Você está na página 1de 11

Paulo Vianna Sant Anna

FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE


DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM HISTÓRIA DA LITERATURA

A Narrativa Histórica na ficção de Barbosa Lessa

Paulo Vianna Sant’Anna

Artigo para a disciplina de


Literatura e História do Mestrado
em História da Literatura pela
Fundação Universidade Federal do
Rio Grande como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre
em História da Literatura.

Rio Grande, março de 2008.


Paulo Vianna Sant Anna
A Narrativa Histórica na ficção de Barbosa Lessa

Paulo Vianna Sant’Anna1

Resumo

Este artigo tem por objetivo enquadrar o livro “Os


Guaxos” de Barbosa Lessa dentro das teorias sobre ficção
e historiografia. Partindo-se da idéia de que ambas
possuem um discurso narrativo em prol da realidade em
que vive os homens. A pesquisa se embasa na análise de
duas formas narrativas: o discurso científico, profetizado
pela História e o discurso ficcional, defendido pela
Literatura.
Palavras-chave: Os Guaxos, Discurso narrativo, História,
Literatura

Introdução:

A produção bibliográfica do gaúcho Barbosa Lessa2 é bastante diversificada entre


livro de contos, crônicas, biografias, romances, novelas, técnicos, infanto-juvenis e
almanaques, bem como músicas e poesias, além de sua imensa contribuição para o
desenvolvimento do tradicionalismo gaúcho e dos CTGs.

Dentro desta vasta produção, o romance “Os Guaxos” foi selecionado pela forte
confluência entre Literatura e História. A segunda servindo, claramente, como pano de
fundo para a primeira. É preciso ressaltar que Barbosa Lessa era formado em Direito e um
apaixonado pela História do Rio Grande do Sul, por isso, sua bibliografia voltada para os
1
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Letras em História da Literatura pela Fundação Universidade
Federal do Rio Grande (FURG).
2
Luiz Carlos Barbosa Lessa nasceu em 1929, numa chácara nas imediações da histórica vila de Piratini
(capital farroupilha). Indo cursar o ginásio na cidade de Pelotas (Ginásio Gonzaga), aos doze anos de idade
fundou um jornalzinho escolar, “O Gonzagueano”, em que publicou seus primeiros contos regionais ou de
fundo histórico. Para cursar o 2º grau colegial, transferiu-se para Porto Alegre, ingressando no Colégio Júlio
de Castilhos. Aos dezesseis anos de idade já colaborava para uma das principais revistas brasileiras de cultura
(“Província de São Pedro”) e obteve seu primeiro emprego como revisor e repórter da “Revista do Globo”.
Bacharelou-se pela Faculdade de Direito de Porto Alegre (UFRGS) em 1952. A partir de 1989, manteve uma
pequena reserva ecológica no município de Camaquã, onde residiu com sua esposa Nilza, que dedicava-se a
produção artesanal de erva-mate e plantas medicinais. Recebeu o título de Cidadão Camaqüense, além de ser
Patrono de Honra da Casa do Poeta, e duas vezes patrono da Feira do Livro de sua terra adotiva. Na
literatura, infatigável edição de livros e álbuns. Destaque para o romance “Os Guaxos”, prêmio nacional de
romance em 1959 da Academia Brasileira de Letras, os contos de “Rodeio dos Bentos”, o ensaio indigenista
“Era de Até”, o ensaio histórico “Rio Grande do Sul, prazer em conhecê-lo”, a novela policial “O crime é um
caso de Marketing”, o paradidático “Nheçu”, os contos/crônicas/poesias de “Histórias para sorrir” e os
quadrinhos de “Garibaldi Farroupilha”. In: CAPOCAM, Casa do Poeta Camaqüense. Poesia pela Paz:
Antologia IV. Cachoeirinha: Gráfica Odisséia Ltda. 2004. 104p. pp. 07-09.
Paulo Vianna Sant Anna
costumes e tradições gaúchos. Qual a importância deste argumento? A questão é que o
músico e escritor gaúcho, em muitas de suas obras, trabalha com a narrativa ficcional sem
perder o enfoque histórico, dando a este, seu devido papel dentro do romance sem, porém,
perder seu caráter científico.

Antes, porém, de se adentrar mais especificamente na análise da obra do escritor


gaúcho, é preciso reproduzir o conceito de “guaxo” que o autor descreve antes de iniciar o
romance, propriamente dito. Eis que ele define “guaxo” como sendo:

“Guaxo é o pé de milho que nasce por acaso numa roça


abandonada. Ou é o cordeiro sem mãe, que uma das moças da
casa pega para criar e que se alimenta em mamadeira igualzinha
à das crianças. Guaxo, ainda, é o menino que se criou sem o
cuidado dos pais, sem rancho e sem parentes, vivendo ao deus-
dará e entregue à sorte. No grande painel da história do Rio
Grande do Sul as principais figuras se destacam projetadas sobre
manchas, difusas, ao fundo, que foram em boa parte pinceladas
por homens guaxos. Estes se chamaram inicialmente ‘gaudérios’,
que é o mesmo que dizer gente sem pouso, corre-mundo. Na
Guerra do Paraguai ganharam um nome bonito: ‘Voluntários da
Pátria’. [...] Andejando de um rincão para outro – com a viola às
costas ou uma mulher na garupa -, deram um colorido romanesco
à paisagem humana do pampa.”3

Tendo-se uma idéia mais generalizada do conceito de “guaxo”, cabe agora partir
para um estudo mais aprofundado do romance histórico (ou não) da obra de cunho sócio-
psicológico sobre o gaúcho do pampa do pós Guerra do Paraguai, “Os Guaxos”.

Em seu livro “Rio Grande do Sul, prazer em conhecê-lo: como surgiu o Rio Grande
do Sul”, por exemplo, o autor descreve, através do discurso histórico, as origens do Rio
Grande até o surgimento da Imprensa e o primeiro navio a vapor, sem, no entanto, perder o
vínculo literário, ou seja, a obra, em si, retrata o percurso do povo gaúcho ao longo de seu
desenvolvimento social, cultural, político e econômico, de uma forma esteticamente bem
produzida. Em nota introdutória, o autor já segue na esteira da literatura, convidando o
leitor a viajar pelos caminhos do Rio Grande:

“Faz de conta que você está sendo apresentado ao Sr. RS pela


primeira vez. Logo se percebe que ele ainda é muito jovem,
vigoroso. Expansivo e de boa saúde. [...] Puxemos assunto,
indagando sobre os pais dele. Provavelmente ele queira
desconversar sobre tais obscuros dias de nascimento e infância,
mas insista, que vale a pena ouvir a história. Consta que nasceu
de uma índia guarani. O pai, um espanhol espadachim, preferiu ir
colher prata em Potosi e sumiu. Aí um bondoso português se
3
LESSA, Barbosa. Rio Grande do Sul, prazer em conhecê-lo: como surgiu o Rio Grande do Sul. 4ed.
Porto Alegre: AGE. 2002. 191p. p07.
Paulo Vianna Sant Anna
condoeu do desguaritado guri e resolveu tomar conta e adotar.
Volta o outro pai e começa uma briga sem fim.”4

Utilizando-se de metáforas, o autor, nesse exemplo, procura relatar a disputa entre


Portugal e Espanha pelas terras do Rio Grande do Sul, de uma forma que atraia o leitor, já,
a partir da primeira leitura que este faz do livro, utilizando-se, para isso, métodos
empregados pela literatura, isto é, uma linguagem de cunho estético e ficcional que
compõe o ambiente literário.

Quanto ao livro “Os Guaxos”, o objeto de pesquisa deste artigo, propriamente dito,
também se enquadra dentro dos parâmetros históricos conhecidos do Rio Grande do Sul,
porém, seu viés está mais voltado para as características que envolvem o fazer literatura
enquanto objeto de prazer, ou seja, seu intuito está em escrever um romance onde o
contexto histórico serve como pano de fundo, ao mesmo tempo em que tenta alocar as
mulheres como protagonistas em um período em que os homens (seres humanos) viviam
em uma sociedade essencialmente patriarcal.

Outro quesito interessante é a sua relação com a obra de Cyro Martins, em razão de
“Os Guaxos” ser um retrato do “gaúcho a cavalo”, parafraseando a trilogia daquele: “O
gaúcho a pé”. Naquela obra o autor retrata a vida dos homens que trabalham na lida com o
gado, homens tropeiros, como, também, retrata a vida das mulheres que vivem em
estâncias e seu papel no dia-a-dia nas fazendas gaúchas; nesta, mostra a perda de
identidade do gaúcho frete às tecnologias agrícolas e urbanas.

Ficção e História no romance “Os Guaxos”:

Georg Lukàcs para definir o romance histórico em seu livro “La novela histórica”
se utilizou da obra de Walter Scott para formular suas teorias. Desta forma vai construindo
algumas perspectivas do autor para com sua obra, ou seja, por exemplo, no caso de Walter
Scott - precursor do romance histórico - sua obra tem como característica não se situar na
mesma época em que foi escrita:

“Walter Scott rara vez llega a hablar de su propia época. No


plantea em sus novelas los problemas sociales de su presente
inglês ni analiza la creciente agudización de la lucha de clases
entre burguesia y proletariado. Em la medida em que es capaz de
4
Idem. sp.
Paulo Vianna Sant Anna
responderse a si mismo estas cuestiones, lo hace a través de
rodeos, plasmando literariamente las principales etapas de la
historia de Inglaterra en su totalidad.”5

Esta perspectiva ou opinião crítica, não deve ser generalizada, uma vez que, outras
obras podem ser consideradas romances históricos, mesmo retratando a época em que são
escritas. Esta variante, porém, não se enquadra no romance “Os Guaxos”, que segue a
teoria de Lukàcs quanto ao período em que foi escrito e a época em que se passa.

No trabalho de análise do livro se procurou trabalhar as teorias de Lukàcs


utilizando-se outra obra que possui aspectos de romance histórico e que, o próprio autor
revela que o objetivo é resgatar a história da arquitetura de seu país, a França. Esta obra
chama-se “O Corcunda de Notre Dame”, do francês Victor Hugo. O autor em nota
acrescentada à edição definitiva de 1832 – que está em terceira pessoa - declara o objeto e
o objetivo do livro, conforme esta passagem:

“Ele sabe que a arte, sob todas as suas formas, pode esperar tudo
das novas gerações, cujo engenho ainda em germe se vê brotar
nos nossos ateliês. [...] Ele teme unicamente, como nesta obra se
poderá ver, que a seiva tenha desaparecido do velho solo da
arquitetura, que durante tantos séculos foi o melhor terreno da
arte. [...] Mas, em todo o caso, seja qual for o futuro da
arquitetura, de qualquer forma que os nossos jovens arquitetos
resolvam um dia à questão da sua arte, enquanto esperamos pelos
novos monumentos, conservemos os antigos. Inspiremos à
nação, se é possível, o amor da arquitetura nacional. É esse, o
autor francamente o declara, um dos fins principais deste livro; é
esse um dos fins principais da sua vida. [...] O Corcunda de
Notre-Dame oferece talvez algumas perspectivas verdadeiras
sobre a arte da Idade Média, sobre essa arte maravilhosa até
agora desconhecida de uns e, o que é ainda pior, desprezada por
outros.” 6

Neste trecho o autor expõe claramente suas intenções críticas que vão de encontro à
cultura arquitetônica da França e, para que não se torne um compêndio sobre arquitetura,
constrói, em cima desta intentio, um enredo digno de uma boa literatura, como de fato “O
Corcunda de Notre-Dame” o é. Caracteriza-se está obra como “um romance histórico ou
uma história romanceada”?, para se utilizar termos de Regina Zilberman. Acreditando que

5
LUKÀCS, Georg. La forma clasica de la novela histórica. In: _____ La novela histórica. México:
Ediciones Era. 1966.
6
HUGO, Victor. O Corcunda de Notre Dame. Col. A Obra Prima de Cada Autor. São Paulo: Martin Claret.
2006. pp16-17.
Paulo Vianna Sant Anna
a obra de Victor Hugo se enquadra como um romance histórico, a mesma serviu como
exemplo para se trabalhar o livro de Barbosa Lessa.

Esta referência ao livro “O Corcunda de Notre-Dame” serve como embasamento


para o estudo de “Os Guaxos”. Neste livro, o enredo se passa nos anos seguintes a Guerra
do Paraguai (1860-1865) e se prolonga até meados do final do século XIX. Retrata,
através de uma crítica mais “moderna” o papel das mulheres de grandes pecuaristas, como
cuidar dos filhos e trabalhar nas lides domésticas, porém com um fator a mais: o autor
procura denunciar este tipo de vida patriarcalista, fazendo destas mulher seres pensantes e
independentes.

Como estabelecer um ponto convergente no que seria o romance histórico ou a


narrativa ficcional? A História busca através de documentos, vestígios materiais, pinturas
rupestres - chamadas fontes primárias - o norte para a sua pesquisa e conseqüente
divulgação. Mas como os resultados serão divulgados? A partir, normalmente, da forma
escrita. E é exatamente nesta forma de se escrever a História que se estabelecem as
dicotomias. Por um lado, estão as teorias que determinam a ficção ou a narrativa ficcional
para se escrever a História, uma vez que, esta está embasada por um discurso de
representação do real, pois o historiador não possui a vivência/experiência empírica do
processo histórico que relata; por outro lado, os historiadores argumentam que suas teorias
precedem de um estudo metodológico, principiado a partir da separação entre a História e a
Literatura, que ocorreu, mais acentuadamente, com o Iluminismo no século XVIII, onde o
homem passa a ser o centro da própria história e que se confirma, na centúria seguinte,
com a teoria positivista de Augusto Comte. Edgar de Decca ressalta a diferença entre
ambos os discursos:

“Será somente ao longo do século XIX que a historiografia e


romance se distanciarão, estabelecendo a cisão entre verdade e
ficção. Do lado da historiografia, a ciência com suas pretensões
de objetividade na apreensão do real, do lado do romance, ao
contrário, a subjetividade e a imaginação.”7

Esta separação trouxe, até os dias atuais, duas discussões bastante pertinentes. De
um lado está o quanto a narrativa histórica pode ser levada ao campo da literatura, ou seja,
onde termina a História e começa a Literatura, para citar um exemplo; por outro, a questão
7
DECCA, Edgar de. O Que é Romance Histórico: Ou, devolvo a bola pra você, Hayten White. In:
AGUIAR, Flávio. et alli (orgs). Gêneros de Fronteira: Cruzamentos entre o histórico e o literário. São
Paulo: Xamã VM Editora. 1997. 392p. p198.
Paulo Vianna Sant Anna
se inverte e se dá em relação à Literatura, a saber: até que ponto a Literatura pode ser aceita
como fonte histórica?

No entrelaçamento, na justaposição destes dois campos se encontra a obra de


Barbosa Lessa, claro está que conjuga um pano de fundo histórico e um romance ficcional.
Este posicionamento da obra em relação ao seu lugar: ou dentro de um relato histórico ou
dentro de uma obra expressamente literária, Decca aponta uma saída dizendo que:

“[...] tanto a moderna historiografia como o romance partilham


desde suas origens o mesmo ideal, buscam encontrar o sentido da
experiência humana que é histórico, por excelência, não
obedecendo a qualquer sentido de ordem transcendental. A
diferença entre a historiografia e o romance não está portanto
naquilo que ambos perseguem, mas no modo de investigar tais
objetivos. A historiografia direcionou-se para o campo das
ciências e durante o século XIX, acabou firmando um
compromisso estreito com o positivismo e a verdade científica,
acreditando na objetividade do método e da teoria para a
apreensão do mundo real. Caminho diferente acabou percorrendo
o romance, na busca de apreensão do real, acreditando mais na
força da imaginação e da subjetividade.8

Parece que o problema ainda não está resolvido, pois, o que Edgar revela são os
vieses que cada corrente percorreu para descrever os mesmo caracteres, os mesmo objetos,
os mesmos meios sociais, etc. O que interessa é saber como caracterizar, especificamente,
cada uma dessas correntes. É claro que a colocação de Decca, não foi posta por engano ou
por tentar esclarecer estas dúvidas, a proposta é deixar explícita a idéia de que é muito
complicado delinear cada ramo com suas respectivas definições.

Tendo-se isso em mente, é possível perceber através de um trecho da obra de


Barbosa Lessa que, estas duas vertentes caminham juntas de mãos dadas, ora acentuando
uma, ora outra, sem, porém, perder o mote norteador do conjunto total da obra, como nos
relata Lukàcs em se tratando do romance histórico:

“Poco importa, pues, en la novela histórica la relación de los


grandes acontecimientos históricos; se trata de resucitar
poéticamente a los seres humanos que figuraron en esos
acontecimientos. Lo importante es procurar la vivencia de los
móviles sociales e individuales por los que los hombres
pensaron, sintieron y actuaron precisamente del modo en que
ocurrió en la realidad histórica.”9

8
Idem. p 199.
9
_______, Georg. La forma clasica de la novela histórica. In: _____ La novela histórica. México:
Ediciones Era. 1966. p44.
Paulo Vianna Sant Anna
Este, talvez, seja o princípio de toda a obra literária. Ser algo que revela - através de
personagens que, de fato existiram, mas que no desenrolar da narrativa tornam-se apenas
personagens fictícios, representantes de acontecimentos que realmente aconteceram – as
ações e comportamentos do ser humano frente a fatos que marcaram determinada época,
para assim se analisar os demais comportamentos e sentimentos que açambarcam a
constituição psicológica do homem e, para, também, não somente focalizar os indivíduos
em relação aos episódios históricos, mas concomitante e, principalmente, focalizar estes
acontecimentos em razão do homem.

Quanto ao trecho de “Os Guaxos” citado acima, mas ainda não exposto, revela a
interseção entre a História e a Literatura, onde os acontecimentos figuram em segundo
plano, dando as personagens um realce que é característico da própria obra. Este trecho se
passa algum tempo após a promulgação da lei do “Ventre Livre” 10, onde os escravos foram
“alforriados”11 sem, no entanto, usufruírem de fato de tal concessão:

“A mãe de Garibaldi12, sim, tinha sido escrava. Ele, não: nascera


já no tempo do Ventre Livre. Mas algo de escravidão parece que
perdurara, mais que em sua pele retinta, na maneira com que os
brancos o enxergavam. Apesar de toda a sua perícia de campeiro,
na estância o viam como um peão inferior. Rachar lenha, por
exemplo, era incomodação só dele ou do negro velho Simão. Os
dois, porqueiras, Ele, um traste.13

É claro que não é simplesmente por colocar os personagens em relevo que


caracterizará a obra como sendo um romance histórico conforme os conceitos propostos
por Lukàcs e, sim, a relevância estética característica das obras literárias em geral. Para se
discernir a forma em que se constrói a historiografia e o romance, Decca diz que:

“A oposição entre verdade e ficção ou entre história e romance


que se estabelece na modernidade é a de que a forma do narrar
histórico, ou o enredo histórico vem todo ele respaldado com
provas documentais, opiniões de outros historiadores sobre os

10
O Partido Liberal comprometeu-se publicamente com a causa, mas foi o gabinete do Visconde do Rio
Branco, do Partido Conservador, que promulgou a primeira lei abolicionista, a Lei do Ventre Livre, em 28 de
setembro de 1871. De poucos efeitos práticos imediatos, deu liberdade aos filhos de escravos nascidos a
partir dessa data, mas os manteve sob a tutela dos seus senhores até atingirem a idade de 21 anos. [...] A Lei
do Ventre Livre declarava de condição livre os filhos de mulher escrava nasciods desde a data da lei. In:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Abolicionismo_no_Brasil#Lei_do_Ventre_Livre. Acesso em: 27/02/2008.
11
Alforria: Liberdade concedida ao escravo. In: Novo Dicionário Aurélio Eletrônico. Versão 5.0Positivo
Informática.
12
Garibaldi é um personagem do romance, não confundir com o vulto que lutou na Revolução Farroupilha.
(N. do A).
13
LESSA, Barbosa. Os Guaxos. 1ed. condensada. Porto Alegre: Editora Tchê. 1984. p11.
Paulo Vianna Sant Anna
eventos narrados; que criam um efeito de real, produzem a
sensação de que o que está sendo narrado, de algum modo
aconteceu. [..] Do ponto de vista de um historiador, parece-me
que o romance histórico, como gênero literário, é muito difícil de
ser analisado. Poderíamos defini-lo por suas pretensões realistas,
uma vez que a história lhe daria credibilidade e verdade? Não
tenho certeza disso, afinal de contas, jogar o enredo de um
romance em uma época histórica remota pode reforçar muito
mais os seus aspectos não-realistas. Allan Poe no romance
policial faz um deslocamento de lugares, onde as tramas do
crime nunca transcorrem em uma cidade próxima do leitor
americano, mas sempre em Londres e principalmente Paris,
cidades de difícil acesso para o leitor comum de seus contos.
Com isso, leitor prenderia sua atenção muito mais nos aspectos
ficcionais do enredo, no desenvolvimento lógico e intelectual dos
procedimentos de detetive em sua descoberta do autor do crime,
do que nos detalhes realistas.” 14

Partindo-se deste ponto de vista, “Os guaxos”, é um romance histórico com todos
os “ingredientes” que a ele cabem. É ambientado em um cenário imaginado/imaginário,
não havendo comprovação histórica de sua existência, coadunando com a idéia de
deslocamento e dos aspectos fictícios que englobam a obra. Por outro lado, ao mesmo
tempo em que o leitor é remetido para um ambiente fictício, dentro do prisma histórico, o
autor ressalva as atitudes e a psicologia dos personagens, prendendo o leitor no que
concerne aos arquétipos de uma determinada época, deixando a ambientação em segundo
plano e prendendo a atenção do leitor para as tramas envolvendo única e exclusivamente os
personagens e seus interesses diversos.

Ambientado em um lugar fictício, embasado em episódios históricos reais e voltado


para as características psicológicas que permeiam todo e qualquer ser humano, o livro “Os
Guaxos” tem todos os atributos necessários e fundamentais para designar-se como
romance histórico.

Conclusão:

Neste artigo se procurou trabalhar com a construção do romance histórico como


característica da obra “Os Guaxos” de Barbosa Lessa. Esta construção, no entanto, não é
tão simples de ser feita, uma vez que, o próprio conceito de “romance histórico” - onde
coadunam teorias sobre a História e a Literatura - diverge entre críticos da área, no caso
utilizado, Georg Lukàcs e Edgar de Decca.
14
DECCA. p200.
Paulo Vianna Sant Anna
O primeiro, procura estabelecer os aspectos pertinentes voltados para os
personagens e seus dramas psicológicos, descartando ou jogando para segundo plano os
acontecimentos históricos. Por sua vez, Decca, ressalta que o romance possui, no
deslocamento de lugares, o aspecto relevante para a obra literária indispor de fundamentos
embasados na historiografia. Para ele, ambas as áreas, buscam retratar:

“[...] a tentativa de apreensão dos eventos humanos sob a forma


narrativa, através de uma estrutura de enredo e só no interior dela
os eventos adquirem significado. Enfim, a historiografia e o
romance são modos de narrar eventos humanos com o objetivo
de extrair os seus significados.”15

A partir desta premissa, se pode observar que Barbosa Lessa se utilizou de ambas
as narrativas para elaborar seu romance histórico. Este se calca em pontos convergentes à
História, quando se refere, por exemplo, ao Ventre Livre, situando, por conseguinte, no
tempo e no espaço o leitor e identifica-o com a Literatura quando releva preocupação com
a natureza estética da obra ao mesmo tempo que cria personagens e cenários fictícios.

Barbosa Lessa descartou o axioma “monarca das coxilhas”, e se ateve em desvelar


o(s) perfil (perfis) do gaúcho na sua intimidade familiar, ou seja, a relação de convivência
com a família, os peões, os andarengos e, por assim dizer, os próprios guaxos. Está nova
perspectiva, dentro da literatura gaúcha, moveu águas para novas tendências em busca da
descrição do gaúcho e seu modus vivendis pós década de quarenta, onde o estancieiro
convive com as novas tecnologias aplicadas no campo, com os automóveis, com o telefone
e outras inovações tecnológicas que procuravam facilitar o dia-a-dia do povo em geral.

O livro “Os Guaxos” trouxe para o campo da literatura gaúcha aspectos que ainda
não havia sido visitado pelos demais autores: o “gaúcho a cavalo” visto pelo prisma
eminentemente social e que, teve papel relevante para o futuro da Literatura gaúcha, sendo
agraciado, em reconhecimento, com os prêmios: Coelho Neto, pela Academia Brasileira de
Letras e; Júlio Ribeiro, da Academia Paulista de Letras.

Referências Bibliográficas:

AGUIAR, Flávio. et alli (orgs). Gêneros de Fronteira: Cruzamentos entre o histórico e


o literário. São Paulo: Xamã VM Editora. 1997. 392p.

15
DECCA. p200.
Paulo Vianna Sant Anna
AZEVEDO, João da Silva. São João Baptista de Camaquam. Camaquã: Núcleo de
Pesquisas Históricas de Camaquã (NPHC). 2007. 104p.
BULCÃO, Clóvis. Pequena Enciclopédia de Personagens da Literatura Brasileira. Rio
de Janeiro: Editora Campus. 2005. 278p.
CAPOCAM, Casa do Poeta Camaqüense. Poesia pela Paz: Antologia IV. Cachoeirinha:
Gráfica Odisséia Ltda. 2004. 104p.
CHAVES, Flávio Loureiro. História e Literatura. Porto Alegre: Editora da Unversidade.
3ed. 1999. 112p.
GLEDSON, John. Machado de Assis: Ficção e História. 2ed. São Paulo: Ed. Paz e Terra.
2003. 338p.
GOLIN, Tao. A Ideologia do Gauchismo. Porto Alegre: Tchê Editora. 1983. 174p.
HUGO, Victor. O Corcunda de Notre Dame. Col. A Obra Prima de Cada Autor. São
Paulo: Martin Claret. 2006. 493p.
LESSA, Barbosa. Os Guaxos. 1ed. condensada. Porto Alegre: Editora Tchê. 1984.
_______. Rio Grande do Sul, prazer em conhecê-lo: como surgiu o Rio Grande do
Sul. 4ed. Porto Alegre: AGE. 2002. 191p.
LOPES, João Máximo. Subsídios para a História de Camaquã: Os 80 Anos da
Revolução de 1923. Camaquã: NPHC. 2003.
LUKÀCS, Georg. A Teoria do Romance: Um ensaio histórico-filosófico sobre as
formas da grande épica. Col. Espírito Crítico. 1ed. 2reimp. Trad. José Marcos Mariani de
Macedo. São Paulo: editora 34. 2006. 240p.
_______, Georg. La forma clasica de la novela histórica. In: _____ La novela
histórica. México: Ediciones Era. 1966.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. (org). Leituras Cruzadas: Diálogos da História com a
Literatura. Porto Alegre: Editora da Universidade. 2000. 287p.
SHÜLER, Donaldo. Teoria do Romance. 1ed. 2ª reimp. São Paulo: Editora Ática. 2000.
88p.

Você também pode gostar