uma língua estrangeira, na
música, aprender a sua articulação, a harmonia e os princípios que regem

47
as cesuras e os acentos. Mesmo que nos utilizemos destes princípios na
execução musical, isto não quer dizer que já estamos fazendo música de
fato; é antes como se soletrássemos os sons em vez de tocá-los. Talvez
se soletre bem e até com graça, mas música, só a estaremos realmente
produzindo a partir do momento em que não pensarmos mais na
gramática e nos vocábulos, quando não necessitarmos mais traduzir, mas
pudermos simplesmente falar. É preciso que ela se torne a nossa língua
própria e natural. É este o objetivo. Tratemos então agora de aprender a
“gramática” da música antiga. Infelizmente nem sempre são os bons
músicos que se esforçam neste sentido, e encontramos frequentemente
músicos que, por certo, conhecem a gramática musical, mas que —
esclerosados como professores de linguística — acabam por í:raduzi-Ia.
Não se deve, por isso, “culpar” as regras, sem as quais não poderíamos
seguir em frente.
Na música barroca, tudo é ordenado hierarquicamente, tal como
acontecia outrora em todos os outros domínios da vida. Não quero
discutir aqui se tal hierarquia é boa ou não — muito já foi dito e escrito
a respeito —, mas apenas constatar que ela existe. Há notas “nobres” e
notas “comuns”, notas boas e notas ruins. (Acho muito interessante,
tanto no que diz respeito à música como também à organização social, o
fato de que esta hierarquia não mais aconteça depois da Revolução
Francesa.) De acordo com os autores musicais dos séculos XVII e XVIII,
temos, em um compasso 4/4, notas boas ou ruins, nobiles ou viles: assim,
o primeiro tempo é nobre, o segundo ruim, o terceiro não tão nobre e o
quarto tempo é miserável. Os termos nobre e comum dizem respeito,
naturalmente, à acentuação e se traduzem assim:
um — dois — três — (quatro)

(nobiles = n, viles = v. Não é por mero acaso


que estes dois sinais, já empregados desde muito
cedo, se assemelham aos sinais de arco para baixo
∏ e arco para cima V.)

A curva da dinâmica

Este esquema de acentuação, que se assemelha a uma curva de peso,


é um dos pilares da música barroca. Ele se encontra aumentado e se
aplica, portanto, a grupos de compassos (um “bom” grupo é seguido de

48
um grupo “ruim”), Podemos superpor a mesma curva tanto sobre um
compasso, como também estendê-la por todo um movimento, até mesmo
por toda uma obra, conferindo-lhe uma estrutura clara e reconhecível de
tensão e descontração. Esta curva de acentuação do compasso pode ser
também diminuída, valendo então para passagens tanto em colcheias
como em semicolcheias. Disto resulta uma complexa formação de
hierarquias, regidas a cada vez pelo mesmo princípio de ordem. Este tipo
de ordem podemos observar por todo lado no barroco; existe uma
unidade de concepção da arte e da vida.
Contudo, seria muito monótono se toda a música barroca se
orientasse a partir deste esquema de acentuação. Seria quase tão mo -
nótono — um termo totalmente estranho ao barroco — quanto todas
estas execuções atuais de música barroca interpretadas com uma
igualdade verdadeiramente mecânica. As duas maneiras são erradas e
monótonas, pois após o décimo compasso sabe-se perfeitamente o que
irá acontecer na próxima meia hora. Graças a Deus, há algumas
hierarquias superiores que quebram esta monotonia da acentuação: uma
das mais poderosas é a harmonia. Uma dissonância precisa ser sempre
acentuada, mesmo que ela se encontre num tempo fraco; a resolução da
dissonância — e toda dissonância tem sua resolução — não pode ser de
forma alguma acentuada, do contrário, deixaria de ser uma “resolução”.
Podemos sentir isto fisicamente: quando sentimos uma dor que aos
poucos vai passando, nos advém uma sensação de leveza no momento
em que a dor se extingue completamente. (Leopold Mozart se utiliza no
seu método de violino de uma bela expressão para a maneira pela qual
este tipo de resolução deve ser executado: “se perdendo”.) Aqui já temos
uma forte contra-hierarquia que dá de imediato, à hierarquia principal,
ritmo e vida. É como urna estrutura, um esqueleto, um esquema que
possui uma ordem fixa. Esta ordem estabelecida será sempre
interrompida pelas acentuações das dissonâncias.
Há ainda duas outras sub-hierarquias que vêm perturbar de maneira
interessante a acentuação principal: o ritmo e a ênfase. Caso uma nota
curta seja seguida de uma mais longa, esta última será em princípio
acentuada, mesmo que caia num tempo “ruim”, fraco, sem acentuação;
com isto, os ritmos sincopados e saltados estarão sendo salientados.

49
A acentuação de ênfase recai sobre notas que constituem
culminâncias melódicas (o cantor tem, portanto, razão quando muitas
vezes acentua as notas agudas, inclusive prolongando-as um pouco
mais). Vemos, assim, como um grande número de “contra-hierarquias”
se junta à estrutura fundamental estabelecida pela hierarquia do
compasso, de modo a romper muito interessantemente a ordem e não
deixar que a monotonia invada a peça.
As “diminuições” das regras de acentuação anteriormente men-
cionadas e sua aplicação a grupos de colcheias e semicolcheias compõem
a própria articulação. A ligação a separação de notas isoladas e de
pequenos grupos ou figuras são, no caso, os meios de expressão. Ternos
para a articulação alguns sinais de pronúncias; a ligadura, o traço
vertical, o ponto. Estes sinais eram, contudo, pouco utilizados. Por quê?
Porque sua utilização era incontestavelmente óbvia para o músico, que
os manipula com o mesmo desembaraço com que nos comunicamos em
nossa língua materna. O acaso fez com que Johann Sebastian Bach
tivesse quase sempre, enquanto foi professor e Kantor na Thomasschule,
músicos jovens e inexperientes que, sem dúvida, não sabiam ainda como
articular e só por esta razão — para descontentamento de seus
contemporâneos que em absoluto concordavam com tal solução — é que
ele anotou em muitas de suas obras a articulação completa. Graças a isso,
nos deu uma série de modelos, que nos ensinam a articular na música
barroca e a nos expressarmos na linguagem dos sons. Podemos, através
destes modelos, articular de maneira a fazer sentido, não só obras de
Bach, mas também todas aquelas escritas por compositores desta época,
que chegaram a nós com muito pouca ou nenhuma indicação da
articulação a ser executada. Não podemos de modo algum tocá-las de
maneira não articulada e sem uma certa desigualdade.
Quando falamos de articulação, é preciso começar pela nota isolada.
Leopold Mozart descreve claramente a sua execução: “toda nota, mesmo
a que é tocada mais forte, é precedida por um pequeno e quase
imperceptível momento mais fraco: caso contrário, esta não seria uma
nota, mas um ruído desagradável e incompreensível. Este pequeno
momento fraco deve também ser ouvido ao fim de cada nota.” Em outro
trecho: “Tais notas devem ser tocadas fortes e de maneira a que se
percam progressivamente 11o silêncio, sem qualquer pressão. Como o
som de um sino... se perdendo pouco a pouco.” Ele diz que é necessário
sustentar o som quando as notas são pontuadas, mas diz ao mesmo tempo
que o ponto “ . . . está ligado à nota de maneira a perder-se, também ele,

50
progressivamente, no silêncio”. Esta contradição aparente é um exemplo
típico de como um tratado pode ser interpretado de maneira errada, à
custa de pequenos mal-entendidos. Algumas pessoas se utilizam desta
indicação de Mozart, segundo a qual é preciso sustentar as notas, como
uma “prova” de que já naquela época se deveria tocar sostenuto um valor
de nota dado, ou seja, com uma intensidade regular. Mas, aparentemente,
o “som de sino” era, outrora, uma evidência comumente admitida, sendo
o “sustentar” uma maneira de indicar que a nota seguinte não deveria ser
atacada muito precipitadamente. Para sustentar uma nota em fortíssimo
(como hoje comumente se faz) seria necessário que nas antigas partituras
ela estivesse indicada por tenuto ou sostenuto. Nestes casos, precisamos
refletir sobre o que está subentendido, e também levar em conta que os
autores antigos não escreviam para nós, mas para os seus contempo-
râneos. Frequentemente, para nós, o mais importante é exatamente
aquilo que não foi escrito, pois eles não escreviam o que era por todos
sabido, o óbvio. Não existe nenhuma obra didática que se possa, hoje em
dia, tomar como fonte de todas as informações necessárias. É necessário
ser muito cauteloso na análise de citações, e é de suma importância que
se leve em conta o contexto geral. As “contradições” são sempre mal-
entendidos.
Uma nota isolada se articula (se pronuncia), então, como uma sílaba
isolada. Os organistas perguntam, frequentemente, como se pode tocar
no órgão uma nota cujo som termina se perdendo. Creio que, neste caso,
o espaço desempenha papel importante. Todo órgão está integrado a um
espaço e para um bom fabricante de órgão o espaço faz parte do
instrumento. Outrora, até cerca de trinta ou quarenta anos atrás, pensava-
se que o órgão fosse o instrumento do sostenuto por excelência. Nas
últimas décadas, entretanto, reconheceu-se que o órgão era capaz de uma
execução extremamente “falada” e que os bons órgãos antigos tinham
um processo de produção de som que possibilitavam um tipo de curva
de som de sino. Os melhores organistas sabem, tocando em bons órgãos
e em lugares adequados, o momento exato e a maneira de soltar uma
nota, dando a impressão de um som que se extingue, de um sino, valori -
zando, assim, o aspecto falado da execução. É de fato uma ilusão
(análoga ao toque “duro” ou “macio” de um pianista), mas em música o
que realmente conta é a ilusão, a impressão que se apodera do ouvinte.
O fato técnico (o som de órgão não conhece diminuendo, o toque no
piano não pode ser duro ou macio) é absolutamente secundário. Observa-
se continuamente que os grandes músicos eram também técnicos

51
empíricos em acústica. Eles sabiam de imediato o que era necessário
fazer em cada espaço, como se devia tocar neste ou naquele local;
estabeleciam sempre a relação entre espaço e música.
Uma nota isolada na música posterior a 1800 me parece bidi-
mensional em seu sostenuto, plana, enquanto que o som ideal da música
mais antiga, pela sua dinâmica interior, adquire um corpo e é, portanto,
tridimensional. Os instrumentos também correspondem a esta concepção
ideal do som plano ou eloquente — diferença que se percebe claramente
quando se escuta a mesma frase tocada por um oboé barroco e por um
oboé moderno. Logo compreendemos, então, a ideia que está na base das
sonoridades desses dois instrumentos.
Passemos, agora, aos grupos de sons ou figuras; como devem ser
tocadas as notas rápidas, tais como colcheias, num compasso allabreve (
) ou semicolcheias num allegro em 4/4 ( C )? De acordo com a
concepção do ensino atual, as notas de valor igual devem ser
tocadas/cantadas com a maior regularidade possível — como pérolas,
todas rigorosamente iguais! Após a Segunda Guerra Mundial, algumas
orquestras de câmara aperfeiçoaram este princípio, estabelecendo-se a
partir daí um determinado estilo d" tocar semicolcheias que despertou
grande entusiasmo por todo o mundo (a esta maneira de se tocar foi dado,
como não poderia deixar de ser, o nome mais descabido que se possa
imaginar: “o golpe de arco Bach”). No entanto, no que diz respeito à
eloquência, ao falado em música, esse modo de tocar não expressa coisa
alguma. Ele tem algo de mecânico, mas como nosso tempo está todo
voltado para a máquina, não se percebeu o quanto há nele de errado.
Contudo, estamos agora à procura do que é correto. O que se deve fazer,
então, com estas semicolcheias? A maioria dos compositores não es-
creveu nenhum sinal de articulação em suas partituras. Bach é uma
exceção e nos deixou, como já mencionamos, muitas obras com
indicações precisas. Na parte instrumental da ária do baixo da Cantata
47, por exemplo, ele articula um grupo de quatro notas colocando um
ponto sobre a primeira e ligando as outras três. Entretanto, na mesma
cantata essa figura — onde se acha o texto: “Jesu, beuge doch mein
Herze” —, toma a voltar e, desta vez, as notas estão ligadas duas a duas.

52
Eu, pessoalmente, acho este exemplo de grande importância, pois
Bach, aqui, diz: não há apenas uma articulação correta para uma
determinada figura musicai, mas várias; e, ainda por cima, no caso em
questão, simultaneamente! É claro que há também possibilidades que são
absolutamente falsas; cabe a nós encontrá-las e eliminá-las. Em todo
caso observamos que na mesma peça o compositor desejou
expressamente duas articulações diferentes para o mesmo trecho. E o
ponto de articulação nos mostra bem o quanto Bach exigia estas duas
variantes precisas.
Isto nos leva a uma outra reflexão. Na pintura a óleo com veladura
a cor é transparente; é possível, nela, vermos uma camada através de
outra e de tal sorte que chegamos a ver, através de quatro, cinco camadas
o desenho embaixo. O mesmo acontece com a nossa audição no caso de
peças bem articuladas; levamos nossos ouvidos a passear nas
profundidades e lá escutamos claramente as várias camadas que se
fundem num todo. Ao fundo percebemos o “desenho”, o plano; passando
a outra camada iremos encontrar as acentuações das dissonâncias e numa
próxima, uma voz de dicção doce, enquanto na seguinte, uma outra voz
estará sendo articulada forte e rigidamente; tudo isto sincronizado,
acontecendo simultaneamente. O ouvinte não pode, de imediato,
perceber a totalidade do conteúdo da obra, mas ele caminha por entre as
várias camada? e ouve constantemente algo diferente. A existência
destes múltiplos níveis é de enorme importância para a compreensão
desta música que não se satisfaz com uma simples concepção plana,
monótona.
Encontramos, frequentemente, em partes vocais da obra de Bach,
situações semelhantes à anteriormente mencionada, onde a parte vocal
possui uma articulação radicalmente oposta à do instrumento de
acompanhamento. Estas diferenças são, nos dias de hoje, frequentemente
consideradas um “erro” do compositor, e infelizmente “corrigidas”. Para
nós, é difícil entender e aceitar esta multiplicidade do barroco, o
acontecer de diversas coisas ao mesmo tempo; nós queremos a ordem do

53
tipo mais fácil. Contudo, no século XVIII, procurava-se a plenitude, o
excesso; por onde quer que se escute, recebe-se uma informação; nada é
uniformizado. Observamos as coisas de todos os lados ao mesmo tempo!
Não existe uma articulação sincronizada para todos os instrumentos
tocando colla parte. A orquestra articula de maneira diferente do coro.
A maior parte dos “especialistas do barroco” não tem consciência disto,
eles querem sempre nivelar, ter tudo o mais igual possível, escutam a
música como belas colunas sonoras bem alinhadas, e não em sua
diversidade.
Esta diversidade na articulação não se dá somente entre partes
vocais e instrumentais, mas também no seio da própria orquestra, entre
as diversas vozes. Há numerosos exemplos nas vozes instrumentais na
Missa em Si Menor e na Paixão segundo São Mateus, onde uma mesma
passagem é articulada diferentemente nas diversas vozes. Tanto nos
parece impossível esta concepção, sequiosos que somos de uma ordem
perfeita, como tanto ela soa, na prática, bela, eloquente e variada.
O que significa então a ligadura para os instrumentos de corda,
sopro, teclado, ou ainda para a voz de um cantor? Significa, fun-
damentalmente, que a primeira nota sob a ligadura é acentuada e mais
longa, e que as notas seguintes deverão ser tocadas mais suavemente.
Este é o princípio. (Vê-se, portanto, que não se trata de notas “regulares”,
como pede atualmente o nosso ensino oficial de música.) Naturalmente
há exceções, mas este processo é a regra. Após 1800, a ligadura é
utilizada de outra forma bem diferente. Ela não é mais uma indicação
de pronúncia, mas sim uma indicação técnica. Neste sentido, é inútil
e nada diz à música barroca. Caso não reconheçamos esta diferença
de significação da ligadura, pouco importará a existência ou não
delas, pois hoje em dia, os músicos se esforçam po r tornar a
articulação inaudível, de tal sorte que a coisa fique soando, como se
sobre toda a obra houvesse uma grande ligadura de legato.
Na música barroca, o significado fundamental da ligadura é a
acentuação da primeira nota. Como já foi anteriormente mencionado,
aqui a hierarquia da acentuação 110 compasso será perturbada através
da articulação e da dissonância. E é justamente esta perturbação que
é interessante; da mesma forma que uma perturbação provoca na ostra
o nascimento de uma pérola, no ouvinte, ela suscita uma atenção
permanente. Costuma-se constantemente escrever que o ouvinte é
transformado pela música. Isto só será possível, se a música atuar
sobre ele física e espiritualmente. Tomemos como exemplo um acorde

54
de sétima da dominante. No momento em que este é ouvido, sente -se
uma tensão que é também corporal: a dissonância exige uma
resolução — que, quando alcançada, produz uma sensação de bem-
estar e relaxamento. Exatamente com estes elementos corporais —
movimento, contração, descontração — é que o compositor trabalha.
Não há como escapar dos movimentos corporais quando se ouve
música; isto pode ser sentido por cada um de nós e também observado
nas salas de concerto. Isto é parte da vivência musical. Donde se
conclui que todo esse problema da articulação não é uma questão só
da execução, mas também do ouvir. Uma música bem articulada será
ouvida de maneira bem diferente do que outra tocada “plana”, sem
relevos. Ela se dirige a nossa sensibilidade corporal, ao nosso senso
de movimento, exigindo do espírito e do intelecto uma audição ativa,
dialética.
Um sinal de articulação muito importante é o ponto. Normal -
mente, se pensa que o ponto diminui a duração de uma nota, já que
essa é a regra atual. Muitos musicólogos denominam -no, nas revisões
de edições de música, “ponto de abreviação”; termo, entre tanto, que
nunca existiu no barroco. Em várias passagens onde Bach coloca
pontos, observa-se que estes anulam exatamente aquilo que ali seria
normalmente feito sem eles. Assim, em passagens onde se tocaria
largo, um ponto pode significar o encurtamento das notas, em outras,
onde se tocaria normalmente notas muito curtas, o ponto pode
exprimir uma exigência de certo peso sobre cada nota.
Frequentemente, pode-se considerar o ponto como um tipo de indica-
ção de acentuação, e ele pode até mesmo significar um ligeiro alon -
gamento de cada nota. Em muitos casos, os pontos querem sim -
plesmente dizer: aqui não é para ser ligado! — ou então, frequen-
temente, significam que em uma determinada passa gem as notas
devem ser tocadas de maneira regular e não com uma desigualdade
rítmica (inégale). O princípio hierárquico da música barroca não atua
somente na oposição forte-piano, forte-suave, mas também na
diferença de duração entre as notas um pouco longas e um pouco mais
curtas. Caso haja pontos sobre estas notas, este tipo de dife renciação
será suspenso. Os pontos tornam, neste caso, todas as notas iguais.
Finalmente, os pontos aparecem também em passagens onde o
compositor quer claramente mostrar que ali a ligadura terminou. É
provável que todos nós já tenhamos visto a escrita de Bach e de outros
compositores barrocos; quando eles escrevem uma ligadura, esta quer

55
dizer: aqui é para ser ligado e o executante sabe como; um ponto,
contudo, põe fim a esta ligadura de maneira bem precisa. É preciso
também levar-se em conta que uma ligadura feita à mão — na maioria
das vezes às pressas — nunca poderá ter a precisão daquela que é
impressa. O músico precisa então decidir, de acordo com cada caso,
como o compositor teria concebido esta ou aquela ligadura; existe
para isto uma espécie de ortografia, de convenção, e ao mesmo tempo
de todo manuscrito emana um poder de sugestão quase mágico.
Estando a ligadura sobre um grupo maior de notas, o que aparece
com frequência em Bach e seus contemporâneos, isto quer di zer o
seguinte: aqui o músico deve articular como está acostumado a fazê -
lo; pede-se ao intérprete uma execução apropriada. Uma ligadura bem
grande pode também significar — e a isso se precisa prestar bastante
atenção — uma subdivisão em várias pequenas ligaduras.
Disse, anteriormente, que uma dissonância deve estar sempre
ligada à sua resolução. Esta é uma regra muito estrita, que hoje em
dia infelizmente não é respeitada. Há, porém, algumas obras, onde os
pontos se acham sobre a dissonância e a resolução — só mesmo no
caso de desejar certo efeito especial, poderia o compositor pensar em
quebrar uma regra — de tal maneira que ambas têm de ser acentuadas.
Para o ouvinte da época, isso com certeza deveria pro duzir um efeito
de surpresa, pois acentuar também uma resolução é coisa inteiramente
contrária à língua falada. Isso soaria como uma palavra que se
acentuasse erradamente para dar-lhe um peso particular, como, por
exemplo, acentuar-se uma sílaba que não seja a tônica.
Os termos spiccato & staccato aparecem com muita frequência na
música de Bach e Vivaldi. Ainda hoje utilizamos esta termino logia,
mas com outro significado. Spiccato atualmente quer dizer “saltado”
e é uma indicação relacionada à técnica de arco. Até a fundação do
Conservatório francês a palavra queria dizer apenas separado,
destacado, tal como staccato. Não se aplicava a uma maneia particular
de se tocar separado, mas apenas queria dizer que, numa grande linha,
não se deveria tocar legato e tampouco cantabile; as notas deviam ser
separadas. Frequentemente, encontramos a indicação “largo e
spiccato” sobre valores de notas longas. Indicação incompreensível
para o músico atual, até mesmo contraditória, pois largo (um tempo
lento com valores de notas longas) e spiccato (arco saltado) são
incompatíveis. Na acepção original, esta indi cação significa

56
simplesmente um movimento lento, onde as notas não devem ser
ligadas umas às outras.
Em prelúdios e outras peças 110 estilo de fantasia, os grupamen-
tos formados pelas ligaduras nem sempre coincidem com os grupa -
mentos métricos como, por exemplo, ligaduras de três em três em
grupos de quatro notas. A partir daí, se origina um outro elemento
oposto à acentuação hierárquica e surge um novo ritmo na obra. Uma
subversão com um encanto extremamente perturbador. Pelo fato de
haver uma superposição de diversas “hierarquias”, a estrutura rítmica
ordenada parece por alguns momentos desmoronar -se. Podemos
compreender por que Hindemith dizia que o ritmo das obras para solo
de Bach era tão rico.

Diferentes articulações podem transformar uma mesma passagem


a ponto de torná-la irreconhecível; do mesmo modo a estrutura
melódica de um trecho pode tanto parecer mais clara através da
articulação, como inteiramente obscura. Isto quer dizer que po demos
alterar enormemente uma passagem com um simples deslocamento da
posição das ligaduras, impondo-lhe então um novo modelo rítmico e
provocando uma incrível transformação da sequência melódica.
Ouvimos, por exemplo, muito mais o ritmo de imitações de motivos
do que a sua sequência melódica. Pode-se fazer reconhecer uma
imitação apenas através de seu elemento rítmico. Com a articulação
possuímos, portanto, um meio tão poderoso que podemos até
extinguir a melodia. Quero aqui deixar bem claro que a articulação é
o meio de expressão mais importante que possuímos para a música
barroca.
Agora algumas palavras a respeito da dinâmica. Sobre inter-
pretação, o que todo músico se pergunta inicialmente é: como são as
nuanças? (e por isso ele entende forte, piano etc.) Mas, o que que é
forte, o que que é doce? É aquilo que é considerado hoje em dia o
elemento determinante de uma interpretação. Contudo, na música
barroca este gênero de dinâmica tem apenas uma im portância
secundária. Uma obra desta época não será praticamen te alterada
sendo tocada forte ou fraco. Poderíamos, em muitos casos,

57
simplesmente inverter a dinâmica, quer dizer, tocar piano os trechos
forte, e forte as passagens piano. Caso sejam tocadas bem e de maneira
interessante, mesmo com esta mudança de dinâmica, musicalmente
farão sentido. Conclusão: não há uma dinâmica integrada à
composição. Naturalmente a dinâmica vai tornando-se, após 1750,
cada vez mais um elemento essencial à composição. Contudo, no
período barroco ela não desempenha este papel; a dinâmica desse
período é a linguagem. Ela é uma microdinâmica que se aplica às
silabas e palavras isoladas. Esta foi no período barroco um elemento
de extrema importância, apenas não era ainda denominada dinâmica,
mas algo pertencente ao complexo da articulação, pois está
relacionada às notas isoladas e aos pequenos grupos de notas.
Evidentemente, pode-se tocar uma passagem primeiramente forte e
depois piano. Isto não será um atributo da obra ou uma característica
da interpretação, mas uma decoração suplementar, um tipo de
ornamentação. A microdinâmica, ao contrário, é essencial, pois
representa a pronúncia, ela deixa transparecer o “discurso sonoro”.
Com relação à articulação e à “pronúncia” musical, o ritmo
pontuado é de especial importância. É um dos ritmos primitivos do
homem e muito mais próximo das “origens” que um staccato regular,
por exemplo. Para um cantor ou um instrumentista é extremamente
difícil executar uma escala musical com uma igualda de perfeita. (Os
conservatórios europeus, há quase dois séculos, vêm empenhando -se
no sentido de “domesticar” a desigualdade rítmica natural q ue existe
nas músicas folclóricas e também no de ensinar aos alunos uma
igualdade perfeita no toque de notas de valores iguais.) Mas, entre
uma figura “superpontuada” e esta igualdade — tão rara na música
barroca e que, quando aparece, é expressamente exig ida por pontos e
indicações — há uma infinidade de possibilidades intermediárias. Se,
por exemplo, uma série regular de colcheias for tocada com. uma leve
desigualdade, com um ligeiro swing, de maneira que a primeira de
cada grupo de duas notas seja um pouco mais longa que a segunda,
iremos obter a forma mais sutil, quase imperceptível, do ritmo
pontuado. A etapa seguinte é análoga ao ritmo de quiálteras,
sobrevindo então um momento em que o compositor sente
necessidade de colocar na notação este ritmo. Escreve, assim, um
ponto atrás da nota longa e encurta a segunda pela metade de seu
valor. O que não quer de forma alguma dizer que a primeira nota deva
ser três vezes mais longa que a segunda. É simplesmente uma nota

58
longa e uma curta — o quão longo ou curto deduz-se do contexto. A
notação mostra apenas uma das etapas intermediárias.

É a natureza que nos diz que o ritmo pontuado, como tal, se opõe
a toda e qualquer divisão exata. A duração das notas longas e curtas
será determinada pelo caráter da obra e pelos princípios de sua escrita.
Há alguns autores, dos séculos XVII e XVIII, que afirmam que a nota
curta num ritmo pontuado deve ser executada no último momento.
Contudo, creio eu, eles estão apenas indicando um caso
particularmente marcante e deixando passar em silêncio numerosas
outras possibilidades, por sua obviedade. É o que acontece quando se
tenta aplicar a várias situações diversas uma determinada regra que,
sem ser compreendida direito, é interpretada ao pé da letra. Penso que
aqueles que crêem literalmente nos textos são os piores inimigos da
“religião”. É perigosa uma fé cega nos tratados.
A maneira atual de se executar ritmos pontuados, ou seja, fa zendo
com que a nota pontuada dure três vezes mais que a nota curta que
vem a seguir, é na verdade a realização precisa do que está escrito na
partitura, mas é certamente errada na maioria dos casos. Surge então
um tipo de sub-ritmo ordenado que destrói a pontuação.
Naturalmente, aqui, encontramos uma lacuna na notação. Não é
hábito expressar em números a relação desejada; não se pode, por
exemplo, escrever 9 sobre a nota longa e 2 sobre a curta. Na música
barroca, é comum os compositores escreverem uma semínima
pontuada e três fusas. Isto não agrada aos músicos pedantes que,
infelizmente, são bastante numerosos; eles contam matematicamente
quantas fusas correspondem a uma colcheia — quatro — e escrevem-
na, ligando a primeira delas à nota longa.

59
Isto poderia ter sido feito tranquilamente pelo compositor se ele
o quisesse. Mas o que desejava era uma nota longa pontuada e três
notas curtas. E, aqui, nada há a ser mudado, nem mesmo nas novas
edições, pois assim toca-se um ritmo pontuado de outra maneira,
muito mais livremente do que aquele rigorosamente notado.
Infelizmente, seguimos nos últimos 50 anos uma tendência
perigosa, visando uma pretensa autenticidade, mas esquecendo ou
descartando todas as boas tradições que permitiam uma leitura correta
do texto musical e que não se prendiam somente à notação musical.
Ainda por volta de 1910, sabia-se e sentia-se como deveriam ser tocados
ritmos pontuados, como mostram gravações antigas (como seja um
ensaio com Brano Walter). Foi com Gustav Mahler que surgiu a ideia de
que se deveria tocar como está escrito, e os conhecimentos anteriores
foram pouco a pouco sendo esquecidos. Acho uma pena que seja
precisamente a ideia da fidelidade ao texto que tenha extinguido a
verdadeira autenticidade da obra, a ponto de que se haja também
esquecido aquilo que anteriormente ainda era conhecimento vivo. Agora
precisamos, com esforço, recuperar este conhecimento. O mesmo é
também válido para a articulação. Hoje em dia, muitos músicos afirmam
que, quando não há indicações de articulação na partitura, deve-se tocar
este trecho sem nenhuma articulação, como está escrito, com isso
pensando estarem sendo fiéis ao compositor. Deste modo, por causa da
chamada autenticidade. apenas a partitura é levada em conta e não a obra
em si. Esta “autenticidade”, muitas vezes citada, me parece o maior
inimigo de uma interpretação honesta, pois ela, em vez de procurar
reviver o que está por trás da partitura, faz soar apenas o que está escrito.
A escrita musical não pode, como tal, reviver uma obra musical, mas
unicamente fornecer alguns pontos de referência para que isto aconteça.
Autêntico, no puro sentido da palavra, é aquele que reconhece nas notas
o pensamento do compositor e assim as reproduz. Caso o compositor
tenha escrito uma semibreve querendo dizer uma semicolcheia, o
autêntico será aquele que toca a semicolcheia e não a semibreve.
Finalizando o tema articulação: estudemos os tratados, esforcemo-
nos por saber tudo o que diz respeito às ligaduras e à execução destas,
tentemos sentir por que a resolução de uma dissonância é desta ou
daquela maneira, e também como uma figura pontuada deve ser
tocada. Mas, tão logo comecemos a fazer música, esqueçamos tudo o
que lemos. O ouvinte não deve ter a impressão que tocamos aquilo
que aprendemos. A música precisa estar dentro do nosso ser, tornar -

60
se parte de nossa personalidade. Acabamos por nem saber mais onde
aprendemos tal regra, onde a lemos. Talvez, ainda estejamos
cometendo uma quantidade de erros, pecando contra o rigor e a
precisão. Contudo, um “erro” que provém da própria convicção, do
próprio gosto e sentimento é bem mais convincente do que
pensamentos traduzidos em sons.

61
Achar o andamento correto em que uma peça deve ser tocada, a
relação dos vários tempi entre si numa obra de diversos movimentos
ou numa ópera, é certamente um dos principais problemas na músi ca.
Na música grega e na monodia do início da Idade Média, tudo era bem
diferente. Uma mesma peça podia ser tocada em diferentes
andamentos. A velocidade dependia apenas do temperamento do
executante, como alguém que fala mais rápido ou um pouco mais
devagar. Na linguagem, uma frase tem também o seu andamento
próprio e inerente, que independe do conteúdo do texto. No canto
gregoriano, encontram-se, frequentemente, grandes diferenças de
velocidade, sem que se tenha a impressão da música ter sido afetada.
Neste gênero musical o andamento não parece desem penhar um papel
decisivo.
As fontes literárias desta época dizem: na música grega o ritmo e
o andamento são uma coisa só. Isto decorre do ritmo poético, que foi
o ponto de partida de toda a música. No grego, poesia e música eram
descritas pela mesma palavra, cantar e recitar poesia era a mesma
coisa. Daí, conclui-se que se cantava de forma declamatória ou
declamava-se de forma cantada. Os gregos antigos possuíam três
ritmos e tempos fundamentais:

1. Aqueles que comportam notas curtas, ritmos rápidos e apro -


priados às danças de guerra e ao caráter resoluto e apaixonado. Por
volta de 1600, eles entram na música europeia conjuntamente com as
ideias renascentistas, como é o caso, por exemplo, das notas repetidas
que Monteverdi inventou, a partir do modelo grego (Platão) para a
música guerreira do Combattimento e que ele esclareceu e justificou
de maneira muito persuasiva.
2. Os ritmos formados por notas curtas e longas, que correspon -
dem à ideia da dança de roda. Trata-se, provavelmente, de ritmos
análogos ao da giga.
3. E finalmente, aqueles formados apenas por valores longos,
com um andamento lento, encontrados nos hinos.

Quando a música europeia começou a utilizar a música grega,


aproximadamente em 1600, estes princípios expressivos foram re-
tomados. O primeiro e o terceiro ritmo entraram definitivamente no

62
repertório expressivo da música ocidental. O primeiro era con -
siderado como fogoso, passional, decidido e o outro, como fraco,
indeciso e passivo.
Na música gregoriana já havia, desde por volta de 900 d. C.,
letras indicativas do andamento, que são atualmente interpretadas de
maneira diversa. Sobre os neumas (sinais que representam de maneira
esquemática os movimentos das mãos do regente e se tor naram a
primeira escrita musical da Europa cristã) aparecem letras como C
(celeriter), M (mediocriter), T (tarditer), quer dizer, rápido, médio,
lento. Nas leituras da Paixão, com uma divisão dos papéis, estas
diferenças de tempi aparecem muito claramente. Os “maus” sempre
falam rápido, e quanto mais santo for o papel mais lento será o ritmo;
as palavras de Cristo eram recitadas muito lentamente, na forma de
um hino. Muitos destes princípios foram absorvidos pelo recitativo
do século XVII.
A questão do andamento tornou-se mais problemática com o
advento da polifonia. Agora, havia a necessidade de uma igualdade
de tempo e também muitas vezes de ritmo, pelo menos em certos
trechos. Isto, contudo, não era possível com a antiga notação de
neumas; era preciso que se criasse uma nova notação que atendesse
às necessidades de representar de maneira aceitável o andamento e o
ritmo. Nesta fase inicial, a sonoridade da polifonia era algo tão
sensacional, que o discurso tinha de ocorrer com “lentidão”. Muitas
fontes falam de moroditas, para fazer durar a beleza desta música.
Uma bela música polifônica deveria durar infinitamente, seria
impossível cansar-se dela. Apesar destes tempi bastante lentos que
ficaram restritos apenas à primeira fase da polifonia, deveria reinar,
pelo menos sobre as “batidas” acentuadas (atualmente se diria: no
primeiro tempo de cada compasso), uma certa exatidão e precisão.
Nesta música figuravam oitavas, quintas e quartas que precisavam
estar consonantes nos pontos cruciais em que todas as vozes tinh am
rigorosamente de encontrar-se. Entre estas “batidas” reinava uma
certa liberdade rítmica que hoje em dia qualificaríamos de deserdem.
Dava-se, assim, a impressão de uma grande individualidade das vozes
isoladas que eram postas em conjunto e estruturadas metricamente
num grande esqueleto de consonâncias e acentos. Esta métrica
fundamental era marcada pelo regente, por exemplo, com um bastão
de música.

63
O andamento em si ainda era pouco complicado naquele período. O
passado* nos ensinou a considerar as indicações rápido, lento e
moderado como relativas. Só com a complicação do ritmo, que aparece
muito rapidamente na história da polifonia, é que a notação precisou ser
desenvolvida. A música executada na corte papal de Avignon no século
XIV — certamente para um círculo de conhecedores — era ritmicamente
tão complicada, que ainda hoje é difícil decodificá-la baseando-se nas
partituras da época. É impossível reviver esta música de maneira exata,
com a nossa notação. Na prática, não dá para transferir todo o tipo de
música para a nossa notação. Nossa crença 110 progresso — a notação
ideal, a melhor técnica, a agricultura mais eficaz, etc. — revela-se aqui
errônea. Os diversos sistemas de notação do passado não foram
absolutamente etapas primitivas da notação atual, mas apenas uma
notação que se adequava às necessidades da época. Eles sugeriam ao
músico uma execução adequada. A notação, como imagem gráfica de um
evento musical, tem algo de sugestivo, ela exige realmente uma
execução que lhe corresponda. Uma dada música achava sempre os
sinais que lhe convinham; pela notação empregada outrora, podia-se
também exprimir valores-intermediários, e tudo o que dizia respeito à
agogiça e ao rubato.
A brevis de outrora ( com duração duas vezes mais longa que
a atuai semibreve ). Era uma nota de valor curto, embora atualmente
seja bem longa. Ela possuía três unidades de tempo no tempus
perfectum, e no tempus imperfectum apenas duas. Só nos casos de
dúvida acrescentava-se um ponto para prolongar o seu valor:
(normalmente a brevis valia três tempos no tempus perfectum, mesmo
sem o ponto: ) A subdivisão das notas se deduzia dos sinais de
compasso que figuravam no início da linha ( — tempus perfectum;
C — tempus imperfectum, e muitos outros). Uma nota era, em
princípio, dividida em três, pois esta divisão era conside rada perfeita
(perfectum). A subdivisão em quatro, ao contrário, era tida como
imperfeita (imperfectum). Tudo isto está relacionado com a mística
dos números e com a teoria das proporções.
A questão do tempo foi resolvida, a partir de 1300, com um
complicado sistema de notação mensurai. Esta notação exprimia as
proporções de uma dada unidade fundamental invariável (o valor
integer), de forma que compasso, andamento e pulsação são fixa dos
na música desde aproximadamente 1300 até o século XVI. Por mais
curioso que isto possa parecer, podemos reconstituir com muito maior

64
precisão o andamento de uma obra de 1500 do que os tem pos de uma
obra de Monteverdi, Bach ou Mozart. No século XVI, o antigo sistema
vai pouco a pouco sendo modificado, e apesar dos teóricos ainda o
ensinarem com todo o rigor, na prática isto já não acontece; era um
sistema maravilhoso que, contudo, não precisava mais da realização
sonora. Os sinais continuaram ainda em uso durante um certo tempo,
mas desprovidos de sua rigorosa significação proporcional; alguns
deles ainda são usados nos dias de hoje.
Após 1600, as diferenças de andamento eram expressas
principalmente através de diferentes valores de notação — havia
indicações até mesmo para os valores individuais como “muito lento...
natural, nem rápido nem lento... moderadamente rápido... muito rápido”.
Pulsação e andamento são uma coisa só, já que tudo é expresso com os
valores de notação; o andamento é determinado pelos valores das notas.
As primeiras indicações são ainda confirmações da notação: tardo, lento,
presto, allegro etc., estão escritas onde notas longas ou breves produzem
um tempo lento ou rápido. Examinando cautelosamente antigas
partituras, tanto manuscritos como impressos, observa-se que, às vezes,
este tipo de indicação só aparece em uma determinada voz, na verdade
sempre em trechos onde há mudança de valores de notas; contudo, o
tempo absoluto permanece o mesmo. Pode-se encontrar numa peça, por
exemplo, alternadamente lento — presto (estas são as indicações mais
antigas para devagar e rápido), sendo que nos trechos onde se encontra
lento, há valores de notas longos, e naqueles onde há presto indicado,
valores de breves. Frequentemente acha-se também estas indicações em
partes de contínuo que em geral possui valores longos, provavelmente
para que o executante saiba que, por exemplo, naquele trecho o solista
tem notas rápidas. Antigamente, a partitura não era escrita em sua
inteireza, mas em vozes separadas e, raramente, a voz solista estava
contida na parte do baixo-continuo. Por este motivo, acrescentava-se a
esta parte allegro, por exemplo, paia indicar que a voz solista continha
notas rápidas. Muitas vezes, estas indicações são também encontradas
nas partes solistas e pode-se ver claramente que uma alteração do tempo
fundamental não seria possível, pois os valores lentos — se tocarmos os
valores rápidos em uma velocidade máxima —já são tão lentos, que um
andamento mais lento ainda não faria qualquer sentido. A indicação de
andamento deve então ser apenas uma confirmação da notação
apresentada, sem que o andamento absoluto seja afetado. (Esta

65
modalidade de escrita vamos ainda reencontrá-la em pleno século XVIII,
como em algumas cantatas de Bach, por exemplo.)
No século XVII, os compositores tentavam fazer as indicações dos
tempi desejados para suas obras, notando-os nos prefácios; as indicações
aí utilizadas vão passando, pouco a pouco, para o alto da primeira página
da partitura, onde representavam determinados modelos.
Quero brevemente ilustrar a maneira pela qual as indicações de
tempo pertinentes nasceram destas expressões e fórmulas. Atra vés de
frases como: “com um tempo um tanto quanto acelerado”, “quanto
mais rápido melhor”, “esta parte é para ser tocada muito lentamente”
ou “de maneira muito viva, senão não soará bem”, os autores do
século XVI tentavam exprimir seus desejos. No início do século
XVII, já se encontram as indicações mais modernas de tempo e de
caráter, como no prefácio das edições de Frescobaldi, em 1615: “...
os inícios das tocatas devem ser executados devagar (adagio)... depois
deve-se mais ou menos acelerar (stretti;)..., as partitas devem ser
tocadas no tempo justo (tempo giusto)... não se deve executar muito
vivo (presto) o começo e prosseguir lentamente (languidamente)...
Não partitas, as escalas devem ser tocadas devagar (tempo largo).”
Estas expressões de tempo, oriundas da linguagem coloquial italiana,
vão tornando-se, pouco a pouco, as expressões oficiais de notação e
sendo colocadas acima do pentagrama nas partituras. Elas só têm
significado em relação com a notação, e nenhum valor absoluto na
determinação do tempo; em muitos casos, é mais importante encará -
las como indicação do caráter da obra do que como determinantes do
tempo. Fundamentalmente, a primeira coisa a ser descoberta numa
obra é exatamente o seu caráter. Ele é, invariavelmente, triste ou
alegre — com todas as formas intermediárias e ambiguidades
possíveis. Um caráter triste sugere um movimento lento e um alegre
requer um andamento rápido. Allegro significava, originalmente, um
caráter alegre, divertido (significado que se conservou na língua
italiana) e também um tempo rápido ou, simplesmente, valores de
notação rápidos, num tempo neutro. As expressões mais importantes
no século XVII são lento, largo, tardo, grave, adagio, andante, allegro,
presto. Estas indicações de tempo em italiano ainda hoje em uso
determinam, na música do século XVII, não só o andamento como
também a expressão musical. Frequentemente se encontra, no meio
de um adagio, um trecho presto que só é indicado nas vozes que
possuem notas rápidas; o tempo fundamental continua o mesmo.

66
Especialmente importante é a relação dos tempi entre si. Na
música da Renascença, havia um tempo fundamental, oriundo do
passo ou do pulso, quer dizer, surgido da natureza humana. Este
tempo era então colocado em relação com todos os outros tempi. Para
tal, há um complicado código de sinais, dos quais o nosso sinal de
alla-breve , e o C para o compasso 4/4, ainda são vestígios —
contudo, somente como sinais, já que o significado origi nal não
permaneceu. Esta relação dos tempi entre si sobreviveu ainda por
algum tempo durante o século XVII na relação entre os compassos de
quatro tempos e os de três tempos, portanto, entre os compassos
binário e ternário. Mas, esta relação vai se perdendo ao longo da
evolução. A relação rigorosa de 2 para 3, que faz com que o compasso
ternário seja sempre sentido como quiálteras em relação ao compasso
binário, já é frequentemente violada por Monteverdi. Isto pode ser
claramente reconhecido quando o mesmo motivo passa do compasso
ternário para o quaternário; ocorre, então, frequentemente, que as
semibreves ou mínimas do compasso ternário se transformam em
colcheias ou semicolcheias no compasso 4/4. O movimento
fundamental prossegue, então, naturalmente.

Este fenômeno pode ser ainda mais claramente comprovado em


certas passagens de obras da última fase de Monteverdi.
A partir do século XVII, as relações de tempo perdem algo do
rigor antigo; torna-se desde então muito mais difícil achar uma regra,
que era bem clara no período anterior. Há algumas teorias que dizem
que toda a música barroca que não fosse regida deveria ser
fundamentalmente tocada num tempo único, quer dizer, em
proporções contáveis, já que os músicos bateriam o compasso com os
pés ou com um bastão. Desta maneira, um adagio deveria ser duas
vezes mais lento que um allegro, proporção que permaneceu válida
até o Classicismo. Estou certo que, na realidade, as relações, são
muito mais sutis e que não há absolutamente necessidade de, a

67
pretexto dos músicos de província baterem o tempo com os pés, fazer
disto um critério para os tempi. Há vários trabalhos a respeito do
assunto que, contudo, devem ser lidos muito cautelosamente, pois os
autores na maioria não são músicos práticos, e muitas vezes as teorias
que decorrem de seus trabalhos não são aplicáveis à prática. Apesar
de tudo, uma leitura crítica nos permite retirar algumas interessante s
informações.
As gradações de tempo, acelerações (accelerandi) e ritardandos
(rallentandi), eram em sua origem improvisadas espontaneamente,
mas a partir do fim do século XVI alguns compositores passaram a
procurar possibilidades de representá-las na partitura. Neste contexto,
os prefácios de Frescobaldi são mais uma vez importantes. Na
partitura, os trilos são representados por semicolcheias ou por
colcheias e o prefácio diz: que não se deve executá -los
metronomicamente, como “está escrito”, mas tocá-los veloce (rápido).
Isto nos mostra que a notação em semicolcheias representa apenas
uma ideia aproximada: a execução ritmicamente livre, de caráter
improvisado, está esclarecida no prefácio. Este tipo de notação para
trilo será mais tarde substituído pelo símbolo tr. Os compositores e
teóricos ingleses (da viola da gamba), Morley e Simpson, se va leram
de métodos análogos para traduzir em notação um ritmo livre;
frequentemente escreviam passagens rápidas começando em semi -
colcheias e terminando em fusas. Método, por sinal, bastante apro -
priado para exprimir um accelerando. Até que se encontrassem outras
expressões para grafar tempos deste gênero, tinha-se de procurar
exprimir por notas o efeito desejado; uma aceleração escrita
gradativamente deve ser executada de maneira não gradativa. Um
famoso exemplo é “Il trotto dei cavallo” no Combattimento de
Monteverdi: o compositor aqui representa o trote cada vez mais
rápido do cavalo, de tal forma que de repente o mesmo ritmo prosse -
gue duas vezes mais apressado: . Nesta aceleração
repentina, está implícita uma aceleração progressiva do tempo (a
única maneira possível a um cavalo), mas na notação da época isto
não poderia ser representado de outra maneira. Com este mé todo,
podia-se também (naturalmente de maneira inversa) representar um
rallentando progressivo (ritenutti), fazendo-se simplesmente dobrar
os valores das notas. Esta maneira de escrever modificações de tempo
encontra-se também em Vivaldi e Haendel, mas é na maior parte das

68
vezes mal compreendida, e interpretada como uma mudança radical
de andamento, que se toca exatamente “como está escrito”.
No século XVII, determinadas figuras (grupos de notas) exi giam
um determinado tempo. As “figuras” musicais são pequenas cadeias
de notas, análogas a “tijolos” musicais ou “palavras sonoras”, que
pedem uma determinada sequência. Quando articuladas de maneira
compreensível, isto conduz a um determinado tempo. O que quer
dizer: indicação de andamento e compasso pertencem agora a dois
campos diversos. A indicação de compasso é rigorosamente racional,
enquanto que a de tempo é irracional e deve estar rela cionada a uma
outra coisa. Mesmo com a indicação do andamento, apenas a
indicação de compasso não é suficiente para estabelecei o tempo da
obra. Os músicos diziam que se devia adivinhar a par tir da própria
peça se o andamento exigido era rápido ou lento (Leopold Mozart).
E, aqui, certamente, ele está aludindo às “figuras” que servem como
ponto de referência para se achar o tempo adequado.
Na época de Bach o andamento de uma obra podia ser deduzido,
sem maiores explicações, a partir de quatro fatores: do ca ráter musical
(que deveria ser adivinhado com uma certa sensibili dade), do sinal de
compasso, dos menores valores de notas presentes e, finalmente, do
número de acentos por compasso. Os resultados práticos obtidos a
partir destes critérios estão de acordo com aqueles tratados e obras
didáticas que constituem, de fato, uma informação extremamente
confiável.
Obviamente, não havia — como hoje também não há — regras
rígidas, pois o andamento correto era determinado também por fa tores
extramusicais, como tamanho do coro e orquestra e a acústi ca do
espaço, dentre outros. Naturalmente outrora já se sabia e se ensinava
que uma orquestra grande deve tocar mais lento que uma menor, que
numa sala com muita reverberação o andamento também deve ser
mais. lento que numa outra de acústica “seca”, etc. É bem verdade
que um mesmo andamento pode soar diferente de acordo com as
diversas interpretações; pois, além do espaço e da formação da
orquestra, a articulação é outro fator que desempenha importante
papel neste sentido. Um conjunto cuja articulação é rica dá a
impressão de tocar mais rápido e brilhante do que aquele que toca
muito legato e uniforme.
Em geral podemos deduzir a partir dos tratados, que os anti gos
tomavam um andamento sensivelmente mais rápido do que aquele que

69
hoje em dia lhe concedemos, principalmente nos movi mentos lentos.
Mas passagens rápidas eram também, aparentemente, executadas com
grande virtuosismo e velocidade, haja vista o número de batidas de
nosso pulso tomado como referência (80 por minuto, após uma
refeição) e a técnica de execução (as semicolcheias podiam ser
tocadas pelas cordas com golpes de arco separados e pelos sopros,
com um duplo golpe de língua). A respeito de Bach, relata seu filho
Philipp Emmanuel (citado na biografia de Bach por Forkel): “Na
execução de suas próprias peças, ele tomava de hábito um andamento
bastante vivo...”
Mozart utiliza uma quantidade pouco habitual de diferentes
indicações de andamento. Um allegro, por exemplo, é para ele muito
rápido e fogoso. Vez por outra, faz seguir a indicação desse an -
damento de uma palavra explicativa (normalmente proposta): aperto,
vivace, assai. O significado de allegro aperto não é totalmente claro.
Se me dissessem apenas allegro aperto, e eu não conhecesse a peça,
imediatamente diria que aperto acelera o tempo. Mas, se esses
movimentos, assim designados por Mozart, forem compar ados uns
com os outros, tudo indica que eles devam ser tocados um pouco mais
lentamente, não tão tempestuosamente, talvez mesmo de forma mais
simples e “franca”. O allegro vivace exige uma vivacidade num
andamento já em si alegre e rápido; esta vivacidad e corresponde (tal
como nos movimentos indicados somente por vivace), principalmente,
à acentuação dos pequenos valores de notas, de modo que, apesar do
tempo no seu todo ficar um pouco mais lento, a impressão de
movimento e vida é nele bem mais forte do que num allegro “normal”.
Estas indicações são frequentemente mal compreendidas, fazendo
com que os movimentos pareçam inarticulados e agitados. Allegro
assai significa claramente uma aceleração.
As correções (que infelizmente só podem ser encontradas n os
manuscritos, já que não são normalmente publicadas) se mostram
especialmente ricas em ensinamentos. Allegretto me diz muito mais,
quando sei que o compositor, talvez em consequência de seu trabalho
com uma orquestra, usou este termo em substituição ao andante
original (tais correções, muito instrutivas, também são acha das com
frequência na obra de Haendel). Indicações sucessivas como andante
— più andante — più adagio podem levar a erros, se as expressões
não forem entendidas de acordo com o significado da época. É o caso,
por exemplo, de saber se no quarto movimento de Thamos KV 345 de

70
Mozart più andante seria mais rápido ou devagar que andante. Como
andante, outrora, no sentido de “andando”, era considerado, de
preferência, um andamento rápido, o reforço “mais” (più)
corresponde, portanto, a uma aceleração. Na obra mencionada, que é
um melodrama, o conteúdo confirma esta interpretação, no entanto,
esse trecho quase sempre é executado inversamente, de forma
ralentada.
Para finalizar, quero ainda esclarecer algumas indicações de
andamento que estão relacionadas à ornamentação. Primeiramente,
grave: esta indicação de um tempo lento significa “sério”, o que, em
princípio, quer dizer que não se deve acrescentar qualquer or namento.
Na música de Haendel, por exemplo, todo músico tem uma certa
vontade de ornamentar improvisando, especialmente em se tratando
de um movimento lento, dada a simplicidade da melodia. Isto convém
a um largo e a um adagio, mas não a um grave. As introduções de
aberturas francesas são habitualmente indicadas com grave; elas têm
o caráter de uma marcha séria ou solene, são pouco cantabile e não
devem "ser ornamentadas.
A palavra adagio, ao contrário, significa que, num movimento
lento, se pode e deve ornamentar. Frequentemente, é encontrada a
indicação adagio sobre algumas notas ou compassos isolados no
interior de um movimento marcado grave, apesar de não ser possível
qualquer mudança de andamento naquele trecho. O que então, quer
dizer: aqui deve ser ornamentado! Quantz diz que não se deve
sobrecarregar um adagio com ornamentos, porém os seus exemplos
do que seria uma ornamentação “econômica” nos parecem hoje
exuberantes e sobrecarregados. Atualmente, não se deve imitar tudo
o que está escrito e exemplificado nos antigos tratados a respeito de
ornamentação e improvisação, pois improvisação é algo total mente
ligado ao estilo e à época. Ornamentos rococós, improvisados por um
homem rococó do século XVIII, não podem ser comparados com
aqueles que hoje propomos. O mal-estar que sentimos ao ouvir uma
ária de Mozart inundada de ornamentos exuberantes é uma reação
absolutamente sã. O conjunto da ária é assim rebaixado a uma cópia
de estilo. Seria mais importante representar uma melodia simples com
fantasia e criatividade, do que desviar a atenção através de uma
ornamentação artificial. Naturalmente, há uma boa quantidade de
música dos séculos XVII e XVIII que suporta uma ornamentação
improvisada e até a exige.

71
Improvisação e ornamentação sempre foram consideradas como
uma arte que requer grande conhecimento, fantasia e gosto extre -
mamente apurado; é o que dá a cada execução aquele caráter único,
que jamais se repete. Nos relatos que falam de bons músicos, entre
1700 e 1760, entendia-se por “um bom executante de ad ágios” aquele
que sabia ornamentar. Este podia partir da mais simples das melodias,
mas nunca deveria alterar ó conteúdo expressivo da peça. Somente
quando o caráter fundamental é preservado, é que se pode falar de
uma verdadeira arte de ornamentar. Para os cantores, no que concerne
aos ornamentos nas óperas barrocas ou nas de Mozart, o que
importava antes de mais nada era que os ornamentos cor respondessem
ao caráter do texto. O cantor deveria exprimir e re forçar o caráter da
melodia simples por meio de ornamentos corretos, encontrados
espontaneamente. Ornamentações que apenas mostram a habilidade
do cantor ou do instrumentista não têm valor, são virtuosismos sem
sentimento. Deveria haver uma necessidade interna dos ornamentos,
para que, através deles, se realçasse, de forma inteiramente pessoal,
a expressão subjacente à obra.

72
A altura absoluta do diapasão é uma questão particularmente im -
portante tanto para os cantores quanto para os instrumentistas. Há um
bom número de textos antigos que dizem que o diapasão na França
era mais alto ou mais baixo do que nos outros países; ou que O
diapasão de igreja era mais alto ou mais baixo que o diapa são “de
câmara”, quer dizer, nos lugares onde se executava a mú sica profana.
Porém, excetuando a laringe humana e certos instrumentos como
antigos diapasões em forquilha ou de sopro que não foram
modificados, não existe qualquer outro referencial que seja exato.
Examinando-se estes instrumentos, comprova-se, por exemplo, que
aqueles que datam da época de Monteverdi, na Itália, tinham quase
todos o diapasão atual, ou mesmo um pouco acima. Na voz humana,
a extensão desejada para o baixo ia até o dó grave, o que é bastante
grave. Mas os autores antigos afirmavam que somente um baixo com
muito boa formação podia descer tanto assim, o comum eram baixos,
como os que se encontravam nas escolas, que iam só até o sol. Não é
muito diferente de hoje em dia. Muito poucos cantam até o dó grave
(este limite nos permite concluir que o diapasão não pode ter sido
muito mais baixo na Itália naquela época — o “diapasão antigo” é,
por conseguinte, variável e pode ter sido mais alto aqui e mais baixo
lá). Antigamente, cantava-se de preferência na região central e só
muito raramente se atingia o extremo agudo. Hoje, é bem diferente;
todo cantor quer cantar tanto quanto possível no registro mais agudo
— e o mesmo acontece com as cantoras.
Um verdadeiro soprano fica infeliz quando não pode cantar entre
o ré e o ré5. Os tenores querem também cantar tão agudo quanto
4

possível; alegam, inclusive, que as partes do tenor de Monte verdi são


muito graves para um tenor e que, por isso, devem ser cantadas por
um barítono. Praetorius (1619) diz expressamente que a voz humana
“quando vai à região média e um pouco à grave” é muito mais
graciosa e agradável aos ouvidos do que aquela que “é forçada e
precisa gritar nos agudos”. Ele afirma igualmente que os instrumentos
soam melhor no grave; mas que. por outro lado, o diapasão normal
está continuamente subindo. Ainda hoje, esta tendência permanece; o
diapasão de uma orquestra com o correr do tempo tende a ficar cada
vez mais alto. Isto pode ser constatado por qualquer pessoa que venha
observando os diversos diapasões das orquestras nestes últimos trinta

73
anos. Esta é uma questão muito importante também para o músico
atual.
Creio que deveríamos procurar saber a razão desta infeliz ten -
dência que leva a uma contínua subida do diapasão. Eu próprio,
durante 17 anos, toquei em orquestra e constatei que os regentes estão
sempre dizendo que um tal músico toca baixo demais (falo de
afinação e não de dinâmica), mas nunca os ouvi dizer que um
determinado instrumentista está tocando alto demais. Há, natural-
mente, motivos para tal, já que numa harmonia mal ajustada o ouvido
se orienta, automaticamente, pelo som relativamente mais alto.
Aquilo que é comparativamente mais grave será sentido como er rado,
mesmo que esteja, objetivamente, correto. Dessa forma, aquelas notas
que se imagina baixas serão empurradas para cima, até que estejam
tão altas quanto as (demasiado) altas. Qual é a consequência? A
consequência é que o músico, para evitar que o regente lhe diga que
a sua afinação está muito baixa, passa, por antecipação, a afinar o seu
instrumento demasiado alto.-(Isto é válido principalmente para as
segundas fileiras dos instrumentos de sopro, já que é quase sempre a
estas que se diz que a afinação está muito baixa. Quando compram
um instrumento novo de sopro, eles o cortam imediatamente para que
fique mais alto.) A única saída para este problema de um diapasão
que sobe irresistivelmente é saber de onde provém a afinação e estar
sempre a ajustá-la a bases corretas. A questão da justeza de uma
afinação não pode ser analisada do ponto de vista de impressões
momentâneas, do contrário» nada mais fará sentido, pois que ninguém
gosta de estar baixo. Há um ditado entre músicos de orquestra que
diz: “antes alto demais que errado.” Creio que, se os músicos
soubessem um pouco mais a respeito de afinação e não deixassem
tudo a cargo do ouvido ou da intuição, poder-se-ia manter o diapasão
muito bem num determinado nível. A questão de uma afinação justa
não tem resposta. Não há um sistema natural de afinação único que
seja válido para todos. A educação nos familiariza com um sistema
sonoro que pode ser um dos cinco ou seis sistemas sonoros de nossa
cultura, ou até um outro, 110 qual a altura do som é medida com a
ajuda de sementes de trigo ou pedras — e todo homem que está
habituado a um determinado sistema, ouve, canta ou toca de acordo
com este. Em muitas regiões da Europa, são usados, na música
folclórica, instrumentos de sopro naturais (como trompas) nos quais
só podem ser tocados os harmônicos naturais. As melodias podem ser

74
executadas somente na quarta oitava (do oitavo ao décimo sexto
harmônicos), onde a quarta soa muito “impura”, pois o décimo
primeiro harmônico está entre o fá e o fá sustenido e por este motivo
a quarta (dó-fá) é demasiado alta.

Nas regiões onde estes instrumentos são tocados, se canta


também este intervalo, as pessoas estão habituadas a ele e o per cebem
como uma quarta justa! Precisamos compreender que não podemos
fazer de um sistema de afinação uma norma para todos os outros;
aquilo que parece puro aos nossos ouvidos, pode não sê -lo para
outros. Puro é tudo o que corresponde às exigências de um sistema.
Em geral, educamos os nossos ouvidos para que eles se orientem pelo
sistema de afinação de um instrumento temperado, como o pia no.
Neste, os doze semitons têm uma afinação equidistante, de sorte que
só há, por assim dizer, uma tonalidade maior que pode ser transposta
por semitons; infelizmente, nossos ouvidos foram educados segundo
este sistema. Assim, quando se escuta uma música cuja afinação
obedece a um outro sistema, por mais perfeito que seja, se tem a
impressão de algo desafinado. O sistema de afinação do tempo de
Monteverdi, no século XVII, era um desses outros sistemas! Ao se
ouvir, hoje em dia, uma música executada com a sua afinação, a
sensação que se tem é a de que tudo está soando terrivelmente
desafinado. Mas, inversamente, caso se ouça a afinação atual com
ouvidos educados pela afinação do século XVII, ir-se-á, da mesma
forma, achar tudo desafinado. Conclui-se, portanto, que nesta matéria
não há uma verdade absoluta e objetiva. Só se pode discutir sobre a
justeza de uma afinação no contexto de um determinado sistema. Se
minha afinação for justa no seio de um sistema, ela será perfeita,
mesma que pareça desafinada a ouvidos educados por um sistema
diferente do meu.
Infelizmente, no nosso tempo, em que o conhecimento pro fundo
e verdadeiro é oficialmente substituído por um discurso vazio e
superficial, tornou-se óbvio e habitual falar e discursar de forma
grandiosa sobre coisas das quais nada se sabe. Ninguém procura

75
absolutamente informar-se: seja qual for o assunto, fala-se sobre cie,
como um entendido. Um tema que sofre particularmente com isto é a
música. Quase todo mundo fala dela como se fosse dono da matéria,
seja sobre afinação (“então, você não ouviu como ele desafinou?”),
seja sobre tonalidades (“o doce tom de mi bemol maior...”), e somente
por causa da igual ignorância do interlocutor esta situação ridícula é
sustentada. As questões relacionadas à tonalidade e à afinação — até
mesmo na literatura especializada — tornaram-se temas de puro blefe.
A música dos séculos XVII e XVIII foi construída, no que diz
respeito à afinação, também sobre a chamada teoria das propor ções,
na qual os índices de frequência, quer dizer, a série harmônica,
serviam de princípio básico. O ponto de referência era a nota
fundamental, o número um da série de sons e números,
correspondendo mais ou menos ao ponto de fuga da perspectiva; ele
simbolizava a Unitas, a unidade, Deus. Quanto mais simples a relação
numérica, melhor, mais nobre (inclusive no sentido moral); quanto
mais complicada a relação numérica, ou quanto mais distanciada do
um, pior, mais caótica. Todo intervalo pode ser expresso sob a forma
de relação numérica (proporção) (como por exemplo, a oitava 1:2, a
quinta 2:3, etc.); sua qualidade pode ser medida em função da
proximidade da Unitas, do som fundamental como base (dó = 1, 2, 4,
8 etc.). A terminologia que conhecemos da harmonia aqui não tem
valor algum — a perfeição dos sons era lida através dos números.
Inversamente, podia-se também representar todas as relações
numéricas simples como sons. A harmonia das esferas de Kepler se
baseia nisto, bem como numa arquitetura “soando” harmonicamente;
quando as proporções visíveis de uma construção eram redutíveis a
relações numéricas simples, se podia, então, vê-las e ouvi-las como
“acordes”. Palladio compôs os planos de suas construções como um
tipo de música petrificada. A harmonia, na “música, segundo estas
teorias, se baseia sobre um princípio análogo ao do número áureo em
arquitetura. Ambos produzem sobre a sensibilidade e o espírito
humano uma impressão de ordem, através de princípios simples e
naturais. A ideia barroca de que a música seria um reflexo ou uma
imagem da ordem divina, era válida nesta época para todo tipo de
música, inclusive a profana. A oposição profano/religioso não tinha
neste contexto um papel tão importante como atualmente. (A unidade
entre as diversas tendências da música ainda não fora rompida;

76
fundamentalmente, todo tipo de música, qualquer que fosse a norma,
era considerada outrora como sacra.)
Os intervalos harmônicos representam, na teoria das propor ções,
uma ordem criada por Deus; todas as consonâncias corres pondem a
índices numéricos simples (2:3 =: a quinta; 3:4 = a quarta; 4:5 = a
terça maior etc.) Aquilo que se aproxima mais da unidade é sentido
como mais agradável, mais perfeito do que o que está longe, onde
dominam proporções ruins, inclusive o caos. A relação 4:5:6 era tida
como perfeita: ela é construída sobre a nota fundamental (dó), seus
números são consecutivos e produzem três sons harmonicamente
consoantes e diferentes (do-mi-sol), um acorde perfeito maior:
harmonia perfeita e uma consonância das mais nobres ( trias musica).
Este acorde era o símbolo musical da Santíssima Trindade. (A
afinação devia seguir precisamente o quarto, quinto e sexto
harmônicos!) Já o acorde perfeito menor (10:12:15, mi-sol-si) tem
uma proporção sensivelmente pior: ele não está construído sobre a
nota fundamental, seus números estão distantes do um e não são
vizinhos, e há números (sons) entre eles (11, 13, 14). Este acorde de
três sons passava por inferior, fraco e, num sentido hierárquico
negativo, feminino. Zarlino chama o acorde perfeito menor de affetto
tristo — sentimento ruim. Desta maneira, todas as harmonias eram
julgadas “moralmente”, podendo-se compreender porque as peças
necessariamente terminavam com um acorde perfeito maior: não se
poderia finalizar uma obra no caos (uma regra cujas ocasionais
infrações servem para denotar uma intenção particular do autor). Os
instrumentos também desempenhavam um papel importante na teoria
das proporções. Assim o trompete, por exemplo, no qual só se podia
tocar harmônicos naturais, tornou-se uma espécie de encarnação
sonora da teoria das proporções; ele só era introduzido quando se
tratava de Deus ou das mais eminentes altezas. Dó maior ou ré maior
com trompetes eram tonalidades reservadas ao poder supremo; os
trompetistas tiravam proveito desta situação e se situavam bem acima
dos músicos comuns.
Os números representaram um imenso papel não só na teoria das
proporções, mas em toda a música barroca. Na de Bach, por exemplo,
encontram-se continuamente números que representam jogos
aritméticos ou números elevados a certas potências mágicas,
frequentemente em trechos onde se acham passagens bíblicas ou
dados biográficos. Estão codificados da maneira mais diversa:

77
algumas vezes, indicando o número de repetições de uma nota ou de
compassos, outras, certos valores ou alturas de notas, e assim por
diante. O conhecimento do simbolismo numérico e do alfabeto
numérico era algo tão comum, que o compositor podia incorporar às
suas obras mensagens codificadas deste gênero, uma parte das quais
era certamente compreendida na audição e na leitura de sua música.
Assim como os números, também muitos símbolos religiosos e
astronômicos se achavam, desde a antiguidade, relacionados à
música. Determinados capitéis de claustros espanhóis representam,
como Marius Schneider explica em seu livro Singende Steine (Pedras
Cantantes), certas melodias: quando se atravessa um destes claustros,
a partir de um ponto dado, as esculturas dos capitéis — figuras
simbólicas da literatura e mitologia grega, que são igu almente
símbolos de determinadas notas — formam com a ajuda destas notas
hinos do santo ao qual o claustro é dedicado; os capitéis puramente
ornamentais, que estão entre eles, representam às pausas.
Ao lado da teoria das proporções, havia na música barroca, e
ainda há hoje em dia, a característica das tonalidades, que constituía
um importante fundamento para a representação das diferen tes
emoções. Esta tem muito mais a ver com a afinação e seus diferentes
sistemas, talvez, que a teoria das proporções. Um breve
esclarecimento poderá ajudar a melhor compreender a importância da
afinação como meio de expressão.
Desde o início tentou-se, através da música, cativar o ouvinte
com diferentes situações e estados de alma. Para tal, encontrou -se
rapidamente possibilidades de diferenciação musical que remontam à
música grega. Nesta, havia, já nos seus primórdios, um simbolis mo e
uma característica de nota isolada. Ela estava ligada a um símbolo,
ela encarnava o próprio símbolo que, em primeiro lugar, se referia aos
astros, às estações do ano, a animais mitológicos e aos deuses que
representavam e inspiravam um sentimento particular. Isto conduziu
a um tipo de simbolismo das tonalidades: transferia-se, à escala
construída sobre a nota isolada em questão, a característica da nota
fundamental; esta “tonalidade” inspirava no ouvinte a associação
correspondente.

78
As escalas na música grega são formadas a partir de quintas ( e não
como a série de sons naturais representados na pág. 77 a partir dos
harmônicos da terceira e da quarta oitava):

A escala pitagórica construída desta forma torna -se, então, o


sistema de afinação em vigor para toda a música da Idade Média. A
terça que daí surge (terça pitagórica) é um intervalo sensivel mente
maior do que a terça natural acima explicada (4:5), não consonante
como esta, mas sim dissonante. O sistema pitagórico soa muito bonito
e convincente para a música monódica, assim como a terça pitagórica
soa também muito bem num contexto melódico. Os diversos
fragmentos possíveis de serem extraídos desta escala fundamental,
começando cada vez com uma nota diferente, deram origem às escalas
gregas. Destas, surgiram finalmente os modi, os modos gregorianos
da Idade Média, que levavam os nomes gregos antigos (dórico, frígio,
lídio, mixolídio), cada um deles associado a uma determinada esfera
expressiva. Enquanto a música permanecia monódica e a polifonia
repousava sobre quintas, quartas e oitavas, o sistema de afinação
pitagórico pôde ser mantido, sendo ideal para este tipo de música.
Somente com a introdução, na prática, da terça natural, consonância
harmoniosa e bela, é que a polifonia conseguiu desdobrar-se
plenamente. O acorde perfeito maior (trias musica) torna-se então
pouco a pouco a harmonia central que determinava o modo e a
tonalidade. Dessa forma, quando se chegou ao final do século XVII,
de todos os modos gregorianos restava apenas a escala maior. Isto
teria provocado um grande empobrecimento das possibilidades de
expressão, se não se tivesse conseguido dar a cada transposiçã o desta
escala única um caráter próprio: si maior, por exemplo, produz um
efeito diferente de dó maior, apesar de que ambos em princípio
utilizam a mesma escala. Como anteriormente a diferença residia
(com relação aos modos gregorianos) na sucessão dos in tervalos, as
diversas escalas maiores teriam forçosamente de ser diferenciadas

79
através de uma afinação distinta. A necessidade de uma
caracterização tonal é o motivo que leva ao sur gimento do sistema de
afinação temperado.

80
Do “mesotônico” (ou "meio-tom”) 3à “afinação
temperada”

Assim que se descobriu a terça natural, de sonoridade tão


agradável, e com ela o acorde perfeito maior, que estão na base do
nosso sistema tonal, surgiram numerosas questões referentes à
maneira de como se poderia resolver os problemas de afinação
decorrentes nos diversos instrumentos. Somente os instrumentos
naturais de sopro (trompas e trompetes) se enquadravam
perfeitamente no novo princípio. Para os de teclado (órgão,
clavicórdio e cravo) era preciso descobrir-.se um novo sistema que
possibilitasse a nova afinação de terças puras e ainda, se possível,
com doze notas por oitava. Tal sistema foi achado com a “afinação
mesotônica”. Sua característica principal é a de que as terças maiores
têm que ser absolutamente puras, em detrimento dos outros intervalos.
(E necessário esclarecer que num instrumento de teclado não pode
haver uma afinação absolutamente “pura”, e que cada sistema
favorece determinados intervalos, em detrimento dos outro s.) Na
afinação mesotônica não há nenhuma relação enarmônica, pois cada
nota tem uma significação única: um fá sustenido, por exemplo, não
pode se confundir com um sol bemol. Para conseguir-se uma afinação
desta natureza, cora terças puras, é preciso que todas as quintas sejam
diminuídas; este é o preço que se paga pelas terças puras.

3
“Mitteltönig” em alemão; “mean-tone” em inglês; “mésotonique” em francês. (N. do T.)

81
Curiosamente, quase não se escuta a quinta num acorde de três
sons cuja terça é pura, pois ela é dividida por esta terça. Esta afinação
se chama meio-tom pelo fato da terça maior (por exemplo dó-mi) estar
dividida exatamente em sua metade (pelo ré) e não, como na série
harmônica, na relação 8:9:10 (onde há um grande intervalo maior, dó-
ré e um pequeno rê-mí). Esta afinação de terças puras soa
harmonicamente muito doce e descontraída, contudo, todas as
tonalidades tocáveis soam exatamente iguais. As escalas e as
passagens cromáticas soam particularmente interessantes num
instrumento afinado por este sistema. Quando se executam os
semitons uns após outros, o resultado é surpreendentemente colorido
e diversificado; os semitons possuem de fato tamanhos muito
diferentes. O termo cromatismo é aqui, excepcionalmente, muito bem
empregado. O fá sustenido é, então, uma nova cor do fá. O semitom
cromático fá-pá sustenido produz o efeito de uma coloração, enquanto
que o semitom fá sustenido-sol, que não é cromático, representa um
verdadeiro intervalo concreto.
Para músicos modernos, é realmente muito difícil cantar ou tocar
terças puras, pois acostumados que estão às terças temperadas do
piano, acabam tendo a impressão de que as terças puras naturais são
falsas e pequenas demais.
Tratemos agora das afinações “bem temperadas” 5 . Temperar
significa igualar; certos intervalos serão, por conseguinte, afinados
propositalmente errados (mas numa medida aceitável) para que se
possa tocar em todas as tonalidades. A mais primitiva. das afi nações
temperadas é a chamada temperamento “igual”. Neste sis tema, a
oitava é subdividida em doze semitons rigorosamente iguais, e todos
os intervalos, com exceção da oitava, são um pouco impu ros. É a
afinação que se emprega habitualmente hoje em dia e nela não há
características tonais, todas as tonalidades soam idênticas, apenas
diferenciando-se na altura. Mas, se entendermos (tal como no séc ulo
XVIII) por bem temperado aquilo que se refere a um temperamento
útil e bom, então este sistema de afinação moderno é dos piores, (Por
sinal, ele já era conhecido outrora, apesar de sua aplicação só ser
tecnicamente possível após a invenção dos instrumentos de afinação
eletrônicos.)

82
Quatro quintas são reduzidas de um quarto de coma (dó-sol; sol-ré;
ré-lâ; lá-mi), todas as outras são puras.
O círculo das quintas é fechado.
As terças estão mais ou menos próximas do intervalo puro natural.
Através desta diferenciação, surgem lá claramente as características
tonais.
As melhores terças são: fá-tá e dó-mi; sol-si, ré-fá sustenido e si
bemol-ré são quase tão boas; mi bemol-sol, lá-dó sustenido, mi-sol
sustenido, si-ré sustenido são indiscutivelmente piores. Todas as terças
restantes são pitagóricas e, por isso, demasiado grandes para o ouvido.
Nas boas afinações temperadas, nem todas as terças maiores são
afinadas iguais: fá-lá, da-mi, sol-si, ré-fá sustenido são afinadas mais
puras, quer dizer, menores que as outras; as quintas também diferem
entre si. Todas as tonalidades são, portanto, tocáveis, mas soam
diferentemente: fá maior soa muito mais doce e descontraído do que
mi maior, por exemplo. Os vários intervalos são diferentes em cada
tonalidade, alguns mais puros, outros menos, donde as características
tonais. Elas são consequência das tensões mais ou menos fortes,
condicionadas pela afinação, que crescem à medida em que a
tonalidade vai se afastando do centro de dó-maior e são sentidas como
uma espécie de saudade das belas tonalidades sem tensões ( f á , maior,
dó maior, sol maior).
Jamais se deve afirmar apressadamente que um músico toca
afinado ou desafinado. Existem, com efeito, sistemas muito diver sos
e quando alguém está tocando afinado num sistema com o qual nossos

83
ouvidos não estão habituados, estaremos sendo injustos ao dizermos
que a pessoa está tocando desafinado. Eu mesmo estou tão
acostumado a temperamentos desiguais, que o piano, tal como é
ouvido normalmente, me parece absolutamente desacorde, mesmo
que tenha sido muito bem afinado. O que importa acima de tudo, por
conseguinte, é que um músico toque puro e afinado dentro de seu
sistema.
Contudo, constata-se na prática que a música dos séculos XVI e
XVII só pode ser executada adequadamente com uma afinação de
terças puras. Quando se trabalha só com cantores ou instrumentistas
de cordas não. se precisa utilizar todas as características da afinação
mesotônica, que é basicamente concebida para instrumentos de
teclado. Não se buscará fazer com que a oitava e nona notas da série
harmônica sejam igualmente grandes, e nem é necessário diminuir as
quintas, mas sim tentar produzir terças absolutamente puras (o que,
de qualquer forma, é feito nas quintas). Certamente, não é desejável
alcançar a pureza absoluta em todos os intervalos, pois todo efeito
artístico está fundado na procura da perfeição. A perfeição como
objetivo conquistado não faz parte do humano e além do mais seria
monótona. Uma parte importante do ouvir e sentir música está
baseada na tensão entre a procura de uma pureza perfeita e o grau de
pureza., efetivamente alcançado. Há tonalidades com um grau de
pureza bastante alto, onde a tensão 1 é baixa, e outras que possuem
pouca pureza, mas muita tensão. Assim, a afinação é, para a
interpretação, um importante meio de expressão. Não existe, porém,
nenhum sistema de afinação que convenha a todo o conjunto da
música ocidental.

84
O músico que se dedica profundamente à questão da sonoridade e
lhe concede um papel importante no contexto da interpretação vê surgir
automaticamente problemas referentes aos critérios históricos.
Conhecemos aproximadamente a formação vocal e instrumental
necessária à música executada na corte papal de Avignon, no século
XTV, bem como nas diversas capelas das cortes italiana e alemã da
época maximiliana (por volta de 1500); pode-se também ter uma ideia
bastante precisa da capela da corte do duque da Baviera, dirigida por
Lassus (por volta de 1560), e da sonoridade orquestral e vocal da época
de Monteverdi (após 1600), por sinal bastante documentada não só pelo
próprio, como também por Michael Praetorius (1619); pode-se,
igualmente, através de estudos análogos, imaginar a sonoridade das
óperas do século XVII; a sonoridade orquestral e vocal da época de
Bach, por exemplo, é considerada como perfeitamente reconstituível;
quanto a Mozart, sabe-se alguma coisa a respeito do mundo sonoro da
sua música e também se conhece a sonoridade da orquestra wagneriana.
No final desta evolução encontrar-se-á a orquestra sinfônica atual.
Até bem recentemente, a estética musical e a organologia adotavam,
face ao conjunto destas complexas questões, um ponto de vista a que a
história da arte já havia renunciado há muito tempo e segundo o qual
existiria uma evolução a partir de um estado inicial primitivo, passando
por constantes melhoramentos, até chegar a um estado ideal sempre
situado no presente. Este ponto de vista não é justificado nem pela
estética, nem pelo aspecto técnico ou histórico. Aquilo que é claro já há
muito tempo no campo das belas-artes — que lidamos com
deslocamentos de ênfase que se produzem e devem mesmo ser
produzidos sempre paralelamente aos movimentos intelectuais e sociais
— começa agora também a sê-lo nos domínios da história dos sons. É
preciso que se entenda de uma vez por todas que o instrumentarium (“a
orquestra”) de uma época está perfeitamente adaptado à sua música (e
inversamente), seja visto na forma do conjunto do instrumentarium da
época em questão, seja na de um instrumento isolado. Vejo (e ouço) que
quando um instrumento é “admitido” na música clássica, este já alcançou
um nível ideal e não se pode mais promover uma melhoria de sentido
geral. Se bem que sempre que há uma melhoria de um lado, há um custo
a ser pago pelo outro. Esta é uma hipótese que a minha experiência e os

85
meus constantes estudos sobre a matéria têm confirmado e que começa,
para mim, a ter o caráter de um fato já comprovado.
A questão que se coloca, no que diz respeito a estas modificações
nos instrumentos, outrora apenas vistas como melhoramentos, é a
seguinte: estarei disposto a pagar, por esta ou aquela “conquista”, um
preço que se acha contido na natureza da própria coisa? Como, por
exemplo, renunciar às nuanças e sutilezas de timbres para poder ganhar
um maior volume sonoro (no caso do piano) ou para adquirir a igualdade
perfeita no plano da dinâmica e da afinação dos semitons utilizáveis,
abrir mão da afinação específica de cada uma das tonalidades, bem como
do timbre de praticamente cada uma das notas (no caso da flauta entre
outros). Poder-se-iam citar exemplos desta natureza para praticamente
todos os instrumentos. Na maioria das vezes, fascinadas pelos
“melhoramentos” alcançados as pessoas não percebem de imediato que,
simultaneamente, alguma coisa está sendo sacrificada, e muito menos a
que estão renunciando. Atualmente., com um certo distanciamento his-
tórico, tomamos quase todos os “melhoramentos” por mudanças contidas
no seio de uma evolução musical.
A consequência daí resultante é a de que é preciso executar toda a
música com o instrumentarium apropriado. Isto traz certamente alguns
problemas. Um outro corpo sonoro não significaria para o músico, por
princípio, um outro meio de expressão? Será que o ouvinte pode pular
de lá para cá entre as diversas sonoridades históricas ou será que ele
escolhe, consciente ou inconscientemente, uma determinada sonoridade,
uma estética do som? Não estariam estas questões ligadas também a
campos secundários dá música: à acústica das salas, que contribui de
maneira decisiva para a formação do som; ao sistema de afinação, quer
dizer, àquilo que será sentido como puro ou impuro com relação à altura
da nota? E em que medida uma função expressiva se determina por tais
parâmetros? Por fim, resta a pergunta: será que a música, como tal,
representa uma linguagem compreensível que transcende as épocas?
(“Será que realmente compreendemos Mozart?” — como indaga
Ionesco.) A pergunta não pode de modo algum ser respondida com um
sim tão facilmente como se poderia supor. É bem possível que a total
revolução que houve em nossa vida cultural nesses últimos cem anos
haja alterado de tal modo a execução e a nossa maneira de escutar, que
não estamos mais hoje em condições de observar e compreender aquilo
que Mozart, por exemplo, dizia com sua música e que era compreendido
por seus contemporâneos. Não podemos mais compreender o quanto a

86
música de cem anos atrás — e com mais razão ainda, a música antiga —
era parte integrante da vida pública e privada. Não havia, praticamente,
ocasião, fosse esta festiva ou fúnebre, solene, religiosa ou oficial, em
que não se tocasse música — e não como enfeite social, como hoje em
dia. Acredito que, do complexo inteiro de uma obra-prima musical, só
compreendemos e percebemos, hoje, uma fatia muito pequena — de
preferência os componentes estéticos — e que várias de suas facetas,
provavelmente muito importantes, permaneçam irreconhecíveis, pois
perdemos as ferramentas que nos eram necessárias. No entanto, esta fatia
mínima que nos diz alguma coisa é tão rica, que a aceitamos contentes,
sem maiores exigências. Poder-se-ia, então, dizer que, ao perdermos o
presente, em troca, recebemos todo o passado, só que não nos
apercebemos que, deste, temos apenas um pequeno fragmento, visto
através de-diminuto ângulo.
É preciso nos perguntarmos se realmente possuímos a totalidade da
história da música ocidental — na verdade, a história da cultura em geral
e se podemos, como músicos ou ouvintes, dominar de forma adequada a
diversidade estilística dos idiomas musicais. Se assim fosse, a diferença
de corpo sonoro e de sonoridade para cada época poderia não ser mais
um problema e sim uma ajuda para compreender a diversidade bem
maior da música como tal. A alternativa de que se serve a vida musical
atual é, sem dúvida, pouco saudável: tanto em se tratando do repertório
como da sonoridade. O repertório uniforme que é executado em todo o
mundo não é absolutamente a tão citada “escolha da História”! Uma
grande parte dele jamais passou pelo julgamento imparcial dos séculos.
Este oráculo só começou a se pronunciar no século XIX, completamente
marcado então pelo gosto da época. E no que diz respeito à sonoridade,
esta escolha muito pobre, que nossos ancestrais fizeram numa época em
que ainda dispunham de uma música contemporânea muito viva, nos foi
— e ainda nos é — proposta com a sonoridade uniforme do século XIX
(Bach como Mozart como Brahms como Bartok), sonoridade esta que
ridiculamente qualificamos de “moderna”, de sonoridade do nosso
tempo.
Não podemos mais, como nossos ancestrais, ficar remexendo
ingenuamente nos tesouros do passado; precisamos dar um sentido
àquilo que fazemos, para não cairmos num pessimismo absoluto.
Acreditamos que uma compreensão profunda é perfeitamente possível e
que todo caminho que nos leve neste sentido deve ser tomado.
Naturalmente, a compreensão e a representação de uma obra musical são

87
extremamente independentes da realização sonora; os primeiros e mais
importantes passos para uma interpretação musical sensata são, pois,
invisíveis e os menos espetaculares; quando muito sensacionais, no
verdadeiro sentido desta palavra. Visível é o último passo, o trabalho
com os instrumentos originais. Este constitui a particularidade mais
espetacular, a mais evidente numa interpretação, embora seja muito
frequentemente empregada de maneira inepta, sem as condições
preliminares da técnica de execução, mas frequentemente, também sem
uma exigência musical imperiosa. Assim, a autenticidade sonora pode
constituir, para muitas obras, uma ajuda fundamental, mas em outros
casos, justamente por causa de seu caráter espetacular, pode cair num
absurdo fetichismo do som.

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Bom, conforme...! A execução musical com instrumentos antigos,
ou seja, com instrumentos que por qualquer razão saíram de uso, tem
infelizmente uma história tão suspeita, que quase ninguém consegue
discutir o assunto com tranquilidade, sem falsa paixão. Apesar de me
incluir no grupo dos partidários do sim — não sem razão — eu gostaria
de ser considerado, em relação a isso, como uma exceção. Creio
argumentar de maneira absolutamente objetiva e técnica e com uma
paixão autêntica, tal como espero que o meu interlocutor imaginário tam-
bém o faça.
Basta que se tenha um instrumento antigo na mão e já se é tachado
de “purista”, de “historicista”, de asceta estilístico ou de músico que —
por falta de intuição — é obrigado a estar refletindo constantemente
sobre cada nota. Palavras inocentes como “autenticidade” ganham tom
negativo; contesta-se, a priori, a seus partidários o direito a uma prática
musical engajada e, até mesmo com frequência, competente. Mas, por
quê? Mesmo com todos os sofismas, não se consegue descobrir nada de
negativo no conceito de fidelidade à obra, e se este conceito está sempre
sendo confundido (aliás, indevidamente) com o de fidelidade às notas —
ou de infidelidade à obra, o que dá no mesmo — a culpa não é dessa
inocente expressão, mas antes do seu mau emprego.
A conotação ligada à palavra “purista”, nos dias de hoje, permite
exprimir algo de verdadeiro, por assim dizer, mas com um piscar de olho
depreciativo e pejorativo — o que evidentemente muita gente não se
furta de fazer. Como já aqui mencionamos, o “nascimento” da música
antiga nos anos 20 e 30 nos marcou a todos, fôssemos partidários do
“sim” ou do “não”. A música antiga, com efeito, não era, de início,
considerada como parte da vida musical oficializada, mas como uma
contra-música de fundamento ideológico, descoberta e praticada por
seletos círculos de entusiásticos diletantes. No* mundo profissional da
música não se lhe dava grande importância e os seus propugnadores, por
outro lado, não ligavam para isso, pois queriam que tudo ficasse entre
eles. Acreditava-se ter encontrado na música antiga o “puro”, o
“verdadeiro” — tais eram as metas dos movimentos da juventude após a
Primeira Guerra Mundial, os quais em geral se opunham à moral
burguesa da sociedade de então.
A música oficial dos concertos sinfônicos e dos teatros líricos
passava por empolada, mentirosa, o sistema todo por “inautêntico”.

89
“Romântico” tornou-se um termo pejorativo, enquanto que “objetivo”
adquiriu um sentido positivo. Brilhantismo técnico e perfeição eram
propriedades da música profissional e, por isso mesmo, algo já suspeito.
A música do Barroco e da Renascença, até então totalmente desprezada,
parecia corresponder perfeitamente aos novos ideais: cantada ou tocada
lentamente, ela oferecia poucas dificuldades técnicas, e pela ausência de
indicações de dinâmica e tempo se prestava de forma ideal a uma prática
“objetiva”.
Logo se iniciou também um distanciamento dos instrumentos
convencionais, redescobrindo-se então a flauta doce, a viola da gamba e
o cravo. Devido à falta de grandes modelos e de uma tradição contínua,
as sonoridades eram inicialmente pouco consistentes, ásperas, mas
mesmo assim consideradas verdadeiras e por isso belas. Naturalmente
havia pessoas que, além dos resultados efetivamente obtidos, entreviam
as possibilidades técnicas e sonoras, e encontravam nesta música um
valor que extrapolava o ponto de vista ideológico. Alguns músicos
profissionais logo passaram a interessar-se por esta questão e também
pelos novos instrumentos descobertos, mas não eram levados a sério por
seus colegas. A atividade deles era considerada como hobby e não muito
bem-vista, pois se temia uma queda de qualidade nos instrumentos
“normais” e na música “correta”.
Nesta época inicial, aconteceram graves erros na fabricação dos
instrumentos, que ainda hoje repercutem. O exemplo mais marcante é o
cravo moderno. Os fabricantes rapidamente descobriram o novo
mercado e o crescente número de amadores que se abasteciam de flautas
doces e gambas e posteriormente de cromornes, cornetos, trombones
barrocos e muitos outros instrumentos “antigos”. Como instrumento
acompanhador, o piano doméstico já não entrava mais em questão, era
necessário ter um cravo. A nascente indústria de cravos — a demanda
foi imediatamente enorme — não se ateve aos antigos instrumentos
ainda preservados, pois não se desejava renunciar aos conhecimentos e
experiências da moderna construção de pianos. Assim, foram
construídos instrumentos de teclado de todos os tamanhos e preços,
construídos como pianos, mas com cordas pinçadas por plectra de couro
bastante duro e posteriormente feitas também de diversos materiais
sintéticos.
Estes instrumentos foram batizados de “cravos”, embora a sua
sonoridade estivesse para a de um verdadeiro cravo como a de um
violino de brinquedo feito de plástico está para a de um Stradivarius. As

90
falhas sequer eram notadas, pois não existiam critérios: os músicos nem
sabiam direito como deveria soar um cravo; a indústria seguiu os
caminhos mais fáceis e estava preocupada, principalmente, em fazer
crescer o mercado e preencher o espaço nele aberto. Estes instrumentos,
rapidamente disponíveis em grande número, foram logo usados para
introduzir, na “grande vida musical”, diversas das obras de Bach
executadas de acordo com “o estilo” e os ouvintes passaram a classificar
os seus sons estridentes e pouco consistentes como “sonoridade
original”. Alguns músicos de fato independentes intelectualmente, como
por exemplo Furtwängler, rejeitavam o “cravo”, dizendo que com aquilo
não se podia fazer música. Na realidade, não se tinha possibilidade de
ouvir um verdadeiro cravo, estando o mercado inundado de sucedâneos.
Foram necessárias décadas para que este mal-entendido fosse
esclarecido, e ainda levará muito tempo até que todos os músicos e
amantes da música substituam a ideia falsa do que seria a sonoridade de
um cravo por uma imagem correta e precisa, e também até que todos
estes monstruosos cravos desapareçam das salas de concerto. Enfim,
uma época de pioneiros tem o direito de cometer seus erros, desde que a
geração seguinte os reconheça e elimine.
Quis mencionar os primórdios do movimento da música antiga,
bastante incomuns e interessantes do ponto de vista da história da
cultura, como também da sua influência sobre a construção de
instrumentos, pelo fato de que tanto músicos profissionais, como críticos
musicais, como o público de concerto continuaram a ter, durante
décadas, uma atitude marcada pela situação particular deste início. Caso
um músico de formação moderna se interessasse, há trinta anos atrás,
pelas possibilidades atuais de interpretação da música dos séculos XVII
e XVIII, por admirar-lhe os valores artísticos, ele seria enquadrado,
quase como um desertor, no grupo dos sectários diletantes e se, além do
mais, por alguma razão escolhesse os instrumentos antigos, então não
seria mais levado a sério, pelo menos nos círculos da vida musical
sinfônica; esta abertura que se manifestava nos meios profissionais era
naturalmente bem-vista pelos partidários da música antiga, mesmo que
a aspiração natural à perfeição tornasse estes músicos suspeitos e,
ideologicamente falando, não correspondesse aos ideais da coisa.
Com o passar do tempo, foi-se verificando que uma execução com
instrumentos antigos podia ser tão boa quanto com instrumentos
modernos; a questão é saber por que um músico opta por este ou aquele
meio sonoro.

91
Os preconceitos iniciais serão certamente varridos nos próximos
anos, a ponto de não haver mais motivos extramusicais — o medo da
discriminação ou problemas de mercado — a influenciar 110 tipo de
escolha. A ambição óbvia e natural de todo bom músico é utilizar o
melhor instrumento possível. É claro que alguns aspectos históricos ou
arqueológicos podem atrair a atenção por certo tempo: como é que isto
era feito antigamente, como teria soado? Porém não há músico que
consiga, por muito tempo, fazer deste interesse & sua profissão; tal
pessoa, eu a classificaria de historiador. O músico irá sempre ambicionar
o instrumento ideal para ele. Gostaria, assim, de me limitar, nas
considerações que passo a fazer, aos músicos que, por motivos
exclusivamente musicais, preferem este ou aquele instrumento; aqueles
que o fazem por interesse unicamente histórico para mim não contam.
No melhor dos casos são musicólogos, não intérpretes.
Temos atualmente um repertório à nossa disposição de uma
extensão jamais vista. Hoje, são novamente executadas obras concebidas
num espaço de oitocentos anos. Um conhecimento adequado das
condições históricas (ver o exemplo do cravo, citado acima, que poderia,
analogamente, ser estendido a muitos outros instrumentos) nos permite
dispor de um arsenal de numerosos instrumentos, das épocas mais
diversas. O músico deveria ter o direito de executar cada obra com o
instrumento que lhe parece o mais conveniente ou com a combinação
sonora que julga ideal.
Para tomar esta decisão, há apenas um ponto de vista determinante:
a realização de tal música fica melhor neste ou naquele instrumento?
Todo músico sabe que não existe um instrumento absolutamente
perfeito; certos defeitos precisam ser aceitos, seja o instrumento antigo
ou moderno. Comparando-se as qualidades e os defeitos dos melhores
instrumentos de diferentes épocas, constata-se que não há uma evolução
no sentido do pior para o melhor — como talvez seja o caso de aviões
ou máquinas fotográficas — mas que cada instrumento, até mesmo cada
estágio de seu desenvolvimento, possui vantagens e desvantagens, das
quais os músicos e construtores de instrumentos estavam plenamente
conscientes. É bem natural que exista uma estreita relação, e mesmo uma
influência recíproca, entre as ideias dos construtores de instrumentos de
um lado e as dos músicos — instrumentistas e compositores — do outro.
É assim que um certo número de louváveis invenções de construtores de
instrumentos, apesar de um sucesso inicial, não se impuseram junto aos
músicos (como o heckelphone, o arpeggione etc.), enquanto que outras,

92
como o Hammerklavier4 foram objeto de constantes metamorfoses,
graças à estreita colaboração entre compositores e construtores.
A evolução parece ter chegado a seu termo já há algum tempo: há
mais de cem anos nossos instrumentos permanecem, praticamente,
inalterados, fato deveras notável, levando-se em conta que, nos; últimos
séculos, quase todos os (instrumentos passavam por decisivas
modificações no espaço de uns poucos anos, ou quando muito no espaço
compreendido entre duas gerações.
Poder-se-ia, assim, dar, finalmente, uma dupla resposta à pergunta
feita: sim — pois todos os instrumentos em questão são, de um modo ou
de outro, antigos; ou não — pois os instrumentos, por terem alcançado
uma perfeição há mais de cem anos, naturalmente não têm mais
necessidade de serem modificados.
Para mim, só a primeira pergunta permite prosseguir no assunto,
pois a evolução dos instrumentos estagnou não devido a uma perfeição
alcançada — isso seria assustadoramente inumano — mas porque nesta
época toda evidência da música ocidental, e mesmo da cultura ocidental,
se encontrou fortemente abalada. Só a partir do momento em que a
criação artística do presente não corresponde mais à demanda cultural, e
em que não mais encaramos a arte e a música do passado com a
arrogância de seres superiores — coisa que numa época culturalmente
sã ia de per si — é que podemos julgar esta música corretamente. Este
julgamento, porém, tanto na música como nas belas-artes, deixou de ser
um julgamento valorativo, no sentido de considerarmos a música de uma
época superior a de uma outra.
Entretanto, no caso de instrumentos musicais, por se tratar de uma
“ferramenta”, de um tipo de aparelho técnico, a ideia de progresso
sobrevive aqui mais persistentemente. O instrumento musical é também
uma obra de arte. Os nomes dos grandes construtores de instrumentos
são e eram tão famosos quanto os de grandes pintores: Antonio
Stradivari, Johann Christoph Denner, Johann Wilhelm Haas, Andreas
Ruckers, Andreas Stein, Theobald Böhm etc., criaram instrumentos
musicais, que em seu gênero eram perfeitos como obra de arte, e que não
se podia melhorar sem ao mesmo tempo deteriorá-los.
Tomando-se, por exemplo, um violino de Stradivarius, de cerca de
1700 tal como ele o construiu, e montando-o com cordas de tripa, com d
cavalete, estandarte e alma antigamente usados e, por fim, tocando-o

4 O mesmo que fortepiano ou pianoforte, predecessor do atual piano. (N. do T.)

93
com um bom arco da mesma época, iremos constatar que este violino irá
soar com muito menos volume que um violino transformado 110 século
XIX ou XX, montado com cordas modernas e tocado com um arco
moderno; contudo, o violino antigo possui um grande número de sutis
particularidades sonoras (sons harmônicos, tipo de resposta, maneira de
ligar os sons, equilíbrio entre as cordas agudas e graves), que o violino
moderno não possui mais.
Talvez devesse ainda explicar aqui, rapidamente, que mesmo os
instrumentos de cordas antigos, que há séculos vêm sendo utilizados,
foram submetidos a transformações constantes impostas pelas
exigências de cada época. Eles eram transformados sem cessar, às vezes
profundamente, e desta forma foram preservados até os dias de hoje,
atravessando todas as mudanças de estilo e gosto. Um violino antigo tem
atualmente uma sonoridade muito diferente daquela que tinha há
duzentos ou trezentos anos, e um virtuose do violino de nossa época
certamente se surpreenderia tanto se ouvisse o seu “Stradivarius" no
estado original, quanto o próprio Stradivarius,, se escutasse e visse o
que, no decorrer desses anos, foi feito de seus instrumentos. Não existe
hoje praticamente nenhum dos grandes instrumentos que não tenha sido
muitas vezes transformado. Estas transformações tinham como objetivo
principal obter um maior volume, bem como proporcionar uma maior
igualdade e uniformidade.
Entrementes, como os melhores instrumentos de corda antigos eram
de uma qualidade muito equilibrada, cada melhoria obtida através de
uma transformação devia ser paga com um empobrecimento em algum
outro domínio (principalmente sonoro). Tudo de pende, portanto, do que
se considera particularmente importante. Ou melhor, quando se compara
uma flauta Böhm de prata a uma flauta de uma chave, de Hotteterre,
constata-se que numa flauta Böhm todos os semitons soam iguais,
enquanto que numa Hotteterre. devido às diferentes dimensões dos
orifícios e aos inevitáveis dedilhados em forquilha, praticamente cada
nota tem uma cor particular. A flauta Böhm possui também bastante mais
volume do que a outra, porém é mais pobre em termos de sonoridade,
com menor variação tímbrica, mais uniforme. Naturalmente, tudo isto,
de acordo com o ponto de vista e gosto pessoal, poderia ser formulado
de maneira diferente: a flauta de Hotteterre seria um instrumento ruim,
já que suas notas soam absolutamente desiguais — se nos guiarmos pelo
ideal sonoro da flauta Böhm ou, então, a flauta Böhm é que seria

94
considerada um mau instrumento, pelo fato de suas notas serem todas
iguais — segundo o ideal sonoro da flauta de uma chave.
Estes pontos de vista e ainda muitos outros já se encontram em
tratados antigos de diversas épocas; há que constatar-se que não se
poderia tão facilmente definir o bom e o ruim, que é necessário antes de
mais nada pôr-se de acordo sobre os desejos do compositor, dos
instrumentistas e dos construtores de instrumentos. Quando um músico,
seja por que razão for, prefere a sonoridade irregular da flauta Hotteterre
à igualdade da flauta Böhm — o que é, também historicamente falando,
uma escolha legítima —, a desigualdade sonora não pode ser criticada
como defeito de sua interpretação, da mesma forma que um crítico com
uma visão oposta nunca deveria criticar a igualdade sonora de uma
interpretação na flauta Böhm, como um" defeito da execução.
O julgamento histórico das inovações na construção de instrumentos
só tinha interesse na medida em que se tratava realmente de inovações.
Hoje, a questão é a de simplesmente saber se uma interpretação faz
sentido e se ela consegue convencer. Muitos músicos, entre os quais me
incluo, ao final de uma experiência comparativa, constatam que as
vantagens e as desvantagens de cada estágio de evolução de um
instrumento coincidem exatamente com as exigências da música que lhe
é contemporânea. As colorações diferenciadas e a sonoridade escura da
flauta de Hotteterre combinam perfeitamente com a música francesa
anterior a 1700 e de maneira alguma com a música alemã de 1900,
enquanto que a igualdade e a sonoridade metálica da flauta Böhm são
ideais para a música desta época e inadequadas para a música daquela.
Este tipo de confrontação pode ser feito com cada um dos instrumentos;
somente a questão de saber se tal ou qual instrumento pode ainda hoje
ser tocado de maneira perfeitamente adequada, pode, em certos casos,
dificultar um julgamento imparcial.
Uma questão importantíssima na escolha de um instrumento é a sua
qualidade objetiva. Além do problema de saber se é preciso tocar em
instrumentos “modernos” ou “antigos”, é necessário também perguntar-
se: o que é na verdade um bom instrumento? E se o aspecto sonoro da
interpretação tem uma importância tal, que me obriga a escolher os
instrumentos de uma certa época por razões artísticas, se assim for, esse
aspecto, aos meus olhos, deve ser igualmente importante na avaliação
dos instrumentos.
Em outras palavras: seria um absurdo, preferir uma flauta barroca
ruim a uma flauta Böhm, só pelo fato da primeira ser uma flauta barroca.

95
Um instrumento continua ruim mesmo que, por causa de uma moda
passageira, pela falta geral de espírito crítico dos músicos e melômanos
lhe seja concedida uma glória fugaz (como o exemplo do pseudo-cravo
acima mencionado). Precisamos estar atentos para evitar que os falsos
profetas — os lobos em pele de cordeiro, por assim dizer — não nos
façam, tomar o falso por verdadeiro e o ruim pelo bom. Um eventual
modismo de instrumentos antigos não nos deve levar a uma situação
onde canudos de madeira mais ou menos bem torneados com seis ou oito
orifícios sejam gabados como “instrumentos originais”, e, como tais,
utilizados, por mais inadequada que seja a sua sonoridade. Deveríamos
sempre submeter-nos à arbitragem de nossos ouvidos e nosso gosto e
contentar-nos apenas com o melhor.
O músico consciente de suas responsabilidades não perderá oca3:ão
de tocar ou escutar os instrumentos autênticos pelos grandes mestres e
nem deixará de compará-los com as suas cópias ou, mais
frequentemente, com as suas pretensas cópias. Somente quando o ouvido
tornar-se novamente afiado, capaz de escutar os sons sutis e a verdadeira
qualidade do som, é que se poderá distinguir a sonoridade de brinquedo
dos falsos “instrumentos originais” da sonoridade rica dos verdadeiros
(e das boas cópias). O público também não se deixará mais enganar por
muito tempo, hoje obrigado a “engolir” como rica “sonoridade barroca
original” uma execução de péssimas qualidades sonoras. O termo
“instrumentos originais" não deve impedir nossa capacidade de
julgamento, face ao grande entusiasmo pelas autênticas sonoridades
antigas, pretensamente re-descobertas. O erro histórico que marcou a
construção de cravos não deve repetir-se agora com os outros
instrumentos. Ê necessário rejeitar energicamente a mediocridade, coisa
que ao musico normal sempre pareceu evidente.
À medida que os músicos se familiarizam com as particularidades
dos diversos estilos da música ocidental, de acordo com as épocas e
países, descobrem as relações profundas entre cada música e as
condições de interpretação originais e atuais. Em geral, exatamente os
músicos conservadores, aqueles que estagnaram na música da virada do
século, preferem também os instrumentos daquela época, hoje
ridiculamente chamados modernos, mesmo quando executam Música
Antiga.
Em contrapartida, os músicos abertos também à música con-
temporânea, quando executam a música antiga, se é que a executam, se
voltam para os instrumentos antigos, pois acreditam que assim estão

96
enriquecendo de forma decisiva sua gama expressiva. Vê-se, portanto,
que a distinção sustentada — precisa e particularmente pela crítica
especializada — entre interpretação moderna (com instrumentos
habituais) e interpretação histórica (com instrumentos antigos) passa
inteiramente ao largo do cerne da questão. A modernidade de uma
interpretação não está absolutamente fundada na escolha dos
instrumentos, e menos ainda na confrontação aqui citada. Naturalmente
uma interpretação com instrumentos antigos — da mesma forma que
com os habituais —pode ser histórica, não, entretanto, em razão da
escolha dos instrumentos e sim como decorrência da concepção do
músico em questão. O critério de decisão só poderá ser: que vantagens e
desvantagens pesam mais para cada intérprete?
O problema da afinação, que nenhum músico seriamente dedicado
à música pré-clássica pode ignorar, faz parte dos aspectos puramente
sonoros e técnicos. Aqui ainda, ao final da reflexão e experiências,
chega-se à conclusão de que cada música exige um determinado sistema
de afinação e que os diferentes temperamentos com terças puras e os
temperamentos desiguais dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX são pelo
menos tão importantes para a reprodução de música antiga quanto o
temperamento igual que de bem temperado não tem nada. Também neste
ponto os instrumentos antigos podem constituir uma ajuda, pois ao
contrário do que se pensa, pode-se tocar indiferentemente afinado ou
desafinado tanto nos bons instrumentos antigos quanto nos “modernos”,
embora os diferentes sistemas de afinação sejam mais facilmente
realizáveis nos instrumentos originais.
Como último argumento, gostaria de citar o complexo de questões
referentes ao equilíbrio dentro de uma orquestra ou grupo de câmara.
Toda época tem um conjunto de instrumentos que se ajustam
perfeitamente entre si; os compositores escrevem para esta orquestra,
para estas relações sonoras. Assim, se hoje nos contentamos em escolher
cada um dos instrumentos da orquestra pelo mesmo nome ou nome
parecido com o do instrumento originalmente desejado pelo compositor,
chegamos a uma sonoridade aleatória, que pouco tem a ver com a ideia
do compositor.
Não gostaria absolutamente de tomar partido aqui a favor das
execuções “históricas”, de reconstituições de épocas anteriores; não se
pode fazer a roda da história girar para trás. Mas seja lá qual for o nosso
progressismo, temos indubitavelmente necessidade da arte, da música de
épocas anteriores; o aspecto sonoro é e contínua sendo algo secundário.

97
A sonoridade original só me interessa na medida em que ela, dentre as
numerosas possibilidades de que disponho, me parece a melhor para
executar esta ou aquela música atualmente. Da mesma forma que a
orquestra de Praetorius me parece inadequada para tocar Richard.
Strauss, considero a orquestra de Richard Strauss inadequada para tocar
Monteverdi.

98
Cada substantivo do título me desperta emoções, exige de mim des-
culpas, explicações, antíteses. “Reconstituição das condições sonoras
originais” — já aqui surgem numerosas perguntas: o que são condições
sonoras originais, são elas boas, ruins, ou têm valor neutro, e por que
reconstituí-las? Por que não elaborar novas condições? E ainda “em
estúdio”? Este complemento é uma total desilusão; quando se pensa em
reconstituir condições sonoras, se imagina certamente igrejas góticas ou
barrocas nas quais se irá tocar com os chamados instrumentos originais
ou, quem sabe, até mesmo cantar com vozes originais, lamentando —
com justa razão, de um ponto de vista rigorosamente científico ou no de
uma mais que legítima ecologia — que o órgão do século XVII não possa
funcionar com o ar original da época, que deveria possuir características
sonoras bem diferentes das atuais.
Não posso tratar tal tema de maneira objetiva, cada pensamento que
me ocorre me exige e obriga a tomar uma posição extremamente pessoal.
Compreendo por condições sonoras originais aquilo que o compositor
deveria ter imaginado à ocasião de uma execução ideal de sua época.
Esta ideia me interessa, pois para mim é óbvio que a maior parte dos
compositores não concebiam suas obras unicamente como estruturas
formais abstratas, elas eram também uma realidade sonora. O equilíbrio
dos diversos componentes possíveis difere evidentemente de um
compositor para outro e é também bastante condicionado pelo gosto
geral da época. É de extrema importância para um músico que não
executa suas próprias obras, mas as dos outros compositores,
compreender as ideias destes. A substância musical não depende da
realização sonora na mesma medida em todas as épocas, todos os
compositores e para as diferentes obras.
As composições dos franco-flamengos do século XVI, por exemplo,
deixam a realização sonora totalmente em aberto: não é nem mesmo
essencial para uma obra o fato de ela ser tocada ou cantada Isso significa
que os intérpretes têm uma total liberdade (à condição, é claro, que eu
queira apresentar a obra com honestidade) ou será que entre as
“possibilidades” corretas, infinitamente numerosas existe algo de
comum que delimita a fronteira do erro? Neste ponto, me encontro
caminhando sobre o terreno escorregadio das tentativas de avaliação das
quais, se sabe — e isso vale para quase todos os tipos de pesquisa,

99
inclusive no domínio das ciências naturais —, resulta o que o
pesquisador já esperava.
Acredito, portanto, levado sobretudo pelo meu sentimento musical,
que as possibilidades corretas possuem entre si algo de comum —
sempre na suposição de que eu queira representar a composição e não
transformá-la ou recriá-la.
Esta qualidade comum pode, em primeiro lugar, referir-se ao timbre
e às possibilidades de fusão das sonoridades; em segundo lugar, pode
referir-se ao princípio de produção de som, o que acontece mais
frequentemente: como, por exemplo, um som sustentado ou um som do
tipo sino; em terceiro lugar, ao sistema de afinação, quer dizer, às
convenções de princípio segundo as quais tornamos os intervalos justos,
muito grandes ou muito pequenos, e por fim, em quarto lugar, refere-se
às condições acústicas. É perfeitamente possível constatar as
concordâncias e as divergências sobre esses pontos, podendo-se avaliar
e explorar sua importância para a interpretação.
Dito em poucas palavras, na minha opinião, há quase sempre muitas
soluções corretas e possíveis, mas também — é importante ter-se
consciência disto — há algumas absolutamente erradas. Como os
compositores prevêem para suas obras determinadas sonoridades, eles
escrevem de forma idiomática, numa escrita típica para o instrumento,
para a voz, para a orquestra. Se para a música da época de Maximiliano
I, por exemplo, existem numerosas e diversas possibilidades de execução
“original”, já para os poemas sinfônicos de Richard Strauss há somente
uma imagem sonora adequada. Nos quatro séculos que os separam,
houve um deslocamento progressivo, que foi constantemente reduzindo
o número das possibilidades “corretas”.
Compreendo por condições sonoras originais todas as possi-
bilidades legítimas com as quais um compositor podia representar -se.
Gostaria agora, por motivos de ordem, de excluir todas as transposições
ao estilo de uma outra época; eu as vejo como traduções para línguas
estrangeiras que sempre alteram a obra de arte — aqui o que interessa é
a obra do compositor e eu devo, portanto, esforçar-me para aprender sua
linguagem.
As condições sonoras originais são, por isso, muito interessantes
para o músico, se elas puderem ultrapassar a simples estética e chegar
ao essencial da obra, de modo a contribuir para sua compreensão. A
pergunta puramente histórica — “como é que isto soava naquele tempo?”
— deve ter para o músico um valor apenas informativo; para ele só deve

100
importar a indagação: “Como posso interpretá-la da melhor forma?”
Hoje em dia, quando se discute o problema das sonoridades de épocas
diferentes, se pensa antes demais nada nas sonoridades instrumentais. O
termo “instrumentos antigos” começa a tornar-se um conceito de valor,
com todas as vantagens e desvantagens que isso traz. Há cinco anos
dizia-se, por exemplo, “é incrivelmente belo, mesmo com estes
instrumentos antigos”, ao contrário de hoje, quando se lê e escuta cada
vez com maior frequência: “É belo, apesar dos instrumentos utilizados
não serem antigos.” Os critérios transformaram-se a este ponto. Não é
certo que os instrumentos estejam realmente em primeiro plano na
questão das condições sonoras. Sou até mesmo de opinião de que a
dicção musical, a articulação e o complexo da afinação na música dos
séculos XVII e XVIII, no que diz respeito à sonoridade, ocupam uma
posição de maior relevância do que os instrumentos, pois são estes os
elementos que agem muito mais diretamente sobre a substância musical.
Afinação: refiro-me aqui não ao ajuste das sonoridades do piano,
órgão e cravo, mas à questão da exatidão das alturas do som. A afinação
é julgada, atualmente, em termos absolutos: ela seria boa ou ruim, pura
ou impura. É uma posição totalmente insustentável. Não existe uma
afinação pura universal. Um artista, cuja afinação é correta, sempre
uniforme, possui uma afinação pura dentro de seu sistema sonoro. O
ouvido humano é como uma folha de papel em branco, na qual o afinador
de piano, o rádio, o professor de música, inscrevem um sistema de
afinação. Ele deve ser, por assim d:zer. programado, mas cada diferença
com relação ao programa será considerada como algo errado. Esta
impressão é, portanto, inteiramente subjetiva. Se, contudo, cada época
utiliza o seu próprio sistema de afinação, diferente de um outro qualquer,
há que perguntar-se se, em última instância, é possível interpretar de
maneira coerente uma música, seja esta qual for, com um sistema único,
como o que está em uso hoje, por exemplo. Um quarteto de cordas pode
tocar perfeitamente. Se ele toca um quarteto de Mozart de acordo com o
método de afinação ensinado há sessenta anos (para produzir uma tensão
melódica, nos afastamos para a extremidade do temperamento igual,
principalmente nas sensíveis e terças maiores), tenho particularmente a
impressão de que está tudo errado. Isso porque o quarteto de Mozart foi
escrito para um outro tipo de. afinação, e eu estou há tantos anos
acostumado a sistemas de afinação diferenciados — de certo modo,
desprogramei os meus ouvidos — que a minha compreensão aqui entra
em greve. Contudo, não tenho dúvida de que os músicos afinam muito

101
bem, pois dentro de seu sistema são perfeitamente coerentes. Mas, me é
quase impossível seguir e compreender o processo harmônico. Para mim,
a afinação é, por conseguinte, ruim, francamente deplorável. Já outras
pessoas poderiam perfeitamente sentir como errada uma afinação que
considero pura. Está claro que antes de julgar é preciso se pôr de acordo
quanto ao sistema de afinação a ser utilizado. Este é apenas um exemplo
para demonstrar a importância de um problema muitas vezes desprezado,
ao qual ainda se soma, como consequência, a questão do sentido das
diversas tonalidades maiores e menores. Num sistema de temperamento
igual, as tonalidades não podem diferenciar-se umas das outras, a não
ser através das alturas do som. Há tempos que eu me admiro de que,
numa era de formulações precisas como essa nossa, se acredite, sem
qualquer fundamento objetivo, nos diferentes climas que se atribuem às
tonalidades, quando não existe mais que as transposições de dó maior e
lá menor. O temperamento dito igual, que muita gente erroneamente
confunde com o sistema “bem temperado”, só surgiu muito mais tarde,
no século XIX, quando entrou em uso. Aqui também há exceções que
são mantidas até a nossa época pela tradição da corporação dos
afinadores de piano que, dando uma afinação diferente às diversas
tonalidades, permitem uma verdadeira caracterização tonal, mesmo nos
instrumentos de teclado. Os instrumentos anteriores a 1840 oferecem,
naturalmente, possibilidades ainda mais diferenciadas, pois nos metais
naturais e nas madeiras da época, devido aos timbres diferentes
produzidos por cada dedilhado, as tonalidades soavam com uma grande
diversidade.
Além disso, há frequentemente dedilhados alternativos para as notas
enarmônicas; os sistemas de afinação barrocos e pré-barrocos
continuaram vigentes ainda por bastante tempo, enquanto que os
instrumentos posteriores se dirigiam a uma escala cromática homogênea.
É evidente que estes sistemas de afinação, extremamente diferenciados,
exercem uma grande influência, não somente sobre as características
tonais, mas também sobre a fusão sonora dentro de uma orquestra ou de
um conjunto. Alguns instrumentos, principalmente aqueles dos séculos
XVII e XVIII, possuem um rico espectro sonoro, com os harmônicos
claramente audíveis; assim é que uma orquestra que toca um acorde
perfeito maior de dó, necessariamente irá soar diferente, caso as terças
dos instrumentos agudos (como o mi, o quinto som harmônico do baixo)
não tenham a mesma afinação justa que o harmônico audível do baixo.
Esta diferença é ouvida sob a forma de “batimentos” que muitas vezes

102
se assemelham a um trilo. Aqui não se trata absolutamente de notas puras
ou impuras, mas de verdadeiras diferenças estéticas e estou convencido
de que toda música exige o sistema de afinação que lhe é apropriado tão
imperiosamente quanto os instrumentos históricos, embora, bem
entendido, existam aqui estreitas relações.
A acústica do lugar de execução é parte igualmente essencial das
condições sonoras originais. Também neste caso, o problema era outrora
muito claramente definido, pois se exigia do compositor competência e
conhecimentos que iam muito além da harmonia e do contraponto.
Como, em princípio, escreviam para certas ocasiões e determinados
espaços, a formação instrumental ou vocal, o conhecimento dos
executantes, a sonoridade do ambiente e o nível dos ouvintes eram
elementos que entravam na composição. Um equilíbrio sonoro ruim,
graves erros na execução, incompreensibilidade ou demasiada
simplicidade eram causa de censura ao compositor, que não soube
avaliar corretamente todos os dados. O ideal seria executar, hoje, a
música que foi composta para pequenos espaços e para um pequeno
círculo de ouvintes, num espaço reduzido, seja com instrumentos antigos
ou modernos. Não creio que o volume dos instrumentos teve que ser
aumentado porque os espaços tornavam-se cada vez maiores, mas sim
porque a dinâmica, uma vez elemento essencial da composição, exigia
uma potência cada vez maior. Quando se começa a tocar mais forte,
sobrevêm a necessidade de tocar-se mais forte ainda, até o limiar da dor.
Então, a sala precisa ser realmente grande. Acaba-se por poder colocar
nela uma orquestra de cento e vinte, cento e trinta músicos, com
instrumentos ruidosos. Na minha opinião, entretanto, o problema não é
nem o tamanho das salas, nem a crescente massa de ouvintes. Quando se
pensa que antigamente até mesmo as pessoas “simples” participavam,
em uma proporção inimaginável, da vida musical, pois um bom número
de concertos acontecia durante os serviços religiosos; que nas grandes
igrejas do norte da Itália, por exemplo, uma enorme quantidade de
música nova era executada, domingo após domingo, diante de uma
plateia de milhares de ouvintes, pode-se certamente afirmar então que
esta era uma vida musical com tamanha intensidade e atualidade, que
superava de longe até mesmo a vida musical filarmônica do mundo de
hoje.
Infelizmente, todo intérprete hoje se confronta com a situação de ter
que tocar em salas onde a acústica, para um certo tipo de música, está
longe de ser a ideal. Um radicalismo muito grande neste domínio seria

103
fatal para a vida musical, pois significaria que — e estou firmemente
convencido de que a acústica da sala é parte integrante da sonoridade da
música — a partir do momento que eu tivesse encontrado a sala ideal,
não iria querer outra para dar os meus concertos e o público deveria ir
sempre lá. São inevitáveis os compromissos neste sentido. Naturalmente,
há o perigo de se estender demais estes compromissos, chegando-se ao
ponto de tocar também em salas onde grande parte do público acabará
se convencendo de que a imagem sonora oferecida é demasiado pobre e
que isto se deve à sonoridade fraca dos instrumentos ou ao pequeno
número de instrumentistas prescritos pelo compositor (como, por
exemplo, no terceiro e sexto Concertos de Brandenburgo) que não se
pode aumentar sem haver alteração da estrutura musical.
Há salas muito grandes que têm uma acústica ideal, mesmo para
instrumentos antigos — e salas pequenas de péssima acústica. (A
qualidade de uma sala não depende somente de seu tamanho pois há
também pequenas salas cuja acústica é tão ruim que, no fundo, aí não se
deveria fazer música.) Mas não acredito que este seja um problema
insolúvel, pois quanto mais as pessoas se forem convencendo de que é
possível tocar muito melhor uma tal música numa tal acústica, mais se
irá utilizando salas com muita reverberação, que talvez sejam pouco
adequadas à música mais recente, mas são apropriadas à execução da
música dos séculos XVÍI e XVIII Entretanto, mesmo em salas ruins, é
possível fazer o público compreender, com uma maneira correta de tocar,
que não se trata d? se deixar envolver pelos sons, mas sim de escutar
ativamente. E ainda que a sonoridade seja muito “magra” pela ausência
de reverberação, continua sendo possível, através de uma execução
adequada, dar a cada linha, separadamente, a configuração que lhe con-
vém. Aquele ouvinte que consegue ultrapassar o problema da falta de
brilho e polimento — por sinal, na maioria das vezes um ouropel barato
— entende que assim está ganhando alguma coisa que não havia
percebido ou reconhecido nas execuções habituais, pois, nestas, tudo
desaparece sob o volume sonoro e também pelas sonoridades lineares,
enquanto que a outra música não é nunca composta de maneira linear.
Neste contexto, é especialmente importante a maior ou menor
reverberação de um espaço. Uma sala pode ser considerada demasiado
sonora (com excessiva e prolongada reverberação), quando a
inteligibilidade das mudanças de harmonia sofre, quando uma de-
terminada harmonia se sobrepõe à seguinte. Então o local obriga a que
se toque suficientemente lento para que a música seja harmonicamente

104
compreensível. Em outras palavras: não se trata do andamento das notas
rápidas, mas do andamento das mudanças de harmonia. Este, com efeito,
é um dos critérios mais importantes para a escolha do andamento correto:
a velocidade máxima de uma: peça é aquela em que a reverberação da
harmonia precedente não obscurece a seguinte. Sabe-se, através de
escritos de época, que os bons compositores se utilizavam da acústi ca
ambiental, da reverberação e dos efeitos da fusão de determinados sons
nas suas obras e que muitas obras do Barroco e, certamente, também da
Idade Média e Renascença são bastante mal compreendidas por não se
levar em conta estes fatores. O mais grandioso exemplo do domínio
soberano deste-problema, nós vamos encontrá-lo nas obras de Bach.
Conhecemos a acústica da igreja São Tomás, para a qual ele escreveu a
maioria de suas obras; sabemos que ela era, antigamente, revestida de
madeira e que tinha um tempo de reverberação que corresponde
aproximadamente àquele da Musikvereinssaal de Viena, em outras
palavras, o tempo de reverberação de uma boa sala de concertos, na qual
se pode tocar com tempi muito rápidos, sem que tudo se misture.
Compreende-se, assim, por que Bach podia se permitir — de acordo com
o testemunho de seus filhos — mudanças harmônicas rápidas, com tempi
também rápidos. Outros compositores, como por exemplo Vivaldi, que
utilizavam tempi extremamente rápidos — por sinal, os conjuntos
italianos jamais deixaram de interpretá-los igualmente rápidos —,
trabalharam em igrejas com ressonância. As mudanças de harmonia
estão suficientemente distantes umas das outras, nas obras compostas
para estes espaços, de modo a permanecerem compreensíveis. Sem
dúvida alguma, não se desejava que as notas rápidas fossem ouvidas
isoladamente; ao contrário elas são compostas para se misturarem na
reverberação e produzirem a sonoridade de um luminoso conjunto.
Quando um compositor escreve, por exemplo, um arpeggio rápido em
semicolcheias, para que este, com a reverberação do lugar, se funda num
acorde fremente, se o intérprete atual tenta executar as notas rápidas com
precisão e clareza, ele se engana sobre o significado destas notas e altera
a composição — não por sua fantasia, mas por ignorância! O perigo exis-
te caso ele queira — como alguns ouvintes críticos — ouvir a partitura,
ao invés da própria música; acaba achando que tudo se mistura 11a
acústica do lugar, o que não lhe agrada. Mas só não lhe agrada pelo fato
exclusivo de querer ouvir a partitura. Ao contrário, quando escutar a
música, perceberá que estas notas rápidas fazem surgir, com a
reverberação, um trêmulo e uma coloração indeterminada. É já uma

105
maneira de escrever impressionista, escolhida em função da
reverberação da sala. Neste contexto, gostaria de recomendar uma
reavaliação também das interpretações atuais de Mozart, levando este
fator em consideração. Estou firmemente convencido de que tudo o que
se cinzela de maneira tão fina hoje em dia — tudo o que se quer escutar
como se fosse traçado sobre uma prancha de desenho — deveria ser na
realidade, com a reverberação, reconhecível., porém com contornos mais
desalinhados. Não são as dimensões que importam primordialmente para
a acústica de uma sala, mas a reverberação e a densidade do som.
Podemos reconhecer como o espaço realmente é essencial para a
música barroca, quando observamos o grande significado da escrita
policoral no concerto barroco. A disposição dos músicos em diversos
locais em um determinado espaço é de enorme importância para a música
barroca. Muita música deste tempo provinha não só de um palco, como
é o caso hoje, mas do espaço inteiro que era assim integrado à música.
Esta técnica de execução policoral era muitas vezes empregada até
mesmo em obras com um só coro. Podia-se também executar simples
músicas a quatro vozes à maneira policoral, fazendo-se tocar
alternadamente ou mesmo juntos vários grupos distribuídos por todo o
espaço, cada um podendo tocar todas as vozes. (A tradição confirma este
tipo de execução dos ricercare de Willaert a quatro vozes.) Esta
disposição, de coro e orquestra separados, foi usada na catedral de
Salzburgo até a segunda metade do século XVIII. Missas de Leopold
Mozart com postas para um só coro, como era uso, na época, eram
executadas, na catedral à maneira policoral; para este fim havia ainda
naquele tempo várias tribunas de madeira suplementares.
O arranjo da disposição espacial era mais da responsabilidade de
execução do que da obra propriamente dita. Fundamentalmente, a ideia
de um lugar sonoro estava no início ligada à concepção religiosa. A
música não era apenas uma execução que se ouvia, mas uma
manifestação sonora do lugar sagrado. A própria igreja era um louvor
arquitetônico a Deus. Entra-se no espaço, e quando ele começa a soar,
este som não vem de uma determinada direção, mas de todos os pontos,
e se funde com a arquitetura, com a experiência espacial numa unidade
que pode ter efeito estonteante. Esta integração do espaço à composição
era exigida por uma concepção global de arte, que infelizmente
perdemos há muito tempo. Não consideramos mais a arte hoje como uma
totalidade. Mas deveríamos ao menos saber que esta unidade entre

106
espaço e som era essencial à música barroca: destinada a atingir e a
transformar o homem na sua totalidade.
A integração de um espaço, quase sempre sagrado, à composição é
muito clara nas Vespro della Beata Vergine, de Monteverdi, por
exemplo. Nesta composição a escrita policoral é inerente à ideia da obra,
mesmo onde não é explicitamente exigida. O primeiro coro compreende
os solistas, enquanto que o cantus firmus — o outro coro — é confiado
aos coristas. Os soli são a cada vez respondidos pelo coro completo. O
sentido da disposição separada dos cantores fica especialmente evidente
no “concerto” Duo Seraphim. Aqui, a necessidade de uma música
englobando o espaço provém da ideia de que os serafins se interpelam
uns aos outros no céu. No Audi caelo, é o echo que intervém, como
reação da natureza ao canto dos anjos. Estes efeitos de eco eram de tal
importância para Monteverdi, que, em um determinado trecho de sua
ópera Orfeo. ele exige, para umas poucas palavras de eco, um organo di
legno (órgão com tubos de madeira). Passagens de eco constituem tam-
bém um importante elemento do diálogo concertante como, por exemplo,
no quarto Concerto de Brandenburgo. Para Bach, o efeito de eco era tão
essencial que ele indica expressamente as duas flautas que fazem o eco
como flautti decho. Não se deve, portanto, renunciar à ideia de separar
os instrumentos no espaço; pois somente se estas “flautas de eco” forem
ouvidas a distância é que a ideia originalmente concebida por Bach pode
ser posta em prática.
Quando se reflete a respeito do papel essencial do espaço para a
música e para a prática musical nos séculos XVII e XVIII, é que se
constata a importância da disposição da orquestra e dos. instrumentos no
espaço — mesmo para muitas obras de Mozart e Haydn. Com esta
disposição em uso na atual orquestra sinfônica, não há muito o que fazer,
pois as sonoridades dos grupos que dialogam, sem dúvida separados uns
dos outros (musicalmente falando), acabam por se misturar umas às
outras, tornando-se incompreensíveis. A concepção barroca da
disposição almeja uma separação entre os grupos, isolados tanto quanto
for possível, para que o diálogo, mesmo a distância, permaneça
compreensível. Este diálogo pode se estabelecer entre solo e tutti, entre
grupos orquestrais maiores e menores, mas também entre instrumentos
isolados. Isto pode realizar-se com uma orquestra de câmara e um trio
solista, por exemplo, sendo que uma separação espacial dos dois grupos
é essencial. Há um concerto de Corelli que foi executado no palácio do
cardeal Barberini, com cem instrumentos de cordas, distribuídos em

107
diversos grupos por toda a moradia. A disposição separada do concertino
(o grupo solista de um concerto) da orquestra estava em uso por toda
parte, para que o d:áIogo e o efeito de eco fossem os mais claros
possíveis. Neste contexto, surge um problema particular relacionado aos
concertos para vários cravos ou pianos. Os instrumentos são colocados,
hoje, de tal maneira que o diálogo entre eles, tão desejado pelo
compositor, praticamente não existe, já que os instrumentos estão
arrumados muito próximos uns dos outros. Desta forma, tem-se mais a
impressão de um único cravo ou de um piano reforçado, do que a de
vários instrumentos conversando entre si. Para se conseguir uma
situação ideal, seria necessário tentar um posicionamento dos
instrumentos tão longe quanto possível uns dos outros, a fim de alcançar
o resultado ótimo quanto à separação do som, sem prejudicar o
entrosamento do conjunto.
Depois de ter comentado sobre a importância da acústica e do
espaço no que diz respeito à escrita policoral e à disposição dos músicos
no ambiente, gostaria de falar sobre a questão do estúdio o local de
gravação para rádio ou discos. Nós, do Concentus Musicus de Viena,
gravamos discos desde 1958, em numerosas firmas diferentes nos
primeiros anos, e isto se traduzia numa diversidade muito grande na
técnica de gravação. Os conflitos são inevitáveis para os músicos, pois
o espaço onde se toca contribui de forma essencial para a impressão
sonora, principalmente em se tratando do tipo de música que fazemos;
como músicos, só podemos nos sentir bem num espaço que seja ideal
para esta música, ainda que ela não esteja sendo gravada. Isto significa
dizer que o músico só pode criar as condições sonoras originais “no es -
túdio”, se o espaço deste não for propriamente um estúdio, mas, na
verdade, um lugar ideal para tocar tal tipo de música. Os exemplos
seguintes demonstram que, do lado dos técnicos, a coisa pode ser um
pouco diferente: os dois extremos, com os quais já nos confrontamos,
foram: o de uma gravação num local sem reverberação, praticamente
surdo, e o de gravações em salas barrocas, musicalmente ideais. No
primeiro caso, as condições musicais eram tão desfavoráveis que nunca
mais quisemos repetir a experiência. Os músicos mal podiam se escutar,
o próprio som parecia gasto e sem cor e não havia nenhuma fusão sonora
no espaço. Os instrumentos respondem muito mal em uma sala como
esta. É impossível uma execução verdadeiramente inspirada. Pode ser
que, na cabine de audição, tudo soe muito melhor e mais verdadeiro, pois
à gravação, é incorporada uma reverberação artificial o que, contudo,

108
não representa qualquer ajuda para uma execução verdadeira — e mesmo
que o resultado sonoro final fosse ideal, o método seria inumano; uma
gravação destas só pode tornar-se musicalmente boa por mero acaso. Nós
ainda procuramos e fomos obrigados a experimentar outras
combinações. Certa vez, cada instrumento foi gravado isoladamente na
sua própria pista, e a mixagem final com a divisão estereofônica e a
reverberação foi realizada bem mais tarde, sem qualquer influência de
nossa parte. Depois de haver passado por todas as provas das diferentes
concepções de estúdio, do condicionamento da imagem sonora até o
disco pronto, retornamos atualmente ao lugar onde começamos há
muitos anos: um espaço ideal para a música em questão estimula uma
execução excelente e somente uma tal execução merece ser conservada;
os resultados parecem ser os melhores também tecnicamente falando.
Pois então, condições sonoras originais em estúdio? Somente se o
estúdio não for um estúdio.

Retornemos ao ponto de partida de minha exposição cujo título


desperta em mim tantas contradições. Tentei esclarecer as condições
sonoras originais como um problema que abrange muito mais coisas do
que apenas os chamados instrumentos antigos. Agora vem o ponto
decisivo que tanto enfurece o músico: “re” constituição... Eu me sinto
logo transportado a um campo de escavações assírias, entre arqueólogos
que tentam reconstituir um antigo templo. Você poderia imaginar um
regente de nome — mesmo que esteja dando o máximo de si para
conseguir uma execução autêntica — que tenha a sensação de estar
“reconstituindo” uma sinfonia de Beethoven no momento em que está
tocando a obra? E nós também. que somos apenas músicos que tocam a
obra de Bach ou Monteverdi, por que devemos reconstituir? Assim como
outras pessoas compreenderam bem antes de nós que mais vale,
musicalmente, executar as obras tanto quanto possível de acordo com os
desejos do compositor, e mantendo o máximo de fidelidade ao texto, nós,
igualmente, chegamos à conclusão de que muitas obras são melhor exe-
cutadas, musicalmente falando, quando usamos instrumentos originais.
Daí resulta algo que poderia ser chamado uma reconstituição, mas
que, na realidade, é apenas um estudo musical um pouco mais
aprofundado. Da mesma forma como se aprende os instrumentos
habituais de nossa época, os antigos podem ser também aprendidos; mas
não há mais uma tradição direta no que concerne à leitura da notação,
nem critérios a respeito das práticas de execução, embora seja

109
absolutamente necessário que se pesquise, compare e estude os tratados
antigos, mas tudo isto apenas como um meio para alcançar um objetivo:
conseguir a melhor execução possível. Naturalmente. sabemos que, hoje
em dia, não reproduzimos execuções do século XVIII, e nem o
queremos. Simplesmente, representamos a música com os melhores
meios a que temos acesso e este é um direito legítimo e dever de todos
os músicos.
A questão crítica deveria ser a seguinte: por que tocar música antiga,
já que temos uma nova? Não cabe a mim responder esta pergunta aqui.
Mas já que nos deparamos com este sério e decisivo anacronismo, o de
tornar novamente interessantes e importantes manifestações artísticas de
outrora, destinadas aos homens daquela época, então o emprego de
instrumentos destas épocas não é um anacronismo, principalmente,
quando estes instrumentos, como é o caso, são muito mais adequados do
que os outros, para execuções atuais desta música. Assim vejo a nossa
situação: temos hoje, pela primeira vez na história ocidental, a criação
musical de vários séculos à nossa disposição, conhecemos os diversos
sistemas de afinação e princípios práticos de execução e conhecemos
também as sonoridades dos diversos instrumentos de cada época. Para o
executante atual há uma livre escolha dos meios mais adequados, caso
seja ele consciente.
Fala-se, frequentemente, de instrumentos históricos ou modernos,
sendo que este último termo, empregado de maneira pouco refletida, é
um contrassenso. Não há instrumentos “modernos”, com exceção de
alguns poucos, raramente utilizados. Os pretensos instrumentos
modernos têm a idade da música para a qual foram criados, ou seja, cerca
de 120 a 140 anos. Parece-me ridículo, a propósito de uma sinfonia de
Beethoven com uma orquestra habitual, falar de uma execução “com
instrumentos modernos” e a propósito de uma execução com
instrumentos da época de Beethoven, falar de instrumentos históricos.
Ambas utilizam sonoridades históricas! Tanto se emprega instrumentos
de 1850, como instrumentos de 1820, não há diferença alguma de
princípio. No primeiro caso, nos deleitamos com a sonoridade da
segunda metade do século XIX, no segundo, com a da primeira metade.
Aquilo que melhor convém à obra e a sua compreensão hoje, no entanto,
está longe de ser dito por este modo de expressar.
Através de alguns exemplos, quero mostrar a estreita ligação entre
música e um instrumentarium adequado: na época barroca, o simbolismo
musical, o simbolismo sonoro e a teoria dos afetos desempenhavam

110
importante papel na compreensão da linguagem musical. Os trompetes,
por exemplo, estavam sempre associados ao poder — divino ou secular.
Bach utiliza-os frequentemente com este significado, valendo-se dos
harmônicos impuros (o sétimo, décimo primeiro e décimo terceiro
harmônicos, portanto, si b3, fá4 e lá4 que representam o horror, o medo,
o diabo. Estas notas soam ásperas e não são puras — o que era uma
evidência para os ouvintes que tinham nos ouvidos a série dos
harmônicos do trompete e da trompa. Observa-se que tanto a afinação
como a beleza das notas — conceito muito duvidoso — eram
empregadas como meio de expressão. Em determinados contextos, uma
sonoridade “feia”, prevista pelo compositor, servia apenas para
esclarecer uma mensagem musical. Em um trompete moderno estas
diferenças sonoras não podem, de forma alguma, ser representadas, pois
se toca só até o oitavo harmônico com a exclusão do sétimo. Neste
instrumento tudo será tocado tão “belo” quanto possível e
consequentemente muito uniformizado. Outro exemplo: si menor é uma
tonalidade maravilhosamente fácil e brilhante na flauta transversa
barroca, enquanto que dó menor, uma tonalidade abafada e
extremamente difícil. O ouvinte sabia destas particularidades e o
domínio das dificuldades de uma tonalidade fazia parte do virtuosismo;
além disso, as dificuldades das tonalidades afastadas — decorrentes dos
dedilhados em forquilhas audíveis nos timbres, eram um elemento do
conteúdo expressivo. Na flauta moderna Böhm, dó menor soa tão bem
quanto si menor. Os desenhos da flauta na ária de soprano da Paixão
segundo São João, “Zerfliesse mein Herze in Fluten der Ziiharen”, são
extremamente difíceis e com timbres muito variáveis, pois em fá menor,
quase todo encadeamento de notas exige dedilhados em forquilha. Isto
corresponde perfeitamente ao caráter desesperado da ária. Em uma flauta
Böhm, estas figuras brilham virtuosisticamente, como se fossem escritas
na mais clara e fácil das tonalidades; aqui, também, não é possível
realizar-se a ideia contida na instrumentação. Exemplos como estes eu
poderia multiplicar ao infinito.
Naturalmente, ainda resta a questão de saber se, atualmente, a feiura
dos falsos harmônicos e o som abafado dos dedilhados em forquilha
usados para a expressão musical são coisas ainda desejadas e queridas
por nós. Antigamente, era óbvio que beleza e feiura eram irmãs e uma
não existia sem a outra. Na antiga concepção musical, feiura e aspereza
ocupavam um lugar importante — na nossa, porém, essa é uma questão
que não se coloca. Não queremos mais compreender uma obra de arte

111
como um todo, sob suas numerosas facetas; para nós, o que conta é
apenas um componente, aquele da beleza estética sem escórias, o “prazer
da arte”. Não queremos mais ser transformados pela música, mas
unicamente gozar belas sonoridades.
Acredito ser possível afastar estes maus hábitos adquiridos através
de mal-entendidos e novamente vivenciar a diversidade da música
ocidental como um todo. E aqui quero chegar a um último ponto — a
riqueza e a diversidade da música ocidental. Há uns 70 anos mais ou
menos que nossos programas não contêm, em sua linha de frente, a
música contemporânea, mas quase que exclusivamente a música antiga
de Monteverdi e Bach, Mozart, Beethoven, Schoenberg, Stravinsky.
Através de um singular processo de seleção, uma comunidade imaginária
de amadores de música e de mucos elegeu, dentre os fantásticos bens
que compõem a nossa herança musical, um repertório de algumas poucas
obras que se deseja ficar preescutando e reexecutando indefinidamente.
Este repertório, é claro, é universalmente conhecido, de modo que o
efeito da música, fundado na faculdade que ela tem de surpreender o
ouvinte, se perde. Esta tendência de se voltar para o que já é conhecido
conduz naturalmente, pouco a pouco, a um afastamento de tudo o que é
desconhecido, de tudo o que é novo; mesmo o que é tocado raramente
acaba por ser rejeitado e no fim das contas — provavelmente, muito
breve — teremos desaprendido a escutar e a compreender música. O
disco é — ou era — aqui a nossa última grande chance: o ouvinte tem a
possibilidade de ouvir em casa uma obra que lhe interesse tantas vezes
quanto o desejar, até que possa admiti-la neste círculo estreito. Contudo,
ele só aproveita muito raramente essa oportunidade, pois a força de girar
sempre na órbita do já conhecido acaba matando qualquer perspectiva e
sufocando o seu interesse pelo novo.
Fala-se constantemente do julgamento do tempo. Mas este jul-
gamento só irá pronunciar-se, se for interrogado. Naturalmente, há em
todas as épocas incontáveis composições de menor valor e na escolha
das obras mais interessantes e melhores do repertório barroco, nem
sempre os editores e os músicos foram felizes, nesses últimos quarenta
anos. Atualmente acontece com a música antiga o mesmo que sucedeu
com a chamada música clássica: o que não for de Bach nem de
Monteverdi, nem se chega a escutar. Temos, portanto, de depositar
nossas esperanças num público novo, que talvez vá estar novamente
preparado para escutar tanto a música nova como a antiga e que
certamente irá também aceitar uma nova estética musical.

112
É um erro do “homem de cultura” europeu destacar, da multipli-
cidade de um conjunto de problemas que possuem a mesma importância,
pontos isolados para destes fazer as únicas coisas que verdadeiramente
importam. Este erro é bastante frequente e se encontra na origem de todo
tipo de sectarismo; a partir daí, poder-se-ia praticamente confundir o
mundo inteiro. Com relação à música, dentre os vários aspectos que
determinam a interpretação, escolhemos arbitrariamente um destes —
talvez porque tenhamos justamente “descoberto” nele alguma coisa —
para transformá-lo num dado essencial: somente o indivíduo que procede
desta ou daquela maneira pode ser levado a sério como músico.
Evidentemente, não se deve neste caso subestimar a influência do
“prazer da descoberta”; uma pessoa que acredita ter descoberto algo de
especial, em geral superestima a importância de sua descoberta e pensa
que todos os outros aspectos a ela relacionados são mais ou menos in-
significantes. Assim, isola-se muito facilmente, dentre numerosos
pontos que são importantes para uma interpretação, um elemento
qualquer do qual se faz um dado essencial, quando na verdade ele não
passa de um aspecto parcial e secundário. Muitas vezes, tenho ouvido
alguns fanáticos dizerem (há muitos deles na música antiga) que tudo é
igualmente importante, não há uma hierarquia, somente quando todas as
condições forem satisfeitas é que a interpretação poderá ser discutida.
Sabemos, porém, que não há ser humano capaz de satisfazer tudo quanto
se espera dele; para tal, somos bastante imperfeitos. Precisamos
contentar-nos apenas com parte das exigências satisfeitas; não há um
tudo, nem há um nada, pois o tudo é impossível.
Só nos resta estabelecer uma certa ordem nos diversos aspectos
necessários a uma boa e adequada interpretação. Dizemos que tudo é
importante, mas há na verdade coisas que são mais importantes que
outras e é daí que se tem de deduzir uma lista de prioridades, uma
hierarquia de importância.
Gostaria de dar um exemplo de como fazer de um ponto isolado um
elemento essencial: há um famoso violinista barroco que retira apenas
uma única regra dentre as muitas que existem com relação à prática de
execução — o preceito que diz que toda nota deve ser curta. Trata-se de
um excelente violinista que, durante anos, tocou numa orquestra
filarmônica, um virtuose do violino, porém, desde que passou a dedicar-
se ao violino barroco, sua execução não é mais audível, pois ele

113
efetivamente colocou este ponto acima de todos os outros. Seria o caso
de se dizer-lhe: bem, sem dúvida existe esta regra que toda nota deve ser
encurtada, mas há também uma outra que diz que o canto deve ser
imitado; como conciliar as duas? Mas, isso de nada adianta, pois a um
homem que faz urna fixação monomaníaca se pode dizer qualquer coisa
que se queira e ele continuará, contra toda a razão, a fazer de seu aspecto
determinado, o aspecto essencial. Há que se encontrar, portanto, uma
maneira responsável e artística de abordar estes problemas, do contrário,
os resultados poderão ser bem excêntricos. Precisamos estar sempre
preparados a reconhecer o novo e dar-nos conta de eventuais erros.
Passemos agora a alguns aspectos isolados, aqueles que mais são
postos em questão quando interpretamos uma música: as dificuldades
técnicas a serem superadas, a sonoridade, provavelmente também a
questão dos instrumentos, o tempo, situação histórica, compreensão dl
notação (saber até que ponto a notação representa a obra propriamente
dita ou se ele exige uma interpretação), a importância social da obra na
sua época e nos dias de hoje (na medida em que isto exerça uma
influência sobre a interpretação); a música como linguagem em sons, a
articulação dos valores menores de notas (correspondente à pronúncia
de palavras), a representação de planos sonoros (o que, por conseguinte,
exclui uma articulação das palavras, já que se trata do que chamamos
grande linha) e, por fim, a importância do corpo instrumental. Talvez eu
lenha deixado de mencionar alguns outros aspectos. Mas analisando esta
lista constata-se que praticamente cada um destes aspectos poderia ser
tomado como um dado essencial.
Há quem diga que só se pode tocar determinado tipo de música com
uma pequena formação, ou só se pode tocá-la com uma grande formação.
Porém, refletindo com mais cuidado, só se pode responder a esta questão
perguntando antes: que papel desempenha na verdade a formação? O que
acontece se, ao invés de dez violinos, tenho apenas dois ou três? Não faz
sentido dizer: como o compositor dispunha de três primeiros violinos,
devemos executar suas obras com uns poucos instrumentos, ou como
aquele outro tinha dez, então deveremos executar suas peças com um
maior efetivo. Ao contrário: o número de instrumentos deve ser
orientado pela acústica do lugar, pela forma musical, e pela sonoridade
dos instrumentos. Há, portanto, uma série de aspectos parciais que
influenciam o tamanho da formação desejada. Mozart executou suas
primeiras sinfonias em Salzburgo com uma formação mínima e, em
consequência disso, é comum se pensar que existe uma formação

114
(“mozartiana”) própria de suas obras, condenando-se, como fora de
estilo, as execuções com maior número de instrumentos. Mozart,
contudo, executou na mesma época, em Milão, algumas de suas obras
com uma formação muito grande, pois lá a sala era bem espaçosa e ele
contava com uma orquestra boa e numerosa. E quando executou, anos
mais tarde, as antigas composições de Salzburgo, em Viena, o número
de cordas desta orquestra, era às vezes maior do que aquele encontrado
em execuções atuais de obras pós-românticas. O mesmo poderia ser dito
a respeito de execuções de Haydn. Conhecemos as dimensões das salas
que ele tinha à sua disposição em Londres, em Eisenstadt e em Esterház.
As formações variavam da pequena orquestra de câmara à grande for-
mação.
Examinemos um outro aspecto parcial. A “grande linha” é
frequentemente considerada como o critério decisivo para uma boa
execução. Porém, precisamos sempre, quando enfatizamos um ponto
particular, relegar a segundo plano uma série de outros. Caso optemos
por uma larga e plana superfície sonora para a música antiga, como é
exigido na música romântica após 1800, precisaremos então abrir mão
de toda e qualquer articulação “falada”. A transparência sonora também
irá sofrer bastante. Neste caso, aspectos de um estilo são transportados
a outro, o que frequentemente acontece, pois poucos músicos estão
conscientes de que o estilo no qual se sentem à vontade — na maioria
dos casos o pós-romantismo —, não é aplicável a todas as outras épocas.
Há um outro aspecto que concerne aos instrumentos. De um certo
tempo para cá, temos encontrado muitos músicos que acreditam que
tocando a música de uma determinada época com os instrumentos da
mesma época, já estão satisfeitas todas as condições para uma execução
“correta”. A importância dada a esta questão na história da música
ocidental é extremamente variável. Pensemos, por exemplo, que
importância tinha o instrumentarium ou a questão da sonoridade na
música do século XVI, que não era instrumentada pelo compositor.
Naquela época praticamente não existia diferença entre música vocal e
instrumental do ponto de vista da composição; os instrumentistas
tomavam a música vocal e adaptavam-na aos seus instrumentos. Isto vale
tanto para os alaudistas, como para cravistas, flautistas, ou
instrumentistas de cordas. A mesma peça pode estilisticamente, sem
qualquer problema, ser tocada das mais variadas formas. Portanto, uma
determinada realização sonora para esta música não pode ser essencial.

115
Destas reflexões conclui-se que, para nós, é uma questão primordial
determinar a importância das diferentes decisões musicais que tomamos
e persuadirmo-nos de que ela pode variar consideravelmente de acordo
com as obras e as épocas. Num caso, pode acontecer que, devido a uma
interpretação errada, a música passe a não exprimir mais nada e já num
outro, que, apesar de graves erros na interpretação — praticamente
inevitáveis — uma parte considerável da obra, das intenções musicais,
seja preservada e transmitida ao ouvinte. Precisamos encontrar na
execução a força de persuasão e não o “certo” ou o “errado”; assim
seremos bem mais tolerantes com relação a opiniões divergentes que
procedem do mesmo espírito. Que a execução mais convincente seja a
mais “correta”, este já é um outro problema.
Para nós, o que importa é achar um caminho que por si mesmo
permita, de forma muito natural, classificar estas diferentes decisões,
pelo menos quanto a sua importância. Em todo caso, temos de colocar a
compreensão da obra em primeiro lugar, todo o restante está subordinado
a isto. Por exemplo: de que maneira a obra se transmite ao ouvinte? Que
papéis desempenham neste processo as características estilísticas? Trata-
se de um estilo de época, por conseguinte, de tudo aquilo que todas as
composições de uma época têm em comum, ou do estilo pessoal do
compositor, portanto, exatamente aquilo que distingue o estilo pessoal
do estilo de época? É importante para um músico poder reconhecer e
diferenciar estas coisas, pois, do contrário, na reconstituição, as
exigências das diferentes épocas irão introduzir-se tão
desordenadamente que o ouvinte acabará por não entender mais nada,
ficando, talvez, reduzi do apenas a exclamar: “Como é belo!” Seria
necessário, no que concerne antes de tudo ao estilo de época, procurar
conhecer e compreender tudo o que é acessível — as particularidades
estilísticas de cada compositor aparecerão por si mesmas. Assim, encon-
tramos diferenças essenciais nos estilos de época entre: a) o final do
período barroco (com Bach, Haendel e Telemann) e b) o Empfindsamkeit
5
o estilo galante e também o Sturm und Drang 6 dos filhos de Bach e seus

5
“Estilo sensível” — vigorou de c. 1750 a 1780 no norte, da Alemanha, e buscava os
sentimentos “verdadeiros e naturais”, antecipando de certa forma o romantismo do século
seguinte. (N. da R.)
6
Determinada corrente da literatura alemã de 1767 a 1785, que se posicionou contrária ao
racionalismo do Iluminismo, ficando conhecida através, do grande enfoque dado ao
sentimento e à necessidade de liberdade. (N. do T.)

116
contemporâneos; ou então entre a música eloquente do classicismo
vienense de Haydn e Mozart oriunda diretamente desta última corrente
e c) o Beethoven do período central e do último período, até Weber e
Mendelssohn. De maneira bastante simplificada, do ponto de vista do
modo de execução, isto significa: a) uma interpretação eloquente,
articulação das “palavras” em pequenos grupos de notas, nuanças que se
aplicam às nota isoladas, concebidas como meio de articulação; b)
nuanças importantes, integradas à composição (o “crescendo de
Mannheim”), novo tipo de instrumentação, interpretação “romântica”
jogando com timbres (escrita idiomática dos sopros, pedais em acordes),
vigorosos contrastes dinâmicos; c) desaparecimento da articulação de
detalhes nas grandes superfícies e linhas legato, sonoridades pictóricas.
(O efeito sugestivo resulta agora muito mais da impressão de conjunto
do que da estrutura detalhada.) A linguagem musical do século XVIII
também conhece estes climas, porém, nela, eles estão sempre associados
ao caráter da linguagem. Fala-se diferentemente quando se tem algo
triste ou alegre a dizer, a atmosfera transforma a dicção da língua. No
século XIX, entretanto, pintavam-se climas de conjunto, que se
estendiam por relativamente algum tempo; impressões são descritas, o
ouvinte é mergulhado num certo estado, mas nada lhe é dito.
É muito importante compreender o estilo de época no qual o
compositor pensa e se sente em casa. Trata-se então de música ar-
ticulada, “pronunciada”, ou de planos sonoros, atmosferas a ser co-
municadas?
É claro que o músico de cada época se sente tão em casa na
linguagem musical de seu tempo, que acredita ser possível representar e
compreender também a música de outras épocas nessa sua linguagem.
Assim, quando se executou Bach 110 século XIX. cuja música exige antes
de tudo uma compreensão do ponto de vista da palavra, a interpretação
obedeceu ao modelo desta época, isto é, o da música linear sentimental
do pós-romantismo; se bem que foi preciso uma nova instrumentação e
a troca da articulação pelo “fraseado”. O conceito da articulação foi
totalmente perdido, as ligaduras de articulação tornaram-se indicações
de arcadas, servindo para mostrar — tão imperceptivelmente quanto
possível — onde se deve mudar a direção do arco. Não se poderia
imaginar nada de mais oposto à verdadeira articulação. Na indispensável
subordinação de todos os aspectos à compreensão da obra, parece agora
que a articulação ocupa um lugar de proeminência, revestindo-se de
especial importância. Como ela serve imediatamente à compreensão da

117
obra, já que uma obra pode de fato ser transformada de modo decisivo
por uma articulação correta ou errada, ela se coloca, para mim, de longe
no alto na “lista das prioridades”.
Todo músico tenta naturalmente expressar da melhor maneira
possível com seu instrumento, com sua voz, aquilo que a música exige.
Neste contexto, é interessante notar que a evolução dos instrumentos
musicais se faz sempre conforme às exigências dos compositores e do
estilo da época. Durante muito tempo se acreditou que a evolução dos
aspectos técnicos havia seguido um caminho próprio que, tal como
também se crê em outros campos, conduz sempre do pior ao melhor.
Assim, o arco que Tourte inventou (cerca de 1760) deveria ser melhor
que todos os outros utilizados anteriormente; a flauta inventada por
Böhm (cerca de 1850) teria que ser melhor do que as mais antigas e assim
por diante.
Esta opinião, esta fé no progresso, continua ainda muito difundida,
mesmo tratando-se de pessoas que deveriam ter um bom conhecimento
da história da interpretação. Isto se origina, provavelmente, do fato de
que essas pessoas não querem encarar, na sua completa significação, o
preço que tem de ser pago por cada melhoria. Considerando-se a questão
historicamente, os erros que se procura remediar são no fundo erros
apenas aparentes. O compositor só pensa em função das sonoridades de
seu tempo e nunca em qualquer utopia futura. Vê-se que os instrumentos
históricos têm a sua importância na interpretação. É preciso que se lhes
estude as qualidades e defeitos, as suas peculiaridades no que diz
respeito à sonoridade, à fusão sonora, à dinâmica e sobretudo — esse um
importante elemento — aquilo que concerne à afinação. É necessário
também questionar-se, antes de qualquer decisão relacionada à
interpretação “histórica”, se o instrumento antigo, além de suas
qualidades e defeitos originais, não se reveste de outras particularidades
que só aparecerão em uma outra época, mais precisamente na época
atual: ele não oferece a sonoridade normal do nosso tempo, mas um
timbre estranho, “exótico”. Não existe uma tradição contínua quanto à
interpretação, bem como, rigorosamente, nadai sabemos sobre a maneira
como estes instrumentos teriam sido tocados outrora. Somente em
pouquíssimos casos, o músico atual consegue identificar-se totalmente
com a sonoridade desses instrumentos. Muitas vezes, um músico pode
realizar as possibilidades técnicas e sonoras de uma interpretação
histórica muito melhor com o seu instrumento moderno do que com um
instrumento de época, com o qual ele não “cresceu” musicalmente. Aqui,

118
também, neste complexo domínio, é necessário que, em cada caso, se
pesem as vantagens e desvantagens do instrumento antigo sobre o
moderno.
A título de exemplo, gostaria de examinar o problema do arco do
violino. Com o arco criado por Tourte no final do século XVIII, é
possível manter-se, em toda a extensão da arcada, uma nota de igual
força, pode-se obter uma "mudança da direção do arco quase
imperceptível e produzir-se com uma igualdade quase perfeita uma
arcada ascendente ou descendente. Com este arco, pode-se tocar muito
forte e o sautillé soa duro e martelado. No entanto, o preço das
qualidades que fazem deste arco a ferramenta ideal para interpretar a
música dos “planos sonoros”, surgida após 1800, é a renúncia a
numerosas outras: é muito difícil, com tal arco, moldar um som
ressonante como o do sino, abreviar um som sem que este pareça
interrompido ou produzir uma sonoridade diferente com o tiré e o
poussé7 tal como requeria a música mais antiga e era fácil executar com
o arco barroco. É claro que aqui um músico poderia simplesmente
argumentar: mas, é isso exatamente que se procura evitar, pois os tirés e
poussés devem ser tocados da forma mais igual possível. O arco moderno
(de Tourte) é justamente melhor que o velho arco barroco, porque só ele
permite obter uma igualdade em todos os níveis. Mas, uma vez que se
admita que a boa execução é aquela que nos restitui a música
adequadamente, iremos constatar que as desvantagens do arco barroco
são na verdade vantagens. A maioria das notas que vão juntas duas a
duas soa diferente com o arco para cima e para baixo; a nota isolada
possui uma dinâmica semelhante à do sino, e inumeráveis graus
intermediários entre o legato e spiccato se fazem quase que por si
mesmos. Vemos que o arco barroco é ideal para a música barroca — há
fortes argumentos em favor de sua utilização. Não iremos, contudo,
considerá-lo o arco ideal e tocar com ele Richard Strauss. Curiosamente,
é exatamente o que se faz, no caso contrário, com o arco de Tourte.
Naturalmente, com o arco moderno, que foi construído para o
legato, para a execução linear, pode-se chegar a uma execução barroca,
caso não haja nenhum arco barroco à disposição. Como músicos, somos
atualmente condenados a executar música de quatro séculos com as
mesmas ferramentas. Todo músico de orquestra sabe que num dia tem
de tocar, por exemplo, música contemporânea e, no outro, uma sinfonia

7
tiré = arcada para baixo ( ) e poussé — arcada para cima ( ) (N. da R.)

119
de Mozart ou uma obra de Bach ou de Gustav Mahler. Ele não pode
trocar de ferramenta, não pode tocar cada dia com outro instrumento.
Isso quer dizer que tem de estar muito familiarizado com as diferentes
linguagens musicais, a ponto de poder tocar de modo inteiramente
diferente com seu instrumento habitual. Isto, porém, só ocorre
raramente. É certo que tocamos a música de cinco séculos, mas na
maioria das vezes em uma única língua, em um só estilo interpretativo.
Mas se começássemos a reconhecer as diferenças essenciais de estilo e
abandonássemos o infeliz conceito da música como “linguagem
universal” que abrangeria todas as nações, culturas e séculos e que seria,
em princípio, sempre a mesma, uma ordem de prioridades se instalaria
por si mesma. Veríamos a obra como expressão artística de uma época e
de um homem com suas exigências particulares com relação aos ouvintes
e aos músicos. Seriamos realmente obrigados a descobrir as exigências
de articulação, de tempo, de equilíbrio sonoro, etc., e a satisfazê-las. Por
fim, deixaríamos provavelmente de ficar satisfeitos com nossos
instrumentos e iríamos escolher aqueles que são contemporâneos à
música, mas somente se é porque eles são apropriados à obra e melhor
adaptados à sua execução. É assim que o músico muito naturalmente se
põe no caminho da interpretação ideal, partindo da obra para chegar ao
instrumento “original”.
O outro caminho, que frequentemente se toma hoje, leva, na minha
opinião, ao erro. Há vários músicos que acreditam que se deveria tocar
a música antiga com instrumentos autênticos — mas eles nem sabem
direito o que podem e o que não podem fazer estes instrumentos. Eles
adotam os instrumentos antigos sem perceber-lhes o sentido, talvez
porque tenham sido chamados para tocá-los e sejam bem pagos para isso
ou talvez porque eles próprios os achem interessantes. O aspecto
decisivo de sua interpretação, sua “marca registrada”, por assim dizer, é
para eles o instrumento antigo, o “instrumento original” — mas não
aquilo que este instrumento quer e pode fazer. O músico, entretanto,
aprendeu a fazer música em um outro instrumento, que está na origem
de seu ideal sonoro e de sua concepção musical. Ele toma, em seguida,
o instrumento barroco e tenta, intuitivamente, nele realizar o ideal
sonoro ao qual está habituado. É o que se ouve constantemente e o resul-
tado são estes conjuntos que soam lamentavelmente, que tocam
pretensamente em instrumentos antigos; mas sente-se, a cada volta do
caminho, a saudade que o músico tem daquela sonoridade que sempre
lhe foi familiar quando eram outros os seus rumos. De modo que isto não

120
funciona: não se pode fazer um belo sostenuto com um arco barroco, mas
mesmo assim se tenta; não se pode obter uma certa exuberância sonora,
mas se procura fazê-la de qualquer maneira. O resultado é lamentável e
o ouvinte, é claro, se diz: instrumentos com tal sonoridade só pode ser
porque os compositores de antigamente eram pobres e não conheceram
possibilidades melhores. O músico que chega aos instrumentos antigos
por este caminho jamais se convencerá do absurdo do seu percurso. Mas
irá abandonar o instrumento antigo na primeira oportunidade. Em pri-
meiro lugar, ele precisa saber por que escolheu os instrumentos antigos,
e isso só pode ser por razões estritamente musicais, e por mais nenhuma
outra. E se estes motivos não lhe forem óbvios o suficiente, então é
melhor que espere e tente trabalhar com o instrumento que ainda lhe é
autêntico, natural.
No que concerne precisamente ao instrumento, considero a questão
das prioridades especialmente importante, pois aqui se cometem graves
erros. Caso o instrumento histórico tivesse sido escolhido por razões
somente musicais e não para que passasse por “autêntico”, “histórico ou
porque pudesse parecer interessante, as centenas de milhares de
instrumentos pretensamente “antigos”, que, na verdade, não são
instrumentos musicais e disto só têm o nome, jamais poderiam ser postos
no mercado. Há estoques inteiros de flautas doces, cravos e cromornes,
cornetos e trombones que não são de fato instrumentos musicais — e
graças somente à admirável arte de certos músicos é possível tirar algum
som desses monstros. Um David Oistrach, por exemplo, é capaz de fazer
música até mesmo num horrível violino de principiante. Parece-me, pois,
que justamente aqueles dentre nós que tocam um bocado de “música
antiga” é que de forma alguma deveriam — e infelizmente é o que mais
se vê — dar prioridade ao instrumento, à ferramenta, sobre a música.
Talvez os instrumentos mais independentes, no que diz respeito ao
modo de produção do timbre e do som, aqueles que estão mais afastados
do executante, seriam os que constituiriam uma exceção a este princípio.
Imagino que seja muito mais importante para a música de órgão do que
para a de violino, por exemplo, ter o instrumento apropriado. A
importância do instrumento não é a mesma nos dois casos. É
simplesmente impossível executar a música para órgão num instrumento
inadequado; aqui, o instrumento contribui de forma decisiva para uma
boa parcela da expressão musical, enquanto este não é o caso com
relação aos instrumentos de corda ou de sopro.

121
Acredito que com uma orquestra normal, mesmo sem instrumentos
originais, é possível tocar a música clássica e pré-clássica bem melhor
do que se faz hoje e acho também que para obter-se uma melhoria no
campo da interpretação não basta apenas colocar instrumentos barrocos
nas mãos dos músicos. Eles iriam tocar tão mal que, após dois ensaios,
já estariam convencidos de que a coisa não funciona. Creio — e é isto
que eu queria dizer quando inicialmente reclamei por uma hierarquia de
prioridades — que o músico tem de, em primeiro lugar, descobrir o modo
de expressão musical de cada época no instrumento com o qual ele
consegue exprimir-se.
Dessa forma, se quisermos situar a música no primeiro plano, a
questão dos instrumentos ficará lá embaixo numa lista de hierarquias.
Por isso, é necessário, antes de tudo, tentarmos, na medida do possível,
realizar com os instrumentos disponíveis a dicção e a articulação desta
música. Mas, para o músico sensível, acabará fatalmente chegando
aquele momento em que ele dirá: daqui por diante. vou precisar de um
outro instrumento mais condizente. Um grupo de músicos que conseguir
chegar aos instrumentos antigos por esta via não só fará uso destes de
forma mais convincente como também lhes descobrirá a linguagem com
muito mais facilidade do que o faria um grupo de músicos que toca
instrumentos antigos apenas por uma questão de moda.
Com respeito à minha concepção de hierarquia dos diversos
aspectos, eu diria para concluir: logo abaixo da obra, que deve sem pre
vir em primeiro lugar, na minha opinião, vêm a paixão e a imaginação
do artista. Quanto à interpretação, julgo inadequada aquela do músico
que tecnicamente realiza tudo com perfeição, que respeita todos os
aspectos da articulação, que segue estritamente aquilo que se encontra
nas fontes, que emprega o instrumento correto, que toca em
temperamento mesotônico, que escolhe o tempo correto, mas a quem
falta uma coisa: a musicalidade, ou dito de forma mais poética, o favor
das musas. Isso é cruel, mas nesta profissão aquele que não teve a sorte
de ser beijado pelas musas, jamais será um músico. Fiz aqui o
levantamento das prioridades, de forma ousada, chegando mesmo a
exagerá-las um tanto absurdamente. Pois, um artista verdadeiro, embora
possa cometer erros e fazer coisas que se demonstrem erradas, é capaz
de fazer com que a música penetre na pele do ouvinte, tornando-a
realmente próxima dele. Ao passo que um outro, poderá dar-nos uma
interpretação que, mesmo interessante, não consegue mostrar-nos o que

122
é de fato a música, e é incapaz de oferecer-nos uma expressão que nos
fale diretamente, que nos perturbe e nos transforme.

123
II
INSTRUMENTARIUM E DISCURSO MUSICAL

126
Esboço para uma história dos instrumentos de corda
Quando se examina o instrumentarium e se acompanha a história de
cada instrumento, se percebe que não existe praticamente nenhum
instrumento de fato moderno, que quase todos possuem uma história de
vários séculos. Reconstituir a história de cada instrumento, estudar as
relações entre cada particularidade técnica e os dados históricos, é uma
tarefa do mais alto interesse e da maior importância para todos os que se
ocupam seriamente da música histórica.
De todos os instrumentos musicais atualmente em uso, somente as
cordas possuem o mesmo formato externo que os seus ancestrais de
quatro séculos atrás. Todos os outros instrumentos precisaram ser
substituídos por novos modelos, logo reconhecíveis em seu aspecto
exterior, uma vez que o gosto musical e certas exigências técnicas
tornavam indispensáveis mudanças radicais. Por que não se deu o mesmo
com os instrumentos de corda? Não houve aqui modificações
indispensáveis? Seria, então, o som de um violino atuai idêntico ao de
um violino do século XVI? Tais perguntas são mais do que justificáveis,
não só pelo fato do instrumento de hoje ter a mesma aparência daqueles
de épocas passadas, mas também porque os instrumentos antigos ainda
têm incontestavelmente a preferência dos músicos. Todos os grandes
solistas tocam em instrumentos que possuem mais de 200 anos.
O violino, que já encontramos perfeitamente desenvolvido desde o
século XVI, reúne as características de construção de vários ins-
trumentos mais antigos: a forma do corpo vem da viela e da lyra da
braccio e a maneira de fixar as cordas, da rabeca. O violino (chamado na
Itália de viola da brazzo para diferenciar da viola da gamba [perna]) foi
desde o início provido de quatro cordas e afinado em quintas como hoje.
Muito cedo, especialmente no norte da Itália, fabricaram-se diferentes
modelos; alguns eram dotados de uma sonoridade incisiva, rica em
harmônicos, enquanto outros tinham um som mais cheio e arredondado.
Assim, alguns instrumentos são bastante arqueados e feitos de madeira
fina, ao passo que outros, de forma mais achatada, são construídos com
madeira mais grossa, de acordo com o resultado sonoro desejado ou
segundo as particularidades de cada escola de luteria. A partir de meados
do século XVII, começaram também a crescer em importância as ofi -
cinas de luteria do sul da Alemanha e do Tirol. O tipo de violino criado

127
na região, especialmente por Stainer, representou durante mais de cem
anos o ideal sonoro da música de cordas ao norte dos Alpes. Apesar desta
diversidade de modelos e de concepções sonoras que algumas vezes
diferiam consideravelmente umas das outras, o violino no seu todo
conseguiu, até o final do século XVIII, manter-se longe de modificações
radicais. Pequenas alterações eram suficientes para adaptá-lo a qualquer
tipo de exigência; no lugar da corda sol de tripa nua, de sonoridade algo
surda e áspera, introduziu-se a corda de tripa envolvida em metal;
desenvolveram-se arcos mais longos e equilibrados, de modo a permitir
uma técnica mais refinada — mas quanto ao resto, o violino continuou
sendo durante dois séculos o pólo fixo dentre os instrumentos.
A prodigiosa virada histórica que influenciou e transformou toda a
vida europeia no fim do século XVIII teve evidentemente repercussões
na arte. Tal como as composições de um Beethoven, por exemplo,
traziam para a música um espírito inteiramente novo, a que muitos
contemporâneos-resistiam, por medo ou por recusa, da mesma forma,
seguindo este espírito, todo o corpo sonoro da música ocidental se viu
profundamente transformado. A escala dinâmica dos instrumentos devia
ser estendida ao extremo.
No que diz respeito ao violino, a sua escala dinâmica já não
correspondia mais às necessidades dos compositores e ouvintes. Fe-
lizmente, geniais construtores de violino encontraram um meio de salvar
o instrumento desta crise, da qual foram vítimas a gamba e muitos outros
instrumentos: espessou-se o encordoamento além do que tecnicamente
permitiam estes instrumentos. A espessura da corda é diretamente
proporcional à tensão e, portanto, à pressão exercida através do cavalete
sobre o tampo do instrumento: donde, quanto mais grossas as cordas,
maior é a tensão e a pressão e com muito mais energia se poderá e dever-
se-á tocar com o arco para coloca-las em vibração. Os instrumentos, no
entanto, não haviam sido construídos para aguentar tal pressão, por isso
foi necessário reforçar também a antiga barra harmônica 8, que foi
retirada e substituída por outra de volume três a cinco vezes maior.
Reforçado desta forma, o tampo do instrumento podia suportar uma
pressão ainda mais forte. Além do mais, retirou-se o antigo braço,

8
A barra harmônica ou barra dos baixos é um pedaço de madeira colado no interior do tampo
dos instrumentos de corda, ao longo da corda mais grave e sob o pé esquerdo do cavalete. Sua
função é reforçar o tampo, filtrando e modificando o timbre de acordo com a sua massa. (N.
da R.)

128
talhado numa peça única com a voluta e fixado em ângulo reto no instru-
mento, para colar um novo braço, agora inclinado, no qual se voltou a
fixar a voluta original. Com isto, o ângulo das cordas, ao passar sobre o
cavalete, ficou mais agudo, o que novamente aumentava a pressão sobre
o tampo. Ao mesmo tempo, criando o arco moderno, com o qual se podia
tocar de maneira apropriada neste instrumento, Tourte satisfez uma das
importantes condições necessárias para o sucesso deste reforço. O arco
moderno é mais pesado que o antigo, propositadamente construído mais
leve, e bastante côncavo, o que faz com que a tensão das crinas cresça
quando aumenta a pressão. Ele tem duas vezes mais crinas do que o arco
antigo e estas ao contrário da mecha 9 arredondada, do arco antigo,
frouxamente presa, são mantidas em forma de fita lisa, esticadas por
uma. lingueta metálica.
A operação acima descrita vem sendo realizada em todos os violinos
antigos, desde 1970 até os dias atuais (os antigos violinos italianos,
usados pelos solistas de hoje, são todos modernizados e soam
completamente diferente do que à época de sua fabricação). Assim
modificado, e utilizado com o novo arco, o violino tornou-se
irreconhecível. Naturalmente, teve-se que pagar por este ganho de
potência (três ou quatro vezes maior) com uma considerável perda de
harmônicos superiores. Com o passar do tempo, a necessidade
transformou-se em virtude e o som liso e redondo do violino se tornou o
ideal sonoro; este som foi ficando cada vez mais polido e as cordas de
tripa nua acabaram caindo em desuso, de modo que. hoje, se toca apenas
em cordas de tripa cobertas por metal ou em cordas de aço.
Todo ganho de potência acarreta infalivelmente um empobre-
cimento de harmônicos agudos. Entretanto, não foram apenas a barra
mais volumosa e as cordas mais tensionadas que contribuíram para
reduzir os harmônicos agudos, mas também outros elementos da
regulagem, como o espelho e o estandarte em ébano maciço. Esta
operação não foi benéfica para todos os instrumentos; alguns, es-
pecialmente aqueles leves e bastante abaulados da escola de Stainer,
perderam grande parte de seu timbre e a sua sonoridade tornou-se
frequentemente gritada, permanecendo pequena, entretanto. Para
inúmeros instrumentos de valor a operação foi literalmente fatal, pois o
fundo não suportou a pressão excessiva da alma e rachou. Se expus em
detalhe a história desta transformação foi unicamente porque ela nos dá

9
Mecha: feixe de crinas do arco (N. da R.)

129
a chave para compreender a sonoridade dos instrumentos antigos de
cordas.
Comparemos agora a sonoridade do violino barroco com aquela do
instrumento de concerto moderno: o som do violino barroco é doce, mas
de uma acuidade intensa e delicada. A diversidade se obtém antes de
tudo por uma articulação ricamente diferenciada e não tanto pela
dinâmica. O instrumento moderno possui, ao contrário, um som redondo
e liso, com uma grande margem de dinâmica, dinâmica essa que, a partir
de agora, se torna o fator expressivo dominante. No conjunto, observa-
se um empobrecimento da paleta sonora, já que na orquestra moderna
todos os instrumentos tendem para uma sonoridade redonda, pobre em
harmônicos agudos, enquanto que na orquestra barroca a diferenciação
dos grupos instrumentais era muito mais marcada e consequentemente
mais rica.
Pelo exemplo do violino, vimos a história das transformações e suas
ligações com a sonoridade. Tratemos agora de outros instrumentos de
corda, especialmente da viola da gamba (viola da perna, pois é segurada
entre as pernas) e de sua família. Sua filiação da viela medieval parece
bem mais direta que no caso do violino. Uma coisa, porém, é certa:
ambas as famílias, dos violinos e das gambas, surgiram
aproximadamente na mesma época, no século XVI. Desde o início, eram
claramente separadas e distintas uma da outra. Tanto assim que nas obras
instrumentais italianas do século XVII, o violoncelo, que também é
segurado entre as pernas, portanto da gamba, é designado como viola da
brazzo, ou seja, pertencente à família do violino, enquanto que as
pequenas pardessus de viole francesas10 são gambas soprano, apesar de
serem, muitas vezes, sustentadas sobre o braço, por conseguinte, da
brazzo.
Em sua construção, os violinos se distinguem das gambas pelas
proporções. Essas últimas possuem um corpo mais curto relativamente
ao comprimento das cordas, um fundo plano, faixas mais altas. Em geral
sua construção é mais fina e leve. A silhueta do corpo da gamba é
diferente da forma do violino, mas é sobretudo menos estandardizada e
parece também exercer pouca influência sobre a sonoridade do
instrumento. Essencial na gamba é a sua afinação em quartas e terças,

10
A pardessus de viole francesa foi o menor instrumento da família oas violas da gamba;
menor que o violino, e mais aguda que este, loi um instrumento preferido pelas mulheres. (N.
da R.)

130
tomada do alaúde e os trastes, igualmente copiados deste instrumento.
Desde o início do século XVI as gambas eram construídas em famílias,
isto é, em diferentes tamanhos para o soprano, contralto, tenor e baixo.
Com esta formação tocava-se essencialmente obras vocais adaptadas aos
instrumentos por meio de uma ornamentação apropriada. Conhece-se
antigos exercícios de Ortiz na Espanha e de Ganassi na Itália, destinados
a este fim. Nesta época, o violino ainda não fazia parte do número de
instrumentos respeitáveis e era usado principalmente na música
improvisada de dança.
Por volta do fim do século XVI, quando na Itália começava,
lentamente a ascensão do violino, instrumento extrovertido que tão bem
corresponde ao caráter italiano, a família das gambas encontrava na
Inglaterra a sua primeira pátria legítima. A viola da gamba deve ter
correspondido particularmente ao gosto dos ingleses, pois no espaço de
mais ou menos um século surgiu grande profusão de música, de uma
beleza grave e bastante original, destinada a conjuntos de duas até sete
gambas. Esta música, pela sua característica sonora e pela sua
significação musical e histórica, só pode ser comparada à música para
quarteto de cordas dos séculos XVIII e XIX. Qualquer família com gosto
musical, na Inglaterra, por esta época, possuía um móvel contendo
gambas de todos os tamanhos. 11 Foram principalmente fantasias, danças
estilizadas e variações, as peças escritas expressamente para estes
instrumentos — e isto num tempo em que no continente não se estava
muito longe da música “para tocar em todo o tipo de instrumento”. A
viola, devido a sua. construção e a seus trastes, possui um som muito
mais sutil e uniforme que os instrumentos da família do violino. A
música, por causa das características particulares da gamba, cuja
expressividade se faz sobretudo através das mais finas nuanças sonoras,
está a priori preservada contra execuções excessivamente dinâmicas que
destruiriam o efeito, retirando-lhe todo o refinamento. Os músicos
ingleses, também descobriram muito cedo a gamba Gomo instrumento
solista;, para este fim, construíram um instrumento um pouco menor do
que a gamba baixo normal em ré e chamaram-no division-viol; batizaram
uma outra gamba menor ainda de lyra viol; este instrumento era afinado
de acordo com a obra a ser executada e tocado a partir de tablaturas
(notação de dedilhados). A complexidade das afinações e das notações
pouco habituais é, infelizmente, culpada pelo fato de que atualmente

11
Era o chamado chest of viols. (N. da R.)

131
quase ninguém mais se ocupa desta maravilhosa música solista e
tecnicamente do mais alto interesse.
Além disso a gamba era utilizada na Inglaterra sobretudo como
instrumento solista para improvisação livre. Acham-se esplêndidos
exemplos desta arte no Division Viol de Christopher Simpson, uma
introdução à improvisação solo sobre um baixo. Esta maneira de tocar
era tida na época como o grau supremo de perfeição em matéria de
execução de viola da gamba; aqui, o conhecimento técnico e musical
assim como a imaginação do músico podiam manifestar-se em toda sua
plenitude. Durante todo o século XVII, os gambistas. ingleses eram uma
mão-de-obra procurada em todo o continente. Ao construir uma gamba
em 1670 para uma igreja em Bolzano, Stainer se orientou pelas
indicações de um gambista inglês que considerava como uma suprema
autoridade.
Foi na França, contudo, que as possibilidades solísticas da gamba
foram exploradas ao máximo, no final do século XVII. A extensão da
gamba francesa deste período foi enriquecida por uma corda grave
afinada em lá. Numa única geração surgiram neste país, na corte de Luís
XIV, encorajadas por uma elite de melômanos, a. rica obra de um Marin
Marais e as imponentes e audaciosas composições dos dois Forqueray,
que suscitaram um bom número de imitações. As exigências técnicas
destas composições são frequentemente tão incríveis que se procura os
predecessores destes virtuosos. Anteriormente, na época de Luís XIII,
era o alaúde o instrumento francês em moda e o instrumento virtuoso par
excellence. Nos dedilhados que figuram em quase todas as composições
francesas para gamba, se reconhece claramente a técnica de mão es-
querda, própria do alaúde. Estes compositores foram responsáveis pelo
refinamento da escala expressiva da gamba e introduziram, para
incontáveis ornamentos tão complexos quanto refinados, glissandi e
outros efeitos, um sistema de sinais, a cada vez explicado nos prefácios
das obras. A gamba chegou, aqui, ao cume de suas possibilidades
solísticas e técnicas, de certa forma, também de sua posição social. As
mais altas personalidades tinham o costume de tocar gamba durante suas
horas de lazer. O som intimista da gamba, constantemente evocado, que
faz dela um instrumento solista destinado exclusivamente a pequenas
salas, e a possibilidade de obter sonoridades murmuradas as mais
refinadas, lhe trouxeram a glória e, ao mesmo tempo, a sua morte.
Desprezado, inicialmente, o violino, instrumento mais possante, ouvido
facilmente mesmo em grandes salas, foi-se impondo pouco a pouco, até

132
que, na segunda metade do século XVIII, acabou por destronar a gamba.
Existe um polêmico escrito que nos informa com muita clareza sobre
esta luta, travada pelo abade Le Blanc, partidário entusiástico da gamba,
contra o violino e o violoncelo. Em todo o caso, compreendeu-se o
essencial da sonoridade da gamba, sua sutileza e doçura, tanto que nem
se tentou reforçar o instrumento para salvá-lo do declínio.
Nos outros países, a gamba nunca desempenhou o mesmo papel que
na Inglaterra ou França; na Itália, ela já começara a sair de moda desde
o século XVII com a chegada do violino. Na Alemanha, há uma série de
composições para gamba que se situam numa curiosa posição
intermediária; ou se orientam por modelos franceses, como algumas
obras de câmera de Telemann, ou são realizadas do ponto de vista
simplesmente técnico ou sonoro, como na música de Buxtehude, Bach e
outros. As obras para gamba destes compositores não são concebidas em
função de uma necessidade imperiosa do espírito do instrumento; poder-
se-ia, sem uma perda essencial da substância musical, imaginá-las
tocadas igualmente em outros instrumentos.
No século XVIII, portanto no fim do período da gamba pro-
priamente dita, entram em moda, de forma bastante passageira, alguns
instrumentos da família das gambas. Como, por exemplo, a viola
d’amore e a violet inglesa, somente utilizados como instrumentos solistas.
Nestes instrumentos procurava-se produzir um tipo de reverberação
artificial, acrescentando-se de sete até doze cordas suplementares de
metal rente ao tampo. Estas cordas chegavam às cravelhas passando pelo
braço perfurado e, conforme o seu número, eram afinadas segundo uma
escala diatônica ou cromática. Não deveriam ser tocadas, serviam apenas
para vibrar por simpatia quando se tocava nas outras cordas. Obtinha-se,
assim, uma espécie de véu sonoro que flutuava acima das notas doces e
delicadas deste instrumento. A viola d’amore foi no século XVIII
realmente um instrumento da moda, cuja existência obscura, no entanto,
se prolongou mesmo após a morte da gamba no século XIX.
No século XVIII, também as gambas foram munidas algumas vezes
deste tipo de cordas simpáticas. Um dos instrumentos mais estranhos
deste gênero é certamente o baryton. Neste instrumento, que tem o
mesmo tamanho da gamba e cujas cordas normais são afinadas como as
da viola baixo, as cordas metálicas de ressonância servem não só para
colorir a sonoridade, como podem ser pinçadas pelo polegar da mão
esquerda, enquanto se toca. O efeito produzido é muito particular, pois
as notas pinçadas, realmente possantes, soam como as de um cravo e não

133
podem ser abafadas, de sorte que a sua sonoridade se prolonga por muito
tempo, recobrindo quase sempre a da nota seguinte. O baryton
certamente pouco interesse despertaria hoje, não fosse pelo fato de
Haydn ter escrito para ele um grande número de obras soberbas, que
ressaltam magnificamente o encanto particular deste instrumento. Fora
as de Haydn, entretanto, são muito, poucas as composições destinadas
ao baryton. Mas como sobreviveu um número relativamente grande de
instrumentos, alguns datando até do século XVII, é possível que ele
tenha sido sobretudo um instrumento de improvisação no qual a pessoa
podia acompanhar-se tocando quase unicamente as cordas pinçadas.
Infelizmente, quando se redescobriu a viola, há uns 50 anos, já não
se compreendia a sua sonoridade particular. O que jamais se havia
tentado no século XVIII, fez-se então: um bom número de belas violas
antigas foi reforçado e muitas vezes até diminuídas no tamanho para
ficarem com as dimensões do violoncelo.
Hoje, depois que duas gerações de músicos experimentaram ins-
trumentos barrocos, ou pretensamente barrocos, e acumularam uma certa
experiência, vê-se as coisas de maneira diferente. Não se procura mais
“melhorar” os instrumentos antigos, mas compreender a sua sonoridade
peculiar. Daí, resulta um princípio, com força de lei, que, por assim
dizer, se deduz de si próprio: o instrumentarium de cada época é um todo
cujos elementos são finamente ajustados entre si; o equilíbrio dos
diferentes instrumentos é bem balanceado. Não é possível misturar-se
instrumentos antigos com modernos. Por exemplo, uma gamba original
corretamente ajustada, numa orquestra de cordas moderna, soa
demasiado leve, com uma sonoridade muito pequena. Este é um
problema que muitos gambistas enfrentam durante as execuções anuais
das Paixões de Bach. (Na minha opinião, aqui não se deve fazer
compromisso e o solo deve ser tocado num violoncelo ou numa gamba-
violoncelo reforçada.)
Se, no caminho para uma interpretação da música antiga, des-
cobrimos o elemento sonoro e, por conseguinte, instrumentos originais
como intermediário ideal, como ajuda ideal para a interpretação e fonte
dos mais ricos estímulos artísticos, não estaremos satisfeitos enquanto
não tivermos atingido o último elo da reação em cadeia. Se fizermos o
esforço não negligenciável de equilibrar corretamente entre si todos os
instrumentos, a recompensa será uma sonoridade convincente que pode
ser um veículo maravilhoso para a música antiga.

134
O período barroco, que levou a produção artística solista a alturas
até então jamais conhecidas e no curso da qual devia nascer o virtuose,
já que não se queria somente admirar e celebrar a obra de arte anônima,
mas antes o artista, na medida em que este vinha realizando feitos
simplesmente inacreditáveis, foi também o período que, em benefício do
solista, fez eclodir as fronteiras fixadas pela natureza para os
instrumentos. O violino encarna como nenhum outro instrumento o
espírito do barroco. Seu surgimento, no decorrer do século XVI, é como
a concretização progressiva de uma ideia. A partir da diversidade dos
instrumentos de cordas da Renascença, com suas vielas, rabecas, liras e
as incontáveis variantes, e graças aos geniais construtores de Cremona e
Brescia, o violino pôde cristalizar-se.
Este processo, bem entendido, se deu paralelamente à evolução® da
música, que nos séculos passados estava inteiramente devotada à
construção do intrincado tecido polifônico. Cada instrumento, cada
músico era uma, parte anônima do todo. Cada instrumento devia
desenhar sua linha o mais claro possível e ao mesmo tempo misturar à
sonoridade do conjunto a sua nuance particular. Por volta de 1600, novas
forças entraram em jogo. A interpretação declamatória e musical de
obras poéticas conduziu à monodia, ao canto solo acompanhado. Com
isto, se criou no recitar cantando, a recitação cantada, e no stile
concitalo, formas de expressão musicais que fundiriam a palavra e o som
em uma unidade impressionante. A música puramente instrumental foi
também afetada por esta onda e o solista saiu do anonimato da sua
condição de músico de conjunto. Ele assumiu a nova linguagem sonora
da monodia sem as palavras e passou doravante a “exprimir-se”
exclusivamente através de sons. Esta prática musical solista era
considerada literalmente como um tipo de discurso; é assim que surgiu
a teoria da retórica musical; a música adquiriu um caráter de diálogo e a
execução “falada” tornou-se a exigência máxima dos mestres da música
do barroco.
A partir de Cláudio Monteverdi, a maior parte dos compositores
italianos eram violinistas. A nova linguagem musical do barroco, num
prazo incrivelmente curto, conduziu a um repertório de grande
virtuosismo que permaneceu por muito tempo insuperável. Os primeiros
verdadeiros soli de violino foram compostos por Monteverdi para o seu
Orfeo (1607) e para as suas Vésperas (1610), mas foram principalmente

135
os seus alunos e admiradores (Fontana, Marini, Uccellini e outros) que,
no espaço de 30 anos, levaram a música de solo de violino ao apogeu,
com obras audaciosas, muitas vezes realmente estranhas.
Nos decênios seguintes pareceu instalar-se uma certa calma. O
violino havia saído de seu período Sturm und Drang e a sua técnica
interpretativa estava de tal forma amadurecida que, daí por diante, a
evolução passou a fazer-se mais lentamente. Tal como o próprio estilo
barroco, o violino é um autêntico produto italiano e assim como o estilo
barroco italiano (em suas versões nacionais) foi pouco a pouco
conquistando toda a Europa, também o violino foi-se tornando a jóia de
seu instrumentarium. Foi na Alemanha que ele mais rapidamente se
impôs, já que virtuosos italianos atuavam nas cortes dos principados
alemães desde a primeira metade do século XVII. Cedo formou-se neste
país um estilo próprio de música para solo de violino no qual a execução
polifônica e em acordes — característica tipicamente alemã —
continuou a desenvolver-se particularmente.
Os violinistas e melômanos de nossos dias estão quase sempre
enganados quanto ao nível da técnica do violino nos séculos XVI e
XVIII. Acredita-se, em virtude do alto nível atingido pelos solistas da
atualidade e pelo fato dos músicos de um século atrás,
comparativamente, estarem menos capacitados, que este nível se
expressaria por uma curva descendente em direção ao passado; isto é
ignorar que o remanejamento social que atingiu a profissão de músico
no século XIX foi acompanhado de um declínio. Em 1910, dizia Henry
Marteau: “caso pudéssemos ouvir Corelli, Tartini, Viotti, Rode e
Kreutzer, os nossos melhores violinistas iriam arregalar os olhos e não
duvidariam mais de que a execução deste instrumento está em franca
decadência”. Muitas das técnicas usuais do violinista de hoje, como o
vibrato, o spiccato, o staccato volante, entre outras, são consideradas
aquisições devidas a Paganini e (com exceção do vibrato) estão banidas
da música barroca. Para o lugar delas, foi inventado d pretenso “golpe
de arco Bach” que serve apenas para substituir a diversidade infinita da
articulação barroca pela uniformidade. Tanto a música em si como as
antigas obras didáticas mostram claramente quais eram as possibilidades
técnicas de que se dispunha em uma dada época e onde eram
empregadas.
O vibrato é tão velho quanto a própria técnica dos instrumentos de
cordas. Ele é usado para imitar o canto e a sua existência está
expressamente comprovada desde o século XVI com Agrícola.

136
Posteriormente também ele foi descrito com certa frequência e de
maneira bastante clara (Mersenne, 1693; North, 1695; Leopold Mozart,
1756). No entanto, sempre foi considerado como um ornamento e nunca
como algo a ser usado a todo instante, abusivamente. “Há violinistas”,
diz Leopold Mozart, “que tremem constantemente a cada nota como se
estivessem atacados de uma febre perpétua. Só se deve introduzir o
tremulo (vibrato) naqueles lugares onde a natureza o produziria.”
O spiccato, a técnica de saltar com o arco, é uma modalidade de
arcada bastante antiga (apenas a indicação spiccato nos séculos XVII e
XVIII não significava o saltando, mas simplesmente designava notas
claramente destacadas). A maioria das figuras em arpejos não ligados ou
de repetições de notas era executada desta maneira. J. Walther (1676),
Vivaldi, dentre outros, o exigem expressamente quando escrevem con
arcate sciolte ou simplesmente sciolto. Mas, igualmente, encontra-se
tudo quanto é tipo de ricochet e até mesmo longas séries de staccato
volante no repertório do século XVII, particularmente em Schmelzer,
Biber e Walther. O mesmo acontece com as diferentes técnicas de
pizzicati (tocados com um plectro sobre o espelho, em Biber, ou em
acordes, em Farina em 1626) e com a do col legno (notas percutidas com
a madeira do arco), ambas conhecidas desde o século XVII por Farina,
Biber e outros.
O Capriccio Stravagante de Cario Farina, um aluno de Monteverdi.
publicado em 1626, contém uma incrível lista de efeitos violinísticos.
Imagina-se que a maioria deles tenha sido descoberta em épocas bem
posteriores e alguns somente no século XX! Esta obra, com indicações
de execução muito precisas escritas em duas línguas (italiano e alemão),
é um importante testemunho da antiga técnica do violino. Farina
descreve a execução em posições altas 12 nas cordas graves como um
efeito sonoro (naquele tempo em geral só se passava da primeira posição
na corda mi): “... Desloca-se a mão para perto do cavalete e se começa...
com o terceiro dedo sobre a nota ou o som estipulado.” O col legno

12
Posições em que a mão se desloca para perto do cavalete, produzindo sons
mais agudos em relação à corda solta.
São em geral posições tecnicamente mais difíceis, principalmente no
violino barroco, que é tocado sem ombreira e sem queixeira, pois envolvem
deslocamento espacial da mão, e conseqüentemente riscos de perda da
afinação. (N. da R .)

137
(golpe com a madeira do arco) está assim descrito: Estas (notas) serão
percutidas com a madeira do arco como se fosse sobre um tímpano; não
se deve manter o arco parado por muito tempo, mas prosseguir num
movimento ininterrupto” — a madeira do arco deve saltar como uma
baqueta de tambor. Farina pede que se toque sul ponticello (próximo ao
cavalete) para imitar os instrumentos de sopro, como o pífaro ou a flauta:
“As flautas (flageolets) são tocadas graciosamente, próximo ao cavalete,
mais ou menos a um dedo deste, muito calmamente, como uma lira. E o
mesmo para os pífaros dos soldados, apenas aqui se deve tocar um pouco
mais forte e ainda mais perto do cavalete.” Um efeito particularmente
frequente na técnica de cordas barroca, o vibrato de arco, já é aqui
empregado para imitar o trêmulo do órgão (registro de órgão com vibrato
rítmico): “O trêmulo é imitado por pulsações da mão que segura o arco,
à maneira do trêmulo do órgão”
A técnica de mão esquerda diferia da técnica atual, pois se evitava
as posições altas nas cordas graves — com exceção de certas passagens
em bariolage,13 nas quais a mudança de timbre entre as cordas graves
em posição1 afastada e as cordas soltas agudas produziam um efeito
sonoro desejado. O emprego da corda solta não era absolutamente
proibido muitas vezes era até manifestamente desejado, embora a
sonoridade das cordas de tripa soltas não sobressaísse tanto como a das
cordas de aço atuais.

13 Alternância rápida e repetitiva entre corda solta e corda presa. (N. da R.)

138
A orquestra da primeira metade do século XVIII era um “instru-
mento” finamente ajustado nos seus timbres e na fusão de suas cores. As
diferentes estantes deviam respeitar relações de equilíbrio perfeitamente
definidas. Semelhantes aos registros de um órgão barroco, os timbres
específicos destes grupos desempenhavam um papel decisivo na
instrumentação: no tutti, partia-se em geral de uma escrita a quatro ou
cinco vozes, cujo timbre era formado pelo acréscimo ou retirada dos
diversos instrumentos; os sopros tocavam em princípio o mesmo que as
cordas. É evidente que, para tal instrumentação, a maneira particular pela
qual a sonoridade dos instrumentos se funde entre si é de uma grande
importância. Assim, por exemplo, o som misturado do oboé e do violino
é verdadeiramente a espinha dorsal da sonoridade da orquestra barroca.
Esta escrita colla parte era enriquecida pelos soli instrumentais
concertantes, nos quais os diversos grupos instrumentais (trompetes,
flautas, oboés, cordas) se ressaltavam da sonoridade fundida dos blocos
em tutti — prática que Bach ilustrou de modo particularmente variado.
As particularidades de instrumentação do barroco tardio não podem
ser reproduzidas por uma orquestra moderna. Os diversos instrumentos
evoluíram de maneira muito diferente no decorrer dos séculos passados
— a maior parte deles ganhou uma potência, todos modificaram seus
timbres. Quando uma orquestra atual toca com a formação de uma
orquestra barroca, ela produz uma sonoridade muito pouco barroca: os
instrumentos modernos não foram construídos para esta fusão de timbres
à maneira de registros, mas sim para o papel que assumiram na orquestra
sinfônica clássica e, sobretudo, romântica. Este último, contudo, é bem
diferente: os compositores do século XIX escreviam geralmente partes
do sopro obbligato, que pairavam como solistas acima da sonoridade de
uma orquestra de cordas bastante aumentada. O único vestígio da antiga
técnica colla parte é a unidade contrabaixo-violoncelo, mas que começa
também a dissolver-se no final do século XIX. A sonoridade sinfônica
das orquestras atuais para a música de Bach influencia naturalmente o
estilo de interpretação e certamente dificulta a compreensão da obra.
Paul Hindemith, um compositor profundo, tinha certamente uma
boa ideia do que eram as oficinas de seus grandes predecessores. No seu
discurso, pronunciado à ocasião do festival Bach de Hamburgo, em 12
de setembro de 1950, ele aborda questões referentes à prática de
execução na época de Bach e à opinião atual sobre este assunto.

139
“Nas dimensões reduzidas das formações, assim como nas
particularidades de timbre e execução dos instrumentos outrora usados,
gostaríamos ainda de ver fatores que impõem ao compositor
insuportáveis restrições... Nada fala em favor de tal concepção... Basta
estudar cuidadosamente suas partituras (de Bach) puramente orquestrais
(as suítes e os concertos de Brandenburgo). para ver como ele tira
proveito dos minuciosos detalhes que permitem a distribuição da
potência sonora nestes pequenos grupos instrumentais — um equilíbrio
que é frequentemente alterado exclusivamente pela duplicação das vozes
por alguns instrumentos, tal como se dobrássemos a linha de soprano da
ária de Pamina por um coro feminino. Podemos estar certos de que Bach
se sentia perfeitamente à vontade com os meios estilísticos — vocais e
instrumentais — de que dispunha; e se quisermos interpretar fielmente
sua música tal como ele a imaginou, precisamos, então, reconstituir as
condições de execução daquele tempo. Não basta ter um cravo como
instrumento de contínuo. 14 Nossos instrumentos de cordas precisam ser
encordados de outro modo; precisamos utilizar instrumentos de sopro
com a furação interna usada antigamente...”
Observa-se que as exigências de Hindemith vão bem além daquilo
que se considera normalmente, hoje em dia, como uma execução
autêntica. Partindo do aspecto prático, chegamos às mesmas conclusões
que ele. Anos de pesquisa e numerosos concertos com instrumentos
originais colocaram em evidência relações muito particulares de
sonoridade e equilíbrio.
Esses instrumentos soavam, entretanto, em salas cuja acústica era
diferente daquela das modernas salas de concerto. Nos séculos e XVIII,
devido aos pisos de pedra, à altura das salas e aos revestimentos de
mármore, a reverberação era bem mais importante do que aquela com
que hoje nos habituamos. Isto significa uma fusão de sons muito mais
acentuadas. Acordes arpejados em notas rápidas, como os que aparecem
em quase todos os allegros da época, soam em tal sala como acordes
vibrando nervosamente e não minuciosamente cinzelados, como nas
salas de concerto modernas.

14
Na orquestra barroca, o cravo, o órgão, a teorba, tradicionalmente faziam
o papel de baixo-contínuo, ou seja, executavam a linha do baixo
cifrado,"traduzindo” as cifras em acordes que eram improvisados de acord.i
com o caráter da peça — à semelhança do que fazem hoje os músicos de jazz.
(N. da R.)

140
Contudo, poder-se-á objetar que os tempi eram, outrora, mais lentos,
o que compensaria essa acústica “reverberante”. Felizmente, possuímos
fontes que indicam, quase metronomicamente, os tempi da música
barroca. Como, por exemplo, no tratado1 de flauta de Quantz onde tudo
é relacionado com o pulso, ou então na obra Toniechnik do padre
Engramelle, onde a duração das notas, dada em comprimentos, pode ser
facilmente calculada. Considerando-se estes tempi, chega-se à
surpreendente conclusão de que se tocava, por exemplo, no início do
século XVIII, muito mais leve e rápido do que se supõe hoje. Por se
haver criado uma concepção grandiosa e romântica desta música e
também por uma não fundamentada desconfiança com relação aos
conhecimentos técnicos dos músicos de outrora, os músicos atuais
forjaram tempi standard demasiado lentos para as obras de Bach e
Haendel.
A compreensão das “condições de execução de outrora” conduz a
uma nova maneira de encarar esta música no seu conjunto. As exigências
que disto resultam são grandes, tanto para os ouvintes quanto para os
músicos; os dois devem mudar radicalmente de atitude. Não se
encontrará mais a escala de timbres 5 sons com que se estava acostumado
desde a infância e tampouco a dinâmica habitual. É necessário dispor-se
a escutar pacientemente as sonoridades pouco habituais e muito mais
doces dos instrumentos antigos, até que se possa aceitá-las sem qualquer
estranheza. Então irá abrir-se um novo mundo (o antigo) de nuances
sonoras características e refinadas; a verdadeira sonoridade barroca se
tornará realidade.
Mas. em que consiste de fato a diferença entre o instrumentarium da
época barroca e o dos nossos dias? Os instrumentos de cordas, cerne de
todo conjunto, têm quase a mesma aparência de duzentos e cinquenta
anos atrás, e instrumentos desta época ainda são frequentemente tocados.
Contudo, no século XIX, estes instrumentos foram profundamente
modificados em sua construção, para serem adaptados às novas
exigências, antes de tudo no que concerne ao volume e ao timbre. Mesmo
que uma grande quantidade de excelentes violinos tenha sido feita na
época barroca, estes instrumentos não são mais “violinos barrocos”. Por
volta de 1800 o ideal sonoro da música mudou radicalmente e todos os
instrumentos de cordas que se encontravam em uso foram
transformados, em primeiro lugar para que tivessem o volume ampliado.
Desta forma, nasceu o possante violino moderno — o “violino barroco”
não modernizado é muito mais doce, com a sonoridade mais incisiva e

141
mais rica em harmônicos. Os instrumentos de Jacobus Stainer ou
oriundos de sua escola correspondem particularmente ao ideal de
sonoridade dos compositores alemães do período barroco (a capela de
Köthen, para a qual Bach escreveu seus concertos de violino, possuía
preciosos instrumentos do Tirol, certamente de Stainer). Estes
instrumentos eram tocados com o arco curto e leve do século XVIII.
Naturalmente, o que é dito do violino vale igualmente para o caráter so-
noro da viola barroca e do violoncelo.
A este conjunto de cordas se juntam, muito frequentemente,
diversos instrumentos de sopro. Como já dissemos, eles nunca têm na
orquestra barroca — ao contrário da orquestra clássica ou romântica —
uma parte própria nos tutti: os oboés, por exemplo, tocam as mesmas
notas que os violinos; o fagote segue o violoncelo. Assim, a importância
do acréscimo dos instrumentos de sopro à orquestra é essencialmente
para colorir a sonoridade da obra musical e não tem qualquer
interferência na integridade harmônica da composição.
As madeiras barrocas se distinguem exteriormente das modernas,
pois possuem muito menos chaves e são, na maior parte das vezes,
construídas em buxo (marrom claro). Além disso, o cone de sua furação
interna progride de outra forma. Estas diferenças exigem uma técnica de
execução completamente distinta. Dos sete ou oito orifícios, seis são
fechados com os dedos e os restantes com chaves. Deste modo, em
princípio, só se pode tocar uma escala diatônica, a escala fundamental
do instrumento em questão, que é, ao mesmo tempo, a sua tonalidade
ideal. A maior parte das tonalidades restantes podem também ser
tocadas, mas só com ajuda dos complicados “dedilhados em forquilha”,
que forçosamente terão de ser usados em todas as notas que se afastam
da escala fundamental. Estas notas soam bem diferentes daquelas
produzidas por dedilhados “abertos”; elas parecem mais veladas,
indiretas. Com isso, se cria em cada tonalidade e em cada encadeamento
de notas uma alternância constante de sons cobertos e abertos que, por
um lado, confere a cada uma das tonalidades e a cada instrumento uma
característica particular e que, por outro, propicia durante todo o
desenrolar da música uma rica cintilação de timbres. Isto não tinha nada
de indesejável, pela contrário, esta desigualdade sonora era apreciada
(foi só no século XIX que se procurou conscientemente obter uma escala
“cromática” perfeitamente igual, ou mais exatamente, uma escala de
doze semitons). Além do mais, os antigos instrumentos de sopro
necessitavam também de um outro ataque (flauta) ou de outras palhetas

142
(oboé e fagote), já que as notas agudas não eram obtidas com a ajuda de
chaves de oitava, mas soprando-se mais forte. Todas estas peculiaridades
e a maneira especial de se tocar produzem o som “barroco”, que no caso
do oboé e do fagote é mais incisivo e nica em harmônicos e no da flauta
transversa, mais doce, brando e sutil do que nos instrumentos modernos.
Os instrumentos de sopro da época barroca eram construídos de tal
maneira que possuíam, de um lado, uma sonoridade própria claramente
reconhecível no solo, e por outro, podiam facilmente unir-se a outros
instrumentos da mesma tessitura, numa nova fusão sonora. O exemplo
mais característico disso é o oboé. (A aliança do oboé com o violino é,
com efeito, a essência sonora da orquestra barroca.) Ao lado do oboé
normal, em dó, havia também o oboé d’amore (em lá) e o oboé da caccia
(em fá). Estes instrumentos, devido a seus timbres particulares, eram
antes de tudo usados para soli, mas algumas vezes dobravam as vozes
intermediárias da orquestra de cordas.
A flauta transversa é um típico instrumento solista e são bem poucas
as obras orquestrais do barroco nas quais ela é exclusivamente
empregada como um instrumento de tutti. Na mais famosa obra para este
instrumento, a Abertura em si menor, Bach produz uma nova e singular
coloração da orquestra, ao escrever a flauta colla parte com os violinos.
O charme particular da flauta transversa barroca reside na sua sonoridade
de “madeira” e nas constantes modificações tímbricas resultantes da
alternância incessante de dedilhados “abertos” e “em forquilha”.
O fagote barroco faz realmente soar a madeira, quase como um
instrumento de cordas, com uma sonoridade “de cana” (reedy) muito
marcada, pois as suas paredes muito finas permitem que a madeira vibre.
Ele é concebido não só para fundir-se de maneira ideal com o violoncelo
e o cravo na execução do baixo-contínuo, como também para dar ao
baixo um traçado e contorno claros.
Para as composições destinadas às cerimônias oficiais e festi vas a
instrumentação barroca prescreve trompetes e tímpanos. Normalmente,
estes instrumentos são igualmente integrados à escrita a quatro vozes e
quase sempre estão associados ao registro sonoro dos oboés e violinos.
No caso do trompete, a diferença em relação aos instrumentos modernos
é especialmente gritante, pois os antigos trompetes, tal como as trompas,
são instrumentos puramente naturais, constituídos apenas de um tubo
metálico sem qualquer tipo de pistão. Este tubo termina num pavilhão e
é soprado através de uma embocadura em forma de cálice. De acordo
com a tensão dos lábios obtêm-se os sons naturais, os harmônicos de

143
uma fundamental, que correspondem ao comprimento do instrumento.
Num trompete natural em dó, pode-se produzir as seguintes notas:

(Num trompete em ré, tudo soa um tom acima.) Como o décimo


primeiro harmônico, fá, muito alto, “... está a meio caminho entre o fá e
o fá sustenido sem produzir nenhuma das duas notas justas — e que se
há que considerá-lo, portanto, um bastardo musical...” (Altenburg,
Trompetenkunst, 1795) e como o décimo terceiro, lá, é demasiado grave,
tentava-se compensar estas impurezas através do ataque ou então
utilizava-se um orifício de transposição, fechado pelo polegar, o que
elevava a afinação de todo o instrumento de uma quarta, com isso
transformando fá e lá no quarto e quinto sons harmônicos, podendo por
conseguinte ser tocados justos. Este método (redescoberto por O.
Steinkopf) foi igualmente utilizado nos instrumentos que usamos. A
maneira de curvai, em círculo ou ao comprido, sempre variou: “Alguns
mandam fabricar os seus trompetes enroscados como uma trompa de
postilhão ou como uma serpente”, diz Praetorius (1619). A diferença
essencial entre um trompete natural e um trompete de pistão moderno
reside no taille dos dois (é assim que se chama a relação entre o compri-
mento e a seção). Um trompete moderno em dó, com seção quase igual
a de um trompete natural, tem a metade do comprimento deste último, já
que no moderno as distâncias maiores entre as notas da segunda e
terceira oitava podem ser compensadas por pistões. Isso explica também
a significativa diferença de sonoridade, pois a longa coluna de ar do
trompete natural torna o som mais nobre e doce, fazendo dele um
parceiro mais adequado para os outros instrumentos barrocos.
Na escrita orquestral barroca e clássica, os tímpanos vão sempre
com os trompetes — prática que remonta à época em que os tocadores
destes dois instrumentos eram normalmente músicos militares, cujas
fanfarras serviam para anunciar, com a pompa e o respeito devidos, a
chegada dos grãos-senhores. Os tímpanos barrocos, no século XVIII,
eram fabricados diferentemente dos atuais. Suas caixas planas com
paredes quase verticais, tinham coberturas de pele relativamente espessa
e de tensão variável. Estes tímpanos eram tocados com baquetas de
madeira ou de marfim (sem feltro!), “as quais eram torneadas segundo a
forma de uma pequena roda” (Daniel Speer, Grundrichtigen Unterricht,

144
1687). Com tais baquetas, os tímpanos não produziam um som redondo
e volumoso como atualmente, mas estridente límpido, acentuando com
clareza os acordes dos trompetes. Os rufos que se encontram
frequentemente na obra de Bach não são executados em batidas rápidas
e isoladas com estas baquetas de madeira, mas fazendo-as ricochetear, o
que produz um som sustentado, num rufar muito característico.
Ao lado destes instrumentos habituais da orquestra barroca, havia
ainda aqueles a que se recorria apenas para preencherem certas funções
especiais. As trompas que, até o fim do século XVII, não passavam de
instrumentos exclusivamente usados na caça, foram, a partir de 1700,
introduzidas na música erudita. No início, os compositores integraram a
suas obras motivos típicos de trompa, retirados da música de caça. Muito
cedo, descobriu-se também as possibilidades da trompa natural para
executar melodias cantabile românticas nas quais as notas que se
encontravam entre os harmônicos eram obtidas através da introdução da
mão no pavilhão, o que produzia uma bela alternância de timbres.
O cravo é a “alma” da orquestra barroca. Ele não só facilita a coesão
rítmica dos músicos, que tocam na maior parte das vezes sem regente,
como também preenche as harmonias como instrumento de baixo-
contínuo, tocando os acordes ou completando as vozes. Contudo, para
fazer com que a voz do baixo sobressaia nas passagens de tutíi e para
reforçá-la, a gamba, o violoncelo ou contrabaixo e algumas vezes até
fagote, tocam frequentemente a voz mais grave junto com o cravo.
O cravo é, em princípio, um instrumento histórico, cujo de-
senvolvimento se encerrou no século XVIII. É de sua essência não dispor
de possibilidades de dinâmica. O executante deve obter a expressão e o
caráter cantado (neste instrumento, o cantabile era o objetivo máximo)
com a ajuda das mais finas nuanças agógicas. Naturalmente, o som do
cravo em si deve parecer tão interessante e vivo que o ouvinte não fique
desejando uma diversidade sonora. Os cravos históricos, muitos deles
ainda em boas condições de serem tocados, satisfazem plenamente estas
exigências, sua sonoridade é cheia e clara; eles são quase sempre
compostos de vários jogos de cordas, dois dos quais na altura normal
(oito pés) e um oitava acima (quatro pés); estes “registros” devem
principalmente possibilitar a diferença de nuanças para solo e tutti (há
um registro mais forte e outro um pouco mais doce); o acréscimo da
oitava dá brilho aos solos, e o acoplamento dos dois registros de oito pés
permite que o som cante mais plenamente. Estas possibilidades de
combinações devem ser utilizadas de modo a deixar clara a estrutura

145
formal da obra; normalmente, tocam-se movimentos inteiros com uma
registração única.
Este princípio, que é precisamente o nervo vital do cravo e da
música, foi muitas vezes ignorado pelos construtores e executantes à
ocasião da redescoberta e renascimento do instrumento no século XX.
Tentou-se, no tocante às técnicas de construção, transpor para o cravo
“as experiências adquiridas na construção de pianos”, construindo o
instrumento, que em sua origem era fechado, em forma de caixa como
um violino, com uma moldura de piano e o tempo harmônico estendido
no interior. Faltava, por conseguinte, aquele espaço fechado que é
justamente o que permite a fusão do som e concede ao cravo uma
qualidade nobre. Acrescentou-se ainda aos três registros de base um
quarto, afinado uma oitava abaixo (dezesseis pés); ora, esta carga
suplementar retira dos outros registros a sua plenitude sonora. Como o
princípio da execução do cravo e de sua sonoridade foi mal
compreendido, fez-se registros com sonoridades tão variadas quanto
possível; a troca de registros era feita por intermédio de pedais, o que
permitia ao executante, através de constantes trocas de registros,
produzir uma pseudodinâmica. Sem dúvida alguma, um dispositivo
indispensável nestes instrumentos, pois a diversidade permite desviar a
atenção do ouvinte de suas pobres qualidades sonoras. Curiosamente,
estes instrumentos modernos têm muito menos volume; em geral não se
ouve mais que um ruído metálico em meio ao som da orquestra. Os
cravos de construção recente, habitualmente utilizados hoje em dia, não
têm qualquer semelhança com os antigos, em termos de sonoridade. Um
cravo antigo ou uma cópia de primeira qualidade é capaz, com toda a
certeza, de ser o centro de um conjunto, com sua sonoridade intensa e
brilhante. Esta ruptura de equilíbrio (cravo muito fraco cordas e sopros
muito forte), somada à acústica da sala, é certamente responsável por
alterações decisivas na imagem sonora original...
Considerando-se uma orquestra barroca do ponto de vista da
dinâmica, este corpo sonoro pode ser efetivamente comparado a um
órgão barroco. Os instrumentos isolados e os grupos de instrumentos são
utilizados, normalmente, como registros. Quando se acrescenta ou
suprime os diversos grupos instrumentais, a construção dinâmica se
modifica, na escrita habitualmente a quatro vozes. Esta “regência de
grupos sonoros” serve, antes de mais nada, para destacar a estrutura
formal; ela permite efeitos de piano-forte e também em pequena escala
uma rica dinâmica, mas não o crescendo clássico!

146
No conjunto, a sonoridade da orquestra barroca é sensivelmente
menos forte, porém mais incisiva, colorida e agressiva; os instrumentos
isolados estão muito mais claramente caracterizados do que na orquestra
moderna, nascida das exigências do século XIX. O órgão barroco típico
distingue-se também de maneira análoga do órgão romântico.

147
Desde épocas muito antigas tentou-se utilizar a música para repro-
duzir ideias extramusicais; este domínio anexo à música não deve ser
desprezado; os gêneros e os métodos mais diversos se entrelaçam e nem
sempre são fáceis de serem separados; pode-se, contudo, distinguir
quatro orientações principais: imitação acústica — representação
musical de imagens — representação musical de pensamentos ou
sentimentos — a linguagem dos sons. O encanto particular desta música
reside no fato de que tudo isto é transmitido sem texto, por meios
puramente musicais.
A forma mais primitiva, mas certamente a mais divertida também,
é a simples imitação sonora de ruídos de animais ou de instrumentos
musicais particulares, aquela que os compositores utilizaram desde o
século XIII, passando pelos compositores ingleses da nightingale music
(música de rouxinol) por volta de 1600, por vários compositores
franceses, italianos e alemães, até chegar a Beethoven e Richard Strauss
& mesmo a alguns compositores mais tardios. A transposição para a
música de cenas de imagens é sensivelmente mais complicada. Durante
séculos foram-se criando fórmulas musicais que provocam determinadas
associações, constituindo, assim, uma ponte entre imagem e música.
Uma terceira possibilidade da música programática consiste em
representar musicalmente pensamentos ou ideias por meio de
associações assaz complicadas. É neste ponto que desaparecem,
principalmente na música barroca, as fronteiras da chamada música
absoluta. A música barroca quer sempre dizer alguma coisa, ou pelo
menos representar e suscitar um sentimento geral, um “afeto”. E, por
fim, a “linguagem dos sons” que, desde aproximadamente 1650 e por
quase dois séculos, desempenha na música realmente um papel
fundamental.
O diretor de música em Hamburgo, secretário de legação e
secretário de embaixada, Johann Mattheson, um dos mais cultos e finos
observadores de seu tempo, denominava a música “a linguagem dos
bem-aventurados em toda eternidade”. Algumas citações de Neidthart,
Quantz e Mattheson, datadas dos primeiros decênios do século XVIII
poderão mostrar-nos o quanto a palavra linguagem aqui é tomada em
sentido literal: “O objetivo final da música é simplesmente, através de
sons e ritmos, suscitar todas as paixões, tão bem quanto o melhor dos
oradores” (Neidthart). “A música nada mais é que uma linguagem

148
artificial” (Quantz). “... Aquele que quer sensibilizar o outro com a
harmonia deve saber exprimir todas as inclinações do coração por meio
de simples sons escolhidos e de uma hábil combinação destes, sem
palavras, de tal modo que o ouvinte possa perfeitamente compreendê-los
e perceber-lhes claramente a inclinação-, o sentido, a significação, a
intensidade, como se se tratasse de um verdadeiro discurso, com todas
as divisões e censuras correspondentes. Então, é um prazer!” “A melodia
instrumental ..., sem os recursos das palavras e das vozes, se esforça por
dizer tanto quanto estas com palavras.” “Nossa concepção musical difere
da organização retórica de um simples discurso apenas no assunto, o
objeto ou abjecto: ela deve observar, portanto, os mesmos seis elementos
prescritos ao orador, a saber, introdução, exposição, proposição,
confirmação, refutação e conclusão.” (Mattheson) Quase todas as obras
teóricas e didáticas da primeira metade do século XVIII consagram à
retórica musical extensos capítulos, pois os termos técnicos da retórica
eram aplicados também à música. Dispunha-se de um repertório de
fórmulas fixas (figuras musicais) para a representação dos sentimentos
e para as “expressões retóricas”, uma espécie de vocabulário de
possibilidades musicais. Formas puramente vocais como o recitativo e o
arioso eram frequentemente imitadas instrumentalmente; pode-se
perfeitamente imaginar o texto correspondente. Esta etapa final,
maneirista, foi precedida de uma longa evolução que começara já antes
da emancipação da música instrumental. As primeiras canzone
instrumentais venezianas anteriores a 1600 já eram fortemente
influenciadas pelas chansons francesas; há, porém, um conjunto de
fórmulas de motivos musicais (aqueles que um estilo retirou do outro),
que não pode ser compreendido como citação. Também o emprego de
cantus firmi gregorianos ou profanos, tal como aparece já antes de 1600,
especialmente na música instrumental francesa e inglesa, não mostra
qualquer relação entre o texto do cantus firmus e a sua nova utilização.
(Penso, aqui, nas fantasias “In Nomine” da música inglesa para viola da
gamba ou nas fantasias de Du Caurroy sobre cantus firmi sacros e
profanos.) É na música programática, portanto, nas pinturas musicais de
batalhas e nas representações da natureza, com suas imitações de cenas
de caça e de vozes animais, que se encontra pela primeira vez
verdadeiras associações de sentido ou de ação que vão de fato ser a
marca distintiva da música instrumental “falante”. Estas peças são em
sua maioria construídas sobre uma base bastante primitiva e imagística
e não possuem ainda uma sequência que desenvolva um verdadeiro

149
enunciado. As primeiras obras instrumentais, nas quais a música tentou
de uma forma mais elevada expressar algo determinado, são
provavelmente os funerais ingleses e os tombeaux franceses dos séculos
XVII e XVIII. Estas peças, sem dúvida modeladas a partir de odes
fúnebres dedicadas a pessoas determinadas, possuem um discurso
claramente reconhecível, cujo desenvolvimento, constituído de partes,
se mantém praticamente o mesmo durante mais de um século: introdução
(este homem está morto) — sentimento pessoal (luto) — progressão até
o desespero consolo (o morto vive na beatitude) — conclusão
(semelhante à introdução). Certamente estabeleceu-se desde cedo, nas
obras deste gênero, um repertório de fórmulas mais ou menos fixas: o
modelo destes tombeaux foi sem dúvida a oração fúnebre, construída
segundo as regras precisas da retórica.
Uma forma curiosa de música instrumental dotada de texto se
encontra na prática do alternatim do serviço religioso. Aqui, o órgão foi
admitido e utilizado, relativamente cedo, como substituto de uma parte
inteira de um “dos grupos no canto alternado dos padres, dos chantres e
dos fiéis. A compreensão do discurso sem texto se faz por aquilo que
constituiria uma ligação fundamental com as melodias de coral e pela
inteligibilidade do “discurso sonoro” daí decorrente. Marc-Antoine
Charpentier avançou mais um pouco, com sua Messe pour plusiers
Instruments; nela, ele fez brilhar o modelo do canto alternatim através
de uma constante alternância entre os clérigos e uma orquestra barroca
com uma formação instrumental importante e suntuosa. Em alguns
trechos, o cantus firmus é até abandonado ou mesmo diminuído, a ponto
de não ser mais reconhecido. O Glória, por exemplo, tem o seguinte
desenvolvimento: “O celebrante entoa Gloria in excelsis Deo e
imediatamente se segue et in terra para todos os instrumentos; lauda/nus
te para os clérigos benedicimus te para os oboés; adoramus te para os
clérigos, glorificamus te para os violinos; Gradas para os clérigos. Do-
mine Deus para as flautas doces; Domini fili para os clérigos, Domine
Deus agnus Dei para todos os instrumentos de sopro; Qui tollis para os
clérigos, qui tollis para todos os violinos, oboés e flautas...” etc. Uma
outra forma de enunciado textual concreto na música instrumental é a
citação. Motivos supostamente conhecidos, tirados de obras vocais, são
integrados às obras instrumentais, em geral, com uma significação
simbólica encoberta. Certamente, estas citações têm estreito parentesco
com a base do discurso sonoro, por assim dizer, o seu vocabulário, que
é o repertório de figuras. Estas figuras são mais ou menos encadeamentos

150
de notas fixos que foram descobertos no século XVII, no recitativo e no
canto solista, para determinadas palavras e conteúdos expressivos. Eles
foram, em seguida, separados de seus textos e utilizados também como
figuras essencialmente instrumentais que levaram o ouvinte a associá-
las com o conteúdo original das palavras e sentimentos. O conteúdo do
discurso sonoro era de fato — tal como os tratados o descrevem — bem
mais concreto do que gostaríamos de admitir.
Todo instrumentista do século XVII e de boa parte do século tinha
plena consciência de que devia sempre executar a música de maneira
eloquente. A retórica era, com toda a sua complexa terminologia, uma
disciplina ensinada em todas as escolas e fazia parte, portanto, tal como
a própria música, da cultura geral. A teorias dos afetos foi desde o início
parte integrante da música barroca — tratava-se de mergulhar a si
próprio em determinados sentimentos, para poder transmiti-los aos
ouvintes —, embora a ligação da música com a oratória se fizesse por si
mesma. Embora a música fosse uma linguagem internacional, como a
pantomima ou a “arte dos gestos”, reconhece-se, claramente, os diversos
ritmos de fala das diferentes nações que certamente contribuíram para a
formação dos diversos estilos.
Os teóricos, por vezes, enfatizam o fato de que o compositor e o
executante nem sempre têm de estar conscientes dos princípios retóricos;
não há necessidade de conhecer a gramática para dominar-se a língua
materna; toda infração das regras é sentida como não natural,
conhecendo-as ou não. Os compositores e os intérpretes simplesmente
supunham que o público podia compreender seu discurso sonoro, o que
muito nos surpreende, já que nós mesmos, tanto na qualidade de músicos
como na de ouvintes, frequentemente, nos deparamos com graves
problemas de compreensão.
Isto, é claro, acontece pelo fato da vida musical de hoje diferir
radicalmente daquela do barroco. Escutamos e tocamos música de quatro
ou cinco séculos, às vezes no curso de um único e mesmo concerto e nos
é tão frequentemente explicado que a música é intemporal, que
comparamos obras de épocas diversas, sem pensar, sem levar em conta
as premissas que isso supõe. Em contrapartida, o ouvinte da época
barroca só escutava a música mais moderna, e como os músicos também
tocavam exclusivamente esta música, é fácil imaginar que uns e outros
compreendiam bem as nuances da linguagem musical.
Infelizmente, nos foi demasiado explicado que a música que diz
“alguma coisa” tem menos valor do que a música “pura”, absoluta.

151
Talvez o fato de saber que a música do barroco, e também uma boa
parcela do período clássico, é uma música que fala, talvez isso nos
levasse a ter uma melhor compreensão da música retórica, se
renunciássemos a desprezar a mensagem da música.

152
A música barroca e clássica, ainda hoje, é vista normalmente pela
ótica do fim do século XIX, e é assim executada. É verdade que se fez
— e ainda se faz — várias tentativas no sentido de modernizar as
interpretações, sobretudo desfazendo-se de todas as tradições de
execução e baseando-se exclusivamente no texto musical — toca-se
exatamente e unicamente aquilo que, nele, se acha: conheceu-se
igualmente outras “tentativas de reforma”; mas no essencial continuou -
se a executar toda a “história da música”, por conseguinte, desde o início
do barroco até o pós-romantismo num único estilo de interpretação:
exatamente naquele concebido e perfeitamente apropriado à música de
Tchaikovsky ou Richard Strauss ou Stravinsky.
Para a música barroca, já se tentou no mundo inteiro achar uma nova
linguagem, ou melhor, redescobrir a antiga, ou melhor ainda, a
linguagem que acreditamos ser a antiga, pois ninguém pode saber
mesmo, pelo menos até que alguém da época retorne para confirmar ou
condenar nossas concepções. Por que este passo foi dado precisamente
na música barroca? É que justamente nela a diferença na dicção, nas
estruturas musicais primárias, é tão evidente, que um músico ou outro
teria um dia forçosamente de tomar consciência do abismo insuportável
que separa a música em si de seu estilo interpretativo; a diferença entre
as obras — digamos do fim do século XIX e da época de Bach — é tão
grande, que só um modo de interpretação igualmente diverso pode dar
conta. As pesquisas constantes realizadas neste campo levaram um bom
número de músicos a encontrar uma nova linguagem musical para a
época de Bach; deste modo, foi descoberto um vocabulário musical que
se revelou bastante convincente. Naturalmente, cada uma das “desco -
bertas” se fez acompanhar de controvérsias e discussões que tão cedo
não terminarão; mas pelo menos no campo da execução da música
barroca as coisas finalmente começaram a se movimentar. Não se aceita
mais qualquer coisa sem discussão; a presunção e a segurança dos
intérpretes, fundadas unicamente em uma tradição mal compreendida,
cedem lentamente a uma atitude de pesquisa interessada.
É curioso que estes novos princípios de interpretação que foram —
e continuam sendo — descobertos, param de repente na música clássica
vienense. É claro que há aqui um corte estilístico que não se pode deixar
de perceber e que é evidente para qualquer músico ou ouvinte. Quase
ninguém hesita quando se trata de classificar o estilo de uma determinada

153
obra; todo mundo que frequenta concertos percebe imediatamente se
uma obra pertence à esfera estilística de Bach ou de Haydn. A pessoa
sente a diferença, mesmo quando as obras datam de uma única época,
pois ao tempo de Bach já existia em Viena e em Mannheim compositores
que escreviam no novo estilo galante, o estilo da Empfindsamkeit, e que
se supõe, quando não se tem conhecimentos precisos de história da
música, fossem contemporâneos da primeira fase de Haydn. No
momento desta transição, quando o barroco e o classicismo se
interpenetram — estou aqui aplicando estes dois termos unicamente à
música —, estava se processando uma revolução social e cultural a que
se seguiu, como já anteriormente mencionei, uma modificação da função
da música. A finalidade desta seria, doravante, a de dirigir-se
diretamente a todo mundo, inclusive às massas. Quando se considera as
diferenças entre uma obra do fim do barroco e uma da época clássica, se
observa que o classicismo coloca o elemento melódico em primeiro
plano. As melodias devem ser fáceis e convincentes, com o
acompanhamento o mais simples possível; o ouvinte deve ser atingido
no seu sentimento; os conhecimentos técnicos não são aqui necessários
como na música barroca (do ponto de vista estritamente da substância
musical, isso significa uma decadência que só será superada com as
obras-primas de Haydn e de Mozart). A música, agora, pela primeira vez,
se dirige a um ouvinte que não tem absolutamente necessidade de
“compreender”. Foi nesta época e a partir desta mentalidade que brotou
a ideia muito comum hoje de que a música não tem de ser compreendida;
se ela me agrada, se ela se dirige aos meus sentimentos, se ela me faz
sentir qualquer coisa, então é porque é boa. Assim, na fronteira do bar-
roco com o clássico encontra-se também a fronteira que separa a música
fácil e difícil de compreender. Esta maneira de encarai a música clássica,
achando que nada há para ser sabido ou conhecido, é que nos impediu
de ir em busca de seu vocabulário específico.
Devemos partir do princípio de que a música clássica era tocada por
músicos e escrita para ouvintes que não conheciam a música de Schubert
e Brahms, mas que eram pessoas recém-saídas da linguagem barroca.
Isso, evidentemente, significa que existe uma grande parte de
vocabulário barroco na música clássica, e tudo aquilo que na música
clássica difere da música anterior é — do ponto de vista dos
contemporâneos — novo e especial, aquilo, enfim, que ela tem de
estimulante. Já no nosso caso, a coisa é totalmente diversa: tendo nos
ouvidos Schubert, Brahms e tudo o que veio depois, escutamos a música

154
do classicismo de um modo completamente diferente do homem daquela
época. Aquilo que era então novo e apaixonante nos parece antiquado,
já mil vezes repetido e, além de tudo, “ultrapassado” pelas inovações
harmônicas e dinâmicas criadas em épocas posteriores. Conhecendo os
estímulos que estavam ainda por vir, perdemos a inocência das reações
espontâneas aos estímulos originais do classicismo. Na interpretação, o
caminho que passa pelo romantismo não tem sentido, pois ele priva a
música clássica de sua verdadeira linguagem e efeitos.
Esta necessidade de compreender a música é para nós, tributários
eternos da concepção romântica, algo muito difícil de admitir. Toda
música que não nos parece evidente na primeira abordagem,
simplesmente a tachamos de ruim ou pouco interessante. Mas, como
seria se aprendêssemos o vocabulário necessário à compreensão da
música clássica? Pode ser que ele não seja tão difícil assim, talvez
bastasse aprender umas tantas coisas e já desse para ouvir a música com
um novo tipo de percepção. O efeito de desgaste que parece inevitável
no caminho (errado) do romantismo seria evitado; poderíamos, hoje, a
partir da compreensão que a época precedente tinha da música,
compreender novamente a música do classicismo. Este caminho me
parece muito mais natural e produtivo, e hoje em dia novamente
praticável.
Até agora, não havíamos incluído o domínio clássico no conjunto
de problemas referentes à prática de execução, porque pensávamos que,
aqui, o mundo da interpretação ainda estivesse sadio, que tudo ainda
estivesse em ordem, que fosse perfeitamente dispensável rever as ideias
e que tudo pudesse continuar como está. Infelizmente — ou quem sabe
felizmente — a experiência nos ensinou, no curso dos últimos anos, que
não era nada disso. Pois se a interpretação atual da música clássica
estiver realmente se afastando cada vez mais do que pensaram os
“clássicos”, isso certamente irá causar em nós uma profunda incerteza,
um mal-estar, um senti mento nascente de que estamos no caminho
errado e de que a velha ideia — a de interpretar esta música unicamente
segundo a sensibilidade ou unicamente a partir do texto musical — não
é válida para todas as épocas. Desta forma, cedo iremos concluir que é
necessário encontrar novos caminhos — ou os antigos — para a
interpretação e a compreensão da música.
De resto, o ouvinte tinha antigamente uma concepção muito
diferente sobre a experiência musical. Ele só queria ouvir o novo,
exclusivamente músicas que jamais houvessem sido antes ouvidas. Os

155
compositores estavam perfeitamente conscientes de que uma obra não
podia ser tocada várias vezes para um mesmo público. Estava-se, então,
muito mais interessado na obra em si mesma do que na sua execução; os
críticos se ocupavam praticamente só da obra e davam à execução uma
importância apenas relativa, justo o contrário do que acontece hoje,
quando só se comenta e compara quase que exclusivamente os detalhes
da execução. A mensagem da obra, conhecida nota por nota, não é mais
objeto de discussão em nossos dias.
Antigamente, havia interesse por uma peça na medida em que esta
fosse nova; depois, ela era abandonada e passava a servir no curso dos
séculos seguintes como matéria de estudos para os compositores
vindouros — ninguém, nem mesmo o autor da peça, seria capaz de
imaginar que em épocas ulteriores ela fosse novamente executada.
Beethoven, Mozart e mesmo Bach sem dúvida alguma se ocuparam com
as obras de seus predecessores, mas se limitavam a estudar-lhes as
técnicas de composição nas bibliotecas e jamais passaria por suas
cabeças executar uma peça do passado de acordo com aquilo que teria
sido imaginado pelo autor. Caso alguma execução fosse desejada por um
motivo qualquer, modernizava-se radicalmente a obra. É o que fez, por
exemplo, Mozart com as obras de Haendel, quando lhes deu uma
roupagem nova muito ao seu estilo, para atender o fanatismo, histórico
de Van Swieten. Agora, suponhamos que disséssemos: seria interessante
saber como Brahms poderia soar nos tempos atuais. Stockhausen deveria
fazer um arranjo tocável de uma das suas obras, qualquer coisa na linha
do público de hoje. pois afinal Brahms escreveu sua música um século
atrás e ela evidentemente não dá mais para ser ouvida. Essa seria mais
ou menos a atitude pública de outrora com relação àquilo que era então
música antiga. Tomemos os programas de concertos do final dos séculos
XVIII e XIX. Toda estréia, toda primeira audição — até a época de
Tchaikovsky, Bruckner, Strauss— era atual; ali, naquele momento, é que
se faziam os acontecimentos que interessavam o mundo musical e não a
reexecução de obras antigas. Naturalmente, às vezes, introduzia-se
também música antiga nos programas (só que por volta de 1700 uma
música com cinco anos já era considerada antiga), mas o núcleo da vida
musical até o final do século XIX era a música contemporânea.
A concepção que se tinha da música histórica no século XIX pode
ser ilustrada pelo seguinte acontecimento: Joachim, o famoso violinista,
amigo de Schumann e Brahms, achou em uma biblioteca a Sinfonia
Concertante para violino e viola de Mozart. Ele escreveu sobre isto a

156
Clara Schumann, relatando que havia encontrado uma jóia de música,
embora naturalmente não se pudesse mais executar em público algo
daquele gênero, mas, para os conhecedores, ela se constituía numa
maravilhosa leitura e, quem sabe, algum dia os dois poderiam tocá -la
juntos. Durante o século XIX aos poucos foram aumentando as
execuções de obras de Beethoven e Mozart e vez por outra também de
algumas despropositadas transcrições e arranjos de Bach e Haendel — o
que, porém, só representava uma ínfima parte da vida musical. Todo o
resto era atual, era música nova!
Foi com a execução pública da Paixão segundo São Mateus de Bach
em 1829 que Mendelssohn retirou a música antiga do domínio dos
antiquários. Em seu amor verdadeiramente romântico pelo antigo, ele
encontrou aqui, num passado dos mais sombrios, contra todas as
expectativas, uma música apaixonada. A ideia de sua utilização não só
como objeto de pesquisa, mas também para novas execuções, só foi
possível concretizar-se 110 romantismo; a execução da Paixão segundo
São Mateus por Mendelssohn, é bom lembrar aqui, foi considerada pelos
contemporâneos como um grande acontecimento, como uma coisa única
que não poderia repetir-se. Por outro lado, nenhum dos ouvintes jamais
havia escutado a obra e as críticas a respeito a descrevem como uma
música apaixonante e nova.
Expliquei acima que se deveria abordar a música clássica a partir da
época precedente, fundamentando-se no antigo vocabulário barroco.
Dentre os importantíssimos recursos artísticos que o classicismo
adquiriu do barroco, encontra-se todo o tipo de apogiaturas: longa ou
curta, acentuada ou não-acentuada. A apogiatura longa atua modificando
a harmonia, enquanto que a curta não-acentuada possui uma função
rítmica. Todas as apogiaturas são escritas na forma de pequenas notas
que são colocadas antes das “notas principais”; o músico deve encontrar
por si mesmo, a partir do contexto, o tipo de apogiatura a ser empregado
neste ou naquele lugar. Normalmente, a apogiatura deve ser longa se
estiver sobre uma consonância, pois irá provocar uma dissonância,
desencadeando uma sensação incômoda que será resolvida na nota
principal, na consonância, no bem-estar. Já o antigo vocabulário da
música barroca indicava também, com muita riqueza, a interpretação,
pois era coisa bem sabida para o músico daquela época que a dissonância
devia ser tocada forte e a sua resolução piano. (É suficiente ouvir uma
ou duas vezes uma execução deste tipo para perceber que isto é
evidente.) Este princípio da apogiatura foi retomado pela geração que se

157
seguiu a Bach. Leopold Mozart escreveu, já em sua Escola de violino,
publicada em 1756 — mas que trata de muitos assuntos referentes ao
novo estilo — que a apogiatura deve ser empregada para tornar
interessante um canto, uma melodia, e também para temperá-lo com
dissonâncias. Nenhum camponês, diz ele, cantaria uma melodia sem
apogiaturas e, em seguida, ele dá como exemplo uma melodia, com as
apogiaturas que “qualquer camponês cantaria”. Eu submeti esta melodia
a alguns músicos — que não eram camponeses, mas músicos diplomados
e profissionais — e nenhum deles acrescentou-lhe as apogiaturas.
Concluiu-se, portanto, que o camponês da época de Mozart era muito
mais músico do que o músico de nosso tempo, ou então que aquilo que
era evidente outrora pode ser totalmente estranho à nossa época.
As apogiaturas15 foram, portanto, admitidas no novo estilo, mas com
múltiplos e variados significados e notações. Uma das primeiras razões
para a notação da apogiatura em pequenas notas suplementares estava
no fato de que o compositor queria escrever “corretamente” dissonâncias
que, em certas passagens, “escritas com todas as notas”, teriam ficado
incorretas. Desse modo, a apogiatura indica a dissonância a ser tocada.
As regras da ortografia musical foram ficando pouco a pouco mais
flexíveis, e cada vez mais se foi escrevendo a apogiatura como ela
deveria soar em notas normais. Como tais, elas não são mais para se ver
e sim ouvir.

As velhas regras de interpretação de apogiaturas devem agora ser


aplicadas às apogiaturas escritas com todas as notas que, naturalmente,
é muito importante saber reconhecer. Ora, nas execuções atuais isto dá
margem a muitos erros, pois as apogiaturas escritas com todas as notas
não se distinguem visualmente das notas “normais”.
Os tratados do século XVIII, que falam a respeito das apogiaturas,
afirmam ser muito difícil executá-las corretamente, sobretudo quando
não são escritas com pequenas notas antes da nota real, mas com notas
grandes; poderia acontecer da apogiatura não ser reconhecida e se
acrescentar mais uma apogiatura além da existente. (O que ainda hoje é
frequentemente feito por músicos ignorantes.) Com respeito a isso,
15Apogiatura em alemão chama-se Vorschlag, que ao mesmo tempo significa proposta. (N .
do T.)

158
Leopold Mozart afirma que só “músicos idiotas” fariam tal coisa. O não
reconhecimento das apogiaturas conduz a uma reação em cadeia de erros
de interpretação. É difícil ter uma ideia de como uma obra do classicismo
pode soar diferentemente conforme sejam as apogiaturas reconhecidas e
executadas. O caráter da peça pode ser totalmente modificado.
A regra mais importante para a execução das apogiaturas diz: a
apogiatura não deve ser separada da nota principal. O que é per-
feitamente natural, pois uma dissonância não deve ser separada de sua
resolução — uma tensão não deve separar-se do relaxamento que lhe
pertence. Justamente por ser isto tão evidente é que raramente
encontramos ligaduras unindo a apogiatura à nota principal. O
compositor espera que o músico ligue a apogiatura a sua resolução sem
que seja preciso dizer-lhe. Atualmente, ele não poderia mais contar com
isso, pois nos acostumamos a tocar as notas e não a música que elas
exprimem. Jamais passaria pela cabeça de um músico não deformado por
doutrinas de não ligar uma resolução à dissonância referente a esta. Mas,
se ele tivesse tido um professor que lhe dissesse: “bom, como o
compositor não escreveu a ligadura, não há porque fazê-la”, chegaria o
dia em que esse músico nem se daria sinais ao trabalho de pensar nela e
iria separar a dissonância da resolução, contrariando o sentido musical.
A coisa já foi tão longe que, hoje em dia, só raramente se escuta uma
sinfonia de Mozart com as ligaduras feitas corretamente. Quase nunca
ouviremos que a resolução é decorrente da dissonância; a tendência é de
acentuar de novo a resolução, muitas vezes até de começar, neste lugar,
uma nova frase.
A música perde, assim, o seu sentido tal como a linguagem quando,
por exemplo, numa frase deslocamos a vírgula para duas palavras à
esquerda e o primeiro ponto para duas palavras à direita. Ao ler-se o
texto em seguida, iremos constatar que ele não fará mais qualquer
sentido. Na minha opinião, um dos elos mais importantes que liga as
práticas de execução da música barroca à música clássica está na
compreensão das apogiaturas. Na música da fase final do romantismo, o
músico deve executar somente aquilo que está escrito. Mas, se o mesmo
for feito com uma sinfonia de Mozart, na qual as coisas elementares não
estão indicadas, pois os músicos contemporâneos estavam cansados de
saber do que se tratava, o resultado será algo como um balbuciar
desprovido de todo sentido.
Outro recurso de expressão que a música clássica retomou do
barroco é o das notas repetidas. Estas têm sempre uma significação

159
particular. Numa escrita rigorosa, sabe-se que elas são proibidas. Na
música antiga (anterior a 1600), elas só se encontram para descrever
ruídos e para dividir um som em sílabas. A nota repetida é uma invenção
de Monteverdi que introduz, no Combattimento di Tancredi e Clorinda,
pela primeira vez, a divisão de uma semibreve em 16 valores menores,
visando com isto exprimir o sentimento de cólera. A partir daí, as notas
repetidas serão usadas para obter efeitos particulares que, na maioria das
vezes, têm algo a ver com a ideia original de Monteverdi, isto é, a
expressão de sentimentos agitados. Um bom número de movimentos de
sinfonias clássicas está construído sobre baixos estereotipados era
colcheias, de sorte que o acompanhamento produz uma agitação e uma
tensão fortemente acentuadas. Isso, hoje em dia, só raramente é
compreendido, pois as notas repetidas são para nós apenas simples
repetições de nota ou de acorde, desprovidas de qualquer expressão. Na
música clássica, toca-se muitas vezes páginas inteiras de colcheias e
semicolcheias, como se o que estivesse em jogo fossem meras colcheias
e semicolcheias e não notas repetidas expressivas que exigem uma certa
tensão e agitação tanto de quem ouve como de quem executa. É evidente
que isto tem repercussões na interpretação. Semelhantes repetições de
notas, nós já as encontramos com frequência na música barroca, mais
precisamente no concitato, a descoberta de Monteverdi, que é utilizado
no recitativo acompanhado.
Além dos gêneros descritos aqui, existe, desde o início do século
XVII, uma outra espécie muito sutil de notas repetidas que pertence ao
domínio do vibrato. Como toda repetição de notas, esta também é um
meio de expressão. Já nos órgãos italianos do século XVI, se. havia
construído um registro no qual dois tubos que não eram perfeitamente
afinados davam a cada nota batimentos ritmados. Este registro era
denominado você humana, por analogia com o leve vibrato das vozes
dos cantores. Esta sonoridade já é citada por volta de 1600 na música
para cordas, onde é denominada tremolo ou tremolando e está notada:
A execução é descrita, por muitas vezes e com muita precisão,
como um vibrato de arco, no qual o som é reforçado e enfraquecido,
como num movimento de ondas, através de pulsações na pressão, sem,
contudo, jamais ser interrompido. Nos sopros, o mesmo efeito é
denominado frémissement e executado não com golpe de língua, mas
unicamente por intermédio da respiração com a ajuda do diafragma,
como um tipo de vibrato rítmico. Esta técnica de grande efeito era
empregada principalmente nas passagens doces das vozes de

160
acompanhamento. Ela sugere quase sempre tristeza, pena ou dor. Como
quase todos os meios de expressão, há também aqui inúmeras variações
e possibilidades que vão desde uma vibração quase inaudível, até o
staccato. Alguns compositores tentam expressar esta diversidade através
de uma notação diferente. O vibrato de arco e o frémissement foram
exigidos durante cerca de duzentos anos por quase todos os composi-
tores. Hoje, na maioria dos casos, nem são reconhecidos, e o seu tipo de
notação é interpretado como uma simples indicação de golpe de arco;
isto é esquecer que nos séculos XVII e XVIII não havia absolutamente
nenhuma indicação técnica de golpe de arco e que, em contrapartida,
cada indicação exprimia uma exigência de articulação ou de pronúncia
do compositor.

161
Por volta de 1600, ou seja, mais ou menos na metade da vida de
Monteverdi, deu-se na música ocidental uma reviravolta decisiva —
como nunca até então se vira e como nunca mais se tornará a ver. Até
aquela época a música praticamente não passava de poesia posta em
música; escrevia-se poemas, motetos ou madrigais, sacros ou profanos,
nos quais o clima geral da poesia servia de fundamento à expressão
musical. Não se tratava absolutamente de transmitir o texto como palavra
declamada ao ouvinte, mas antes a sua mensagem; por conseguinte, era
a atmosfera da poesia que inspirava o compositor a escrever sua obra.
Assim, por exemplo, um poema de amor —as palavras de um enamorado
— era composto numa forma madrigalesca a várias vozes e musicado
tão abstratamente, que a pessoa que falava se tornava um personagem
artificial. Ninguém pensava numa mensagem realista ou num diálogo;
por outro lado, o texto também era quase incompreensível, pois as
diversas vozes eram escritas em forma de imitação, embora palavras
diferentes fossem cantadas simultaneamente. Estas composições a várias
vozes, sem texto, formavam também o rico repertório da música
instrumental; elas eram simplesmente adaptadas pelos próprios músicos
aos seus instrumentos. Esta música vocal e instrumental constituía não
só a base de toda a vida musical como também formava todo o repertório
existente. Era uma situação acabada, sem outras possibilidades de desen-
volvimento à vista e que poderia prolongar-se eternamente,
Mas subitamente, como que vinda dos céus, surgiu a ideia de fazer-
se da própria palavra, do diálogo, o fundamento da música. Tal música
deveria tornar-se dramática, pois um diálogo já é em si dramático; seu
conteúdo é argumento, persuasão, problematização, negação, conflito. O
que contribuiu para o nascimento da ideia, como já era de se esperar
nesta época, foi a Antiguidade. A paixão pela Antiguidade levou à
concepção de que o drama grego não era falado-, mas cantado. Nos
círculos dos apaixonados pela Antiguidade procurou-se reviver as
tragédias gregas com toda a autenticidade. O mais conhecido destes
círculos foi a Camerata florentina dos condes Corsi e Bardi, nos quais
Caccini, Peri e Galilei (o pai do astrônomo) atuavam como músicos. As
primeiras óperas de Peri e Caccini, não há como negar-se, têm
estupendos libretti, mas do ponto de vista puramente musical são
medíocres; contudo as ideias que nelas se achavam desenvolvidas
levaram a uma música completamente “nova” — Nuove Musiche (título

162
da obra didática e polêmica de Caccini): à música barroca, à música
eloquente.
O que encontramos a respeito de Caccini na maioria dos dicionários
está infelizmente bem distante daquilo que ele próprio escreveu. Hoje
ele é na maior parte das vezes considerado o mestre do canto barroco
ornamentado; mas olhando-se seus escritos, que são muito mais
interessantes do que aquilo que foi escrito sobre ele, encontra-se uma
descrição dos novos meios de expressão; dentre estes, uma esplendorosa
magnificência cênica é o que lhe parece mais importante. Coloraturas e
ornamentos de todo tipo são aconselhados apenas onde reforçam a
expressão da palavra, ou então, para esconder os parcos recursos cênicos
de um cantor, (“Os ornamentos não foram inventados porque eram
indispensáveis para se cantar bem, mas... para agradar aos ouvidos
quando não se pode pôr ardor e brilho numa execução...”) O que há de
essencialmente novo na ideia é o seguinte: um texto, quase sempre um
diálogo, é musicado a uma voz, fundamentalmente, para seguir £om
precisão e realismo o ritmo e a melodia da palavra. Tratava-se
unicamente de dar o máximo de compreensão ao texto e interpretá-lo tão
expressivamente quanto possível. A música deveria permanecer em
segundo plano, sua função era a de compor um discreto suporte
harmônico. Tudo o que se tinha até então considerado como
propriamente musical era rejeitado como diversão. Somente em
passagens de expressão especialmente intensa é que o conteúdo verbal
era sublinhado por uma interpretação musical e harmônica
correspondente, muitas vezes extremamente surpreendente. Nesta nova
forma, é claro, quase não há repetição de palavras, ao contrário do
madrigal, onde as palavras e grupos de palavras são quase sempre
repetidos. Num diálogo real, repetem-se palavras apenas quando se
supõe que o interlocutor não as compreendeu ou então quando se quer
dar a elas, através da repetição, um peso especial — e assim era feito na
nova música, denominada monodia. Galilei, colega de Caccini, explica
exatamente como o compositor moderno deve proceder: que ele escute
como falam entre si as pessoas de diferentes condições sociais — em
qualquer situação da vida — como se desenvolvem e se articulam as
conversas ou discussões entre pessoas de alto1 e baixo nível! — e depois,
que ele ponha isto em música. (Era, aliás, exatamente assim que se
imaginava naquela época o modo como originalmente foram
representados os dramas gregos.) Significativamente, este novo estilo

163
não foi elaborado pelos compositores de formação clássica, mas por
diletantes e cantores.
Ideias deste tipo eram naquele tempo absolutamente novas e sem
dúvida alguma chocantes. Para compreender a que ponto tudo isto era
novo, precisamos tentar nos transportar àquele tempo: suponhamos que
estivéssemos com 30 anos de idade e nunca tivéssemos ouvido outra
música a não ser os maravilhosos madrigais de Marenzio, do jovem
Monteverdi e dos compositores franco-flamengos, uma complicada
música polifônica e altamente esotérica. E eis que de repente surge
alguém dizendo que a maneira como as pessoas falam já é a própria
música, a verdadeira música. Isto naturalmente só foi possível na Itália,
onde a língua soa de fato melodramática; basta escutar as pessoas numa
praça de mercado em alguma cidade italiana, para compreender o que
Caccini e Galilei queriam dizer; ou escutar a defesa de um processo num
tribunal — só faltam então alguns acordes no alaúde ou no cravo e a
monodia, o recitativo está pronto. Para os aficcionados musicais já
mencionados, que foram arrancadas de seus sonhos madrigalescos por
estas monodias, isto deve ter sido um choque, muito mais forte do que
aquele produzido pela música atonal há 80 anos.
Caccini diz: o contraponto é obra do diabo, ele destrói a inte-
ligibilidade. O acompanhamento deve ser simples, a ponto de não ser
escutado; as dissonâncias só devem ser utilizadas sobre determinadas
palavras, para enfatizar uma expressão verbal. Tudo o que Caccini diz
em seu livro Nuove Musiche a respeito da linguagem, da melodia falada
e do acompanhamento é decisivo para o surgimento da ópera, do
recitativo e até mesmo da sonata. Caccini distingue três tipos de canto
falado: recitar cantando, cantar recitando e cantare. O primeiro
corresponde ao recitativo habitual e está, portanto, mais próximo da fala
que do canto, sendo, assim, muito naturalista. O cantar recitando, o canto
recitado, ou antes declamado, enfatiza um pouco mais o papel do canto
e de certo modo corresponde ao recitativo accompagnato. O terceiro tipo
corresponde à ária.
Precisamos deixar bem claro que tudo isto era completamente novo,
tal como uma explosão a partir do nada. Na evolução de nossas artes é
raro acontecer uma coisa absolutamente nova que não tenha nascido de
algo já existente. (Acho notável que esta novidade se tenha originado da
intenção de reconstituir fielmente algo de muito antigo, a música dos
gregos.) Lá estava o que se tornou o fundamento da evolução musical

164
dos dois séculos seguintes, e que eu gostaria de chamar música
eloquente.
Mas, a ideia sensacional do canto falado só se tornou realmente
interessante para nós, a músicos, e para a música, depois que caiu nas
mãos de um gênio musical. Monteverdi foi o maior compositor de
madrigais de seu tempo, já antes deste desenvolvimento ele dominava a
arte do contraponto em seus mínimos detalhes. Com sua enorme
competência de compositor abordou o domínio primitivo da declamação
musical, nele provocando uma verdadeira revolução, inclusive musical.
Naturalmente Monteverdi não podia aceitar integralmente as teorias e os
dogmas do círculo de Caccini. Como músico autêntico que era jamais
poderia dizer: o contraponto é obra do diabo, ou a música não deve ser
interessante para não desviar a atenção do texto. Monteverdi se deixou
inspirar pelas novas ideias, mas sem aceitar-lhes os dogmas, pois estava
sempre à procura de novas formas de expressão. Desde a sua primeira
tentativa no campo da ópera, a partir de aproximadamente 1605,
Monteverdi começou a elaborar seu vocabulário dramático-musical, de
forma sistemática. Em 1607, escreveu Orfeo, no ano seguinte Ariana (da
qual só restou o famoso Lamento) e a partir” daí, praticamente cada
pequena peça a uma ou duas vozes, cada dueto ou trio que escreveu é
uma espécie de ensaio, uma pequena cena de ópera, uma espécie de mini-
ópera. Ele progride assim de maneira sistemática até chegar às suas
grandes óperas. E é o próprio Monteverdi que nos ensina até que ponto
ele avançava de maneira consciente. Era um homem de grande cultura,
amigo de Tasso e que conhecia os filósofos, tanto os clássicos como
aqueles de seu tempo. Sabia exatamente por que fazia tal coisa; com o
maior cuidado, procurava uma expressão musical para cada sentimento,
para cada emoção humana, para cada palavra e para cada fórmula de
linguagem.
Um exemplo célebre desta pesquisa sistemática nos é fornecido pela
cena do Combattimento di Tancreái e Clorinda, composta em 1624.
Monteverdi, com o maior cuidado, escolheu para ela um texto por meio
do qual pudesse exprimir a violência do sentimento de cólera. “...
Entretanto”-, diz ele, “como não consegui encontrar na música dos
compositores antigos nenhum exemplo capaz de exprimir o estado de
alma agitado... e como sei que o que mais emociona a nossa alma são os
contrastes, objetivo que a boa música deve também procurar atingir...
comecei a pesquisar com todas as minhas forças a forma de expressão
agitada... encontrei na descrição do combate entre Tancredo e Clorinda

165
os contrastes que me pareceram mais apropriados para serem traduzidos
em música: a guerra, a prece, a morte.”
Mas eu, na qualidade de músico, me pergunto então: seria isso
verdade, seria isso realmente possível? Então a música anterior a 1623
não tinha nenhum meio que fosse capaz de exprimir a agitação extrema?
Será que até aquela ocasião ela ainda não havia tido necessidade de tal
coisa? Pois, aquilo de que se tem necessidade, naturalmente, existe. Ora,
o que se passava era o seguinte: na arte lírica do madrigal, não existe
nenhuma explosão de cólera, nenhum estado de agitação extrema, nem
no sentido positivo nem no negativo, portanto ela não precisava de um
meio de expressão para traduzir tais estados. Já na arte dramática, este é
um recurso absolutamente indispensável. E assim Monteverdi, abrindo
o seu Platão, aí descobriu as notas repetidas: “explorei, então”,
prossegue ele, “os tempi rápidos, aqueles que nascem num agitado clima
de guerra, opinião com que concordam os melhores filósofos... e
encontrei o efeito que procurava dividindo a semibreve em
semicolcheias que se ataca separadamente, sob um texto que exprime a
cólera”.
Esta possibilidade que Monteverdi descobriu para exprimir o
sentimento de agitação extrema, ele a chamou stile concitato. As notas
repetidas passaram, doravante, a ser empregadas como um meio de
expressão e o concitato se tornou um procedimento artístico corrente.
Até os séculos XVII e XVIII ele continuou sendo usado no sentido
descrito por Monteverdi, tanto o termo como a coisa designada.
Encontra-se este gênero de notas repetidas em Haendel e até mesmo
ainda em Mozart. Monteverdi conta que, inicialmente, repugnava aos
músicos o fato de tocar 16 vezes a mesma nota num único compasso.
Sentiam-se verdadeiramente ultrajados por se exigir deles uma coisa
musicalmente tão absurda. Além do mais, as notas repetidas, num estilo
que se pretenda rigoroso, são proibidas. Foi preciso que ele lhes
explicasse que elas tinham uma significação extramusical, um sentido
dramático, corporal.
Com o concitato, entrou na música algo que ainda não existia: o
elemento corporal, puramente dramático, que nos leva agora a abordar
um importante aspecto do drama musical. Não se pode representar uma
situação dramática, um diálogo, sem ação. Aqui, são necessários a
mímica, os gestos e o movimento do corpo inteiro. Fala-se com todas as
fibras do corpo. Da mesma forma que a linguagem sonora dramática,
descoberta por Monteverdi, esclarece e realça o conteúdo expressivo da

166
palavra, ela comporta também o movimento corporal. Monteverdi foi,
por conseguinte, o primeiro grande dramaturgo da música a integrar o
gesto à composição, com isto prenunciando um elemento essencial das
futuras encenações. Para mim, só existe de fato o drama musical quando
todos estes elementos aqui citados, inclusive o corporal, se acham
reunidos.
Há nos textos das óperas e dos madrigais certas palavras de estímulo
que retornam constantemente. Elas estão sempre ligadas a determinadas
figuras, sempre as mesmas. De modo que, aos poucos, foi-se formando
a partir das teorias de Caccini e seu grupo, e sobretudo a partir das
inovações de Monteverdi, um repertório de figuras musicais. Monteverdi
conseguiu uma tal mestria neste campo que ele consegue, por meio de
figuras diversas, dar às mesmas palavras uma expressão diferente, de
sorte que a mesma palavra varia cada vez, qualquer coisa no seu sentido,
de acordo com o contexto. Os compositores codificaram, assim, em larga
medida, a interpretação da linguagem. Somente em Mozart e muito mais
tarde em Verdi é que provavelmente encontramos algo semelhante.
Sobre a base das obras desta primeira geração de compositores de
óperas criou-se, por fim, um imenso vocabulário de figuras de sentido
determinado e que eram familiares a todo ouvinte culto. Foi a partir daí
que se pôde chegar ao corolário, isto é, utilizar-se também este repertório
de figuras independentemente, sem qualquer texto: graças somente à
figura musical, o ouvinte faria a associação com a linguagem. Esta
transposição de um vocabulário musical, inicialmente vocal, para a
música instrumental é muito importante para que se possa compreender
e interpretar a música barroca. Ela tem suas raízes na ideia inicial do
canto falado o qual foi estilizado e transformado numa grande arte por
Monteverdi.
As relações entre música instrumental e vocal tornam-se bastante
compreensíveis a partir deste fato. Aqui igualmente têm suas raízes os
curiosos diálogos da música “pura”, as sonatas, os concerti dos séculos
XVII e XVIII, e até mesmo as sinfonias, já em plena época clássica.
Estas obras foram, com efeito, concebidas a partir da linguagem e
frequentemente se inspiram em programas retóricos, tanto concretos
como abstratos.
O repertório de figuras da monodia e do recitativo nesse meio tempo
se tornou tão independente, que por volta de 1700 já se via nele um
repertório de figuras para a música instrumental. Este repertório de
figuras, doravante instrumentais, Bach voltou a aplicá-lo ao canto.

167
(Talvez por essa razão muitos cantores achem Bach tão difícil de cantar,
pois ele escreve em um estilo demasiado “instrumental”.) Quando se
examina as figuras isoladas na música de Bach, facilmente se pode
reconhecer a sua origem como figuras de linguagem. Trata-se aqui, na
verdade, de uma evolução, de uma franquia destas figuras descobertas
na monodia, no canto falado solista. Em Bach, os componentes retóricos
são, contudo, bastante acentuados, e conscientemente fundamentados
nas teorias clássicas da retórica. Bach havia estudado Quintiliano e
construiu suas obras a partir de suas regras — e de uma maneira tão
precisa, que se pode encontrá-las nas suas composições a posteriori. Para
tal, ele utilizava — um século depois de Monteverdi — o elaborado
vocabulário do discurso sonoro oriundo da Itália e transposto à língua
alemã, vale dizer, com acentos consideravelmente mais incisivos. (Os
latinos consideravam ainda, nesta época, a sonoridade da língua alemã
como dura e “ladrada”, com acentos exageradamente marcados.) O que
particularmente surpreende em Bach é que ele tenha introduzido e
incorporado todo o arsenal do contraponto aos princípios retóricos.
Na primeira liquidação musical, que provocou a descoberta da
monodia, a música como tal poderia ter sido reduzida a nada — caso se
tivesse seguido os dogmas dos “florentinos” e rejeitado o madrigal e o
contraponto, coisa aliás perfeitamente possível por volta de 1600.
Naturalmente, a coisa não podia ficar por aí, e o próprio Monteverdi não
abriu mão de compor madrigais polifônicos, após ter travado
conhecimento com o novo estilo de monodia. Surge então em sua obra
uma diversidade estilística pouco habitual, que se impôs mesmo no seio
das composições mais extensas. Nas duas óperas da fase final, se
encontram os três tipos de escrita — recitação cantada, canto recitado e
canto propriamente dito — todos eles nitidamente separados, mas no
terceiro tipo de escrita, o canto, ele volta algumas vezes a utilizar
elementos contrapontísticos da antiga arte dos madrigais.
Na música de Bach, esta arte do contraponto, batizada de prima
pratica por oposição à monodia dramática moderna, a seconda pratica,
voltou a ganhar tanto terreno, que passaram a ser novamente aceitos a
fuga e os estilos imitativos, mesmo na música vocal profana. Encontra-
se, novamente, então, como nos franco-flamengos e nos italianos
anteriores a 1600, peças nas quais os textos são cantados não
simultaneamente, mas sobrepondo-se uns aos outros — naturalmente
que cada voz sobre as figuras adequadas. O vocabulário musical, o
drama musical são agora exprimidos de outra forma, pois na partitura

168
polifônica um elemento suplementar de expressão — o mundo complexo
do contraponto — é empregado de forma dramática e retórica.
A próxima etapa deste desenvolvimento conduz a Mozart. Ele
dispõe certamente, tal como Monteverdi, de todo o saber técnico
acumulado até então, do conhecimento pleno da arte do contraponto
elaborado durante a época barroca. No período que o separa de Bach os
rumos musicais se haviam desviado completamente da complicada
música do barroco tardio, compreensível apenas por alguns iniciados e
entendidos, para se voltarem na direção de uma música nova, “natural”,
que devia ser simples, a ponto de que qualquer um pudesse compreendê-
la, mesmo que nunca tivesse escutado música em toda a sua vida. Estes
objetivos, que estão na base da “nova música de sentimento”, posterior
a Bach, foram expressamente recusados por Mozart, que qualificava de
“Papageno” todo ouvinte que se contentava em achar uma coisa bela,
sem saber porquê. Ele conferia a esta palavra um sentido
extraordinariamente pejorativo e enfatizava que ele próprio escrevia
unicamente para pessoas entendidas. Mozart dava muito valor ao fato de
ser compreendido pelos “verdadeiros conhecedores” e presumia que seus
ouvintes tivessem conhecimentos musicais e boa cultura geral; e como
cada vez mais, justamente, na área da música, as pessoas — mesmo sem
a menor formação — se achavam no direito de dar opiniões, isso volta e
meia o levava a ter grandes acessos de raiva. Assim, na ópera Idomeneo,
por exemplo, seu pai temia que ele se dirigisse somente aos
conhecedores: “... Eu te recomendo, no teu trabalho, não pensar somente
no público musical, mas também naquele não musical... não esqueças,
portanto, o que se chama popolare, este também tem grandes orelhas (de
asno) para serem afagadas” (dezembro de 1780).
Seja como for, Mozart dispunha de todas as ferramentas musicais
do final do Barroco; no entanto, não podendo tomar a forma, já algo
esclerosada, da opera seria italiana para o drama musical que tinha em
mente compor, foi buscar alguns ingredientes da ópera francesa, onde o
elemento musical sempre esteve subordinado à linguagem (nesta não
havia praticamente ária) e, assim, retorna de modo não intencional à
origem do drama musical. A subordinação ao texto era muito mais
acentuada na ópera francesa do século XVIII do que na italiana, cuja
atração principal residia em imensas árias, de conteúdo estereotipado (a
ária de vingança, a ária de ciúme, e, já quase chegando ao final do
espetáculo, a ária do amor ou ária do “tudo está bem de novo”) e de
presença infalível em todas as óperas, embora pudessem substituir-se

169
mutuamente, coisa, aliás, que se estava sempre fazendo. Na ópera
francesa, as formas antigas ainda sobreviviam: recitativo, arioso e arieta,
o que a tornava uma base muito mais apropriada para qualquer reforma
dramática do que a opera seria italiana. A teoria desta reforma pode ser
encontrada mais claramente na obra de Gluck, porém na prática é Mozart
quem concretiza as mudanças no drama musical.
Encontramos em Mozart os mesmos princípios que em Monteverdi.
Para ele, o importante é sempre o drama, o diálogo, a palavra isolada, o
conflito e sua resolução e não uma poesia composta como um todo.
Paradoxalmente, isto não se aplica no seu caso somente à ópera, mas
também à música instrumental, que é sempre dramática. Na geração
seguinte, este elemento dramático, eloquente, aos poucos se perde da
música. As razões para tal — como já o dissemos — têm a ver com a
Revolução Francesa e suas consequências culturais que conduziram à
situação na qual a música foi posta a serviço de ideias sociopolíticas. O
ouvinte deixava de ser, doravante, um interlocutor, para tornar-se um
desfrutador inundado e inebriado de sons.
Na minha opinião, é exatamente aí que se encontram as raízes da
nossa total incapacidade de compreender a música pré-revolucionária.
Penso que pouco compreendemos tanto Mozart como Monteverdi,
quando os reduzimos unicamente ao “belo” — que é o que geralmente
acontece. Nós buscamos Mozart pelo prazer, para nos deixar enfeitiçar
pelo belo. Quando se quer descrever “belas" execuções mozartianas, é
comum ouvir-se a expressão “felicidade mozartiana”; é quase uma
fórmula estereotipada. Estudando-se, contudo, mais a fundo, as obras
nas quais ela é empregada, pergunta-se: por que “felicidade
mozartiana”? Os contemporâneos descreveram a música de Mozart
como sendo extremamente contrastada, penetrante, perturbadora e
desconcertante; é exatamente neste ponto, por sinal, que a crítica da
época a questiona. Como pode então acontecer que se tenha reduzido
esta música apenas à “felicidade”, ao prazer estético? Pouco depois de
haver lido um artigo a respeito de uma dessas execuções de “felicidade
mozartiana”, trabalhei com meus alunos uma sonata para violino de
Mozart, escrita sobre uma melodia francesa. A peça foi inicialmente
muito bem tocada, eu diria inclusive que a violinista conseguira
transmitir a tal “felicidade mozartiana”. Trabalhando mais a sonata,
observamos então que esta música penetrava “sob a pele”, que ela não
só encerrava a “felicidade mozartiana”, como também continha toda a

170
gama dos sentimentos humanos: da felicidade à tristeza, até o
sofrimento.
Contudo, eu me pergunto muitas vezes se posso realmente re-
comendar a um aluno um estudo nesta direção. Pois, se as pessoas forem
aos concertos para gozar a “felicidade mozartiana” e ao invés disto
receberem — talvez — uma verdade mozartiana, pode ser que isto vá
incomodá-los, que o ouvinte não esteja querendo saber desta verdade.
Na maior parte das vezes, desejamos ouvir e vivenciar algo determinado,
a tal ponto que já perdemos a atitude de curiosidade do ouvinte; talvez
até nem desejemos mais escutar aquilo que nos é dito através da música.
Será que nossa cultura musical deve reduzir-se àquilo que nos
proporciona um pouco de beleza e paz após um dia cheio de trabalho e
de preocupações? Será que esta música não tem mais nada para nos
oferecer?
Este é, portanto, o quadro em que se situa a música eloquente e o
discurso sonoro dramático: nos seus primórdios, com Monteverdi, eles
tomam o lugar do sereno mundo da arte dos madrigais. No seu término,
após Mozart, são substituídos amplamente pela pintura plana do
romantismo e do pós-romantismo. A música eloquente, em forma de
diálogo, nunca é meramente beleza sonora, ela é transbordante de
paixão, cheia de conflitos espirituais, inclusive cruéis, mas que quase
sempre se resolvem. Certa vez, para defender-se da acusação de que sua
música não seguia as regras da estética, que ela não era suficientemente
“bela”, disse Monteverdi: “que possam todos aqueles que compreendem
música repensar as regras de harmonia e acreditar em mim quando digo
que o compositor moderno só possui a verdade como princípio diretor.”

171
III
MÚSICA BARROCA EUROPEIA — MOZART
Já se escreveu muito a respeito da questão da música “pura” em
oposição à música programática. Na maioria dos casos, os concerti
barrocos, mesmo que possuam títulos programáticos, são classificados
como música “pura”, pois teriam sido compostos a partir de princípios
exclusivamente musicais e poderiam ser compreendidos sem o
conhecimento do programa. No meu entender, há aqui um mal-entendido
no tocante às terminologias, cuja origem se acha na concepção pós-
berlioziana da música programática. Para a música barroca, são outros
os critérios que prevalecem; não há como separar-se a música “pura” da
música programática, pois praticamente não há música barroca sem
programa, se é que se pode qualificar de programa um desenvolvimento
dramático de desfecho incerto — frequentemente sem conteúdo concreto
e representado com os meios da retórica. A relação entre palavra e
música tem como objetivo, em muitas épocas e campos estilísticos,
reforçar o conteúdo verbal através de figuras melódicas correspondentes;
mesmo o gesto, o movimento do corpo, é expresso musicalmente. Para
a música, o desenvolvimento da ópera — para não dizer a invenção —
constituiu a força mais importante da época barroca. A monodia
dramática, introduzida em 1600, era na verdade concebida como uma
declamação cantada de textos, onde o som tinha como função única en-
fatizar a força expressiva do discurso; a expressão puramente musical
era rejeitada, considerada uma dispersão do texto, este o único elemento
essencial. Como consequência, em pouco tempo se formou um catálogo
de figuras musicais, com o canto seguindo o ritmo natural da palavra
que, por sua vez, era determinado pelos sentimentos a serem expressos;
assim, para um certo tipo de sentimentos e grupos de palavras havia
sempre as mesmas figuras melódicas e rítmicas correspondentes. Estas
figuras foram em seguida conscientemente usadas como elementos, que
em relação com o texto, e também muitas vezes sem o texto, deviam
provocar associações correspondentes ao conteúdo das palavras ou
frases. Na época de Vivaldi, este procedimento já perdurava há uns cem
anos e se degenerava, em certos campos. As figuras musicais,
originalmente surgidas do canto falado, foram de tal modo incorporadas
à música vocal que a compreensão do texto se tornou quase impossível
e mesmo desnecessária, já que o ouvinte se condicionara a entender a
linguagem das figuras musicais. Especialmente na Itália, o berço do
barroco, os músicos dominavam a linguagem sonora com toda a

173
desenvoltura de homens de teatro natos, embora as figuras musicais
originadas da música vocal já desde a primeira metade do século XVII
estivessem incorporadas à música puramente instrumental, o que fazia
dela um discurso sonoro, dramático e abstrato. Assim, a maior parte da
música instrumental barroca é teatral, não só pela maneira retórica de
retratar acontecimentos naturais, conflitos de paixões e estados de alma,
como também pelo modo fundamentalmente dramático de, por meio da
linguagem sonora barroca, representar um acontecimento concreto ou
abstrato, cuja solução só aparecerá no fim do conflito músico-dramático.
A música instrumental de Vivaldi, em seu sentido dramático, é a
mais variada possível. Como italiano e compositor de óperas, ele
dispunha de um rico vocabulário de figuras musicais, inclusive para a
música puramente instrumental. Termos como música “pura” ou
programática se revelam insuficientes no seu caso. A música de Vivaldi
fala, pinta, expressa sentimentos, descreve acontecimentos e conflitos e
tudo isto não ordenadamente, com elementos se sucedendo, mas
simultaneamente interpenetrando-se, tal como o temperamento italiano
da época barroca exigia de toda e qualquer teatralização da vida. Vivaldi
tinha certamente ouvintes aos quais esta. linguagem era extremamente
familiar, tanto pelo seu temperamento como pelo seu vocabulário e
possibilidades de comparação. O efeito imediato devia ser, por
conseguinte, muito forte. Já para nós, a compreensão é
incomparavelmente mais difícil; assim, a única coisa que nos resta é, ou
limitarmo-nos aos seus componentes que permaneceram
compreensíveis, ou então procurar escutar esta música com novos
ouvidos, seguindo-lhe passo a passo o diálogo, até que possamos
finalmente compreendê-la outra vez.
Vivaldi escreveu a maioria de seus numerosos concertos para o seu
próprio conjunto, a célebre orquestra de moças do Ospedale delia Pietà
em Veneza. Desde 1704 tinha o cargo de professor de violino e a partir,
aproximadamente, de 1716 tornou-se maestro di concerti desta
instituição — uma espécie de asilo para crianças abandonadas ou órfãs,
igual a tantos outros que existiam por esta época em Veneza. As alunas
bem dotadas recebiam ali também uma educação musical; criou-se uma
orquestra com coros, e os concertos na igreja, realizados todos os
domingos e feriados, se constituíam numa das atrações da cidade. Os
viajantes, ao se referirem às execuções da orquestra de moças, são
pródigos em elogios. Em 1668, relata Peter Tostalgo: “Há conventos em
Veneza, onde vivem mulheres que, além de tocarem órgão e outros

174
instrumentos, cantam tão bem como em nenhum outro lugar do mundo
há de ouvir-se uma música mais doce e bela do que esta. é por isso que
chega a Veneza gente vinda de toda parte, só para escutar esta música
angelical ...” Esta singular orquestra de asilo de que dispunha Vivaldi
devia satisfazer um nível altíssimo de exigência profissional; as di -
ficuldades técnicas a serem vencidas por aquelas que respondiam pela
parte de solo de cada um dos instrumentos mostram que as obras foram
escritas para virtuoses de primeira classe. Quando Vivaldi revia algumas
obras deste repertório para as suas edições impressas, ele quase sempre
as modificava e, comparando-se as duas versões, pode perceber-se que
as edições impressas, sem dúvida para ficarem ao alcance do público,
comportam simplificações técnicas muito significativas. A evolução de
Vivaldi como compositor de música instrumental deve-se em grande
parte às facilidades que lhe proporcionava o Ospedale delia Pietà; o traço
vanguardista e muitas vezes experimental de suas obras se explica
justamente por este fato, pois, lá, ele podia experimentar ideias, por mais
avançadas que fossem.
Os concertos publicados no seu opus 8, Il Cimento dell’Armonia e
dell’Inventione (O Conflito entre a harmonia e a invenção)16, sem
dúvida não foram compostos expressamente para esta edição, onde
Vivaldi se contentou apenas em reunir obras que pudessem constar sob
este título. Mesmo o grupo das Quatro Estações, o núcleo da coleção,
não consistia de composições novas, embora fosse certamente a
principal razão do título, pois que todos os tipos de ousadias imagináveis
aí se encontram. Vivaldi deve ter composto estes concertos muito tempo
antes de sua publicação, como se deduz da dedicatória ao conde Morzin:
“... Quando penso nos longos anos durante os quais tive a insigne honra
de servir a V. A., na qualidade de compositor de corte na Itália, me sinto
envergonhado de, até agora, não ter dado nenhuma prova do meu
profundo respeito. Assim, resolvi mandar imprimir este volume para
depositá-lo muito humildemente aos pés de V. A. Rogo encarecidamente
que V. A. não se surpreenda ao ver dentre estes pobres concertos as
Quatro Estações que, tempos atrás, receberam de V. A. uma generosa
acolhida. Creia-me, achei-os dignos de serem impressos — embora em
todos os respeitos sejam as mesmas peças —, pois que agora, além dos

16
Neste contexto, a palavra cimento, do latim caementu, pode significar
também base, alicerce, fundamento. (N. da R.)

175
sonetos, acrescentei explicações precisas sobre todas as coisas que aqui
se acham representadas. Estou persuadido de que V. A. irá julgá-los
como se fossem novos.” A primeira edição, impressa por Le Cène em
Amsterdam, saiu em 1725. Já há muito tempo que Vivaldi, fora inúmeras
funções e cargos honoríficos que acumulava, servia ao conde Wenceslaw
Morzin como o seu maestro di música in Italia e, nesta qualidade, estava
certamente incumbido não só de enviar composições ao conde da
Boêmia, como tinha também de cuidar da orquestra do conde durante as
estadias deste na Itália. Vivaldi lembra ao conde o prazer sentido,
“tempos atrás”, com as Quatro Estações que, portanto, ao tempo da
impressão, já deveriam ter alguns anos. Os dois concertos para violino
ou oboé (“Questo concerto si può fare ancore com 1’Hautboi”) nºs 9 e
12 foram sem dúvida alguma compostos para. oboé, enquanto que os
demais são intocáveis neste instrumento, pois ultrapassam a extensão
sonora tanto no grave como no agudo, além de requererem acordes. Este
fato não pode ser apenas coincidência. Vivaldi, com toda a certeza,
incluiu, nesta coleção de concertos para violino, os dois escritos para
oboé, provavelmente para oferecer aos compradores peças um pouco
mais fáceis de execução (ao violino).
Como fonte para nossas execuções destes concertos, utilizamos a
edição de Le Clerc e Mme. Boivin, impressa em Paris, e que saiu logo
após a primeira edição; ela está redigida com cuidado e praticamente
sem erros, parecendo-nos mais confiável que as outras. Após várias
experiências, escolhemos, para o baixo-contínuo, o órgão que, aliás, é o
instrumento requisitado na parte de baixo cuidadosamente cifrado
(“Organo e Violoncello”). A doçura de sua sonoridade permite preservar
as numerosas pinturas sonoras muito sutis que os instrumentos de cordas
realizam — o que não acontece com os ataques incisivos do cravo. Além
do mais, as vozes que pre música barroca europeia enchem a harmonia
se tornam claramente audíveis. Esta parte de baixo mostra ainda que
Vivaldi desejava também um cravo, pelo menos para o movimento lento
do “Outono” que contém a indicação: “Il cembelo arpeggio.” Assim,
utilizamos o cravo em todos os movimentos deste concerto. Esta parte
de baixo não indica como se deve repartir os instrumentos do contínuo,
mas baseados na maneira pela qual Vivaldi trata o baixo em outros
lugares, resolvemos que o contrabaixo só entraria nas passagens em tutti.
Existe na parte de contínuo uma página separada que contém apenas a
parte do violoncelo do movimento lento do “Inverno”; a parte de baixo
habitual é, portanto, tocada aqui pelo contrabaixo e pelo órgão. Quanto

176
ao mais, encontram-se nesta voz, além das cifragens, numerosas
indicações como “tasto solo” ou “tasto solo sempre”. Os movimentos
lentos dos dois Concertos para oboé (nºs 9 e 12) assim como do Concerto
para violino nº 10 foram impressos em dois sistemas, de tal forma que
os músicos que executavam o contínuo podiam acompanhar
simultaneamente a voz solista, mesmo quando ornamentada. (O que sem
dúvida é uma indicação da técnica de acompanhamento.) Nas partes da
viola (“alto viola"), há inúmeras observações que esclarecem os sonetos
ilustrativos: Concerto I, segundo movimento: “Largo, si deve suonare
sempre molto forte, e strappato” (largo, deve-se tocar sempre muito forte
e destacado) e "Il cane chi grida” (O cão que uiva); terceiro movimento:
"Allegro Danza Pastorale”: Concerto II, primeiro movimento:
“Languidezza per il caldo (Languidezdecorrente do calor). Concerto III,
primeiro movimento: “Bailo e canto de Villanelli” (Dança e canto dos
camponeses), no compasso 41: "L’Ubriachi” (Os embriagados); segundo
movimento: “Dormienti Ubriacki” (Os embriagados adormecidos);
terceiro movimento: no compasso 83: “Scioppi e cani” (Disparos e cães).
Para todas as vozes no terceiro movimento do concerto “Verão” há a
indicação “Tempo impetuoso destate” (Tempestade de verão).
Para compreender as “indicações de tempo” italianas dos séculos
XVII e XVIII é necessário ter-se sempre em mente que a maioria das
palavras (como por exemplo, allegro, largo, presto) eram (e são), antes
de tudo, palavras da língua italiana e não foram usadas pelos
compositores italianos como termos musicais, mas de acordo com o seu
sentido corrente. Allegro significa, portanto, alegre, jubiloso e não
propriamente vivo; somente quando o caráter particular desta alegria
exige um tempo determinado é que alegro se torna indiretamente uma
indicação de tempo. De modo gerai, pode-se dizer que estas indicações
devem ser entendidas a partir da sua significação na língua, antes de ser
uma indicação de caráter; quanto ao tempo absoluto, é uma decorrência
do contexto. Inúmeras fermatas ( ) e indicações inseridas no interior
dos movimentos são igualmente indícios de uma interpretação rapsódica,
com um rubato e uma agógica muito acentuados. Vivaldi dá numerosas
indicações referentes à execução e à realização técnica. As nuanças estão
muito sutilmente indicadas e deve-se supor também que numerosas
etapas intermediárias não se acham notadas na partitura. Nesta obra,
Vivaldi utiliza: molto forte, forte, piano, piú piano, planíssimo. O que é
curioso, é que as nuanças nem sempre são sincrônicas em todas as vozes.
Assim, no movimento lento da “Primavera”, enquanto o solo de violino

177
está tocando num nível médio normal (sem indicação), os dois violinos
do ripieno se mantêm pianíssimo, ao mesmo tempo que a viola toca
molto forte. No movimento lento do “Inverno”, a viola toca pianíssimo,
o solo do violino numa sonoridade média, os violinos do ripieno,
pizzicato (sem indicação), o contrabaixo, sempre piano e o violoncelo,
sempre molto forte (!). Este gênero de nuanças mostra que Vivaldi utiliza
sempre as sonoridades à maneira impressionista. A articulação — os
golpes de arco e os acentos interpretativos — já era de tal forma
conhecida pelos músico daquela época, que o compositor não se sentia
nem um pouco obrigado a acrescentar outras indicações quando tudo era
para ser tocado normalmente, ou seja, de acordo com as regras
conhecidas.
Vivaldi introduziu um grande número de sinais .de articulação e
alguns de ornamentação, especialmente nas passagens que poderiam ser
mal compreendidas e tocadas de maneira diversa da que desejava. Há
ligaduras de articulação que compreendem de duas a oito notas; vibrato
de arco de diferentes intensidades ; um sinal + para trilos
mordentes etc. e um outro sinal: , que aparece também combinado na
forma: provavelmente te representando algo intermediário
entre o vibrato e o trilo, como um trilo de 1/4 de tom. Naturalmente,
todas as passagens desprovidas de indicações devem ser articuladas de
acordo com as regras e, para isto, todos os golpes de arco, do Sautillé ao
jeté, são empregados. Em passagens análogas de outros concertos,
Vivaldi exigiu golpes de arco. com todas as letras ou por meio de sinais;
com isto, ficamos sabendo, hoje, onde estes foram, outrora, usados.

178
A música, nos séculos XVII e XVIII, não era absolutamente esta
arte internacional, universalmente compreensível, tal como ela gostaria
e poderia ser hoje, graças ao trem, ao avião, ao rádio e à televisão.
Formavam-se, nos diferentes centros, estilos muito particulares, que no
transcurso das gerações se iam distanciando cada vez mais da ideia
inicial.
Evidentemente, havia formas de comunicação suficientes para que
se pudesse tomar conhecimento dessas diferenças, como, por exemplo,
através de virtuosos itinerantes que tornavam conhecida a execução
peculiar de seu país, ou de melômanos que iam por toda parte e tinham
oportunidade de apreciar in loco os muitos estilos e linguagens musicais
que depois iam comparando entre si. Desta forma nasceu um tipo de
rivalidade entre as nações musicais, que contribuiu para salientar ainda
mais as características particulares e as propriedades dos estilos
nacionais. Durante séculos, este confronto de particularidades
estilísticas que passavam de um círculo a outro, fosse por uma influência
puramente musical, fosse em consequência de “trânsfugas”, não deixava
de ter um especial encanto: os compositores que viviam 110 estrangeiro,
num país estilisticamente inimigo, se esforçavam por conciliar as
propriedades musicais de suas duas pátrias, a antiga e a nova.
As razões do surgimento de estilos nacionais, tão nitidamente
separados e até mesmo inimigos, não se devem unicamente à falta de
comunicação. Se assim fosse, seria mera “coincidência” o fato das
fronteiras estilísticas coincidirem com as fronteiras nacionais. Deve ter
havido certamente razões relacionadas ao caráter, à mentalidade e ao
temperamento de todo um povo. O caráter teatral e individualista do
barroco resultou num tipo de exibicionismo, na verdade, numa
manifestação da personalidade, do indivíduo com todas as suas
propriedades, e naturalmente, em sua forma ampliada, na expressão das
particularidades de um povo. Mesmo naquele tempo, este fenômeno era
sentido muito concretamente e expresso não sem um descabido desdém
por tudo aquilo que representava o “outro”. É claro que isto teria de dar-
se de forma muito mais acentuada no caso das nações que possuíam o
caráter popular mais nitidamente definido e delimitado, e entre aquelas
onde existia maior rivalidade geográfica e espiritual, ao mesmo tempo
que política e cultural: a Itália e a França.

179
A diferença estilística que, cada vez mais, foi acentuando-se no
século XVII, está baseada, em primeiro lugar, na mentalidade oposta que
separa os italianos dos franceses: os primeiros extrovertidos,
demonstrando suas alegrias e tristezas, espontâneos, sentimentais e
amando o informal; os segundos, controlados, frios, dotados de uma
lúcida perspicácia e amantes da forma. Os italianos foram praticamente
os criadores do estilo barroco que, pela sua teatralidade e ilimitada
riqueza formal e pelo que tem de bizarro e fantástico, correspondia
plenamente ao caráter deles. As raízes da música barroca, portanto, se
encontram naturalmente na Itália. A música francesa desta época, ao
contrário, surge quase como uma reação a esta erupção musical.
A música barroca era, por conseguinte, constituída tanto de música
italiana como de música francesa. A oposição entre os idiomas musicais
das duas nações era, naquele tempo, considerada como irredutível; e hoje
ainda, após três séculos, esta oposição se mostra bastante visível para
que se possa compreender as controvérsias daquela época. EmJ.704,
escreveu Vieuville: “Os senhores sabem tão bem quanto eu que existem
em nossa terra dois partidos na música, um dos quais é o que admira
excessivamente o gosto italiano... Os seus julgamentos são sumários e
condenam a música francesa, dizendo que esta é a música mais
desprovida de gosto no mundo. O outro partido, que é fiel ao gosto de
sua pátria e possui um melhor conhecimento da ciência musical, vê com
enorme tristeza que até mesmo na capital do reino existe um desprezo
pelo bom gosto francês.”
O fosso que separava os dois partidos era tão profundo que os
músicos dos dois países só tinham desprezo uns pelos outros, a ponto de
um violinista formado pela escola italiana se recusar a tocar música
francesa e inversamente. Mas, mesmo que o desejasse, não conseguiria
fazê-lo, pois as diferenças estilísticas se referiam tanto a sutilezas
mínimas de interpretação quanto à própria concepção formal da obra.
Como naquela época a música era compreendida como um discurso
sonoro, não se poderia “discorrer” musicalmente numa língua que não
se dominava e tampouco se amava. Os músicos franceses se insurgiam
contra a ornamentação livre dos italianos: “Isso não era do gosto do Sr.
Lully, defensor do belo e do verdadeiro... ele teria expulsado de sua
orquestra um violinista que quisesse estragar seu concerto acrescentando
sem nenhuma razão tudo quanto é figura não harmoniosa. Por que não
se obriga esses, italianos a executar as partes como estão escritas?”

180
Uma fusão dos dois estilos era tida como absolutamente impossível.
Os compositores de outros países, da Alemanha ou da Inglaterra, por
exemplo, deviam escolher a qual dos dois estilos e das duas maneiras de
escrever dariam preferência, e apesar das tentativas realizadas no fim do
século XVII, sobretudo por compositores austríacos (Muffat e Fux), para
unir e mesmo, por assim dizer, conciliar os dois estilos, foi somente no
século XVIII que se chegou à síntese dita dos “gostos reunidos”. 17
A música barroca italiana, centrada principalmente no concerto e na
ópera, utiliza todas as possibilidades oferecidas por uma sensualidade e
uma imaginação transbordantes, até os limites do fantástico mais rico.
As formas musicais eram imponentes e grandiosas; a sonoridade das
cordas predominava; o modelo dos instrumentos era a voz cantada e
sensual dos italianos. A abundante ornamentação era improvisada ao
vivo por intérpretes imaginativos, o que casava perfeitamente com o
caráter espontâneo e extrovertido do povo italiano. É curioso notar que,
dentre todos os instrumentos, o violino era o instrumento italiano por
excelência e como tal, instrumento barroco. Nenhum outro instrumento
se adaptou tão bem à extrovertida música dos italianos. Ele tanto convém
à brilhante virtuosidade solística quanto à interpretação ampla de um
adágio — os dois pilares da música italiana. A música barroca italiana
é, assim, antes de tudo, a música de cordas. Os sopros são raramente
empregados e quando o são é para obter efeitos particulares, para servir
de interlocutores às cordas. Todas as escolas italianas de violino tiveram
sua origem no círculo de Monteverdi que, por sua vez, era também
violinista. O seu estilo fantástico foi, portanto, desde o início um
elemento essencial da música italiana de cordas. Passando por Cario
Farina, Biago Marini e outros, chega-se às importantes escolas de violino
de Bolonha, Roma e Nápoles.
As características essenciais do estilo francês eram: a forma clara e
concisa, peças instrumentais de expressão condensada, movimentos
curtos e muito simples e também a ópera, mas esta, de um gênero
totalmente diverso da italiana. Era sobretudo uma música voltada para a
dança, cujas formas racionais e lineares lembravam as da arquitetura dos
jardins e palácios franceses. Era como se a forma clara e rígida das
danças tivesse sido criada especialmente para que se pusesse em música

17
A expressão é oriunda do título de uma obra de François Couperin, Les
goúts réunis (1724), que tentava conciliar os idiomas musicais francês e
italiano. (N. da R.)

181
o estilo desta nação. Por ironia, foi justamente um italiano, Jean-Baptiste
Lully, que deu à música francesa sua forma definitiva, considerada
internacionalmente como uma alternativa à música italiana — é bem
verdade que Lully se achava inteiramente aclimatado e o que fez foi
apenas injetar um pouco do ardor italiano na música francesa. Foi ele
quem, com indicações muito rigorosas, fixou a técnica de execução dos
instrumentos de corda. Até no detalhe dos golpes de arco a técnica desses
instrumentos estava estipulada com tanta precisão que se dizia que os
violinistas franceses, ainda que fossem em número de mil, tocariam
todos uma música à primeira vista como se ali estivesse um só homem!
Há também uma diferença essencial entre os dois estilos no que diz
respeito aos ornamentos. Na música italiana, devia-se, em princípio,
variar os adágios livremente, de acordo com a imaginação, sobretudo nos
trechos repetidos. As regras eram muito poucas, tudo se fazia conforme
à riqueza das ideias. Já na música francesa, tudo isto era visto como
desordem, e, portanto, proibido. Ela não conhecia a livre improvisação,
mas apenas um código de ornamentos muito complexo que se devia
empregar nos lugares certos e da forma mais elaborada possível. Havia,
por conseguinte, um catálogo contendo inúmeros pequenos ornamentos
que eram para ser executados escrupulosamente, e um regulamento
severo que regia o emprego destes. Esta ordem no interior de uma escrita
sobrecarregada, mas de absoluta transparência, dá sentido e encanto à
música francesa. Constitui-se num prazer altamente requintado que se
destina a ouvintes refinados, sensíveis a produções artísticas elaboradas
e espirituais. É como se fosse uma conversa entre pessoas de mesmos
sentimentos e mesma formação. Em contrapartida, a música italiana era
considerada como desordenada e vulgar: “Como uma amante gentil mas
espalhafatosa, que gosta de fazer-se notar, sem ter porquê.., a música
francesa, ao contrário, é como uma bela mulher cuja beleza natural e sem
artifício atrai os corações e os olhares; no instante em. que ela se mostra
já agrada... e não tem porque achar que as maneiras afetadas de uma rival
possam fazer-lhe mal.”
Não se adotou a ópera italiana na França, onde se formou um gênero
próprio de drama musical dançado: o ballet de cour. É a partir deste que
Lully, na segunda metade do século XVII, desenvolveu a típica ópera
francesa. Esta se distingue da italiana principalmente pela ênfase dada
ao elemento formal. As árias são danças curtas e cantadas, cuja forma é
rígida; estão separadas por recitativos de ritmos notados com grande
exatidão. O acompanhamento da ária e do recitativo é quase sempre o

182
mesmo, feito exclusivamente por cravo e violoncelo. Seria, pois,
perfeitamente compreensível que um italiano, escutando tal ópera,
pudesse achar que ela só tivesse recitativos e ficasse à espera de uma
sonhada ária que, no entanto. jamais iria aparecer. A este propósito,
existe uma anedota com relação à prima donna italiana, Faustina. Conta-
se que ela, após assistir calada durante meia hora uma ópera francesa,
exclamou: “Mas afinal, quando é que vai chegar a ária?!” A diversidade
sonora maior estava a cargo dos numerosos coros, ricamente
instrumentados, e dos inúmeros movimentos instrumentais de dança.
Durante os atos, a música prosseguia sem interrupção, com cada uma das
pequenas peças encadeando-se diretamente à precedente. Na ópera
barroca italiana, ao contrário, cada grupo de recitativos (executados
numa declaração falada inteiramente livre) se conclui por uma grande
ária, o que dava oportunidade ao público de estar constantemente
manifestando-se ruidosa e calorosamente, fosse para aplaudir ou
protestar.
A polaridade ítalo-francesa atravessou toda a história da música
barroca. Tanto assim que ainda em 1773 escreveu Burney em sua
Viagem Musical: “Se a música francesa é boa e tem uma expressão
agradável e natural, então a italiana só pode ser ruim e, ao contrário, se
a música italiana tem tudo o que um ouvido bem educado e ainda não
estragado pode desejar, então é impossível acreditar que esse mesmo
ouvido possa sentir igual prazer com a música francesa. A verdade, no
entanto, é que os franceses não conseguem suportar a música italiana e
só por pura afetação é que fingem aceitá-la e admirá-la.” O julgamento
de Burney parece algo duro, pois além da “pura afetação”, é verdade que
existia também um autêntico entusiasmo pelos italianos. Era uma
espécie de nostalgia dos arroubos meridionais que fazia os franceses
invejarem e ao mesmo tempo admirarem os italianos. Os frutos desta
admiração foram as duas célebres tentativas para transplantar o barroco
italiano que, no entanto, falharam devido a uma incompreensão funda-
mental: a nomeação de Bernini por Luís XIV para a construção do
Louvre e a nomeação, feita igualmente pelo Rei Sol, do sucessor de
Monteverdi, Cavalli, para compor uma ópera destinada ao casamento do
monarca em 1660. Nenhum dos dois artistas encontrou reconhecimento
ou compreensão por parte dos franceses; ambos tiveram de voltar para a
Itália, cheios de amargura. A façanha de Lully, que conseguiu criar para
os franceses uma ópera, fica, com isso, ainda mais valorizada.

183
Para nós, que abordamos esta música dois séculos e meio depois, a
polaridade extrema que opõe os dois estilos de maneira tão irredutível
não é mais inteiramente compreensível. Os séculos, sem dúvida alguma,
apagaram as diferenças. Em parte, isso certamente se deve ao fato de,
hoje, termos uma prática e uma audição musicais sensivelmente mais
uniformizadas. Imagino que essa luta tão acirrada, como relatam as
fontes, e essas reações combativas do público, devessem ter sido bem
mais consistentes do que são capazes de transmitir as pálidas execuções
de nossos dias. Talvez, devêssemos lançarmo-nos outra vez à luta e
tomar um partido musical, para interpretar a música de maneira mais
confiável.

184
Um dos mais curiosos fenômenos da história da música é certamente
o da concentração das forças criadoras e estilísticas em países ou regiões
que são nitidamente delimitadas. Sem nenhum motivo aparente surgem,
aqui, acolá, centros de irradiação mundial, que após algumas gerações
do mais alto potencial criador desaparecem novamente, como se
consumidos. Quase todo país europeu já teve a sua “grande época”
musical, às vezes até mais de uma. Estes centros musicais nem sempre
coincidiam com os grandes centros políticos de então (mesmo que
muitas vezes haja aqui estreitas interações). Assim, por exemplo, a idade
de ouro da música flamenga, por volta de 1500, corresponde ao grande
desabrochar político, em força e prestígio, da corte real francesa de Luís
XII e da corte imperial romano-germânica de Maximiliano I.
Pode-se encontrar inúmeras razões para estes deslocamentos dos
centros musicais. Como músico, jamais considero a música como uma
arte isolada intemporal, mas a vejo sempre em relação ao seu ambiente
histórico e procuro naturalmente saber em que medida este deslocamento
dos centros influi na música propriamente dita. Se ele é causa ou
consequência da evolução da história da música, se ele acontece
paralelamente a outros deslocamentos sofridos pelas demais artes.
Hoje, sabemos que a antiga tese da sucessão das diferentes artes
caducou, sabemos que cada estilo encontra sua expressão simulta-
neamente em todas as artes. O que, aliás, não poderia ser de outra forma,
já que toda arte é a expressão imediata da situação espiritual de seu
tempo.
A mentalidade das diferentes nações europeias é bastante diversa.
Ingleses, franceses, alemães, espanhóis ou italianos pensam
diversamente, se expressam diferentemente e reagem diferentemente.
No decorrer da evolução histórica, novos princípios espirituais estão
constantemente sendo ativados. Estes suscitam o mais forte interesse no
país onde houver a mentalidade que melhor lhes corresponda. Quando
todos os componentes de uma tendência artística, de um estilo de época
concordam com as características naturais de um povo, este povo deve
então assumir a dianteira da tendência artística em questão.
A passagem do fim da renascença ao barroco é marcada por uma
dessas trocas de primazia. No espaço de uma ou duas gerações, os
franco-flamengos, que eram até então os mestres no domínio da música,
foram destronados pelos italianos. A teatralidade da nova época, a

185
importância que se passa a dar à personalidade individual o solista —, o
pathos, a expressão pessoal levada à cena de maneira quase
exibicionista, tudo isto correspondia de modo ideal à mentalidade
italiana. O barroco encontrou, no tocante à arquitetura e à música, a sua
expressão mais pura na Itália. Este país tornou-se, então, o modelo de
todas as outras nações; os artistas italianos — tal como os franco-
flamengos anteriormente — eram convidados por toda parte para
atuarem como mestres de capela, solistas e compositores.
Assim, nas cortes alemãs do século XVII, havia uma predominância
de músicos italianos, ou pelo menos de músicos formados, segundo os
métodos italianas, que faziam reservas ao estilo francês, quando não o
hostilizavam francamente; não se poderia imaginar maior oposição. A
música instrumental italiana era dominada pela sonata e pelo concerto,
constituídos em sua essência de amplos allegros virtuosísticos e de
grandes adagios cantabile nos quais os solistas deviam demonstrar sua
imaginação criativa através de uma rica ornamentação. Para estes
músicos, habituados às formas livres, as breves danças francesas, com
uma execução precisamente definida, tal como se exigia, deviam parecer
bem estranhas. Apesar de que grande número de príncipes desejassem,
por volta de 1700, converter sua capela ao estilo francês, encontraram
grande resistência: os músicos italianos se recusavam a tocar a música
francesa e esta recusa se devia muito mais à má vontade da parte deles
do que a uma real impossibilidade de executar os dois estilos.
Nas outras nações, fora a França e a Itália, era o gosto pessoal do
príncipe que decidia a qual tipo de música se daria preferência. Na corte
vienense dominavam naturalmente os italianos. Por um lado, o
imperador levava tão a sério a hostilidade política para com a França que
nem mesmo ouvir falar a língua francesa ele queria; por outro, a música
sensual dos italianos correspondia mais à mentalidade austríaca do que
a música racional dos franceses. Com isso, durante várias gerações,
praticamente só músicos, compositores e cantores italianos conseguiram
impor-se em Viena. A ascensão dos dois “nativos” da Áustria, Schmelzer
e Fux, aos mais altos cargos da música imperial, pode ser considerada
quase um milagre. Naturalmente, os músicos de corte italianos queriam
manter a “sua” capela o mais longe possível das influências estrangeiras.
Os compositores alemães, boêmios e franceses poderiam eventualmente
conseguir um lugar nas pequenas cortes ou junto aos jesuítas. Os talentos
fora do comum, como o cravista Wolfgang Ebner, o violinista Heinrich
Schmelzer e o compositor Johann Joseph Fux, só teriam oportunidade de

186
conseguir uma nomeação para a capela imperial, caso o imperador
manifestasse pessoalmente esse desejo.
Se Viena, desde a época barroca, constituiu-se num centro musical
de primeira categoria, isto se deve antes de tudo ao amor que certos
imperadores Habsburgos devotavam à música. Com Leopoldo I, o mais
barroco dos imperadores austríacos, esse amor transformou-se em
fanatismo. Este homem singular, que reinou quase 50 anos, não possuía
de modo algum a natureza de um soberano. Era enfermiço, de
constituição fraca, muito piedoso e estava destinado à carreira
eclesiástica; muito diferente do homem robusto que era o seu irmão, o
futuro imperador Ferdinando IV. Mas, a súbita morte deste irmão lhe
impôs uma tarefa para a qual não estava preparado. Apesar disto, ou
talvez justamente por causa disto, seu reinado foi dos mais fecundos,
mesmo com todas as divergências da época, e não menos coroado de
êxito do que o do seu brilhante adversário Luís XIV da França, que
igualmente reinou por longo tempo. Leopoldo não tinha o menor gosto
pela guerra; um belo concerto tinha aos seus olhos mais valor que uma
vitória militar. Seus generais se queixavam de que nunca havia dinheiro
para o exército, enquanto que enormes somas eram gastas com
espetáculos de ópera. A vida na corte, de certa forma, se desenrolava
publicamente, de sorte que a nobreza provinciana estava sempre
procurando imitar os usos e costumes dos grandes — assim é que
surgiram várias pequenas cortes na França e na Alemanha copiando o
modo de vida e a arquitetura do castelo e dos jardins de Versailhes. Na
Áustria e na Boêmia, imitava-se também, além de outras coisas, a
tradição musical que animava a corte imperial. Mesmo os pequenos
principados mantinham capelas de corte com músicos permanentes. Em
1679, escreveu Abraham a Santa Clara: “... o som dos trompetes e os
ecos da música que enchiam os pátios e os palácios da nobreza eram
sonoridades tão deliciosas que parecia haver um buraco no céu por onde
a alegria passava para cair aos borbotões sobre a cidade de Viena.”
Nas numerosas igrejas de Viena, nos conventos e mosteiros da
Baixa-Áustria que deviam representar as moradas divinas barrocas, ao
mesmo tempo sacras e profanas, ressoava também todos os. domingos
uma música suntuosa. Quando se examina os arquivos austríacos e
boêmios, encontra-se, justamente durante o reinado de Leopoldo I, uma
tamanha quantidade de música que é difícil imaginar onde aquela gente
arrumava tempo para executar tudo aquilo que ali está. O número de
obras, na verdade, já foi muito maior, pois que uma grande parte se

187
perdeu através dos séculos. Se pensarmos que o ano tem 52 domingos e
que numa corte louca por música como era a de Viena deveria haver
vários concertos por semana, poderemos ter ideia do colossal volume de
música que então se produziu. A propósito de Viena é ainda Burney em
sua Viagem Musical (1772) quem relata: “O país é aqui realmente muito
musical... De certo modo, a escola de música do colégio dos jesuítas —
que existe em toda cidade católica romana — explica esta inclinação;
pode-se, entretanto, alegar outras razões, uma das quais é a de que não
há uma só igreja ou convento em Viena, onde, todas as manhãs, não se
escute música durante a missa... com cantores e acompanhada por pelo
menos dois ou três violinos, um órgão, uma viola e um baixo; e como
aqui as igrejas estão sempre cheias, esta música, como que não seja das
mais belas, deve de alguma maneira educar o ouvido dos habitantes.”
Ora antigamente, qualquer músico com a formação usual de seu tempo,
tinha capacidade1 de compor uma música tecnicamente irrepreensível.
Não se podia consumir o tempo todo somente obras-primas e nem era o
que se queria. Estas, tal como expressamente recomendava o mestre de
capela Georg Muffat, deveriam alternar-se com peças simples e de fácil
compreensão, para não exigir demasiado dos ouvintes.
O próprio Leopoldo I não era apenas um ouvinte apaixonado, ele
também compunha e, por sinal, razoavelmente. Escreveu missas,
oratórios, danças, canções alemãs e muitos interlúdios para composições
de autoria dos músicos da sua corte. Frequentemente, se contentava
apenas em escrever as melodias, entregando o trabalho da escrita e da
instrumentação a seus músicos de corte, Berthali ou Ebner. Apesar dos
cofres do Estado austríaco estarem sempre vazios, muitas vezes
endividados, os músicos italianos da capela imperial eram pagos
regiamente. Em tudo foram eles os precursores das grandes estrelas do
mundo da música de hoje, a quem se paga somas astronômicas. Gottlieb
Eucharius Rinck, um capitão imperial, assim escreveu a propósito de
Leopoldo I e de sua capela imperial: “O imperador foi um grande artista
na música... se havia alguma coisa no mundo que desse prazer ao
imperador, era indiscutivelmente uma boa música. A música aumentava-
lhe a alegria, diminuía-lhe as preocupações e pode-se dizer que, dentre
todas as suas distrações, ele não conhecia momentos mais agradáveis
que aqueles vividos num concerto bem organizado. Isso podia ser
particularmente constatado em seus aposentos. Pois como o imperador
tinha o hábito de mudar-se quatro vezes por ano, ou seja, do castelo de
Laxenburg para a Favorita e de lá para Ebersburg, em cada um desses

188
lugares, havia nos aposentos imperiais uma espineta de grande valor na
qual ele passava... todas as suas horas de lazer. Sua capela podia
certamente ser considerada como a mais perfeita no mundo e isso não é
nenhum milagre, pois era o próprio imperador quem fazia o exame
quando alguém tinha de ser nomeado para lá; o candidato era julgado
pelos seus méritos e não por favorecimento... A julgar pelo número de
músicos dá para ter-se uma estimativa do quanto isto devia custar ao
imperador. Pois, muitas daquelas pessoas eram barões e a remuneração
era de tal ordem que estes podiam viver confortavelmente de acordo com
a sua posição social... Quando o imperador assistia a um concerto de sua
sempre incomparável capela, ele se mostrava contente, escutando com
atenção infinita, como se estivesse ouvindo pela primeira vez... Quando
chegava uma determinada passagem que lhe agradava, fechava os olhos
para escutar mais atentamente. Seu ouvido era tão apurado que podia,
entre cinquenta músicos, apontar aquele que houvesse tocado com a
arcada errada.”
Além da capela imperial de Viena, havia ainda em terras dos
Habsburgos algumas outras pequenas capelas, formadas de acordo com
o gosto pessoal de seus donos, que mereciam uma atenção particular do
imperador. A mais importante destas pertencia ao príncipe-arcebispo de
Olmütz, o conde Karl Graf Liechtenstein-Kastelkorn. Este rico príncipe
da Igreja mandou construir em Kremsier uma colossal residência de
verão. No campo musical suas preferências sem dúvida recaíam sobre as
exibições solísticas espetaculares. Assim é que contratou para sua
orquestra os melhores solistas disponíveis, dentre os quais muitos
músicos austríacos e boêmios. Quase todos eles eram também
compositores, de modo que esta orquestra composta de excepcionais
virtuoses, que se constituía num formidável estímulo artístico, produziu
uma grande quantidade de música orquestral e de câmera que se
distingue de tudo o que foi escrito na mesma época em todo o mundo. O
próprio imperador estava tão entusiasmado pela orquestra que todos os
anos viajava a Kremsier só para inebriar-se de música. Os compositores
imperiais também compunham para a “orquestra de Liechtenstein” um
tipo de música particularmente audaciosa que, lá, podia receber a melhor
das execuções. Para diretor deste conjunto inigualável, o arcebispo
contratou o genial violinista e compositor Heinrich Biber. É a ele que a
capela de Olmutz-Kremsier deve as suas obras mais significativas, mas
por outro lado teria sido impossível a Biber realizar-se plenamente sem
os estímulos que oferecia esta orquestra. Foi assim, por exemplo, que

189
escreveu um grande número de importantíssimos solos de trompete para
o primeiro trompetista Pavel Vejvanowsky, aquele que mais tarde iria
ser o sucessor de Biber à frente da orquestra. Fora Vejvanowsky, havia
ainda excelentes trombonistas, fagotistas e flautistas. Os instrumentos
de cordas eram encomendados no melhor fabricante da época, Jacobus
Stainer, de Absam.
O arcebispo de Salzburgo também mantinha, como muitos outros
príncipes, uma brilhante capela de corte. As salas revestidas de mármore
dos palácios que estes príncipes mandavam construir eram não só um
equivalente arquitetônico da música como também lhe serviam de
perfeita caixa de ressonância.
Naturalmente a música italiana em Viena não poderia conservar-se
em toda a sua pureza. Esta cidade sempre fora um cadinho onde se
fundiam os mais variados estilos artísticos. Já há muito tempo que para
lá iam as grandes personalidades dos diversos centros de música; de certa
forma era como se a cidade fosse um território neutro. Nela, podia-se
ouvir músicos flamengos e italianos, ingleses e franceses. Do íntimo
contato com o mundo eslavo e magiar se recebia influências orientais.
Ao lado da música italiana e francesa, tocava-se também a música
folclórica húngara, boêmia e austríaca, embora seus estilos acabassem
influenciando-se mutuamente. Chegou-se, assim, já no final do século
XVII, a um estilo tipicamente austríaco, no qual os elementos de todos
os outros estilos se somavam à forma italiana. Graças aos estreitos laços
políticos com a Itália, a ópera — a grande novidade do século XVII, nos
terrenos do teatro e da música — chegou a Viena, onde logo foi calorosa-
mente acolhida. Viena se tornou no século XVII um dos mais pres-
tigiosos centros da ópera italiana. Praticamente todos os compositores
de óperas importantes trabalharam na cidade. Essas óperas, no entanto,
apresentavam uma boa quantidade de música puramente instrumental:
além dos interlúdios dançados, escritos pelos compositores de balé
propriamente ditos, havia os interlúdios instrumentais e lá
frequentemente também se achavam inseridos concertos: compostos
para diferentes instrumentos. Os interlúdios dançados eram à maioria das
vezes concebidos de acordo com o modelo francês, mas um bom número
de danças empregava também material melódico regional, como se pode
depreender dos títulos “Steyermárker Horn”, “Gavotía tedesca”.
“styriaca”, “Böhmischer Dudelsack”, entre outros. Em contrapartida, os
interlúdios instrumentais eram escritos pelos próprios compositores de
ópera italianos. Eranv denominados “sonata” e quase sempre,

190
principalmente no caso dos: compositores mais antigos, escritos a cinco
vozes. Sua forma deriva diretamente da antiga canzon da sonar italiana.
Não se deve, portanto, confundir estas “sonatas” polifônicas com a
sonata clássica para instrumento solista. No período de Leopoldo, os
polos estilísticos da música instrumental eram a suíte francesa e a sonata
italiana. A oposição entre estas duas tendências, que em outro lugar seria
irredutível, foi na Áustria fundida numa fascinante e nova unidade por
geniais compositores como Georg Muffat, Fux, Schmelzer e Biber.
Georg Muffat nos interessa particularmente hoje, pelo fato de ter
exposto muito detalhadamente, nos prefácios de suas obras, toda sorte
de questões relativas ao estilo e à interpretação. Além disso, a sua
história de vida pouco habitual fez dele um grande conhecedor e
testemunha dos diferentes estilos. Depois de ter estudada em Paris com
Lully, veio para Viena onde foi muito incentivado por Leopoldo I e desta
cidade passou para Salzburgo, como compositor da corte do arcebispo.
Costumava designar-se como o primeiro “lullista” da Alemanha. O
arcebispo de Salzburgo, contudo; o enviou à Itália para continuar a
aperfeiçoar-se. Lá, escreveu Conceru grossi à maneira de Corelli. em
cujo prefácio encontramos estas belas palavras: “... Eis aqui a primeira
coleção de meus concertos nos quais se misturam alegria e seriedade,
que vos ofereço, caro leitor, sob o título de uma mui delicada harmonia
instrumental, porque ela contém não somente a vivacidade e doçura das
árias de balé, à imitação daquelas de Monsr. de Lully em toda a sua
pureza, mas também alguns trechos graves e requintados do patético
italiano. E diversas maneiras de tocar da veia musical... A concepção da
obra me veio quando eu estava em Roma para estudar com o Sr.
Bernardo Pasquini a maneira italiana de tocar órgão e cravo e quando,
então, escutei com muita admiração algumas sinfonias do Sr.
Archangelo Corelli, mui belas e executadas por um bom número de
músicos.”
Na dedicatória do Florilegium primum ele escreve: “Como a
variedade das plantas e das flores é o maior encanto dos jardins; e que a
perfeição dos homens ilustres brilha na diversidade das muitas virtudes
unidas para a glória e para a felicidade pública; assim, eu quis crer que
para ter a honra de divertir Vossa Alteza, como um príncipe dotado de
sabedoria e virtudes de diversas formas e espécies, não seria preciso
servir-me de um único estilo, ou de um mesmo método; mas segundo o
conhecimento formado de uma mui sábia mistura que pude adquirir no
contato com diversas nações. Com relação a esta questão, eu não teria

191
porque temer de um discernimento tão delicado e tão experiente em
assuntos da corte e de negócios como é o de Vossa Alteza
Reverendíssima, a crítica que me fazem certas pessoas malevolentes ou
espíritos fracos, que por ter eu estado na França e lá aprendido os
princípios da música com os melhores mestres, me atribuem falsamente
uma grande inclinação por aquela nação e me fazem passar por indigno
da benevolência dos alemães neste tempo de-guerra com a França...
Minha profissão está muito afastada do tumulto das armas e das razões
que levam o Estado a fazer uso destas. Eu trabalho com notas, acordes e
sons. Ocupo-me com o estudo de uma melodiosa sinfonia, e quando
misturo árias francesas com alemãs e italianas, isto não é para motivar
uma guerra, mas antes, talvez, para preludiar a uma harmonia e uma doce
paz entre as nações.”
Muffat foi, portanto, o primeiro a unir conscientemente os dois
estilos inimigos e, precisamente, sob a égide da reconciliação europeia.
Esta reconciliação deve ser entendida com referência à amarga inimizade
política que opunha Luís XIV a Leopoldo I, e que poderia perfeitamente
aprofundar ainda mais a “hostilidade cultural” entre esses dois povos tão
diferentes.
Muffat conhecia as dificuldades que tinham os violinistas es-
trangeiros com as arcadas à francesa, ao escrever que os violinistas não
deviam “deixar de dar valor a esta maneira apesar de não estarem a ela
habituados”. Ele foi de fato um partidário ardoroso do modo francês de
tocar: “A maneira de tocar as árias de balé nos violinos, segundo o gênio
do senhor Battiste de Lully, é de um refinamento tão elaborado que não
se poderia encontrar nada que seja mais exato, mais belo ou mais
agradável.”
No Florilegium, uma coleção de suítes de balé com títulos des-
critivos, é sem dúvida o estilo francês que prevalece, mesmo que nas
aberturas, em alguns movimentos de dança e nos adagios e allegros, os
elementos italianos estejam muito valorizados. Encontramos uma nítida
predominância do estilo francês sobre o italiano, ou melhor, uma fusão
muito pronunciada e deliberada das duas tendências, nos seus Concerti
grossi compostos na Itália. Estes certamente se baseiam nos de Corelli,
mas integrando movimentos da suíte francesa, algumas vezes elaborados
com toda a riqueza italiana. Os ornamentos estão escritos
minuciosamente, e até mesmo os golpes de arco. Ele solicita como
instrumento solista o oboé francês, recém-descoberto, “se entre os

192
senhores músicos houver delicados oboés” e, com este fim, permite fazer
as mais incríveis adaptações e transposições.
Após o trabalho pioneiro de Muffat, todos os compositores
austríacos passaram a compor suítes e sonatas tanto no estilo italiano
quanto no francês. Eles cultivavam, ao contrário de seus colegas
italianos e franceses, ambos os estilos. Contudo, tomavam-lhes apenas a
forma, pois quase sempre preferiam a temática de inspiração alemã,
húngara e boêmia. O temperamento naturalmente musical do vienense e
do austríaco em geral permitiu, graças a este congraçamento com o
universo musical, ir encontrando pouco a pouco um estilo que incluía
todas as formas. O vigoroso folclore, tanto da Áustria como da Boêmia
e Hungria, desde o início desempenhou neste sentido um papel
fundamental, principalmente desde que compositores regionais, como
Schmelzer e Fux, passaram a assumir a direção da capela imperial. A
partir de então, pode-se dizer que a música composta era
incontestavelmente vienense e austríaca.
Johann Joseph Fux introduziu novas sonoridades populares no bem
protegido domínio da capela imperial. A vida e a evolução musical deste
filho de camponês da Estíria ainda são ignoradas. Mais ou menos aos 30
anos de idade, com a formação musical já completa, ele aparece em
Viena, onde primeiramente exerce a atividade de organista. O imperador,
depois de escutá-lo na casa de um nobre vienense, nomeou-o compositor
da corte em 1698. (O título foi expressamente criado para ele.)
Posteriormente, se viu designado para a capela imperial e, em 1715, foi
nomeado por Carlos.
mestre da capela imperial. Como compositor, Fux não é julgado e
apreciado atualmente como merecia. Isto está certamente ligado ao fato
de ter escrito o seu Gradus ad Parnassum, o célebre tratado de
contraponto (no qual os clássicos vienenses, inclusive Beethoven,
adquiriram seus conhecimentos técnicos), e as pessoas não acreditarem
que um bom teórico possa ser igualmente um bom músico. O músico
capaz de exprimir-se a respeito de música, ainda hoje, é taxado de teórico
“árido”; quer-se sempre ver os artistas, envoltos por uma auréola mágica,
numa imagem onde o intelecto não tem lugar. O próprio Fux via-se de
outra maneira; “... Desde que passei a fazer uso o mais ínfimo de minha
razão, ardi de desejo e coloquei todos os meus sentidos e pensamentos
na música e ainda estou literalmente inflamado do desejo de aprendê -la;
sou, por assim dizer, levado contra a minha vontade, embora a música

193
ressoe nos meus ouvidos noite e dia e eu não possa de modo algum
duvidar da verdade de minha vocação interior..
De fato, a fama de que desfrutou Fux como compositor no seu tempo
é plenamente justificável. Ele dominava todos os estilos de sua época;
dos italianos aprendeu o estilo instrumental e o estilo dramático da
ópera; através de Muffat entrou em contato com o estilo francês de Lully
e de seus seguidores. Além disto, sempre guardou uma especial
predileção pelo folclore" austríaco, a ponto de se ouvir constantemente
nos sus movimentos de dança, elementos dos Ländler da Estíria ou de
outras danças populares. Fux manejava soberanamente esta rica paleta;
sua música instrumental é de grande naturalidade e vitalidade, sua
música sacra, de um caráter artístico sublime na escrita contrapontística
rigorosa, e suas óperas são suntuosas obras barrocas ao estilo italiano.
A principal obra instrumental de Fux é o seu Concentus musico
instrumentaus de 1701, dedicado ao filho de Leopoldo, José I. Nesta
coleção de suítes, todas as formas da música instrumental da época estão
representadas. O maior peso é dado, como em todas as composições de
suítes, às formas de dança francesas que, contudo, foram por um lado
modificadas através de elementos tipicamente austríacos e por outro se
viram inseridas entre movimentos instrumentais puramente italianos.
Heinrich Schmelzer foi um dos mais interessantes e originais
músicos de seu tempo. Ele cresceu em acampamentos militares, pois seu
pai era oficial. Muito provavelmente foi neste ambiente que recebeu as
suas primeiras impressões musicais e que começou a aprender violino.
Dentre os soldados poloneses, húngaros, croatas, boêmios do exército
austríaco deveria certamente haver excelentes virtuoses do folclore de
suas respectivas terras. Durante toda a sua vida, Schmelzer esteve
profundamente ligado à música folclórica e a maior parte de suas obras
reflete as impressões de juventude recolhidas no acampamento. Mesmo
antes de haver completado vinte anos, sua técnica de violino devia ser
tão boa que foi admitido como violinista da capela da corte imperial. Lá,
ele logo impressionou o imperador por seu talento excepcional. Cabia-
lhe escrever os interlúdios dançados de quase todas as óperas. Leopoldo
o estimava tanto que, em 1679, fez dele o primeiro mestre não-italiano
da capela imperial. Algumas de suas obras estão no arquivo de Kremsier.
Estas apresentam tamanhas dificuldades técnicas e musicais que
certamente deveriam ter sido expressamente escritas para os virtuoses
desta capela. Formalmente, todas estas sonatas estão escritas num só
movimento e pertencem ao estilo italiano. As diversas seções marcadas

194
por compassos diferentes não devem ser separadas por silêncios como
se fossem movimentos, mas encadeadas uma 11a outra, sem interrupção.
Algumas vezes, a forma é coroada por repetições.
Heinrich Ignaz Biber nasceu em 1644 em Wartenburg na Boêmia.
Nada sabemos a respeito de sua formação musical. Supõe-se que tenha
sido aluno de Schmelzer, tanto de violino como de composição. Seu
estilo violinístico e seu tratamento da técnica de violino são impensáveis
sem um conhecimento preciso da escrita de Schmelzer. A incontestável
predileção de Biber por elementos e formas da música folclórica parece
igualmente advinda de Schmelzer. Em todo caso, havia um estreito
contato entre os dois músicos: Schmelzer ia frequentemente com o
imperador a Kremsier e escreveu muitas obras especialmente para os
solistas de lá; é provável, portanto, que tenha tocado suas sonatas em
scordatura para dois violinos com o próprio Biber. Além disso, Biber
esteve também muitas vezes em Viena e, tal como Schmelzer, obteve um
título de nobreza, concedido por Leopoldo I.
Biber foi o intermediário junto a Jacobus Stainer, cujos instru-
mentos eram os seus preferidos, para adquirir deste fabricante um
conjunto completo de instrumentos de cordas destinados a orquestra do
arcebispo. Ficamos, assim, bem informados sobre as concepções sonoras
de Biber. A razão pela qual Biber deixou Kremsier — certamente sem a
aquiescência do príncipe para instalar-se em Salzburgo — nunca foi
esclarecida. De qualquer modo, nesta cidade, encontrou também uma
capela de altíssima qualidade e o mais importante talvez, como mestre
de capela, Georg Muffat, um interessante compositor que muito deve tê-
lo estimulado. O próprio Biber tornar-se-ia o segundo mestre da capela.
Em quase todas as composições de Biber, o violinista, o virtuose
instrumental, tem uma participação importante. Na maior parte das obras
encontram-se solos de violino, maiores ou menores, que o compositor
certamente escreveu para si mesmo. Também nas obras vocais ou peças
para instrumentos de sopro, percebe-se a mão de um músico com a
prática do instrumento, tanto no domínio virtuosístico de todas as
sutilezas de instrumentação como na obtenção de efeitos. Contudo, Biber
sempre soube evitar o perigo que ameaça todos os compositores
virtuosos, ou seja, a tentação de tudo sacrificar, inclusive a expressão
musical em troca de efeitos para agradar o público. Praticamente, não há
nenhuma obra de Biber, sacra ou profana, que não una de maneira feliz
a mais profunda substância musical com uma escrita brilhante e de
efeito.

195
Na sua Tiersonate (sonata dos animais) são imitados o canto do
rouxinol, do cuco, das rãs, da galinha, do galo, da codorna, do gato, bem
como curiosamente, uma “marcha de mosqueteiros”, tudo isto numa
sonata para violino alegre e primaveril. Apesar de seu caráter e seu
sentido cômico, Biber considerou esta sonata como perfeitamente
apropriada para ser dedicada “à maior glória de Deus, da Virgem Maria
e de Santa Cecília”. Sem dúvida, na época barroca, se era capaz de
imaginar, mesmo na corte de um arcebispo, uma vida extraterrena das
mais alegres e corriqueiras.
Em resumo, poder-se-ia dizer que, em Viena, o estilo italiano sem
dúvida alguma predominava oficialmente, mas que, em virtude da
aliança da escrita italiana e francesa com a musicalidade natural dos
austríacos, nasceu naquela cidade um estilo novo e característico.

196
No norte da Alemanha, foi Telemann, principalmente, quem reali-
zou a fusão dos estilos italiano e francês. Telemann era, de longe, o
compositor mais célebre de seu tempo. Atualmente, em uma época de
historicismo, é difícil compreender o artista como um prático que deve
satisfazer à imensa demanda de seus contemporâneos, por uma arte
destinada ao uso cotidiano. Assim, um tanto precipitadamente vingou a
expressão pejorativa “autor prolixo”, com a qual se deprecia de maneira
fácil e cômoda a produção abundante de alguns artistas barrocos. É óbvio
que nem todas aquelas milhares de composições poderiam ser obras-
primas. Nem foram mesmo como tal concebidas, mas escritas com um
determinado fim, a que satisfazem plenamente. Não se pode fazer justiça
a um compositor como Telemann opondo-o ao seu grande
contemporâneo, Bach, e invocando o “erro de julgamento” histórico de
seus contemporâneos: de um lado o compositor prolixo e superficial,
célebre, em seu tempo — do outro, o grande Kantor totalmente
incompreendido. Decerto Bach era tido pelos conhecedores como o
maior compositor vivo; suas obras, contudo, não podiam ter maior difu-
são porque ele as mandava imprimir muito raramente. Além disto, como
Kantor em Leipzig, escrevia sobretudo música para os ofícios
dominicais, que não publicava. Telemann, ao contrário, tinha uma
personalidade extremamente dinâmica: onde quer que fosse, conferia à
vida musical um impulso decisivo, fundava conjuntos de concertistas e
ocupava-se assiduamente da impressão e da difusão de suas obras. Com
doze anos, escreveu sua primeira ópera; tocava flauta doce, violino e
cravo, tendo adquirido por esforço próprio quase todos os seus
conhecimentos musicais: nunca recebeu uma educação musical básica.
Como estudante em Leipzig, fundou seu collegium musicum, de
altíssimo nível, à testa do qual Bach. posteriormente, dirigiu muitos de
seus concertos instrumentais. Os diversos cargos que exerceu — mestre
de capela da corte em Sorau e em Eisenach, diretor musical em Frankfurt
e depois em Hamburgo permitiram-lhe familiarizar-se com os estilos
musicais mais diversos. Assim, em Sorau escreveu inúmeras aberturas
no estilo francês e conheceu, na Silésia, a música folclórica polonesa,
que frequentemente utilizou em suas obras.
A vida mundana de Telemann, sua iniciativa extraordinária e seu
talento eminente, tudo isto lhe deve ter valido o sucesso no mundo
inteiro. Em 1730 viajou a Paris, onde foi muito apreciado pelos virtuoses

197
instrumentais e pelo público. Seu estilo foi imitado por inúmeros
compositores alemães e franceses. Telemann sempre se esforçou por
mostrar algo de novo em suas composições. Jamais persistia num
determinado estilo que houvesse algum dia reconhecido como bom,
procurando sempre situar-se na vanguarda da evolução estilística. Já
octogenário, envergonhava os jovens com as mais modernas obras ao
estilo da escola de Viena e Mannheim. Telemann estava à vontade em
todos os estilos, dominando soberanamente a escrita francesa e a italiana,
então consideradas tão opostas, tanto na sua forma mais pura quanto em
todas as nuances que sua fusão oferecia. Tinha, aparentemente,
predileção por sonoridades e combinações sonoras pouco habituais e
compunha para todos os instrumentos imagináveis. Qualquer conjunto
de instrumento, por mais extravagante que seja a sua constituição,
encontra em Telemann um repertório.
A instrumentação, a execução com determinados timbres e certas
possibilidades técnicas e a produção-de novas sonoridades através da
combinação de diferentes instrumentos eram, até um período bem
avançado da época barroca, assunto que dizia respeito essencialmente
aos intérpretes. No século XVII muitas vezes ainda se encontra, em
antigas partituras impressas, a indicação: “para cantar e tocar em
qualquer tipo de instrumento.” Naturalmente não se podia utilizar e
combinar arbitrariamente quaisquer instrumentos: havia certas regras
não escritas que diziam quais eram os instrumentos que combinavam
entre si. Mas, em geral, a realização sonora de uma peça musical só era
determinada no momento da sua execução, e somente para esta
execução. Era bem possível que, em outro lugar, a mesma obra soasse
totalmente diferente, e as interpretações mais variadas estavam de
acordo com a concepção do compositor. A partitura de uma obra era uma
imagem abstrata, da qual se podia reconhecer bem a substância musical,
mas não a realização sonora efetiva. O mestre de capela responsável pela
execução da obra devia “arranjá-la” dentro de suas possibilidades. Em.
outras palavras, ele precisava decidir o que deveria ser cantado, o que
deveria ser tocado, onde deveriam ser colocados ornamentos e outras
coisas mais. Esta liberdade foi ficando cada vez mais restrita à medida
que os compositores começaram a exigir determinadas combinações
sonoras. No século XVIII bastante avançado, ainda há resquícios desta
antiga liberdade que pode ser reconhecida nas diversas indicações dos
instrumentos, tais como: “violino ou flauta, oboé ou violino, fagote ou
violoncelo, cravo ou piano forte.”

198
Os três grandes compositores da mesma geração — Bach, Haendel
e Telemann — procuraram e foram os primeiros a encontrar o idioma da
nova linguagem sonora que levou do barroco ao •classicismo. Estavam
plenamente conscientes da novidade de seus esforços e falavam disso,
apesar do interesse de Haendel concentrar-se mais na melodia, cujas leis
ele e Telemann pesquisaram, do que na instrumentação. Bach e
Telemann foram os que mais longe chegaram na busca por meios de
expressão sonoros sempre novos. Realizaram os sonhos sonoros mais
audaciosos — aqueles a que seus predecessores chegaram talvez
ocasionalmente, improvisando em condições particularmente favoráveis
— de forma definitiva, para si próprios e para a posteridade. Sua gama
sonora atingiu uma riqueza tal que só duzentos anos depois seria
novamente alcançada e de maneira inteiramente diferente. Telemann
encontrou condições Ideais para suas tentativas e comparações: sua
carreira de mestre de capela e compositor levou-o às mais diversas
nações europeias, onde não só dava oportunidade de ouvir os mais
famosos virtuoses como também os melhores músicos folclóricos.
Escreveu a seu próprio respeito: “... Tive a sorte d6 travar conhecimento
com muitos músicos, os mais renomados de diferentes nações, cuja
habilidade me deu sempre o desejo de executar minhas peças com a
maior circunspecção possível...” Todas estas influências e estímulos
estão contidos em suas obras; e como ele próprio, desde a juventude,
tocasse uma série de instrumentos de cordas e de sopro, soube muito bem
adaptar suas obras às possibilidades técnicas dos diferentes
instrumentos. Com isso os virtuoses sentiam-se valorizados e tocavam
as composições de Telemann com muito prazer, e muita frequência.
Para Telemann, a instrumentação sempre foi uma parte essencial da
composição. E nisso também estava muito à frente dos seus
companheiros de geração, cujas obras permitiam o intercâmbio de
instrumentos de forma totalmente arbitrária. Já muito cedo, visando a
técnica de execução e uma caracterização precisa, Telemann declarou-
se partidário de uma escrita que utilizasse da melhor maneira as
particularidades sonoras e técnicas de cada instrumento “... Aprendi a
conhecer as diversas naturezas dos diferentes instrumentos, que eu não
deixava de explorar com a maior aplicação possível. Até hoje estou
aprendendo o quanto é indispensável e útil poder distinguir esses traços
nos seus pontos essenciais. E digo que ninguém pode ficar satisfeito e
feliz com suas invenções sem saber disto. Um conhecimento preciso dos

199
instrumentos é igualmente indispensável à composição. Do contrário, há
que pronunciar-se o seguinte julgamento:

O violino é tratado à maneira do órgão


A flauta e oboé se parecem com trompetes
A gamba flana como baixo
E aqui e ali se acha um trilo.
Não, não basta apenas que as notas soem
Que saibas fazer bom uso do amontoado de regras.
Dá a cada instrumento o que ele pode suportar
De modo que o executante tenha prazer, e tu, satisfação.”

Muitas obras de Telemann, no que concerne à instrumentação, não


são imagináveis com nenhuma outra formação a não ser aquela exigida
pelo compositor. Assim, por exemplo, ele opõe, num Concerto à 6.
Flauta à bec et Fagotto concertato, a flauta doce, instrumento mais que
aprovado, a um interlocutor como o fagote que, até então, com raras
exceções, não havia sido empregado de outra: forma a não ser como
simples instrumento do baixo na orquestra e trata este instrumento de
maneira tão soberana, que o torna imediatamente um partner musical
nos mesmos termos de igualdade.
O seu Concerto à 4 violini senza Basso, portanto, para quatro
instrumentos melódicos, é uma continuação lógica da literatura desolo
outrora tão apreciada, destinada a instrumentos solistas sem baixo. O
próprio Telemann escreveu inúmeras sonatas ou suítes deste gênero para
um ou mais violinos ou flautas. Os quatro violinos são tratados
exatamente da mesma maneira, devendo resultar uma impressão de
rivalidade, na qual cada um tenta suplantar o outro, enquanto que as
funções de baixo e de melodia passam de um instrumento a outro. As
aparentes desvantagens de um quarteto com quatro instrumentos da
mesma tessitura são exploradas por Telemann para jogos de timbre
audaciosos no plano harmônico.
Como mais um exemplo da maneira de Telemann compor e tratar os
instrumentos, eu gostaria de citar a Abertura em fá maior para duas
trompas e orquestra de cordas: há aqui também uma fusão das mais
diversas tradições, mas uma fusão de outra espécie. A disposição formai

200
de uma abertura (suíte) francesa funde-se nessa obra com o princípio
concertante de um concerto italiano. Ê justamente na época de Telemann
que a trompa, um instrumento que servia exclusivamente à caça, ingressa
na música erudita. É interessante observar que os primeiros virtuoses
itinerantes da trompa, os quais, por sinal, tocavam sempre em duo, eram
geralmente caçadores originários da Boêmia: nas primeiras obras para
este instrumento, encontram-se sobretudo motivos de caça. As duas
trompas eram sempre utilizadas juntas, como se fossem um único ins-
trumento; o diálogo se dá, portanto-, entre elas e a orquestra de cordas.
Os movimentos lentos da suíte fogem ao esquema habitual da música de
trompa da época: Telemann explora aqui, pela primeira vez na história
da música, a disposição particular da trompa para as melodias românticas
e líricas. Qualquer outro compositor teria empregado as trompas em
movimentos extremamente rápidos, fazendo-as calar nos movimentos
lentos. Telemann, contudo, queria, ao que tudo indica, demonstrar o
cantabile da trompa, colocando três movimentos lentos entre os
movimentos rápidos que evocam a caça.
É interessante a distribuição dos sopros em algumas das aberturas,
ditas “de Darmstadt”. Como de hábito, são empregados dois oboés
obbligati que tocam em uníssono com os primeiros violinos ou seguem
separadamente os primeiros e os segundos violinos, o que produz um
reforço e uma coloração, como que uma espécie de registração; por vezes
há trios — pequenos solos dos dois oboés com o baixo. O fagote não tem
voz própria, e simplesmente acompanha os violoncelos e contrabaixos;
eventualmente, para os soli de oboé, fazem-no tocar o baixo em solo, o
que não é, porém, indicado na partitura, mas decidido ad hoc pelo
executante. De vez em quando. Telemann requer um quarteto de sopros
completo: três oboés e um fagote. Esta formação preserva, bem
entendido, a função de registro, cabendo ao terceiro oboé a parte da
viola, desde que esteja na sua tessitura. Por outro lado, tal formação
oferece a oportunidade de uma alternância equivalente com as cordas: o
conjunto de sopros assim constituído é efetivamente a quatro vozes,
exatamente como a orquestra de cordas. Esta possibilidade conduz a um
modo de escrita particular: o diálogo não acontece mais unicamente no
seio de sonoridades homogêneas, pela alternância de motivos e figuras,
mas dos sons entre grupos sonoros fundamentalmente diferentes. Dentro
da concepção que se tinha na época da escrita policoral, da acústica das
salas e da organização sonora, isto significa incontestavelmente uma

201
disposição separada dos sopros e das cordas, eventualmente até mesmo
com diversos instrumentos de contínuo.
A propósito das possibilidades de execução de obras deste gênero,
Georg Muffat havia feito, vinte ou trinta anos antes, proposições e
observações muito interessantes. Ele deixava a cargo do intérprete a
divisão das partes e descrevia duas modalidades de execução: a execução
com uma pequena formação (omitindo as vozes intermediárias) e a
execução (particularmente desejada) com a maior formação possível.
“Havendo número maior ainda de músicos, devereis reforçar não
somente o primeiro e o segundo violinos do grande coro, designado pelo
nome Concerto grosso, mas também ambas as violas intermediárias e o
baixo do dito grande coro, que ornareis mais ainda com o
acompanhamento de cravos, teorbas, harpas e outros instrumentos
similares, conforme melhor vos parecer; o pequeno coro ou Trio
principal, também designado pela palavra concertino, ... deve ser tocado
pelos três melhores instrumentistas, acompanhados apenas por um órgão
ou teorba .Muffat escreve também que estes dois “coros” podem ser
dispostos no espaço separadamente; e, de fato, só faz sentido prever um
instrumento de contínuo particular (órgão ou teorba) nesta disposição
especial separada.
Em certas suítes de Telemann, os sopros, com sua escrita específica,
são opostos, às cordas, de maneira concertante; não se trata, portanto, do
diálogo de dois grupos sonoros em condições de igualdade (este tipo de
diálogo pode acontecer, é certo, em algumas passagens), mas de uma
execução concertante em solo, na qual os sopros sobressaem desde o
início, como se fossem solistas, através de figuras idiomáticas próprias.
Isto não era absolutamente uma prática corrente na época de Telemann,
em que uma parte de oboé muito raramente se distingue de uma parte de
cordas. O que é característico, e que acentua pouco habitual e
excepcional, é, por exemplo, o início da Suíte de Darmstadt em dó maior,
em que as cordas se calam completamente. Naquele tempo, deve ter sido
um efeito surpreendente ouvir, ao invés do esperado tutti, o grupo solista
iniciando sozinho. (Cinquenta anos mais tarde, Mozart descreveria um
efeito semelhante quando da primeira audição de sua Sinfonia
parisiense.)
Em última análise, o resultado do “conflito cultural” (entre os estilos
italiano e francês) representou um enriquecimento: dele surgiu o que se
chamou de “os gostos reunidos”, que haveria de tornar-se a característica
da música alemã do século XVIII: os grandes compositores alemães

202
escreviam suítes francesas, sonatas italianas e concertos, integrando
sempre elementos do gênero “inimigo”; e a tradição local
desempenhava, nesta fusão estilística, um papel não negligenciável de
catalisador. Finalmente, no campo específico da música de órgão,
registrou-se um verdadeiro desenvolvimento propriamente alemão. Uma
sequência ininterrupta de mestres e alunos conduz do flamengo
Sweelinck (1562-1620), passando por H. Scheidemann (1596-1663) e J.
A. Reincken (1623-1722), até J. S. Bach. A particularidade deste estilo
alemão de música de órgão é a predileção pela polifonia complexa,
oriunda do antigo contraponto dos flamengos, que levou à elaboração
formal da fuga.

203
A música barroca, suntuosa orgia de sons e de arpejos virtuosísticos,
teatral, brilhante, cheia de efeitos — todos estes atributos correspondem
certamente à ideia que temos hoje em dia desta música, mesmo que não
lhe façam verdadeiramente justiça. Não é à toa que se entende por
música barroca principalmente a música italiana e talvez a música
francesa desta época: estas duas nações realmente viram surgir as
tendências estilísticas mais significativas desta música. A música
barroca alemã ou austríaca, não menos importante, pode ser classificada
segundo estes dois estilos, uma vez que cada obra isolada revela
pertencer a um ou a outro, de maneira sempre claramente reconhecível.
Praticamente não se pensa na música barroca inglesa, que, apesar das
tentativas feitas para revivê-la, permaneceu sempre em segundo plano.
A época atual gosta dos efeitos, das grandes realizações, o que torna
facilmente compreensível o aparente renascimento da música barroca.
Neste renascimento, porém, a música barroca inglesa não encontrou seu
lugar; é que ela tem por base outros valores, não oferece nem o elemento
motor estimulante, nem o brilho sonoro da música barroca habitual.
Condicionados por sua situação insular, os ingleses, que podiam em
larga medida se isolar das tendências europeias, desenvolveram seu
próprio modo de produzir e consumir arte, as influências recíprocas
permanecendo relativamente pequenas.
Na época barroca, em que, por toda parte, o elemento decisivo era
o efeito exterior, os ingleses se interessavam muito mais pelo conteúdo,
pela profundidade da expressão. A música barroca inglesa não é,
portanto, uma música concertante para virtuoses que se apresentam
diante de um público entusiasta, mas uma música extremamente refinada
e profunda, destinada a um pequeno círculo de iniciados. Não que
houvesse na Inglaterra menos apaixonados pela música do que na Itália
ou na França, talvez até existissem em maior número. Mas, para escutar
música, não necessitavam do estimulante ambiente do concerto público.
A vida musical se desenrolava principalmente no meio de incontáveis
pequenos círculos de verdadeiros conhecedores. Os ingleses
permaneceram tanto quanto possível presos aos instrumentos da família
das gambas, à sonoridade doce e delicada, pois a sutileza e a qualidade
do som importavam infinitamente mais que seu volume. Eles queriam
ouvir ativamente, atentamente. Assim, a maior parte da música inglesa
do século XVII é música de câmara. De certo modo, pode-se comparar

204
a vida musical inglesa desse período à austríaca do final do século XVIII.
Apesar de haver na Áustria uma “grande” atividade em termos de
concertos, as experiências mais significativas aconteciam na música
câmara, principalmente no campo do quarteto de cordas. Também nesse
caso, faltava o grande público, e a música de câmara era cultivada em
inúmeros círculos privados, que consideravam bem mais a importância
da mensagem musical do que o simples efeito. Não é de se espantar,
portanto, que tanto em um país quanto no outro, as grandes obras-primas
se encontram justamente no campo da música de câmara. Este é também
o motivo da pouca popularidade da música barroca inglesa: ela está,
como a música de câmara do classicismo, muito longe dos efeitos e, tal
como esta, é deixada de lado na época atual.
John Cooper (1575-1626) e William Lawes (1602-1645) são os dois
compositores mais significativos e típicos deste século de ouro da
música inglesa. O culto por tudo que é estrangeiro, coisa que certamente
ocorre em todos os tempos e lugares, fez com que John Cooper, após
alguns anos na Itália, trocasse o seu nome para Giovanni Coperario, de
modo a fazer-se passar por italiano e assim ser mais considerado. A ideia
parece grotesca quando se comparam as obras de Cooper às dos seus
contemporâneos italianos, e se observa com que independência ele
incorpora elementos italianos em formas puramente inglesas, do ponto
de vista da densidade musical e também o quanto os primeiros ensaios
de trio-sonatas na Itália se mostravam superficiais se cotejados com as
primeiras obras contemporâneas do mesmo gênero de Cooper. Pode ser
bem interessante observar, em outros exemplos, esse fenômeno da
assimilação ou independência dos estilos nacionais. No início do século
XVII, alguns compositores italianos mudaram-se para a Inglaterra, para
aí tentar a sorte (por exemplo Ferrabosco, Lupo); em pouco tempo
estavam compondo música puramente inglesa, tinham-se tornado
musicalmente ingleses. Cooper, ao contrário, havia simplesmente
trazido da Itália um nome italiano.
O mais importante aluno de Cooper foi William Lawes, um dos
maiores compositores do século XVII. Carlos I adorava sua música e o
tinha pessoalmente em grande estima. Escreveu para este rei a maior
parte de suas inúmeras obras. Após sua morte na batalha de Chester,
incontáveis poetas e compositores escreveram lamenti por seu
desaparecimento: todos o reconheciam como a maior figura da música
inglesa. Uma incrível riqueza de ideias, uma linguagem sonora moderna,

205
até então jamais ouvida, e uma tocante profundidade de expressão são as
marcas características de sua música.
Henry Purcell (1658-1695) é o último de uma série de grandes
compositores, que encarnam a grande época da música inglesa. Sua obra
parece sugerir que ele próprio partilhava deste sentimento. Assim é que
uma de suas primeiras composições conhecidas é um ciclo de fantasias
para três a sete gambas, nas quais há citações, entre outros, de temas de
Dowland. As formas destas fantasias são igualmente bem tradicionais:
poderiam ter sido escritas setenta anos antes, mas, ao mesmo tempo, são
de uma tocante modernidade. Foram certamente concebidas como a
conclusão de uma grande época, mas com o desejo de apontar para o
futuro. Purcell escreveu-as com vinte e dois anos de idade, em poucos
meses, e são suas únicas obras para esta formação. Nelas, as
possibilidades técnicas e sonoras da gamba são exploradas às últimas
consequências.
Todas as composições posteriores de Purcell devem ser com-
preendidas a partir dessas obras da juventude: por um lado ele toma as
formas de dança modernas, ou ainda efeitos sonoros pictóricos, ou até
mesmo formas de abertura francesa, e os transforma de modo
irreconhecível, anglicizando-os, quer dizer, refinando-os; por outro lado,
retorna à antiga fantasia inglesa, com seus grandiosos e amplos
desenvolvimentos harmônicos.
Embora a grande época da música inglesa se encerre com Purcell, é
forçoso considerar Georg Friederich Haendel — que passou a maior
parte de sua vida musical na Inglaterra — como o último compositor
barroco inglês. É curioso notar como também no caso de Haendel, o
clima musical especificamente inglês moldou o estilo de composição. As
obras de Haendel são na verdade um prolongamento das criações de
Purcell, sem o qual seriam impensáveis. De fato, não poderiam ter sido
escritas em nenhuma outra parte do mundo. Não há qualquer outro
compositor barroco que tenha escrito melodias mais fecundas do que
Haendel, o que certamente nos faz voltar à influência que sofreu da
música de Purcell. Naturalmente, o que se disse no início a respeito da
música barroca inglesa não se aplica mais a Haendel; aliás, o próprio
Purcell também recorreu, em algumas de suas obras, aos gestos
desmedidos, teatrais do barroco.

206
Georg Friederich Haendel foi o primeiro grande homem de vivência
cosmopolita dentre os compositores de sua época. Desde o início de sua
carreira musical conheceu o sucesso, ao mesmo tempo como compositor
e virtuose de órgão e improvisador estupendo. Escrevia suas obras
sempre para ocasiões especiais, para lugares determinados e para um
público que conhecia bastante bem. Seu imenso sucesso vem em grande
parte do fato de ter concebido seu discurso musicai numa “linguagem”
que o público compreendia e, como bom orador, formulava seus
pensamentos de acordo com o nível do ouvinte. Assim, suas obras são o
reflexo da correspondência entre compositor e ouvinte, estando ele
próprio consciente do dever moral do artista — ou seja, o de cativar o
ouvinte com a sua música, a ponto de transformá-lo num outro homem,
num homem melhor.
Haendel estudou a fundo todas as tendências estilísticas de seu
tempo. Com dezoito anos, já atuava na ópera de Hamburgo como
violinista, cravista e compositor; com vinte e três anos de idade, viajou
para a Itália, o centro incontestável da vida musical barroca, onde
ingressou no círculo do grande mecenas, o cardeal Ottoboni. Lá,
trabalhou com os mais importantes compositores italianos (Corelli,
Scarlatti) e lhes estudou os estilos. Sentia-se à vontade em todos os
terrenos, tornando-se um excelente instrumentista, capaz de tocar
perfeitamente tudo o que escrevia. Sua cultura, sua elegância de
linguagem, e seu bom gosto em todos os campos artísticos (mais tarde,
na Inglaterra, reuniria uma importante coleção de pinturas) só fizeram
aumentar-lhe ainda mais a habilidade inata de tocar exatamente a
sensibilidade do público. Já desde o seu tempo em Hamburgo, Haendel
era considerado no mundo musical como uma personalidade
internacional. Após sua permanência na Itália (de 1706 até 1710) e seus
sucessos lá, os principados alemães literalmente disputavam o contrato
da nova estrela. Haendel tinha consciência disso e explorava o seu valor
de mercado. Ele foi um dos raros compositores pré-clássicos que
conseguiu algo para si tanto do ponto de vista social quanto financeiro.
Sua colaboração com os editores assegurava a suas obras uma larga
difusão e, a ele, uma renda garantida. Assim, não é de se espantar que
uma grande parte das composições de Haendel tenha recebido diversas
edições contemporâneas e algumas delas diferentes versões e
instrumentações.

207
Haendel é também o compositor descoberto no século XIX, até
mesmo antes de Bach, para os concertos da assim chamada grande vida
musical, onde ele ocupava, tradicionalmente, um lugar de maior
destaque do que este último. A partir de sua ida para a Inglaterra,
desenvolveu-se algo como um estilo tipicamente haendeliano. Basta uma
rápida olhada nas partituras para constatar diferenças consideráveis entre
os oratórios dos dois grandes contemporâneos. A música de Bach parece
sensivelmente mais elaborada, suas vozes intermediárias são antes de
tudo bem mais densas e participam de maneira mais independente no
desenvolvimento musical do que as vozes intermediárias de Haendel,
que podem ser consideradas principalmente como vozes de recheio
harmônico; por outro lado, encontra-se na música de Haendel grandes
ligaduras melódicas nas vozes superiores. No geral, todas as vozes nas
partituras bachianas estão elaboradas mais detalhadamente e todos os
ornamentos ali se acham escritos, não havendo espaço para improvisação
— na música de Haendel, ao contrário, a grande linha tem primazia sobre
o detalhe que, frequentemente, está apenas sugerido; uma grande parte é
deixada ao intérprete, tal como os ornamentos nas cadências e nos da
capo. A prioridade dada por Haendel à melodia, em contraposição à
extrema elaboração das vozes em Bach, nos dá certamente a chave para
uma interpretação sensata.
Desde que as obras de Haendel passaram novamente a ser
executadas, o que, curiosamente, se deu logo após a sua morte, cada vez
mais se vem percebendo as possibilidades que elas oferecem de enfatizar
o monumental. E precisamente a maneira de compor mais linear, descrita
anteriormente, que pode levar a uma interpretação de certa opulência
sonora. Na medida em que estas interpretações representavam, de
maneira impressionante, aquilo que as gerações posteriores qualificavam
de “barroco”, e talvez também pela imagem de um importante homem
de sociedade que se passou a associar a Haendel, este estilo haendeliano
foi geralmente admitido e aceito como adequado; a despeito desta falsa
interpretação do gosto do barroco pela opulência e sobretudo pelo fato
de que as principais obras de Haendel não pertençam mais justamente à
época barroca propriamente dita, este estilo haendeliano, do ponto de
vista puramente musical, é plausível e convincente, até certo ponto. A
monumentalidade sonora obtida pelo estilo de interpretação do século
XIX foi transposta sem mais nem menos à própria substância da música;
os tempi foram alargados, a escrita ampla em acordes foi colocada em
primeiro plano, de tal modo que disto resultasse um estilo harmônico, ao

208
mesmo tempo monumental e primitivo, que permitisse ao ouvinte, farto
e satisfeito, não ser nem um pouco perturbado. Este estilo interpretativo
logo tornou-se a quintessência da música barroca: gigantescas massas
sonoras que, por meio de encadeamentos harmônicos muito simples e
pomposos, produzem um tipo de atmosfera de festa infantil.
A feitura relativamente simples, a predominância da melodia, a
função de acompanhamento das vozes intermediárias — são ca-
racterísticas apontando na direção do Classicismo. O fundamento disto
era certamente social, mesmo que o compositor não estivesse consciente
do fato. Pode-se observar ao longo da história da música que aquela que
é dirigida a ouvintes com uma formação de alto nível é uma música
esotérica, complexa e sutil em seu “trabalho” polifônico — escrita, de
certa forma, num determinado código secreto, de acordo com sua
cultura; por outro lado, a música que procura agradar ao “povo” é antes
de tudo melódica, escrita para uma voz com acompanhamento, uma
música para os “sentimentos”. A vida musical inglesa na época de
Haendel era sensivelmente mais liberal de que aquela do continente; seu
público de ópera e oratório era realmente o povo.
Quando se procura aplicar racionalmente às obras haendelianas os
princípios conhecidos da prática musical daquela época, tais como a
articulação, a importância dos efeitos, os tempi, a dinâmica e a
ornamentação, surge uma música transparente e leve. E é justamente o
que faz com que a melodia ganhe sentido, com que o pathos
insignificante seja substituído por uma expressão clara e facilmente
compreensível. De fato, esta música está mais próxima dos primeiros
músicos do classicismo e até mesmo de Mozart. A força destas obras
reside na substância musical e não no número de executantes. Para a
execução do Messias, Haendel dispunha de vinte e sete cantores e o
tamanho da orquestra correspondia ao do coro. Grandes orquestras só
eram empregadas em execuções ao ar livre ou em ocasiões e
acontecimentos de excepcional importância. Não há motivo algum para
se supor que estas pequenas formações para as quais Haendel compunha
fossem soluções provisórias, de emergência já que muitos detalhes só
podem ser realizados com uma formação desse gênero. A articulação
clara de pequenos valores de notas, elemento essencial da linguagem
sonora de seu tempo — é justamente muito importante para as
coloraturas e outras figuras do vocabulário musical de Haendel. Todos
os tratados contemporâneos ressaltam a importância da acentuação
correta das pequenas ou pequeníssimas frases que são comparadas às

209
sílabas e às palavras da linguagem. Na experiência prática,
imediatamente percebemos as novas perspectivas que se abrem ao
músico e ao ouvinte, mas também percebemos que só é possível realizar
este gênero de articulação corretamente com uma formação não muito
grande. Com uma formação orquestral e coral maior tudo se confunde e
as acentuações parecem insistentes, exageradas. Coisa semelhante
acontece com os tempi: escolhendo-se os tempi rápidos, como indica a
tradição, há que dispor-se incontestavelmente de um meio sonoro leve e
ágil. A fusão sonora ideal com toda a transparência e clareza desejáveis
só será possível com os instrumentos da época. O objetivo de uma
interpretação assim elaborada é um estilo haendelino moderno. Para isto,
o ouvinte tem de tornar-se novamente participante; não lhe será mais
servida uma papa pré-fabricada de sons opulentos, mas que se revela
indiferenciada, se olhada de perto. A música não irá desenrolar -se
unicamente no palco, enquanto que o ouvinte, deliciado, se deixa banhar
por ela; ao contrário, ela irá nascer do esforço conjugado do intérprete e
do ouvinte, numa compreensão ativa do discurso sonoro. Assim, a
interpretação a mais de acordo possível com as condições históricas me
parece não somente a mais adequada à obra, como também a mais
moderna.
Os Concerti grossi de Haendel, bem como seus concertos pata
órgão, foram concebidos antes de tudo como interlúdios, aberturas e
música de entreato para os seus oratórios, cantatas e óperas, o que,
contudo, não significa que sejam constituídos de uma música menos
importante; ao contrário, sabe-se que os ouvintes dos oratórios de
Haendel se interessavam particularmente pelos concertos de órgão
tocados entre as diferentes partes e, até mesmo, que se escutava os
concertos tocados para preencher os entreatos com mais atenção do que
a grande obra programada como atração principal.
Os Concerti grossi op. 6 de Haendel foram compostos praticamente
de um só fôlego, entre 29 de setembro a 30 de outubro 1739. Este
procedimento não é absolutamente típico de Haendel. pois
habitualmente recorria a diversas composições anteriores quando fazia
publicar um novo opus. (Mesmo nestes, há movimentos isolados
tomados de outras peças, só que num número bem menor do que o
habitual, em obras congêneres.) É este “jato” singular que caracteriza os
doze Concerti, assim como a sua formação, em princípio unificada, pois
os únicos instrumentos obbligato, aqui, são as cordas e um instrumento
de contínuo harmônico. É verdade que Haendel acrescentou de próprio

210
punho, em certos concertos, partes de sopros, mas estas têm sempre um
caráter ad libitum, podendo, portanto, ser omitidas sem prejuízo
substancial; elas mostram claramente a maneira pela qual Haendel
procedia quando queria aumentar a formação. São modelos, portanto,
que podem certamente servir-nos para quaisquer dos outros concertos.
Nestes Concerti grossi, Haendel não seguiu nenhum dos esquemas
formais rigorosos então em uso; poderia ter escolhido entre três modelos:
primeiro, a forma antiga da sonata de igreja, com a sua sequência de
movimentos lento-rápido-lento-rápido (sendo que o movimento lento
podia estar reduzido a apenas alguns compassos introdutórios). Em
segundo lugar, a moderna forma do concerto italiano de Vivaldi: rápido-
lento-rápido (com um grande movimento lento autônomo). Em terceiro
lugar, a suíte orquestral francesa com uma abertura introdutória e
numerosas peças de dança. Ele, contudo, concebeu para cada um dos
concertos uma original sequência de movimentos, combinando a seu
critério os esquemas formais.
Haendel parece gostar de concluir seus concertos virtuosos com um
movimento de dança leve e ingênuo (de preferência um minueto). Isto
não corresponde de forma alguma a nossa concepção de um final
“eficaz”, aquele capaz de suscitar uma grande ovação. O ouvinte não
deveria ser abandonado num estado de excitação, ao contrário, a sua
sensibilidade, após haver atravessado as paixões mais diversas da
música, deveria voltar ao equilíbrio. O repouso e a calma, o retorno à
ordem dos sentimentos, uma vez cessados o entusiasmo e a excitação,
estão como que integrados à composição. Haendel certamente queria
emocionar e sacudir o ouvinte, sensibilizá-lo, mas, em seguida, trazê-lo
novamente ao estado original e deixá-lo partir tranquilo, em harmonia.
O título original da primeira impressão feita por Walsh em 1740
supervisionada por Haendel, é o seguinte: “ TWELVE GRAND CONCERTOS IN
SEVEN PARTS FOR FOUR VIOLINS, A TENOR VIOLIN, A VIOLONCELO WITH A THOROUGH BASS
FOR THE HARPSICHORD. COMPOS’D BY GEORGE FREDERICK HAENDEL PUBLISHED BY THE
AUTHOR, LONDON ...”As partes de oboé citadas anteriormente são aqui
omitidas, assim como a cifragem da parte de violoncelo solo — o que
indica a presença de um segundo instrumento de contínuo. Haendel,
indubitavelmente, escolheu a versão mais simples e mais vendável, pois
as diversas possibilidades bem como o uso corrente para a execução de
concertos deste gênero eram suficientemente conhecidas desde Corelli e
Muffat, e qualquer músico podia modificar a instrumentação conforme
as suas possibilidades particulares e aquelas do lugar de execução.

211
Sendo os Concerti grossi de Haendel estreitamente aparentados aos
de Corelli, o “inventor” do concerto grosso, as modalidades de execução
tanto de uns como de outros deveriam certamente ser também muito
semelhantes. Por sorte, há uma testemunha confiável, que imitou e
descreveu o estilo de Corelli em suas próprias obras: Georg Muffat. Ele
teve ocasião de ouvir os primeiros Concerti grossi de Corelli sob a
regência do compositor em Roma, fato que o estimulou a compor obras
análogas: “É bem verdade que os belos concertos a que pude assistir em
Roma no novo gênero, não só me animaram como também despertaram
em mim algumas ideias...” Em seguida, descreve as diversas
possibilidades de execução: “Pode-se tocá-los apenas a três...” (Isto se
aplica muito particularmente aos Concerti de Haendel, que são
concebidos do começo ao fim à maneira de trio-sonatas; somente no fim
do trabalho de composição é que foi acrescentada a parte da viola, que
ora parece uma parte realmente obbligato, ora dá a impressão de um
corpo estranho, sem lógica no movimento das vozes, encaixando-se nas
diversas lacunas que subsistem na escrita musical.) “Pode-se tocá-los a
quatro...”; neste caso, é necessário simplesmente reagrupar os soli e os
tutti.
“Pode-se arranjá-los como um concertino completo a três, com dois
violinos e violoncelo”, em oposição ao concerto grosso, a orquestra do
tutti, na qual as violas são dobradas “em proporções apropriadas”,
portanto, de acordo com o número de primeiros e segundos violinos que
se tem à disposição. Os concerti podem, assim, ser tocados por
orquestras que vão da menor à maior, e é o que justamente indica a
tradição também para os de Corelli Na página título de seus Concerti
grossi de 1701, Muffat escreve ainda que as peças podiam ser tocadas
com pequena formação, “mas também, muito mais calorosamente, ser
divididas em dois coros, a saber, um grande e um pequeno”. Deve-se
também tocar o concertino, o trio solista, “simplesmente com o
acompanhamento de um organista”, ou em outras palavras, o concertino
deve ter seu próprio instrumento de contínuo (o que explica a cifragem
de Haendel da parte de violoncelo de contínuo na partitura autogra fada
e em outras fontes). Muffat, inclusive, já faz referência ao acréscimo (ad
libitum) de oboístas: “mas se... alguns oboés franceses... puderem tocar
graciosamente...” Sob certas condições, ele deseja até mesmo confiar -
lhes o trio solista, com o acréscimo de “um bom fagotista”. Estas
possibilidades muito flexíveis da interpretação ideal se constituem na
característica essencial deste gênero que é o concerto grosso. O que quer

212
dizer que tanto a forma quanto as possibilidades práticas de execução
foram mantidas desde Corelli até Haendel e até um pouco depois; para
várias gerações, concerto grosso significou não só um determinado
gênero de música instrumental, como também o modo de execução
correspondente.
Neste contexto, me parece muito importante a questão da disposição
dos músicos. Os tratados contemporâneos descrevem constantemente
dois coros (subentende-se naturalmente grupos instrumentais), dispostos
a distâncias bastante grandes, às vezes repartidos na largura ou
comprimento através de toda a sala. Efetivamente, quando o concertino
(o trio solista) é tocado pelos primeiros músicos da orquestra — como
infelizmente é o que quase sempre acontece hoje — um bom número de
efeitos, que aparecem claramente na partitura e são desejados pelo
compositor, perdem todo o seu sentido; por exemplo, no primeiro
Concerto, a segunda metade dos três primeiros compassos, onde os dois
violinos solos tocam as mesmas notas. Esta divisão das vozes não fará
qualquer sentido se tudo for tocado dentro da orquestra. Mas, se ao
contrário, o concertino encontrar-se em um outro lugar, esta separação
das vozes será compreendida como uma resposta ao tutu (há ainda
inúmeras outras passagens semelhantes). Mas mesmo a execução
alternada entre ripieno e concertino precisa de uma separação espacial
para funcionar bem.
Para nossas execuções em concerto, experimentamos diversas
disposições e chegamos à conclusão de que todos os efeitos exigidos
pela partitura ficam muito mais valorizados quando o concertino — com
o seu instrumento de contínuo — se posiciona à direita e atrás; portanto,
situado ao lado do ripieno, mas afastado deste.

Desta maneira, o diálogo concertino-ripieno torna-se, de um lado,


muito claro e, de outro, os jogos de sonoridade que se encontram em

213
alguns movimentos (como por exemplo: Concerto 11, quarto
movimento, compassos 27-40, e passagens semelhantes; Concerto V,
quarto movimento, entre outros) adquirem todo o seu sentido. Além
disso, os movimentos em que concertino e ripieno tocam juntos se
revestem de uma coloração muito particular e convincente, pois não só
todo o aparelho sonoro está de certo modo envolvido pelos instrumentos
de contínuo, como não se ouve mais as vozes superiores vindo
unicamente da esquerda, como é usual, mas vindo também da extrema
direita. Disso, resulta um efeito sonoro espacial muito particular.
O contínuo pode ser tratado de maneira diferente em cada um dos
concertos e até mesmo de um movimento para outro; o ideal seria dispor
de dois cravos (um para o ripieno e outro para o concertino) e,
eventualmente, ainda um órgão e um ou mais alaúdes, usados de todas
as maneiras possíveis.
Quanto ao emprego dos sopros, sabe-se que Haendel, assim como
muitos outros compositores de sua época e predecessores seus na
Inglaterra, como Henry Purcell, utilizava frequentemente oboés e
fagotes sem indicá-los explicitamente na partitura; esta era sem dúvida
uma questão que estava principalmente ligada ao tamanho da formação
e ao número de músicos de que se dispunha. Nos Concerti I, II, V e VI,
podemos restringir-nos às partes de sopro escritas por Haendel. De
acordo com os seus princípios, os oboés e o fagote destinam-se sem
dúvida a dar plenitude e corpo ao ripieno com grande formação, a
aumentar o brilho em passagens virtuosísticas, tocando com precisão as
notas iniciais e finais das coloraturas e ainda tornar mais clara a escrita
em diminuições complexas, executando a voz do baixo sem ornamentos.
Segundo estes princípios, poder-se-ia também acrescentar um ou dois
oboés e fagote aos Concerti III, IV, V, VIII, IX e XII. Os Concerti VII e
XI são inquestionavelmente peças destinadas unicamente a cordas.
Gostaria ainda de destacar uma particularidade da notação barroca,
à qual não se dá muita atenção e que aparece frequentemente na obra de
Haendel: trata-se do agrupamento em grandes compassos, que determina
uma parte essencial da articulação e do fraseado. Infelizmente, esta
notação, que pode indicar muita coisa para um músico, se acha suprimida
de quase todas as edições modernas, de tal forma que não se pode mais
ver como o próprio compositor notou a obra. Este agrupamento de vários
compassos se exprime assim: o compasso “habitual” (por exemplo 3/4)
é deduzido a partir da indicação de compasso, enquanto que barras de
compasso só são colocadas, por exemplo, de quatro em quatro

214
compassos, mas às vezes também irregularmente. Alguns musicólogos
acreditam que a razão de tal escrita seria unicamente a simplificação pois
deste modo seria possível acomodar mais facilmente as passagens
constituídas de valores de notas muito pequenos; estou firmemente
convencido de que se trata de uma forma de escrita diferenciada e sutil
e que, de qualquer maneira, necessita figurar no texto musical editado e
não apenas no prefácio da edição. Nesta série de Concerti grossi, 17
movimentos foram notados desta maneira.
Os Concerti grossi op. 3 de Haendel (em oposição ao opus 6) são
também conhecidos como “concertos de oboé”. Durante o século XIX,
foram assim batizados para que se pudesse distingui-los dos Concerti
grossi op. 6, considerados como “concertos para cordas” e como tal
executados. De lá para cá, muita coisa mudou, o nosso conhecimento a
respeito destas obras e de suas modalidades de execução evoluiu,
fazendo com que estas denominações anteriores perdessem o sentido; os
“concertos de oboé” são obras passíveis de ter as mais variadas
formações instrumentais e onde quase todos os instrumentos têm uma
participação solista: flautas doces, flautas transversas, oboés, violinos,
violoncelo — e nos “concertos para cordas”, oboés e um fagote são
também empregados como um meio de colorir a sonoridade do tutti e
também de produzir contornos mais nítidos.
Gostaria agora de tratar da sonata a tre18 em Haendel. Esta forma
está intimamente ligada ao concerto grosso: o concertino, o grupo solista
do concerto grosso, tanto em Corelli como em Haendel, é formado por
dois violinos (ou, no caso de concertos para instrumentos de sopro, por
dois instrumentos de sopro) e contínuo. Os Concerti grossi são, portanto,
uma modalidade ampliada dos trio-sonatas concertantes. O trio-sonata é
a forma mais característica da música de câmara barroca, e sua época
dourada vai do início do século XVII até meados do século XVIII. É
muito interessante estudar nascimento, evolução e observar, por
intermédio desta pequena forma, como se deram as transformações
históricas tanto musicais quanto espirituais.
Foi no século XVI que se desenvolveu pela primeira vez unia
música instrumental totalmente independente. Suas formas, retiradas dos
madrigais italianos e das chansons francesas e, naturalmente, também da
música de dança folclórica, foram desenvolvidas segundo figuras típicas
da execução dos instrumentos então utilizados. Estas canzone

18
Ou trio-sonata. (N. da R .)

215
instrumentais, também chamadas fantasias, eram escritas a várias vozes
— de três a cinco — sendo que todas elas tinham igual importância,
numa escrita em imitação.
Quando, por volta de 1600, o solista, o músico individual, começou
a dominai o campo da música (em oposição aos grupos vocais e
instrumentais dos séculos precedentes), a escrita da música instrumental
polifônica também se viu transformada. As vozes externas — soprano e
baixo — foram contempladas com um papel mais importante, enquanto
que as vozes intermediárias cada vez mais se viram reduzidas a uma
função de mero recheio harmônico e acompanhamento. O número de
vozes, é verdade, era muitas vezes ampliado para seis, o que, no entanto,
não significava uma ampliação de fato, pois se tratava da antiga escrita
a cinco vozes na qual o soprano era dividido. Estas duas vozes superiores
tinham igual importância e a elas estava destinada uma função
inteiramente nova e das mais barrocas: “concertar”, dialogar entre si.
A época barroca concebia a música como um “discurso de sons”,
com o solista construindo o seu “discurso” a partir das regras de retórica;
naturalmente o diálogo, a conversa, a controvérsia, eram a forma mais
interessante de discurso. Esta é a razão principal pela qual a música
barroca exige tão frequentemente dois ou mais solistas. Quando, numa
escrita instrumental a seis vozes com duas delas fazendo as partes
superiores concertantes (coisa muito frequente em Brade, Scheidt,
Monteverdi), se abandona as vozes de acompanhamento intermediárias
— que de certo modo possuem um caráter de contínuo — para que os
dois solistas sejam acompanhados apenas pelo baixo-contínuo, obtém-
se um trio-sonata; foi exatamente assim que os primeiros trios foram
construídos. Os primeiros trio-sonatas verdadeiros encontram-se nas
coleções de balés e de canzone, já desde o início do século XVII.
Desde muito cedo, tem-se duas formas rigorosamente distintas: a
suíte de danças (a futura sonata de câmara) oriunda do balé e a sinfonia
ou sonata (sonata da chiesa) proveniente da canzona instrumental. Por
volta de 1700, estas duas formas foram frequentemente misturadas, as
sonatas de câmara foram acrescidas de movimentos introdutórios, que
na verdade pertenciam ao estilo das sonatas de igreja, e as sonatas de
igreja, passaram, por sua vez, a incluir minuetos ou gigas. (A evolução
ulterior conduziu diretamente à forma de sonata clássica.) O trio-sonata
está intimamente ligado ao violino. No século XVII, todos os violinistas
italianos que eram também compositores, como Marini, Uccelini,
Pesenti, Cazzati, Legrenzi, Corelli, Vivaldi, escreveram trio-sonatas,

216
principalmente para dois violinos e baixo-contínuo (cravo, com um
violoncelo dobrando a linha de baixo). Naturalmente, os trio-sonatas
eram também escritos em outros países: alguns apoiando-se diretamente
no modelo italiano, a ponto de estarem ligados a este pela mesma linha
de evolução e outros procurando conjugar novos elementos estilísticos
com o ideal italiano, como é o caso das Pièces en trio de Marin Marais
ou dos Trios de Couperin. Nestas obras francesas, é toda uma tradição
inteiramente diversa que se acha confrontada com o estilo italiano. Aqui,
o diálogo não é o elemento decisivo; as duas vozes superiores “dizem”
juntas a mesma coisa, em uma “língua” extremamente refinada e
articulada. Os compositores franceses não tinham, como os seus colegas
italianos, uma predileção pelo violino e utilizavam frequentemente em
seus trios instrumentos de sopro, flautas e oboés, além de gambas.
Quanto aos compositores alemães do século XVIII, eram sobretudo os
mestres do chamado “Les gouts réunis”, aliando elementos estilísticos
italianos e franceses. Isso foi feito à larga por Bach, Telemann ou
Haendel nos trio-sonatas, do que resultou uma disparidade estilística
compensada pelo estilo pessoal de cada compositor. Assim, os trio-
sonatas deste período tardio reúnem todos os elementos que marcaram
este gênero abundante ao longo de sua história secular, seja as formas
peculiares ao estilo de igreja ou de câmara, as particularidades
específicas do modo de expressão musical dos músicos italianos ou
franceses ou ainda o emprego dos mais diversos instrumentos.

217
É um erro bastante difundido acreditar que, para ura músico, a par-
titura. a apresentação gráfica, seja meramente uma indicação que lhe
mostra que notas devem ser tocadas, a que velocidade, com que inten-
sidade e com que nuanças expressivas. A notação, tanto das vozes
separadas quanto da partitura completa, possui, além do conteúdo,
puramente informativo, uma irradiação sugestiva, uma magia à qual
nenhum músico sensível pode escapar, querendo ou não, tendo ou não
consciência disto. Embora esta irradiação também emane dos textos
musicais impressos, ela decididamente surge com muito mais. força de
um manuscrito, e mais ainda quando se trata de um manuscrito
autógrafo, do punho do compositor. Para todo músico, a escrita musical
é a representação gráfica de um evento sonoro que vive na sua
imaginação. É, pois, natural que o conteúdo emocional se manifeste no
gesto da escrita: é simplesmente impossível escrever uma passagem
allegro perturbadora ou uma harmonia angustiada com notas bem
arrumadinhas e limpas. A expressão de cada trecho deve, portanto,
manifestar-se de um certo modo na notação e transmitir-se forçosamente
ao músico executante, sem que ele tenha sequer necessidade de pensar a
respeito. Por este motivo, é para nós de grande importância conhecer a
obra que iremos executar no seu original, se possível a partitura original,
ou pelo menos uma boa edição fac-símile desta. A repercussão disso
sobre a execução pode ser muito grande, tanto sob a forma de
descobertas conscientes, como inconscientemente, pelo simples efeito
da sugestão mágica que emana da escrita.
O fac-símile da partitura original de Jephta de Haendel oferece, por
um lado, uma visão emocionante e inspiradora do processo de trabalho
deste compositor e, por outro, um grande número de indicações diretas
a respeito da execução, como uma partitura impressa nunca o faria.
Haendel compunha ainda segundo o método tradicional, que naquela
época já tinha cerca de cento e cinquenta anos; em primeiro lugar as
vozes extremas, portanto o baixo como fundamento e uma ou duas vozes
superiores. Por vezes, anotava, também nesta primeira fase de trabalho,
determinadas ideias a respeito da instrumentação, como as entradas de
novos instrumentos e às vezes também as partes intermediárias vocais e
instrumentais, principalmente nos trechos executados
contrapontisticamente, deixando em branco as linhas destinadas às vozes
restantes. Nos recitativos, antes de compô-los, escrevia simplesmente o

218
texto em cima do mais alto dos dois pentagramas reservados para este
fim. É comum encontrar, ao pé de uma página, indicações sobre o
andamento do trabalho, como por exemplo: “começado em 21 de
janeiro”, “terminado em 2 de fevereiro o 1? ato”, “completado em 13 de
agosto de 1751”, etc.
De tudo isto tira-se claramente a seguinte conclusão: esta primeira
fase de trabalho era, para Haendel, o processo de composição
propriamente dito; a obra estava, portanto, “terminada”, inteiramente
composta. A propósito, esse sistema não é característico apenas de
Haendel; era o antigo método de trabalho acadêmico. Muitas com-
posições dos séculos XVII e XVIII (principalmente na Itália e na França)
só são encontradas desta forma, segundo nossos critérios, inacabada. O
“preenchimento”, o fato de completar a harmonia orquestral ou vocal
não era, portanto, uma parte essencial da composição, mas algo que dizia
respeito ao executante; aqui surgia uma clara distinção entre a “obra” e
sua “execução”. Esta diferença de apreciação ainda é perceptível nas
partituras de Haendel, que, ao concluir a composição, escrevia
“terminado” (geendiget) e, após a segunda fase de trabalho, em que
compunha as vozes intermediárias, fazia algumas correções, diminuía
um trecho, aumentava outro, mudava as árias de lugar, efetuava
modificações de texto, compunha os recitativos, etc., acrescentava
“completado” (völlig). Justamente em Haendel, é muito fácil reconhecer
estas duas fases de trabalho por suas escritas diferentes: cuidadosa, bem
ordenada e claramente disposta na primeira fase; jogada apressadamente
no papel na segunda. Na partitura de Jephta, há uma característica
aparentemente suplementar: a doença progressiva dos olhos, que
obrigava Haendel a interromper seu trabalho muitas vezes, dificultava -
lhe a escrita de tal modo que a notação parecia completamente diferente
antes e depois de cada crise; vê-se literalmente, nos fragmentos escritos
após 13 de fevereiro de 1751, como o compositor deve ter precisado
colar os olhos no papel para poder escrever.
O alcance das modificações, cortes e remanejamentos é parti-
cularmente visível na segunda fase do trabalho. Examinando-se este
processo pode-se constatar que, com frequência, Haendel compunha
certos trechos, depois os considerava inadequados à passagem em
questão, riscava-os e os substituía por outro. Muitas vezes os substituía
por uma composição mais antiga que tinha à mão, ou por uma passagem
de uma outra obra que houvesse riscado, ou então compunha uma nova
passagem. Raramente a peça riscada desaparece por completo; na maior

219
parte das vezes reaparece em um novo contexto, numa outra obra. Nestas
transformações — apesar de diferenças consideráveis, como trocas na
disposição do texto ou transposição para uma outra tessitura — o caráter
emocional fundamental permanece, contudo, sempre preservado;
observa-se, inclusive, que as ideias musicais, em sua forma definitiva,
na maior parte das vezes adquirem igualmente a sua irradiação mais
forte. (Este método de trabalho é muito próximo dos diferentes
procedimentos de paródia 19 de Bach, em cuja obra sempre constatamos
surpresos que a última forma com o novo texto, logo parodiada, é
artisticamente a mais convincente.)
Quando Haendel empregava fragmentos de obras mais antigas,
recorria também sem maiores escrúpulos às composições de outros
mestres, sempre que o caráter ali estivesse representado de maneira
particularmente correta. Bom exemplo disso é o caso em que tomou
emprestada uma longa passagem dos primeiros e segundos violinos do
Concertina em fá menor de Pergolesi, para servir como vozes de violino
obbligato no coro “Doubtful fear...” (compassos 54-63), o que confere
aos apelos homofônicos 20 “Hear our pray’r” um caráter extremamente
insistente. Tais inclusões eram, naturalmente, feitas na primeira fase de
trabalho; pode-se ver claramente no manuscrito que as duas vozes dos
violinos foram as primeiras a ser escritas.
A ária de Jephta “Waft her, angels, through the skies...” ilustra de
modo particularmente claro as voltas que o compositor deu para chegar
à forma definitiva da partitura. Além da ideia fundamental, não parece
ter restado muito da primeira fase de trabalho, salvo os quatro compassos
introdutórios; vê-se como Haendel jogou; fora alguns compassos, até
mesmo uma página inteira, corrigiu, riscou novamente... Com todas as
rasuras, a peça preenche sete páginas., das quais pouco mais do que três
foram definitivamente usadas.
Dentre os ensinamentos mais importantes que se pode tirar de um
manuscrito, deve-se mencionar as numerosas correções das indicações
de andamento: a ária de Iphis, “Tune the soft melodious lute” foi

19
Na sua aplicação à música, a palavra significa “no estilo de” alguma obra,
ou “que faz uso de material temático” de tal obra. É um tipo de
“empréstimo” que desempenhou importante papel na composição de
missas, no século XVI. (N. da R.)
20
Homofônica é a música na qual as vozes se movem em bloco, sem
independência rítmica. (N. da R.)

220
inicialmente indicada por Haendel como larghetto, o que foi pos-
teriormente riscado e substituído por andante. Estas indicações de
“tempo” traduziam, naquela época, também o caráter da peça, bem como
a forma da mesma: um larghetto não é somente mais rápido, que um
largo, como também possui um outro caráter. Andante não significa
apenas uma certa técnica de composição — num tempo relativamente
determinado — sobre um baixo regular, mas também, entre outras
coisas, é uma advertência para que não se escolha um tempo demasiado
lento. Há inúmeros exemplos deste gênero. Certas indicações de tempo
e de fraseado resultam das indicações de compasso, das barras de
compasso e das cifras das pausas. Como muitos outros compositores da
época (inclusive Bach), Haendel escreve barras de compasso de
comprimentos diferentes e as coloca a intervalos de alguns compassos,
de tal modo que unidades maiores de um determinado contexto apareçam
mais claramente. (Infelizmente, este método muito prático é ignorado
pela maioria dos editores atuais.
Quanto mais se reflete a respeito destas questões, mais claro fica
que, para nós, músicos, o manuscrito do compositor não pode ser
substituído por uma bela impressão, pela melhor edição. Mesmo
deixando-se de lado a força sugestiva que emana do manuscrito, e que
nenhuma impressão possui, este oferece certas informações concretas
que desejamos, de preferência, receber da fonte mais direta e pura, e não
através de laboriosas revisões críticas.

221
A suíte, como conceito musical, designa uma série, uma sucessão
de peças, que são antes de mais nada danças. O próprio Bach, na verdade,
nunca denominou suas suítes como tal, fazendo do nome do importante
movimento de introdução, a “Ouverture” (Abertura) o título da obra
inteira. Tais peças, contudo, são verdadeiras suítes, e estão incluídas
dentre as últimas obras deste gênero muito antigo.
Nos primórdios da música ocidental propriamente dita, que se
confundem com o início da verdadeira polifonia no século XII, a música
de dança era executada por menestréis profissionais. Fazia parte da
música popular, e ninguém teria a ideia de colocá-la no mesmo pé que a
música erudita, sacra ou profana. Os círculos dos dois gêneros
praticamente não se misturavam. Quando muito, poderia acontecer de
menestréis serem requisitados para execuções de obras sacras em igrejas,
o que, contudo, não era bem-visto pelas autoridades eclesiásticas. Apesar
desta distância, não se pôde evitar que, a longo prazo, se estabelecesse
uma influência mútua. Os menestréis tocavam suas árias "de dança para
camponeses e príncipes e com isso a virtuosidade dos menestréis passou
a penetrar nas esferas sociais superiores da música culta, tanto profana
como sacra. Em contrapartida, as velhas danças populares tradicionais
também passaram a ser executadas a várias vozes, num engenhoso
entrelaçamento das diferentes partes, pois não se queria mais renunciar,
mesmo neste gênero, ao esplendor sonoro da música erudita.
Infelizmente, não se pode dizer mais nada a respeito da música de dança
desta época, „ pois não tendo sido notada, ela se transmitiu de uma
geração de menestréis a outra, certamente com algumas ligeiras
modificações de acordo com a moda.
Desde muito cedo, certas danças se dividiam em duas partes; à
dança andada seguia-se a dança saltada (Nachtanz).21 O músico tocava,
portanto, duas vezes a mesma ária, mas sob formas rítmicas diferentes:
primeiro num andamento moderado, depois, rápido e fogoso.
Frequentemente, a dança lenta era executada em compasso binário e a
dança rápida em compasso ternário. Pode-se considerar este par de
danças como o embrião da suíte.

21
O binômio Pavana (dança processional, andada)-Galharda (dança saltada)
um exemplo típico. (N. da R.)

222
Naturalmente, o estilo musical das danças ia constantemente
adaptando-se à moda dominante de cada época. Além disso, observa-se
a ascensão social de certas danças isoladas, que de rústicas danças
camponesas se transformaram em danças de moda nas cortes, antes de
caírem em desuso e serem substituídas pelas novas danças que ganhavam
os meios nobres. No século XVI, foram impressas as primeiras coleções
de danças. Nestas coleções, à maioria das vezes, as danças são agrupadas
de acordo com sua espécie. Assim, surgem reunidas, nos livros de danças
de Attaingnant, de 1529 e 1530, todas as danças do mesmo gênero.
Cabia, então, aos músicos fazer a escolha das peças, montar “suítes” e
muitas vezes procurar a dança saltada que se fazia seguir à dança andada.
Apesar de todo o rigor das fronteiras que a separavam da música
erudita, esta se deixava continuamente fecundar pela fonte inesgotável e
original que constituía a música de dança. A longo prazo a nobre música
erudita não podia, na verdade, ignorar tal concorrência. Pouco a pouco,
os mais famosos compositores começaram também a escrever danças.
Contudo, permanecia uma certa distância, ou melhor, uma diferença de
status, entre os compositores de música de dança e os de música erudita
sacra e profana. (Assim é que ainda no século XVII, os balés das óperas
parisienses eram compostos por um maitre de bailei e os da ópera de
Viena pelo “compositor de ballet” Heinrich Schmelzer, que, aliás,
escrevia também “música séria”.)
Uma vez de posse deste tesouro, que constituía uma vigorosa fonte
de inspiração, os grandes compositores não cessaram de ampliar as
diferentes formas e estilizá-las, fazendo delas criações artísticas lias
quais frequentemente se reconhecia com dificuldade a dança original.
Assim, surgiu ao lado da música para o uso cotidiano, uma série de
coleções não mais destinadas à dança; tratava-se de música puramente
instrumental, com o propósito exclusivo de dar prazer aos ouvintes e aos
executantes. Praetorius escreve, no prefácio de sua Terpsichore, em
1612, que “todos os tipos de danças, mesmo aquelas que são tocadas na
França pelos mestres de dança franceses, e diante de mesas principescas,
podem também muito bem servir, em ocasiões de festividades, para a
recreação e o divertimento”. Esta música de dança feita para concerto
trazia, desde o início, a marca das festas e da corte.
A execução dos breves movimentos de dança naturalmente sofria,
muito com a falta de ligação entre as peças. Mesmo as relações temáticas
que se tentava algumas vezes estabelecer entre as peças isoladas não
traziam, na verdade, uma solução. Era necessário encontrar uma peça

223
inicial adequada para dar à suíte, como um todo, uma forma viável e
definitiva. Até então, colocava-se no início uma peça mais ou menos
apropriada, retirada da sequência de danças, como por exemplo a
suntuosa pavana, com seus passos deslizados, que, contudo, no início do
século XVII, já havia saído de moda; ou então a séria allemande, que,
desde meados do século XVII, quase não era mais dançada (Mersenne),
mas que, apesar disto, continuou sendo um movimento de suíte dos mais
apreciados. Na segunda metade do século, tentou-se finalmente utilizar
também movimentos de introdução livres. O inglês Matthew Locke, por
exemplo, escolheu a fantasia em suas suítes para consort,22 a quatro
gambas, enquanto que o austríaco Heinrich Biber preferiu a sonata
italiana em sua Mensa Sonora de 1680.
No decorrer do século XVII, surge, ao lado da antiga e verdadeira
música de dança, e da suíte composta de danças estilizadas e destinada
ao concerto, uma outra forma de música puramente instrumental: a
sonata polifônica. Formou-se a partir de diversas formas da música vocal
e era, principalmente, destinada à igreja. Seus adágios e allegros eram
uma música inventada de maneira totalmente livre, sem qualquer
referência às danças. Como descendentes diretos, do estilo de imitação
dos antigos franco-flamengos e da época palestriniana, obedeciam
normalmente às regras da escrita fugato: as diferentes vozes entram uma
após a outra com o mesmo motivo, e participam do desenrolar posterior
da peça como parceiros em condições de igualdade. Os dois principais
representantes da música instrumental, a suíte e a sonata, se constituíram
em símbolos musicais tanto da polaridade sacro-profano como da
oposição corte-igreja. •Ora, esta sonata desempenhou também um papel
no desenvolvimento •da suíte no sentido de chegar-se a uma forma
musical acabada. Ela podia ser perfeitamente usada como movimento de
introdução e consequentemente dar uma certa coesão ao encadeamento
das várias danças.
Foi a França de Luís XIV que deu à suíte a sua forma definitiva e
fez dela uma obra brilhante, a mais importante no campo da música de
corte profana. Lully, o genial compositor da corte, criou, a partir do

22
Consort é um conjunto de instrumentos da mesma família, .sendo que
o mais comum era o consort of viols, de violas da gamba. Quando
instrumentos de famílias diferentes locavam juntos, ocorria um broken
consort. (N. da R.)

224
antigo ballet de cour, uma forma de ópera tipicamente francesa, na qual
o balé desempenhava um papel essencial. Suas óperas continham,
portanto, movimentos de dança os mais diversos que, na época de suas
execuções, tornaram-se tão célebres quanto melodias populares. Estas
danças de óperas, arranjadas como suítes, eram tocadas diante do rei e
nos palácios dos príncipes. Apesar de Lully jamais ter composto suítes
propriamente ditas, suas suítes de ópera tornaram-se modelos para a
chamada “suíte francesa” que foi, através de seus discípulos e
imitadores, difundida por toda a Europa. Como as suítes de ópera de
Lully eram precedidas por uma abertura, o problema essencial que
afetava este gênero se viu subitamente solucionado. A abertura, uma
criação de Lully, deu, a partir de então, à suíte francesa a sua fisionomia
definitiva.
Nas primeiras óperas francesas o comum era tocar-se movimentos
instrumentais derivados do par de danças solenes: intrada-courante ou
pavana-galharda. Lully combina em suas aberturas uma seção inicial
lenta, uma seção central em estilo fugato — na qual são inseridos os
solos (frequentemente de oboés) — e uma seção final, que retoma os
elementos temáticos do início. Para as seções inicial e final, Lully
escolheu a allemande com seu ritmo pontuado, que já havia provado sua
eficiência como movimento de introdução. Como formalmente não era
mais possível uma ampliação, ele introduziu, entre os dois trechos, uma
sonata italiana em fugato. Graças a esta ideia genial, a “abertura
francesa”, o movimento de introdução contrastante, ganhou a forma que
conservaria durante décadas. A suíte, completamente formada agora, era
um autêntico produto do espírito francês: de extrema liberdade, no
conjunto, concisa na sua expressão, rigorosa e clara na elaboração dos
detalhes. A construção do conjunto da obra era de uma liberdade sem
limites, a um nível jamais permitido em qualquer outra forma musical.
Tanto para o compositor, que podia inserir na suíte praticamente
qualquer ideia musical, como para o intérprete, que podia e devia
organizar a sequência de movimentos de acordo com seu gosto e
vontade. Nunca se estabeleceu regras rígidas para a sequência dos
movimentos. Mesmo na forma definitiva da suíte francesa, havia
coleções (como, por exemplo, a do gambista da corte Marais), nas quais
se encontrava mais de um movimento do mesmo tipo para que uma
escolha fosse feita segundo as circunstâncias, a oportunidade e o humor
do intérprete. A liberdade era, porém, compensada por um grande rigor
e concisão das formas dos próprios movimentos. Mantinha-se os mo-

225
vimentos tão breves quanto possível, com suas melodias reduzidas, a
uma extrema simplicidade. Eram como que ditos espirituosos, nos quais
qualquer palavra inútil deve ser evitada. Leblanc diz em 1740:
A imitação da dança pela disposição de sons na reunião de diversas
figuras, como o entrelaçamento dos passos nas danças figuradas; a
regularidade em um certo número de compassos... tudo isto formou o
que se chama pièces [peças], uma verdadeira poesia na música” (em
oposição à prosa das sonatas). “A nação francesa, ávida de honra,
entregou-se inteiramente ao que se chama o chant, vale dizer, um
compartimento na atmosfera que forma a figura numa Pièce para se
cantar ou tocar, comparável ao compartimento das linhas de buxo do
qual resulta um desenho no soalho das Tulherias.” Pode-se também
traçar paralelos com o mobiliário do período de Luís XIV, com seus
contornos de grande clareza geométrica que contrastam com suas
superfícies ricamente marquetadas. Mesmo os minuetos e gavotas mais
simples e curtos são decorados com uma multiplicidade de ornamentos
nas notas isoladas e nos grupos de notas. Estes ornamentos não são, de
maneira alguma, improvisados, tal como era costume na música italiana,
ao contrário, há uma grande lista de trilos, mordentes, coulés etc. que
deveriam ser executados em lugares muito precisos. Certos compositores
chegavam mesmo a prescrever exatamente até os mais complicados
vibratos e glissandos.
Os “lullistas” — nome com que os alunos de Lully se autobatizaram
— levaram a suíte francesa aos demais países europeus. (Somente a
Itália, cuja mentalidade era totalmente estranha a este gênero, deixou de
ser atingida por esta onda.) A suíte despertou especial interesse na
Alemanha, onde as cortes dos príncipes tentavam não só imitar a postura
da corte de Versalhes, como também adotaram a nova música francesa.
Com isto, surgiram interessantes conflitos entre os representantes dos
diferentes estilos. Foi a partir da música instrumental francesa, italiana
e alemã, com suas formas mais importantes — a suíte dos lullistas, o
concerto e o estilo polifônico — que se constituíram “Les gouts réunis”.
Esta maneira de escrever música não é apenas um conglomerado dos
estilos, pois o compositor tinha a liberdade de escolher, como forma
principal, o estilo que achasse apropriado, podendo introduzir a todo
momento outros elementos. Encontram-se assim nas Ouvertures de
Bach, que são sobretudo escritas à maneira francesa, muitas
características das outras tendências, reunidas numa síntese
autenticamente bachiana.

226
As peças encontradas nas Suítes de Bach retornam sempre às formas
tradicionais. É certo que naquela época já se tinham transformado em
peças de concerto livres, e pouco tinham em comum com seus modelos
dançados. Os nomes dessas peças deviam, como um tipo de descrição de
gênero, em primeiro lugar indicar a proveniência de determinada dança.
Mattheson escreve a respeito: “Uma allemande para se dançar e uma
allemande para se tocar são tão diversas como o céu e a terra.” Assim,
deve-se imaginar o tempo e o caráter de cada movimento como muito
variáveis, mesmo que cada dança preserve seu caráter típico.
Esboçaremos adiante a história destas danças.
A allemande na verdade não aparece expressamente com este nome
em nenhuma das suítes orquestrais de Bach; mas as partes lentas de todas
as quatro Ouvertures são nada mais nada menos que allemandes
estilizadas. No século XVI, o tempo desta dança era bastante rápido, e a
melodia simples e cantante. Como a allemande praticamente já não era
mais dançada no século XVII, deixava grande margem à imaginação dos
compositores. Assim como a maioria das outras danças, foi-se tornando
cada vez mais lenta à medida que ia evoluindo. No início do século
XVIII, era uma peça solene, engenhosamente elaborada. Walther a
descreve em seu Lexikon (1732): a allemande “...numa parte (suíte)
musical é como que uma proposição, da qual as suítes restantes (os
movimentos seguintes) decorrem; ela é escrita com seriedade e
gravidade e assim deve ser executada”. As allemandes alemãs e
francesas, nesta época, são muito pontuadas de maneira incisiva ou
escritas num movimento corrente regular de semicolcheias. Ambas as
estruturas rítmicas encontram-se igualmente nas partes lentas das
Ouvertures de Bach. Com isso, frequentemente, se produzem
cruzamentos de grande interesse, quando certas vozes mantêm o ritmo
pontuado, enquanto a voz superior ou o baixo, por exemplo, tocam por
cima das semicolcheias contínuas. Isso é o que ocorre, de maneira
especialmente clara, na Ouverture da primeira e da quarta suítes, ao
passo que, na segunda e na terceira, predomina um ritmo pontuado em
todas as vozes.
A courante é uma antiga dança de corte. A partir do fim do século
XVII, ela passou a ser empregada unicamente como movimento
instrumental e não mais como música de dança. Anteriormente,
vigoravam duas formas típicas de courante: uma delas, a italiana, era
escrita em compasso 3/4 ou 3/8 e caracterizava-se por um movimento
rápido, até mesmo apressado, de semicolcheias ou colcheias. A outra, a

227
francesa, sensivelmente mais lenta, era notada quase sempre em
compasso 3/2, mas, frequentemente, engenhosos deslocamentos de
acentos tornavam o compasso (3/2 ou também 6/4) difícil de ser
reconhecido pelo ouvinte. Nas obras de Bach, ocorrem os dois tipos. A
courante da primeira suíte é puramente francesa e se encaixa
perfeitamente na caracterização de Mattheson: “A paixão ou a emoção
de alma que deve manifestar-se numa courante é uma. doce esperança.
Pois, há nesta melodia algo de resoluto, lânguido e alegre; todos os
elementos de que é constituída a esperança.” Estes três elementos são
mostrados por Mattheson em uma courante cuja melodia é tão parecida
com uma outra de Bach, que se pode igualmente tomá-la como exemplo.
A gavota era originalmente uma dança de camponeses francesa que,
no decorrer do século XVI, era também dançada nas cortes, o que lhe
permitiu um aprimoramento musical. Durante alguns séculos, manteve-
se como uma das danças de corte preferidas, até sair de moda no século
XIX. A gavota é ainda hoje dançada em algumas regiões da França. Seu
caráter é de uma vivacidade moderada, de uma alegria que jamais perde
o controle. As gavotas são “algumas vezes tocadas alegremente, mas às
vezes também são lentas” (Walther). Sua anacruse, composta de duas
semínimas, tempera qualquer explosão demasiado viva. Nas suítes para
gamba de Marais, há inúmeras gavotas que são acompanhadas das
seguintes indicações de tempo e de expressão: légèrement,
gracieusement ou gay. A gavota servia frequentemente de base a formas
maiores, como o rondó. O rondó da suíte em si menor é, na verdade, uma
gavotte en rondeau. As que se encontram nas quatro suítes de Bach são
peças moderadas e alegres.
A bourrée também era uma dança popular francesa, que, como a
gavota, foi acolhida nas coleções de danças da corte no século XVI. Em
todas as antigas descrições, ela é apresentada como muito semelhante à
gavota, embora seu tempo deva ser mais rápido. Tem o caráter de uma
dança alegre e bem marcada. Com sua anacruse, que compreende uma
semínima ou duas colcheias, a bourrée já começa com um salto vivo.
A dança de corte francesa mais famosa era sem dúvida o minueto.
Lully foi o primeiro a introduzi-lo em uma ópera e durante o reinado de
Luís XIV, minuetos foram dançados na corte com particular frequência.
O minueto, que, no século XVII, se tornou uma dança de corte, se
originou de uma vivaz dança popular de Poitou, uma região do sudoeste
francês. Como dança de corte, o minueto foi inicialmente tocado rápido
e de modo alegre (Brossard 1703), mas tornou-se, com o tempo, mais

228
medido e lento, ganhando em distinção. Saint-Simon aponta um motivo
concreto para esta evolução o rei Luís XIV. envelhecendo, ordenou que
os minuetos fossem tocados mais lentamente, pois lhe estava sendo
muito penoso dançá-lo com ligeireza; esta regra foi imitada em toda
França. Na Encyclopédie de 1750, o caráter do minueto é descrito como
“moderado e nobre”. Era dançado com movimentos e reverências
comedidas e elegante sobriedade. Esta elegância discreta revela-se
igualmente nos minuetos concertantes do início do século XVIII, para os
quais Mattheson (1739) não requer “nenhum outro sentimento a não ser
o de uma alegria moderada”. Quantz escreve: “um minueto se toca de
uma maneira que chega quase a transportar ou elevar o dançarino, com
semínimas bem marcadas por golpes de arcos um pouco pesados, porém
curtos.”
O passepied é um tipo de minueto mais rápido, muito popular na
Inglaterra (por exemplo, na música de Purcell), onde ficou conhecido
como paspé. A maioria dos passepieds estão escritos em 3/8, e o
agrupamento frequente de dois compassos num de 3/4 (hemiola) dá à
peça um charme rítmico particular. Quantz descreve com grande clareza
a execução destas hemiolas, que se tocam “com um arco curto e
détaché”. Normalmente, o passepied era caracterizado por colcheias
saltitantes: “Sua natureza não está longe de ser frívola”, diz Mattheson.
O passepied da primeira suíte de Bach está bem distante deste esquema.
É decerto sensivelmente mais rápido que o minueto da mesma suíte, mas
de maneira alguma saltitante.
A forlana é uma dança popular selvagem que foi provavelmente
introduzida em Veneza por imigrantes servo-croatas. No século XVIII,
era a dança preferida do povo veneziano. Na música de arte, só foi
empregada para ilustrar a agitação selvagem do povo, como, por
exemplo, no carnaval. O ritmo pontuado estereotipado e a repetição de
curtas sequências musicais sublinham o êxtase brutal desta dança. Türk
escreve, ainda em 1798: “Forlana significa uma dança em 6/4, muito
comum entre a gente do povo de Veneza. Esta dança alegre pede um
andamento bastante rápido.”
É na sarabanda que melhor se observa a transformação de uma
dança rápida em lenta. Originária provavelmente do México ou da
Espanha, era conhecida na Europa, por volta de 1600, como uma canção
dançada licenciosa e erótica. De início proibida — os cantadores de
sarabandas, na Espanha de Felipe II, arriscavam-se a. pesadas penas de
prisão —, a sarabanda já na primeira metade do século XVII estava

229
liberada e era dançada com arrebatamento e selvageria nas cortes
francesa e espanhola. Enquanto na Inglaterra permaneceu por muito
tempo apenas como uma dança fogosa e rápida — Mace diz em 1676.
As sarabandas são em compasso ternário, rápido, porém mais ligeiras e
divertidas que as courantes" —, na França transformou-se, graças a
Lully, já na metade do século, em uma dança de espírito amável, mas
formal. A partir de então, foi-se tornando cada vez mais grave e solene
e com este caráter chegou aos compositores alemães. “A sarabanda, diz
Mattheson, não exprime qualquer outra paixão que não seja a
reverência.” Walther a considera como “uma melodia grave que é
particularmente apreciada pelos espanhóis”.
A origem da polonaise, tão famosa no século XVIII, é imprecisa. É
bem verdade que, desde o século XVI, “danças polonesas” eram bastante
conhecidas e apreciadas por toda a Europa. Tais danças, contudo, não
tinham qualquer afinidade com o ritmo típico da polonaise. Este
começou a difundir-se só a partir do início do século XVIII, depois que
a polonaise foi ficando conhecida em sua forma definitiva: uma dança
altiva, de passos deslizados, que era principalmente tocada na abertura e
colocação dos convidados de uma festa. A polonaise começa com um
primeiro tempo bastante acentuado, coisa que lhe dá “uma franqueza e
uma natureza bastante livre” (Mattheson).
A giga se originou certamente de uma dança popular inglesa, jig,
que, contudo, praticamente não foi dançada no continente, onde muito
cedo foi transformada em peça instrumental. Na época barroca, fez-se o
nome dessa dança derivar de geigen (em alemão, tocar violino), mas esta
interpretação etimológica deve ser aceita com muita prudência. As
primeiras gigas encontram-se nos virginalistas ingleses da época
elizabetana, e Shakespeare, na peça Muita barulho por nada, diz que ela
é “... selvagem, agitada e bizarra”. Sempre foi, portanto, um verdadeiro
allegro. A giga foi introduzida no repertório da suíte pelos virtuosos
franceses do cravo do século XVII, tais como Chambonnières,
d’Anglebert, Louis Couperin e outros. Lully escreveu as primeiras gigas
orquestrais em ritmo pontuado para seus ballets de ópera, ao passo que
os compositores italianos à volta de Corelli desenvolveram nas suas
sonatas de câmara um tipo de giga próprio, concebido como um
movimento regular de colcheias. Formaram-se, assim, tal como se deu
com a courante, dois tipos: a giga francesa, com ritmo pontuado, saltado,
e a giga italiana, com colcheias contínuas, mais virtuosística.
Característico aos dois tipos é o tempo rápido e resoluto. As gigas “têm

230
como característica um zelo ardente e fugaz, um ímpeto que logo se
acalma’ (Mattheson). Bach só se decidiu com clareza a respeito desses
dois. tipos em algumas poucas gigas.
Os compositores franceses entremeavam suas óperas com mo-
vimentos curtos de estilo dançado, cujos nomes designavam tanto a
função que tinham dentro da música de ballet, como o caráter particular
da peça. Como a suíte estava inteiramente livre de qualquer esquema
relacionado a uma ordem ou a um grupamento fixo de movimentos, ela
proporcionava o plano ideal para receber peças de tal gênero, fora do
contexto da ópera. Fez-se uso abundante desta possibilidade, de tal modo
que elementos da música programática, até então raramente
introduzidos, conseguiram desdobrar-se livremente na música de arte.
Assim, diversas imitações — sons de sinos, fanfarra de trompetes,
grunhidos asmáticos, vozes matraqueando, cacarejos de galinhas e
outras coisas mais viram-se elevados à condição de movimentos de
suítes.
A badinerie e a rejouissance — títulos de movimentos particu-
larmente apreciados — pertencem a esta espécie. O primeiro significa
“brincadeira”. É interessante que, mesmo sob tais títulos, se foram
modelando certas formas que, entre si, guardavam uma incrível
semelhança. Isso se deve talvez ao fato de que, naquele tempo, ideias de
outros compositores eram tomadas de empréstimos e retrabalhadas sem
que a coisa fosse considerada plágio. Réjouissance “...significa alegria,
contentamento, e aparece nas aberturas, onde se costuma designar assim
certas peças” (Walther). É simplesmente um termo erudito para indicar
uma “alegre peça final”.
No século XVI, na França e na Inglaterra, denominava-se ária uma
canção séria com acompanhamento instrumental homofônico. Dessa
forma, surgiu na Inglaterra um gênero particular de peças instrumentais
nas quais a voz superior delineava uma doce e insinuante melodia. Na
época de Bach, ária era um termo genérico para designar todo tipo de
peças musicais, mas sobretudo peças instrumentais. Para Telemann, por
exemplo, a palavra tem um pouco o sentido de movimento, pois é como
ele designa as danças de algumas de suas suítes. No entanto, eram assim
designadas essencialmente as peças lentas, com uma voz superior muito
cantada. “Ária quer dizer, em geral, toda melodia produzida vocal ou
instrumentalmente” (Walther); “... esta ária para se tocar... é destinada
aos instrumentos de todo o tipo e é comumente uma breve melodia,
dividida em duas partes, cantável e simples...” (Mattheson).

231
Entre as maiores experiências que se pode proporcionar a um mú-
sico está a descoberta de uma música até então desconhecida. Esta
experiência certamente independe da idade da obra: ouvir pela primeira
vez ou executar pela primeira vez uma música do século XVII ou XVIII
pode ser tão emocionante quanto entrar em contacto com uma nova
composição contemporânea. O encontro com Castor et Pollux de
Rameau foi para nós, do Concentus Musicus de Viena, uma experiência
desse gênero. Naturalmente conhecíamos toda a significação histórico-
musical dos escritos teóricos de Rameau, alguns de nós conheciam
inclusive sua música de câmara e suas obras para cravo, ou mesmo uma
ou outra de suas cantatas. Sabíamos também que suas óperas eram tidas
por ele mesmo e por seus contemporâneos como entre as mais
importantes e mais belas produzidas no século XVIII. Mesmo assim,
esse episódio representou para nós uma aventura, um encontro com algo
totalmente inesperado. Mesmo em nossos sonhos mais audaciosos não
poderíamos imaginar que música tão grandiosa e totalmente
revolucionária para o seu tempo poderia estar contida naqueles volumes
de biblioteca.
Com isso, fomos levados a algumas considerações sobre os fatores
que determinam o caráter efêmero das obras-primas da música ou de sua
importância com relação a épocas posteriores. Por que será que certas
obras estão fadadas a ficarem célebres, conhecidas e executadas por toda
parte? Certamente, existe o julgamento “infalível” da história que separa
o joio do trigo. Mas uma obra. antes de passar por essa prova, precisa
ser tirada dos arquivos em que dorme, muitas vezes há séculos, e ser
executada. No caso de Rameau, é possível que isso tenha acontecido
devido ao fato de que a música francesa, no século XVIII e mesmo um
pouco mais tarde, permaneceu bastante isolada do resto da vida musical
europeia que teve um importante papel. A França foi o único país a não
acolher a linguagem internacional da música barroca italiana, à qual
opôs seu próprio idioma musical, totalmente diverso. Pode •ser que a
música francesa sempre tenha sido, para o restante dos europeus, uma
espécie de língua estrangeira, cuja beleza só se pode mostrar àquele que
dela se ocupe intensamente e com paixão. Mesmo conosco, músicos, isso
acontece. Enquanto a música italiana agrada de imediato, mesmo em
uma execução com várias falhas, a música francesa primeiro precisa ser
trabalhada assiduamente até que o músico e o ouvinte cheguem a seu

232
conteúdo, à sua mensagem. É bem possível que justamente este temor
tão difundido face à música francesa tenha retardado o renascimento das
grandes obras de Rameau.
Ao realizarmos os primeiros ensaios orquestrais de Castor et Pollux,
tínhamos necessidade, a cada momento, de relembrar que aquela música
havia sido composta em 1737, na época das grandes obras de Haendel e
Bach! A novidade antes nunca ouvida desta linguagem sonora deve ter
sido, para a época, algo de muito perturbador: trata-se da mesma
linguagem de Gluck e, sob certos aspectos, já aquela dos clássicos
vienenses, com uma antecipação de mais de quarenta anos. Parecia-nos
impossível que um único compositor tivesse podido inventar um
tratamento da orquestra e uma instrumentação tão radicalmente novos.
Neste campo, Rameau não teve predecessores. Sem dúvida, sua
harmonia é surpreendente, fascinante; os seus contemporâneos fora da
França consideravam algumas de suas dissonâncias e desenvolvimentos
harmônicos francamente chocantes e detestáveis. Alguns compositores
mais antigos, franceses ou mesmo ingleses, já haviam, no entanto,
abordado harmonias bastante avançadas.
Tivemos exatamente o mesmo sentimento que Debussy descrevera
em uma crítica sobre a execução de Castor et Pollux, ou seja, que
praticamente tudo quanto se havia atribuído anteriormente a Gluck, já se
achava há muito tempo em Rameau, numa forma musicalmente perfeita.
Mesmo sem ter conhecido o texto de Debussy, o paralelo Gluck-Rameau
ficou claro para nós desde o primeiro instante. Assim, numa época em
que a evolução se fazia sensivelmente mais lenta que a nossa, inovações
no domínio da realização sonora, musical e dramática que situamos nos
anos de 1770 foram na realidade cristalizadas 40 anos antes. O que
significam, então, esses “paralelos” musicais? Rameau viveu cedo
demais, este deve ter sido o seu “erro”.

233
As óperas de Rameau são as primeiras grandes obras-primas do
gênero escritas na França no século XVIII e constituem, certamente, um
dos pontos altos de toda a música francesa. Examinaremos e
explicaremos aqui brevemente a situação curiosa na história da música
destas obras que permaneceram durante tanto tempo pouco conhecidas,
e praticamente desconhecidas fora da França.
Desde o início do século XVII a Itália se tomara inquestiona-
velmente o centro da música europeia. O temperamento extrovertido dos
italianos e a imaginação ardente dos meridionais deram origem à
contrapartida musical do novo espírito “barroco”. Monteverdi e seus
discípulos haviam criado obras dramático-musicais inteiramente novas:
as primeiras óperas.
Por mais constantemente que se estivesse enfatizando a predo-
minância do texto, da expressão dramática, sobre a musical e se tentasse
imprimir esta ótica através de escritos teóricos (a música devia apenas
reforçar a expressão do texto, de uma forma refinada, mas servil), a
própria essência da língua e do temperamento italianos era tão musical,
que por si mesma — por causa da preponderância do meio abstrato —
foi assumindo cada vez mais a primazia, até que o libreto não passasse
de um simples veículo, mais ou menos apropriado, para a expressão
musical. Esta tendência é inerente à própria natureza da relação entre
texto e música, a tal ponto que todos os dogmas do tipo “a música deve
estar a serviço da palavra” acabam por perder seu efeito com o passar do
tempo. Assim é que se observam periodicamente, a intervalos regulares,
reformas que tentam trazer de volta às origens este fascinante gênero
artístico, ao longe de seus quase quatrocentos anos de história.
Foi com o italiano Jean-Baptiste Lully que a ópera tomou nova
forma, surgindo a típica versão francesa deste gênero, a tragédie lyrique,
em clara oposição à ópera italiana. Com apenas 14 anos de idade, Lully
chegou a Paris, em 1646. Com 20 já era diretor da música instrumental
do rei e, com 39, mestre incontestável da vida musical francesa. Em
pouquíssimo tempo adaptou-se ao caráter francês, tão radicalmente
oposto ao italiano, e, após estudos profundos, tornou-se um eminente
compositor de música de dança, cuja importância naquele país era então
considerável. Juntamente com o poeta Quinault criou a versão francesa
do novo gênero, a ópera. Alguns elementos foram tomados emprestados
da Itália, tais como o recitativo, os prelúdios em forma de ritornello

234
antes dos ariosos e sobretudo os elementos musicais de base que
constituíam a abertura e a chaconne. Mas, em razão das exigências
musicais inteiramente diversas dos franceses, bem como das condições
específicas da língua e da poesia francesa, esse material acabou sendo
elaborado e transformado em um gênero totalmente diferente.
Lully havia introduzido na abertura da ópera, tal como ele a criara,
elementos da música instrumental italiana, mas inserindo-os num
esquema formal, genial e ao mesmo tempo rigoroso, que estabeleceu por
um século a forma definitiva da abertura francesa. Processo semelhante
aconteceu com a chaconne: esta antiga dança instrumental, construída
sobre um baixo que se repete com variações no soprano, foi transformada
por Lully numa grandiosa peça conclusiva de um dos atos e até mesmo
muitas vezes da ópera inteira. A chaconne das óperas de Lully podia ser
cantada por um coro ou tocada pela orquestra, e sua forma era fixada
com grande precisão. A antiga predileção dos franceses pelo ballet
precisava também ser levada em conta na nova forma do drama musical:
assim é que todas as óperas "de Lully são entremeadas com movimentos
de dança os mais diversos, quase sempre puramente orquestrais, mas
algumas vezes também cantados. Tais interlúdios dançados logo
receberam uma ordem predeterminada: todo ato deveria ter, perto do seu
final, uma espécie de “teatro dentro do teatro”, chamado divertissement,
que, à semelhança da masque no teatro musical inglês, não tinha pra -
ticamente nenhuma ligação com a ação principal.
Naturalmente o próprio drama, como na ópera italiana, estava
baseado 110 recitativo. Esta modalidade de canto falado, Lully foi
buscá-la na Itália, mas, devido à nova língua, conferiu-lhe uma forma
totalmente diferente. O recitativo italiano, ritmicamente, era executa do
de uma maneira nada rigorosa, numa linguagem declamada realística e
livre, com alguns acordes secos de cravo ou alaúde colocados sob o fluxo
melodioso da fala natural. Os libretos das óperas francesas utilizavam
conscientemente uma linguagem nobre, rigorosa, cujo ritmo era ditado
exatamente pela métrica (na maioria dos casos, versos alexandrinos).
Lully estudou a melodia e o ritmo da língua escutando os grandes atores
dramáticos franceses, cuja elocução passou a ser o modelo de seus
recitativos. Em seguida, parece que ocorreu o contrário: foram os
grandes atores que passaram a estudar a maneira pela qual os cantores
executavam o recitativo. Assim, Lully deu à língua uma forma
declamada, impondo-lhe um ritmo muito preciso que desejava executado
literalmente. As outras formas do canto, principalmente a ária, foram

235
também trabalhadas por Lully de maneira totalmente diferente do que se
fazia na Itália. Neste país, o que importava, a partir da metade do século
XVII, era oferecer ao cantor uma ocasião de fazer uma demonstração
vocal, no bel canto ou na ária de bravura. Na França, a ária era
inteiramente subordinada à obra e ao desenvolvimento da ação e bem
menos diferenciada do recitativo.
Conclui-se, pois, que o italiano Lully criou uma variante francesa
totalmente autônoma de drama musical, a partir do material da ópera
italiana — recentemente formulado — e do antigo ballet francês; esta
variante se revelou, por muito tempo, como a única alternativa. A ópera
francesa permaneceu sempre como uma combinação de todas as formas
da expressão dramático-musicais: canto, música instrumental e dança.
Lully e Quinault determinaram igualmente, de uma vez por todas, a
forma geral da tragédie lyrique, que era como se chamava então a ópera
séria na França, conferindo-lhe um esquema formal, por assim dizer,
obrigatório: a ação, sempre de cunho mitológico, devia necessariamente
ser conduzida pela constante intervenção dos deuses e era interrompida,
após cada um dos cinco atos, por um divertissement — um ou mais
interlúdios ligeiros, dançados e cantados, e mais ou menos alheios aos
acontecimentos —, no qual se recorria às maquinarias de teatro tão
importantes, máquinas voadoras, fogos de artifício, enfim toda uma
variedade de engenhos capazes de dar brilho ao espetáculo. O
compositor tinha, aqui, a ocasião de introduzir as várias formas de dança
francesas e de árias dançadas, sem maiores preocupações com a
coerência dramática. O ponto culminante da música e do drama se
achava no indefectível tonnerre, a tempestade desencadeada pelos
deuses no último ato. Todo compositor devia, de algum modo, nesse
esquema, dar testemunho de sua capacidade a partir de um tema dado.
Na França, havia uma concepção de canto inteiramente diferente da
que vigorava nos demais países europeus, cuja orientação eia dada pelo
bel canto italiano. A França foi o único país onde os cantores italianos,
notadamente os castrati, não chegaram a impor-se. Até mesmo a
classificação das vozes, ali, era diferente. Os personagens femininos
eram cantados por sopranos ou mezzos, de acordo com o caráter da parte
(a extensão compreendida, nos dois casos, era do dó3 ao sol4). Para os
papéis masculinos (inclusive nos coros), havia haute-contres — tenores
extremamente agudos, que provavelmente cantavam em falsete (dó2 dó4),
tailles — tenores graves ou barítonos agudos — e baixos.

236
Jean-Philippe Rameau (1683-1764) já era um compositor famoso
quando, aos 50 anos de idade, escreveu sua primeira ópera. Nas
primeiras décadas de sua carreira musical, atuou como organista em
diversos teatros de província e finalmente, com 40 anos, chegou a Paris,
onde permaneceu até o fim de seus dias. Embora levasse uma vida
pessoal bastante retirada e modesta, encontrou assim mesmo alguns
protetores afortunados. O arrematante dos impostos régios, Le Riche de
la Pouplinière, que o instalou em sua casa, permitindo-lhe trabalhar com
sua orquestra particular, foi também o seu grande protetor na corte.
Rameau era incrivelmente autocrítico; sua mulher relata que ele, por
princípio, jamais contava qualquer coisa a respeito dos trabalhos que
realizara durante os primeiros 40 anos de sua vida. Após ter descoberto
a ópera, quando já tinha uma certa idade, nada mais teve importância
para ele, e escreveu, nos vinte anos seguintes, perto de vinte diferentes
obras cênicas.
A sua primeira ópera Hippolyte et Aricie foi um estrondoso sucesso,
embora tenha ao mesmo tempo desencadeado uma daquelas
controvérsias graças às quais é célebre a história da ópera francesa e que,
a bem da verdade, giravam sempre em torno da obra do próprio Rameau.
Como compositor francês, Rameau estava estreitamente ligado à
tradição lullista e se considerava como um lullista, sem, contudo, ser,
como ele próprio diz, um “imitador servil” deste. Contudo, acusavam-
no de haver traído a ópera francesa de Lully, e nela introduzido
harmonias italianas (entre outras o acorde de sétima diminuta), de
compor uma obra destrutiva. Os partidos rivais se denominavam
“ramistas” e “lullistas”. Com o tempo, a contenda se agravou
sensivelmente, ganhando em violência. Na querela dita “dos bufões”,
Rameau representava agora o partido francês, defendendo a antiga
tradição da qual se sentia o representante e como tal reconhecido, contra
os partidários de um grupo de bufões italianos que haviam executado La
Serva Padrona de Pergolesi, à guisa de intermezzo entre os atos de uma
ópera de Lully. O que se achava em jogo neste conflito eram
simplesmente os princípios da música italiana e da música francesa. O
principal adversário da música francesa e de Rameau nesse episódio foi
Jean-Jacques Rousseau, que na sua célebre “Carta sobre a música
francesa” condenou em termos bastante severos a música francesa,
inclusive a de Rameau, reconhecendo valor apenas na italiana.
Finalmente triunfaram os amigos de Rameau, o que ficou manifesto com
a brilhante acolhida à segunda versão de Castor et Pollux em 1754. Vinte

237
anos mais tarde, o conflito iria explodir novamente; desta vez com Gluck
que tomara o lugar de Rameau, e mais uma vez em torno das diferenças
entre a música de ópera italiana e francesa. A virulência com que este
conflito cultural era levado chegava ao ponto de invadir a vida pri vada.
Antes de fazer-se uma visita ou aceitar alguém como amigo, havia de
perguntar-se: é “gluckista” ou “piccinnista”?
Apesar do tradicionalismo notório de Rameau, pode-se com-
preender a aversão que lhe votavam os “lullistas”, pois além das formas
que lhe haviam sido legadas e que ele respeitava rigorosamente, Rameau
descobriu um verdadeiro arsenal de meios de expressão totalmente
novos, inventando-os mesmo, que foi o primeiro a utilizar na história da
música. Escrevia um tipo de ópera francesa à antiga que soava como
música incrivelmente moderna e de vanguarda. Ê possível que se
encontre em sua obra o tão procurado elo perdido entre o barroco e o
classicismo. A harmonia de Rameau é rica é ousada e está décadas à
frente da evolução ainda por processar-se. Basta observar a
instrumentação das suas grandes peças orquestrais (abertura, chaconne),
os seus coros, e, principalmente, os seus recitativos acompanhados, para
saber que se está diante de autênticas invenções: os sopros, que na
música barroca são utilizados apenas como registros ou então para solos,
são acrescentados por Rameau à orquestra de cordas, como pilares
harmônicos autônomos ou pedais sustentados. Assim, diversos
sentimentos podem ser representados simultaneamente, d© um modo
autêntico e inteligível. Acreditava-se até pouco tempo que esta técnica
só havia sido inventada por Gluck trinta anos mais tarde. Rameau
introduziu diversos níveis intermediários entre a ária de
acompanhamento orquestral e o recitativo secco, no propósito de
melhorar o desenvolvimento dramático. Recitativos acompanhados de
todos os tipos, uma instrumentação e uma harmonia de incrível riqueza
de cores para a época, fornecem sonoridades até então jamais ouvidas.
As partes dos instrumentos de sopro são geralmente obbligato e sempre
escritas de modo específico para cada instrumento, o que é
particularmente claro no caso dos fagotes, que de maneira alguma são
empregados como simples reforço do baixo.
Foi sobretudo nos recitativos accompagnati que Rameau pôde
elaborar uma pintura sonora extremamente naturalista: “imitar a na -
tureza” era um princípio básico da estética musical francesa do século
XVIII. No tonnerre do quinto ato de Castor et Pollux, raios, trovões,
tempestades, todos os excessos da natureza estão aí representados

238
através de selvagens tremolos e outras passagens das cordas, de duros
acordes dos sopros e de notas sustentadas acentuadas. Esta sombria
imagem de tempestade se transforma, por meio de uma pintura sonora,
quase romântica, em uma imagem quente e ensolarada: dos seis
instrumentos de sopro que haviam representado os raios e trovões, resta
apenas uma flauta melodiosa, quando o céu torna-se claro e Júpiter desce
de lá com doçura e tranquilidade. De grande modernidade é também a
conduta autônoma das partes de fagote, fundadas unicamente numa
sonoridade pictórica. Rameau foi o primeiro a elevar este instrumento
até o lá3. Quase todas as aquisições dos clássicos parecem ter aqui suas
raízes. Quando se pára para pensar que, em 1737, na época em que esta
ópera foi escrita, Bach e Haendel estavam criando seus oratórios e
cantatas e as inovações de Mannheim estavam ainda embrionárias, pode
ter-se uma ideia da enorme importância do gênio de Rameau para a
história da música.
Castor et Pollux foi acolhido com entusiasmo pelos contemporâ-
neos. De la Borde escreve em um Essai sur la musique: “Mais de cem
apresentações desta bela ópera não foram suficientes para diminuir os
aplausos ou o entusiasmo do público; ela fala ao mesmo tempo à alma,
ao coração, ao espírito, aos olhos, aos ouvidos e à fantasia de toda Paris.”
Por volta de 1900, Castor et Pollux foi novamente executada, pela
Schola Cantorum de Paris; Debussy estava presente e escreveu sobre a
obra. O paralelo com Gluck imediatamente saltou-lhe aos olhos: “A
música de Gluck encontra na obra de Rameau raízes profundas...
podemos fazer paralelos singulares, que permitem afirmar que Gluck só
pôde ocupar o lugar de Rameau no teatro francês através da assimilação
e apropriação das belas criações deste último.” Assim descreveu
Debussy o início do primeiro ato: “Após uma abertura, se elevam as
vozes suspirantes de um coro fúnebre celebrando os funerais de Castor.
Imediatamente nos mentimos envolvidos por uma atmosfera trágica...
simplesmente gente que chora como você e eu. Então chega Télaxre e o
pranto mais doce e tocante saído de um coração apaixonado é aqui
traduzido... e no começo do segundo ato: “...A ária de Pollux (“Nature,
amour”) tem um acento tão pessoal e uma construção tão nova, que o
tempo e o espaço desaparecem, deixando a impressão de que Rameau é
um contemporâneo, a quem poderíamos externar nossa admiração na
saída...” Chegamos à última cena deste ato: “Hebe, a deusa da juventude,
dança à frente dos prazeres celestiais... jamais a sensação de uma volúpia
calma e tranquila encontrou expressão tão perfeita; ofuscado por aquele

239
mundo sobrenatural, Pollux carece de toda sua força espartana para
escapar desta magia e ainda pensar em Castor. (Eu também já o havia
esquecido há bastante tempo).”
Ao contrário da música instrumental, que era, na maior parte das
vezes, escrita com grande precisão, os compositores escreviam suas
óperas, desde o início, apenas em forma de rascunho. Isto é típico das
óperas italianas de Monteverdi e Cavalli e também das óperas francesas
de Lully e seus sucessores. Ora, com relação justamente às execuções
parisienses, há inúmeras partes orquestrais que foram preservadas, de tal
modo que, em certas obras, poder-se-ia reconstruir toda a partitura.
Naturalmente, é muito difícil determinar, com base nestas parles, o que
foi escrito pelo próprio compositor; em muitos casos, tais partes eram
certamente escritas pelos próprios músicos ou por hábeis arranjadores,
saídos, talvez, do atelier do compositor. A maior parte das óperas de
Rameau existe no papel desta forma. Há duas partituras impressas de
Castor et Pollux, uma da primeira versão, de 1737, e a outra da segunda
versão, de 1754-, ambas sob forma d:e rascunho: a abertura está notada
apenas em dois pentagramas que trazem simplesmente algumas
indicações a respeito da instrumentação (na seção allegro, aparecem
expressões como “violinos”, “oboés”, “fagotes” ou “todos”); as partes
de flautas e oboés estão algumas vezes escritas por inteiro, coisa,
entretanto, que jamais acontece com as vozes intermediárias. A
dinâmica, contudo, está indicada precisamente, até mesmo com valores
intermediários. O material de orquestra das primeiras apresentações que
sobreviveu possibilita reconstituir uma partitura composta, em princípio,
a cinco vozes, com duas violas, que dá uma impressão de grande
autenticidade. Sua qualidade me faz concluir que as vozes intermediárias
e os detalhes da instrumentação são também obra de Rameau, ou pelo
menos indicam que ele as supervisionou, algumas indicações das
partituras impressas sob-forma de rascunho são escrupulosamente
respeitadas nestas partes. Existe igualmente uma série de arranjos que
certamente não teriam recebido a aprovação de Rameau (pois a
instrumentação se desvia demais de suas indicações), mas que, de
qualquer forma, revelam a grande margem de liberdade de que
dispunham os executantes. (Há uma partitura na qual, além das flautas,
oboés e fagotes, aparecem trompas, o que certamente não era intenção
do compositor; e nesta mesma versão, os solos de fagote, típicos de
Rameau, estão confiados às violas, e outras coisas mais que poderíamos
observar.)

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Além do texto musical e da instrumentação, sempre é necessário
esclarecer, em cada ópera barroca, a questão da improvisação e da
ornamentação. Com relação a este aspecto, os franceses eram muito mais
rigorosos do que os italianos: não toleravam absolutamente qualquer
ornamentação arbitrária, mas somente os ornamentos rigorosamente
codificados da música instrumental, que requeriam uma execução muito
refinada e refletida. Em cada caso é preciso decidir-se sobre o tipo de
ornamento em questão (se é antes ou depois do tempo, se a apogiatura é
longa ou breve, com ou sem terminação, etc.). Escreve Rameau: “...por
mais bem executado que esteja um ornamento, assim mesmo irá faltar
qualquer coisa que lhe confere todo o valor se ele não for orientado pelo
sentimento: nas suspensões, nos sons inflados ou diminuídos, nos
batimentos de trilos chamados cadências, haverá um muito ou muito
"pouco, um cedo demais ou tarde demais, uma maior ou-menor demora,
enfim faltará aquela justa medida exigida pela expressão, pela situação
e que, inexistindo, fará de um ornamento algo bastante insípido.” Estes
ornamentos foram retomados da música instrumental na música vocal,
inclusive nos coros.
Rameau situa-se no final de uma evolução que começara quase cem
anos antes com Lully. Apesar de, como compositor, ter sido moderno em
todos os sentidos, inclusive profético, Rameau considerava-se guardião
da tradição francesa de ópera. Conservou os divertissements e até o
tonerre, e acreditava que a irrealidade das cenas dos deuses era urna
característica essencial de uma autêntica ópera. No entanto, descobriu,
como nenhum outro compositor antes dele e como muito poucos depois,
caminhos inteiramente novos para as formas tradicionais.

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Carta de 3 de julho de 1778, escrita em Paris: “... Precisei fazer uma
sinfonia para a abertura do Concert spirituel... Ela agradou
excepcionalmente. No ensaio tive muito medo, pois, em toda minha vida,
nunca ouvi nada pior: o senhor não pode imaginar de que modo, por duas
vezes seguidas, arranharam e castigaram a pobre sinfonia... gostaria de
ter ensaiado mais de uma vez, mas como há sempre tantas peças para
ensaiar, não dava mais tempo... a sinfonia começou, e logo no meio do
primeiro alegro havia uma passagem que com certeza deveria agradar,
com que todos os ouvintes se entusiasmariam — e de fato houve uma
grande ovação — pois quando a escrevi sabia que efeito ela iria produzir,
assim a fiz repetir, e ao fim... a mesma acolhida da capo. O andante
também agradou, mas especialmente o último alegro — pois como tinha
ouvido dizer que aqui todos os últimos alegros começam, como os
primeiros, com todos os instrumentos, atacando imediatamente e quase
sempre em uníssono, resolvi começar com dois violinos sozinhos, em
piano, e por oito compassos apenas — nisto, de repente, um forte — de
modo que os ouvintes, como eu esperava, fizeram ch... no momento do
piano — e quando, súbito, estrondou, o forte... escutar o forte e bater
palmas foi uma coisa só — ...”
12 de junho: “... Eu não falhei no primeiro coup d’archet,23 o que já
é muito....”
9 de julho: (Mozart escreve sobre uma conversa com Le Gros, o
organizador do Concert spirituel) “... A sinfonia obteve pleno sucesso e
Le Gros está tão contente que diz ser a sua melhor sinfonia — o andante,
contudo, não teve a sorte de agradar-lhe — ele diz que há modulações
demais — e que é muito longo — mas isto é porque os ouvintes se
esqueceram de aplaudir tão demorada e for temente como na primeira e
na última peça. Pois o andante, para mim em primeiro lugar, e depois
para a maioria dos ouvintes — conhecedores e amadores — é muito bem-
sucedido, é justamente o contrário do que diz Le Gros — ele é muito
natural — e curto. Mas, para agradá-lo e com ele, alguns outros também,
compus um segundo andante — cada qual no seu gênero está bem —
pois cada um tem o seu caráter — o último, entretanto, me agrada ainda
mais.”

23 Em francês no original: golpe de arco. (N. do T.)

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O primeiro trecho foi extraído de uma das mais belas cartas de
Mozart. Ele a escreveu na noite seguinte à morte de sua mãe. Na primeira
parte, ele procura acalmar o pai e prepará-lo para este golpe do destino,
contando que sua mãe está seriamente enferma. Logo depois, se segue a
descrição despreocupada e viva da primeira audição da Sinfonia
Parisiense. Esta justaposição tem para nós algo de chocante — mas para
o homem profundamente religioso daquela época, a morte era uma
companheira familiar.
A orquestra parisiense para a qual a Sinfonia foi escrita possuía uma
rica formação, para a época. Além das cordas, havia flautas transversas,
oboés, clarinetes, fagotes, trompas, trompetes e tímpanos. Mas,
precisamos imaginar a sonoridade desta orquestra totalmente diferente
daquela com que estamos acostumados hoje em dia: os instrumentos de
cordas possuíam na época uma sonoridade muito mais doce e incisiva;
as trompas e os trompetes tinham o dobro do comprimento dos de hoje
e, por isso, uma furação mais estreita, que lhes conferia um-som magro
mas — principalmente no caso dos trompetes — agressivo e brilhante;
não havia ainda pistões, de modo que só se podia obter os sons naturais.
As madeiras eram também mais doces e cada um dos instrumentos tinha
um timbre bem característico. No geral, uma orquestra deste tempo devia
ter, mesmo no forte, uma sonoridade muito menos volumosa que uma
orquestra moderna de formação idêntica. A sonoridade era mais
colorida, menos redonda e menos homogênea do que é hoje. Não havia
um maestro regendo, mas o primeiro violino dava as entradas de sua
estante.
O relato de Mozart a respeito da execução da Sinfonia é para nós
especialmente interessante, pois este precioso testemunho do compositor
nos mostra não apenas o efeito produzido sobre o público, mas também
a concepção atenta deste mesmo efeito. Mozart estudou os programas do
Concert spirituel de modo a obter o máximo de efeito e, para isso, valeu-
se, de forma refinada, de seu talento inventivo e de sua imaginação. É
pena que as frases de Mozart relatando o efeito produzido por esta
sinfonia não estejam impressas na primeira página da partitura dos
regentes. Elas prestariam uma inestimável ajuda a muitos regentes
sequiosos de autenticidade, mas que não tiveram a sorte de ter a carta
nas mãos.
A sinfonia começa com um unisono forte de toda a orquestra. Este
premier coup d’arche — o ataque forte súbito de todas as cordas — era
uma conhecida particularidade do Concert spirituel, já aguardada no

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começo de toda sinfonia. Que prazer quase infantil o de Mozart, com o
seu efeito no finale! Ao invés do ataque forte esperado — e também do
aguardado coup d’archet do movimento final — ele faz tocar os
primeiros e segundos violinos num dueto de filigrana, até resolver a
tensão artificialmente criada oito compassos depois, por um unisono
forte que libera toda a orquestra. Infelizmente, só me lembro de
pouquíssimas execuções em que se fez sobressair este efeito.
Que passagem é esta no primeiro movimento, com a qual “todos os
ouvintes se entusiasmaram” e que obteve “uma grande ovação”? E uma
terna passagem em spiccato das cordas em oitavas, sob a qual as flautas
e oboés executam longos acordes, sobre um baixo em pizzicato. Esta
passagem, cujo efeito Mozart já conhecia de antemão, na maioria das
execuções é tocada sem que se preste a devida atenção. O ouvinte atual
não percebe nela nada de especial. Os compositores de épocas anteriores,
ao contrário, podiam contar com um público atento e entendido, que
reparava cada ideia nova, cada efeito de instrumentação, cada
particularidade harmônica ou melódica, e com paixão tomava posições
contra ou a favor. O público atual concentra o seu interesse não na
composição, mas na execução que, diga-se, é julgada com conhecimento
de causa.
As observações sobre o público são, por conseguinte, também
objeto de um interesse particular. Mozart não ficou de forma alguma
chocado com o fato de haver sido aplaudido entre os movimentos, e nem
mesmo enquanto a música estava sendo executada — ele, de certo modo,
até o prevê. Essas manifestações espontâneas mostravam que o
compositor estava sendo compreendido. Sem dúvida, uma parte da
música devia perder-se, na primeira audição, em meio ao eco suscitado
no público e, com isso, os ensaios passavam a ter uma significação
suplementar. É óbvio que após o introspectivo andante não se aplaudiu
ruidosamente. Não se conhece atualmente o andante original, o
movimento considerado por Mozart como o melhor, apesar de ele
próprio considerá-lo da mesma qualidade que o outro. — “Cada qual no
seu gênero está bem.” Observa-se na reação do público a que ponto a
maneira de fazer e escutar música se transformou radicalmente. Outrora,
queria-se estar sempre sendo surpreendido por algo novo, jamais ouvido.
As explosões de entusiasmo dos ouvintes brotavam naturalmente quando
algum genial compositor descobria um efeito especialmente
interessante. O que era conhecido não interessava mais, só se queria o
novo, apenas o novo. Hoje, ao contrário, só nos interessamos pelo que é

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conhecido, muito conhecido. Este desejo de ouvir apenas o conhecido já
foi longe demais — pelo menos é o que nós, músicos, sentimos, espe-
cialmente quando executamos várias vezes dentro de um curto espaço de
tempo, por exemplo, a Sétima Sinfonia de Beethoven, para um mesmo
público; ou então quando angustiadamente sentimos o desinteresse do
público e, por vezes, até mesmo do próprio regente, com relação a obras
desconhecidas, do presente ou do passado.
Isto leva a uma outra reflexão, infelizmente aflitiva, que é
igualmente suscitada pela carta de Mozart. Ele reclama amarga e
desesperadamente de que se havia consagrado muito pouco tempo à sua
sinfonia. “Como há sempre tantas peças para ensaiar não dava mais
tempo...” Mesmo para uma orquestra moderna, há algumas passagens da
Sinfonia Parisiense cujas dificuldades não podem de forma alguma ser
vencidas com uma eu duas leituras; como por exemplo o difícil dueto de
violinos no início do finale. Dessa forma, qualquer sinfonia de Mozart
ou de Haydn que se toque hoje. uma das três ou quatro mais conhecidas,
vamos dizer, esta estará para sempre condenada a uma miserável
existência de Cinderela. A maior parte do tempo dos ensaios é utilizada
pelos regentes para a grande peça final do programa, muito
frequentemente uma obra que os músicos sabem de cor, e somente no
final do último ensaio é que se fará uma leitura muito, muito r ápida da
sinfonia de Mozart, que serve para ser colocada no início do programa,
quase à guisa de aquecimento. “Por sinal, é muito fácil.” E assim, a obra,
que em muitos programas certamente deveria representar o centro de
gravidade musical, é improvisada com indiferença diante de um público
que não demonstra o menor interesse.
Praticamente ninguém duvida que Mozart foi um dos maiores
compositores de todos os tempos. Na prática, contudo, passa-se por cima
de suas obras sem prestar-lhes a devida atenção, dando preferência a
outras cuja qualidade inferior é admitida sem hesitação. Será que isto
realmente depende apenas do volume sonoro?
Do ponto de vista da orquestra, Mozart é um capítulo algo triste.
Muitas de suas obras, as mais esplêndidas, jamais são executadas. Neste
campo, ainda hoje, estamos longe de fazer justiça a um dos maiores
gênios da humanidade.

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Ao longo dos meus numerosos anos de atividade como músico e
professor, foram acumulando-se um grande número de artigos, con-
ferências e notas de aula, dentre os quais escolhi os presentes textos.
Retrabalhei-os ligeiramente, preocupando-me em conservar seu caráter
falado. O artigo “A interpretação da música histórica” data do ano de
1954 e constitui meu primeiro trabalho sobre este tema, por assim dizer,
o “Credo” do Concentus Musicus, fundado nesta época. O capítulo
inicial, “A música em nossa vida”, é o discurso de agradecimento que
pronunciei em Amsterdam por ocasião do recebimento do Prêmio
Erasmo em 1980; é o texto mais recente deste livro.
Para esta escolha, levei em conta principalmente os temas de ordem
geral. Excluí os trabalhos sobre Monteverdi, Bach e Mozart —
compositores cuja obra é o centro do meu trabalho: estes estão
reservados a uma publicação posterior.
Agradeço particularmente à Dra. Johanna Furstauer, que recolheu e
ordenou Iodos os textos; sem seu trabalho, este livro jamais teria
existido.
NIKOLAUS HARNONCOURT

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