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Teoria dos afetos

A teoria dos afetos remonta à Antiguidade, pois para os gregos um determinado modo
musical poderia influenciar os homens de diferentes maneiras, podendo a música servir
de forma ético-moral. Por exemplo, o modo Dórico poderia ser usado graças a sua
serenidade, o Frígio por suas características valentes e guerreiras e já o modo Lídio era
desaconselhável por possuir características afeminadas (GATTI, 1997, pag.16).
A palavra affectus (verbete latino) tem a ver com a palavra grega “pathos” que significa
cada estado do espírito humano, sofrimento e emoção da alma. Platão enumera quatro
afetos que são prazer, sofrimento, desejo e temor; já Aristóteles diferencia onze tipos
baseados na mistura de prazer e sofrimento: desejo, ira, temor, coragem, inveja, alegria,
amor, ódio, saudade, ciúme e compaixão. Esta visão está proposta na obra Retórica de
Aristóteles. Segundo ele, a música possuía qualidade de transmitir impressões e criar
diversos estados de ânimo.
Durante o Renascimento, período em que ocorreu uma mudança de pensamento devido
ao Humanismo, o retorno da cultura greco-romana e da disseminação dos
conhecimentos, houve uma prática (sec. XVI) em que os compositores passaram a ter
uma preocupação em como representar o texto na música. Isto ficou conhecido como
música reservata, onde o sentido musical deveria ajudar no entendimento do conteúdo
textual. A ideia pode ser elucidada no seguinte trecho musical de um compositor franco-
flamengo tardio:

"Adequar a música ao sentido das palavras, exprimir a força de cada emoção diferente,
tornar as coisas do texto tão vivas que julgamos telas deveras diante dos olhos
[...]" (Samuel Quickellberg, cit. in GROUT & PALISCA, 2007, pag.209)

Reservada porque provavelmente restringia-se à casa de um determinado mecenas, onde


as novidades dessa nova prática seriam a inclusão de cromatismos, ornamentos,
variedade modal e contrastes rítmicos. A Teoria dos Afetos, no Período Barroco, foi
possivelmente uma evolução da Música Reservata. Os dois períodos desenvolveram o
mesmo princípio, mas a diferença fundamental entre eles está no método de aplicação ,
pois na Renascença "a harmonia é mestre da palavra" e no Barroco "a palavra é mestre
da harmonia" como nos diz Monteverdi. O Barroco possuía afetos extremos saindo de
uma violenta dor para um trabalho exuberante. É fácil perceber que a representação dos
afetos evidencia um vocabulário mais rico do que aquele que era feito na música
reservata.

Sabe-se que a teoria ou doutrina dos afetos deu-se no período Barroco por volta do
século XVII, baseada em uma antiga analogia entre música e retórica (disciplina que
tem por objetivo estudar a produção e análise do discurso). A inovação do recitativo deu
aos teóricos uma ampla ocasião para observar o paralelismo entre a música e o discurso
(BUKOFZER, 1947, p.388). Os músicos do Período Barroco buscavam novas tendências
de expressão musical e, sobretudo nesse período apareceu uma de suas principais
características, a busca por uma forma de linguagem musical que servisse ao texto de
maneira que os sons pudessem exprimir de fato os sentimentos, como amor, ódio,
felicidade etc.
Rene Descartes (1596-1650) foi um pensador que influenciou profundamente o
pensamento do Período Barroco. Em 1638, compôs sua primeira obra teórica,
intitulada Compendium Musicae, com base na obra Institutione Armoniche do teórico
Gioseffo Zarlino (1517-1590), ele trata da música pela razão, pela mensuração
matemática da afinação dos modos, procura situar o interprete e seu publico como
"almas sentindo música". Na sua ultima obra, o tratado As Paixões da Alma, que foi
publicado em 1649 na Holanda e na França, para responder as perguntas da princesa
Palatina. Descartes descreve vários estados emocionais e seu processo no corpo
humano.

Entretanto, J. Mattheson, um importante tratadista do barroco, na obra Der


Vollkommene Capelmeister, diz:
“A respeito da doutrina dos temperamentos e emoções, especialmente Descartes tem
que ser lido (o tratado das paixões da alma ) por que ele fez muito em música. Esta obra
serve-nos perfeitamente, ensinando a distinguir bem entre as sensações do ouvinte e
como as fontes do som o afetam.” (HARRIS,1993, Dissertation Services)
As Paixões da Alma se divide em três partes, a primeira fala das paixões em geral e de
toda a natureza do homem, a segunda fala das seis paixões primárias, o número e a
ordem das paixões, e a terceira sobre as paixões específicas.

“As percepções que se referem somente à alma, aquelas cujos efeitos se sentem como
na alma mesma e de que não se conhece comumente nenhuma causa próxima à qual
possamos relacioná-las: tais são os sentimentos de alegria, de cólera e outros
semelhantes, que são às vezes excitados em nós pelos objetos que movem nossos
nervos, e outras vezes também por outras causas. “ (Descartes, art.25)
Neste trecho do artigo 25, Descartes fala das percepções que relacionamos com a nossa
alma.

Os teóricos que tentaram classificar e sistematizar os recursos da Teoria dos Afetos


foram principalmente os alemães. A discussão da Doutrina (ou teoria) dos Afetos
começou com os trabalhos de Nucius, Cruger, Schonsleder e Herbst, e tornou-se mais
explicita com Bernhard, finalmente se cristalizando de forma definitiva com Vogot,
Mattheson, e Scheibe ( BUKOFZER, 1947, p.388).

Johan Mattheson (1681-1764) na obra Der Vollkommene Capellmeister de 1739, aborda


os afetos na música, com indicações composicionais, e expõe uma nova visão, onde dá
ênfase à necessidade do compositor conhecer os afetos e as paixões. O compositor de
musica instrumental deveria usar o recurso adequado para cada sentimento como, por
exemplo, para a alegria, utilizar intervalos largos, e para tristeza intervalos pequenos.

Joachin Quantz (1679- 1773) escreveu Versuch einer Aneisung die Flote Tranversiere
zu Spielen (1752) que apresenta elementos de técnica e estilo de execução para flauta,
podendo servir para música vocal e para outros instrumentos. Para ele, o bom interprete
deve saber reconhecer as representações dos afetos, e menciona como fazer esse
reconhecimento.

Os afetos e as tonalidades foram também discutidos pelos autores Marc Antonie


Chapentier, mestre de capela da Sainte Chapelle de Paris, na obra Règles de
Composition, e Jean Phillipe Rameau (1683-1764), compositor e teórico francês no
seu Traité de I’Harmonie de1772. O próprio Mattheson na obra Das Neu-eroffnet
Orchestre (1713) abordou extensamente o assunto.

Quanto aos ornamentos, foi bastante conhecido o trabalho de Francesco Geminiani


(ca.1687-1762) intitulado The art of playing on the violin, com orientações especificas
sobre ornamentos e afetos.
Nem todos os compositores tenham chegado a um consenso em relação às tonalidades e
sua influência nos afetos, tornando desse modo a concepção dos afetos na música um
conceito que tende para uma interpretação pessoal. Mas, o que devemos portanto
salientar é a essência desse pensamento , ou seja ,a música e quais emoções ela pode
despertar no ouvinte e os recursos composicionais que são mais adequados para
evidenciar a representação dos afetos.

TABELA1

Relação entre tonalidade e os afetos por Mattheson:

Ré menor Devoto, calmo, fluente grandioso Sol maior Insinuante, falante


Sol menor Serenidade, amabilidade, vivacidade Dó menor Amável e triste
Lá menor Lamentosa, respeitável e serena Fá menor Suave, serena,
profunda e pesada
Mi menor Pensamentos pesados, aflitos e tristes Si bemol maior Divertido e exuberante
Dó maior Rude e atrevido Mi bemol maior patético
Fá maior É capaz de exprimir os mais belos La maior Paixões lamentosas e
sentimentos do mundo tristes
Ré maior Penetrante e teimosa Mi maior desespero
Si menor Bizarro, melancólico Fá sustenido menor Tristeza, aflição

(MATTHESON,1713)
TABELA 2

CORRESPONDENCIAS ENTRE TONALIDADES E AFETOS – MODO MAIOR

Mattheson Quantz Rameau Charpentier


Dó maior Rude Alegre Alegre Guerreiro
Ré maior Alegre Alegre Alegre Alegre
Mi maior Penetrante Alegre Grandioso Questionador
Fa maior Generoso Prazeroso Majestoso -
Sol maior Amoroso Prazeroso Afetuoso Doce ,alegre
Lá maior Brilhante Alegre Brilhante -
Sib maior Magnífico Alegre Intempestivo -
Mib maior Choroso Cantábile - -

TABELA 3

CORRESPONDENCIAS ENTRE TONALIDADES E AFETOS – MODO MENOR

Mattheson Quantz Rameau Charpentier


Dó menor Triste Melancólico Lamentoso Triste
Ré menor Devoto Terno Compaixão Devoto
Mi menor Aborrecido Terno Terno Lamentoso
Fa menor Doloroso Melancólico Lamentoso -
Sol menor Encanto Terno Afetuoso Magnífico
Lá menor Honroso Melancólico - -
Si menor Melancólico Melancólico Terno Melancólico
 

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