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ISBN 9788557173217
Tom Butler-Bowdon assegurou seu direito de ser identificado como autor desta obra em
conformidade com o Copyright, Designs and Patents Act 1988.
Publicado pela primeira vez em inglês em 2013 pela Nicholas Brealey Publishing.
Butler-Bowdon, Tom
50 clássicos da filosofia: as principais ideias das mais importantes obras
filosóficas, da Antiguidade à era moderna / Tom Butler-Bowdon; tradução de Petê
Rissatti. -- São Paulo: Benvirá, 2019.
432 p.
Bibliografia
ISBN 9788557173217
Título original: 50 Philosophy Classics
1. Filosofia - Miscelânea 2. Filósofos 3. Literatura filosófica I. Título II. Rissatti,
Petê
19-1717
CDD 100
CDU 1
Dúvidas?
Acesse sac.sets@somoseducacao.com.br
CL 670883
Sumário
Introdução
Pensar
Os limites do nosso conhecimento, a noção do eu
A filosofia trata primeiro de como pensar, e, considerando a propensão
humana de entender as coisas erroneamente, com frequência isso significa
questionar as bases de nosso conhecimento. Descartes envidou grandes
esforços para mostrar como a mente poderia ser facilmente enganada por
dados vindos dos sentidos e, a partir daí, imaginou como seria possível afirmar
que qualquer coisa realmente existe. No entanto, a partir dessa posição de
extrema dúvida, ele fez sua descoberta: com certeza, se ele tinha a capacidade
de ser enganado em seu pensar, tinha de haver um “eu” que estava
vivenciando o engano. Ele escreveu:
Por outro lado, Murdoch diz que essa falta de solidez própria não deve nos
impedir de nos esforçar para melhorar a nós mesmos. É natural e certo nos
esforçarmos para sermos perfeitos, mesmo se formos acossados por
deficiências de percepção e de falta de coragem.
Em Os ensaios, Michel de Montaigne realizou um exame controverso do eu
usando seus próprios preconceitos e fraquezas como objeto e chegou à
conclusão de que o eu é um mistério: o conhecimento humano é limitado a
ponto de quase não sabermos nada sobre nós mesmos, e muito menos sobre o
mundo em geral. Estamos pensando continuamente, mas, em vez dos seres
racionais que supomos ser, somos uma massa de preconceitos, caprichos e
vaidades.
A falibilidade humana é um rico filão para se explorar, e alguns escritos
recentes trazem percepções especiais sobre essa área. Daniel Kahneman
ganhou o Prêmio Nobel por seu trabalho sobre propensões e erros que
cometemos no pensar cotidiano. Em Rápido e devagar, ele afirma que somos
uma “máquina de tirar conclusões precipitadas”, desenvolvida mais para se
manter viva e reagir a ameaças do que para ter uma percepção precisa. Nassim
Nicholas Taleb também aborda esse tema, constatando que acreditamos
entender mais do que está acontecendo no mundo do que realmente
entendemos; muitas vezes atribuímos erroneamente significado a
acontecimentos depois que eles já ocorreram, criando uma história; e
supervalorizamos fatos, estatísticas e categorias, o que nos deixa confortáveis
para poder prever o futuro. Nosso choque com eventos inesperados mostra o
quanto essa sensação de que estamos no controle é ilusória e, no entanto, não
tentaríamos nem metade das coisas que fazemos se tivéssemos uma imagem
mais fiel do que podemos alcançar em um determinado período de tempo.
Visto dessa forma, o erro não é um defeito da condição humana, mas parte de
sua glória futura. De fato, como observa Kahneman, o foco sobre os erros
“não é uma crítica à inteligência humana, da mesma forma que a atenção às
doenças em textos médicos não rejeita a boa saúde. A maioria de nós é
saudável na maior parte do tempo, e a maioria de nossas decisões e ações é
adequada na maior parte do tempo”.
No mesmo tom positivo, até o arquiempirista Karl Popper (A lógica da
pesquisa científica) – que também desconfiava dos sentidos e propôs um padrão
extremamente difícil para a aceitação de qualquer verdade científica – afirmou
que é papel e privilégio da humanidade teorizar sobre as leis que governam o
universo. Podemos ser fisiologicamente configurados para fazer coisas erradas
a maior parte do tempo, mas nossa capacidade de pensar de uma maneira
vagamente lógica – para usar um termo mais antigo, razão – nos torna únicos
no mundo animal.
Ser
As possibilidades de felicidade e de uma vida significativa, livre-
arbítrio e autonomia
Desde a Antiguidade, filósofos têm sugerido que a felicidade resulta do
afastamento do eu; ou nos jogando em causas ou em um trabalho importante
para nós ou soltando as amarras do ego por meio da apreciação da natureza,
do amor ou da prática espiritual.
Para Epicuro, a virtude contribuiria para uma vida agradável e feliz, pois
fazer a coisa certa naturalmente coloca nossa mente em repouso. Em vez de
ficarmos angustiados com as consequências de nossas más ações, ficamos
liberados para desfrutar de uma vida simples com amigos, filosofia, natureza e
pequenos confortos.
Aristóteles acreditava que a felicidade vem de expressar aquilo que
decidimos racionalmente ser bom para nós a longo prazo, como um serviço à
comunidade. Tudo na natureza é construído com um fim ou um objetivo em
mente, e o que é único aos seres humanos é a capacidade de agir segundo a
nossa razão e virtudes pré-selecionadas. Uma pessoa feliz é aquela que é
estável através do cultivo da virtude, que torna os caprichos da fortuna
irrelevantes. “As atividades em acordo com a virtude guiam a felicidade”, disse
Aristóteles. Portanto, a felicidade não é o prazer, mas um subproduto de uma
vida significativa, e a importância tende a vir do empenho e da autodisciplina.
Bertrand Russell registrou quase a mesma ideia em sua obra de caráter
muito pessoal A conquista da felicidade. Ele escreveu que o esforço, ainda mais
que o sucesso, é um ingrediente essencial da felicidade; uma pessoa que é
capaz de satisfazer todos os seus caprichos sem esforço considera que a
realização dos desejos não contribui para a felicidade. Um foco sobre o eu é
uma causa de infelicidade, ao passo que a alegria vem de direcionar nossos
interesses para fora, jogando-nos para dentro da vida.
Leibniz foi parodiado por Voltaire ao sugerir que o mundo em que vivemos
é “o melhor dos mundos possíveis”, mas sua verdadeira intenção era mais
sutil. O melhor mundo possível não é aquele projetado especificamente para a
felicidade humana. Os seres humanos são movidos pelo autointeresse e têm
ciência do bom resultado de tudo o que acontece. Vemos as coisas em termos
de causa e efeito, mas nossa apreciação da relação entre elas é obviamente
limitada. Leibniz argumentou que apenas um ser supremo tem a visão geral de
como tudo se encaixa, e nosso papel é confiar nessa benevolência de intenção.
É famosa sua frase de que vivemos em um mundo que é o melhor possível,
embora pareça conter uma grande quantidade de maldade, porque “uma
imperfeição na parte pode ser necessária para uma maior perfeição no todo”.
Mas e se você acreditar, como os existencialistas, que o universo não tem
nenhum propósito ou significado? A resposta de Sartre era viver
“automaticamente”, escolher seu próprio destino, em vez de aceitar cegamente
as regras da sociedade ou as “leis morais” da época. Ele escreveu: “O homem
está condenado a ser livre, pois, uma vez lançado ao mundo, é responsável por
tudo que fizer”. A partir de tal premissa pouco promissora, Sartre desenvolveu
uma filosofia da liberdade que não dependia de nenhum Deus, atraindo toda
uma geração ávida para viver de seu próprio modo.
Essa perspectiva supõe que somos seres autônomos com livre-arbítrio. Mas
somos mesmo? Spinoza, Schopenhauer e Montaigne, entre outros, defenderam
que estamos sujeitos a causas e forças maiores que nós, das quais podemos ter
apenas uma vaga consciência. Free Will [Livre-arbítrio], de Sam Harris, nos
conta da investigação que sugere que o livre-arbítrio é uma ilusão: nossas ações
são produto de estados cerebrais, que são eles próprios resultado de causas
anteriores, que, por sua vez, são geradas por um universo sobre o qual não
temos controle nenhum. Sentimos como se tivéssemos livre-arbítrio porque
nosso cérebro está configurado para nos dar essa feliz ilusão. Aonde isso nos
leva? O ponto crucial de Harris é que, independentemente de onde venham,
ainda temos intenções conscientes, e o objetivo é tentar cumprir essas
intenções. Em um nível puramente racional ou científico, esse é o “sentido” da
vida.
Heidegger alega que é impossível para nós não considerar nossa existência
significativa. Eu amo, eu ajo, eu tenho um impacto – essa é a natureza do meu
ser. Além disso, há o fato surpreendente de termos consciência. Por que eu
tenho esse nível avançado de consciência enquanto uma ovelha ou uma rocha
não tem? Heidegger diz que o ser humano é “lançado” no mundo em um
determinado lugar, tempo e situação que não são de sua escolha, e viver quer
dizer dar sentido a esse “cair” no espaço e no tempo. Sentimos a obrigação de
fazer algo com a nossa vida e, felizmente, viemos equipados com as
capacidades de fala e ação, que nos dão a oportunidade de revelar algo de nós
mesmos. Uma vida boa é aquela em que agarramos as possibilidades que
temos e fazemos algo a partir delas. Considerando a rica matéria-prima de
nossa consciência e ambiente, a vida é inerentemente significativa.
Hannah Arendt observou que, enquanto a natureza pode ser um processo
inexorável de viver e morrer, a humanidade recebeu uma forma de sair desse
processo por meio da capacidade de agir. Ela escreveu em A condição humana:
“Os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para
começar”. Outros animais só podem comportar-se de acordo com seus
instintos de sobrevivência e impulsos programados, mas nós, seres humanos,
podemos ir além de nossas necessidades biológicas egoístas para trazer à vida
algo novo, cujo valor pode ser reconhecido de forma social e pública. Nossos
feitos nunca são muito previsíveis, e cada nascimento traz consigo a
possibilidade de um mundo alterado. Resumindo, nós temos importância.
Agir
O poder e seu uso, liberdade e justiça, equidade e ética
Aja apenas segundo uma máxima que você queira que se torne uma lei
universal.
Ver
A caverna de Platão e a verdade, a filosofia como um problema
linguístico, a vida em um mundo midiático
A alegoria da caverna de Platão é uma das mais famosas passagens da filosofia,
que continua a ressoar por causa de sua sugestão surpreendente de que a
maioria de nós cruza a vida perseguindo sombras e a aparência das coisas,
quando o tempo todo existem as “formas” eternas da Verdade, da Justiça, da
Beleza e do Bem, que esperam para ser reconhecidas. Kant também acreditava
que, como seres humanos existentes no espaço e no tempo, e com as
limitações de nossos sentidos, estamos impedidos de perceber as coisas como
elas realmente são (“coisas em si”). Mas há uma verdade metafísica elementar
por trás do mundo de percepções, e, por meio da razão, podemos ao menos
nos aproximar um pouco dela.
Filósofos modernos têm se alinhado para descartar essas noções,
salientando que somos animais com um cérebro que percebe e organiza os
fenômenos de determinadas maneiras. O conhecimento baseia-se apenas no
que vem através de nossos sentidos e não na visão metafísica, e ciência é uma
questão de aumentar a nossa objetividade. Hegel, no entanto, argumentou que
a análise objetiva é uma ilusão, pois as coisas só existem no contexto da
percepção do observador; a consciência é tão parte da ciência quanto o mundo
de objetos que ela se propõe a analisar. Para Hegel, a verdadeira história da
ciência não é a “descoberta do universo”, mas sim a descoberta de nossa
própria mente – da própria consciência. História, ciência e filosofia são
simplesmente expressões de como a consciência despertou ao longo do
tempo.
A grande e holística ideia de Hegel do despertar do “Espírito” ou da
consciência nos assuntos humanos saiu da moda filosófica, pois as guerras e as
depressões pareciam contrariar a ideia de que a história tinha um sentido
positivo. De fato, como o filósofo da ciência Thomas Kuhn mostrou em A
estrutura das revoluções científicas, e Michel Foucault também observou, o
conhecimento não procede em uma linha pura para cima, com um edifício de
descobertas sobre o outro; em vez disso, cada era tem uma lente através da
qual se vê o mundo, e algo é percebido como real apenas se a lente permite
que seja visto assim.
Quem quer que esteja aqui, qualquer avaliação de nossa capacidade de
compreender o mundo deve precisamente envolver a linguagem. Em
Investigações filosóficas, Wittgenstein admitiu que tinha se equivocado na visão
expressa anteriormente em seu Tractatus Logico-Philosophicus de que a linguagem
é um meio de descrever o mundo. As palavras não apenas nomeiam as coisas;
muitas vezes elas transmitem um significado elaborado, e muitos significados
diferentes a partir da mesma palavra. A linguagem não é uma lógica formal
que marca os limites de nosso mundo, mas um jogo social em que a ordem do
jogo é livre e evolui. Ele comentou que problemas filosóficos surgem apenas
quando filósofos enxergam a nomeação de alguma ideia ou conceito como de
grande importância, quando na realidade o significado contextual é o que
importa. É uma ideia famosa de Wittgenstein que a filosofia é uma batalha
constante contra o “enfeitiçamento” da disciplina pela própria linguagem. Essa
foi uma espetada na tradição analítica da filosofia (cujos adeptos incluíam
Bertrand Russell e A. J. Ayer), que via o uso abusivo da linguagem como um
cartão de boas-vindas para muita metafísica sem sentido, considerando que sua
boa utilização poderia nos dar uma imagem mais fiel da realidade.
Em Naming and necessity, o brilhante Saul Kripke revelou as falhas dessa
concepção, observando que o significado de algo não será encontrado em
descrições dadas, mas em suas propriedades essenciais. Uma pessoa, por
exemplo, é simplesmente o que é, e nenhuma porção de precisão de linguagem
vai adicionar, remover ou provar essa identidade. O ouro não é definido pelas
descrições que fazemos dele, como “metal amarelo, brilhante”, mas sim por
sua propriedade essencial, o elemento atômico 79.
De Platão a Kant, de Hegel a Wittgenstein, uma ideia é recorrente ao longo
da história da filosofia: o mundo não é simplesmente como nós o percebemos
ou descrevemos. Se usamos os termos “formas”, “coisas em si” ou
“propriedades essenciais”, há uma realidade subjacente que talvez não seja
óbvia para os sentidos. David Bohm foi um famoso físico teórico que se
transformou em filósofo e, em Totalidade e a ordem implicada, apresentou um
caso convincente da existência de duas ordens da realidade: a implicada e a
explicada. Embora a última seja o “mundo real”, que podemos perceber com
nossos sentidos, ela é simplesmente o desdobramento de uma mais profunda,
a realidade “implicada” que contém todas as possibilidades. As duas fazem
parte de um grande “holomovimento”, um todo fluido da realidade, que é
muito similar à totalidade do universo de que Heráclito falava. Apenas os seres
humanos dividem as coisas em partes e categorias.
***
Palavra final
Hegel tinha uma visão incomumente expansiva e generosa da filosofia. Como
observa no famoso prefácio à Fenomenologia do Espírito, filósofos convencionais
veem seus objetos de estudo como um campo de posições concorrentes em
que apenas se pode dizer que um sistema “vence”. Assumem a perspectiva de
um campo de batalha de ideologias. Hegel, por sua vez, adotou uma visão
abrangente da disciplina: cada filosofia concorrente tinha seu lugar, e, com o
passar do tempo, seu empurra-empurra permitiu “o desdobramento
progressivo da verdade”. Colocando isso em termos botânicos, ele escreveu
que os botões são esquecidos quando arrebentam em flor, e a flor, por sua vez,
dá lugar à fruta, que revela a verdade ou a finalidade da árvore. O objetivo de
Hegel era libertar a filosofia de sua parcialidade e mostrar a verdade do todo.
Era melhor enxergar a variedade e a riqueza da cultura e da filosofia como um
grande projeto.
O teólogo e filósofo Tomás de Aquino escreveu no Comentário ao tratado
Do céu, de Aristóteles:
Essa é a nossa meta, mas saber o que as pessoas têm pensado ainda pode
nos ajudar. Se você não tem uma visão sólida da vida, nestas páginas
encontrará muitos conceitos poderosos por meio dos quais é possível ver ou,
melhor ainda, desafiar sua visão de mundo. Para nós, é natural querer a certeza,
mas, se existe algum tipo de conhecimento absoluto, ele não será alterado ou
movido por nosso questionamento. Portanto, você não tem nada a perder ao
estudar as grandes obras da filosofia; ao contrário, tem tudo a ganhar.
A condição humana
Em resumo
É da natureza do ser humano fazer o inesperado, e cada nascimento traz
consigo a possibilidade de um mundo alterado.
Na mesma linha
Henri Bergson, A evolução criadora (p. 76)
Martin Heidegger, Ser e tempo (p. 168)
Hannah Arendt
Redescobrindo a glória
Arendt observa que, na Grécia e na Roma antigas, o que importava era o que
se fazia na esfera pública. A vida e as perspectivas do povo pobre e aqueles
sem direitos políticos (inclusive os escravos e as mulheres) eram
essencialmente realizadas em casa; esse domínio privado, independentemente
de seus benefícios, não trazia consigo nenhuma perspectiva de influência ou de
ação real. Ao contrário, os homens de posses, livres da necessidade de
trabalhar para sobreviver e da faina doméstica maçante e diária, podiam ser
atores no palco público, agindo para melhorar ou fazer progredir toda a
sociedade.
Em nosso tempo, observa ela, é a casa que se tornou o ponto focal, e
fomos reduzidos a consumidores sem paciência para a política. Buscamos a
felicidade ao renunciar ao privilégio de fazer coisas que podem mudar o
mundo e beneficiar muitas pessoas. A antiga missão em busca de glória parece
estranha para nós, até mesmo desagradável, mas, ao nos revertermos para
sermos meros chefes de família, estamos abrindo mão de nosso potencial para
ter uma vida de verdadeira ação autônoma (o que ela chama de vita activa):
Pois o amor, ainda que seja uma das ocorrências mais raras na vida
humana, possui, na verdade, um inigualável poder de autorrevelação e
uma inigualável clareza de visão para revelar quem somos,
precisamente porque é indiferente, ao ponto da completa não
mundanidade, com aquilo que a pessoa amada talvez seja, com suas
qualidades e defeitos e também com suas realizações, fracassos e
transgressões. Amor, em virtude de sua paixão, destrói o “entre” que
nos relaciona com os outros e nos separa deles.
Comentários finais
A conclusão de biólogos e sociólogos nos últimos trinta anos de que as
pessoas são moldadas por suas conexões cerebrais, seus genes e seu ambiente
muito mais do que havia se pensado parece despejar um balde de água fria
sobre as teorias de ação e decisão de Arendt.
E, no entanto, do ponto de vista da história, que no fim das contas é a
soma de milhões de decisões individuais, seria errado sugerir (como Hegel e
Marx o fizeram) que a história da humanidade envolve uma certa
inevitabilidade. Ao contrário, como uma das principais influências de Arendt,
Martin Heidegger fez questão de salientar os indivíduos. Para Arendt, a
história é a crônica do exceder as expectativas. As pessoas fazem coisas
incríveis que, muitas vezes, nem mesmo elas esperam fazer.
Nas últimas páginas de A condição humana, Arendt admite que a “sociedade
de detentores de empregos” que nos tornamos permite que as pessoas
abandonem sua individualidade e se comportem como se fossem
simplesmente uma “função”, em vez de atacar de frente o problema de viver e
realmente pensar e agir por si próprias. Simplesmente se tornam um reflexo
passivo de seu ambiente, um animal avançado em vez de uma pessoa real,
consciente, decidida. Para Arendt, ser grande é reconhecer que não se é
simplesmente um animal com vários impulsos de sobrevivência nem
meramente um consumidor com “gostos” ou “preferências”. O nascimento de
uma pessoa foi realmente um novo começo, uma oportunidade para algo que
antes não estava lá vir ao mundo.
Pode demorar um pouco para se entenderem as distinções de Arendt entre
labor, trabalho e ação, e só é possível compreender plenamente seu
pensamento em uma segunda ou terceira leitura. No entanto, em sua crença no
poder da ação humana e da imprevisibilidade, A condição humana é um trabalho
verdadeiramente inspirador.
Hannah Arendt
Nascida em Hanôver, Alemanha, em 1906, Arendt cresceu em Konigsberg, em
uma família judia. Seu pai morreu de demência sifilítica quando ela estava com
apenas 7 anos, mas ela era próxima da mãe, uma social-democrata alemã ativa.
Após o ensino médio, Arendt estudou teologia na Universidade de Marburgo,
onde um de seus professores foi Martin Heidegger. Teve um caso com ele (ele
era casado) antes de ir para a Universidade de Heidelberg. Com seu mentor, o
filósofo Karl Jaspers, concluiu a tese de doutorado sobre o conceito de amor
no pensamento de Santo Agostinho.
Arendt se casou em 1930. Como a influência do partido nazista cresceu, ela
foi impedida de lecionar em universidades alemãs e envolveu-se na política
sionista, trabalhando a partir de 1933 para a Organização Sionista Alemã. A
Gestapo a prendeu, mas ela fugiu para Paris, onde trabalhou para outra
organização, ajudando a resgatar crianças judias da Áustria e da
Tchecoslováquia. Em 1940, ela se divorciou de seu primeiro marido, casou-se
com Heinrich Blücher, e alguns meses mais tarde o casal foi confinado em
campos alemães no sul da França. Eles escaparam e viajaram aos Estados
Unidos. Arendt recebeu cidadania americana em 1951. Durante a década de
1950, ela se aproximou dos círculos intelectuais de Nova York, que incluíam
Mary McCarthy, trabalhou como editora e desenvolveu o livro As origens do
totalitarismo.
Arendt tornou-se a primeira professora de política na Universidade de
Princeton e também lecionou na Universidade de Chicago, na Universidade
Wesleyan e na New School for Social Research de Nova York. Ela faleceu em
1976. Os primeiros dois volumes de sua autobiografia, A vida do espírito (1978),
e suas Lições sobre a filosofia política de Kant (1982) foram publicados
postumamente. Uma boa biografia sua foi escrita por Elisabeth Young-Bruehl,
Por amor ao mundo: a vida e a obra de Hannah Arendt (1982).
Século IV a .C.
Ética a Nicômaco
Em resumo
A felicidade vem de expressar o que decidimos racionalmente ser bom para
nós no longo prazo. A felicidade não é prazer, mas um subproduto de uma
vida significativa.
Na mesma linha
Hannah Arendt, A condição humana (p. 24)
Epicuro, Cartas (p. 132)
Platão, A República (p. 308)
Bertrand Russell, A conquista da felicidade (p. 338)
Aristóteles
Tão grande era sua autoridade sobre uma variedade de assuntos, da física à
biologia até a psicologia, que, ao longo de toda a Idade Média, Aristóteles ficou
conhecido simplesmente como “o filósofo”. Dante chamava-o de “mestre
daqueles que sabem”. Aristóteles foi uma influência decisiva para Tomás de
Aquino e também filósofos islâmicos, como Averróis.
O rigor e a busca implacável de Aristóteles para categorizar tudo tiveram
um enorme impacto sobre o pensamento filosófico e científico ao longo dos
últimos 2 mil anos, instituindo uma maneira muito lógica e racional de
enxergar as coisas que é a essência da civilização ocidental.
Costuma-se dizer que a história da filosofia pode ser dividida entre
platonistas e aristotélicos. Enquanto Platão acreditava que tudo que
percebemos no mundo físico tem uma realidade metafísica subjacente e que a
“verdade” está por trás ou além do mundo das aparências, seu aluno
Aristóteles era muito mais um filósofo “mão na massa”, interessado no mundo
como nós o vemos. Depois de estudar por vinte anos sob a tutela de Platão,
Aristóteles chegou à conclusão de que nossa compreensão do mundo é
necessariamente baseada em nossos cinco sentidos; sua mente analítica
rigorosa desmantelava as coisas até suas partes integrantes, incluindo
elementos aparentemente vagos como felicidade e virtude.
A Ética a Nicômaco (dedicada a seu filho) é a melhor expressão da filosofia
moral de Aristóteles. Atualmente, seus trabalhos científicos são de interesse
principalmente para os especialistas, mas a Ética a Nicômaco continua a ser
influente, proporcionando uma receita para uma vida boa que ainda é discutida
e aplicada nos dias de hoje; seu conceito de eudaimonia (“felicidade”, em
tradução livre), por exemplo, moldou o movimento contemporâneo da
psicologia positiva. Embora o trabalho tenha sido compilado a partir de
anotações de aulas, e por isso pareça um pouco incompleto e não polido, pode
ser lido sem grandes dificuldades.
Alcançar a felicidade
O ponto de partida da teoria ética de Aristóteles é a felicidade, porque ele
acreditava que as pessoas são criaturas racionais que tomam decisões que
levarão a seu sumo último. Embora eudaimonia seja frequentemente traduzida
como “felicidade”, também pode ser lida como “fazer bem”, “sucesso” ou
“florescimento”.
Como seres racionais, nossa maior felicidade vem de escolhas que fazemos
por meio da razão. Desenvolvemos o que é melhor para nós no longo prazo, e,
ao seguir esse caminho, a felicidade chega como um subproduto. Uma vida de
mero prazer, uma vez que nos priva de atividade racional e funcional ao longo
de uma existência em busca de um objetivo, não vai nos tornar felizes. O
caminho mais virtuoso é aquele que nos proporciona o maior prazer genuíno
(em vez de efêmero). O prazer de ler um romance leve ou um thriller, por
exemplo, não oferece o grande significado e a satisfação que se consegue com
a leitura de uma obra de Tolstói.
A maioria das pessoas simplesmente busca uma vida de gratificação, mas
Aristóteles não acredita que elas sejam melhores que “animais de pasto”. Para
termos uma “vida plena”, precisamos combinar ação com virtude, refinando
constantemente a nós mesmos e desenvolvendo nossas habilidades. A
felicidade genuína surge por meio do trabalho em nós mesmos e em nossos
objetivos ao longo do tempo. “Uma andorinha só não faz verão, tampouco um
dia”, diz Aristóteles, “nem, da mesma forma, um dia ou um curto espaço de
tempo nos torna abençoados e felizes.” Ele descreve o próprio tempo como
“um bom parceiro na descoberta”, revelando tanto a nossa natureza como a
do mundo.
A amizade faz parte de uma vida boa e plena, diz Aristóteles, porque
promove a partilha de raciocínio e pensamento. Por meio da ação plenamente
justificada e construtiva, ajudamos os amigos a alcançar seus objetivos, e, ao
fazê-lo, nossas qualidades racionais ou nosso caráter são ampliados.
Naturalmente, isso nos faz felizes. O mesmo princípio aplica-se à comunidade
ou cidade em que vivemos. Trabalhando para sua melhoria, é natural que
fortaleçamos nosso caráter e, portanto, aumentemos nossa felicidade.
Por último, Aristóteles considera o estudo uma das grandes fontes de
felicidade, se não a maior, pois nos permite a expressão plena da nossa
natureza racional. Ao apreciarmos verdades científicas ou filosóficas e
incorporá-las ao nosso conhecimento, estamos atingindo o auge do que é ser
humano.
A agradável conclusão de Aristóteles é de que a felicidade não é
predeterminada pelo destino ou pelos deuses, mas pode ser adquirida de forma
habitual pela expressão consciente de uma vida virtuosa por meio do trabalho,
da diligência ou do estudo. Ele diz: “[Nós] nos tornamos construtores -
construindo e nos tornamos harpistas tocando harpa. Da mesma forma, então,
nos tornamos justos praticando ações justas, moderados praticando ações
moderadas, corajosos praticando ações corajosas”. Em outras palavras, nós
nos tornamos pessoas bem-sucedidas pelo hábito.
Não deveríamos julgar a vida de uma pessoa de acordo com seus altos e
baixos, mas pelas virtudes duradouras que desenvolve e expressa. Essa é a
verdadeira medida do sucesso. Uma pessoa bem-sucedida e feliz é aquela que é
estável por meio do cultivo da virtude, que torna os caprichos da fortuna
irrelevantes. É essa estabilidade, nobreza e magnanimidade que mais
admiramos. “As atividades segundo a virtude guiam a felicidade”, diz
Aristóteles.
Ação e decisão
Platão acreditava que a mera apreciação da virtude é o bastante para tornar
uma pessoa virtuosa, mas, para Aristóteles, uma vida boa deve ser de virtude
expressa em ação: “E assim como os prêmios dos Jogos Olímpicos não são
para os melhores e mais fortes, mas para os participantes (uma vez que apenas
esses vencem), o mesmo vale na vida; entre as belas e boas pessoas, somente
aqueles que agem corretamente ganham o prêmio”.
Ele faz uma distinção entre ação voluntária e involuntária. Crianças
pequenas e animais podem praticar ações voluntárias, mas não tomar decisões
reais, pois essas envolvem razão ou pensamento significativos. Como os
adultos têm as faculdades de deliberação e decisão, usá-las de uma maneira boa
(por exemplo, para perseguir um objetivo que nos exige limitar os apetites
naturais) nos faz sentir que estamos vivendo de modo devido – como seres
racionais concentrados na criação de algo que vale a pena. Podemos desejar
algo, mas para alcançá-lo devemos decidir tomar determinadas ações. Da
mesma forma, podemos crer em determinadas coisas, mas é a ação que
formará nosso caráter. A pessoa “incontinente”, diz Aristóteles, age a partir do
apetite ou pelo que é agradável. Em contraste, a pessoa “continente faz o
contrário, agindo segundo a decisão, não o apetite”.
Aristóteles também cria uma distinção interessante entre ação e produção.
O fim da produção é um objeto, uma coisa fora de nós mesmos, e requer a
utilização de destreza ou manipulação hábil. Mas o agir bem é algo concluído
como o próprio fim e não precisa resultar em nada em particular.
Considerando que a produção faz uma coisa e a habilidade na produção cria
uma qualidade melhor ou pior, a ação, dependendo de sua qualidade, torna
uma pessoa melhor ou pior. É, portanto, mais pura e mais nobre.
Embora a visão de Aristóteles sobre a diferença entre a ação e a produção
tenha sido moldada por sua posição elevada na sociedade, a ideia tem
implicações contemporâneas. Como observou Hannah Arendt em A condição
humana, pensar em nós mesmos como “produtores” e “consumidores” é uma
ideia peculiarmente moderna. No entanto, não existimos para produzir, mas
para fazer uma contribuição à nossa comunidade e à sociedade. É por isso que
a Ética a Nicômaco, um livro ostensivamente sobre a virtude, tem muitos
capítulos relativos à amizade e às responsabilidades de ser um cidadão.
Comentários finais
É moda atualmente os governos estarem preocupados com a “felicidade
interna bruta” em vez de se preocuparem simplesmente com os resultados
econômicos. Seus conselheiros examinam as ideias de Aristóteles sobre boa
vida e eudaimonia para orientar a elaboração de políticas que possam criar maior
felicidade para um maior número de pessoas. Esse é um esforço nobre. No
entanto, devemos ter cautela ao dar as receitas para a felicidade individual.
Como Aristóteles ensinou, cada pessoa terá uma rota diferente para a boa vida
com base em um potencial único que ela deverá cumprir. Em vez de buscar a
felicidade como um objetivo em si mesmo, nosso desafio é buscar a vida mais
cheia de significado para nós, e, ao fazê-lo, a felicidade virá naturalmente.
Aristóteles é muitas vezes criticado por suas observações em Ética a
Nicômaco de que elementos circunstanciais, tais como o dinheiro, o status e a
família, são contribuintes importantes para a felicidade. No entanto, seu foco
sobre a vida significativa nos diz que uma pessoa não precisa ter essas coisas
para estar contente ou entusiasmada com a existência. Se sentirmos que
estamos agindo para cumprir nossa função mais elevada, será difícil não ser
feliz.
Aristóteles
Nascido na cidade macedônica de Estagira (atualmente norte da Grécia), em
384 a.C., Aristóteles era filho de um médico do rei da Macedônia. Aos 17 anos,
começou a estudar na academia de Platão, em Atenas, e permaneceu na escola
até a morte de seu mestre, em 347 a.C. Então viajou para a Turquia e para a
ilha grega de Lesbos, fazendo sua própria investigação sobre o que agora
chamamos de biologia marinha, botânica, zoologia, geografia e geologia.
Casou-se com Pítia, uma de suas colegas na academia de Platão, mas teve um
filho, Nicômaco, com sua amante, a escrava Herpília.
Durante a vida de Aristóteles, o reino macedônico sob Filipe II e seu filho
Alexandre (o Grande) era uma potência conquistadora, tomando para si
cidades gregas e o reino da Pérsia. Aristóteles desfrutava do patrocínio de
Alexandre e foi seu conselheiro próximo até os últimos anos do reinado do
imperador, antes de ele cair em desgraça em razão de suas origens
macedônicas. Morreu aos 62 anos, na Ilha de Eubeia.
Dois terços da obra de Aristóteles se perderam, mas seu corpus abrange uma
grande variedade de assuntos, e ele foi considerado um dos polímatas de
destaque de sua geração. Trabalhos notáveis incluem Metafísica, Da interpretação,
De Anima ou Da alma, Retórica e Magna Moralia.
1936
Em resumo
A metafísica, a estética, a ética e a teologia são todas disciplinas sem
sentido, porque nada que se diz nelas pode ser verificado.
Na mesma linha
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
Saul Kripke, Naming and Necessity (p. 222)
Karl Popper, A lógica da pesquisa científica (p. 316)
Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas (p. 398)
A. J. Ayer
O princípio de verificação
O princípio de verificação de Ayer afirma que uma frase tem sentido apenas se
houver certas circunstâncias em que nós, os usuários da língua, possamos
concordar com sua veracidade, pois a veracidade de uma sentença deve
corresponder a uma possível situação observável. A frase “Há alienígenas em
Marte”, por exemplo, é significativa, pois sabemos o que seria necessário para
confirmá-la: uma observação ou outro sinal de alienígenas em Marte. Note que
estamos menos preocupados em saber se a frase é uma verdade em si, apenas
se é ou não significativa, ou seja, verificável.
Ayer ainda permite alguma margem de manobra, salientando que só temos
de confirmar que as afirmações provavelmente são verdadeiras, e não que são
decisivamente verdadeiras, para que sejam significativas. Isso porque há muitas
proposições que, mesmo depois de se fazer um número imenso de
observações, podemos apenas confirmar que provavelmente estão corretas. O
exemplo mais comum de tal proposição é uma lei universal, tal como a
expressa pela frase “todo arsênico é venenoso”. Nós a assumimos como uma
frase significativa, mas, por causa do conhecido problema da indução, ela só
pode ser confirmada como provavelmente verdadeira considerando um
número crescente de observações. Nenhuma quantidade de observações
poderia confirmar que todo arsênico é venenoso, pois não podemos extrapolar
quaisquer exemplos específicos em direção ao caso geral, a não ser como uma
certeza provável.
Ayer também propõe a ideia de emotivismo, em que as declarações sobre
moralidade são juízos de valor impulsionados pela emoção ou pelo sentimento
de quem os expressa. Como não podem ser verificados por quaisquer “fatos”
morais objetivos ou experiência, não têm nenhum significado cognitivo nem
sentido. Quando alguém diz, por exemplo, “Maria é uma pessoa boa”, esse
alguém não está definindo nenhuma verdade objetiva ou situação, meramente
está expressando seu sentimento por Maria. Da mesma forma, quando
ouvimos a declaração “A guerra é errada”, por não ser uma proposição que
possa ser comprovada de forma conclusiva de uma maneira ou de outra, mas
sim uma opinião, é de baixo ou nenhum valor. A maior parte da língua diz
mais sobre o falante do que sobre a “realidade”.
Comentários finais
Ao enfatizar os limites do conhecimento humano, Ayer fez as vezes de
herdeiro de David Hume, que ele reverenciava. Esse fato, combinado ao
enfoque cético dos positivistas lógicos continentais, à influência da análise da
linguagem de Wittgenstein e à certeza de um rapaz de 25 anos de idade, tornou
Language, Truth and Logic uma obra poderosa.
Para os leitores da filosofia acadêmica de hoje, que estuda normalmente
questões muito específicas em grande profundidade, as amplas abordagens do
livro são revigorantes. Sua brevidade e a ausência de linguagem técnica o
deixam muito legível, e, embora muitos tenham notado que não é totalmente
original, ainda é um excelente ponto de partida para a filosofia analítica e o
positivismo lógico.
Após o sucesso do livro, perguntaram certa vez a Ayer o que viria a seguir.
Em sua costumeira arrogância, ele respondeu: “Nada virá a seguir. A filosofia
acabou”.
A. J. Ayer
Ayer nasceu em 1910. Sua mãe era da família holandesa judia que fundou a
empresa automobilística Citroën, e seu pai trabalhava no setor financeiro.
Quando criança, ganhou uma bolsa de estudos para o famoso e caro Eton
College.
Estudando filosofia na faculdade Christ Church, em Oxford, seu tutor era o
filósofo da mente Gilbert Ryle. Ayer trabalhou na inteligência militar britânica
durante a Segunda Guerra Mundial e ocupou cargos acadêmicos na Christ
Church e no University College, em Londres, além de ser uma figura bem
conhecida da mídia.
Ayer foi casado quatro vezes, inclusive um recasamento, e tinha muitos
casos. Na biografia A. J. Ayer: A Life [A. J. Ayer: uma vida], Ben Rogers narra
um episódio em que Ayer estava entretendo algumas modelos em uma festa
em Nova York quando houve uma comoção em um quarto. A supermodelo
Naomi Campbell gritava que seu namorado, Mike Tyson, a estava agredindo.
Ayer entrou para falar com Tyson, que disse: “Você sabe quem eu sou? Eu sou
o campeão do mundo”. Ayer educadamente respondeu: “E eu sou o ex-
professor da cátedra Wykeham de Lógica… Nós dois somos proeminentes em
nossas áreas. Sugiro que conversemos sobre esta questão como homens
racionais”.
Após sua aposentadoria, Ayer defendeu muitas causas sociais progressistas,
inclusive a reforma da lei de direitos homossexuais. Foi nomeado cavaleiro em
1970 e morreu em 1989.
Outros livros: The Foundations of Empirical Knowledge [As bases do
conhecimento empírico] (1940), The Problem of Knowledge [O problema do
conhecimento] (1956), Russell and Moore: The Analytical Heritage [Russell e
Moore: a herança analítica] (1971), Hume (1980), Philosophy in the Twentieth
Century [A filosofia no século XX] (1982), e os volumes autobiográficos Part of
My Life [Parte de minha vida] (1977) e More of My Life [Mais da minha vida]
(1984).
2011
Em resumo
O cérebro e o corpo nos oferecem uma noção forte e contínua do eu, que
nos dá a liberdade de criar o que somos.
Na mesma linha
Sam Harris, Free Will (p. 152)
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
Michel de Montaigne, Os ensaios (p. 276)
Julian Baggini
Você hoje é a mesma pessoa que era quando criança? É óbvio. No entanto, por
mais diferente que você seja agora, como pessoa adulta, seu DNA ainda é o
mesmo – você ainda é “você”. Mas o que dizer de alguém que sofre de
Alzheimer ou teve uma lesão cerebral? Se as memórias não são mais acessíveis
ou não se tem mais uma noção de tempo, de espaço e das outras pessoas, é
possível dizer que o mesmo eu ainda existe? De onde vem essa noção de “eu”?
É real ou apenas uma ilusão criada pelo cérebro e pelo corpo?
O filósofo contemporâneo Julian Baggini começa The Ego Trick [A
artimanha do ego] com uma citação de David Hume (Tratado da natureza
humana):
A noção do eu
A visão de “pérola” do eu diz que, apesar do quanto mudamos ao longo de
uma vida, existe uma essência de “eu” que não muda. Esse eu tem livre-
arbítrio e pode até transcender o corpo após a morte. No entanto, apesar de
muita pesquisa, a neurociência não encontrou nenhuma pérola; o “eu”
essencial não existe em nenhuma parte do cérebro. Em vez disso, vários
sistemas cerebrais trabalham em conjunto para nos dar uma sensação de ser
singular e estar no controle. Outros organismos, como os lagartos, não têm
uma noção do eu com a amplitude que os seres humanos têm. Podem ter um
sentido de eu em algum momento, mas é o sentido de um eu ao longo do tempo
que nos diferencia. Temos “eus autobiográficos” que podem criar uma história
ricamente detalhada e complexa a partir de nossas experiências.
“Quanto mais velhos ficamos”, comenta Baggini, “menos somos capazes
de nos identificar verdadeiramente, com confiança, com os nossos eus
anteriores […] Nossos pensamentos e ações são inescrutáveis como os de
estranhos, ou até mais […] Ao mesmo tempo, cada um de nós tem uma noção
de “eu” que parece ser notavelmente duradoura.” Podemos não ser a mesma
pessoa que éramos trinta anos atrás, mas sustentamos uma noção de eu por
toda a vida. De certa forma, a questão não é a busca pelo “que” somos ou por
nossa “verdadeira identidade”. Para Baggini, a verdadeira maravilha é que
retemos e mantemos a individualidade durante um longo tempo.
Ele menciona o neuropsicólogo clínico Paul Broks, que trabalhou com
pacientes que sofreram lesões cerebrais em acidentes de carro. Enquanto
observava como nossa noção do eu é frágil, construída nessas circunstâncias
com base em um bom funcionamento do cérebro, Broks notou também que,
mesmo se um hemisfério do cérebro estiver danificado, afetando a memória ou
outras funções, a maioria das pessoas continua a sentir uma noção unificada do
eu. Esse movimento em direção à sensação do eu é incrivelmente forte, e por
uma boa razão: não conseguimos funcionar como animais sociais sem
enxergarmos a nós mesmos e aos outros como “eus” separados. Com efeito,
caso “o eu” se encontrasse em apenas uma parte do cérebro (a ideia da pérola),
qualquer dano ligeiro àquela parte destruiria a noção do “eu”. No entanto, se a
noção do eu é uma composição de elementos ou uma interação entre as partes,
então é mais provável que sobreviva a qualquer trauma ou destruição de
qualquer dos componentes. Mesmo se não houver grandes danos ao cérebro,
somos configurados para criar constantemente uma noção de eu narrativa.
O filósofo contemporâneo Derek Parfit caracteriza a personalidade como a
posse de “conexão e continuidade psicológicas”. Baggini explica que a
“artimanha do ego” é a criação elaborada por cérebro e corpo de “uma forte
noção de unidade e individuação daquilo que, na verdade, é uma bagunça, uma
sequência fragmentada de experiências e lembranças”. Precisamente porque
não há um único centro de controle no cérebro, o truque funciona.
O que somos?
Se o eu não tem um centro de controle real, é possível dizer que uma pessoa
tem um “caráter”?
Baggini menciona uma série de experimentos de psicologia que sugerem
que nossa confiança no caráter é descabida; nosso ambiente pode ter um efeito
muito maior sobre o que fazemos. Um exemplo são os famosos experimentos
de “obediência à autoridade” de Stanley Milgram, em que pessoas
voluntariamente acionavam choques elétricos, que sabiam que prejudicariam
pessoas, simplesmente para agradar os responsáveis do experimento. Os
participantes eram pessoas normais, atenciosas até, mas descobriu-se que
buscar a aprovação era mais importante do que a compaixão para com os
outros. No Experimento da Prisão de Stanford, igualmente bem conhecido,
Philip Zimbardo simulou um ambiente prisional ao longo de cinco dias.
Depois de apenas um dia mais ou menos, os universitários que participavam
do experimento, em geral agradáveis, estavam dispostos a agir de forma
terrível contra aqueles sobre quem tinham controle. “A mente humana nos dá
modelos ou potenciais para ser qualquer coisa a qualquer momento”,
Zimbardo disse a Baggini. Dignidade humana e caráter inerentes são mitos.
O livro de John Doris, Lack of Character [Falta de caráter], observou que
“fatores situacionais muitas vezes são melhores indicadores de
comportamento que fatores pessoais”. Baggini sugere que muitos alemães que
viveram durante o Terceiro Reich teriam levado “vidas irrepreensíveis” se não
tivessem sido postos em um ambiente que trouxe à tona o pior deles. Da
mesma forma, “muitas pessoas são capazes de viver uma vida boa e ética
apenas porque as circunstâncias não as testaram”.
O filósofo William James enfatizou o quanto somos moldados por nosso
ambiente social; nossa família e amigos formatam o que somos. Com a
convivência com outros, assumimos sua visão do mundo, e eles a nossa. James
observou que as roupas se tornam parte de nossa identidade; o mesmo poderia
ser dito de casas, carros e outros pertences. Um colega filósofo de Baggini
questionou se, considerando que o nosso smartphone contém tanta informação
sobre nós, não é, em um certo sentido, parte de nós. Onde o “você” termina e
os objetos ao seu redor começam? “É nosso lugar no mundo que define quem
somos”, alega Baggini. “As relações que constituem nossa identidade são as
relações que temos com os outros, não aquelas que consideramos entre
pensamentos e lembranças em nossa mente.” Somos nossa coleção de funções.
E, no entanto, Baggini observa que não somos apenas uma coleção de
funções – temos uma noção psicológica de eu que permanece,
independentemente da função que desempenhamos na vida. Da mesma forma,
James viu sua individualidade como o “continuum de sentimentos encontrados
no ‘fluxo’ da consciência subjetiva”. Não importa quais sejam nossas
experiências ou nosso ambiente, se temos esse fluxo de sentimentos e
pensamentos, então continuaremos a ter um eu.
Criando um eu
Baggini observa que a filosofia budista está notavelmente em sintonia com a
pesquisa contemporânea sobre o eu. Buda acreditava que não temos uma
essência fixa, imutável; em vez disso, somos a soma de nossas experiências
corporais, pensamentos e sentimentos. Essa crença é muito parecida com a
ideia de feixe de Hume, exceto que o budismo se concentra no grande potencial
positivo contido em não se ter um eu fixo. Ao longo da vida, através do
refinamento de percepções, pensamentos e ações, podemos criar um eu de
forma muito consciente. Como é dito no texto budista Dhammapada [Caminho
do Dharma]:
Comentários finais
Um dos exemplos interessantes de Baggini é Brooke Magnanti, uma mulher
que conseguiu combinar as funções de pesquisadora acadêmica, blogueira e
prostituta, que ficou famosa com seu blog “Belle de Jour”. Não importa o
quanto cada uma dessas funções seja aparentemente diferente, Magnanti
simplesmente as enxergou como diferentes facetas de si mesma e nunca
vivenciou qualquer divisão psicológica. Como comenta Baggini: “Somos, de
fato, menos unificados, coerentes, sólidos e resistentes do que costumamos
imaginar, mas ainda somos reais e individuais”. Walt Whitman expressou essa
ideia mais poeticamente:
Eu sou grande
Contenho multidões.
Julian Baggini
Nascido em 1968, Baggini obteve seu Ph.D. em filosofia no University
College, de Londres. O tema de seu doutorado foi a identidade pessoal.
Baggini contribui com diversos jornais e revistas e, em 1997, cofundou a The
Philosopher’s Magazine, uma revista trimestral.
Outros livros: The Shrink and the Sage: A Guide to Living [O psicólogo e o
sábio: um guia para a vida] (com Antonia Macaro, 2012), O porco filósofo: 100
experiências de pensamento para a vida cotidiana (2008), The Ethics Toolkit
[Ferramentas da ética] (com Pedro Fosl, 2007), Para que serve tudo isso? A filosofia
e o sentido da vida, de Platão a Monty Python (2004), e Ateísmo: uma breve introdução
(2003).
1981
Simulacres et Simulation
Em resumo
Já não vivemos em um mundo onde sinais e símbolos apontam para a
verdade; eles são a verdade.
Na mesma linha
Noam Chomsky, Para entender o poder (p. 92)
Harry Frankfurt, Sobre falar merda (p. 146)
Marshall McLuhan, O meio é a massagem (p. 260)
Slavoj Žižek, Vivendo no fim dos tempos (p. 406)
Jean Baudrillard
Comentários finais
O argumento convincente de Baudrillard era o de que o universo que
habitamos agora é totalmente diferente do mundo modernista de “confrontos
de ideologias”. Ele alegou que os atentados terroristas de 11 de Setembro não
foram um caso de “choque de civilizações”, ou do islamismo contra a
América, mas sim o ponto focal de um mundo que reage contra a própria
globalização e a mudança para o hiper-real, uma espécie de último e horrível
tiro disparado contra a intrusão dos meios de comunicação e da tecnologia em
todos os aspectos de nossas vidas, subordinando os sistemas de valores.
Os filósofos passaram séculos discutindo sobre o peso relativo entre o
“sujeito” (eu) e o “objeto” (o mundo), mas Baudrillard enxergava que o debate
há muito se tornou insignificante – o objeto venceu com facilidade. Uma
pessoa hoje não é um projeto na individualidade, como muitas tradições da
filosofia e da teologia nos diziam, mas se assemelha mais a uma máquina que
consome e reproduz as ideias e imagens que são atuais na mídia, na
publicidade e na política. E, o mais perturbador de tudo, a substituição da
realidade pela hiper-realidade é o que Baudrillard chama de “crime perfeito”,
porque a maioria de nós mal tem consciência de que isso já aconteceu.
Jean Baudrillard
Baudrillard nasceu em Reims, França, em 1929. Seus pais eram funcionários
públicos, e os avós, agricultores. Ele foi o primeiro de sua família a ir para a
universidade. De 1966 a 1987, ocupou cargos na Universidade de Nanterre, e
depois lecionou na European Graduate School até sua morte, em 2007.
Seu primeiro livro, O sistema dos objetos (1968), foi fortemente influenciado
por Roland Barthes, e, em sua fase inicial, Baudrillard foi considerado um pós-
marxista. Seus últimos trabalhos relacionados aos meios de comunicação
foram inspirados nas ideias de Marshall McLuhan. Simulacres et Simulation serviu
de inspiração para o filme Matrix, que oferece uma ideia do que poderia
acontecer se a hiper-realidade fosse levada à sua extensão lógica que tudo
permeia.
Outros livros: La Société de Consommation [A sociedade de consumo] (1970),
Para uma crítica da economia política do signo (1972), Le Miroir de la Production [O
espelho da produção] (1973), À sombra das maiorias silenciosas (1983), América
(1986), Esquecer Foucault (1987), La Guerre du Golfe n’a Pas Eu Lieu [A Guerra do
Golfo não aconteceu] (1991) e Le Crime Parfait [O crime perfeito] (1995).
1949
O segundo sexo
Em resumo
O conceito de “Outro” nos ajuda a entender a posição e o poder das
mulheres através da história.
Na mesma linha
Jean-Paul Sartre, O ser e o nada (p. 354)
Simone de Beauvoir
Aos 40 anos de idade, Simone de Beauvoir era autora de vários romances bem
recebidos, mas era mais conhecida como a companheira de longa data de Jean-
Paul Sartre. Tudo isso mudou com o lançamento de O segundo sexo. Desde o
início o livro foi um best-seller, e Beauvoir descobriu que era a mulher mais
controversa da França.
Considerando sua posição relativamente privilegiada – carreira docente,
nível universitário, frequência em círculos intelectuais parisienses –, Beauvoir
nunca tinha experimentado a sensação de injustiça ou desigualdade. No
entanto, começou a perceber que as pessoas a enxergavam como inferior a
Sartre apenas porque era do sexo feminino. Quando ela se sentou para
escrever O segundo sexo, ficou surpresa ao se flagrar constatando o fato mais
essencial de sua existência: “Eu sou mulher”.
O segundo sexo não trata simplesmente do papel das mulheres na história ou
na sociedade, mas da “Mulher” como um arquétipo e categoria filosófica que é
intercambiável com a ideia do “Outro”. Essa base filosófica eleva o livro acima
de outras escritas feministas e torna a leitura fascinante.
O livro estende-se por 700 páginas e não é fácil de resumir. O Livro Um
traça a história do lugar da mulher na sociedade, desde a Idade do Bronze,
passando pelos tempos medievais, até a modernidade, incluindo uma análise
do “mito da mulher” através de cinco autores: Henry de Montherlant, D. H.
Lawrence, Paul Claudel, André Breton e Stendhal. O Livro Dois investiga a
situação da mulher hoje, da infância ao despertar sexual, do casamento à
menopausa, incluindo retratos da mulher como amante, narcisista e mística,
antes de terminar em um tom mais otimista com um capítulo sobre a
independência da mulher.
Biologia é destino?
Beauvoir remonta às primeiras concepções da biologia para mostrar como a
própria ciência serviu para reduzir o poder e a potência da mulher para
favorecer o homem. Na concepção, por exemplo, a passividade da fêmea foi
contrastada com o “princípio ativo” do esperma masculino, e se pensava que
esse fato determinava todas as características do recém-nascido. Ainda na
concepção, observa Beauvoir, nem o gameta masculino nem o feminino é
superior ao outro; na verdade, os dois perdem sua individualidade quando o
óvulo é fecundado.
O fardo da continuidade da vida ainda é feminino, e, considerando o tempo
e a energia necessários para ela, as possibilidades da fêmea são seriamente
restringidas, pois “a mulher é adaptada às necessidades do óvulo mais do que
às suas próprias”. Da puberdade à menopausa, ela está à mercê de um corpo
que se altera de acordo com as necessidades reprodutivas e deve aguentar um
lembrete mensal desse fato. Nos primeiros estágios da gravidez, vômito e
perda de apetite “sinalizam a revolta do organismo contra a espécie que o
invade”. Muitas enfermidades de uma mulher não resultam de ameaças
externas, mas de lidar com seu sistema reprodutivo muitas vezes problemático.
Além disso, a emotividade mais intensa das mulheres está relacionada a
irregularidades em secreções no sistema endócrino, que têm um efeito sobre o
sistema nervoso. Muitas dessas características, enfatiza Beauvoir, “se originam
na subordinação da mulher à espécie”. Em contraste, “o macho parece
infinitamente favorecido: sua vida sexual não está em oposição à sua existência
como pessoa e, biologicamente, segue um curso regular, sem crises e
geralmente sem contratempos”. Embora as mulheres tendam a viver mais que
os homens, ficam doentes com maior frequência e, em geral, têm menos
controle sobre seu corpo – seu corpo as controla. No entanto, a menopausa
pode trazer libertação, pois uma mulher não é mais determinada ou julgada de
acordo com a função reprodutiva.
Portanto, enquanto as características biológicas da mulher são a chave para
compreender a sua situação na vida, Beauvoir diz com otimismo: “Nego que
elas estabeleçam para ela um destino fixo e inevitável”. A biologia não é
motivo suficiente para a desigualdade entre homens e mulheres, nem motivo
para a mulher ser rotulada como “Outro”, e uma corporalidade feminina não a
condena a permanecer subordinada. Além disso, enquanto os animais podem
ser estudados como organismos estáticos, é muito mais difícil fazer avaliações
de pessoas como seres humanos do sexo masculino ou feminino, uma vez que
nosso sexo não nos define da maneira que o faz com outros animais. Em
muitos aspectos físicos, uma mulher é menos resistente que um homem, assim
seus projetos e suas perspectivas são ostensivamente mais limitados, mas,
inspirando-se em Heidegger, Sartre e Maurice Merleau-Ponty, Beauvoir
observa que “o corpo não é uma coisa, é uma situação”. Visto dessa forma, as
perspectivas das mulheres podem ser diferentes das dos homens, mas não mais
limitadas. Além do mais, muitas das “fraquezas” das mulheres existem apenas
no contexto das finalidades do homem. A inferioridade física, por exemplo,
perde o sentido se houver ausência de violência e guerras. Assim, se a
sociedade for diferente, a avaliação de atributos físicos muda.
Tornar-se mulher
O Livro Dois contém o famoso comentário de Beauvoir de que “não se nasce,
torna-se mulher”. Na infância não há diferença entre os sexos em termos do
que são capazes de fazer. A diferenciação começa quando se conta aos
meninos sobre sua superioridade e como precisam se preparar para o difícil
caminho heroico que têm pela frente. Enquanto o orgulho de seu sexo é
enfatizado a um menino pelos adultos, a anatomia sexual da menina não
recebe a mesma reverência. Urinar também produz uma diferença sexual: para
o menino é uma brincadeira, mas para a menina é um procedimento
vergonhoso e inconveniente. Mesmo se uma menina não tiver “inveja do
pênis”, a presença de um órgão que pode ser visto e segurado ajuda o menino
a se identificar e se torna uma espécie de alter ego. Para a menina, a boneca é o
que se torna o alter ego. Beauvoir alega que não existe realmente um “instinto
maternal”, mas através da brincadeira com as bonecas a menina determina que
o cuidado com as crianças recai sobre a mãe, e “assim a sua vocação é
poderosamente ditada a ela”.
No entanto, quando amadurece, a garota percebe que não é um privilégio
ser mãe enquanto os homens controlam o mundo. Essa revelação a ajuda a
compreender que a vida de um pai tem um “prestígio misterioso”. Quando
ocorre o despertar sexual, os meninos são agressivos e agarram, enquanto para
a menina é muitas vezes um caso repleto de “espera” (“Ela está esperando o
Homem”). Desde tempos imemoriais, a Mulher tem esperado o macho para
realização e escape, assim as meninas aprendem que, para agradar, devem
abdicar de seu poder e independência.
Beauvoir conclui que o caráter da mulher é moldado por sua situação. As
mulheres não são socialmente independentes, mas fazem parte de grupos -
regidos e definidos por homens. Qualquer clube ou serviço social que eles
estabeleceram ainda está dentro da estrutura do universo masculino. Beauvoir
enfatiza que “muitos defeitos pelos quais as mulheres são censuradas – a
mediocridade, a preguiça, a frivolidade, o servilismo – simplesmente exprimem
o fato de que seu horizonte é fechado”.
Mulher e mito
Como as mulheres raramente se veem como protagonistas, não há muitos
mitos femininos, como os de Hércules ou de Prometeu. As funções míticas
das mulheres são sempre secundárias; elas sonham os sonhos do Homem. O
homem criou mitos em torno da mulher, e todos os mitos têm ajudado a
reiterar que a mulher é a inessencial; ele se revoltou contra o fato de que ele é
nascido do ventre de uma mulher e também vai morrer. Como o nascimento
está ligado à morte, a Mulher condena o homem à finitude.
As mulheres também têm sido vistas como magas e feiticeiras que lançam
feitiços sobre o homem. O Homem teme e deseja a mulher. Ele a ama quando
ela é sua, mas teme quando ela permanece sendo o “Outro”; é este Outro que
ele deseja tornar dele. Como o homem, a mulher é dotada de espírito e mente,
mas “ela pertence à natureza e, portanto, aparece como uma mediadora entre o
indivíduo e o cosmo”. O cristianismo espiritualizou a Mulher, atribuindo a ela
beleza, cordialidade, intimidade e o papel de piedade e ternura. Ela já não era
mais tangível, e seu mistério se aprofundou. A Mulher é musa do homem e
também uma juíza que se pronuncia sobre o valor de suas empresas. Ela é um
prêmio a ser conquistado, o sonho no qual todos os outros sonhos estão
envoltos. Vendo pelo lado positivo, a Mulher sempre inspirou o homem a
ultrapassar seus limites.
Comentários finais
O que Beauvoir faria com a paisagem de gênero atual? Especialmente em
países mais ricos e mais livres, muitas mulheres sentem que O segundo sexo está
ultrapassado, que a igualdade é real ou que pelo menos as lacunas na igualdade
são superáveis, e que as meninas têm um futuro tão brilhante quanto o dos
meninos. No entanto, em países onde a misoginia impera e a desigualdade
sexual está inscrita nas leis e expressa nos costumes, o livro de Beauvoir
continua sendo uma bomba em potencial, revelando muito sobre as
motivações reais dos homens.
O livro foi criticado por ser demasiado anedótico e circular, por não ser um
trabalho de filosofia “adequado”, mas isso por si só pode ser visto como um
ataque sutil sobre o gênero da autora feito por filósofos com predominância
criativa e sistematizadores. De fato, Beauvoir é frequentemente negligenciada
como filósofa, o que apenas prova sua alegação de que principalmente os
homens acabam escrevendo a história das disciplinas – e não surpreende que
eles se concentrem primeiro nas contribuições de seu próprio sexo.
Muitas das afirmações de Beauvoir foram ultrapassadas pela ciência. O fato
é que não somos tábula rasa em termos de gênero, mas nascemos com certas
tendências comportamentais, dependendo se somos homens ou mulheres. O
condicionamento definitivamente é real, como ela salientou, mas isso não é
tudo, e só seremos capazes de enfrentar as limitações impostas às mulheres ao
compreender as diferenças biológicas. Quanto mais soubermos sobre nosso
corpo e nosso cérebro, menos a biologia será destino.
Se você for mulher, ler O segundo sexo vai lembrá-la dos avanços feitos pelas
mulheres desde 1949. Se você for homem, ele vai ajudá-lo a conseguir uma
compreensão maior do universo ligeiramente diferente que a mulher habita
ainda hoje.
Simone de Beauvoir
Simone de Beauvoir nasceu em 1908, em Paris. Seu pai era advogado e sua
mãe, católica devota. Simone foi enviada para uma prestigiada escola de freiras.
Em sua infância, era muito religiosa e considerou tornar-se freira, mas, aos 14
anos, virou ateia.
Quando estudou filosofia na Sorbonne, escreveu uma tese sobre Leibniz.
Em um exame nacional que classificava estudantes, ela ficou em segundo lugar,
perdendo somente para Jean-Paul Sartre (que ela já havia encontrado), e
também foi a pessoa mais jovem a entrar nesse ranking. Seu relacionamento
com Sartre influenciou seu primeiro romance, A convidada, publicado em 1943.
Beauvoir lecionou filosofia no Liceu Pierre-Corneille, em Rouen, onde a
feminista Collette Audry, sua amiga, também lecionou. Em 1947, foi enviada
pelo governo francês aos Estados Unidos para dar palestras em universidades
sobre literatura francesa contemporânea. No mesmo ano, ela escreveu Moral da
ambiguidade, seu famoso ensaio sobre o existencialismo francês. Ela viajou
bastante e escreveu vários diários de viagem quando esteve na China, na Itália
e na América, que visitou várias vezes.
Beauvoir viveu não muito longe de Sartre em Paris e escreveu A cerimônia do
adeus, um relato tocante dos últimos anos do filósofo. Ela continuou seu
trabalho literário e de ativista até sua morte, em 1986.
1789
Em resumo
É mais provável alcançar uma sociedade justa por meio de um cálculo
objetivo de maximização do prazer e minimização da dor.
Na mesma linha
John Stuart Mill, Sobre a liberdade (p. 268)
Platão, A República (p. 308)
John Rawls, Uma teoria da justiça (p. 322)
Michael Sandel, Justiça (p. 346)
Peter Singer, Quanto custa salvar uma vida? (p. 372)
Jeremy Bentham
Comentários finais
Bentham não estava interessado na ideia de “direitos naturais”, mas acreditava
que toda a sociedade tem o direito de ao menos ser protegida de dano físico,
com base no pressuposto de que a ação ilícita anula ou reduz o direito
individual à felicidade.
A afirmação de Bentham de que “todos contam por um, ninguém por mais
de um” é a forma abreviada do princípio utilitarista da justiça, e ele estava à
frente de seu tempo na aplicação dele a todos os seres sencientes. Em Uma
introdução aos princípios da moral e da legislação, ele defende que os direitos não
deveriam depender da capacidade de raciocinar, mas da capacidade de sofrer.
Essa distinção foi o fundamento do movimento moderno pelos direitos
animais, principalmente nos escritos de Peter Singer (Libertação animal, 1973).
Para Singer, utilitarista contemporâneo, o teste das ações, inclusive quanto ao
que comemos e como gastamos nosso dinheiro, é de quanta dor esses atos
podem ajudar a evitar (seja para pessoas ou animais) e se esses mesmos atos
podem aumentar o estoque de vida e felicidade.
Os críticos do princípio utilitarista dizem que ele vai contra a intuição ou a
natureza humana. Por exemplo, estudos psicológicos têm mostrado que não
agimos com base em cálculos de quantas pessoas se beneficiarão de nossas
ações, mas se uma ação nos traz uma resposta emocional positiva. Essas
propensões podem estar programadas dentro de nós a partir de milhões de
anos de vínculo social e pelo desejo de proteger os nossos, e é improvável que
um princípio filosófico aparentemente árido possa superar isso. De fato, o
utilitarismo pode parecer uma maneira bem impessoal e calculista de ver a vida
e a organização da sociedade, e o próprio Bentham admitia isso, e por esse
motivo preferia a expressão “princípio da maior felicidade”. Mas ele era
apaixonado por sua crença de que era nossa melhor esperança para uma
sociedade justa e civilizada.
Em um nível puramente pessoal, perguntar “O que beneficiaria a maioria
das pessoas, da melhor forma, tanto quanto possível no futuro?” é, sem
dúvida, uma boa maneira de abordar a vida e as suas decisões. Bentham
acreditava que a maioria das pessoas era egoísta, mas todas as religiões, e
muitos tipos de filosofias morais, atestam os benefícios de se cultivar o estado
diretamente oposto: pensar no bem dos outros em primeiro lugar é, na
verdade, a única coisa com que podemos contar para proporcionar a nossa
felicidade.
Jeremy Bentham
Nascido em 1748, em Londres, filho e neto de advogados, Bentham
frequentou a Westminster School antes de, aos 12 anos, ir para a Universidade
de Oxford. Lá ele foi treinado para uma carreira em direito, que nunca chegou
a exercer. Em vez disso, seguiu os próprios interesses, e, mais tarde na vida,
uma herança permitiu que ele se mantivesse escrevendo e pesquisando sem
preocupações.
Bentham escreveu copiosamente, e seus artigos ainda estão sendo
transcritos. Ele se correspondia com o pai-fundador norte-americano James
Madison, com o revolucionário sul-americano Simon Bolívar, com o
economista político Adam Smith e com o político revolucionário francês
Mirabeau. Ele era a favor de tornar a homossexualidade uma questão
particular em vez de um delito criminal, opôs-se à escravatura, apoiou a
igualdade da mulher e o direito ao divórcio e foi promotor de um governo
transparente, escrevendo que “onde não há publicidade [ou seja, divulgação
completa], não há justiça”. Como parte de seu empenho para a reforma penal,
passou muitos anos desenvolvendo o influente “Panóptico”, embora seu
conceito de Penitenciária Nacional nunca tenha sido construído.
Em 1797, Bentham fez campanha com Patrick Colquhoun contra o roubo
de navios mercantes e a corrupção no Tâmisa, em Londres, o que levou à
criação de uma força policial fluvial. Fundou o jornal utilitarista Westminster
Review em 1823 e, três anos mais tarde, ajudou a criar a Universidade de
Londres, que mais tarde se tornou o University College. O espírito da
instituição era de abertura a todos, independentemente de riqueza ou afiliação
religiosa (em contraste com as universidades de Oxford e Cambridge).
James Mill (pai de John Stuart) conheceu Bentham por volta de 1808 e
passava os verões com ele e seu círculo em Forde Abbey, a casa de campo de
Bentham em Somerset. Bentham morreu em 1832 e, fiel a seus princípios,
deixou seu corpo para a ciência em vez de mandar enterrá-lo. O exterior de seu
corpo foi mumificado e por fim posto em exibição no University College,
onde pode ser visto ainda hoje.
Outros livros: Fragment on Government [Fragmento sobre o governo] (1776),
Defence of Usury [Defesa da usura] (1787), O panóptico (1787), Parliamentary
Reform Cathechism [Catecismo da Reforma Parlamentar] (1817) e A Treatise on
Judicial Evidence [Um tratado sobre a prova judicial] (1825).
1907
A evolução criadora
Em resumo
Queremos ver o universo em termos mecanicistas e determinados, mas a
realidade, uma vez que envolve vida e tempo, é, na verdade, fluida e
constantemente aberta a possibilidades.
Na mesma linha
Hannah Arendt, A condição humana (p. 24)
David Bohm, Totalidade e a ordem implicada (p. 84)
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação (p. 364)
Henri Bergson
Ver o todo
A ciência “está preocupada apenas com o aspecto da repetição”, comenta
Bergson. Ela é impulsionada a criar regras baseadas naquilo que aconteceu
antes e enxergar padrões na natureza. Ao fazer isso, examina as coisas em
partes cada vez menores, chegando ao “conhecimento” da coisa. No entanto,
Bergson sugere que algo somente pode ser conhecido pelo seu conhecimento
como um todo. A percepção do todo é contrária à maneira como a ciência
funciona e também é a verdadeira função da filosofia.
Bergson admite que a vida pode ser vista como uma espécie de mecanismo,
mas um em que cada organismo faz parte de um sistema maior, que é parte de
um todo, de uma “continuidade indivisível”. Ele usa a analogia de uma linha
curvada em uma página. Se a examinarmos muito de perto, a linha é composta
de milhares de pontinhos de tinta; se considerarmos uma parte ínfima da linha,
ela não é curvada, mas reta para todos os efeitos. Somente quando olhamos de
longe vemos a verdadeira natureza ou finalidade da tinta como ela está
posicionada: em uma curva. Ele diz que, da mesma forma, “a vida é feita de
elementos físico-químicos tanto quanto uma curva é composta de linhas
retas”.
Os cientistas acreditam que, em seu trabalho, estão efetivamente fazendo
um instantâneo do universo e que, a partir desse instantâneo do momento
presente, podem fazer suposições sobre o futuro. Com inteligência sobre-
humana e dados suficientes, se colocarmos tudo o que há para ser conhecido
sobre o universo agora em um computador, poderíamos prever com precisão
quando uma nova espécie poderá surgir e como seria, ou a direção do vapor
que sai da boca de uma pessoa em um dia frio de inverno ou qualquer coisa.
No entanto, esse ponto de vista pressupõe que o tempo pode de fato ser
congelado por um momento, uma ilusão sobre a qual muito da ciência é
construído.
O fato de que o tempo não para e que a natureza de duração é a força de
criação contínua das coisas vivas significa que o futuro nunca será calculável.
Em vez disso, como Bergson sugere, apreciamos a vida no tempo, ou na
duração, justamente como “uma corrente contra a qual não podemos ir. Ele é
a base de nosso ser e, como sentimos, a própria substância do mundo em que
vivemos”. A perspectiva de uma “deslumbrante matemática universal”, que
analisa tudo em seus componentes estáticos, é uma insensatez que vai contra a
experiência e a própria natureza da vida.
Nenhum objetivo em mente
Dito isso, Bergson não acredita que não haja uma meta ou ponto-final no
sentido para o qual a vida se move (“finalismo”). Seu ímpeto é o de
simplesmente criar, e seu impulso vai no sentido de individualidade:
Comentários finais
Bergson pergunta: no mundo moderno e racional em que vivemos, qual é o
lugar da intuição ou do instinto? Ele observa que a vida dos animais é simples
porque eles não precisam pensar em suas ações; simplesmente agem de acordo
com a sua natureza. A inteligência humana nos deu a capacidade de planejar,
ponderar e fazer escolhas (dotando-nos com a civilização), mas houve um
custo. Ao assumir a inteligência analítica, a humanidade deixou de viver por
instinto e, assim, perdeu contato com a essência da vida.
Cada pessoa ainda consegue acessar o poder da intuição, ou o ser e o agir
antes da análise são postos em jogo, mas o que impede isso é a preocupação
com nossas necessidades imediatas. Esse foco em suprir as necessidades (que
não têm fim) significa que estamos concentrados no mundo material em toda a
sua diversidade e multiplicidade, em vez de estarmos focados na unicidade e na
simplicidade da força vital. A filosofia é uma maneira de conciliar as duas
coisas, permitindo-nos viver dentro do corpo no mundo “real”, ainda que
sempre nos retiremos de volta à própria vida. Para Bergson, o verdadeiro
filósofo não é um analista árido de conceitos, mas aquele que cultiva o instinto
e a intuição para se reunir ao fato básico de nossa existência: como um entre
trilhões de expressões de um Todo absoluto, cuja natureza é a contínua criação
e evolução.
Henri Bergson
Bergson nasceu em uma família judia em 1859. Era um estudante talentoso e
um matemático capaz e, em seus anos de adolescência, ganhou o prestigioso
prêmio Concours General. Seguiu seus estudos na área de humanidades,
fazendo seu professor de matemática lamentar o fato de que ele “poderia ter
sido um matemático”, mas “seria um mero filósofo”.
Foi aceito na École Normale Supérieure, uma escola de elite, e teve como
seus contemporâneos Jean Leon (mais tarde um eminente estadista francês) e
David Emile Durkheim (sociólogo). Ficou em segundo lugar em uma das
provas mais proeminentes de filosofia na França, a Agrégation de Philosophie.
Após a universidade, Bergson lecionou em uma escola no centro da França.
Foi aceito no Collège de France e também passou a lecionar em sua alma
mater, a École Normale Supérieure.
A evolução criadora trouxe fama e muitos admiradores a Bergson, inclusive o
poeta T. S. Eliot. Sua primeira visita aos Estados Unidos resultou em um
congestionamento na Broadway. Ele se tornou um dos planejadores e
executores da Liga das Nações, a precursora das Nações Unidas, e como
presidente da Comissão Internacional de Cooperação Intelectual teve voz ativa
na formação da Unesco.
Outros livros incluem Matéria e memória (1896), A energia espiritual (1919) e
As duas fontes da moral e da religião (1932). No entanto, muito de sua obra foi
perdido, queimado de acordo com sua vontade após a sua morte, em 1941.
1980
Em resumo
A maneira humana de perceber objetos separados e a criação de categorias
são uma ilusão. A realidade é, na verdade, indivisível e ininterrupta, e todos
os fenômenos são simplesmente perturbações deste todo único.
Na mesma linha
Henri Bergson, A evolução criadora (p. 76)
G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito (p. 158)
Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas (p. 228)
Karl Popper, A lógica da pesquisa científica (p. 316)
David Bohm
David Bohm foi um dos físicos teóricos de destaque do século XX, conhecido
pela teoria de DeBroglie-Bohm e pelo Efeito Aranozov-Bohm, muitas vezes
relacionados ao estranho comportamento dos elétrons. A teoria de DeBroglie-
Bohm postula “variáveis ocultas” na física quântica que exibem sua natureza
não local (ou seja, as partículas estão ligadas, agindo quase como gêmeas,
apesar da enorme distância entre elas). Bohm trabalhou sob o comando de
Robert Oppenheimer (do grupo da bomba atômica de Los Alamos) e
colaborou com Albert Einstein. No entanto, em uma vida passada entre o
Oriente e o Ocidente, a ciência e a metafísica, ele também foi muito
influenciado por sua amizade com Jiddu Krishnamurti, sábio e escritor
indiano, e por conversas com o Dalai Lama.
Bohm ficou especialmente fascinado por resultados de laboratório que
mostravam partículas subatômicas distantes que ainda conseguem se
comunicar de maneira que não poderia ser explicada por sinais físicos viajando
à velocidade da luz. Essa comunicação instantânea (ou não local) foi uma das
muitas coisas que lhe sugeriam que o universo não é um espaço vazio que
contém partículas de matéria, mas sim que o espaço em si é quase vivo e tem
inteligência. O espaço é entendido como um todo ininterrupto do qual a
consciência faz parte. São só os sentidos humanos que abstraem certos
fenômenos para dar a impressão de que as coisas são separadas e autônomas, e
que mente e matéria estão separadas. Essas visões eram contrárias à física
determinista, mas a ciência ainda precisa provar que as ideias de Bohm estão
erradas.
Enquanto a maioria dos físicos fica contente em se afundar em sua
especialização, Bohm era extremamente preocupado com as implicações de
suas ideias. Muito dos problemas do mundo, pensava ele, vinha da percepção
de que cada pessoa e cada coisa é separada da outra, o que faz com que
queiramos nos defender da percepção do “outro” e ver a humanidade como
algo separado da natureza. Tal pensamento mais amplo transformou Bohm em
filósofo, e seu trabalho demonstra como o pensamento filosófico mostra seu
valor quando a ciência não consegue revelar o significado de uma investigação.
Bohm escreveu Totalidade e a ordem implicada para um público geral, e isso
torna a leitura do livro atraente.
Mente e matéria
Qual é a relação do pensamento, ou da consciência, com a realidade?
Para serem práticos, os seres humanos há muito tempo criaram uma grande
distinção entre a fixidez, a estabilidade e a “realidade” das coisas e a
impermanência e a irrealidade do reino do pensamento. Foi uma distinção de
conveniência, não da verdade. A visão de “totalidade” de Bohm diz que, se a
mente e a matéria decorrem ambas do fluxo universal, não faz sentido ver
“pensamento” e “realidade” como entes separados. Isso tem implicações
importantes para a física quântica e o ethos de um “observador objetivo” na
ciência. Os cientistas pensam que estão separados daquilo que observam, mas,
se aceitarmos a realidade como um movimento de fluxo, então objeto,
observador, instrumento de observação e resultados experimentais devem ser
vistos como parte de um mesmo fenômeno.
Apenas nossos pensamentos individuais, surgidos no cérebro e no sistema
nervoso (o que chamam de ego), podem promover a separação, a confusão e
as suposições incorretas. No entanto, deve-se estar, pelo menos, consciente
dessa possibilidade para estar aberto àquilo que talvez sejam simplesmente
nossas projeções e falsas categorizações, tão diferente daquilo “que é” do todo
universal. Por isso, como a filosofia oriental nos diz, é somente quando
podemos realmente observar nossos pensamentos, ou na meditação ter um
momento de “não pensar”, que conseguimos começar a saber o que realmente
é. A visão de mundo da pessoa vai ditar suas relações. Se a pessoa perceber a
realidade em termos de objetos separados, essa será a experiência dela. Se a
pessoa perceber a realidade como um todo ininterrupto, naturalmente isso vai
mudar a maneira como ela se relaciona com outras formas de vida e com a
própria consciência.
De onde vêm o conhecimento intuitivo e a
criatividade
Bohm faz uma distinção entre pensamento, que é naturalmente associado à
memória, e “percepção inteligente”, que pode ser um flash de entendimento no
qual enxergamos que todo nosso pensamento estava errado ou
“condicionado”. Essas percepções são verdadeiramente novas e parecem vir
do nada. Como o autor observa, a opinião dominante é que toda percepção,
por mais recente que pareça, vem de neurônios e sinapses do cérebro. No
entanto, se as percepções são realmente novas e não condicionadas, é
impossível que venham de bancos de memória e experiências depositadas no
cérebro. Elas surgem a partir do fluxo de consciência universal, que fica além
ou acima de qualquer arranjo determinado de átomos e partículas no cérebro.
É possível “conhecer” uma coisa por meio de percepção, sem ter uma base
para conhecê-la por meio da memória ou do pensamento mecânico;
simplesmente estamos sintonizados com o fluxo universal (na verdade, sempre
fomos parte dele). O mesmo vale para a verdadeira criatividade: ninguém jamais
foi capaz de dizer de onde vem uma ideia original. A criatividade é misteriosa
porque realmente não vem de “nós”, apenas como o resultado de nosso ser,
uma abstração de um fluxo maior de informações. A analogia de Bohm é um
receptor de rádio que, quando ligado, produzirá um zumbido sem significado
próprio. “Quando o pensamento funciona sozinho”, escreve ele, “ele é
mecânico e não inteligente, porque impõe sua ordem, em geral irrelevante e
inadequada, retirada de memória.” Apenas quando o pensamento está em
sintonia com uma frequência – uma forma inteligente – é que se torna um
instrumento de ordem e significado em si.
Comentários finais
Apesar daquilo que sabemos sobre física quântica, Bohm observa que os
cientistas continuam a ter uma visão mecanicista do universo. Primeiro eram
os átomos que formavam o universo, depois os elétrons, agora são os quarks e
os prótons. Embora ele estivesse escrevendo antes do advento do Grande
Colisor de Hádrons e da busca para encontrar o bóson de Higgs, ou “partícula
de Deus”, ele antecipou isso como parte da mesma busca para localizar os
blocos básicos construtores do universo. Porém, mesmo a teoria da
relatividade sugeria que a existência de uma única partícula estável era ilusória;
Einstein preferiu pensar o universo em termos de campos. Foi apenas nosso
apego obstinado de descobrir “coisas” que manteve em nós o desejo de ver o
universo como um recipiente cheio de coisas, quando o espaço é mais como
um campo pleno de potencial. Como Bohm coloca:
Em resumo
Em democracia, o poder silencia dissidentes através do abuso de
linguagem.
Na mesma linha
Harry Frankfurt, Sobre falar merda (p. 146)
Nicolau Maquiavel, O príncipe (p. 252)
Platão, A República (p. 308)
Noam Chomsky
Linguagem política
Chomsky começa com uma discussão de como se usa e abusa da linguagem
para ocultar ações injustas.
Ele observa a distinção entre o significado das palavras do dicionário e seu
significado conforme são empregadas em “guerras ideológicas”. Por exemplo,
“terrorismo” é algo que apenas os outros fazem. Outra palavra da qual se
abusa é “defesa”. “Nunca ouvi falar de um Estado que admite estar realizando
um ato agressivo”, observa Chomsky, “eles estão sempre empenhados na
‘defesa’.” Os meios de comunicação nunca questionam isso: por exemplo,
nenhuma publicação mainstream contestou a ideia de os Estados Unidos
estarem “defendendo” o Vietnã do Sul, quando na verdade eles estavam
atacando o país. “Defesa” tornou-se um termo orwelliano, cujo significado é
seu exato oposto. “Os termos do discurso político”, comenta ele, “são
concebidos de modo a evitar o pensamento.”
Chomsky argumenta que o desejo dos Estados Unidos de posar como
apoiadores das democracias de todo o mundo é uma ilusão; na verdade, eles só
apoiam as democracias de que gostam. Por exemplo, como sob o comando dos
sandinistas os negócios não têm um grande papel no Estado nicaraguense, aos
olhos dos EUA o país não era uma verdadeira democracia, então estava pronto
para ser desmontado. Ele contrasta com El Salvador e Guatemala, governos
que foram liderados por militares em benefício das oligarquias locais
(latifundiários, empresários ricos e a classe profissional), cujos interesses
estavam alinhados com os dos Estados Unidos:
O poder real
Chomsky não critica simplesmente o governo, observando que:
Estados de dependência
Apesar da retórica de disseminar a liberdade ao redor do mundo, Chomsky
alega que a finalidade real da política externa norte-americana é manter o
maior número possível de Estados dependentes dela. Chomsky vem dizendo
isso há vinte anos, mas o mesmo poderia ser dito hoje da China e de seus
esforços de “comprar” países como Nepal em sua periferia, e de muitos outros
países africanos ricos em recursos. Grandes potências opõem-se à
independência de potências menores porque elas podem começar a prestar
mais atenção ao bem-estar de seu povo em vez de instituir políticas que sirvam
aos grandes interesses do país. A política externa norte-americana é projetada
para atender a investidores, comenta ele; portanto, se qualquer governo
estrangeiro trouxer medidas que na verdade ponham seu povo em primeiro
lugar, “esse governo simplesmente precisa desaparecer”.
Embora os Estados Unidos insistam para que os países em
desenvolvimento abram seus mercados, Chomsky salienta que “não há uma
única economia na história que se desenvolveu sem intervenção extensa do
Estado, como altas tarifas protecionistas, subsídios e assim por diante. Na
verdade, todas as coisas que precisamos evitar que o Terceiro Mundo faça eram
pré-requisitos para o desenvolvimento em toda parte”.
Comentários finais
É difícil enxergar a política e os meios de comunicação da mesma forma após
a leitura de Chomsky, mas seria errado considerar este livro como um ataque
apenas contra os Estados Unidos. A natureza corruptora do poder é universal,
e, onde quer que você more, exemplos locais vão saltar à mente. Entender o
poder não é simplesmente saber o que um determinado país, empresa ou
instituição tem feito, mas o que provavelmente fará se não for verificado e
exposto. No entanto, considerando seus ataques implacáveis ao Estado norte-
americano, se este fosse mesmo todo-poderoso, Chomsky já não teria sido
silenciado há muito tempo? Sua resposta é que ele é um homem branco, e
homens brancos são vistos como sacrossantos no Ocidente moderno. Matar
causa uma celeuma imensa, então seria contraproducente para os interesses
estabelecidos.
Geralmente é sinal de genialidade quando uma pessoa reconhece quanto ela
não sabe, e Chomsky faz questão de salientar quanto realmente a ciência
pouco explica o mundo, em especial quando se trata de fatores extremamente
complexos como a ação e a motivação humanas. Considerando sua visão do
poder, é surpreendente que ele não seja um pessimista com relação ao nosso
futuro. Ele não acompanha os sociobiólogos, que afirmam que os seres
humanos são, de alguma forma, projetados para o egoísmo; em vez disso, ele
observa que, “se olharmos para os resultados da natureza humana, veremos
tudo: […] veremos um enorme autossacrifício, veremos uma enorme coragem,
veremos integridade, veremos destrutividade”.
Sempre há potencial para quaisquer conquistas serem revertidas, mas, no
geral, Chomsky vê progresso. É menos aceitável agora tratar as pessoas como
objetos ou meios para um fim (“A escravidão era considerada uma coisa boa
até pouco tempo atrás”), e, mesmo que as estruturas de poder apenas façam
elogios falsos à liberdade, à autodeterminação e aos direitos humanos, pelo
menos eles são ideais reconhecidos.
Noam Chomsky
Chomsky nasceu na Filadélfia em 1928. Seu pai, imigrante russo, foi um
eminente estudioso do hebraico. Aos 10 anos, escreveu um artigo sobre a
ameaça do fascismo após a Guerra Civil Espanhola e, a partir dos 12 ou 13
anos, passou a se identificar com a política anarquista. Ingressou na
Universidade da Pensilvânia em 1945, entrando em contato com Zellig Harris,
um proeminente linguista. Em 1947, decidiu se especializar em linguística e,
em 1949, se casou com a linguista Carol Schatz.
De 1951 a 1955, Chomsky foi “junior fellow” em Harvard, onde completou
o seu doutorado; sua tese foi publicada mais tarde como The Logical Structure of
Linguistic Theory [A estrutura lógica da teoria linguística]. Recebeu um cargo de
docente no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), em 1955, e vem
lecionando lá desde então. Em 1965, organizou um comitê de cidadãos para
divulgar a recusa fiscal em protesto durante a Guerra do Vietnã, o que lhe
trouxe reconhecimento público. Quatro anos depois, lançou seu primeiro livro
sobre política, O poder americano e os novos mandarins (1969).
Outros livros: The Political Economy of Human Rights [A economia política
dos direitos humanos] (1979, com Edward S. Herman), Contendo a democracia
(1991), Os caminhos do poder (1996) e Estados fracassados (2006). Uma versão
cinematográfica de A manipulação do público foi lançada em 2001.
44 a.C.
Dos deveres
Em resumo
O que é certo e o que é conveniente nunca podem ser coisas distintas.
Na mesma linha
Confúcio, Os analectos (p. 108)
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
Nicolau Maquiavel, O príncipe (p. 252)
Platão, A República (p. 308)
Cícero
Uma das grandes figuras da Roma Antiga, Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.)
apoiava tanto a democrática, nobre e mais inocente República Romana quanto
o autocrático e predatório Império Romano. Vale a pena recontar brevemente
sua história.
Vindo de uma família rica, mas não aristocrática, e proprietária de terras ao
sul de Roma, o pai de Cícero estava determinado a fazer com que ele e seu
irmão, Quinto, deixassem uma marca em Roma. Depois de uma educação de
alta qualidade, Cícero foi trabalhar como assistente de generais do alto escalão
no campo de batalha, mas ele não dava a mínima para a guerra e ficou feliz ao
voltar a Roma para trilhar sua carreira como advogado. Suas habilidades
fizeram dele uma das estrelas em ascensão de Roma. No entanto, ele também
ansiava por aprender filosofia grega e direito. Passou alguns anos viajando pela
Grécia e pela Ásia, onde ouviu epicuristas como Zenão e Fedro.
Aos 31 anos, Cícero recebeu seu primeiro cargo de questor (magistrado que
cuidava de questões financeiras), na Sicília, onde sua integridade impressionou
tanto os cidadãos locais que ele foi convidado a representar a Sicília em uma
acusação bem-sucedida contra seu ambicioso governador, Caio Verres. Aos 37
anos, recebeu um cargo de edil, que fez dele encarregado de organizar os jogos
e o entretenimento em Roma, e aos 40 anos virou pretor, ou magistrado
sênior. O auge de sua carreira veio aos 43 anos, quando se tornou cônsul (o
equivalente a primeiro-ministro ou presidente de hoje) de Roma – uma grande
conquista para um homo novus (“homem novo”) que não era de uma das antigas
famílias senatoriais.
Cícero entrou na maioridade em uma Roma que ainda operava por meio
das nobres instituições da República, mas sua pureza foi se tornando cada dia
mais turva por causa da guerra civil e da ascensão de ditadores como Júlio
César. Como cônsul, Cícero viu a si mesmo como defensor da verdadeira
Roma. Essa perspectiva foi testada no primeiro ano de seu reinado pela
Conspiração Catilinária, no qual um senador descontente (Lúcio Sérgio
Catilina), impedido de ser cônsul devido à corrupção eleitoral, conspirou para
derrubar o governo. Cícero soube desse boato e declarou lei marcial. Ordenou
a captura e a execução dos conspiradores sem julgamento. Cícero pintou o
evento como um ataque à República e a si mesmo como seu salvador. No
entanto, sua ação decisiva mais tarde voltaria para assombrá-lo, quando um
inimigo senatorial, Públio Clódio, mandou promulgar uma lei para a acusação
de qualquer pessoa que tivesse executado cidadãos sem julgamento.
Para evitar o julgamento, Cícero exilou-se por um tempo e canalizou suas
energias na escrita, retirando-se para sua casa em Tusculum, perto de Roma.
Em menos de dois anos, ele produziu a maioria de seus famosos escritos,
inclusive Discussões tusculanas, Da amizade e Dos deveres.
Os perigos do sucesso
Moderação e autocontrole
Comentários finais
Cícero é um enigma. Por um lado, ele é o grande defensor da República
Romana e de seu ideal do primado da lei; por outro, sentenciou vários
conspiradores à morte sem julgamento. Embora Roma estivesse funcionando
sob a lei marcial à época, os conspiradores ainda eram cidadãos, e muitos
acharam o ato imperdoável.
No entanto, não se pode duvidar de sua influência. Ele foi providencial
para levar a filosofia grega, em especial a de Platão, às classes romanas
educadas. Sua perspectiva foi adaptada por filósofos cristãos, particularmente
por Santo Agostinho, cuja vida, ao que dizem, mudou após a leitura do
Hortensius de Cícero (obra hoje perdida), e sua ética e o conceito de direito
natural foram fundamentais para a filosofia cristã medieval. Filósofos como
Erasmo proclamaram Cícero o arquétipo humanista, e os pensadores
iluministas Voltaire e Hume elogiaram sua visão cética e tolerante do mundo.
Os ideais republicanos de Cícero foram de grande influência para os pais
fundadores dos Estados Unidos (John Adams o reverenciava), e ele foi até
aceito pelos revolucionários franceses. No entanto, Friedrich Engels queixava-
se de que Cícero nunca se importou com a extensão dos direitos econômicos
ou políticos para além da classe abastada.
Rígido e intransigente no cargo, era de esperar que Cícero fosse um homem
durão que acreditava no dever em detrimento das aspirações pessoais. Na
verdade, seu humanismo era de um contraste brutal com ditadores como Sula
e César, e ele se esforçava para dizer que as pessoas deveriam, se possível,
seguir uma carreira que fosse fiel ao seu caráter. Esse tipo de sentimento revela
que a filosofia estoica, apesar de sua reputação de obediência empedernida, era
na verdade centrada no indivíduo e no papel único que poderia desempenhar
no mundo.
Cícero
Após o assassinato de César, Cícero esperava que a República pudesse renascer
e apoiou Otaviano (Augusto) contra Marco Antônio. Quando Augusto e
Marco Antônio concordaram com uma temporária ditadura de partilha do
poder no âmbito do Segundo Triunvirato, os dois lados quiseram eliminar os
inimigos. O nome de Cícero foi adicionado às listas de morte, e ele foi caçado
e morto em 43 a.C., enquanto tentava fugir para a Macedônia. Sob as
instruções de Marco Antônio, as mãos e a cabeça de Cícero foram cortadas e
exibidas no Senado. Dizem que a esposa de Marco Antônio, Fúlvia, se deliciou
puxando a língua de Cícero para fora da boca e furando-a com um grampo de
cabelo.
O nome da família de Cícero vem da palavra cicer, grão-de-bico em latim.
Seu irmão Quinto Cícero também chegou a ser pretor e foi governador da
Ásia junto com Pompeu. Cícero teve um filho e uma filha com Terência, que
vinha de uma família rica. Ficou extremamente consternado quando Túlia, sua
filha, faleceu com 30 e poucos anos.
Os livros do autor britânico Robert Harris, Imperium (2006) e Lustrum (2009)
são os primeiros dois volumes de uma trilogia romanceada sobre a vida de
Cícero, visto através dos olhos de seu secretário, Tiro, um escravo que Cícero
libertou.1
Século V a.C.
Os analectos
Na mesma linha
Cícero, Dos deveres (p. 100)
Confúcio
O Mestre disse: “Quem age com uma visão constante para sua
própria vantagem terá muitos resmungos contra si”.
O Mestre disse: “A mente do homem superior é versada na justiça;
a mente do homem mau é versada no lucro”.
A pessoa sábia ama a virtude mais do que qualquer coisa, e sempre fará o
que é correto. A virtude é como um freio que um homem precisa para manter
sob controle sua ambição e suas paixões. Confúcio compara a veracidade, por
exemplo, ao jugo a que bois estão presos, que permite que o carro se mova
adiante. Sem isso, os cavalos ficam loucos e provocam o caos.
Como sugere a passagem a seguir, é preciso ser verdadeiro com o próprio
eu, mas o paradoxo é que, por mais que analisemos esse eu, arrancando as
camadas de ignorância, provavelmente não encontraremos nenhuma grande
verdade da personalidade. Em vez disso, simplesmente nos tornaremos um
receptáculo para a expressão de qualidades que beneficiem a todos:
Qualidades do mestre
Os analectos não são apenas uma coleção de provérbios de Confúcio, mas uma
imagem do homem e de suas qualidades apresentadas por seus discípulos. Um
diz que “o Mestre era moderado e, no entanto, digno; majestoso, mas não
feroz; respeitoso e, no entanto, tranquilo”. Outro observa “quatro coisas das
quais o Mestre estava completamente livre. Ele não tirava conclusões
precipitadas, nem dava predeterminações arbitrárias, não apresentava
ostentação nem egoísmo”.
Embora Confúcio pudesse muitas vezes admoestar seus homens, era sem
malícia e apenas para agir como um espelho para seu comportamento ou
perspectiva. Ele ainda era muito humano (por um tempo ficou inconsolável
quando um de seus discípulos favoritos morreu com apenas 31 anos de idade),
mas também estava “além do pessoal”, com uma liberdade e uma clareza da
mente com que a maioria das pessoas apenas sonha. Muitas passagens falam
de sua compostura e da adequação e tempestividade de todas as suas ações.
Uma de suas frases citadas: “O homem superior é satisfeito e composto, o
homem mau está sempre cheio de aflição”. Seu método de contrastar duas
qualidades era memorável e até mesmo espirituoso:
Um homem deveria dizer: Não estou preocupado por não ter lugar,
estou preocupado em como posso me encaixar em um. Não estou
preocupado por não ser conhecido, procuro ser digno de ser
conhecido.
Aprendizagem constante
Confúcio foi um grande erudito, editava coleções de poesia e textos históricos
que formavam a crônica sobre sua terra natal, Lu, e também escreveu um
importante comentário sobre o I-Ching [O livro das mutações].
Via o aprendizado a partir dos livros como um meio de
autoaperfeiçoamento e podia ficar impaciente com discípulos que não eram
tão intelectuais. Uma linha n’Os analectos atribuída ao Tsze-hsia diz: “Artesões
têm suas oficinas para habitar, para realizar seus trabalhos. O homem superior
aprende para chegar ao máximo de seus princípios”. O próprio Confúcio
define isso da forma mais simples e poderosa: “Sem conhecer a força das
palavras, é impossível conhecer os homens”.
Comentários finais
Confúcio enfatizou o valor de piedade filial, especialmente do profundo
respeito e lealdade para com nossos pais, e há várias menções n’Os analectos da
importância do período de luto de três anos depois da morte dos pais. Em
resposta a uma pergunta de um discípulo sobre o significado da piedade filial,
Confúcio lamenta que seu significado tenha virado mero “apoio”, quando um
cão e um cavalo também são capazes de apoiar. O que é decisivo é a reverência.
Aquele que venera os pais refina o eu, permitindo-nos ver que somos
simplesmente um elo em uma cadeia de ser que se estende para o passado e
para o futuro.
No entanto, Confúcio não se subjugava à tradição por si só. Conta-se a
história de que ele salvou e mantinha em sua casa um menino escravo que
havia escapado de ser enterrado com seu mestre, que era o costume da época.
Confúcio alegou no tribunal que o costume era bárbaro, um caso de piedade
filial levado a um extremo horrível, e o garoto foi salvo. Sua mensagem: o
dever é importante, mas é dever alinhar-se sempre à virtude, não a costumes
ou tradições específicos. Embora eles necessariamente mudem, qualidades
como respeito e honestidade são atemporais.
Confúcio
Nasceu em 551 a.C. onde hoje fica a província de Shandong; os detalhes da
vida de Confúcio foram objeto de relatos engrandecedores, mas
provavelmente ele nasceu na casa de Song, como descendente da dinastia
Shang. Seu pai morreu quando ele tinha apenas 2 anos, e, apesar de seus
antecedentes nobres, teve uma infância e uma adolescência pobres.
Teve uma variedade de empregos dos 20 aos 40 anos de idade, mas sua
sabedoria reuniu seguidores, e, como oficial, treinava jovens para o serviço. Era
um burocrata bem-sucedido e, aos 53 anos, tornou-se ministro da Justiça na
cidade de Lu. No entanto, depois de cair em desgraça com seu regente, foi
exilado, tornando-se um consultor político autônomo para vários governantes.
Em 485 a.C., foi autorizado a retornar a Lu e lá escreveu muito do seu
trabalho, inclusive o Shi-ching [Livro dos Cânticos] e Shu-ching [Livro de
Documentos].
Até o final de sua vida, Confúcio foi reverenciado por seus patronos e
discípulos, que diziam ser mais de 3 mil. Ele morreu em 479 a.C.
1641
Em resumo
Posso duvidar que tudo o que percebo seja real, mas o fato de que eu
duvido me diz que penso, que tenho consciência. E, se eu tenho
consciência, devo existir.
Na mesma linha
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas (p. 228)
Gottfried Leibniz, Ensaios de Teodiceia (p. 236)
Baruch Spinoza, Ética (p. 380)
René Descartes
Comentários finais
Filósofos contemporâneos gostam de disfarçar ou menosprezar o lado
metafísico de Descartes, vendo esse lado como uma mancha em uma
concepção brilhante do mundo. Livros didáticos tendem a “perdoar” seu
desejo de fornecer provas de Deus, salientando que mesmo o mais racional
dos homens não poderia escapar da natureza religiosa de seu tempo.
Certamente, se estivesse vivo hoje, será que ele não mergulharia os pés nessa
nebulosidade metafísica?
Não vamos esquecer que a “árvore do conhecimento” de Descartes tem a
metafísica como sua raiz, a partir da qual todo o restante se espalha. Seu
pensamento sobre a consciência, a separação da mente e da matéria e o seu
amor à ciência natural são simplesmente ramos. A ciência e uma perspectiva
cética não adiantariam para desmantelar a realidade divina.
No entanto, Descartes era também um racionalista supremo que ajudou a
desmontar a ideia medieval de que os objetos eram dotados de “espíritos”. Sua
dualidade entre a mente e a matéria dispensou essas superstições, permitindo
que se originassem as ciências empíricas e, ao mesmo tempo, não desmentindo
a noção de que o universo fora criação de uma mente inteligente. Com efeito,
o brilhante equilíbrio entre a mente e a matéria, a física e a metafísica de
Descartes foi um extraordinário eco de São Tomás de Aquino, cujos escritos
ele estudara na juventude. Seu sistema dualista também teve enorme influência
sobre filósofos racionalistas como Spinoza e Leibniz.
René Descartes
Descartes nasceu em 1596, em La Haye, França, que mais tarde foi rebatizada
de Descartes em sua homenagem. Ele recebeu uma excelente educação em um
colégio jesuíta que ensinava lógica aristotélica, ética, metafísica e física dentro
da abrangência da teologia tomista (de Tomás de Aquino). Estudou direito na
Universidade de Poitiers, depois, aos 22 anos, viajou pela Europa, trabalhando
como engenheiro militar. Foi quando servia ao duque da Baviera que teve suas
famosas visões filosóficas. Pelo restante da vida, viveu com discrição, e não se
sabe muito sobre sua vida pessoal. Aos 50 anos, foi convidado para ir à Suécia
para ser o tutor de filosofia da rainha Cristina, mas o trabalho era mais
exigente do que seu regime solitário normal. Descartes morreu de pneumonia,
em 1650.
Seu primeiro trabalho foi O mundo ou tratado da luz, mas ele decidiu não
publicar porque continha a heresia de que a Terra girava em torno do Sol, e
Descartes não queria enfrentar o mesmo problema que Galileu. Outros livros
incluem Discurso do método (1637), Princípios de Filosofia (1644) e As paixões da
alma, publicado após sua morte.
1860
Fate
Na mesma linha
Henri Bergson, A evolução criadora (p. 76)
Sam Harris, Free Will (p. 152)
Baruch Spinoza, Ética (p. 380)
Ralph Waldo Emerson
A conclusão de Emerson
No final de seu ensaio, Emerson volta para a relação entre as pessoas e os
eventos. Ele sugere que “a alma contém o evento que deverá acontecer, pois o
evento é apenas a realização de seus pensamentos […] O evento é a impressão
de sua forma. Adapta-se a você como sua pele”. Ele continua:
Comentários finais
Qual é a relação entre o ensaio anterior de Emerson, “Self-Reliance”, e “Fate”?
Seria tentador afirmar que o trabalho posterior reflete um Emerson mais sábio,
que estava mais sintonizado com a força da natureza e as circunstâncias na
vida das pessoas. É quase como se estivesse desafiando a si mesmo a acreditar
em seu ensaio anterior, mais direto, sobre o poder do indivíduo.
Mas, embora seja verdade que “Self-Reliance” tem a certeza de um homem
mais jovem e “Fate” seja mais sutil, este último ensaio, de fato, mostra o
posicionamento básico de Emerson sobre a relação entre a pessoa e o
universo. Na última parte, ele fala de algo chamado de “Bela Necessidade”,
uma maior inteligência ou “lei da vida” que parece mover o universo. Essa
força impulsiona a natureza e está além das palavras. Não é nem impessoal
nem pessoal. O sábio enxerga que não há nada deixado ao acaso, “não há
contingências” – tudo acaba como deve acabar. No entanto, tendo notado esse
aparente determinismo, e justamente quando se pensa que Emerson estava
finalmente apoiando o destino, ele diz que essa bela necessidade (natureza,
Deus, as leis, a inteligência) “solicita aos puros de coração que se inspirem em
toda a sua onipotência”.
Por fim, esta é a abertura que recebemos. Embora a lei da vida seja
imparável e tenha suas próprias razões, ao mesmo tempo quer que
trabalhemos com ela. Ao fazê-lo, podemos perder nosso pequeno eu, mas, no
processo, ficamos sintonizados com algo infinitamente maior e mais poderoso.
Deixamos de ser apenas subalternos e nos tornamos um poderoso cocriador
do desenvolvimento do mundo.
Cartas
Em resumo
Podemos alcançar tranquilidade e felicidade ao abandonar crenças e medos
irracionais e simplesmente viver.
Na mesma linha
Aristóteles, Ética a Nicômaco (p. 32)
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
Bertrand Russell, A conquista da felicidade (p. 338)
Epicuro
Quando Epicuro começou sua escola de filosofia em uma casa com jardim em
Atenas, em 306 a.C., ela aceitava membros dos dois gêneros, o que fez as
pessoas pensarem que ele estava realizando orgias; de fato, “epicurismo”
passou a significar viver para o prazer sensual. Na realidade, o prazer físico era
apenas um aspecto de sua concepção, e quando ele o elogiava era apenas
porque significava a ausência da dor, que ele via como um mal.
A verdadeira filosofia de Epicuro significava viver de forma simples e
racional, e, uma vez que um mínimo de necessidades era satisfeito, desfrutar da
amizade e da natureza. Ele não acreditava em ideias metafísicas como as
“Formas” de Platão, optando, em vez disso, por uma visão materialista do
universo; o que importava era o que podíamos perceber com nossos sentidos.
Por ele não acreditar em vida após a morte, alcançar a felicidade na terra
assumia um significado real.
Epicuro morreu em 271 a.C., deixando mais de trezentos rolos de papiro de
seus escritos, embora apenas uma pequena quantidade de seu trabalho tenha
sobrevivido. Seu muito breve Principle Doctrines [Principais doutrinas] chegou
até nós através da biografia de Epicuro escrita por Diógenes Laércio em seu
Vida e doutrinas dos filósofos ilustres, e há também uma coleção de aforismos
encontrada em um manuscrito do Vaticano em 1888 junto com fragmentos de
escavações arqueológicas. Também subsistiram as cartas de Epicuro a três de
seus alunos, Heródoto (não o historiador), Pítocles e Meneceu. Elas são
representativas de suas principais ideias, e vamos nos concentrar nelas aqui.
As Cartas estendem-se longamente sobre cosmologia e natureza, e, em
primeiro lugar, é possível se perguntar por que Epicuro tinha tanto interesse -
nessas questões. É fácil esquecer agora que, antes de a ciência ter se
desenvolvido de forma autônoma, questões sobre a natureza física dos “céus”
eram vistas como parte da filosofia.
A natureza do universo
Ao escrever para Pítocles, Epicuro observa que é possível saber algo sobre os
céus a partir de nossas observações; não devemos confiar em histórias e mitos
para explicar como o universo funciona. Não há nenhum “homem na lua”,
por exemplo; os rostos que achamos ver em sua superfície são meramente um
arranjo da matéria. Da mesma forma, as alterações do clima não se devem à ira
dos deuses, mas a coincidências de determinadas condições atmosféricas;
Epicuro discute terremotos e vulcões de forma semelhante. O universo não é
conduzido de momento a momento por algum ser celestial; na verdade, todas
as massas físicas estavam lá desde o início do mundo, o qual continua a ser
ordenado e conduzido de acordo com princípios próprios óbvios. Não há nada
no universo que “admita variação de aleatoriedade”, diz Epicuro.
Precisamos estar abertos ao conhecimento de como o universo realmente
funciona, estar dispostos a nos despojar de nossas noções caras se elas não
corresponderem aos fatos. Nós seres humanos enfrentamos dificuldades, diz
Epicuro, apenas quando tentamos impor nossa vontade ou motivação sobre o
funcionamento do universo. Tememos represálias por nossas ações ou perda
de consciência (morte) quando, na realidade, esses fatos não significam nada
no plano mais amplo das coisas. Quanto mais soubermos do universo e de
seus princípios, menos teremos a inclinação de vincular nossos medos e
pensamentos irracionais a esse universo, apreciando-os simplesmente como
fenômenos dentro de nossa cabeça. Ele diz a Pítocles que “nós não devemos
pensar que não existe qualquer outro objetivo no conhecimento sobre os céus
[...] do que a paz de espírito e a confiança inabalável, assim como é o nosso
objetivo em todas as outras investigações”. Em outras palavras, quanto mais
soubermos, menos temerosos seremos. Descobrir fatos somente pode ser uma
coisa boa.
Em sua carta a Heródoto, Epicuro detalha um pouco sua teoria da origem
do universo e da natureza da matéria. Sugere que ele foi criado a partir da
oposição da matéria e do nada e não tem limite, “tanto no número de corpos
quanto na magnitude do vazio”. Ele chega ao ponto de dizer que, como existe
uma infinidade de “átomos” (o termo do grego antigo para as menores
partículas), pode haver uma infinidade de mundos. As linhas a seguir poderiam
ter sido escritas por um físico quântico:
Ao discutir sobre a alimentação, ele observa que devemos ser felizes com
uma comida simples, não uma “mesa suntuosa”. Se tivermos esta última todos
os dias, temeremos que ela nos seja tirada. Ao contrário, poderemos desfrutar
mais de alimentos sofisticados se os comermos apenas ocasionalmente.
Epicuro admite que associar prazer à felicidade abre sua filosofia para ser
vista como um desfrute de sensualidade. Na verdade, seu objetivo é mais sério:
“liberdade da dor e da angústia mental”. Não é comida, bebida e sexo que
criam uma vida agradável, mas refletir sobre todas as escolhas da pessoa, de
modo que não façamos coisas ou pensemos em coisas que causem
perturbação na alma. Para Epicuro, uma vida virtuosa é a mesma coisa que
uma vida agradável, porque fazer a coisa certa naturalmente coloca nossa
mente em repouso. Em vez de termos angústia sobre as consequências de
nossas más ações, ficamos liberados para desfrutar de uma vida simples com
amigos, filosofia, natureza e pequenos confortos.
Epicuro salienta ainda que não devemos pôr nossa confiança no acaso ou
na sorte, apenas na prudência, que proporciona estabilidade. A pessoa sábia
“acha que é preferível permanecer prudente e sofrer de má fortuna do que
desfrutar de boa sorte ao agir estupidamente. É melhor nas ações humanas
que a decisão sólida fracasse do que a decisão precipitada renda bons frutos
devido à sorte”.
Se agir das maneiras acima, diz Epicuro a Meneceu, “você não será
perturbado nem no sono nem no despertar e viverá como um deus entre os
homens”.
Comentários finais
Epicuro não negou que havia deuses, mas também disse que não estavam
preocupados com as trivialidades da vida humana, e, portanto, a ideia de
deuses que podem querer nos punir tinha que ser errada. A filosofia epicurista
visa desviar as pessoas para longe de medos e superstições irracionais e
mostrar que a felicidade é muito mais provável se a pessoa usar a razão para
fazer escolhas. Antecipando a filosofia pragmática de William James em 2 mil
anos, ela sugere que, se essas escolhas nos fizerem felizes e nos permitirem
ficar em paz, então saberemos que a razão é o melhor guia para a vida. A
pessoa boa está livre de problemas em si (“não é limitada por qualquer raiva ou
favor”, como Epicuro expressa em Principle Doctrines) e não causa problemas
para ninguém. E, em outro fragmento que chegou até nós, ele aconselha:
É melhor para você estar livre do medo e deitado sobre uma cama de
palha do que possuir uma cama de ouro e mesa opulenta e ainda não
ter paz de espírito.
Epicuro
Nascido na ilha grega de Samos, em 341 a.C., Epicuro recebeu uma educação
em filosofia de Pânfilo, um platonista. Aos 18 anos, ele foi para Atenas
cumprir o serviço militar e, em seguida, passou a viver com seus pais, que
haviam se mudado para Cólofon, na costa asiática. Lá, outro professor,
Nausífanes, ensinou a Epicuro as ideias de Demócrito, inclusive a “não
perturbação” como objetivo da vida.
Em 306 a.C., Epicuro inaugurou uma escola de filosofia em Atenas, e o
movimento que cresceu ao redor se tornou conhecido como o “Jardim”.
Excepcionalmente, seus alunos incluíam mulheres e escravos. Epicuro
sobreviveu com contribuições de membros que procuravam viver de acordo
com seu lema, “Viver sem ser visto”, ou viver tranquilamente sem chamar a
atenção. As comunidades epicuristas na Grécia e na Roma antigas copiavam o
Jardim original.
A filosofia de Epicuro espalhou-se rapidamente durante sua vida e resistiu
depois de sua morte, em 270 a.C. Em Roma, Lucrécio ajudou a mantê-lo
popular, e Cícero também o reconheceu em seus escritos. No início da Idade
Média, o cristianismo tinha criado uma caricatura de Epicuro como um
sensualista grosseiro, mas, no século XVI, Erasmo e Montaigne, entre outros,
o viram sob uma nova luz, como uma figura sensata e racional, em
comparação com as superstições e os excessos da Igreja Católica. De Vita et
Moribus Epicuri Libri Octo [Oito livros sobre a vida e as maneiras de Epicuro]
(1647), de Pierre Gassendi, lhe trouxe ainda maior credibilidade.
1966
As palavras e as coisas
Em resumo
Cada época tem pressupostos inconscientes sobre como o mundo é
ordenado, fazendo com que o sabor do conhecimento difira muito de um
período para outro.
Na mesma linha
Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas (p. 228)
Karl Popper, A lógica da pesquisa científica (p. 316)
Michel Foucault
Na verdade, algumas partes do livro são bem difíceis de entender, não tanto
devido ao conteúdo, mas pelo estilo de Foucault, que leva uma página para
expressar uma ideia que realmente requer apenas uma linha ou um parágrafo.
Felizmente, seu prefácio para a tradução ao inglês oferece uma chave para a
obra.
A ideia básica de Foucault é que cada época, ou “episteme”, recende a um
“inconsciente positivo”, uma maneira de ver o mundo do qual ela é
completamente inconsciente. Nossas mentes lineares são utilizadas para
absorver uma determinada disciplina, como biologia ou economia, e visualizá-
la como uma área do conhecimento em evolução a partir de suas primeiras
concepções até os dias de hoje. Porém, isso não reflete a realidade. O modo
como as pessoas viam a ciência da vida (biologia) no século XVII, diz
Foucault, tem mais em comum com a forma como viam a riqueza e o dinheiro
naquela época do que tem com a biologia no século XIX. Cada episteme é
culturalmente contida e não “leva” a outra episteme.
Construção de categorias
A ideia do livro ocorreu a Foucault quando estava lendo um romance de
Borges e riu alto de uma referência a uma enciclopédia chinesa que dividia os
animais em:
Essa taxonomia bizarra levou Foucault à ideia de que todos nós possuímos
maneiras de pensar e ver que tornam outras impossíveis. Mas o que
exatamente achamos impossível? A estranheza da lista de Borges vem de não
haver nenhuma ordem de correlação entre as coisas apresentadas, nem
“terreno” de conhecimento. Isso leva à pergunta: qual é o terreno sobre o qual
estão nossas categorias? O que supomos ser verdadeiro ou não verdadeiro,
relacionado ou não relacionado, em nossa cultura e tempo? Foucault sugere que
não só não percebemos nada objetivamente, como nossos sistemas de
categorização são suposições, recebidas e aceitas inconscientemente:
Comentários finais
A noção de Foucault de epistemes não é diferente dos “paradigmas” do
pensamento científico de Thomas Kuhn, e é interessante que o livro A
estrutura das revoluções científicas de Kuhn tenha sido publicado apenas quatro
anos antes de As palavras e as coisas – talvez uma prova de que o conhecimento
vem sob a forma de visões de mundo particular das quais o indivíduo mal tem
consciência. Os dois livros são um antídoto para a arrogância do
conhecimento atual e para a crença em um modelo linear de acumulação de
conhecimento. Na realidade, seja lá o que constitua o terreno do
conhecimento em qualquer campo, ele não vai, de repente, se abrir e engolir
tudo, com novas formas de “saber” surgindo em um lugar completamente
diferente.
É da natureza da moderna filosofia francesa que muitas afirmações sejam
feitas sem serem respaldadas, e As palavras e as coisas não é diferente. No
entanto, o livro é valioso em sua “meta” abordagem ao conhecimento e seu
questionamento de pressupostos e tendências. Foucault escreve sobre seu
próprio trabalho: “Entre todas as pessoas, dificilmente seria conveniente para
mim alegar que meu discurso independe de condições e regras das quais sou
imensamente inconsciente”. De fato, exatamente como agora ridicularizamos a
taxonomia chinesa mencionada por Borges, é provável que as pessoas daqui a
cem anos riam das estranhas categorias e associações cegas que atualmente
chamamos de conhecimento.
Michel Foucault
Foucault nasceu em Poitiers, França, em 1926. Seu pai era médico e queria que
ele estudasse medicina, mas, na escola, Foucault se interessava mais por
literatura e história. Ele deixou Poitiers em 1945 para estudar no Liceu
Henrique IV, em Paris, e foi admitido na École Normale Supérieure um ano
depois. Apesar de ser um excelente aluno, era socialmente inapto e sofria com
sua homossexualidade. Durante esse período, se tornou amigo de Louis
Althusser (um filósofo marxista). Foucault acabou se formando em filosofia,
psicologia e psiquiatria.
Em 1950, tornou-se professor-assistente na Universidade de Lille. Depois
de um tempo, deixou a França para lecionar na Universidade de Uppsala, na
Suécia; teve passagens também por diretorias de Institutos Franceses na
Universidade de Varsóvia e na Universidade de Hamburgo. Ele começou a se
interessar por história, em especial pela mudança de perspectivas da prática
psiquiátrica, o que resultou no muito bem recebido História da loucura. Em
1963, publicou O nascimento da clínica.
Quando seu companheiro Daniel Defert foi lotado na Tunísia para o
serviço militar, em 1965, Foucault foi trabalhar na Universidade de Tunis.
Após As palavras e as coisas ter sido publicado com grande sucesso em 1966, foi
saudado como um dos grandes pensadores de seu tempo, juntamente com
Jacques Lacan, Claude Lévi-Strauss e Roland Barthes. No mesmo ano,
publicou A arqueologia do saber e assumiu o cargo de chefe de filosofia na
Universidade de Clermont-Ferrand. Em 1970, foi nomeado professor de
História dos Sistemas de Pensamento no Collège de France. Seu crescente
envolvimento político e interesse na ação social foram refletidos no livro de
1975, Vigiar e punir, que examina as “tecnologias” de organização e controle.
O primeiro volume de História da sexualidade foi lançado em 1976. A
reputação de Foucault cresceu nas décadas de 1970 e 1980, e ele lecionou em
todo o mundo, passando mais tempo em instituições norte-americanas.
Também fez duas turnês no Irã, escrevendo ensaios sobre a Revolução
Iraniana para um jornal italiano. Ele morreu em Paris, em 1984.
2005
Em resumo
O falar merda permeia nossa cultura, e precisamos saber por que é
diferente de mentir.
Na mesma linha
Noam Chomsky, Para entender o poder (p. 92)
Michel de Montaigne, Os ensaios (p. 276)
Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas (p. 398)
Harry Frankfurt
Harry G. Frankfurt
Nascido em 1929, Frankfurt recebeu seu Ph.D. na Universidade Johns
Hopkins, em 1954. Lecionou em Yale e na Universidade Rockefeller antes de
assumir seu cargo em Princeton, onde permaneceu como professor de
filosofia moral até 2002. Suas áreas de interesse acadêmico têm incluído a
racionalidade cartesiana e a verdade, a questão do livre-arbítrio e do
determinismo (especialmente suas implicações para a responsabilidade moral)
e cuidado e amor. Outros livros: The Importance of What We Care About [A
importância daquilo com que nos importamos] (1988), As razões do amor
(2004), Sobre a verdade (2006) e Taking Ourselves Seriously and Getting It Right
[Como nos levarmos a sério e fazer isso direito] (2006). Sobre falar merda foi
publicado originalmente na revista literária Raritan, em 1986.
2012
Free Will
Em resumo
Nossas ações são o resultado de estados do nosso cérebro a qualquer
momento, o que, por sua vez, está sujeito a causas anteriores. É inútil culpar
as pessoas por aquilo que elas são.
Na mesma linha
Julian Baggini, The Ego Trick (p. 46)
Ralph Waldo Emerson, Fate (p. 124)
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal (p. 292)
Baruch Spinoza, Ética (p. 380)
Sam Harris
Sam Harris inicia esse curto livro (cem páginas) com um relato de um crime
terrível. Em 2007, em uma pacata cidade americana, dois homens entraram em
uma casa antes do amanhecer e, ao encontrarem um homem adulto
adormecido, espancaram-no com um taco de beisebol. Depois se dirigiram ao
andar de cima, onde estavam a esposa e as filhas do homem, que ainda
dormiam. Após prender as filhas às camas, um dos invasores levou a mãe até o
banco, onde ela retirou 15 mil dólares e entregou aos homens. De volta para
casa, os criminosos dividiram o dinheiro e estupraram a filha mais velha.
Quando ouviram o pai se mexer, encharcaram a casa de gasolina e a
incendiaram. O pai escapou vivo, mas as garotas e a mãe morreram pela
inalação de fumaça. Quando mais tarde a polícia perguntou a um dos homens
por que ele não tinha desamarrado as mulheres antes de iniciar o incêndio, ele
respondeu: “Nem me passou pela cabeça”.
Qual o objetivo de Harris ao contar essa história? A nossa reação de horror
pelo que os homens fizeram se baseia na suposição de que tinham a escolha de
não o fazer, mas o fizeram mesmo assim. É essa intencionalidade insensível
que importa para nós (não nos importa de verdade que um dos homens tenha
sido estuprado repetidamente quando criança ou que o outro recentemente
tivesse tentado suicídio por remorso). Embora Harris ache o comportamento
deles repugnante, também admite que, se fosse forçado a trocar de lugar com
um deles, ele seria aquele homem: “Não haveria nenhuma parte em mim que
pudesse ver o mundo de forma diferente”. Com os mesmos genes, histórico
de vida, cérebro e até mesmo “alma”, nós teríamos feito o que aquele homem
fez naquele momento.
O livre-arbítrio sempre foi um tema importante na filosofia, mas ganhou
relevo nos últimos tempos por causa das descobertas da neurociência. Harris
menciona testes que demonstram que a decisão de fazer alguma coisa (levantar
um braço, mover uma cadeira) é feita no cérebro algum tempo antes de “nós”
conscientemente tomarmos consciência dela. Portanto, nossa neurologia está
quase configurada para nos fazer acreditar na ilusão de que estamos agindo
livremente. Ele argumenta que, na realidade, nossas ações e nossos
pensamentos são resultado direto de nossa configuração neurológica e
cerebral.
Comentários finais
A ideia de que o livre-arbítrio é uma ilusão teve muito apoio na filosofia.
Schopenhauer dispensou o livre-arbítrio sem pensar duas vezes, e Plotino
disse, séculos antes, que “todas as nossas ideias serão determinadas por uma
cadeia de causas anteriores”. Em Além do bem e do mal, Nietzsche escreveu:
“Nunca me canso de enfatizar um fato pequeno, conciso, a saber, que um
pensamento vem quando ‘ele’ quer, e não quando ‘eu’ quero”. A ideia de um
ego obstinado é um mito, segundo o pensamento de Nietzsche; é mais preciso
falar de coisas que “alguém” faz, ou seja, um complexo de sensações, emoções
e pensamento.
Harris vê a ideia de livre-arbítrio como fruto da religião, que tem o principal
objetivo de proporcionar alívio psicológico. Mas, ao final do livro, ele pergunta:
a consciência da ilusão de livre-arbítrio não vai diminuir a qualidade de nossa
vida? Essa é uma pergunta subjetiva, e ele pode falar apenas de sua experiência;
diz que isso somente aumentou sua compaixão para com os outros e reduziu
sua sensação de direito adquirido ou orgulho, uma vez que suas realizações não
podem realmente ser chamadas de “suas”, mas são o resultado de sua criação
de sorte, de genes e do período e do local onde ele vive. A consciência da
ilusão do livre-arbítrio não o deixou mais fatalista, mas aumentou de fato sua
noção de liberdade, pois suas esperanças, seus medos e assim por diante não
são vistos de maneira tão indelével, pessoal.
Harris passou anos praticando meditação budista exatamente com o
objetivo de abandonar a noção de um eu indelével, sólido, e a influência dessa
prática é evidente em sua obra. A outra característica essencial do budismo,
claro, é sua ênfase na causalidade. Nossa vida é moldada por nossas ações em
outras vidas, das quais nunca teremos consciência. O carma agirá, acreditemos
nós em livre-arbítrio ou não.
Sam Harris
Nascido em 1967, Harris cresceu em Los Angeles, filho de mãe judia e pai
quacre. Embora não tenha recebido uma educação religiosa, o assunto religião
sempre lhe interessou. Matriculou-se na Universidade de Stanford para estudar
língua inglesa, mas saiu ainda no segundo ano para viajar à Ásia, onde estudou
meditação com professores budistas e hindus. Em 1997, retornou para
Stanford a fim de concluir o bacharelado em Filosofia. Em 2009, concluiu seu
doutorado em neurociência na Universidade da Califórnia, em Los Angeles.
Entre os best-sellers de Harris estão A morte da fé (2004), Carta a uma nação
cristã (2006), A paisagem moral (2010), e Free Will [Livre-arbítrio] (2012). Ele
também é cofundador e diretor-presidente do Project Reason, uma fundação
sem fins lucrativos dedicada à difusão do conhecimento científico e dos
valores seculares na sociedade.
1807
Fenomenologia do Espírito
Em resumo
A história real do desenvolvimento humano não é avanço científico ou
“descoberta do mundo”, mas sim a percepção da própria consciência e a
forma como ela busca expressão por meio das pessoas, da política, da arte e
das instituições.
Na mesma linha
David Bohm, Totalidade e a ordem implicada (p. 84)
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
Søren Kierkegaard, Temor e tremor (p. 216)
G. W. F. Hegel
Um panorama geral
Como Hegel observa no famoso Prefácio, os filósofos convencionais veem sua
disciplina como um campo de posições concorrentes, no qual apenas um
sistema pode ser considerado o “vencedor”. Eles enxergam as questões a
partir da perspectiva de um campo de batalha de ideologias. A abordagem bem
original de Hegel, por outro lado, é ter uma visão panorâmica de tudo: ele vê
cada uma das filosofias concorrentes como tendo seu lugar, permitindo, com o
passar do tempo, “o desenvolvimento progressivo da verdade”. Em termos
botânicos, ele observa que os botões são esquecidos quando estouram em flor,
e as flores, por sua vez, dão lugar ao fruto, que revela a verdade ou o objetivo
da árvore. A intenção de Hegel é libertar a filosofia de sua visão limitada e
mostrar a verdade do todo. É melhor ver a variedade e a riqueza da cultura e
da filosofia como um grande movimento.
O título original do livro também pode ser traduzido como
“Fenomenologia da mente” e, como tal, não é sobre um “espírito” mítico, mas
sim sobre a consciência em si. A fenomenologia é o estudo das coisas sendo
manifestadas ou surgindo; então, em termos literais, o título significa como a
consciência se manifesta no mundo real. Cada pessoa é o resultado de milhares
de anos de desenvolvimento, e o objetivo de Hegel é dizer aonde chegamos
como espécie. Para ele, “ciência” não é simplesmente o estudo de fenômenos
naturais, mas o desenvolvimento da consciência com o passar do tempo.
“História” torna-se o processo de uma consciência cada vez maior de nós
mesmos. O universo manifestado inteiramente é apenas um processo do
Espírito que se projeta e, em seguida, retorna a si mesmo em um movimento.
Para compreendermos adequadamente o projeto de Hegel, podemos também
olhar para o título provisório de sua obra, que poderia ter deixado as coisas
mais claras para os leitores: “Ciência da experiência da consciência”.
Comentários finais
Cada período parece julgar Hegel novamente, e tem sido moda enxergar sua
“ciência” como qualquer coisa menos ciência, pois sua visão repousa sobre
uma metafísica obviamente improvável. Para muitos, ele é interessante
principalmente porque suas ideias provocaram reações que resultaram em
novas filosofias, como o existencialismo, o pragmatismo, a tradição analítica e,
claro, o marxismo (a “dialética” de Marx foi uma consequência natural da visão
de história de Hegel). Houve uma retomada de um interesse sério em Hegel
nas décadas de 1980 e 1990, mas sua ênfase na teleologia (o mundo tendo um
sentido positivo) ainda é vista com desconfiança pela maioria dos filósofos
contemporâneos. Denunciar Hegel tornou-se uma espécie de esporte, ainda
que essa antipatia tenha apenas mantido seu nome em evidência.
Estaria ele tão imensamente errado em seus preceitos básicos? A pessoa
precisa ser muito corajosa hoje em dia para sugerir que a história é
essencialmente o crescimento da consciência e que, por isso, tudo acontece por
um motivo.
Muitas pessoas tiveram seu primeiro encontro com Hegel por meio do
best-seller de Francis Fukuyama O fim da história e o último homem (1992). Escrito
não muito tempo depois do colapso do comunismo na Europa Oriental, o
argumento desse livro de que o desenvolvimento histórico estava chegando à
sua conclusão com uma transição global para a democracia liberal foi
amplamente inspirado por Hegel. Seus muitos críticos condenaram a ideia de
que a história tem uma direção, uma noção que muitos eventos desde então
(guerras étnicas, 11 de Setembro, uma recessão profunda) pareciam desmentir.
E, ainda assim, na esteira das mais recentes revoltas populares contra regimes
totalitários, a sugestão de Hegel de que a liberdade inevitavelmente busca
expressão, e faz isso por meio de instituições da modernidade (tecnologia, arte,
democracia liberal), faz sentido.
Fenomenologia do Espírito nos recorda que a consciência (de nós mesmos, da
vida política, da história) geralmente é positiva. De fato, o livro foi escrito
quando as forças de Napoleão estavam esmagando o antigo sistema imperial
da Alemanha, que deu a Hegel um exemplo bem assustador e próximo de suas
teorias. Ele escreveu:
G. W. F. Hegel
Filho de um funcionário público de baixo escalão, Georg Wilhelm Friedrich
Hegel nasceu em 1770. Suas capacidades intelectuais o levaram para a
Universidade de Tübingen, onde conheceu Friedrich von Schelling, mais tarde
um filósofo idealista, e Friedrich Hölderlin, que viria a se tornar um célebre
poeta. Após a universidade, Hegel trabalhou como tutor particular em Berna e
Frankfurt e, depois, como professor autônomo na Universidade de Jena.
Quando concluiu Fenomenologia do Espírito, as tropas de Napoleão entraram em
Jena, e a universidade foi fechada. Sem emprego, tornou-se editor de um jornal
em Bamburgo e, depois, diretor de uma escola de ensino médio em
Nuremberg, cargo que ocupou por muitos anos (1808-15). Durante esse
período, publicou os três volumes de Ciência da lógica e escreveu sua Enciclopédia
das ciências filosóficas.
Em Nuremberg, Hegel se casou e começou uma família (uma filha morreu
não muito depois de nascer, mas o casal teve outros dois filhos). Em 1816, ele
retomou a carreira acadêmica com uma cátedra na Universidade de Heidelberg
e, em 1818, mudou-se para a Universidade de Berlim, onde trabalhou até sua
morte em 1831. Depois de seu falecimento, os seguidores de Hegel separaram-
se em facções de direita e de esquerda, tendo Karl Marx como líder expoente
desta última.
O primeiro livro de Hegel foi Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems
der Philosophie [Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling]
(1801). Ciência da lógica (1812 e 1816) foi a sequência de Fenomenologia do Espírito.
Filosofia do direito, contendo sua filosofia política, foi publicado em 1821 e
Filosofia da história, depois de sua morte, em 1831.
1927
Ser e tempo
Em resumo
A existência humana é um mistério, e a pessoa autêntica é aquela que reflete
sobre esse mistério e ainda vive no mundo real, fazendo o máximo dentro
de suas possibilidades.
Na mesma linha
Hannah Arendt, A condição humana (p. 24)
René Descartes, Meditações sobre filosofia primeira (p. 116)
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
Søren Kierkegaard, Temor e tremor (p. 216)
Jean-Paul Sartre, O ser e o nada (p. 354)
Martin Heidegger
Ser e personalidade
No início de Ser e tempo, Heidegger observa que a questão do “ser” certamente
já foi abordada por filósofos antigos e medievais, mas que nenhum deles a
explorara adequadamente. O que era quase natural, pois todo mundo “é” e,
portanto, sabe o que é “ser”. Ainda assim, em termos de análise filosófica,
escreve ele, “o significado de ser é envolto na mais completa escuridão”.
Comentaristas têm lutado com a resposta de Heidegger à questão, pois ele a
envolveu em uma variedade de termos alemães que não são facilmente
traduzíveis. O mais importante deles é Dasein, que, em sua tradução literal, é
“ser-aí”, mas que Heidegger usou para significar uma unidade de consciência
autorreflexiva, da qual uma pessoa é o exemplo mais óbvio. Sua grande
questão era: O que é a personalidade? Como é ser humano no mundo, limitado
por espaço e tempo?
Para ele, a preocupação da filosofia com a existência do mundo externo e
questões daquilo que podemos realmente saber eram uma perda de tempo. O
que importa é “ser no mundo” ou o fato de que existimos em um mundo rico
de significado e possibilidade. Embora filósofos anteriores tenham visto o eu
como uma consciência observadora, a colocação de Heidegger do eu no
mundo levou-o por um caminho completamente diferente, influenciado por
seus estudos da teologia cristã medieval. Enquanto para Descartes o lema para
o eu era “Penso”, o de Heidegger era “Importo-me” – não no significado
convencional de comiseração emocional, e sim mais como a busca, a
exploração, a negociação, a construção de algo; ou seja, meu lugar entre outros
em um sentido social ou político (que inclui a preocupação com os outros) e
meu próprio desenvolvimento ou desdobramento.
Para Heidegger, existem três modos de ver o mundo: Umsicht, a
“circunvisão”; Rücksicht, a “consideração” por outros seres; e a Durchsichtigkeit,
a “transparência” de nossos eus. Cada um é fundamentalmente diferente e vai
além da simples dualidade cartesiana da “mente” e da “matéria”. Por meio
dessas distinções, começamos a ver por que Heidegger sentia que havia muito
mais no “ser” do que o olho enxerga.
Jogado no mundo
Heidegger foi aluno e, mais tarde, assistente do fundador da fenomenologia (a
filosofia da consciência), Edmund Husserl. De seu costumeiro jeito
meticuloso, Heidegger remontou às raízes da palavra “fenomenologia”, que
vem da palavra grega phainesthai, que significa “mostrar a si mesmo”, que, por
sua vez, deriva de phaino, que é trazer algo à luz. A fenomenologia de
Heidegger tornou-se uma explicação de como as coisas se mostram,
especificamente como os seres humanos se “mostram” no mundo. Nesse
sentido, ele se afastou de qualquer tipo de concepção teológica de uma pessoa
ser a manifestação de alguma essência ou alma eterna indo na direção do Ser
como ele se manifesta agora, no teatro da vida humana. A natureza do Dasein
deve estar continuamente se autoquestionando e explorando seu espaço, tendo
de lidar com incertezas e, ainda assim, afirmando sua identidade. Parte dessa
natureza é mostrar-se ou revelar-se ao mundo, no caso dos seres humanos por
meio do discurso e das ações. Viver é explorar nossas possibilidades dentro do
ambiente no qual nos encontramos.
O “estar-lançado” é uma ideia fundamental em Ser e tempo. Um ser
humano é moldado em um determinado lugar, tempo e família que não são de
sua escolha, e a vida significa compreender essa queda dentro do domínio do
espaço e do tempo. Como cheguei aqui? Por que estou aqui? O que faço
agora? Parte dessa perplexidade é uma noção incorporada de “culpa” ou
“dívida”. Sentimos a responsabilidade de fazer algo com nossa vida e,
felizmente, viemos equipados com a capacidade de fala e ação. Ao usá-las,
descobrimos o sentido de nossa vida; na verdade, seria impossível para a vida
não ter significado, considerando as matérias-primas de consciência e ambiente
diante de nós. A morte também é importante para Heidegger, porque marca o
final da autoexibição de uma pessoa. A natureza da morte de uma pessoa pode
ser em si uma revelação.
Ser-aí
Para Heidegger, autenticidade significa reconhecer o improvável fato de se ter
consciência e, ainda assim, proceder para “compreender” nossa existência.
Embora a vida da pessoa não autêntica seja moldada por um “eles” social, o
indivíduo autêntico compreende plenamente sua liberdade para ser mestre de
seu próprio ser, ao menos na medida em que as fronteiras de tempo, espaço e
comunidade permitem. A autenticidade sempre é uma questão de grau, pois
ninguém jamais se separa realmente da voz comum ou social, que Heidegger
também chama de “impessoal”.
Heidegger observa que a natureza essencial da existência é aquela que é
minha. Existe uma enormidade nessa percepção; de fato, o peso dela é tanto
que poucas pessoas conseguem compreender o que uma vida autêntica
significaria para elas. O modo mais natural de ser para um humano é existir
como um entre muitos, sem optar por um caminho de autorrealização ou
severa autocrítica. No entanto, mesmo para aqueles que o fazem, não há isso
de uma pessoa totalmente “feita por si própria”, que venceu pelos próprios
esforços.
A reação adequada à vida é lançarmo-nos para ela, chegando, ao longo do
caminho, a conclusões sobre o que é real ou verdadeiro, separado da opinião
pública. Paradoxalmente, é apenas admitindo que somos parte do mundo que
poderemos ver com sagacidade os pontos onde podemos fazer a diferença.
Somente seres humanos podem ajudar a conformar um mundo, bem como
simplesmente existir nele.
Angústia e decisão
A sensação de ansiedade, observa Heidegger, é um resultado natural do não-
estar-em-casa que os seres vivenciam no mundo. Ainda assim, a angústia é
também parte integrante de uma vida autêntica, pois a natureza da
autenticidade não consiste em anular ou reduzir essa noção de isolamento, mas
em reconhecermos a angústia como uma circunstância e continuar vivendo
apesar dela. De fato, é um sinal de inautenticidade quando uma pessoa está
plenamente afinada com a vida e se sente totalmente em casa, porque sugere
que ela não está consciente por completo de sua existência contingente e
absolutamente misteriosa. A grandeza reside em questionar o mistério de
nosso ser e, ainda assim, aceitar essa incerteza (com todos os seus medos) e
escolher fazer algo com a vida de qualquer maneira.
A “consciência” na terminologia de Heidegger não é algo moral, mas está
ali para nos lembrar continuamente de manter o caminho da autocrítica e da
ação original. “Decisão” é a determinação de não se submeter ao “Eles” ou ao
“impessoal” de costumes ou opinião públicos, mas estar ciente do papel único
que podemos desempenhar em relação ao mundo e aos outros.
Seres no tempo
Para Heidegger, a questão crucial sobre ser é que ela é representada dentro do
tempo. A natureza do ser humano é nossa orientação futura. Portanto, ser um
ser no tempo é a sensação de sempre se mover na direção de alguma coisa; a
natureza de ser humano é uma orientação futura. Embora sejamos criaturas do
passado e vivamos no passado, a verdadeira natureza do homem é olhar
adiante. Somos nossas possibilidades.
Heidegger rejeitava a ideia de que a filosofia deve se basear apenas naquilo
que pode ser percebido pelos sentidos ou somente na lógica. Rejeita
totalmente a ideia schopenhauriana de que o mundo é meramente uma
projeção de nossa mente. Claramente existimos no mundo, e é impossível para
nós existir sem nosso ser ter um significado em relação ao mundo: eu amo, eu
ajo, eu tenho um impacto – essa é a natureza do meu ser, e a sensação dele fica
aparente durante a vida.
Comentários finais
Heidegger foi uma grande influência para Sartre e outros existencialistas,
embora ele mesmo negasse que era um, dizendo que seu foco não era o
homem e sua existência, mas o Ser em si, do qual o homem era a articulação
mais avançada. A visão geral dos estudiosos é de que a exploração do Ser por
Heidegger não foi projetada para ser útil para se viver. Ser e tempo não é um
livro de autoajuda, mas é difícil não tirar dele alguma inspiração.
O senso comum precisaria confirmar a distinção que faz entre modos
autênticos e inautênticos de ser. Em um nível, exigimos que uma pessoa seja
sociável, aceite os costumes da época e participe da vida política. Por outro
lado, aceitamos que uma vida autêntica seja aquela em que a pessoa aproveita
as possibilidades que tiver e cria algo a partir delas. De fato, apesar de seu
estilo clínico, conhecer Ser e tempo é uma veia de paixão sobre a possibilidade
humana e o privilégio de ser. É possível forjar um ser forte com o tempo,
superando a perplexidade de ser lançado na existência.
Martin Heidegger
Heidegger nasceu em 1889, na pequena cidade alemã de Messkirch, no
sudoeste da Alemanha, em uma família católica conservadora. Aos 14 anos, foi
para o seminário com perspectivas de se tornar sacerdote, mas saiu para seguir
os estudos em literatura, filosofia e ciências. Aos 18 anos, ele teve uma epifania
lendo uma dissertação do filósofo Brentano sobre “a noção múltipla do ser em
Aristóteles”, o que o levou aos escritos de Husserl. Aos 20 e poucos anos, teve
artigos publicados em periódicos católicos e, em 1913, recebeu seu título de
doutor em filosofia. Sua tese de pós-doutorado sobre o filósofo medieval
Duns Scotus foi concluída dois anos depois.
Em 1918, Heidegger tornou-se professor livre-docente (Privatdozent) na
Universidade de Friburgo e assistente de Husserl. Em 1923, foi nomeado
professor adjunto na Universidade de Marburgo e, em 1928, ganhou uma
cátedra na Universidade de Friburgo. Um forte nacionalista alemão, foi atraído
pelo estridente “nacional-socialismo” do Partido Nazista. Como reitor em
Friburgo, seguiu as diretrizes nazistas para reorganizar a universidade, o que
envolvia a discriminação contra estudantes judeus. Nas audiências de
“desnazificação” depois da guerra, Hannah Arendt ajudou-o a formar a defesa
de que era um crédulo ingênuo do nacional-socialismo e não tinha previsto o
que os nazistas fariam no poder. Os dois permaneceram em contato até a
morte de Heidegger, em 1976.
Século VI a.C.
Fragmentos
Em resumo
Tudo muda o tempo todo, ainda assim há uma harmonia oculta no
universo.
Na mesma linha
David Bohm, Totalidade e a ordem implicada (p. 84)
Platão, A República (p. 308)
Heráclito
Um dos grandes filósofos antes de Sócrates e Platão, Heráclito era o filho mais
velho da família de líderes de Éfeso, uma das principais cidades do mundo
grego antigo e famosa por seu templo de Ártemis.
Não temos uma grande quantidade de informações sobre Heráclito, exceto
que ele evitou se envolver em política, era uma espécie de lobo solitário e, em
um momento em que era normal para filósofos comunicarem suas ideias em
discursos, ele se concentrou na palavra escrita. Como resultado, seus
pensamentos sobreviveram a ele, e seu livro de aforismos ficou famoso no
mundo antigo. Platão e outros discutiam-no, mas sua influência era maior
entre os estoicos.
Os Fragmentos são uma coleção de aforismos e declarações relacionadas à
natureza do universo físico, ética e política, mas foram as ideias metafísicas de
Heráclito que conservaram seu poder.
O logos
O livro começa com esta afirmação:
Mudança constante
Muito do renome de Heráclito vem da ideia de que nada permanece igual.
Numa época em que a ciência natural estava em sua infância e as pessoas
estavam tentando identificar o que era certo e estável em nosso universo,
Heráclito disse: “Tudo flui e nada permanece; tudo cede e nada fica fixo”. A
frase mais famosa nos Fragmentos é:
Não se pode entrar no mesmo rio duas vezes, pois outras águas fluem
continuamente.
A harmonia oculta
É da nossa natureza separar as coisas em partes, fazer distinções, mas, se
houvesse um Ser Supremo, é dessa maneira que ele veria o universo? Não, diz
Heráclito: “Não escutai a mim, mas ao Logos, ele é sábio em reconhecer que
todas as coisas são uma”. E não está simplesmente falando sobre o universo
físico, mas também o que chamamos de ética: “Para Deus tudo é belo, bom e
justo; os homens, por outro lado, consideram algumas coisas certas e outras
erradas”. Isso não significa que deveríamos agir do jeito que quisermos, mas
sim que o bem e o mal, o certo e o errado são parte de um todo maior, tudo
sobre o que é correto – se é parte de um todo, não pode ser de outra forma.
Heráclito parece se contradizer sobre a existência de um Deus. O Logos
não é Deus em si, e, em algumas declarações, ele vê o universo como uma
espécie de mecanismo autoperpetuador que “não foi feito por nenhum deus
ou homem, mas sempre foi, é e será – um fogo sempre vivo, acendendo-se a si
mesmo em medidas regulares e apagando em medidas regulares”. Ainda assim,
em outros momentos, ele diz claramente que há uma mente divina com um
objetivo, em contraste com a cegueira do homem:
É possível saber, ou ao menos estar ciente, “[d]a inteligência pela qual todas
as coisas são conduzidas”. Existe uma “harmonia oculta” no universo,
escondida porque todos os nossos nomes que talvez se aproximassem dela –
Deus, Zeus, Logos e assim por diante – são concepções nossas, quando a
unidade essencial está além das palavras e conceitos. Heráclito escreve sobre as
pessoas medianas: “Eles rezam para imagens, muito como se falassem com as
casas; pois não conhecem a natureza dos deuses”. A única coisa que nos
impede de ter consciência dessa harmonia oculta é nossa incredulidade. Nossa
mente está tão fixa no material que assumimos esse relativo nível de realidade
como sendo tudo, ainda assim existe uma realidade absoluta que aguarda nosso
reconhecimento.
Comentários finais
A declaração de Heráclito de que “todas as coisas passam pela compulsão da
contenda” pode ser lida como se seu significado fosse: o mundo é
simplesmente o caos, ou que o acaso determina tudo. É certamente como
muitas pessoas o vivenciam. De fato, Heráclito parece oferecer apenas uma
visão obscura da humanidade, na qual as pessoas estão em grande parte cegas
e perpetuam essa cegueira pela reprodução.
Existe uma saída? Existe algo que está além do ciclo de nascimento,
sofrimento e morte, que é essa harmonia oculta (chame de Logos, Deus,
Mente ou Tao). Apenas ao senti-la e apreciá-la podemos pôr em perspectiva a
vida do ser humano. O maior sofrimento vem de acreditar que algo efêmero é
sólido e permanente. Apenas ao aceitar o fluxo pelo que ele é conseguimos
espaço para enxergar o que nunca mudará, o que é atemporal.
1748
Em resumo
Nunca podemos supor que um efeito é o resultado de uma determinada
causa, ou que uma determinada causa terá um efeito definido. Seres
humanos gostam de ver padrões e interpretar histórias a partir de eventos,
mas não há necessidade causal entre os objetos (ou, ao menos, não a ponto
de os sentidos humanos serem capazes de identificar).
Na mesma linha
René Descartes, Meditações sobre filosofia primeira (p. 116)
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas (p. 228)
John Locke, Ensaio sobre o entendimento humano (p. 244)
Nassim Nicholas Taleb, A lógica do cisne negro (p. 390)
David Hume
Os limites do conhecimento
Para Hume, os filósofos antigos e modernos supervalorizaram os poderes da
razão humana. Grandes sistemas foram construídos para compreender os
seres humanos, Deus e o universo, embora se tenha esquecido que, no fim das
contas, tudo o que podemos saber é aquilo que observamos diretamente por
meio de nossos cinco sentidos. Indo completamente contra Descartes, Hume
alegava que não havia ideias atemporais, abstratas. Em vez disso, todos os
conceitos são apresentações de segunda mão de percepções ou impressões
iniciais das coisas a partir de nossos sentidos; não podemos ter a noção de
alguma coisa até a termos vivenciado. Podemos apenas imaginar uma
montanha de ouro (se nunca tivermos visto uma), por exemplo, porque somos
capazes de pegar nossas experiências anteriores de ouro e montanha e
combiná-las.
As visões de Hume sobre a casualidade são fundamentais para seu
pensamento. Ele observou que, embora as coisas pareçam causar umas às
outras, isso é simplesmente nossa mente criando conexões. Nunca poderemos
de fato dizer com certeza que uma coisa causou a outra, apenas que duas
coisas com frequência formam uma “conjunção habitual”. Quando o fogo
toca a pele, por exemplo, podemos supor que haverá dor, ou que neve
normalmente significa frio, mas não há nada que realmente ligue essas duas
coisas.
Tampouco podemos dizer que, porque uma coisa parece ser verdadeira,
sempre será verdadeira. De fato, Hume alega, muito do “conhecimento”
humano é simplesmente uma dependência dos costumes ou a aceitação de que
aquilo que todo mundo diz é verdadeiro. Os costumes não apresentam a
verdade, apenas tornam a vida mais fácil. Permitem que construamos um
mundo significativo sem ter que recriá-lo por meio dos sentidos a cada
segundo.
Analisando a percepção humana, Hume notou que não há diferença real
entre imaginação e realidade, exceto no nível da crença que temos em uma ou
em outra. “Realidade” é simplesmente aquilo em que acreditamos com mais
força. Ele também rejeita a ideia de que há um self sólido, unitário, um “eu”.
Em vez disso, somos apenas um feixe de percepções, nossa mente é como um
teatro, cujos cenários e cenas mudam a cada minuto. (É notavelmente
semelhante à visão budista de que não há um eu sólido e que o “eu” que
vivenciamos é apenas uma parada constante de emoções e percepções
efêmeras.) Hume duvidava da ideia de Descartes de que, porque pensamos,
existimos. Tudo que ele sentia que poderia ser dito era que “o pensamento
existe”, mas isso não prova a existência ou a permanência do eu ou de uma
alma individual.
O debate de Hume
Hume transformou-se em um campo de batalha para os estudiosos.
A interpretação positivista tradicional de Hume pode ser resumida na
“teoria da regularidade” da causalidade: as coisas não fazem com que outras
aconteçam, e tudo o que podemos dizer é que os eventos podem assumir um
certo padrão regular. Para usar o exemplo de Hume, podemos ver uma bola de
bilhar batendo em outra e presumir que essa é a causa do segundo movimento
da bola, mas nunca poderemos ter certeza disso. Tudo que podemos dizer é
que dois objetos são “contíguos, sucessivos e constantemente unidos” e que
não há “força” ou “energia” invisível movendo as coisas. “Um objeto pode ser
contíguo e anterior a outro”, escreve ele, “sem ser considerado sua causa.”
O campo positivista apoia a visão de Hume de que qualquer pessoa que
alegue identificar uma causa e seu efeito estará falando em “termos
ininteligíveis” (no sentido metafísico), que são uma afronta à filosofia. De fato,
é famosa a maneira como Hume termina Investigação, com um apelo dramático
pelo rigor na filosofia e para que todas as obras metafísicas sejam consideradas
com ceticismo. Qualquer livro que não contenha “qualquer raciocínio abstrato
relativo a quantidades ou números” ou que não repouse em raciocínio baseado
“em questões de fato e de existência” deve ser lançado às chamas, “pois não
contém nada além de sofismas e ilusões”.
A visão realista de Hume (mais bem representada por Galen Strawson)
enfatiza as declarações em Investigação de que provavelmente há uma relação
entre os eventos, o que Hume (talvez de forma contraditória) chamou de
“conexão necessária”, mas que nossa capacidade restrita de enxergar o mundo
por nossos sentidos faz com que não possamos ver que causas são essas. Uma
das declarações de Hume para corroborar essa visão é:
Comentários finais
Seja um filósofo, mas, em meio a toda a sua filosofia, seja ainda um
homem.
Como sugere essa citação, Hume não tinha nenhuma grande fé na filosofia
em si. Depois de passar algumas horas felizes com amigos, às vezes voltava a
seus aposentos e lia coisas que havia escrito e observava que pareciam
ridículas. Ele sentia que olhar para certezas era o trabalho de um tolo, e
continuava sua obra filosófica principalmente por causa do prazer que lhe
causava. Hume reconheceu que, comparada à “superstição” e à religião, a
especulação fria da filosofia era desinteressante para a maioria das pessoas.
Se o refrão de Investigação é “O que realmente sabemos?”, Hume não nos
devolve respostas tranquilizadoras. No entanto, ele diz que a falta de
conhecimento real não deve fazer com que desistamos do mundo, e ele admira
filósofos como Cícero, cujo enfoque não estava no significado em si, mas em
viver uma vida honrada e agir racionalmente de acordo com as crenças
refletidas. Para a maioria das pessoas, esse tipo de filosofia é suficiente e a
outra, mais especulativa (às quais o próprio Hume se dedica), embora
interessante, talvez no fim não nos leve a lugar nenhum. No entanto, em uma
defesa cômica de seu passatempo, Hume escreveu no Tratado: “Falando de
forma geral, os erros na religião são perigosos; na filosofia, apenas ridículos”.
Embora sentisse que nossa capacidade de ter conhecimento objetivo do
mundo era naturalmente limitada por nossos sentidos, admitiu de qualquer
forma que os seres humanos precisavam criar sentido a partir daquela
experiência, e que temos de viver como se o que vivenciamos fosse real. Não
podemos sair por aí pensando como filósofos, duvidando de tudo.
Hume era bastante querido (seu apelido era “le bon David”), e seu estilo de
escrita reflete sua personalidade: não dogmático e compassivo. Tal como seu
amigo e contemporâneo Adam Smith (economista e autor de A riqueza das
nações), ele escreveu de forma que o máximo de pessoas possível pudesse ler –
o que é mais um motivo para gostar dele.
David Hume
Hume nasceu em Edimburgo, em 1711, vindo de boas famílias dos dois lados,
embora não fosse rico. Seu pai faleceu quando ele era um bebê. Enquanto
estava na Universidade de Edimburgo, começou a escrever Tratado da natureza
humana e, em vez de se graduar, foi para Bristol trabalhar em uma empresa de
contabilidade. Em seguida, viveu na França por três anos, entrando em um
rigoroso programa autodidata.
O Tratado foi publicado em 1739 com quase nenhum reconhecimento, mas
seus Ensaios (1741-42), inclusive seus escritos sobre economia política que
prenunciaram os de Adam Smith, obtiveram sucesso. Nunca tendo sido
professor de filosofia, suas visões sobre religião impediram que tivesse cargos
na Universidade de Edimburgo e na de Glasgow. Seus vários empregos
incluíram ser tutor por um ano de um nobre inglês louco, bibliotecário,
subsecretário de Estado em Londres e secretário do embaixador britânico em
Paris. Este último posto possibilitou que ele encontrasse outras figuras do
Iluminismo europeu fora da Escócia, inclusive Jean-Jacques Rousseau, com
quem travou amizade mas mais tarde rompeu. Hume era apoiador da união
entre a Inglaterra e a Escócia, que acontecera em 1707.
Seus livros incluem Uma investigação sobre os princípios da moral (1751), Political
Discourses [Discursos políticos] (1752) e História da Inglaterra (6 volumes, 1754-
62). Seu controverso Dialogues Concerning Natural Religion [Diálogos sobre a
religião natural] foi publicado postumamente (ele morreu em 1776). James
Boswell visitou Hume em seu leito de morte e relatou que o famoso “ateu”
permaneceu bem-humorado até o último suspiro.
1907
Pragmatismo
Em resumo
Uma crença ou ideia tem valor apenas se “funcionar” – ou seja, se mudar
nosso mundo de alguma maneira. Outras noções e ideias, por mais
atraentes e elegantes que sejam, devem ser descartadas.
Na mesma linha
A. J. Ayer, Language, Truth, and Logic (p. 40)
Jeremy Bentham, Princípios da moral e da legislação (p. 70)
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
William James
Pragmatismo é uma coleção de aulas não editadas que William James deu na
Universidade Columbia, em Nova York, entre 1906 e 1907, no fim de sua
carreira. Um dos maiores pensadores norte-americanos, ele não afirmava ter
criado a filosofia do pragmatismo (que foi uma realização de Charles Sanders
Peirce e continuou a ser desenvolvida por F. C. S. Schiller e John Dewey), mas
ele a deixou mais clara e a levou para o público geral. James define
pragmatismo como “a atitude de desviar o olhar das primeiras coisas,
princípios, ‘categorias’, supostas primeiras necessidades e olhar na direção das
coisas últimas, frutos, consequências, fatos”. Pragmatismo é um primo
intelectual próximo do utilitarismo. As duas perspectivas carregam uma
desconfiança profunda da filosofia acadêmica abstrata e um interesse
permanente apenas no valor prático dos conceitos.
Filosofia é temperamento
James começa observando que cada indivíduo tem uma filosofia, que ele
descreve como a
A grande divisão
James divide os filósofos em duas categorias básicas: os empiristas, que
querem reduzir tudo a fatos e observações nuas e cruas; e os racionalistas, que
acreditam em princípios abstratos e eternos. Os primeiros tendem a ter uma
visão não sentimental, fatalista, irreligiosa e com frequência obscura do
mundo, enquanto os últimos são otimistas que tendem a acreditar no livre-
arbítrio, na ordem espiritual e na unidade de todas as coisas. Obviamente cada
campo tende a diminuir o outro.
James observa que vivemos em uma época de mentalidade empírica, no
entanto ainda não nos livramos do impulso humano natural à religião. Muitos
se veem presos entre a filosofia que não cobre as necessidades espirituais, que
oferece um universo completamente materialista, e a filosofia religiosa, que
não considera os fatos. Ele observa que a maioria de nós está atrás de “uma
filosofia que não exercitará apenas seus poderes de abstração intelectual, mas
fará alguma conexão positiva com o mundo real de vidas humanas finitas”.
Não surpreende que os tipos científicos viraram as costas para a filosofia
metafísica como “algo enclausurado e espectral”, que não tem espaço no
mundo moderno.
Ainda assim, diferentemente de um empirista puro, o pragmatista estará
aberto às verdades teológicas, ou a conceitos metafísicos livres de Deus, como
o idealismo transcendental de Kant, se eles provarem ter um benefício
concreto:
Comentários finais
James enfatiza a divisão entre a visão monística do universo, na qual tudo é
visto como um, e uma pluralista, que se concentra na diversidade e na
pluralidade estonteante da vida. A visão tradicional é que apenas a primeira é
religiosa e a segunda traz uma visão do caos. No entanto, James sustenta que
podemos ter uma crença no poder de uma cosmologia pluralista, mesmo se
acreditarmos que não há “necessidade lógica” ou divina no desenvolvimento
do mundo. O progresso acontecerá por meio do “simples desejo”, diz ele,
ocorrendo por meio dos indivíduos e “em pontos”. Somos nós que fazemos o
mundo como ele é e, se quisermos uma vida diferente ou um mundo diferente,
precisamos agir.
Ao perguntar por que qualquer coisa deveria existir, James responde:
o único motivo REAL que posso pensar em por que qualquer coisa
deveria sequer existir é que alguém deseja que ela esteja aqui. É
EXIGIDA […] para dar alívio a uma fração da massa do mundo, não
importa quão pequena seja. É a razão de viver, e, comparadas com ela,
as causas materiais e as necessidades lógicas são coisas espectrais.
William James
Nascido em Nova York, em 1842, James teve uma criação confortável e culta.
Em sua adolescência, a família, inclusive seu irmão Henry (que se tornaria um
escritor famoso), mudou-se para a Europa, onde James aprendeu várias
línguas. Ao voltar aos Estados Unidos, em 1860, passou um ano e meio
tentando se tornar pintor, em seguida se matriculou em Harvard, onde cursou
medicina. Em 1865, James saiu em uma expedição científica com o famoso
naturalista Louis Agassiz, mas durante a viagem enfrentou vários problemas de
saúde e ficou saudoso de casa.
Em 1867, James foi para a Alemanha, onde estudou fisiologia e foi exposto
a pensadores e ideias no novo campo da psicologia. Dois anos depois, voltou a
Harvard, onde, aos 27 anos, finalmente recebeu seu diploma de médico. Aos
30, conseguiu uma vaga na mesma universidade para lecionar fisiologia, mas
apenas após ter se recuperado de um colapso emocional. Em 1875, começou a
dar aulas de psicologia e também estabeleceu o primeiro laboratório de
psicologia experimental nos Estados Unidos. No ano em que começou a
trabalhar em The Principles of Psychology [Os princípios da psicologia], James se
casou com Alice Howe Gibbons, uma professora de Boston. Tiveram cinco
filhos.
James conheceu Sigmund Freud e Carl Jung em suas visitas aos Estados
Unidos, conheceu Bertrand Russell, Henri Bergson, Mark Twain e Horatio
Alger e teve entre seus alunos o educador John Dewey e o psicólogo Edward
Thorndike. Outros escritos importantes incluem The Will to Believe [A vontade
de crer] (1897) e As variedades da experiência religiosa (1902). James morreu em
1910.
2011
Rápido e devagar
Em resumo
Como o jeito que pensamos determina o que sabemos, a pesquisa
psicológica desempenha um papel importante na busca pela verdade
filosófica.
Na mesma linha
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
Nassim Nicholas Taleb, A lógica do cisne negro (p. 390)
Daniel Kahneman
Comentários finais
Uma das conclusões fascinantes de Kahneman é que estudar psicologia não
tem efeito nenhum em termos de mudança na maneira como pensamos e
agimos. Podemos aprender sobre experimentos mostrando, por exemplo, que
as pessoas são muito relutantes em ajudar outras em dificuldades quando
acham que outros indivíduos poderiam interferir; porém, nosso conhecimento
da escuridão da natureza humana não significa que isso mudará nosso
comportamento no futuro. Em vez disso, pensamos que não somos assim. Seu
insight é que a consciência da probabilidade estatística em experimentos não
nos altera, apenas em casos individuais – porque a partir desses casos podemos
tecer uma história significativa, e somos criaturas contadoras de histórias.
Ainda assim, Kahneman também diz que o foco do livro no erro
Daniel Kahneman
Kahneman nasceu em 1934, em Tel Aviv, enquanto sua mãe estava visitando
Israel. Seus pais eram lituanos, e seus primeiros anos foram na França, onde a
família conseguiu evitar a perseguição nazista. Mudaram-se para a Palestina
Britânica em 1948, e Kahneman foi para a Universidade Hebraica de
Jerusalém, onde se formou em psicologia.
Depois da graduação, trabalhou como psicólogo no exército israelense,
desenvolvendo testes para avaliação de oficiais. Aos 20 e poucos anos, foi para
os Estados Unidos fazer doutorado em psicologia na Universidade da
Califórnia, em Berkeley, e em 1961 voltou a Israel para assumir um cargo de
docente, ficando lá por muitos anos. Locais posteriores onde ele se dedicou à
docência e à pesquisa incluíram a Universidade de Michigan, Harvard e
Stanford. Atualmente, é estudioso sênior e professor emérito do departamento
de psicologia na Woodrow Wilson School of Public and International Affairs
da Universidade de Princeton. É casado com a professora de psicologia Ann
Treisman.
1781
Em resumo
Em um mundo racional baseado na ciência, existe lugar para a lei moral?
Na mesma linha
Aristóteles, Ética a Nicômaco (p. 32)
Cícero, Dos deveres (p. 100)
Martin Heidegger, Ser e tempo (p. 168)
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação (p. 364)
Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas (p. 398)
Immanuel Kant
A moralidade é real
Kant acreditava que o melhor proveito da razão era nos levar na direção de
uma moralidade mais objetiva. Se alguma coisa não pudesse ser mostrada
como boa de forma racional e não pudesse ser aplicada universalmente, então
provavelmente não era boa. Esse era o famoso “imperativo categórico”.
Aja apenas segundo uma máxima que você queira que se torne uma lei
universal.
Comentários finais
Se um filósofo supremo como Kant viu a metafísica como algo importante,
talvez a questão importante para a filosofia, então ela nunca poderia ser
dispensada de forma leviana, como uma visão empírica ou racional extrema
desejaria fazer. Filósofos anteriores como Berkeley e Leibniz mantiveram Deus
no centro da filosofia, sugerindo que o mundo “real” era metafísico, enquanto
o mundo natural como percebemos era uma mera expressão dessa realidade
mais importante. Não, diz Kant, eles são igualmente importantes.
Para ele, a religião não era um caminho que se conectava com a verdade
espiritual (que era impossível), mas uma validação de posições morais
cuidadosamente justificadas. Seu pensamento fez com que parecesse aceitável
para uma pessoa racional e moderna que aceita a ciência e a lógica também
manter espaço na vida para a espiritualidade. Ainda assim, ao dizer que nada
concreto poderia ser dito na teologia (porque era um campo de investigação de
um objeto ou realidade que não poderia ser conhecido, ou sobre o qual não se
poderia escrever ou falar de forma inteligente), Kant também abriu o caminho
filosófico para a filosofia moderna, inclusive para positivistas lógicos e para
Wittgenstein.
Seu trabalho permaneceu atraente e influente porque consegue servir a dois
campos: quem tem a mente empírica pode dizer que Kant demonstrou que
toda a fala de Deus e da teologia é essencialmente bobagem; e os que
acreditam em Deus podem ver em seu trabalho uma fundamentação racional
para a lei moral e a metafísica. De qualquer forma, como seu sistema é muito
rigoroso, abrangente e internamente coeso, nenhum filósofo desde então foi
capaz de ignorá-lo.
Immanuel Kant
Kant nasceu em 1724 em Konigsberg, Prússia Oriental (atualmente
Kaliningrado, Rússia). Seu pai era um artesão e a família, pobre, mas Kant
recebeu educação gratuita em uma escola pietista. Na Universidade de
Konigsberg, teve uma variedade de disciplinas, inclusive ciência, filosofia e
matemática. Para ganhar dinheiro, trabalhou como tutor particular por oito
anos, mas em seu tempo livre se ocupava escrevendo textos científicos,
inclusive História geral da natureza e teoria do céu, sobre as origens do sistema
solar.
A publicação de sua primeira obra filosófica, A New Elucidation of the First
Principles of Metaphysical Cognition [Uma nova elucidação dos primeiros
princípios da cognição metafísica], permitiu que ele começasse a dar aulas
sobre tudo na universidade, de geografia a direito e física. Apenas em 1770,
quando estava com 46 anos, conseguiu uma posição segura como professor de
filosofia em Konigsberg.
Outros textos incluem “Sonhos de um visionário explicados pelos sonhos
da metafísica” (1766), Prolegômenos a qualquer metafísica futura que possa se apresentar
como ciência (1783), Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), Crítica da razão
prática (1788), Crítica da faculdade do juízo (1790), Religião nos limites da simples razão
(1793) e Metafísica dos costumes (1797).
Kant nunca se casou e mal saía de Konigsberg. Considerado sociável e
espirituoso, realizava reuniões vespertinas em sua casa. Morreu em 1804.
1843
Temor e tremor
Em resumo
A confiança total em um absoluto ou na realidade espiritual não é uma
fraqueza, mas a expressão mais alta da vida.
Na mesma linha
René Descartes, Meditações sobre filosofia primeira (p. 116)
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
Blaise Pascal, Pensamentos (p. 300)
Søren Kierkegaard
Níveis de grandeza
Kierkegaard diz que todo mundo pode ser grande à sua maneira de acordo
com o que a pessoa ama e espera. Pessoas que amam a si mesmas podem ser
“grandes em si”; quem ama os outros pode tornar-se grande “por meio de sua
devoção”; mas aqueles que amam o absoluto ou Deus estão acima desses. O
primeiro grupo torna-se grande ao esperar o possível, o segundo, ao esperar o
eterno, “mas aquele que espera o impossível se tornou maior que todos”. Além
de força pessoal ou de autossacrifício está a grandeza de quem fica
voluntariamente impotente, dando todo o poder ao Absoluto. Como
Kierkegaard explica, “aquele que espera sempre pelo melhor envelhece,
enganado pela vida, e aquele que está sempre preparado para o pior envelhece
prematuramente; mas aquele que tem fé mantém sua eterna juventude”.
Tal pessoa pode parecer, para o restante da humanidade, seguir um
caminho que é louco ou absurdo, mas apenas porque ela não depende de
sabedoria terrena ou da razão. Se Deus move-se de maneiras misteriosas, então
alguém que é simplesmente um veículo de Deus também vai, por vezes,
parecer estar agindo além da razão.
Crer no absurdo
A resignação, observa Kierkegaard, na verdade, é um ato do ego, que faz a
pessoa parecer heroica. A fé, na realidade, é algo muito maior, pois significa
acreditar mesmo depois de termos renunciado a nós próprios. Significa não
desistir de nossas ações neste mundo.
Sobre o monte Moriá, Abraão estava disposto a fazer o sacrifício “se aquilo
foi, de fato, o exigido”. Como toda a racionalidade humana havia sido
suspensa, Abraão teve de crer no absurdo. Efetivamente teve que dizer a si
mesmo: “Não sei o significado disso, mas estou deixando esse significado nas
mãos de Deus”.
Kierkegaard descreve o salto de fé de Abraão como um “movimento” que
parece exigir a desistência de tudo – e, no entanto, finalmente proporciona
tudo a Abraão. Não apenas Isaque foi devolvido a Abraão, mas ele era um
novo Isaque, ainda mais maravilhoso do que antes, que cumpriria a profecia de
prosperidade e fertilidade ao longo de várias gerações. Por ter reconhecido
Deus como a fonte de tudo, Abraão tinha agora a segurança absoluta do -
conhecimento.
Apesar de um salto de fé ser tremendamente difícil, unir-nos com o que é
universal é a única e verdadeira segurança.
Cavaleiros da fé
Um “cavaleiro da fé”, diz Kierkegaard, transforma o salto de fé em um modo
de andar – para essa pessoa é simplesmente uma forma normal de ser. Ela terá
todo o prazer em apostar a vida em um único amor ou em um grande projeto.
Em contraste, será uma pessoa cuja vida consistirá simplesmente em “realizar
tarefas”.
Kierkegaard dá o exemplo de um cavaleiro da fé apaixonado por uma
mulher. Parece que sua busca é inútil, e ele admite isso. Mas então faz mais um
movimento, dizendo: “Não obstante, acredito que a conseguirei, quer dizer,
em virtude da força do absurdo, da força do fato de que para Deus tudo é
possível”. Em um nível puramente humano, ele admite que suas chances de
conseguir a mulher são zero, mas essa mesma impossibilidade o força a dar um
salto de fé, sabendo que só Deus pode fazê-lo. Ele deve crer no absurdo para o
Infinito encontrar expressão.
A questão de Abraão é que ele sofre (obviamente em grande angústia,
chegando ao ponto de amarrar Isaque e iniciar uma fogueira para a oferenda),
embora ainda acredite. Ele não é grande porque transcende o medo, a angústia
e a agonia, mas porque vive com eles. Ao fazê-lo, ele se torna um mestre da
vida. O engano que as pessoas cometem é ler a história de Abraão e pensar
que sua grandeza é inevitável, apenas vendo o resultado e ignorando o que ele
passou para chegar do outro lado. Se quisermos ser como Abraão, devemos
olhar para como ele começou, como agiu antes de se tornar a famosa figura
bíblica.
Comentários finais
Kierkegaard observa que a filosofia despreza a fé como algo inconsequente.
De fato, a filosofia não pode realmente nos dizer nada sobre a fé, porque ela
está além de palavras e conceitos. O pensamento normal não pode
compreender as ações de Abraão, porque, em tais situações, o pensamento
normal é redundante.
Como Kierkegaard enxergava, a fé é, na verdade, “a maior paixão em um
ser humano”. O universal é expresso por meio de uma pessoa, e essa pessoa
expressa algo atemporal e ilimitado. Ele acreditava que todos podemos ser
cavaleiros da fé.
Søren Kierkegaard
Nascido em Copenhague, em 1813, Kierkegaard pertencia a uma família
abastada e profundamente religiosa. Aos 17 anos, se matriculou em cursos de
teologia na Universidade de Copenhague, mas, para decepção de seu pai, foi
atraído para a filosofia e a literatura. Seu pai morreu quando ele ainda estava na
universidade. Depois de formado, Kierkegaard pediu a filha de um funcionário
público em casamento, no entanto o casamento nunca aconteceu e ele
permaneceu solteiro, vivendo principalmente da herança do pai.
Em 1843, publicou Either/Or [Ou/ou], seguido alguns meses depois por
Temor e tremor. Um ano mais tarde, vieram os livros Migalhas filosóficas e O conceito
de angústia, e, em 1846, Concluding Unscientific Postscript [Pós-escrito conclusivo
não científico]. Também escreveu, sob pseudônimos, O desespero humano e
Training in Christianity [Prática do cristianismo]. Discursos edificantes em diversos
espíritos (1847) apresentou o que Kierkegaard acreditava ser a verdadeira
mensagem do cristianismo. Ele se tornou um crítico severo da Igreja da
Dinamarca e de suas perspectivas mundanas.
Kierkegaard morreu em 1855. Wittgenstein descreveu-o a um amigo como
“de longe o mais profundo pensador do século passado. Kierkegaard era um
santo”.
1972
Em resumo
O significado de algo não é encontrado nas descrições que lhe são dadas,
mas em suas propriedades essenciais.
Na mesma linha
A. J. Ayer, Language, Truth and Logic (p. 40)
Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas (p. 398)
Saul Kripke
Uma pessoa é quem ela é – tem propriedades que são essenciais a ela –, e
nenhuma porção de precisão de linguagem vai adicionar, remover ou provar
essa identidade.
Comentários finais
Para a maior parte do século XX, a filosofia foi dominada pela ideia de que
apenas analisando a linguagem se poderia descobrir o que era verdadeiro, o
que não era verdadeiro, e sobre o que não se podia sequer falar com algum
sentido. A bomba de Kripke foi demonstrar que, se o descritivismo era falho e
a linguagem não poderia mesmo chegar à essência da identidade de uma coisa,
por que ela deveria ser considerada o núcleo da filosofia? Talvez a visão
materialista do mundo, que incorporou a ideia de que somente o que poderia
ser fisicamente descrito era relevante ou importante, fosse apenas um viés.
Estas são as últimas linhas de Naming and Necessity:
Saul Kripke
Kripke nasceu em Nova York, mas, quando ainda era muito jovem, sua família
se mudou para Omaha, Nebraska. Recebeu diploma de bacharel em
matemática em Harvard, em 1962, e, em 1973, foi a pessoa mais jovem a
ministrar as John Locke Lectures, na Universidade de Oxford. Ocupou
posições de docência em Harvard, Princeton e na Universidade Rockefeller.
Naming and Necessity foi publicado pela primeira vez em uma coletânea
editada, Semantics of Natural Language [Semântica da língua natural] (1972).
Kripke não escreve livros, mas edita palestras que dá para que possam ser
publicadas. Sua interpretação controversa de Wittgenstein está expressa em
Wittgenstein on Rules and Private Language [Wittgenstein sobre as regras e a
linguagem privada] (1982).
Atualmente, Kripke faz parte do corpo docente do The Graduate Center da
Universidade da Cidade de Nova York.
1962
Em resumo
Em vez de um acúmulo linear de fatos, o conhecimento pode ser visto
como a substituição de uma visão de mundo por outra.
Na mesma linha
Michel Foucault, As palavras e as coisas (p. 138)
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
Karl Popper, A lógica da pesquisa científica (p. 316)
Thomas Kuhn
Comentários finais
A estrutura das revoluções científicas foi chocante na sua sugestão de que a ciência
não conduz a humanidade em um caminho organizado e linear na direção de
uma verdade objetiva sobre a realidade do mundo por meio do acúmulo de
observações empíricas (o que pode ser chamado de visão do Iluminismo), mas
é, na verdade, uma criação humana. Se a ciência é a tentativa de fazer nossas
teorias se encaixarem na natureza, então é a natureza humana que temos de
enfrentar primeiro.
Gostamos de tramar avanços ou mudanças na compreensão científica em
uma grande história de progresso, mas a implicação de Kuhn é que a ciência
não tem nenhum objetivo, simplesmente vai adaptando suas explicações da
realidade da melhor forma que pode. Na segunda edição do livro, Kuhn
deixou claro que não era um relativista e que acreditava no avanço científico.
No entanto, também afirmou que a ciência era como a teoria da evolução:
evolui de algo mais simples, mas não se pode dizer que tem um fim último ou
uma direção.
Uma interpretação comum de Kuhn é de que os paradigmas são “ruins” e
dão às pessoas uma visão tacanha, quando deveriam sempre estar
questionando o paradigma que subjaz sua disciplina. Na verdade, Kuhn
observou que a aquisição de um paradigma é um sinal de que um campo
amadureceu para se tornar algo real, porque pelo menos tem um conjunto de
regras com que os praticantes podem concordar. Paradigmas não são nem
positivos nem negativos, simplesmente nos dão uma lente para enxergar o
mundo. O verdadeiro valor está em ver os paradigmas objetivamente e admitir
a possibilidade de que as nossas verdades podem ser meras suposições.
Thomas S. Kuhn
Kuhn nasceu em 1922. Seu pai era um engenheiro hidráulico que virou
consultor de investimento, e sua mãe era editora. Ele cresceu perto de Nova
York e frequentou várias escolas particulares antes de ser aceito em Harvard.
Depois de se formar, Kuhn juntou-se aos esforços de guerra, trabalhando
em radares nos Estados Unidos e na Europa, antes de retornar para Harvard a
fim de fazer sua pós-graduação em física. Ele também frequentou cursos de
filosofia e considerou mudar seus estudos para essa matéria, mas sentiu que era
muito tarde para começar nesse campo. Aos 30 anos, começou a lecionar
história da ciência, e sua curva de aprendizagem íngreme em um campo novo
fez com que percebesse que tinha pouco tempo para produzir um trabalho
próprio. Como resultado, passou dez anos escrevendo A estrutura das revoluções
científicas. Kuhn não conseguiu ser empossado em Harvard, então assumiu um
cargo de professor assistente na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Em
1964, Princeton ofereceu a ele um cargo de docente em história e filosofia da
ciência, e ele ficou lá por quinze anos, até se mudar para o Instituto de
Tecnologia de Massachusetts (MIT), onde passou a fase final de sua carreira
(1979-91).
O primeiro livro de Kuhn foi A revolução copernicana: a astronomia planetária no
desenvolvimento do pensamento ocidental (1957). Ele também escreveu Sources for the
History of Quantum Physics [Fontes para a história da física quântica] (1967). Nos
anos após a publicação de A estrutura das revoluções científicas, Kuhn revisitou e
esclareceu alguns de seus conceitos (confira O caminho desde a estrutura, que
inclui uma entrevista autobiográfica com Kuhn). Ele morreu em 1996.
1710
Ensaios de Teodiceia
Em resumo
O mundo que existe deve ser o melhor de todos os mundos possíveis.
Na mesma linha
Blaise Pascal, Pensamentos (p. 300)
Platão, A República (p. 308)
Baruch Spinoza, Ética (p. 380)
Gottfried Leibniz
Comentários finais
Ironicamente para alguém agora associado a oferecer uma razão para crer em
Deus, Leibniz foi acusado de ser ateu. Não era um grande frequentador de
igrejas e se opunha a algumas crenças de seu tempo, como, por exemplo, que
crianças não batizadas seriam enviadas ao inferno. Uma parte importante de
seu trabalho, tanto em seu papel político como de filósofo, era a de conciliar as
Igrejas Católica e Protestante, e Ensaios de Teodiceia era um trabalho pancristão
escrito para esse fim (embora Leibniz fosse protestante, o livro faz copiosa
referência aos filósofos “papistas” São Tomás de Aquino e Santo Agostinho).
Uma das grandes histórias da filosofia moderna é a viagem de Leibniz para
a Holanda para visitar Baruch Spinoza, bem comentada em The Courtier and the
Heretic [O cortesão e o herege], de Matthew Stewart. Os dois não poderiam ser
mais diferentes: Leibniz era um jovem, suave relações-públicas e guru
científico promissor, e Spinoza era um brilhante filósofo recluso, desprezado
por muitos como o “judeu ateu”. Stewart retrata o encontro como o momento
decisivo na vida e na filosofia de Leibniz, porque ele se sentiu compelido a
acomodar o que eram visões aparentemente opostas às suas. Stewart sugere:
“Mesmo hoje, os dois homens que se reuniram em Haia defendiam uma
escolha que todos nós precisamos fazer e implicitamente já fizemos”.
Qual é a escolha? A crença em um universo que funciona de acordo com
rigorosas leis naturais que não exigem um Ser Supremo; ou uma em que Deus
é o controlador de tudo (inclusive do avanço da humanidade na direção do
conhecimento científico). Qualquer um que opte pela primeira com base no
pressuposto de que, “se Deus existisse, o mal não existiria”, deveria, no
mínimo, suspender a opinião até ler os argumentos de Leibniz.
“Pelo que foi dito, penso não haver dúvida de que não
existem princípios práticos com os quais todos os
homens concordem; e, portanto, nenhum é inato.”
Em resumo
Todas as nossas ideias, simples ou complexas, são originárias da experiência
sensorial. Somos tábula rasa; a moralidade e o caráter não são inatos.
Na mesma linha
A. J. Ayer, Language, Truth and Logic (p. 40)
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
William James, Pragmatismo (p. 190)
Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social (p. 330)
Nassim Nicholas Taleb, A lógica do cisne negro (p. 390)
John Locke
John Locke estudou medicina em Oxford e iniciou a vida adulta como médico
particular de um político do Partido Whig: o primeiro conde de Shaftesbury.
Dizem que ele salvou a vida de seu chefe com uma operação no fígado, mas
seu interesse em medicina não conseguia competir com sua paixão pela
política e pela filosofia.
Durante a maior parte da vida, Locke ficou mais conhecido como
conselheiro político e força intelectual do Partido Whig. Suas opiniões liberais
foram expressas em Dois tratados sobre o governo (publicado anonimamente um
ano após o Ensaio sobre o entendimento humano), que faz uma defesa brilhante das
liberdades individuais e dos direitos naturais do povo contra o “direito divino
dos reis” e o absolutismo de Thomas Hobbes. Os tratados tornaram-se uma
grande influência para os revolucionários franceses e os fundadores da
república norte-americana, e o conceito lockiano de busca da felicidade
encontrou espaço na constituição norte-americana.
Durante sua carreira política, Locke estava trabalhando em seu Ensaio sobre o
entendimento humano, uma obra puramente filosófica. Francis Bacon foi o
desenvolvedor do método científico e, como se sabe, morreu de pneumonia
em 1626 enquanto fazia experimentos com congelamento de carnes. Locke,
nascido seis anos mais tarde, se tornaria seu herdeiro intelectual, ampliando a
visão empírica britânica para uma filosofia completa. Ensaio sobre o entendimento
humano criou o espaço pelo qual Hume pôde andar, e este último, por sua vez,
abriu o caminho para os filósofos analíticos do século XX, como Russell e
Wittgenstein. Em suas primeiras páginas, Locke modestamente observa que,
Esse “trabalhador inferior” era uma espécie bem moderna de filósofo. Ele
declarou a construção de um grande sistema para descobrir o que um único
indivíduo poderia realmente saber e, como os filósofos de hoje, estava muito
preocupado com a precisão na linguagem em si:
Não podemos vivenciar uma coisa sem antes ter tido uma experiência
sensorial dela. Mesmo uma ideia complexa tem raízes nos sentidos.
Na terminologia de Locke, ideias “simples” são experiências básicas que os
sentidos nos trazem, por exemplo, a frieza e a dureza sentidas ao mesmo
tempo ao tocar um bloco de gelo ou a brancura e o cheiro vivenciados quando
se segura um lírio. Essas ideias simples formam a base de qualquer quantidade
de ideias complexas mais abstratas sobre como o mundo funciona. A visão de
um cavalo galopando, por exemplo, acaba nos levando a reflexões sobre a
natureza do movimento. Ainda assim, devemos sempre ter a experiência de
ideias simples antes de podermos criar ideias complexas. Até mesmo um
conceito abstrato, como força, originalmente deriva de nossa consciência de
que podemos mover os nossos membros para fazer algo. A partir desse
simples conhecimento do que é força, podemos compreender por que um
governo ou um exército pode ter força. Locke separa ainda mais as coisas de
acordo com suas qualidades primárias e secundárias. As qualidades primárias
de uma rocha, por exemplo, são suas dimensões e o movimento, que são
verdadeiras, mesmo se não são percebidas. Suas qualidades secundárias são a
maneira como nós a percebemos, por exemplo, o fato de ela ser preta e dura.
A crença de Locke de que todas as ideias devem vir originalmente da
sensação levou-o a uma visão interessante: se os sentidos podem dar a uma
pessoa uma visão de mundo diferente daquela da pessoa ao lado (por exemplo,
a mesma banheira pode ser fria para uma pessoa, mas quente para outra),
como pode haver uma certeza ou verdade nas ideias proferidas por filósofos
individuais, que são muito mais complexas? Cada visão de mundo, sugere ele,
deve ser pessoal, e as abstrações e ideias, por mais atraentes que sejam, devem
continuar sob suspeição, especialmente se fizerem falsas reivindicações de
universalidade.
A moralidade é inata?
Na época de Locke, supunha-se que a moralidade era inata (as pessoas nascem
boas ou más) e que existe um conjunto de princípios morais universais. Ele
tenta mostrar que a moralidade não pode ser universal, enfatizando a ampla
variação entre indivíduos e povos em termos de crenças. Por exemplo, práticas
como deixar as crianças em estado selvagem, sob mau tempo ou enterrá-las
juntamente com a mãe caso ela morra eram normais em várias culturas, mas na
Inglaterra de sua época eram consideradas anormais.
“Então”, pergunta ele, “são inatos os princípios de justiça, piedade,
gratidão, equidade, castidade?” Se às crianças, aos “idiotas” e a vários povos
estrangeiros faltam tais princípios, inclusive a aceitação “inata” de Deus, isso
sugere que eles, os princípios, são criados por seres humanos. Em seguida,
Locke aborda o argumento de que a nossa razão, dada por Deus, nos permite
descobrir as verdades morais atemporais. A razão é uma criação da mente
humana, conclui ele e, portanto, não pode ser invocada para revelar a verdade
eterna.
Os princípios parecem inatos, diz ele, apenas porque “não nos lembramos
de quando os aceitamos em primeiro lugar”. As crianças absorvem o que lhes
é dito, questionando apenas na idade adulta. Talvez a única coisa inata em nós
seja nosso desejo de viver de acordo com princípios, quaisquer princípios, desde
que eles criem alguma ordem ou significado. Mas “ideias e noções não são
mais inatas a nós que as artes e as ciências” e, muitas vezes, são utilizadas por
uma pessoa contra a outra. Portanto, o caminho para a liberdade deve ser cada
pessoa testar verdades por si mesma para que não esteja sob o falso domínio
de ninguém.
Na visão empírica de Locke, onde fica a crença espiritual? Ele a vê
simplesmente como uma ideia complexa, extraída de outras ideias complexas,
tais como existência, duração, conhecimento, poder e bondade. Tomamos
essas e as multiplicamos pelo infinito para chegarmos à compreensão de um
Ser Supremo. Embora Locke não possa “provar” a existência de Deus, ele, de
alguma forma, consegue mostrar que a crença em Deus é perfeitamente
natural e lógica, algo elaborado a partir de nossa experiência direta do mundo a
nosso redor.
Identidade pessoal
Na segunda edição do livro (1694), Locke incluiu um novo capítulo, “As ideias
de identidade e de diversidade”. Para muitos estudiosos, essa se tornou a parte
mais fascinante do trabalho, pois é uma tentativa de explicar questões de
consciência e identidade.
Identidade, Locke diz, sempre se baseia em nossas percepções de algo ao
longo do tempo. A identidade de criaturas vivas não depende simplesmente de
serem a mesma massa de partículas que eram dois anos antes. Um carvalho é a
mesma planta que uma vez foi uma muda, e um cavalo é o mesmo cavalo que
era quando potro. Isso diz a Locke que a identidade não se baseia apenas na
matéria, que ela muda constantemente, menos na organização de algo.
No entanto, como isso funciona em relação aos seres humanos? Locke
levanta a questão fascinante das almas, que podem habitar corpos sucessivos e
assumir novas identidades durante muitas vidas. Mesmo pressupondo, por
exemplo, que cada uma dessas encarnações é masculina, não se pode dizer que
tal sucessão de identidades é o mesmo “homem”. O principal em seu
argumento é a separação dos conceitos de “homem” e “pessoa”. Enquanto
um homem ou uma mulher é uma expressão da espécie humana – um corpo,
um animal, que também é combinado com uma consciência –, a identidade
pessoal implica uma duração de consciência que expressa uma identidade,
transcendendo o físico. Assim, poderíamos quase dizer que um gato ou um
papagaio muito inteligente parece uma pessoa e atribuímos a ele uma
personalidade, ao passo que podemos considerar alguém que perdeu a
memória mais como um organismo que perdeu sua identidade pessoal. Locke
menciona expressões cotidianas como ele “não é ele mesmo” ou está “fora de
si”, o que implica que “a mesma pessoa não estava mais naquele homem”.
Essas palavras confirmam que a consciência, não a fisicalidade, é identidade.
Comentários finais
Embora a refutação de Locke sobre o caráter inato parecesse ser um passo na
direção da verdade, a ciência foi menos gentil nesse sentido. A ideia da mente
como uma tábula rasa teve um efeito enorme sobre a cultura e a política
pública (dando-nos a noção, por exemplo, de que meninos e meninas agem de
forma diferente apenas por causa do condicionamento social), mas a
investigação sobre o cérebro mostra que um número significativo de
tendências comportamentais é, de fato, inato. A ação moral em si é
considerada por muitos uma característica evolutiva que ajuda os seres
humanos a viver melhor em comunidade.
O Ensaio sobre o entendimento humano de Locke, no entanto, ainda é uma
grande expressão da visão empírica e foi muito ousado para o seu tempo.
Também é bastante legível (mais do que muito da filosofia contemporânea) e
abrange muitas ideias que não temos espaço para explorar aqui, tal como sua
posição sobre o livre-arbítrio e a ética.
Locke também escreveu em defesa da tolerância religiosa (Cartas sobre a
tolerância, 1689-92), principalmente para superar a divisão católico-protestante,
e sua visão de uma sociedade aberta, tolerante e democrática tem sido
influente. Especificamente, a sua modesta opinião de seres humanos como
seres moldados pelos sentidos, que naturalmente buscam a própria felicidade e
evitam a dor, tem sido uma influência duradoura sobre instituições políticas
modernas, especialmente aquelas dos Estados Unidos. Sua concepção de seres
humanos como animais morais era muito moderna e realista, e tem sido bem-
sucedida porque dá todo o crédito à nossa capacidade de criar uma mudança
positiva, mas não tenta fazer de nós algo que não somos.
John Locke
Locke nasceu em 1632, em Somerset, Inglaterra. Seu pai era advogado e oficial
de baixo escalão. Locke frequentou a prestigiada Westminster School, em
Londres, e ganhou uma bolsa de estudos para Oxford. Depois de obter dois
títulos, permaneceu lá para investigar e lecionar sobre questões políticas e
teológicas, vivendo na cidade durante quinze anos. Em 1665, concentrou seus
estudos na medicina e, no ano seguinte, conheceu Anthony Ashley Cooper, o
Lord Ashley (mais tarde, conde de Shaftesbury), a cuja família em Londres ele
se juntou. Foi em 1668 que supervisionou a operação no fígado de Cooper.
Quando Cooper tornou-se lorde-chanceler do governo inglês, Locke atuou
como seu conselheiro, e, depois desse período, ajudou a organizar a nova
colônia norte-americana da Carolina. Considerando que a constituição do país
(na qual ele ajudou com a minuta) estabeleceu uma aristocracia feudal baseada
no comércio de escravos, muitos têm apontado a aparente hipocrisia do
trabalho de Locke lá em contraste com suas amplas opiniões políticas.
De 1683 a 1689, ele se exilou na Holanda por motivos políticos, mas
retornou depois da Revolução Gloriosa, que instalou William de Orange como
monarca da Grã-Bretanha. Sem nunca ter se casado, Locke passou os últimos
anos em Essex, vivendo com sua amiga Lady Damaris Masham e seu marido.
Trabalhou em um comitê de aconselhamento do governo sobre questões
monetárias e publicou anonimamente The Reasonableness of Christianity [A
racionalidade do cristianismo] (1695). No ano seguinte, foi nomeado para um
cargo assalariado na Câmara de Comércio e se envolveu em um prolongado
debate público com o clérigo Edward Stillingfleet sobre as implicações
teológicas do Ensaio. Locke morreu em 1704.
1513
O príncipe
Em resumo
O bom governante construirá um Estado forte e bem-sucedido, que
oferece prosperidade e paz a seus cidadãos; mantê-lo às vezes requer ação
em desacordo com a moral da época.
Na mesma linha
Noam Chomsky, Para entender o poder (p. 92)
Cícero, Dos deveres (p. 100)
Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal (p. 292)
Platão, A República (p. 308)
Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social (p. 330)
Nicolau Maquiavel
O fato é que qualquer governante, não importa quão benigno for, precisa
encarar o uso da violência para manter sua existência. Maquiavel observa que
“todos os profetas armados foram vitoriosos, e todos os profetas desarmados
foram destruídos”. Ele se refere a Savonarola, líder florentino clerical cujo erro
fatal foi não possuir meios enérgicos para garantir que sua visão da cidade se
tornasse real. Embora fosse um bom homem de qualquer forma, que tentou
trazer de volta a moralidade e os ideais republicanos em contraste com os
cruéis Médici, no final Savonarola ficou impotente para impedir a própria
morte.
Um príncipe deve ser capaz de atuar como homem e como fera, declara
Maquiavel; um governante eficaz deve ser “uma raposa para discernir
armadilhas e um leão para expulsar os lobos”. Ele imagina o líder sábio como
aquele que passa muitas de suas horas durante o tempo de paz considerando
vários cenários de guerra e pensando em como o reino vai reagir se o evento
realmente acontecer. Um príncipe poderia se enganar acreditando que suas
energias devem ser gastas em outras coisas, mas, em última instância, seu papel
é o de proteger e preservar o Estado.
O que, necessariamente, envolve tomar medidas que normalmente seriam
consideradas ruins, mas, “se é permitido falar bem de coisas do mal”, como
Maquiavel delicadamente coloca, há uma distinção entre a violência que é
cometida em razão da criação ou da manutenção de um bom Estado e a
crueldade que é perpetrada apenas para preservar o poder de um governante
individual. Ele dá nota baixa para os imperadores romanos Cômodo, Caracala
e Maximino, que fizeram da crueldade um modo de vida. Tornaram-se tão
odiados que suas mortes prematuras foram inevitáveis. Portanto, o excesso de
crueldade não é apenas ruim, mas politicamente insensato.
Quando se trata de tomar um principado ou Estado, a regra geral de
Maquiavel é a de que “o usurpador deve ser tão rápido para infligir os
ferimentos que precisar, de um só golpe, para que não precise ter que renová-
los todos os dias”. Se estiver indo tomar ou atacar alguma coisa, faça-o o mais
rapidamente possível e com o máximo de força, de modo que seus inimigos
desistam logo e, paradoxalmente, a violência possa ser minimizada. Ao fazê-lo,
você será temido e poderá, posteriormente, ser visto como magnânimo por
seus favores. Em contraste, um golpe sem força permitirá que seus inimigos
vivam e que você viva para sempre com medo de ser derrubado.
Para entender Maquiavel, é preciso avaliar a geopolítica de seu tempo. A
Itália, ele lamenta, “foi invadida por Carlos, pilhada por Luís, arrasada por
Ferdinando e insultada pelo Suíço”, uma situação que poderia ter sido evitada,
caso seus governantes tivessem fortes exércitos nacionais. No entanto, em vez
de poder pelo poder, a proposta de Maquiavel é o estabelecimento de um
governo forte que permita que a economia privada floresça, trabalhe de acordo
com leis e instituições e preserve a cultura. Ele acreditava que Deus desejaria
uma Itália unida e forte, que fosse capaz de trazer a segurança e a prosperidade
a seu povo, com uma cultura e uma identidade nacional florescentes. O príncipe,
do ponto de vista de seu autor, é uma obra com claro fundamento moral.
Comentários finais
O príncipe continua a fascinar, chocar e inspirar as pessoas tanto hoje como fez
com os leitores no século XVI. Embora escrito como uma espécie de
mostruário do conhecimento do autor em estadística e muito preocupado com
os acontecimentos de sua época, os insights atemporais do livro sobre a
natureza do poder e a motivação humana transcenderam sua configuração
original.
A habitual acusação contra o livro é que é maléfico ou imoral. No entanto,
ele é mais bem-visto como um texto fundador da ciência política, que analisa
clinicamente as situações políticas como são e fornece prescrições para a ação.
Na tentativa de minimizar a revolta e a miséria ao promover um Estado forte
que possa garantir prosperidade e segurança a todos, o objetivo de Maquiavel
foi ético, ainda que permitisse o uso da força ou da violência institucionalizada.
Maquiavel continua sendo leitura essencial para qualquer um em posição de
liderança. Cada um de nós deve tomar decisões que talvez não sejam bem-
vindas ou até firam aqueles que estão sob o nosso comando. No entanto,
temos de agir para o benefício e o bem-estar em longo prazo do órgão que
administramos, quer se trate de uma empresa, alguma outra organização ou até
mesmo uma família. Nesse sentido, o papel do líder pode ser solitário e muitas
vezes traz consigo responsabilidades obscuras. Essa é a natureza do poder.
Nicolau Maquiavel
Maquiavel nasceu em Florença, em 1469. Seu pai era advogado, e ele recebeu
uma boa educação em latim, retórica e gramática. Viveu o reinado de
Savonarola e sua república cristã e, nos anos seguintes à execução do frei,
ascendeu pelas fileiras do governo florentino. Em 1498, foi nomeado
secretário da Segunda Chancelaria da República e secretário do Conselho dos
Dez da Liberdade e da Paz. Dois anos mais tarde, ingressou em sua primeira
missão diplomática, encontrando o rei Luís XII da França. Em 1501, casou-se
com Marietta Corsini, com quem teve seis filhos.
Em 1502-03, passou um período de quatro meses na corte de César Bórgia,
o duque Valentino, governante temeroso que é considerado por muitos o
modelo de príncipe para Maquiavel. Também participou de missões para o
Papa Júlio II e o Imperador Maximiliano. Com a queda da República de
Florença, em 1512, Maquiavel foi demitido de suas posições, acusado de
conspiração, preso, torturado e, em seguida, liberado, dando-lhe tempo para
escrever O príncipe.
Outros escritos incluem Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, um
comentário sobre o trabalho do historiador romano que revela as simpatias
republicanas de Maquiavel; A mandrágora, uma peça satírica sobre a sociedade
florentina; A arte da guerra, um tratado sob a forma de um diálogo socrático
que foi a única obra política ou histórica a ser publicada em vida (em 1521), e
seu História de Florença, encomendado pelo Cardeal Giulio de’ Medici, em 1520,
mas não publicado até 1532. Maquiavel morreu em 1527.
1967
O meio é a massagem
Em resumo
Os meios de comunicação de massa e a tecnologia de comunicações não
são invenções neutras, mas mudam a maneira como somos.
Na mesma linha
Jean Baudrillard, Simulacres et Simulation (p. 54)
Noam Chomsky, Para entender o poder (p. 92)
Marshall McLuhan
O eu e as mudanças sociais
No início de O meio é a massagem, McLuhan observa que os alunos de
comunicação são frequentemente atacados por “concentrarem-se ociosamente
em meios ou processos”, em vez de focar na substância. De fato, na era em
que vivemos, são exatamente esses meios e processos que mudam rápida e
profundamente o que é “conhecido”. A “tecnologia elétrica”, como ele a
descreve, está remodelando cada aspecto da vida social e pessoal, “obrigando-
nos a reexaminar e reavaliar praticamente cada pensamento, cada ação, cada
instituição que antes era considerado natural”. Ele adverte: “Tudo está
mudando – você, sua família, seu bairro, sua educação, seu trabalho, seu
governo, sua relação com ‘os outros’. E eles estão mudando drasticamente”.
Uma criança que cresce no moderno ambiente dos meios de comunicação
não tem apenas seus pais e professores para influenciá-la; está exposta a todo o
mundo: “O caráter não é mais moldado por apenas dois especialistas sérios
mas tateantes. Agora, todo mundo é sábio”. Toda criança é exposta a um
bombardeio de informações adultas pelos meios de comunicação, que fazem a
própria ideia de “infância” parecer estranha. No lado positivo, a tecnologia está
tornando o aprendizado mais divertido e devolve algum controle ao aluno. A
educação não precisa consistir em aprendizado rotineiro, quadros-negros e dias
escolares regulamentados.
A relação entre “público” e “privado” também foi alterada:
Os dispositivos elétricos de informação para vigilância tirânica
universal de toda a vida estão causando um grave dilema entre a nossa
pretensão de privacidade e a necessidade de saber da comunidade. As
ideias mais antigas e tradicionais do privado, os pensamentos e ações
isoladas […] estão seriamente ameaçados por novos métodos de
recuperação instantânea de informações elétricas.
O mundo do trabalho
McLuhan também acaba com a ideia convencional de “emprego”, que foi uma
consequência da mecanização e da especialização da era industrial e na qual as
pessoas eram reduzidas a engrenagens de uma máquina. No novo mundo, ele
diz que:
padrões de trabalho fragmentados tendem a se misturar mais uma vez
a papéis envolventes e exigentes ou formas de trabalho que se
assemelham cada vez mais ao ensino, à aprendizagem e ao serviço ao
“ser humano”, no sentido mais antigo da lealdade dedicada.
Política
O ambiente dos meios de comunicação também muda a política de um modo
fundamental. O que antes era um “público” composto de muitos pontos de
vista separados e distintos, hoje foi substituído por uma “audiência” que dá
retorno instantâneo sobre qualquer decisão política. Por meio da televisão e de
outros meios de comunicação, podemos ver o que está acontecendo em tempo
real em qualquer parte do mundo e reagir ao acontecimento. As emoções
ficam pulverizadas em nossas telas, e as agruras de uma pessoa podem ser
sentidas por milhões.
O acesso quase universal a esses meios de comunicação tem outro efeito:
Comentários finais
McLuhan equivocou-se em algumas coisas. Acreditava que, na era da
informação, as cidades – dos monumentos às estações de trem – se tornariam
menos importantes, lugares semelhantes a museus, e não onde as pessoas
viveriam ou trabalhariam. Por um tempo ele parecia estar certo, pois as pessoas
fugiam das cidades para os subúrbios, mas a nova moda da vida na cidade
surgiu de um desejo de experiência real (a possibilidade de encontros casuais,
acesso à música ao vivo e assim por diante), não só virtual. No entanto, de
forma geral, é espantoso como alguém que morreu em 1980 pôde ter
prenunciado tão bem como vivemos agora.
McLuhan observa que, antes da invenção da imprensa, a autoria de um livro
era secundária à informação que ele continha. Foi só depois de Gutenberg que
a “fama literária e o hábito de considerar o esforço intelectual como
propriedade privada” vieram à tona. Mas ele também diz o seguinte: “Quando
as novas tecnologias entram em jogo, as pessoas ficam cada vez menos
convencidas da importância da autoexpressão. O trabalho em equipe substitui
o esforço particular”. Não vem à mente a Wikipédia? Embora a fama de
autores individuais não tenha se alterado, McLuhan estava essencialmente
correto em sua sensação de que a colaboração e o texto em si poderiam voltar
a ser destaque.
De acordo com o seu raciocínio, os aplicativos de redes sociais como
Twitter e Facebook não apenas auxiliam as revoluções, mas estão no coração
delas. Mais do que simplesmente conectar pessoas que de outra forma
permaneceriam desconectadas, eles realmente viram o peso do poder para o
povo. Enquanto alguns comentaristas tentaram minimizar o papel das redes
sociais, McLuhan provavelmente teria argumentado que essa é uma reação da
velha guarda. Os novos aplicativos são a mensagem e vão continuar a
transformar o mundo.
Perto do final do livro, há uma imagem da capa do The New York Times de
setembro de 1965, um dia depois da grande pane elétrica que mergulhou a
cidade de Nova York na escuridão. McLuhan afirma que, “se o [blecaute]
tivesse continuado por meio ano, não haveria dúvida de como a tecnologia
elétrica modela, opera, altera – massageia – cada instante de nossa vida”. E isso
foi em 1965, quando muitas pessoas não tinham nem mesmo televisão. Acelere
o tempo até o presente e imagine se a internet deixasse de funcionar por seis
meses – nós viveríamos no mesmo mundo? Seríamos as mesmas pessoas?
Marshall McLuhan
McLuhan nasceu em 1911. Sua mãe era uma professora que mais tarde se
tornou atriz, e seu pai tinha uma corretora de imóveis em Edmonton, Canadá.
McLuhan frequentou a Universidade de Manitoba, obtendo seu mestrado
em língua inglesa em 1934; no mesmo ano, foi admitido como aluno na
Universidade de Cambridge. Em 1936, ele retornou ao Canadá para um
trabalho como professor assistente na Universidade de Wisconsin. No início
da década de 1950, deu início aos seminários de Comunicação e Cultura
financiados pela Fundação Ford na Universidade de Toronto. Durante esse
período, sua reputação cresceu, e, em 1963, a universidade criou o Centro de
Cultura e Tecnologia, que ele dirigiria até 1979.
Seu primeiro grande trabalho, The Mechanical Bride [A noiva mecânica]
(1951), foi uma análise do efeito da publicidade na sociedade e na cultura.
McLuhan apontou que os meios de comunicação em si criam um impacto,
independentemente do que está sendo dito, em vez da atitude geralmente
aceita de que o conteúdo de uma mensagem é mais importante do que sua
forma. Seus outros livros fundamentais são: Os meios de comunicação como extensões
do homem (1964) e Guerra e paz na aldeia global (1968). McLuhan morreu em
1980.
1859
Sobre a liberdade
Em resumo
As ações de uma pessoa devem ser permitidas, a menos que causem danos
diretos a outras. A prioridade em qualquer sociedade aberta deve ser a
liberdade, e não as políticas que parecem ser para o próprio bem da pessoa.
Na mesma linha
Jeremy Bentham, Princípios da moral e da legislação (p. 70)
John Rawls, Uma teoria da justiça (p. 322)
John Stuart Mill
Liberdade genuína
No momento em que estava escrevendo, Mill admitiu que vários países
poderiam ser descritos como democráticos, ainda que essa estrutura de
governo não garantisse a real liberdade, porque os que estão no poder se
tornaram uma classe apartada do povo. Além disso, um governo eleito
popularmente ainda podia oprimir algum grupo dentro da sociedade – o que
era conhecido como “tirania da maioria”. Ele sentia que isso poderia ser um
tipo ainda pior de regra do que a opressão política regular, porque se torna
uma tirania social, forçando um modo “correto” de agir para todos. Ao dizê-lo,
Mill prenuncia perfeitamente os Estados comunistas do século XX, em que
aqueles que não estavam em conformidade com as novas normas sociais
tinham de ser “reeducados”. Esses regimes, observa ele, concentram-se na
escravidão não do corpo, mas da mente e da alma.
Numa sociedade democrática, a questão essencial é onde deveria ser
colocado o limite entre a necessidade de controle social e a liberdade do
indivíduo de pensar e acreditar como desejar. A regra da maioria não
estabelece nenhum tipo de moralidade universal; é, antes, a expressão de
gostos e desgostos da classe ascendente. Mill observa que a liberdade religiosa
só foi promulgada quando vários grupos minoritários, sabendo que nunca
poderiam ser dominantes, lutaram pelo princípio da liberdade religiosa
constando da lei. Os seres humanos são intolerantes por natureza, portanto
uma política ou lei de tolerância surge apenas quando há tantas crenças
concorrentes que nenhum grupo está disposto a permitir que o outro se torne
dominante.
Todas essas ideias levam a seu famoso critério ou princípio para garantir a
liberdade, a evitação de dano:
Liberdades específicas
Mill descreve áreas da liberdade individual que devem ser consideradas como
um direito fundamental, contanto que não envolvam danos a terceiros:
• liberdade de consciência;
• liberdade de pensamento e de sentimento, inclusive “opinião e
sentimento sobre todos os assuntos, práticos ou especulativos, científicos,
morais ou teológicos”;
• liberdade de publicar essas opiniões;
• liberdade de gostos e ocupações, ou de “elaboração do plano de nossa
vida para se adequar ao nosso caráter”, mesmo que outros pensem que
nossa conduta é “insensata, perversa ou errada”;
• liberdade de associação com quem quisermos e de união das pessoas por
trás de um propósito específico.
Mill observa que, mesmo na Inglaterra da década de 1850, as pessoas
estavam sendo enviadas para a prisão por não professar a fé em Deus, e, além
disso, essas mesmas pessoas não tinham o direito de recurso em relação a
crimes cometidos contra elas. Acreditar em algo diferente do que era
socialmente aceito tornava uma pessoa um fora da lei.
Mill diz que a estupidez de regulamentar pensamento e crença é
testemunhada na perseguição de Sócrates e Jesus, que agora são apresentados
como duas das maiores figuras da história. Se cada época enxerga que pessoas
que eram consideradas “más” agora são “boas”, deve perceber que a opinião
geralmente é falha. Sempre que na história houve uma sociedade ou nação que
manteve alguns princípios incontestáveis ou impediu a discussão de alguma
grande questão, Mill observa, “não podemos esperar encontrar uma atividade
mental de alta escala que em geral tornou alguns períodos da história tão
notáveis”. Uma nação torna-se grande não por uma mera imposição de ordem
e poder, mas por deixar as coisas correrem livres, sabendo que há muito a
ganhar com a discussão aberta. De fato, isso é o que liberta as melhores
mentes para criar os maiores avanços.
Nenhuma pessoa deve ser punida simplesmente por estar bêbada; mas
um soldado ou um policial em serviço deveria ser punido por estar
bêbado. Em suma, sempre que exista um dano definido ou um risco de
dano definido, seja a um indivíduo ou ao público, o caso está fora da
jurisdição da liberdade e entra naquela da moralidade ou do direito.
No entanto, tal dano precisa ser manifesto e claro. Se não for, deve-se
deixar que as pessoas sigam, sem impedimentos, suas crenças, seus projetos de
vida, suas causas e seus interesses.
Comentários finais
Mill observou a disposição humana natural (seja nos governantes ou nos
cidadãos) de querer impor nossa vontade aos outros. Isso resulta na tendência
de o poder governamental aumentar e as liberdades individuais serem
corroídas, a não ser que esse poder seja monitorado e mantido sob controle.
Ainda assim, esse fato, e o alerta da insídia do governo, não significa que os
governos não tinham legitimidade, como alguns libertários extremos de hoje
acreditam. O filósofo Robert Nozick, de Harvard, descreveu em seu clássico
Anarquia, Estado e utopia (1974) uma visão da função central do governo:
proteção da vida e da propriedade e a execução dos contratos. Qualquer coisa
além disso implicaria a diminuição dos direitos e das liberdades fundamentais.
Embora se possa pensar que os herdeiros de Mill são os libertários de hoje,
Mill nunca foi um extremista, e estava muito mais no molde do senso comum
de Adam Smith. Embora ambos advertissem contra a lentidão do governo em
todos os âmbitos da sociedade e da economia, nenhum deles negou ou
questionou que o governo desempenhava um papel importante. A maneira
precisa de ver Mill é como um grande farol de política progressiva. Ele escreve
que o princípio progressista, “seja como amor à liberdade ou à melhoria, é
antagônico ao domínio do Costume, envolvendo, pelo menos, a emancipação
desse jugo; e a disputa entre os dois constitui o principal interesse da história
da humanidade”.
Mesmo que a esquerda e a direita tenham reivindicado Mill como estando
do seu lado, sua expressão do que significa liberdade está para além dos
diversos tons da política. Sobre a liberdade é mais bem-visto como um manifesto
para uma sociedade aberta.
Os ensaios
Na mesma linha
René Descartes, Meditações sobre filosofia primeira (p. 116)
Blaise Pascal, Pensamentos (p. 300)
Nassim Nicolas Taleb, A lógica do cisne negro (p. 390)
Michel de Montaigne
Quando Michel de Montaigne estava com 42 anos, que ele considerava ser o
início da velhice, mandou fazer um medalhão com os dizeres Que sais-je? (O
que eu sei?) em um dos lados.
Embora vivesse em uma época de ciência emergente, não era cientista, mas
um homem das letras e um cavalheiro do interior, e se voltou a si mesmo em
sua busca por conhecimento. Se tenho qualquer conhecimento ou opinião, ele
se perguntava, em que se baseiam? O que é essa coisa que chamo de meu
“eu”? Sou apenas um turbilhão de emoções e pensamentos passageiros ou
algo mais substancial?
Montaigne utilizou a palavra essai no sentido de “tentativa” para testar o que
parecia ser verdadeiro, tanto sobre o mundo como sobre si mesmo. Sua
coleção de ensaios é uma espécie de autobiografia, mas para ele é muito difícil
que não seja uma autoglorificação; o tom dos Ensaios é mais de curiosidade do
que de qualquer outra coisa. Em uma carta prefacial, ele observa:
É minha opinião que a ama e a mãe das opiniões mais falsas, tanto
públicas quanto privadas, são o excesso de opinião que o homem tem
sobre si mesmo.
Acho que seria difícil para qualquer homem ter uma opinião pior de si
mesmo, ou mesmo ter uma opinião pior de mim do que eu mesmo
tenho […] Confesso a culpa dos mais maléficos e mais ordinários
fracassos; nem os nego nem me eximo deles.
O mistério do eu
Montaigne diz que, no uso de nossas mentes, “geralmente temos mais
necessidade de chumbo que de asas”. Nosso estado normal é de constante
desejo e agitação, então precisamos nos prender à terra e ver o jeito que as
coisas realmente são. A meditação ou a contemplação talvez sejam melhores
nesse sentido, o que ele descreve como “um método rico e poderoso de estudo
para qualquer um que saiba como examinar sua mente e usá-la
vigorosamente”.
O “principal talento” dos humanos é a sua adaptabilidade e flexibilidade.
Como a própria vida é desigual e irregular, é loucura se ater a nossos hábitos
rígidos da mente, que nos levam a nos tornar escravos de nós mesmos. “As
melhores mentes”, diz Montaigne, “são aquelas que são as mais diversas e
flexíveis.”
Os ensaios continuamente evocam a natureza transitória e não confiável
desta coisa que chamamos de “eu”. Em “Sobre livros”, Montaigne descarta a
ideia de que uma pessoa cresce em conhecimento e sabedoria à medida que
envelhece e se torna “semelhante”:
Tudo o que pode fazer, comenta Montaigne, é dizer o que ele parece saber
em um determinado momento. De todo modo, ele não quer nem mesmo saber
tudo. É mais importante para ele viver agradavelmente e sem grande esforço.
Quando lê, é apenas para entretenimento; ou, se o tomo for mais sério, deve
lhe mostrar uma forma clara de autoconhecimento ou uma maneira para viver
e morrer bem.
Montaigne contradiz a si mesmo em várias passagens, porém não é
necessariamente um sinal de fraqueza. Como diria Walt Whitman alguns
séculos mais tarde: “Sou grande, contenho multidões”; e aqueles mesmos eus
verão as coisas de forma diferente em diferentes épocas.
Comentários finais
Na ausência de uma visão de mundo cuidadosamente elaborada, alguns
sugeriram que Montaigne não era um filósofo. No entanto, sua aversão a
grandes sistemas filosóficos ou teológicos realmente fez dele um filósofo de
um tipo muito moderno, questionando as certezas científicas e religiosas de
sua época. Sobre a questão do livre-arbítrio, por exemplo, ele põe de lado o
dogma da Igreja para tomar a posição dos estoicos de que somos parte de um
universo completo. Em seu ensaio “Sobre o arrependimento”, ele se pergunta
por que se arrepender de qualquer coisa faz sentido: “A sua mente não pode,
por desejo ou pensamento, alterar sequer a menor parte sem perturbar toda a
ordem das coisas, ou mesmo o passado e o futuro”.
Com essa perspectiva, fazia sentido que Montaigne não pudesse se levar
demasiado a sério, e, ao fazê-lo, evitou as mentiras que a maioria das pessoas
diz a si mesma. Ele contrapõe dois filósofos, Demócrito e Heráclito. O
primeiro era conhecido por sua visão zombeteira e amarga da vida humana,
enquanto o último ficou conhecido como o filósofo chorão, de tão profundas
que eram a sua piedade e a compaixão frente à condição humana. Montaigne
toma partido de Demócrito, porque o homem é tão digno de escárnio, como
um recipiente não de pecado ou tristeza, mas simplesmente de loucura. “Não
somos tão cheios de maldade”, observa ele, “quanto somos de estupidez.”
Mas o ceticismo e o fatalismo não são desculpa para uma vida dissoluta, e,
evitando paixões e extremos (a palavra “contenção” estava escrita no outro
lado da medalha), Montaigne se libertou para a contemplação e a meditação,
práticas que ele sentia que lhe revelavam algo sobre si mesmo, os outros e o
mundo. Uma das muitas frases divertidas no livro é: “É bom ter nascido em
tempos muito depravados; pois, em comparação com os outros, tu ganhas uma
reputação de virtude a um custo pequeno”.
Embora Montaigne tenha comentado a observação do satirista romano
Pérsio, “nenhum homem tenta descer para dentro de si mesmo”, ao fazer
exatamente isso ele criou um modelo para um tipo mais pessoal de filosofia.
Qualquer pessoa que vá escrever uma autobiografia faria bem em lê-lo; a
pessoa vai aprender que é menos interessante registrar “Como eu fiz isso” do
que “Como seria ter sido eu” – isto é, uma pessoa que vive neste período e
neste lugar com estas limitações e este potencial.
Montaigne
Michel de Montaigne nasceu em 1533, filho de um latifundiário de Dordogne e
de sua esposa, ambos judeus sefarditas. Recebeu uma excelente educação,
conhecendo o latim aos 7 anos de idade, e, na adolescência, estudou na
Universidade de Bordeaux e na de Toulouse. Exerceu a advocacia e foi
conselheiro no Parlamento de Bordeaux, onde conheceu seu mentor, Etienne
de la Boétie, e trabalhou por um tempo na corte de Carlos IX.
Em 1570, Montaigne voltou às propriedades da família em Perigord, que
ele tinha herdado, e minimizou suas obrigações para que pudesse se concentrar
nos estudos; passou os nove anos seguintes lendo, escrevendo e pensando. Sua
biblioteca ficava em uma torre circular acima dos prédios da propriedade, para
que ele pudesse ver o que estava acontecendo sem se envolver demais. Ele
escreveu: “Miserável, na minha opinião, é o homem que não tem lugar em sua
casa onde possa estar sozinho, onde possa atender às suas necessidades em
particular, onde possa se esconder!”.
Depois de viajar de um balneário a outro da Europa em busca de cura para
seus cálculos biliares muitas vezes doloridos, Montaigne foi chamado de volta
para casa quando eleito (contra sua vontade) prefeito de Bordeaux, uma
posição antes ocupada por seu pai. Ele cumpriu dois mandatos.
Seu casamento foi arranjado, e sua esposa quase não é mencionada n’Os
ensaios. Mais tarde, ele adotou como filha Marie de Gournay, uma jovem que
veio conhecê-lo por meio de seus escritos. Ele morreu de um abscesso
amigdaliano em 1592.
1970
A soberania do bem
Em resumo
Os esforços que fazemos para melhorar moralmente a nós mesmos são
concretos. Tentar criar alguma medida empírica disso seria ridículo e não
poderia diminuir ou questionar sua realidade.
Na mesma linha
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
Platão, A República (p. 308)
Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas (p. 398)
Iris Murdoch
Mais conhecida como romancista (a revista Time incluiu Under the Net [Sob a
rede] na lista dos 100 principais livros do século XX), Iris Murdoch também
escreveu duas importantes obras de filosofia: Metaphysics as Morals [Metafísica
como moral] e A soberania do bem. O último foi escrito quando o
existencialismo estava muito em voga e parecia ser o herdeiro intelectual da
filosofia ocidental.
Mas Murdoch descreve o existencialismo como “uma doutrina irrealista e
superotimista e fornecedora de certos valores falsos”. Também rejeita o
utilitarismo e o behaviorismo que estavam na moda devido a seu foco em
resultados externos em vez da sugestão de que o desenvolvimento de
qualidades interiores, ainda que um projeto menos óbvio, é tão valioso quanto
esses resultados.
O título do livro refere-se à noção de Bem em Platão, uma realidade sem
forma ou ordem que sustenta o universo e da qual os seres humanos só
podem ter vislumbres e, no entanto, passam a vida perseguindo, em geral, de
forma inconsciente. Embora os filósofos modernos menosprezem essa ideia
com prazer, Murdoch acreditava que o Bem era o conceito central da filosofia
moral (e, aliás, da própria vida, mesmo em um universo que não parece ter
qualquer significado).
Os tópicos abaixo seguem mais ou menos a organização de A soberania do
bem, que consiste em três capítulos originalmente compostos como artigos ou
palestras.
A ideia da perfeição
Com toda a nossa fragilidade, o mandamento “seja perfeito” faz
sentido para nós. O conceito de Bem resiste à queda na consciência
empírica egoísta.
Ela alega que os termos morais podem ser tratados como concretos e
universais, enquanto a linguagem moral envolve uma realidade que é
“infinitamente mais complexa e diferente do que a da ciência”. Embora a
linguagem usada para descrever a realidade moral seja “em geral idiossincrática
e muitas vezes inevitavelmente inacessível”, é “infinitamente mais complexa e
variada que a da ciência”, e ainda pode ser tratada como concreta e universal.
Além disso, é um erro colocar a “ciência” em um cesto e a “cultura” em
outro, pois a ciência é parte de nossa cultura. “Somos homens e somos agentes
morais antes de sermos cientistas”, comenta Murdoch, “e o lugar da ciência na
vida humana deve ser discutido em palavras.” É por isso que será sempre mais
importante conhecer Shakespeare antes de conhecer um determinado cientista.
A literatura é a lente por meio da qual podemos ver e entender todos os
esforços humanos, morais ou científicos.
A opinião contrária a essa é nos vermos como seres presenteados com uma
infinidade de opções, desejando um curso de vida para o ser. Murdoch
claramente vê isso como um modo inferior de vida. Sua alternativa é uma
espécie de “necessidade” que os santos e os artistas conhecem bem, ou seja,
“uma consideração paciente, amorosa, dirigida a uma pessoa, uma coisa, uma
situação”, o que não é bem um caso de vontade consciente, mas de obediência.
Essa atenção instala-se por muitos anos, na verdade é vitalícia, e diminui a
importância de atos isolados de decisão. Se nossa atenção está em uma pessoa,
por exemplo, durante um longo período, “em momentos cruciais de escolha, a
maior parte do ato de escolher já terminou”. Querer não é resolver de forma
consciente, mas ser fiel ao que se ama ou vê.
Essa visão permite a grandeza da arte, que o modelo existencialista-
behaviorista enxerga como um mero subproduto indulgente da irracionalidade
humana. Na opinião de Platão, a beleza e a arte são parte da mesma coisa; o
ato de estar aberto para ver a beleza é desinteressado e assim é, em si, moral.
Para Murdoch, o que é Bom, o que é Real e o Amor estão intimamente
ligados. Onde está a atenção de uma pessoa se encontra a moral. Ao olharmos
com amor, encontramos o que é real, verdadeiro ou bom.
Murdoch supõe abertamente que os seres humanos são egoístas e que não
há nenhum ponto ou fim externo em qualquer sentido divino de nossa
existência. Em vez disso, somos “criaturas mortais transitórias sujeitas à
necessidade e ao acaso”. Ela não acredita em um Deus, mas também não
diviniza a razão, a ciência ou a história. Na era pós-kantiana, a liberdade, a
vontade e o poder do indivíduo são tudo, uma posição levada ao seu extremo
na filosofia moral de Nietzsche. Mas o que fazemos com essa
responsabilidade?
A resposta de Murdoch é que o significado da vida deve ser sobre como
podemos nos tornar melhores, e parte desse projeto é reduzir o tamanho de
nosso ego para que possamos ver os outros e o mundo claramente. A forma
mais óbvia de “abnegação” é a apreciação da beleza e da verdade: na natureza,
na arte e na literatura. Podemos estar remoendo alguma afronta, olhando
distraidamente pela janela, quando vemos um gavião voando e, de repente, nos
esquecemos de nós mesmos. A boa arte, não do tipo que visa simplesmente
consolar ao fornecer a fantasia, “oferece-nos um puro deleite na existência
independente do que é excelente”. Em um mundo que parece “incerto e
incompleto”, a beleza, a bondade e o amor são as únicas coisas que têm
significado. Além disso, ao contrário da crença comum, a arte e a literatura não
dizem respeito ao artista ou ao escritor; em vez disso, para serem boas, o eu do
criador deve ser retirado da equação.
Comentários finais
“Liberdade”, escreve Murdoch, “não é retirar de forma inconsequente o peso
de uma pessoa, é a superação disciplinada de si mesmo. A humildade não é um
hábito peculiar de autoanulação […] é o respeito altruísta pela realidade”. Sua
receita é retirar a atenção do eu e voltá-la em direção ao Bem, como o homem
de Platão na alegoria da caverna olhou para o Sol. Esse movimento distancia-
se também da particularidade, da variedade e da aleatoriedade do mundo.
Uma das implicações é que a busca de autoconhecimento é um tanto
ilusória. Mesmo se precisarmos encontrar esse eu ilusório e enxergá-lo
corretamente, talvez o vejamos como um “objeto menor e menos
interessante” do que tínhamos imaginado. É muito mais valioso ir além do
pessoal, usando nossa atenção e amor para tentar ver o mundo e as pessoas em
sua verdadeira luz.
A elevação da vontade ou o poder de decisão pela escola behaviorista-
existencialista é um erro, porque só o “Bem, não a vontade, é transcendente”,
comenta Murdoch. Embora a vontade seja a “energia natural da psique” que
pode ser aplicada para bons fins, o Bem revela as coisas como elas realmente
são. Não há comparação em termos de poder: a vontade é parte da pessoa, o
Bem é universal. Por isso, ela diz, “é a bondade que deveria ser almejada, e não
a liberdade ou a ação correta”. Dito isto, “a ação correta e a liberdade no
sentido de humildade são os produtos naturais de atenção para o Bem”. Em
outras palavras, busque o bem em primeiro lugar, e tudo o mais que vale a
pena virá naturalmente. Busque apenas ter vontade muscular, e isso é tudo que
você terá.
Iris Murdoch
Murdoch nasceu em 1919 e, quando criança, era apaixonada por animais, por
cantar e ler. Destacou-se na Froebel Demonstration School, em Londres, e na
Bristol’s Badminton Girls’ School. Leu Platão e Sófocles para se preparar para
a Universidade de Oxford e foi aceita no Somerville College, onde fez amizade
com Mary Midgley, que mais tarde se tornaria uma filósofa ilustre. Em Oxford,
foi influenciada pelo marxismo e, posteriormente, ingressou no Partido
Comunista.
Murdoch teve vários relacionamentos e amantes, incluindo o poeta Frank
Thompson, o historiador militar e soldado Michael Foot e o ganhador do
Prêmio Nobel Elias Canetti. Casou-se com John Bayley, estudioso da língua
inglesa de Oxford, em 1956. O casal viveu em Londres e Oxford e
permaneceu sem filhos para que Iris pudesse se concentrar em sua escrita.
Outros trabalhos incluem A cabeça decepada (1961), O unicórnio (1963) e O mar, o
mar (1978), que lhe garantiu o Booker Prize. Suas obras filosóficas incluem:
Sartre: Romantic Racionalist [Sartre: racionalista romântico] (1953), The Fire and
the Sun [O fogo e o Sol] (1977) e Metaphysics as a Guide to Morals [Metafísica
como guia da moral] (1992).
Murdoch foi diagnosticada com o mal de Alzheimer em 1996 e faleceu em
Oxford, aos 79 anos. Uma biografia, Iris Murdoch: A Life [Iris Murdoch: uma
vida], de Peter Conradi, inspirou o filme Iris, de 2001, com Judi Dench no
papel de Murdoch.
1886
Em resumo
Os seres humanos têm um impulso natural e saudável de serem criativos e
poderosos, e a moralidade apenas suprime e distorce esse impulso.
Na mesma linha
Martin Heidegger, Ser e tempo (p 168)
Nicolau Maquiavel, O príncipe (p. 252)
Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação (p. 364)
Slavoj Žižek, Vivendo no fim dos tempos (p. 406)
Friedrich Nietzsche
Comentários finais
A desaprovação de Nietzsche do tradicional projeto filosófico – a busca de
verdades fundamentais – teve grande influência sobre as filosofias
existencialista e desconstrutivista. Infelizmente, sua aversão à “mistura de
raças”, bem como sua desaprovação da moral tradicional e dos ideais
democráticos, tornavam-no um elemento pronto para ser assumido pela
ideologia nazista (embora ele não fosse antissemita). Considerando tantos
acontecimentos horríveis do século XX, a postura de Nietzsche sobre muitos
assuntos agora parece ingênua, mas, talvez por ter sido tão pouco lido
enquanto estava vivo, ele claramente sentiu que não tinha nada a perder ao
colocar seus explosivos filosóficos debaixo da cama da Europa.
O livro tem duas seções de aforismos, nas quais é possível encontrar
pérolas como “A loucura é algo raro em indivíduos, mas em grupos, partidos,
nações e épocas é a regra” e “A ideia de suicídio é um meio de conforto
potente: com ela, muitos atravessam uma noite ruim”. Nietzsche teve pouca
sorte com as mulheres e, por conseguinte, as desprezava, mas seus aforismos
continham algumas observações interessantes sobre relacionamentos,
inclusive: “Na vingança e no amor, a mulher é mais brutal que o homem”. Mas
somente quando se chega à conclusão de que ele é demasiado tacanho ou até
mesmo desagradável, vem este: “Aquilo que se faz por amor se faz além dos
limites do bem e do mal”. O amor transcende qualquer classificação de
moralidade. Não é nem bom nem mau, mas apenas é – esse é seu poder. O
desejo de Nietzsche de ir além dos opostos é um pouco diferente do conceito
de “dualidade” em religiões orientais, nas quais a luz e as trevas, o bem e o mal
são construções mentais. Em última análise, tudo simplesmente “é” e não
necessita de rótulos.
Friedrich Nietzsche
Nietzsche nasceu em Röcken, na Prússia, em 1844. Seu pai (que morreu
quando Nietzsche tinha 5 anos) e seu avô tinham sido ministros luteranos. Ele
frequentou um internato em Pforta, depois estudou filologia clássica na
Universidade de Bonn. O jovem Nietzsche era considerado tão brilhante que
com apenas 24 anos foi nomeado professor na Universidade da Basileia.
Depois de um período em uma ordem hospitalar na Guerra Franco-Prussiana,
escreveu O nascimento da tragédia.
Marcado por uma saúde debilitada, teve de renunciar ao cargo de professor
e, a partir daí, viveu de uma modesta pensão em uma série de quartos alugados
pela Europa. Em 1889, sofreu um colapso mental (talvez causado por sífilis ou
depressão) e, posteriormente, recebeu os cuidados de sua mãe, em seguida de
sua irmã, até sua morte, em 1900.
Principais obras: Humano, demasiado humano (1878), A gaia ciência (1882),
Assim falou Zaratustra (1883-85), Sobre a genealogia da moral (1887), Crepúsculo dos
ídolos (1888), O anticristo (1888) e o autobiográfico Ecce Homo (1888).
1660
Pensamentos
Em resumo
Como temos pouco a perder com uma crença em um poder superior e
muito a ganhar se ele for verdadeiro, é racional que acreditemos nele.
Na mesma linha
René Descartes, Meditações sobre filosofia primeira (p. 116)
Søren Kierkegaard, Temor e tremor (p. 216)
Gottfried Leibniz, Ensaios de Teodiceia (p. 236)
Michel de Montaigne, Os ensaios (p. 276)
Blaise Pascal
A aposta de Pascal
Se você ganhar, você ganha tudo; se perder, perde nada. Aposte, então,
sem hesitação que Ele existe.
Agora, que mal lhe acometerá ao assumir este lado? Será fiel, honesto,
humilde, grato, generoso, um amigo sincero, verdadeiro. Certamente
não terá os prazeres venenosos, glória e luxúria; mas não terá outros?
Vou lhe dizer que assim ganhará nesta vida e que, a cada passo que der
sobre esta estrada, verá tamanha certeza de ganho, com nada a arriscar,
que finalmente reconhecerá que apostou em algo certo e infinito pelo
qual não dera nada.
Aquele que não crê pode dizer que isso pode soar atraente, mas ainda não
há nada certo aí. Muito bem, diz Pascal, não podemos ter absoluta certeza, por
outro lado, os resultados de batalhas e viagens marítimas tampouco são certos,
e não é possível saber se ainda estaremos vivos amanhã. No entanto, não é
sábio fazer uma pequena aposta em algo com pouca possibilidade de perda se
é certo que proporcionará enormes benefícios? Para si mesmo, ele diz:
Podemos aplicar a aposta de Pascal sem acreditar que Deus existe dessa
forma. Em vez disso, podemos apostar que existe algum tipo de verdade
absoluta ou universal, e que essa verdade é favorável. Se virmos seus efeitos
em nossa vida e comunidade, é bastante racional torná-la o centro de nossa
existência.
Para Pascal, a falta de fé era uma espécie de preguiça, uma visão resumida
por T. S. Eliot em sua introdução aos Pensamentos:
O homem não deve pensar que está no mesmo nível dos animais ou
dos anjos e não deve ignorar esses níveis, mas conhecer os dois.
Acreditar que somos apenas animais inteligentes nos deprecia, mas também
não podemos dizer que somos seres puramente espirituais. O objetivo da vida
é aceitar o fato do corpo e de nossas inclinações naturais e, ainda assim,
reconhecer nossa origem divina.
Comentários finais
Pensamentos inclui a conhecida distinção de Pascal entre a matemática e a mente
intuitiva, o esprit de géométrie e o esprit de finesse. O problema com alguém de
mente matemática é que, como está acostumado a conhecer princípios claros e
incontestes, não confia no conhecimento intuitivo. Só consegue falar em
termos de definições e axiomas, mas, como resultado dessa mentalidade
estreita e exageradamente exigente, desconhece outros tipos de saber. (Para
Pascal, Descartes foi um bom exemplo de uma mente assim.) Os princípios
intuitivos – as leis da vida, se preferir – são “sentidos em vez de vistos” e
“existe a maior das dificuldades em se fazerem sentir por aqueles que não os
percebem eles mesmos”. No entanto, eles são reais.
Então, é assim que Pascal une as visões de mundo científica e espiritual no
nível da pessoa: devemos alimentar nossa intuição ou sentido metafísico, o que
economiza muito tempo ao trilharmos nosso caminho no mundo, levando-nos
ao cerne das coisas, mas também devemos ser abertos para aceitar princípios
abstratos apreciados por meio da razão.
Talvez a frase mais famosa de Pensamentos é “Le coeur a ses raisons que la raison
ne connait point”, geralmente traduzida como “O coração tem razões que a
própria razão desconhece”. Embora a frase muitas vezes seja adequada para
explicar as ações daqueles que estão enamorados, o significado para Pascal era
mais geral. Não devemos duvidar quando podemos usar nosso poder de
raciocínio e, quando conseguimos usar o julgamento humano racional,
devemos fazê-lo. No entanto, a espécie mais elevada de raciocínio admite que
há questões em que a razão para, submetendo-se a uma ordem diferente da
realidade.
Pascal, matemático e cientista, queria apaixonadamente saber tudo que
havia para saber do mundo, mas era sábio o suficiente para admitir que nem
tudo podia ser conhecido. Deus parece querer estas duas coisas de nós: o uso
máximo de nossa razão para agir e criar no mundo e a aceitação de que somos
“seres espirituais que têm uma experiência humana”. Sobre as maiores
questões, precisamos, em última análise, nos submeter a uma inteligência maior
para que o nosso “coração” forneça uma ligação.
Blaise Pascal
Pascal nasceu em 1623, em Clermont, França. Sua mãe morreu quando ele
tinha 3 anos, e seu pai, Etienne, mudou-se com a família, incluindo as duas
irmãs, para Paris. Pascal era precocemente brilhante e participava de encontros
sobre matemática e questões filosóficas com o pai. Quando tinha 17 anos, sua
família se mudou para Rouen, onde Etienne foi nomeado comissário de
impostos. Para auxiliá-lo nos cálculos de impostos, Pascal inventou sua
calculadora mecânica.
Aos 20 e poucos anos, Pascal e sua piedosa irmã Jacqueline se converteram
ao jansenismo, uma forma de cristianismo, e se afiliaram ao mosteiro de Port-
Royal. Dois anos depois de sua experiência mística, ele publicou suas
polêmicas políticas e religiosas, “As provinciais”, para defender o jansenismo
contra o ataque dos jesuítas. No mesmo ano, ele viu sua sobrinha Margarida
ser milagrosamente curada de uma fístula lacrimal em Port-Royal.
Pascal morreu em 1662, com apenas 39 anos. A causa de sua morte é
incerta, mas provavelmente foi uma tuberculose ou um câncer de estômago.
Século IV a.C.
A República
Em resumo
O que você acredita ser verdadeiro pode ser apenas um reflexo ruim e
distorcido da realidade. A filosofia abre a porta para um maior
conhecimento, que pode ser usado para servir seu Estado e comunidade.
Na mesma linha
Noam Chomsky, Para entender o poder (p. 92)
Cícero, Dos deveres (p. 100)
Nicolau Maquiavel, O príncipe (p. 252)
Iris Murdoch, A soberania do bem (p. 284)
Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social (p. 330)
Platão
Alegoria da caverna
Enquanto a maior parte de A República é uma expressão do que Platão tinha
aprendido com Sócrates, a teoria das formas, ou ideias essenciais, é
propriamente sua. E a melhor expressão dela é a alegoria da caverna. Embora
aparentemente não esteja relacionada à teoria de justiça e governo de Platão, a
alegoria oferece seu cerne metafísico e carrega uma mensagem atemporal.
Sócrates fez seus amigos imaginarem um grupo de pessoas vivendo em
uma caverna que tem apenas uma pequena abertura para a luz do mundo
exterior. O grupo passou a vida toda na caverna, acorrentado de tal forma que
só conseguia ver as paredes e não podia se virar para ver a luz. Atrás das
pessoas há um fogo perpétuo, e entre o fogo e as paredes caminha um desfile
de pessoas carregando várias coisas, inclusive modelos de animais, cuja sombra
é projetada na parede diante dos prisioneiros. As pessoas acorrentadas só
conseguem ver as sombras dessa procissão e as suas próprias, fazendo com
que a “realidade” para elas seja um filme bidimensional de sombras, nunca as
formas originais que as lançam.
Então, chega alguém para libertar um dos prisioneiros de sua escravidão.
Em vez de o prisioneiro ficar satisfeito ao ver que o que percebiam era apenas
uma projeção, a súbita percepção deslocada é demasiada. O prisioneiro fica
ofuscado pela luz do fogo antes de ser levado para fora da caverna e ver o Sol,
que parece horrivelmente brilhante e fere seus olhos. Nesse momento o
prisioneiro começa a entender que o Sol é a verdadeira luz do mundo e a fonte
de toda a percepção. Ele se compadece de seus companheiros prisioneiros na
caverna, que ainda acreditam que o que veem vagamente é a “realidade”.
Quando o prisioneiro retorna à caverna e não consegue ver muito bem no
escuro, seus companheiros cativos alegam que sua jornada à luz foi um
desperdício de tempo que apenas danificara seus olhos. Eles não conseguem
compreender que seu mundo havia mudado para sempre, e ele próprio não
consegue se imaginar voltando à vida anterior, em que as meras aparências
valiam como verdade.
Aqui Platão está usando o Sol como metáfora para a Forma do Bem e
salientando o fato de que o reconhecimento do Bem não é fácil. Em outros
pontos, ele descreve a jornada para fora da caverna como um movimento do
“tornar-se” para o “ser”, da realidade condicional à absoluta – da experiência
mundana do ser humano à pura luz da realidade.
O estado ideal
Platão percorre as falhas dos tipos de governo de seu tempo – timocracia,
oligarquia e tirania –, mas seu foco real é a democracia ateniense. Era uma
assembleia popular de homens cidadãos livres que se reunia regularmente para
votar questões específicas e que delegava a administração a um Conselho dos
Quinhentos. O problema de Platão com esse tipo de democracia direta é que
questões complexas relativas à política externa ou à economia, por exemplo,
estavam sujeitas ao capricho irracional do bloco de votação de um
determinado dia. Além disso, uma vez que a composição do conselho era
limitada a um ano e nenhum cidadão poderia ser membro mais de duas vezes,
havia pouco pensamento estratégico ou de longo prazo. Líderes atenienses
ganhavam poder dizendo aos eleitores o que eles queriam ouvir, quando
deveriam estar traçando um plano para a saúde do Estado. O resultado era
“uma espécie de governo agradável e desenfreado, que distribuía a igualdade
da mesma forma ao que era igual e ao que era desigual”.
A alternativa de Platão é um corpo de elite de filósofos cuja única finalidade
seria trabalhar para o bem do Estado. Brilhantes, altamente educados,
espiritualmente avançados e incorruptíveis, esses indivíduos provavelmente
prefeririam passar seu tempo em contemplação, considerando as formas
eternas (do Bem, da Beleza, ou da Verdade) que fundamentam o mundo das
aparências. Em vez disso, seriam convidados a abandonar seu estado
onisciente de felicidade e escolheriam voltar ao mundo prosaico para governar
em benefício de todos.
Platão sugere que não deveríamos esperar que uma nação ou um Estado
fosse governado corretamente por mercadores, comerciante ou soldados, mas
apenas por aqueles que têm a melhor visão geral do que constitui o bem da
sociedade. Uma sociedade liderada por soldados estaria sempre em guerra e
limitaria a liberdade de seus cidadãos; um Estado gerido por negociantes
avançaria com inveja e materialismo; e a um Estado gerido por trabalhadores
faltariam a amplitude e a profundidade intelectual de saber o que é a boa
governança ou o que é a administração adequada das relações com outros
Estados. Somente um generalista altamente educado, treinado ao longo de
muitos anos em temas abstratos (Sócrates sugere dez anos de estudo da
matemática antes de avançar para a filosofia), pode governar bem. O
conhecimento prático da administração é o mínimo de suas necessidades,
sendo a condição básica de superioridade e aptidão para reger o conhecimento
das formas espirituais essenciais de Justiça, Bem, Beleza e Temperança que se
manifestam em circunstâncias reais.
A relação que Platão cria entre a qualidade do Estado e a qualidade do
indivíduo, também conhecida como sua analogia entre a cidade e a alma, pode
parecer um pouco estranha para o leitor moderno. Hoje é provavelmente mais
comum pensar que a natureza ou a qualidade de uma nação advém da
combinação de atributos de seus cidadãos, mas Platão era da opinião contrária.
Via a ética do Estado como o impulsionador e o modelador da ação individual.
Engenharia social
Uma parte controversa de A República de Platão é a discussão do controle da
cultura. Ele acreditava que os grandes poetas e as histórias de seu tempo não
inculcavam valores morais corretos. Sim, a educação precisa concentrar-se em
instilar a ideia do Bem. Histórias contadas para crianças deveriam ser
censuradas para que seus cérebros não fossem preenchidos com imagens
negativas. Os cidadãos deveriam ser expostos à literatura que não glorificasse a
mentira, a falta de autocontrole ou a violência, pois naturalmente enfraqueciam
e corrompiam as mentes, levando ao naufrágio do navio do Estado. Pior ainda
são histórias em que personagens injustas dizem ser felizes ou vencem à custa
dos justos, ou aquelas que sugerem que ser bom é uma desvantagem.
Embora possa parecer arrogante no front cultural, Platão foi notavelmente
visionário quando o assunto era igualdade de gênero. Ele demonstra que
considerar as mulheres como fracas é, em geral, errado e defende que
mulheres que parecem ser talhadas para governar deveriam receber a mesma
educação e ter oportunidades semelhantes às dos homens. Mas era cruel
quando o assunto era vida familiar, que não via como um domínio privado,
mas sim que existia para o benefício do Estado. Ele fez Sócrates expressar uma
proposta de regulamentação do casamento e do sexo para que as pessoas
“corretas” fossem reunidas. Os filhos dessa elite seriam cuidados em berçários
do Estado, deixando os pais livres para se dedicarem ao governo. O próprio
Platão nunca se casou, o que talvez revele algo sobre seu ponto de vista nessa
área.
Comentários finais
O modelo de Platão para o indivíduo justo e equilibrado ainda funciona para
nós? Em uma cultura que parece oferecer rotas fáceis para todo tipo de prazer
e nos encoraja a expressar emoções com desinibição, sua ênfase em permitir
que a razão seja nossa governante pode parecer austera. Mas os frutos da
autodisciplina e da razão são os mesmos para uma pessoa hoje como eram
para o indivíduo da Grécia Antiga. O poder de A República não reside em
apresentar um modelo de governo (é improvável que vejamos Estados geridos
por “reis-filósofos”), mas em mostrar como as qualidades de sabedoria,
coragem, autodisciplina e justiça criam indivíduos bem equilibrados. Se as três
partes da alma estiverem em harmonia, isso é bom para nós, como pessoas,
para nossa comunidade e para o Estado a que pertencemos.
A alegoria da caverna de Platão é um precioso lembrete de que a maioria de
nós passa a vida perseguindo sombras e crendo em aparências, quando por trás
do mundo superficial dos sentidos uma esfera mais permanente da verdade
nos aguarda. Platão faz Sócrates defender que os filósofos sejam os únicos que
podem determinar essa verdade por meio de seu estudo das Formas, mas, na
realidade, cada pessoa pode ter uma noção do que é imutável e perfeito. Cada
um de nós vive em uma caverna de percepção negligente e de ilusão, que, se
nos esforçarmos, podemos abandonar.
1934
Em resumo
Avançamos na compreensão não ao provar teorias, mas ao tentar falsificá-
las.
Na mesma linha
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas (p. 228)
Nassim Nicholas Taleb, A lógica do cisne negro (p. 390)
Karl Popper
Uma teoria não é real se não houver nenhuma maneira de testá-la para ver
se é falsa. Além disso, por não acreditar na indução, Popper afirma que as
teorias nunca serão final e conclusivamente verificáveis, sendo apenas
conjecturas “provisórias” que podem demonstrar aparente comprovação.
Comentários finais
Mais adiante no livro, Popper compara o projeto científico a uma cidade sobre
a água:
Embora possa ser apenas uma estrutura “erigida sobre estacas”, e mesmo
que nunca nos dê a certeza que desejamos, a ciência ainda é valiosa. Veneza
não ser construída sobre um leito de rocha não diminui o fato de que é um
lugar onde vale a pena estar. Isso também vale para a filosofia.
Karl Popper
Popper nasceu em Viena, em 1902. Seu pai era advogado, mas também teve
grande interesse nos clássicos, na filosofia e em questões sociais e políticas. De
sua mãe veio a paixão pela música, e ele quase seguiu a música como carreira.
Na Universidade de Viena, envolveu-se intensamente na política de
esquerda e com o marxismo, mas, após uma revolta de estudantes, abandonou-
os por completo. Conseguiu um diploma de docente primário em 1925, obteve
o título de doutor em filosofia em 1928 e se qualificou para ensinar matemática
e física no ensino médio no ano seguinte.
O avanço do nazismo obrigou-o a deixar a Áustria e, em 1937, assumiu um
cargo na Universidade de Canterbury, na Nova Zelândia, onde permaneceu
durante o período da Segunda Guerra Mundial. Em 1946, se mudou para a
Inglaterra, onde se tornou professor de lógica e de método científico na
London School of Economics. Foi nomeado cavaleiro da rainha em 1965 e se
aposentou em 1969, mas permaneceu ativo como escritor, radialista e
palestrante até sua morte, em 1994.
1971
Em resumo
As melhores sociedades são aquelas que não oferecem simplesmente
liberdade pessoal, mas diminuem a loteria da vida ao dar chances justas para
todos.
Na mesma linha
Jeremy Bentham, Princípios da moral e da legislação (p. 70)
John Locke, Ensaio sobre o entendimento humano (p. 244)
John Stuart Mill, Sobre a liberdade (p. 268)
Platão, A República (p. 308)
Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social (p. 330)
Peter Singer, Quanto custa salvar uma vida? (p. 372)
John Rawls
John Rawls é visto como o mais importante filósofo político do século XX, e
Uma teoria da justiça é um texto-chave em filosofia moral e política por causa de
seu brilhante tratamento sobre a questão da “justiça”.
No entanto, por causa de sua insistência básica na liberdade pessoal nos
moldes de John Stuart Mill, o livro de Rawls não defende uma redistribuição
de riqueza e poder de qualquer maneira socialista. Em vez disso, seu foco recai
na igualdade de oportunidades em primeiro lugar. A famosa questão do livro é:
o que aconteceria se roubassem temporariamente dos cidadãos a consciência
de seu lugar na sociedade (de sua riqueza, status etc.) e dissessem para eles
organizarem as coisas da forma mais justa possível? Como essa sociedade seria
diferente daquela que existe agora?
Esse cenário engenhoso é o cerne de Uma teoria da justiça. Porém, vamos
começar olhando o conceito básico de Rawls de uma sociedade justa por meio
de seus dois princípios orientadores de liberdade e igualdade.
Comentários finais
O ato de equilíbrio que Rawls tenta atingir com seus dois princípios é o de
preservar liberdades enquanto reforça a oportunidade. Onde existe
desigualdade, ela seria organizada para oferecer o maior benefício possível para
os que estivessem em situação pior na sociedade. No entanto, como muitos
enfatizaram, uma sociedade organizada para reduzir a desigualdade significa,
inevitavelmente, uma mão forte do governo e, por conseguinte, liberda-des
reduzidas.
Anarquia, Estado e utopia (1974), o manifesto libertário de Robert Nozick,
chamou a atenção para o paradoxo inerente nos princípios de Rawls. Nozick
escreveu:
O espaço que resta é apenas para um Estado mínimo que protege contra a
violência, o roubo e a fraude e garante o cumprimento de contratos. Nada
mais forçará as pessoas a fazerem coisas por algum bem maior com o qual
podem não concordar. Embora a visão de Rawls possa colocar uma ênfase
nobre na liberdade, os críticos dizem que, na realidade, ela fornece a
justificativa para um grande Estado de bem-estar que leva a igualdade de
oportunidades aos extremos. Por outro lado, a filosofia de Rawls fornece uma
perfeita oposição aos ideais políticos individualistas no estilo Ayn Rand, que
muitos comentaristas pensam ter corrompido a sociedade e o cidadão.
Qualquer que seja seu ponto de vista, devemos admitir as boas intenções e
a humanidade de Uma teoria da justiça. Seu âmbito de aplicação e a imaginação
tornam esta obra um correspondente moderno do livro A República, de Platão:
os dois trazem uma visão de sociedade justa, uma baseada na justiça para
todos, e a outra no conhecimento superior de uma classe de elites. Apesar das
diferenças de conteúdo, o “véu da ignorância” de Rawls está em pé de
igualdade com a alegoria da caverna de Platão como uma das grandes imagens
em filosofia.
John Rawls
Rawls nasceu em 1921. Sua educação confortável em Baltimore (seu pai foi um
proeminente advogado) foi marcada pela doença e pela morte de seus dois
irmãos.
Ele frequentou a Kent School, uma escola particular em Connecticut, antes
de ir para a Universidade de Princeton. Era um estudante de primeira e
considerava entrar em um seminário episcopal. Depois de se formar com
honras em 1943, juntou-se ao exército e foi lotado no Pacífico. No Japão,
testemunhou o rescaldo dos bombardeios de Hiroshima.
Após obter seu título de doutor em filosofia moral em Princeton, Rawls foi
professor lá por vários anos, antes de receber uma Fulbright Scholarship, uma
bolsa de estudos, para Oxford, onde foi influenciado pelo ensaísta e filósofo
Isaiah Berlin. Depois de ensinar economia na Universidade Cornell e no
Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), assumiu uma cátedra em
Harvard, onde permaneceu por toda a sua carreira, influenciando muitos
filósofos emergentes, inclusive Martha Nussbaum e Thomas Nagel.
Outras importantes obras são O liberalismo político (1993), O direito dos povos
(1999), em que aplicava seus conceitos de justiça para assuntos internacionais,
e Justiça como equidade: uma reformulação (2001), além de muitos artigos.
Em 1999, Bill Clinton laureou Rawls com a Medalha Nacional de
Humanidades, observando que suas ideias tinham “ajudado toda uma geração
de norte-americanos instruídos a reavivar sua fé na democracia”. No mesmo
ano, Rawls ganhou o Prêmio Schock de Lógica e Filosofia.
Ele morreu em 2002. Um asteroide, o “16561 Rawls”, foi batizado em sua
homenagem.
1762
Do contrato social
Em resumo
Uma sociedade livre eleva e enobrece seus cidadãos, mas também implica
abrir mão de um tanto de nossa liberdade pessoal para as necessidades do
todo.
Na mesma linha
Noam Chomsky, Para entender o poder (p. 92)
Nicolau Maquiavel, O príncipe (p. 252)
John Stuart Mill, Sobre a liberdade (p. 268)
Platão, A República (p. 308)
John Rawls, Uma teoria da justiça (p. 322)
Jean-Jacques Rousseau
É fácil ver por que ele acabou sendo expulso da França e da Suíça por tais
observações. Não poderiam ter sido uma afronta maior ao ancien régime da
Europa, que se valia dos pressupostos medievais de que todos na sociedade
tinham um lugar.
O pensamento de Rousseau teve grande influência sobre a Revolução
Francesa (depois que ele morreu, recebeu a maior honraria da França e foi
sepultado no Pantheon), mas a sua mensagem vai além de situações históricas
particulares. No fervor da liberdade e da participação política, da Revolução de
Veludo à Primavera Árabe, o fantasma de Rousseau caminha em nosso tempo
também.
A força é um poder físico; não vejo como seus efeitos podem produzir
moralidade. Ceder à força é um ato de necessidade, não de vontade;
isso é, na melhor das hipóteses, um ato de prudência. Em que sentido
ele pode ser um dever moral?
Comentários finais
Enquanto Hobbes pensava que as pessoas tinham que fazer uma escolha entre
serem governadas e serem livres, Rousseau afirmava que era possível ter as
duas coisas; era possível você ser livre se seu “governante” fosse você mesmo
(na forma de um conjunto de cidadãos criado para fazer as leis). Os críticos
têm dito que, embora isso pudesse ter funcionado nos cantões suíços
familiares a Rousseau em sua juventude, esse otimismo era menos adequado ao
mundo real. No entanto, sua visão geral continua poderosa.
De fato, Rousseau sabiamente não tenta ditar uma forma ideal de governo,
uma vez que ela diferiria de acordo com o povo e o país. No entanto, em uma
seção intitulada “Dos sinais de um bom governo”, ele dá indicação de como
seria um bom Estado democrático – teria uma grande população florescente,
que se sente segura e livre dentro de suas fronteiras. Se este for o caso, a
natureza exata da estrutura de governo é acadêmica.
Enquanto houver pessoas que vivem sob regimes despóticos, Do contrato
social continuará a ser relevante. Os monarcas muitas vezes sentiram que, se
estabelecessem a paz, estariam indo bem, mas Rousseau observa que “o que
realmente faz a espécie prosperar não é a paz, mas a liberdade”. Enquanto as
pessoas “permanecerem sob o jugo” (ou seja, em uma monarquia absoluta ou
ditadura), viverão em um estado de decadência em que governantes podem
destruí-las a qualquer momento. Grandes guerras, fome e outros eventos vêm
e vão, mas o fato de uma população ser basicamente livre ou não, expresso em
uma sólida e duradoura constituição, é o que mais importa.
Do contrato social também é um eterno lembrete para as democracias
modernas, muitas das quais se tornaram representativas e excessivamente
partidárias, para melhorar sua ação. Como Rousseau alertou:
Tanto como arma intelectual contra déspotas quanto como tônico para
democracias doentes, Rousseau permanece sendo uma leitura atemporal.
Jean-Jacques Rousseau
Rousseau nasceu em 1712, e sua mãe morreu poucos dias depois. O relojoeiro
Isaac, seu pai, foi sábio e instilou nele o amor à leitura, especialmente à
literatura clássica.
Aos 16 anos, Rousseau se tornou aprendiz de gravador, mas odiava seu
chefe. Ele estava na fronteira da Savoy católica, onde fez amizade com uma
nobre, Madame de Warens. Na casa da fidalga, de quem também era amante,
ele tinha acesso a uma grande biblioteca e recebia aulas de música – acabou
depois se tornando professor de música. Durante seus 20 anos, seguiu a
carreira musical e criou um sistema de notação musical. Aos 31 anos, ganhou
experiência em política, trabalhando para o embaixador francês na República
de Veneza, mas aquele não era um papel diplomático adequado, e Rousseau
sentia-se um serviçal. Na volta a Paris, iniciou uma relação com sua lavadeira.
Tiveram cinco filhos, mas todos foram entregues a orfanatos.
Em 1749, encorajado por seu amigo Denis Diderot (da famosa
Enciclopédia), Rousseau entrou em um concurso de ensaios, que ganhou,
tornando-se uma sensação literária. Também foi um compositor de sucesso
razoável de óperas e balés e, em 1752, teve uma peça representada a Luís XV,
rei da França.
Rousseau tinha interesse profundo em educação, e seu famoso livro Emílio
ou da educação (1762) tentou mostrar como as crianças poderiam ser educadas
para que não procurassem dominar, mas ter um sentimento de igualdade para
com os outros. Ao criticar as práticas da Igreja e do dogma, Rousseau foi
duramente atacado pela Igreja. Foi forçado a fugir de Paris, e os ataques o
deixaram paranoico. Depois de um convite de seu amigo David Hume, ele
buscou refúgio na Grã-Bretanha, mas acabou se desentendendo com Hume.
Em seus últimos anos em Paris, escreveu As confissões, uma obra clássica de
autobiografia que foi publicada poucos anos depois de sua morte, em 1778.
1930
A conquista da felicidade
Em resumo
A felicidade vem de nos entregarmos à vida, o que, em geral, diminui a
preocupação com o eu – a causa primária da infelicidade.
Na mesma linha
Aristóteles, Ética a Nicômaco (p. 32)
Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas (p. 398)
Bertrand Russell
O erro da infelicidade
A infelicidade é uma condição que não se baseia apenas em coisas que
acontecem com você. É, antes de tudo, o resultado de erros no pensamento e
na perspectiva, como diz Russell:
A vida equilibrada
A maioria das pessoas não luta pela vida – é mais uma luta pelo sucesso.
Russell observa que um empresário vai chamá-la de luta pela vida para dar
dignidade a algo essencialmente trivial:
Sobre o tédio
O desejo de emoção e aventura é inato aos seres humanos, observa Russell,
sobretudo no sexo masculino. No estágio da caça na civilização, isso era
gratificado naturalmente, mas, com o advento da agricultura, tem início o
tédio. A era das máquinas diminuiu aquela prostração um pouco, mas não o
medo de se entediar. “O tédio é, portanto, um problema vital para o moralista,
pois ao menos metade dos pecados da humanidade é causada pelo medo.” A
ousada alegação de Russell é que a maioria das guerras, massacres e
perseguições é resultado do desejo de fugir do tédio. “Um certo poder de
suportar o tédio é, portanto, essencial para uma vida feliz”, afirma ele. Os
prazeres da infância devem incluir atividades que exijam esforço e criatividade,
e, por conseguinte, divertimentos passivos, como ir ao teatro ou ao cinema,
devem ser limitados. É útil cultivar a “monotonia fecunda” em uma criança em
vez de expô-la constantemente a novos estímulos.
Entre os adultos, os prazeres, como as apostas que são afastadas da
natureza, não resultam em alegria duradoura, enquanto aqueles que levam uma
pessoa ao contato com a terra são profundamente satisfatórios. Populações
urbanas sofrem de tédio apenas porque são apartadas da natureza.
Outras visões
• Russell diz que é difícil aceitarmos que outros não partilham da alta conta
que temos de nós mesmos. Sabemos que os outros têm falhas, mas
esperamos que pensem que nós não temos nenhuma. A superestimação
de nossos méritos, o amor ao poder e a vaidade levam à infelicidade.
• O sentimento de amor é o que nos dá felicidade, e não o objeto desse
sentimento. “O amor é, em si, uma fonte de prazer” e, além disso, ele
“aprimora todos os melhores prazeres, tais como a música, o nascer do
sol nas montanhas e o mar sob a lua cheia”.
• Nossa felicidade vem principalmente daqueles que são próximos a nós:
“Pouquíssimas pessoas conseguem ser felizes, a menos que todo o seu
modo de vida e sua visão sobre o mundo sejam aprovados por aqueles
com quem têm relações sociais, e mais especialmente por aqueles com
quem vivem”.
• Os pretensiosos são desagradavelmente surpreendidos pelo fracasso,
enquanto aqueles que são modestos ficam agradavelmente surpreendidos
com o sucesso. Portanto, é melhor ter baixas expectativas.
• O desencanto é uma doença, e, mesmo se for causado por circunstâncias
particulares, é sábio superá-lo o mais rápido possível. Quanto mais coisas
uma pessoa tiver em seu rol de interesses, maior sua chance de felicidade.
• Aqueles que renunciam à paternidade abrem mão de uma grande
felicidade e provavelmente sentirão insatisfação sem saber o porquê.
Nossa prole traz continuidade e a sensação de união, o que faz com que
nos “sintamos parte do fluxo da vida que flui desde o primeiro germe” e
continua para um futuro desconhecido. Russell teve mui-tos filhos.
• Outro elemento essencial para a felicidade, a continuidade do propósito,
vem do trabalho: “Sem respeito próprio genuíno, a felicidade mal é
possível. E o homem que tem vergonha de seu trabalho mal consegue
alcançar o respeito próprio”.
• Todas as áreas da vida de uma pessoa, seja seu trabalho, o casamento ou a
criação dos filhos, exigem um esforço externo, e é o esforço em si que
cria a felicidade.
Comentários finais
A prescrição de Russell para a felicidade envolve vários elementos importantes,
entre eles o que ele chama de “áureo meio-termo” entre esforço e resignação.
Buscar a perfeição em tudo inevitavelmente causa infelicidade, enquanto que
(para usar seu exemplo curioso) a pessoa sábia ignorará a poeira que a
empregada não limpou, ou o fato de que o cozinheiro não fez o jantar
adequadamente, até o momento em que estará livre para lidar com isso de
forma não emocional. Se renunciarmos a muitas coisas, poderemos nos
concentrar naquilo que importa e no que realmente pode fazer a diferença. De
fato, a pessoa que for capaz de lidar com causas variadas de infelicidade será
aquela que permanecerá feliz.
Russell conclui (de certa forma obviamente) que a felicidade depende
“parcialmente de circunstâncias externas e parcialmente de nós mesmos”, o
que deriva da comida, do abrigo, do amor, do trabalho, da família e de uma
centena de coisas. Considerando que as fontes de felicidade estão a nosso
redor, observa ele, apenas alguém que seja psicologicamente mal ajustado
fracassará em se tornar uma pessoa feliz.
Aprofundando-se um pouco mais, ele observa que a infelicidade é o
resultado de uma falta de integração entre a mente consciente e a inconsciente,
ou entre o eu e a sociedade: “O homem feliz é aquele que não sofre de
nenhuma dessas falhas de unidade, cuja personalidade nem contradiz a si
mesma nem combate o mundo”.
Acima de tudo, a felicidade pode ser coletada a partir do direcionamento de
nossos interesses para fora, sendo menos autocentrados e evitando a inveja, a
autocomiseração, o medo, a autoadmiração e a noção de pecado. Olhar para
essas paixões conscientemente, examinar por que elas se fazem presentes e
depois enfrentá-las vão ajudar a superá-las.
Mesmo que, em termos de filosofia acadêmica, A conquista da felicidade não
seja uma das principais obras de Russell, é uma ponte entre o Russell filósofo e
o Russell homem e, por esse motivo, é fascinante. Ele defendia o “monismo
neutro”, a noção metafísica de que tudo no universo é feito da mesma
“substância”, seja ela matéria ou consciência. Portanto, somos menos
separados das outras pessoas do que imaginamos, e uma crença de que somos
uma entidade verdadeiramente separada é um erro que causará infelicidade,
porque todos os pensamentos perturbadores provêm de uma sensação de
separação indesejada e um foco no eu como algo real. Quando essa ilusão de
separação é vista pelo que ela é, fica difícil não ser feliz.
Bertrand Russell
Russell nasceu em 1872, em Trellech, País de Gales, em uma família
aristocrática influente e liberal. Seus pais eram o Visconde de Amberley e
Katherine, filha do 2º Barão de Stanley Alderley. Ficou órfão com apenas 3
anos de idade e foi educado por governantas e tutores.
Em 1890, ele entrou no Trinity College, na Universidade de Cambridge, e
seu brilho logo foi notado. Ainda na adolescência, publicou um livro sobre a
social-democracia alemã e, durante seu período em Trinity, descobriu “o
paradoxo de Russell”, que desafiou os fundamentos da teoria matemática.
Em 1903, publicou seu primeiro livro importante de lógica matemática, The
Principles of Mathematics [Os princípios da matemática], e, em 1905, escreveu o
ensaio Da denotação.6 O primeiro dos três volumes de Principia Mathematica, em
coautoria com Alfred North Whitehead, foi publicado em 1910. O trabalho
tornou Russell famoso nos campos da lógica e da matemática.
Russell ficou conhecido por seus muitos protestos antinucleares e
antiguerra, o que o levou por um tempo à prisão e causou sua demissão do
Trinity College e do City College, em Nova York. Foi laureado com o Prêmio
Nobel da Literatura, em 1950.
Doou grande parte de sua riqueza herdada, mas, em 1931, aceitou e
manteve seu condado, embora alegasse que a única vantagem era conseguir
lugares em restaurantes. Ele morreu em 1970.
2009
Justiça
Em resumo
O objetivo da política não é simplesmente proteger a liberdade pessoal ou
econômica; ela deveria nos tornar pessoas melhores e consagrar valores
morais. Há coisas que o dinheiro não pode comprar.
Na mesma linha
Aristóteles, Ética a Nicômaco (p. 32)
Jeremy Bentham, Princípios da moral e da legislação (p. 70)
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
John Rawls, Uma teoria da justiça (p. 322)
Peter Singer, Quanto custa salvar uma vida? (p. 372)
Michael Sandel
É exatamente esse o alerta feito por Slavoj Žižek em Vivendo no fim dos
tempos: é perigoso termos uma visão politicamente correta demais e liberalista
demais com relação ao respeito às visões alheias. Uma sociedade precisa ter
alguma ideia do sentido moral ao qual está se dirigindo. “Respeito espúrio”,
um termo definido por Sandel, gera ressentimento e cria retrocesso. Para uma
vida política mais robusta, deveríamos ser capazes de desafiar as convicções de
outras pessoas, bem como estar dispostos a mudar nossas convicções.
Comentários finais
Sandel diz que a confusão entre diferentes impulsos ou convicções em termos
de a coisa certa a fazer “é o impulso à filosofia”. Certamente ele concordaria
com a conclusão de Iris Murdoch de que raciocinar a partir de nossas escolhas
e, possivelmente, alterá-las durante o processo, não é um processo fácil nem
lento. No entanto, se o fizermos, podemos ficar mais confiantes de que nossos
pontos de vista não são simplesmente “confusão ou preconceito”, como
Sandel coloca, ou mesmo um ato de autoconsistência. No sentido aristotélico,
o próprio ato de pensar e raciocinar significa que estamos cumprindo nosso
objetivo. Justiça talvez faça você rever suas suposições e questionar seus
preconceitos e o ajude a ver que ser consumidor e ser cidadão não são a
mesma coisa.
Michael J. Sandel
Sandel nasceu em Mineápolis, nos Estados Unidos, em 1953, e sua família se
mudou para Los Angeles quando tinha 13 anos. Ele se destacou na escola e na
Universidade Brandeis, antes de ganhar uma bolsa de estudos Rhodes
Scholarship para o Balliol College, Oxford.
Dá aulas em Harvard desde 1980 e ocupa a cátedra Anne T. and Robert M.
Bass. Em 2002, foi eleito membro da Academia Americana de Artes e Ciências
e, de 2002 a 2005, atuou no President’s Council on Bioethics [Conselho de
Bioética do Presidente]. Em 2005, as palestras de Justiça foram filmadas e
tornaram-se uma série de televisão em doze episódios. Em 2009, foi
convidado para dar as palestras BBC Reith; seu tema era cidadania e
perspectivas de uma “política do bem comum”.
Outros livros: Liberalism and the Limits of Justice [Liberalismo e os limites da
justiça] (1982), Democracy’s Discontent: America in Search of a Public Philosophy
[Descontentamento da democracia: a América em busca de uma filosofia
pública] (1996), Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética (2007) e O que o
dinheiro não compra: os limites morais do mercado (2012).
1943
O ser e o nada
Em resumo
Não há nenhuma natureza essencial no âmago de nosso ser. Somos livres
para inventar um eu e criar uma vida como desejamos.
Na mesma linha
Simone de Beauvoir, O segundo sexo (p. 62)
Martin Heidegger, Ser e tempo (p. 168)
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
Jean-Paul Sartre
Liberdade e responsabilidade
Sartre diz que não apenas somos responsáveis pelo que fazemos, mas também
somos responsáveis por nosso mundo. Cada um de nós está vivendo um certo
“projeto” com a nossa vida, então, seja lá o que aconteça conosco, deve ser
aceito como parte dela. Sartre chega ao ponto de dizer que “não há acidentes na
vida”.
Ele dá o exemplo de ser convocado para lutar na guerra. É errado pensar
na guerra como algo externo, que vem de fora e, de repente, assume a nossa
vida. De fato, a guerra deve se tornar a minha guerra. Eu poderia sair dela a
qualquer momento me matando ou desertando, mas, por um motivo ou outro
(covardia, inércia ou não querer deixar minha família ou meu país), eu
permaneço na guerra e, “por deixar de sair dela, eu a escolhi”. Uma guerra
depende de seus soldados para sua existência, e eu “decidi que ela existe”. Não
há motivo para vê-la como um bloco de tempo removido de minha vida,
levando-me para longe do que eu realmente quero fazer (seguir uma carreira,
ter uma família e assim por diante); por estar na guerra, eu devo assumir a
responsabilidade completa por ela e pelo meu tempo nela. “Eu escolho a mim
mesmo todos os dias”, como Sartre coloca. O estado de ser da humanidade é
uma constante escolha de si mesmo. As pessoas podem desejar ter vivido em
outro tempo para evitar estar na guerra, mas o fato é que elas fazem parte da
época que levou à guerra, e estar em qualquer outro momento contrariaria esse
fato. “Assim, sou esta guerra” – minha vida é uma expressão da época em que
vivo, de modo que desejar outra vida é uma fantasia ilógica, sem sentido.
Sartre comenta que estamos “abandonados” no universo. A angústia vem
da percepção de que não somos “o fundamento de nosso próprio ser” (ou
seja, não inventamos a nós mesmos nem escolhemos nosso nascimento) e não
podemos ser o fundamento do ser de outras pessoas. Tudo o que podemos
fazer é escolher o significado de nosso ser, vendo tudo no mundo como uma
oportunidade (seja aproveitada, não aproveitada ou faltante em primeiro lugar).
Aqueles que percebem que escolhem o significado de seu ser, mesmo que esse
seja um pensamento assustador, são absolutamente livres. Podem viver sem
desculpas, arrependimentos ou remorso e ter absoluta responsabilidade por
suas ações.
O objetivo humano é perceber e apreciar nosso ser e nossa liberdade.
Outros objetivos que criamos como substitutos daquele indicam um “espírito
de seriedade”, que sugere erroneamente que o que estou fazendo é crucial.
Como Sartre observa: “O sucesso não é importante para a liberdade”. Para
sermos livres, não precisamos alcançar o que queremos, temos simplesmente
que ser livres para fazer uma escolha.
Viver como se nossas ações fossem cruciais ou passar a nossa vida tentando
viver de acordo com algum tipo de sistema de valores morais universais é uma
espécie de má-fé. Apenas ao realmente escolhermos por nós mesmos o que
seremos a cada minuto, criando nossa vida como se ela fosse uma obra de arte
decorrente dessa liberdade total, perceberemos nosso potencial como seres
humanos.
A declaração de Sartre de que “o homem é o que não é e não é o que é”
significa que não podemos escapar à nossa “facticidade”, a fatos de nossa
existência, como nosso gênero, nacionalidade, classe ou raça. Todos esses fatos
oferecem um “coeficiente de adversidade” que torna qualquer tipo de
realização na vida uma batalha árdua. E, no entanto, nem somos simplesmente
a soma das nossas facticidades. O problema é que evitamos fazer coisas
totalmente novas, coisas que não sejam características, porque valorizamos a
coerência em nós mesmos. Coerência, ou caráter, é tanto uma forma de
segurança quanto a lente através da qual podemos visualizar e compreender
nosso mundo, mas é, em grande medida, uma ilusão. Sartre diz que, apesar de
todos os fatores limitantes de nossa existência, somos mais livres do que
imaginamos.
Má-fé
O famoso conceito de Sartre de “má-fé” (mauvaise foi) repousa sobre uma
distinção entre dois tipos de mentira: a mentira regular, que implica que “o
mentiroso, na verdade, está em plena posse da verdade que está escondendo”,
cuja mentira se refere a algo no mundo dos objetos, expressando a visão de
que eu e outros estamos separados; e a mentira para si mesmo, uma mentira de
consciência que não envolve uma separação entre o enganador e o enganado.
Essa segunda mentira é menos absoluta, mas mais grave, já que se trata de um
voo para longe de nossa liberdade. Como Sartre explica:
A má-fé exige que uma pessoa aceite as coisas de cara e repousa sobre uma
resistência à ideia de desvelá-las completamente para encontrar a verdade. Se
não for uma mentira deslavada, é convencer a si mesmo a não olhar perto
demais, caso se encontre algo de que não se goste.
Sartre dedica várias páginas a refutar Freud. Freud acreditava que as
escolhas e as ações das pessoas são constantemente sequestradas pela mente
inconsciente, mas, quando Sartre se sentou para ler casos de Freud, descobriu
que as pessoas no divã do médico vienense eram simplesmente exemplos de
estados patológicos de má-fé. Outro psiquiatra vienense, Stekel, concordou
com Sartre e escreveu: “Toda vez que fui capaz de avançar o suficiente em
minhas investigações, estabeleci que o cerne da psicose era consciente”. De
fato, Sartre recebera de bom grado a revolução na terapia cognitiva dos
últimos quarenta anos, que descarta a ideia de que somos sabotados por
compulsões subterrâneas e salienta que, na verdade, podemos condicionar
nosso pensamento.
No entanto, a liberdade é um fardo, e por isso tantas pessoas escapam para
a má-fé. Sartre observa que a má-fé pode ser um modo de vida normal, com
apenas breves e ocasionais despertares de boa-fé. Aqueles de má-fé conseguem
enxergar claramente o que estão fazendo, mas optam por se enganar quanto à
sua importância. Ele dá o exemplo de uma mulher que concordou em ir a um
primeiro encontro com um homem. Embora ela não tente impedir os atos de
flerte e declarações de amor ou afeto por ela, ao mesmo tempo não toma
nenhum tipo de decisão sobre o relacionamento. Então, o que ela faz? Para
continuar a desfrutar o encanto da noite, ela reduz as declarações do homem
apenas a seu significado literal. Quando ele diz a ela “eu acho você tão
atraente”, ela cuida para não aceitar nenhum outro significado (como “Quero
dormir com você” ou “Quero um relacionamento sério”). Quando ele pega a
mão dela, ela não quer destruir a noite puxando-a, portanto finge para si
mesma que não notou sua mão na dele. Ver o próprio corpo como mero
objeto tem o efeito de preservar sua liberdade. Ela não fechou nenhum
compromisso, ou, pelo menos, essa é a forma como ela escolhe ver a situação.
No entanto, ao separar seu corpo, ou os “fatos” da situação, de seu eu
transcendental (seu verdadeiro “eu”, se quiser), ela está criando uma mentira
para servir a uma finalidade específica: a manutenção de um sentido de
liberdade ou não compromisso.
Todo mundo funciona entre a má-fé e a boa-fé o tempo todo, mas Sartre
diz que é possível alcançar a autenticidade, que significa simplesmente uma
pessoa “ser o que é”, por meio da “reassunção do ser”. Para essa pessoa, a
franqueza “deixa de ser seu ideal e se torna, em vez disso, seu ser”. Isso não
acontece naturalmente; uma pessoa se torna sincera, ou o que ela é, apenas
como ato consciente.
Liberdade e relacionamentos
Pode parecer uma pergunta óbvia, mas por que seres humanos são obcecados
por relacionamentos? A resposta de Sartre é que, embora cada um de nós seja
um ser consciente, também precisamos de outros para nos vermos e nos
tornarmos “reais”. O problema em relacionamentos é que tentamos
transformar outras consciências livres (pessoas) em objetos, o que nunca é
possível.
A implicação das visões de Sartre é que nossa melhor opção de felicidade
ou sucesso nos relacionamentos é reconhecer e permitir a liberdade do outro,
apesar de nosso desejo natural de nos “apropriarmos” dela. Temos de ver a
pessoa como um ser livre, e não simplesmente a soma de suas facticidades.
Podemos tentar tornar os outros dependentes de nós, emocional ou
materialmente, mas nunca poderemos possuir sua consciência. “Se Tristão e
Isolda [o mítico par amoroso] caem loucamente apaixonados por causa de uma
poção de amor”, escreve Sartre, “ficam menos interessantes” – porque uma
poção cancelaria sua consciência.
Não é apenas a pessoa que queremos possuir como objeto, mas sua
liberdade consciente de nos querer. Nem mesmo uma promessa ou um voto
chega a esse nível; de fato, esses atos não são nada em comparação com a
plena doação de uma pessoa para outra em espírito. Como comenta Sartre: “O
Amante quer ser ‘o mundo inteiro’ para o amado”. Para a outra pessoa, “eu
devo ser aquele cuja função é fazer com que as árvores e a água existam”.
Devemos representar para a outra pessoa o limite final de sua liberdade, onde
ela escolhe voluntariamente não ver mais nada. Para nós, queremos ser vistos
pelo outro não como objeto, mas como algo sem limites:
Sartre diz que relacionamentos românticos são tão potentes porque unem o
estado de Nada de uma pessoa ao Ser de outra pessoa. Em termos simples,
quando nos apaixonamos por alguém, esse alguém parece preencher um
buraco. Dependemos do Outro para nos fazer existir (caso contrário, somos o
estado do Nada). Mas estamos perpetuamente inseguros no amor, porque a
qualquer momento podemos nos tornar, em vez de o centro do mundo do
amante, apenas uma coisa entre muitas. Assim, para Sartre, esse empurra e
puxa entre objetividade e subjetividade está no cerne de todos os conflitos e
problemas não resolvidos no amor. Os relacionamentos são uma eterna dança
entre amantes que querem perceber mutuamente a liberdade do outro e ver o
outro como objeto. Sem o outro ser livre, eles não são atraentes, mas, se não
são de alguma forma um objeto, não podemos tê-los. É apenas no
reconhecimento da total liberdade do outro que poderemos dizer que o
possuímos de alguma maneira. Talvez reduzirmos a nós mesmos a um objeto a
ser usado pelo outro, mas voluntariamente, seja, de um jeito estranho, o auge
do ser humano, pois é um tipo de doação que vai contra a natureza dos seres
humanos de serem livres – um dom como nenhum outro.
Sexo e desejo
Sartre vê o desejo sexual como tendo muito menos a ver com os órgãos
sexuais do que com os estados do ser. Somos seres sexuais do nascimento à
morte, ainda que os órgãos sexuais não expliquem nossos sentimentos de
desejo.
Não desejamos alguém simplesmente por prazer ou porque ele é um -
receptáculo para o prazeroso ato de ejaculação; como observado acima, nós
desejamos uma consciência. Ele enfatiza que existe uma grande lacuna entre o
desejo e o desejo sexual. Podemos desejar beber um copo de água e, assim que
o bebemos, ficamos satisfeitos. Simples assim. Mas Sartre observa que o desejo
sexual nos compromete. A consciência fica “entupida” pelo desejo; dito de outra
forma, ele nos invade. Podemos deixar que isso aconteça ou tentar impedi-lo,
mas, de qualquer maneira, o apetite sexual não é o mesmo que os outros, pois
envolve a mente, não apenas o corpo. Dizemos que desejo “toma conta de
nós” ou “nos assola”, frases que não tendemos a usar em relação à fome ou à
sede, por exemplo.
Sartre compara o desejo sexual a ser vencido pelo sono, e é por isso que
parecemos ter pouco poder sobre ele. A consciência cede espaço para ser
apenas um corpo, ou, em suas palavras, “o ser que deseja é a consciência
fazendo-se corpo”. Ao mesmo tempo, durante o sexo, desejamos tornar a outra
pessoa apenas carne (portanto, também revelando-nos como apenas carne).
Não só queremos que a outra pessoa se livre de todas as roupas e adornos,
queremos que o corpo seja um objeto, não mais em movimento:
Nada menos “carnal” que uma dançarina, mesmo que esteja nua. O
desejo é uma tentativa de despir o corpo de seus movimentos, assim
como de suas roupas, e fazê-lo existir como pura carne; é uma
tentativa de encarnar o corpo do Outro.
A carícia, diz Sartre, “faz com que a carne do Outro nasça”, desperta o
desejo nele e, ao mesmo tempo, faz com que compreendamos a nós mesmos
como um corpo, um que pertence ao mundo. Ele descreve a interação entre a
mente e o corpo desta forma: “A consciência é sugada em um corpo que é
sugado no mundo”.
Comentários finais
Para uma pessoa que disse que apreciar a liberdade e o estado de ser era mais
importante do que as conquistas “burguesas” (ele recusou o Prêmio Nobel,
por exemplo), as conquistas de Sartre foram excelentes. Apesar de sua
observação de que “o sucesso não é importante para a liberdade”, é possível
dizer que ele nos deixou uma receita para o sucesso?
Claro que sim. Além da ética mais ampla de liberdade individual, a receita é
“inserir minha ação nas malhas do determinismo”. Com isso, ele quis dizer que
devemos aceitar o meio em que nascemos, mas estar dispostos a transcendê-lo.
Devemos aceitar a disposição de nosso universo particular e, ainda assim, ser
criativos em nossa busca de uma vida significativa. Todo o livro O ser e o nada é
um aviso para não deixar os fatos aparentes de nossa existência ditarem seu
estilo ou sua natureza. Quem somos sempre será um projeto feito por nós
mesmos. O próprio Sartre viveu essa filosofia. A morte de seu pai quando ele
era muito jovem significou que não houve pressão para se modelar segundo o
progenitor, e ele se sentiu livre para inventar a si mesmo como a pessoa que
desejasse.
Coerente com sua refutação de todos os valores burgueses ou de classe
média, ele e sua companheira filósofa, Simone de Beauvoir, nunca se casaram
nem tiveram filhos, mas sua união de mentes fez deles um dos grandes casais
do século XX. Em grande parte de sua vida, eles viveram em apartamentos a
uma curta distância um do outro e gostavam de passar várias horas por dia
juntos; admitiam que era difícil saber quais ideias em sua escrita se originavam
de um ou de outro. Seus pensamentos sobre ser, amor e relacionamentos
permanecem como os mais sagazes jamais escritos.
Jean-Paul Sartre
Sartre nasceu em Paris, em 1905. Seu pai era um oficial naval que morreu
quando ele tinha apenas 1 ano. Sartre foi criado por sua mãe, prima de
primeiro grau do filósofo e missionário Albert Schweitzer, e seu avô, um
médico que lhe proporcionou o conhecimento dos clássicos.
Frequentou a prestigiada École Normale Supérieure, onde sua leitura de
Essais sur les données de la conscience [Ensaios sobre os dados imediatos da
consciência], de Henri Bergson, despertou seu amor pela filosofia. Foi
profundamente influenciado por Hegel, Kant, Kierkegaard e Heidegger e
ficou bem conhecido na École pelas peças que pregava. Em 1929, ele
conheceu Simone de Beauvoir, que estava na Sorbonne. Seu relacionamento
incluiria casos de ambos os lados e o compartilhamento de amantes dos dois
sexos.
Sartre foi recrutado durante a Segunda Guerra Mundial, servindo como
meteorologista. Tornou-se prisioneiro de guerra e, mais tarde, foi exonerado
do serviço militar devido a problemas de saúde. O ser e o nada foi um produto
desse rico período, tal como foram As moscas (1943), Entre quatro paredes (1944)
e A questão judaica (1944). Ele colaborou com o existencialista Albert Camus
brevemente antes de trabalhar em Os caminhos da Liberdade (1945), uma trilogia
de romances sobre os pontos de vista filosófico e político sobre a guerra.
Outro título fundamental é Crítica da razão dialética (1960).
Sartre viajou muito, visitando Cuba para conhecer Fidel Castro e Ernesto
“Che” Guevara. Em 1964, ele recusou o Prêmio Nobel de Literatura, mas que,
de qualquer forma, foi concedido a ele. O fumo constante e o consumo de
anfetaminas fizeram sua saúde se deteriorar; ele morreu em 1980 e foi
enterrado no Cemitério de Montparnasse.
1818
Em resumo
A pessoa avançada tenta viver menos de acordo com o estímulo cego de
sua vontade (ou ego) e mais em sintonia com o que é eterno e está além do
eu.
Na mesma linha
Henri Bergson, A evolução criadora (p. 76)
Martin Heidegger, Ser e tempo (p. 168)
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
Platão, A República (p. 308)
Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas (p. 398)
Arthur Schopenhauer
Representação e realidade
Para compreender Schopenhauer devemos, em primeiro lugar, voltar a Kant,
que acreditava que existe o mundo fenomênico, que podemos perceber com
nossos sentidos, e então existem “coisas em si”, que têm uma realidade eterna
separada existente à parte de nossa percepção. Considerando que estamos
restritos a nossos sentidos, podemos, na verdade, nunca conhecer esse
“mundo em si”. Schopenhauer aceitou esse fato, mas pensou que, por meio da
razão, poderíamos descobrir a verdadeira realidade (o “númeno”).
Em contraste com nosso mundo multiforme de muitas coisas e muitas
percepções, o númeno tinha que ter uma unidade e estar além do espaço e do
tempo. Schopenhauer argumenta que o que consideramos ser tão real na
verdade é apenas uma representação ou uma projeção da mente. Em uma
inversão total do senso comum, o mundo com o qual mal temos intimidade
tem uma realidade permanente e, logicamente, o mundo fenomênico,
condicional ou representacional (o mundo “real”) não tem qualquer substância
ou realidade permanente, pois tudo nele morre ou muda de forma.
No entanto, Schopenhauer diz que o mundo fenomênico não é o caos, mas
opera de acordo com a “razão suficiente”, ou as leis de causa e efeito.
Contanto que admitamos que vivemos em um mundo de causalidade, ele faz
todo o sentido, mesmo se for projetado por nossas mentes. De fato, o
princípio da razão suficiente é o que impede um mundo de representação de
ser uma ilusão desesperançada. Ele observa que até mesmo as leis do tempo e
do espaço são parte do mundo condicional e não têm nenhuma verdade eterna
em si – não são coisas em si, mas simplesmente uma boa maneira de explicar
os fenômenos de tempo e espaço. O tempo realmente não existe, mas parece
existir para nós, observadores, que precisamos construir um mundo de
representação ao longo das dimensões de tempo e espaço. Para Schopenhauer,
a noção de Kant de “coisas em si” era muito semelhante às “Formas” de
Platão, expressas na alegoria da caverna.
Tudo no tempo e no espaço é relativo. Ou seja, um momento no tempo
tem realidade apenas em relação ao momento vindo logo após ou antes dele.
No espaço, um objeto possui apenas realidade em relação a um outro. A partir
da tradição ocidental, Schopenhauer invoca a observação de Heráclito de que
as coisas estão em fluxo eterno e não têm nenhuma realidade fixa, e do
Oriente ele lança mão do conceito hindu de “Maya”, em que o mundo é
simplesmente uma projeção ou um sonho, muito aberto a interpretações
erradas pelo observador. Não apenas o espaço, ou seja, o mundo dos objetos,
é uma representação de quem o vê, mas também o tempo. Lançando uma
indireta a seu inimigo Hegel, Schopenhauer argumenta que a história não é um
relato objetivo do que aconteceu, ou algum processo que leva a uma
determinada meta ou objetivo, mas simplesmente uma história contada dentro
do olho do observador: “Passado e futuro são tão nulos e irreais quanto
qualquer sonho”.
A vontade em Schopenhauer
Para Schopenhauer, “vontade” é o núcleo íntimo do mundo fenomênico e
manifesta-se como uma espécie de esforço cego e sem propósito de todos os
tipos – uma vontade de viver. Em vez de o significado tradicional do termo
como disposição consciente, é mais bem-visto como um tipo de energia
constantemente à procura de um escape. Ele explica não apenas o esforço de
seres humanos, mas a força vital em animais, plantas e até mesmo no mundo
inanimado.
No premiado Parerga e Paralipomena, Schopenhauer examinou a questão do
livre-arbítrio, escrevendo o seguinte:
Subjetivamente […] todo mundo sente que faz somente o que deseja.
Mas isso significa apenas que suas ações são a pura manifestação de
sua própria essência.
Nessa forma, ela não vê a natureza interior das coisas, que é uma, mas
seus fenômenos como separados, destacados, inúmeros, muito
diferentes e, na verdade, opostos.
Tal pessoa tende a ver as coisas em opostos, a ter opiniões fortes o tempo
todo e busca o prazer para evitar a dor, sem perceber que sua busca na verdade
causa dor. Por fim, talvez ela enxergue que o principium individuationis [princípio
de individuação] pelo qual ela vive é a fonte de sua apreensão.
Aqueles que observam o mundo de uma maneira menos separada
encontram um caminho para a liberdade. Compreendemos que o que fazemos
aos outros, fazemos a nós mesmos. Apenas quando vemos que não há
nenhum “eu”, e nossas ações refletem isso, podemos nos libertar do ciclo de
nascimento, velhice, doença e morte, bem como de prisão dentro dos limites
de tempo, espaço e causalidade. A pessoa sábia vê o bem e o mal, o prazer e a
dor como simples fenômenos, diversas expressões de Unidade. Ela sabe que a
negação de sua vontade pessoal (ou ego) e a percepção de que não são
separados de outros levam à paz.
Meios de transcendência
Para Schopenhauer, avançar para além do “eu” era a chave para transcender a
vontade, e o caminho óbvio para isso era através da vida monástica ou ascé-
tica, que permitia que uma pessoa se desviasse do ataque das forças brutas da
vontade, do desejo e do corpo. Felizmente, porém, havia outro caminho,
através da experiência da natureza ou da arte.
O estado de espírito humano normal é de análise, raciocínio ou avaliação
constante, mas é possível dedicar toda a nossa mente ao momento presente.
Ao olhar uma paisagem, por exemplo, podemos nos perder no objeto de tal
forma que “esquecemos o indivíduo, a vontade, e continuamos a existir como
um sujeito puro, como espelho claro do objeto […] e assim não seremos mais
capazes de separar quem percebe da percepção; os dois se tornam um”.
O que resta, observa Schopenhauer, não é apenas um objeto existente em
relação a outros objetos, mas a própria “Ideia” da coisa, sua forma eterna.
Perdido em vê-la, o observador não é mais um indivíduo, mas é um com a
ideia. De repente, o mundo parece mais claro e mais significativo, porque
penetramos além das aparências óbvias até a essência. A Arte pode isolar uma
ideia ou coisa crucial e, ao apresentá-la de certa maneira, iluminar o Todo, que
está além da razão ou da causalidade. A Ciência, por outro lado, estando
apenas preocupada com o mundo fenomênico, é uma busca interminável que
não consegue nos trazer satisfação plena.
Schopenhauer define genialidade como a “capacidade de permanecer em
um estado de percepção pura”, esquecendo o eu individual e existindo por um
tempo apenas em estado de imaginação, vendo as ideias atemporais do
universo. Quando, inevitavelmente, voltamos à experiência de ser um eu
individual, teremos simpatia compassiva por todos os seres vivos. Esse
sentimento pelos outros é um meio para permanecermos fora do alcance da
vontade ou do ego, porque, ao vivermos uma vida compassiva, mal teremos
tempo para nos preocupar conosco.
Comentários finais
Escrito num momento em que os missionários europeus estavam se
espalhando por toda a Ásia para converter povos ao cristianismo, O mundo como
vontade e como representação oferecia a profecia bem conhecida de Schopenhauer
de que tais esforços seriam tão eficazes quanto “disparar uma bala em um
precipício”. Em vez disso, ele acreditava que a sabedoria que fluiria de volta à
Europa “produziria uma mudança fundamental em nosso conhecimento e
nosso pensamento”.
Ele estava certo. Embora o cristianismo tenha tido mais sucesso no
subcontinente do que ele esperava, a religião e o misticismo vêm tendo um
impacto grande e crescente no Ocidente, em especial os conceitos de Todo em
comparação com a perspectiva atomizante, categorizante da mente ocidental.
A visão convencional de Schopenhauer é que ele era o “supremo
pessimista”. Como a vontade não tinha objetivo positivo, obviamente a
experiência humana tinha que ser um desafio constante, no melhor dos casos,
ou uma dor sem sentido, no pior. Ele não tenta fingir que o mundo e as
motivações das pessoas eram algo que não eram, e isso impressionou
escritores pessimistas como Joseph Conrad e Ivan Turguêniev, bem como os
existencialistas. E, no entanto, a conclusão de Schopenhauer não é de jeito
nenhum sombria, mas edificante: é apenas nossa dependência do mundo dos
fenômenos (o “mundo real”) como a fonte da verdade que sempre demonstra
ser um impasse doloroso. Embora sejamos seres que existem no tempo e no
espaço, paradoxalmente, é somente ultrapassando esses construtos que somos
libertados.
Arthur Schopenhauer
Schopenhauer nasceu em 1788 no que agora é a cidade polonesa de Gdansk.
Quando tinha 5 anos, sua família partiu para Hamburgo, porque sua cidade
natal estava prestes a ser tomada pela Prússia. Esperava-se que ele seguisse os
passos do pai, comerciante, e assumisse a empresa familiar. Entre 1797 e 1799,
passou um longo período na França com o pai, e também viveu na Inglaterra,
Holanda, Suíça e Áustria. Em 1805, seu pai cometeu suicídio, o que abriu
caminho para Schopenhauer seguir seus desejos e frequentar a universidade.
Em Göttingen, matriculou-se em medicina, mas também frequentou aulas
de filosofia e estudou Platão e Kant. Passou dois anos em Berlim, onde foi
para palestras com Fichte, e apresentou sua tese na Universidade de Jena,
também na Alemanha. O tema foi “Sobre a Quádrupla Raiz do princípio da
razão suficiente”. Depois de escrever O mundo como vontade e como representação,
Schopenhauer retornou a Berlim, onde se tornou um conferencista autônomo.
Hegel também estava na universidade, e Schopenhauer programava suas
palestras para coincidir precisamente com as de Hegel, com a expectativa de
atrair os alunos, mas, na verdade, eles abandonaram Schopenhauer, e sua
carreira acadêmica se estagnou. Só conseguia sobreviver graças a uma herança
de seu pai.
Sua mãe, Johanna, era escritora e socialite, e durante grande parte da vida
de Schopenhauer foi mais famosa que o filho. Apesar de seu relacionamento
com ela ser instável, o círculo literário dela permitiu que ele conhecesse
Goethe (com quem se correspondeu) e outros escritores e pensadores.
Fugindo da epidemia de cólera que matou Hegel, Schopenhauer fugiu de
Berlim em 1831 e se estabeleceu em Frankfurt. O premiado Parerga e
Paralipomena (1851) finalmente lhe trouxe a fama que desejava. Ele morreu em
1860.
2009
Em resumo
Doar sistematicamente àqueles que precisam é parte importante de viver
uma boa vida.
Na mesma linha
Aristóteles, Ética a Nicômaco (p. 32)
John Rawls, Uma teoria da justiça (p. 322)
Michael Sandel, Justiça (p. 346)
Peter Singer
Todos os dias, no caminho para o trabalho, você passa por uma lagoa em um
parque onde as crianças gostam de brincar quando o tempo está quente. Certa
manhã você vê uma criança se debatendo na água, aparentemente se afogando.
Se você entrar na água para chegar à criança, vai arruinar os sapatos novos que
acabou de comprar, enlamear o terno e se atrasar para o trabalho.
Nas aulas sobre ética prática de Peter Singer, seus alunos dizem por
unanimidade que você deveria entrar na água para salvar a criança; as outras
coisas simplesmente não importam. Mas se nossa reação normal a essas coisas
é que naturalmente ajamos para salvar a vida da criança, por que gastamos tanto
em coisas desnecessárias (mais pares de sapatos, jantares fora, reforma da
casa), quando esse dinheiro poderia facilmente salvar a vida de crianças? Ou,
como Singer pergunta, sem rodeios: “É possível que, ao optar por gastar seu
dinheiro nessas coisas, em vez de contribuir para uma agência de ajuda
humanitária, você esteja deixando uma criança morrer, uma criança que
poderia ter salvo?”.
Essas questões são o cerne de filosofia utilitarista de Singer. O professor de
Princeton nascido na Austrália alcançou a notoriedade com Libertação animal
(1973). Sua abordagem completamente racional levou-o a posições
controversas, tais como a rejeição da santidade da vida humana e a elevação
dos direitos dos primatas; assim, quando começou a analisar a questão da
pobreza no mundo, os resultados seriam interessantes de qualquer forma.
Quanto custa salvar uma vida? é um livro muito acessível, que também consegue
encapsular as posições filosóficas mais amplas do autor; por isso é um ótimo
ponto de partida para seu pensamento.
Olhe os fatos
Singer não ignora o aumento gigantesco da prosperidade nos últimos
cinquenta anos, o que tem retirado centenas de milhões de pessoas da pobreza.
Em 1981, quatro em cada dez pessoas em todo o mundo viviam em extrema
necessidade; em 2008, era uma em cada quatro. No entanto, mais de 1,4 bilhão
de pessoas ainda vivem com menos de 1,25 dólar por dia, o limiar da pobreza
para o Banco Mundial, e, apesar do rápido aumento dos padrões de vida no
leste da Ásia, o número de pessoas que são extremamente pobres na África
Subsaariana (50% da população) não mudou em trinta anos.
Além disso, Singer enfatiza que aquilo que significa “pobre” em países
desenvolvidos é diferente de “pobre” no restante do mundo. A maioria das
pessoas nessa categoria em países ricos ainda tem água encanada, energia
elétrica e acesso ao sistema de saúde, e seus filhos podem receber educação
gratuita; a maioria tem carro e televisão e, mesmo que sua dieta não seja boa,
dificilmente tem fome. Para as populações pobres nos países em
desenvolvimento, a pobreza significa não ter comida suficiente para se
alimentar pelo menos em parte do ano, ter dificuldade em encontrar água
limpa e pouco ou nenhum espaço para receber cuidados de saúde. Mesmo se
tiverem comida suficiente, sua dieta pode muito bem não oferecer os
nutrientes essenciais, o que pode trazer danos permanentes ao cérebro de seus
filhos.
Uma em cada cinco crianças nos países pobres morre antes dos 5 anos de
idade; nos países ricos, é uma em cada cem. Milhares morrem de sarampo,
uma doença facilmente tratável, pelo simples fato de que seus pais não
conseguem recursos para levá-las ao hospital. Singer pergunta: como deve ser
para os pais ver uma criança definhar e morrer, sabendo que isso poderia ter
sido evitado?
Por meio de vários exemplos, Singer descreve como, embora “a maioria de
nós considere obrigatório atenuar o sofrimento grave de semelhantes
inocentes, mesmo com algum custo (ou mesmo com alto custo) para nós
mesmos”, parecemos fazer isso apenas quando confrontados com tais
situações. No entanto, se quisermos viver de acordo com essa declaração, a
intuição deve ser substituída pela lógica:
1
.Se pessoas estão morrendo por não ter comida ou água o suficiente ou
cuidados médicos, e você pode evitar isso sem sacrificar nada de muito
grande, você deveria fazê-lo.
2
.Ao dar dinheiro a agências de ajuda humanitária, você pode ser
diretamente responsável por salvar vidas sem muito custo para você.
3
.Portanto, é errado não doar às agências de ajuda humanitária.
Quanto doar
Quanto devemos doar? Singer observa que existem cerca de 855 milhões de
pessoas ricas em todo o mundo, ou seja, com um rendimento maior que o
salário médio de um adulto em Portugal. Se cada um doasse apenas duzentos
dólares por ano, a pobreza mundial seria reduzida pela metade (não em
mobilizações de ajuda de curto prazo, mas dinheiro que seja investido para
tornar comunidades pobres realmente sustentáveis). E duzentos dólares não
representa um monte de dinheiro: algumas refeições agradáveis ou menos de
vinte dólares ao mês.
Singer mira na extravagância ridícula de bilionários do mundo. Além das
dezenas de milhões gastos em enormes iates e jatos particulares, ele menciona
o empresário das telecomunicações Anousheh Ansari, que pagou 20 milhões
de dólares para passar apenas 11 dias no espaço. O iate do cofundador da
Microsoft, Paul Allen, custou 200 milhões de dólares e tem tripulação
permanente de sessenta pessoas, bem como enormes emissões de carbono. “É
hora de pararmos de pensar essas formas de gastar dinheiro como
demonstrações de vaidade idiotas mas inofensivas”, comenta Singer, “e
começar a pensar nelas como prova de uma grave falta de preocupação com os
semelhantes.”
Ele conta a história de Chris Ellinger e sua esposa Anne, que criaram uma
organização chamada The 50% League, cujos membros se comprometem a
doar pelo menos metade de seu patrimônio. Destinado não apenas para
milionários, o site da organização menciona um casal que se comprometeu a
viver com menos do que a renda média de 46 mil dólares e doar tudo o que
ganhar além disso. O doador observa: “Eu poderia facilmente ter vivido uma
vida entediante e inconsequente. Agora sou abençoado com uma vida de
serviço e significado”.
Comentários finais
Singer termina o livro citando seu amigo Henry Spira, defensor dos direitos
dos animais e da justiça social, que, em seu leito de morte, disse:
Acho que, no fundo, ninguém quer sentir que a vida se resumiu apenas
ao consumo de produtos e à geração de lixo. Creio que todo mundo
gostaria de olhar para trás e dizer que fez o melhor possível para
tornar este mundo um lugar melhor para os semelhantes. Você pode
olhar para isso a partir deste ponto de vista: que motivação maior pode
haver do que fazer o que se pode para reduzir a dor e o sofrimento?
Peter Singer
Singer nasceu em 1946. Seus pais emigraram para a Austrália para escapar da
perseguição nazista na Áustria, sua terra natal. Ele estudou direito, história e
filosofia na Universidade de Melbourne e depois ganhou uma bolsa de estudos
para Oxford, onde se concentrou na filosofia moral. Depois de períodos
lecionando em Oxford e na Universidade de Nova York, passou duas décadas
na Austrália, na Universidade de Melbourne e na de Monash. Em 1999,
assumiu seu atual cargo, na cátedra Ira W. DeCamp de Bioética, na
Universidade de Princeton.
Outros livros: Ética prática (1979), The Expanding Circle: Ethics and Sociobiology
[O círculo em expansão: a ética e a sociobiologia (1981), Hegel (1982), Should the
Baby Live? The Problem of Handicapped Infants [O bebê deveria viver? O problema
das crianças deficientes] (1985), Rethinking Life and Death: The Collapse of Our
Traditional Ethics [Repensando vida e morte: o colapso da nossa ética
tradicional] (1994), A Darwinian Left [Uma esquerda darwiniana] (2000) e A
ética da alimentação (2007, com Jim Mason).
1677
Ética
Em resumo
O livre-arbítrio é uma ilusão, mas, ao dominarmos nossas emoções e
apreciar a perfeição das leis universais, podemos levar uma vida boa.
Na mesma linha
Sam Harris, Free Will (p. 152)
Gottfried Leibniz, Ensaios de Teodiceia (p. 236)
Baruch Spinoza
Ética de Baruch Spinoza foi uma obra inovadora na filosofia ocidental, porque,
em um momento em que a teologia era tudo, trouxe uma visão naturalista ou
científica do universo. Também se tornou um guia para abordar a vida de
forma racional, e não de modo religioso. De acordo com seu desejo de ser a
voz da razão, o livro adota um estilo quase matemático, copiando a forma de
tratados sobre geometria, com cada termo claramente definido e “provas”
oferecidas para cada proposição feita. Essa forma de fazer filosofia vem sendo
muito copiada por muitos depois dele, como Wittgenstein e outros.
Spinoza vê o mundo como se funcionasse de acordo com rigorosas leis
físicas que não permitem milagres, sem um fim ou objetivo em mente – uma
noção que mais tarde apoiaria o conceito de Darwin da evolução por seleção
natural sem direcionamento. Com tais ideias, podemos ver por que Spinoza é
muitas vezes considerado o primeiro filósofo verdadeiramente moderno, que
tenta excluir o dogma e a superstição para abraçar uma cosmologia naturalista.
Também oferece algumas respostas a respeito de como, em meio às
engrenagens impessoais do universo que parecem não dar espaço para o livre-
arbítrio, uma pessoa pode viver e se elevar ainda mais.
Quando Spinoza terminou de escrever Ética, rumores se espalharam;
teólogos de um lado e seguidores de Descartes de outro estavam “prontos
para dar o bote” se o livro fosse publicado. Nesse clima, Spinoza, que tinha
sido expulso de sua famosa sinagoga holandesa aos 20 e poucos anos por suas
visões “ateístas” e cujas outras obras já tinham tido uma recepção hostil,
decidiu não o imprimir.
Atualmente, é difícil enxergar o porquê de tanto alarde, pois o objetivo de
Spinoza era simplesmente oferecer um tratamento mais funda-mentado da
religião, das paixões humanas e da natureza. Nesse processo, ele realmente
defende, em razoáveis detalhes, a existência de uma divindade, e termina com
uma recomendação do “amor intelectual de Deus”. No entanto, o problema
residia na natureza de Deus de Spinoza, que não era o salvador pessoal do
Novo Testamento, mas sim uma “substância” impessoal que percorre o
universo de acordo com rigorosas leis imutáveis que não fazem concessões
para a singularidade dos seres humanos; somos meramente uma expressão
impermanente da força da vida que corre através do universo. A visão
“panteísta” (Deus manifestado por meio da natureza) era contra o dogma
cristão de uma clara separação entre o criador e a criação.
Aqui vamos olhar aquilo que Spinoza realmente disse e por que tem sido
tão influente.
As pessoas pensam que são livres porque parecem ter vontade, apetites e
desejos, mas nós atravessamos a vida em grande parte ignorantes das causas
reais das coisas; de fato, nunca as conheceremos. Para Spinoza, a vontade é
apenas como o intelecto, simplesmente um “certo modo de pensar”. Nossa
vontade não consegue existir sozinha: “Deus não opera pela liberdade da
vontade”.
Nossa vontade está relacionada a Deus da mesma forma que as leis da física
estão, ou seja, a vontade é posta em movimento, em primeiro lugar, e faz com
que as outras coisas aconteçam ao redor. “As coisas não poderiam ter sido
produzidas por Deus de outra maneira”, observa Spinoza, “e em nenhuma
outra ordem diferente da que foram produzidas.” Se a natureza fosse diferente
do que é, teria exigido que a natureza de Deus fosse diferente do que é. O que
significa que haveria a necessidade da existência de dois ou mais deuses, o que
seria absurdo.
Os seres humanos são capazes de perceber que as coisas podem existir de
qualquer maneira “apenas pela deficiência de nosso conhecimento”, escreve
Spinoza. Como a “ordem de causas não está à mostra para nós”, não
conseguimos perceber que algo é, na verdade, necessário ou impossível. Por
isso, acreditamos erroneamente que é contingente.
No entanto, nada disso serve para dizer que Deus organiza todas as coisas
“para o Bem”, como afirma Leibniz. Esse é um preconceito dos seres
humanos, diz Spinoza, que gostam de acreditar que Deus organizou o universo
para eles. A superstição e a religião desenvolveram-se para que as pessoas
pudessem sentir que eram capazes de ler, na mente de Deus, as causas finais
das coisas e para que elas pudessem permanecer como favoritas de Deus. Mas
esse exercício é um desperdício de tempo; é melhor buscar verdades que
possamos realmente compreender. Por meio da matemática, por exemplo, a
humanidade tem “outro padrão de verdade” para dar sentido a seu mundo.
A natureza de Deus
Spinoza não estava contente simplesmente em concordar com a existência de
Deus ou discordar dela. Ele traz seus grandes poderes de análise para a
questão e conclui o seguinte.
Ele iguala Deus à “substância”, definida como aquela que é a causa de si
mesmo, sem precisar ser criada por qualquer outra coisa. Apenas Deus é,
portanto, totalmente livre, porque ele não tem causa; todo o restante não é
livre, porque é causado ou determinado. Deus é “absolutamente infinito”,
expresso em uma infinidade de “atributos” ou formas, a maioria das quais os
seres humanos conseguem perceber. Não podemos enxergar a substância de
algo, apenas seus atributos – este é o meio pelo qual devemos perceber. Os
atributos de Deus são infinitos, enquanto os atributos de uma pessoa são
muito mais limitados.
Spinoza observa que, se Deus não existe, teria de haver uma razão muito
boa para ele não existir; também haveria a necessidade de existir outra
substância que pudesse causar a existência de Deus ou retirá-la. E, no entanto,
essa outra substância não teria nada em comum com Deus (e, portanto,
nenhum poder sobre Ele) e, assim, não poderia causar ou retirar a existência
de Deus. O único poder de dar ou retirar a existência de Deus encontra-se no
próprio Deus; e, mesmo que Deus tivesse escolhido anular sua existência, esse
ato ainda demonstraria que Ele existe. Além disso, tal contradição não seria
possível “de um Ser absolutamente infinito e sumamente perfeito”. Portanto,
Deus deve existir.
Aquelas coisas que existem têm força, e falta força àquelas que não existem.
Se as únicas coisas que existem são seres finitos, então essas seriam mais
poderosas do que um Ser infinito. No entanto, Spinoza observa que isso seria
absurdo. Portanto, ele reflete que “ou o nada ou um Ser absolutamente infinito
tem que existir”. A partir daí ele conclui:
Ele observa que todos os estados emocionais vêm de três principais afetos:
desejo, prazer e dor. Porém, ao atravessar os milhares de estados emocionais
que “excedem todo cálculo”, ele os enxerga como se servissem a um único e
claro propósito: confirmar a existência de seu corpo e, assim, confirmar que o
“eu” existe; corpo e mente não são separados, conforme Descartes. Aí Spinoza
antecipa a psicologia em seu ponto de vista de que os estados emocionais são
firmemente o produto do cérebro, do sistema nervoso e da sensação corporal,
e não da “alma”.
Spinoza lamenta que, no dia a dia, a maioria de nós seja arrastada por
eventos externos e por nossa reação emocional a eles. No entanto, na última
parte do livro, ele observa que, se tudo acontece de acordo com causas
anteriores, ou necessidade, então não devemos ser afetados demais por nada,
pois tudo se desenrola como deveria. Em vez disso, devemos criar uma
estrutura para lidar com as emoções, com base no conhecimento de que uma
emoção só é superada por outra com a mesma potência. Assim, o ódio deve
ser superado “com amor ou generosidade, e não […] com ódio”.
Um afeto só é mau ou prejudicial na medida em que impede a mente de ser
capaz de pensar. O mais importante é que somos capazes de escolher nossas
reações. Na quarta parte, Spinoza descreve como “servidão” o estado em que
somos enredados pelos afetos, incapazes de nos disciplinar a um estado de
razão.
Tornar-se livre
Spinoza não fala de “moralidade”, apenas de coisas que são feitas de acordo
com a razão. Ele observa que o bem e o mal nada mais são do que
sentimentos de prazer ou dor. Uma coisa é boa se conserva ou melhora nosso
ser, e má se o diminui. O “pecado” não existe naturalmente, mas somente em
uma comunidade ou sociedade; o que constitui o bem ou o mal é “declarado
de comum acordo”. Em outras palavras, o pecado é simplesmente a
desobediência das leis que foram acordadas. Sua compreensão da “virtude”
também é decididamente moderna. A virtude é simplesmente agir de acordo
com nossa própria natureza ou “com base na busca do que é útil para nós”.
Aqui, o conceito “conatus” de Spinoza é importante. Conatus é o desejo de
uma coisa de persistir em ser; não uma luta pela existência ou a “vontade de
poder”, mas um simples desejo de manter seu impulso. “De tudo isso, então”,
observa ele, “é evidente que nem lutamos por uma coisa, nem temos vontade
dela, nem a queremos, tampouco a desejamos porque julgamos que seja boa;
ao contrário, julgamos que uma coisa é boa porque lutamos por ela, temos
vontade dela, a queremos, a desejamos.”
A felicidade também não resulta do desejo ou do prazer, mas da razão.
Razão inclui o conhecimento de nós mesmos e do mundo ao nosso redor
tanto quanto nossa inteligência permite. Tudo o que impede o crescimento de
nossa inteligência não é bom. Em um nível de caráter, as pessoas devem
concentrar-se apenas na “virtude ou na potência humana, e na maneira pela
qual ela possa ser aperfeiçoada”. Não devemos viver de acordo com o que
tememos ou queremos evitar, mas de acordo com a alegria que buscamos ao
viver segundo a razão.
Spinoza faz uma distinção entre ideias “adequadas”, aquelas verdades sobre
a vida que geramos autonomamente, por meio da percepção ou da razão, e que
levam a uma verdadeira ação; e ideias “inadequadas”, aquelas que nos levam a
agir. Viver de acordo com ideias inadequadas leva a um estado passivo no qual
a pessoa está sempre à mercê dos afetos e dos eventos. Não é uma existência
livre. Ele dá alguns exemplos: uma criança acredita que livremente quer leite;
uma criança nervosa busca vingança; um bêbado fala naquilo que parece ser
um jeito livre, mas se arrepende mais tarde do que disse. Loucos, bêbados,
tagarelas e crianças, todos fazem a mesma coisa; não conseguem impedir seus
impulsos. Na maioria dos casos, o que as pessoas acreditam ser suas decisões
são de fato seus apetites, e estes, naturalmente, “variam conforme a disposição
do Corpo varia”. No entanto, por meio da autodisciplina e da razão, nossos
afetos são postos em contexto e vistos por aquilo que são: coisas efêmeras que
não têm verdade elementar. Por meio do “amor intelectual de Deus” (ou da
persistência em mantermos nossa mente concentrada em um reino de
perfeição além de nosso eu mortal), seremos capazes de separar o fato da
ficção, a verdade da realidade.
Nosso objetivo na vida é fazer uma transição de ideias inadequadas para
ideias adequadas, de modo que possamos ver o universo da maneira que Deus
o vê, em vez de nos sujeitarmos a afetos e apegos. Pressagiando a psicologia
cognitiva e ecoando o budismo, Spinoza observa que, quando analisamos um
forte afeto, seu efeito desaparece.
A pessoa sábia vai além de suas paixões e seus apegos ao que Sêneca
chamou de vita beata, a vida bem-aventurada. Spinoza traça um contraste entre
a pessoa sábia – consciente de si mesma, com suas emoções sob controle e em
harmonia com as leis naturais de Deus – e a pessoa ignorante, impulsionada
pelo desejo e distraída, que nunca alcança o autoconhecimento, que “tão logo
deixa de sofrer, deixa também de ser”. Em suma, as pessoas que vivem de
acordo com a razão são muito mais úteis para outras do que aquelas que vivem
apenas de acordo com suas paixões.
O caminho do sábio não é fácil e é muito menos trilhado, mas, conforme a
famosa observação de Spinoza na última linha de Ética, “tudo que é precioso é
tão difícil quanto raro”.
Comentários finais
Certa vez perguntaram a Einstein se ele acreditava em Deus, e ele respondeu:
“Eu acredito no Deus de Spinoza”. Com isso ele quis dizer que acredita em
um universo conduzido não por algum espírito pessoal e intrometido, mas por
leis naturais impessoais.
O que significa ser humano em um mundo como este? Uma clara
implicação, como viu Spinoza, era a necessidade de o governo, que era liberal,
aberto e democrático, permitir uma grande variedade de interesses e crenças, e
seu Tractatus Theologico-Politicus [Tratado Teológico-Político], publicado em 1670,
oferece uma justificativa para a liberdade religiosa. A Holanda de seu tempo
era um dos lugares mais liberais do mundo, mas, mesmo assim, o livre
pensamento de Spinoza lhe trouxe problemas.
Hegel, entre muitos outros, acreditava que o trabalho de Spinoza marcava o
início da filosofia em sua forma moderna, e é bem possível defender que
Spinoza é o Isaac Newton de sua disciplina. Tal era sua tendência naturalista
que, se renascesse hoje, poderíamos estar bem certos de que ele sequer usaria a
palavra “Deus” em seus escritos, mas em vez disso se concentraria na
perfeição infalível das leis segundo as quais o universo funciona.
Baruch Spinoza
Os antepassados judeus de Spinoza fugiram da Inquisição portuguesa e
estabeleceram-se na próspera Holanda. Ele nasceu em Amsterdã, em 1622; seu
pai, Michael, era um comerciante bem-sucedido.
Spinoza recebeu uma boa educação em uma escola judaica que se
concentrava no aprendizado e na memorização da Bíblia hebraica e na
gramática. Ele estava destinado a tornar-se rabino, mas, quando a fortuna da
família minguou, e dentro de um espaço relativamente curto de tempo sua
irmã mais velha, sua madrasta e seu pai morreram, a responsabilidade de
continuar o negócio da família recaiu sobre ele. Ele desempenhava suas
funções, mas também um programa de autoeducação, aprendendo latim e
estudando Descartes. Começou a manifestar dúvidas sobre sua educação
bíblica e a crença nas almas e na imortalidade e, quando correram os boatos
sobre suas visões, sofreu um atentado. Aos 24 anos foi excomungado, e nem
mesmo sua família estava autorizada a falar com ele. Apesar da pressão social e
emocional, Spinoza não desistiu.
Mesmo sendo um pouco recluso, diziam que era prestativo e aberto, e se
tornou popular nos círculos intelectuais da Holanda. Morava em um quarto
alugado sobre o ateliê de um pintor em um dos canais de Amsterdã, e
conseguia uma renda com o polimento de lentes. Morreu em 1677, com
apenas 44 anos, poucos meses depois de seu famoso encontro com Leibniz.
Ética foi publicado logo em seguida.
2007
Em resumo
Queremos fazer com que o mundo pareça um lugar ordenado, mas a
frequência de eventos realmente inesperados deveria nos apontar que não
sabemos de verdade o que causa as coisas.
Na mesma linha
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
Daniel Kahneman, Rápido e devagar (p. 198)
Karl Popper, A lógica da pesquisa científica (p. 316)
Baruch Spinoza, Ética (p. 380)
Slavoj Žižek, Vivendo no fim dos tempos (p. 406)
Nassim Nicholas Taleb
Além disso, o efeito dos cisnes negros está aumentando porque o mundo
está ficando mais complicado. A combinação de baixa previsibilidade e grande
impacto causa um problema para a mente humana, pois nosso cérebro é
constituído para se concentrar no conhecido e no visível.
Taleb imagina dois lugares para expressar nossas formas de ver o mundo.
“Mediocristão” é um Estado em que há uma relação de igualdade entre
esforço e resultado, onde o futuro pode ser previsto e onde a maioria das
coisas se encaixa em uma ampla faixa de médias. “Extremistão” é
intrinsecamente instável, imprevisível, o tipo de lugar em que o vencedor leva
tudo. É neste último que vivemos realmente, e aceitar esse fato é o primeiro
passo para prosperar nele.
Como um “empirista cético”, os heróis de Taleb são David Hume, Sexto
Empírico e Karl Popper. Ele é bastante crítico ao tipo de filosofia concentrada
na linguagem que inunda a academia. Embora seja interessante, ele diz que não
tem nada a ver com o mundo real, um mundo em que as pessoas precisam
viver com a incerteza.
… e como contorná-lo
Gostamos da certeza, mas o sábio enxerga que a certeza é ilusória, que
“compreender como agir segundo informações incompletas é a busca humana
mais elevada e mais urgente”.
Taleb observa que “as sucessões de episódios anedóticos selecionados para
montar uma história não constituem uma prova”. Em vez de tentar confirmar
nossas ideias existentes, devemos, como ensinava Popper, tentar falsificá-las.
Só então poderemos obter um sentido semipreciso da verdade. Quando
fazemos uma aposta financeira, os melhores investidores, como George Soros,
tentam encontrar casos em que sua suposição está errada. Taleb vê essa
“capacidade de olhar o mundo sem a necessidade de encontrar sinais que
afaguem o próprio ego” como a verdadeira autoconfiança. Ele admite que
Comentários finais
É fácil contestar a afirmação de Taleb de que “quase nenhuma descoberta,
nenhuma tecnologia digna de nota, veio de projeto e planejamento – foram
apenas Cisnes Negros”. Por exemplo, a DuPont passou anos desenvolvendo o
náilon, sabendo quanto o material seria valioso; e os medicamentos mais bem-
sucedidos, ainda que muitas vezes tenham surgido de descobertas ao acaso,
precisam de anos de desenvolvimento e planejamento antes de serem
comercializados. Mas Taleb tem razão quando comenta que organizações e
indivíduos precisam se concentrar mais em experimentar do que em planejar,
na probabilidade de que, por meio de constantes tentativas e erros, aumentem
as chances de criação de um cisne negro positivo – uma ideia que varra tudo à
sua frente, um produto que se torne líder de mercado. A outra dica que Taleb
apresenta é ter paciência:
Investigações filosóficas
Em resumo
Linguagem diz respeito a significado, não a palavras. Ainda assim, a
linguagem não pode expressar todo tipo de significado.
Na mesma linha
A. J. Ayer, Language, Truth and Logic (p. 40)
Saul Kripke Naming and Necessity (p. 222)
Bertrand Russell, A conquista da felicidade (p. 338)
Ludwig Wittgenstein
O que é linguagem?
A linguagem simples não consiste em explicação, diz Wittgenstein, é apenas
um guia para as coisas. Assim, quando uma criança começa a falar, é uma
questão de treinamento para ela saber o nome dos objetos. Nenhuma
explicação da linguagem em si é necessária. “Proferir uma palavra é como
tocar uma tecla no piano da imaginação”, escreve ele, em que cada “nota” ou
palavra evoca uma imagem.
Como o significado das palavras em relação às coisas difere de acordo com
o contexto, o tempo e o lugar em que elas são faladas, Wittgenstein não
descreve a linguagem em termos de um conjunto de regras abstratas. Em vez
disso, ele é um “jogo”. Quando crianças, passamos de palavras quase
literalmente “sendo” coisas (por exemplo, a palavra “cadeira” vem a significar
cadeira em nossa mente) para um entendimento de que as palavras significam
as coisas, com o uso de palavras mais abstratas como “isso” e “lá”. Então,
começamos a pensar em termos de categorias. Dessa forma, afirma
Wittgenstein, a linguagem cresce:
Nossa linguagem pode ser vista como uma cidade velha: um labirinto
de vielas e praças, casas novas e antigas e de casas com acréscimos de
diferentes épocas; e ela está cercada por uma multiplicidade de novos
bairros com ruas retas e regulares e casas uniformes.
Linguagem privada
Wittgenstein levanta a questão da “linguagem privada”, ou palavras ou
significados que damos a nós mesmos para descrever certos estados ou
sensações. Esses significados particulares não são realmente uma linguagem,
porque uma linguagem requer alguma configuração social externa na qual seu
significado possa ser confirmado. Ele imagina várias pessoas, cada qual com
uma caixa, dentro da qual elas têm algo que todo mundo vai chamar de
“besouro”. Mas e se o que está nas caixas for totalmente diferente em cada
caso? Isso nos mostra que a denominação das coisas, se for feita de maneira
privada, não é uma denominação de verdade, uma vez que denominar exige o
comum acordo quanto a seu significado. Consequentemente, pensamentos só
têm validade se puderem ser expressos e compreendidos. “Um ‘processo
interior’”, observa ele, “exige critérios externos.”
Outra frase famosa do livro é: “Se um leão pudesse falar, não
conseguiríamos compreendê-lo”. A linguagem depende do acordo comum
quanto a seu significado, e os animais naturalmente têm uma ordem totalmente
diferente de significado. Um leão, por exemplo, vê alguém caminhando através
da savana não como uma “pessoa”, mas como uma potencial fonte de
alimento. Sem concordarmos com o que as coisas significam, como
poderíamos ter uma conversa com um leão, mesmo supondo que ele pudesse
falar? Wittgenstein traz a ideia de entrar em um país estrangeiro. Além das
barreiras de linguagem, não podemos sentir nenhuma relação com as pessoas
simplesmente porque sua maneira de ver o mundo é totalmente diferente da
nossa. Sentimos que elas não “falam nossa língua” – ou seja, nossa linguagem
de significados, não de palavras reais.
Evidência imponderável
Wittgenstein diz que o problema com a psicologia como disciplina é que ela
está tentando estudar os seres humanos em termos de evidências, mas muito
de nosso conhecimento sobre o que motiva as pessoas se baseia em
informações “imponderáveis”. Somos capazes de perceber as sutilezas dos
estados interiores alheios, mas não podemos dizer exatamente como chegamos
a ter esse conhecimento:
Comentários finais
Wittgenstein não tentou negar que temos uma vida interior, só que não se
poderia falar dela de forma lógica. Embora o “jogo da linguagem” seja de
extraordinária profundidade e complexidade, existem áreas da experiência que
nunca podem ser adequadamente expressas na linguagem, e é errado tentar
fazê-lo.
Wittgenstein foi fortemente influenciado por As variedades da experiência
religiosa, de William James, pelo cristianismo filosófico de Kierkegaard e pelos
escritos de Santo Agostinho; apesar de sua ascendência judaica, ele foi criado
católico, e durante seus anos de guerra era impossível separá-lo de sua Bíblia.
Adorava visitar igrejas e catedrais e comentou com seu amigo de Cambridge,
M. O’C. Drury, que “todas as religiões são maravilhosas”. Mas ele era
realmente fiel ou simplesmente gostava dos paramentos da espiritualidade? Se
seguirmos o pensamento do próprio Wittgenstein, isso não importa de
nenhuma maneira, ou pelo menos uma discussão sobre isso não tem
significado, pois não se podem identificar os estados interiores de uma pessoa.
O que realmente importa é como uma pessoa se manifesta. Em um livro de
memórias, Drury relatou que Wittgenstein disse: “Se você e eu tivermos de
levar vidas religiosas, não deve ser porque falamos muito de religião, mas
porque, de alguma forma, nossa vida é diferente”.
Em um relato sobre seu irmão, Hermine admitiu completamente a irritação,
o constrangimento social e a sensibilidade extremos dele, mas também falou de
seu “grande coração”. Sua professora de russo, Fania Pascal, descreveu-o em
termos semelhantes, mas também observou sua “integridade” incomum e a
certeza sobre seus pontos de vista; alguém bom para ter por perto em uma
crise, mas que não perdoava as preocupações e as manias cotidianas dos seres
humanos.
Essas memórias retratam um homem amplamente desinteressado em si
mesmo, ou no eu, e, em vez disso, sugerem um foco no ser útil em um mundo
onde as coisas podem “funcionar bem”. Quando Drury teve dúvidas sobre sua
formação como médico, Wittgenstein lhe disse para não pensar em si mesmo,
apenas no bem que ele poderia fazer. Que privilégio, enfatizou ele, ser o último
a dizer boa-noite aos pacientes ao fim do dia! Embora fosse importante para
ele, Wittgenstein via seu trabalho como apenas mais um “jogo”; a linguagem e
o filosofar não eram nada frente à própria vida.
Ludwig Wittgenstein
Nascido em 1889 em uma família vienense ilustre e culta (sua irmã Margaret
foi pintada por Gustav Klimt), Wittgenstein foi educado em casa,
frequentando a escola apenas nos três anos finais. Na adolescência, foi para
Berlim estudar engenharia mecânica e, em seguida, para Manchester, onde fez
uma pesquisa em aeronáutica. Enquanto estava na Inglaterra, leu The Principles
of Mathematics [Os princípios da matemática], de Bertrand Russell, o que o fez
mudar seu curso em direção à lógica e à filosofia.
Ele se mudou para Cambridge em 1911 e, quando a guerra eclodiu, se
alistou no exército austríaco; abriu caminho por vontade própria até a linha de
frente, recebendo medalhas por bravura, mas se tornou prisioneiro de guerra
na Itália. No campo prisional, ele escreveu o Tractatus.
Entre 1920 e 1926, Wittgenstein não era afiliado a nenhuma universidade.
A escola onde ele lecionou ficava em Trattenbach, uma aldeia montanhesa
austríaca. A casa que ele projetou em Kundmanngasse, Viena, agora é um
museu.
Voltou a Cambridge em 1929 como pesquisador e, mais tarde, foi laureado
com uma cátedra no Trinity College. Faleceu em Cambridge, em 1951.
2010
Em resumo
O capitalismo tornou-se uma ideologia que não permite alternativas, mas é
mal equipado para enfrentar grandes problemas ambientais, científicos e
sociais.
Na mesma linha
Jean Baudrillard, Simulacres et Simulation (p. 54)
Noam Chomsky, Para entender o poder (p. 92)
G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito (p. 158)
Martin Heidegger, Ser e tempo (p. 168)
Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal (p. 292)
Slavoj Žižek
Mantendo as aparências
Ao escrever sobre a organização Wikileaks, Žižek alega que o alvo real de suas
atividades não são Estados individuais ou os políticos, mas a estrutura de
poder em si, inclusive os detratores “aceitos” do poder (a imprensa,
organizações não governamentais, e assim por diante). O “sucesso” do
Wikileaks é um sinal de que a ordem existente já não pode se conter ou se
controlar. Nem é tanto porque os segredos foram expostos, mas porque a
demonstração de poder não pode mais continuar do jeito que está:
Ele menciona um sacerdote italiano que foi suspenso pelo Vaticano por
admitir em uma entrevista que era homossexual, enquanto centenas de
sacerdotes pedófilos continuaram impunes. Sua observação baudrillardiana de
que “o que importa é a aparência, não a realidade” poderia ser o julgamento de
Žižek sobre toda a Idade Moderna. Ele escreve:
O fracasso da tolerância
Um dos motivos principais pelos quais Žižek não é aceito pela esquerda
socialista tradicional são suas visões decididamente “incorretas”. Uma delas diz
respeito à tolerância. Ele não é contra ela, em princípio, mas “me oponho à
percepção (contemporânea e automática) do racismo como um problema de
intolerância. Por que há tantos problemas hoje percebidos como problemas de
intolerância, em vez de problemas de desigualdade, exploração ou injustiça?
Por que o remédio proposto é a tolerância, em vez de emancipação, luta
política ou mesmo a luta armada?”.
Assim, nós nos desdobramos tanto para sermos vistos como bons
multiculturalistas que ficamos cegos à possibilidade de que alguém possa ser
intolerante porque foi relegado à marginalidade econômica e enxerga os outros
como responsáveis por seu sofrimento. Se eles se sentissem iguais, com
direitos e com dinheiro, sua intolerância derreteria.
Liberais ocidentais não querem criticar o islamismo porque seria
“desrespeitoso” às reivindicações de verdade da religião. Mas a adesão à
ideologia do multiculturalismo e da tolerância só funciona na medida em que a
pessoa não é pessoalmente afetada. Quando as pessoas são afetadas (por
exemplo, quando os homossexuais dos Países Baixos começaram a ser
atacados por muçulmanos do país e, como resultado, muitos se alinharam a
partidos de direita que lutam pelo fim da imigração vinda de países árabes),
vemos a superficialidade dessas ideologias. A tolerância, afirmou Žižek em
entrevistas, é apenas uma “maneira descafeinada de ver o Outro” na sociedade.
O que identifica outros fundamentalistas muçulmanos e cristãos é sua
tentativa desesperada de mudar o mundo segundo seu modo de pensar, o que
sugere uma profunda falta de convicção. Eles exteriorizam isso atacando
outros que apenas insinuam blasfêmia ou críticas. Nossa tolerância
politicamente correta à crença fundamentalista apenas incita o ressentimento
do fundamentalista, e o fato de que a mera tolerância o enfurece deveria nos
mostrar que ela não funciona como um princípio social.
Comentários finais
Žižek acredita que, em sua forma atual (tomada por interesses corporativos
garantidos), a democracia simplesmente reflete a ideologia hegemônica atual e
não pode provocar o que Alain Badiou chama de “Evento da Verdade”, algo
que realmente mudará a ordem existente. Quanto mais um indivíduo ou um
grupo investiu na ordem atual, mais disposto estará a defender as mentiras.
Apenas os desfavorecidos podem dizer as coisas exatamente como elas são,
pois não têm nada a perder.
“A tarefa de hoje”, diz ele, “é, portanto, inventar uma nova forma dessa
distância em relação ao Estado, ou seja, um modo novo de ditadura do
proletariado.” Ele tenta delinear o que um ethos comunitário poderia alcançar.
Seria principalmente um protetor da “área comum”, “aquele espaço universal
da humanidade do qual ninguém deve ser excluído”. A área comum inclui o
ambiente em que vivemos e que, em última análise, ninguém pode possuir; a
área comum biogenética, que não deveria estar aberta à exploração; e a área
comum cultural, que não deveria ser capaz de ser sequestrada por qualquer
grupo particular ou ideologia. Porém, como Žižek prontamente admite, todas
as tentativas de organização comunitária foram sabotadas pela própria natureza
humana (nosso desejo de possuir ou dominar) e resultaram em regimes
horríveis que embruteceram a criatividade e a liberdade. Se sua visão é sempre
de se aproximar da realidade, ela terá de ser baseada em como os seres
humanos realmente são, e não em como gostaríamos que fossem.
As contradições e a complexidade de Vivendo no fim dos tempos podem
simplesmente refletir o estilo de Žižek, mas também espelham o nosso tempo.
Žižek compartilha com Hegel a crença de que a filosofia põe todas as outras
áreas do conhecimento – política, sociologia, psicologia, economia – em
perspectiva. Para ele, a filosofia é apenas como Nietzsche descreveu: a rainha
das disciplinas, com poder para moldar o mundo.
Slavoj Žižek
Žižek nasceu em 1949, em Liubliana, Eslovênia (então parte da Iugoslávia
comunista). Seu pai era economista e funcionário público, sua mãe, contadora
em uma empresa de propriedade do Estado. Ele se doutorou em filosofia na
Universidade de Liubliana antes de ir a Paris estudar psicanálise.
De volta à Eslovênia, Žižek foi incapaz de conseguir um cargo na
universidade, passou vários anos no serviço nacional e então ficou
desempregado. No final da década de 1970, fazia parte de um grupo de
intelectuais eslovenos concentrados no trabalho do filósofo psicanalítico
Jacques Lacan e, na década de 1980, traduziu Freud, Lacan e Althusser para o
esloveno. No final de 1980, publicou um livro sobre a teoria cinematográfica,
escreveu para a revista alternativa Mladina e era um ativista que lutava pela
democracia na Iugoslávia. Quando a Eslovênia conquistou a independência em
1990, candidatou-se à presidência (sem sucesso). Era casado com a filósofa
eslovena Renata Salecl, e sua segunda esposa foi Analia Hounie, modelo
argentina.
Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia (1989) foi seu primeiro
livro escrito em inglês e fez seu nome nos círculos internacionais de teoria
social. Outros livros incluem O sujeito incômodo (1999), Como ler Lacan (2006),
Em defesa das causas perdidas (2008), Primeiro como tragédia, depois como farsa (2009) e
Menos do que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético (2012).
O filme Žižek: a realidade do virtual (2007) concentra-se em sua vida e sua
obra; também foi o apresentador do filme O guia pervertido do cinema (2006). Ele
é professor de filosofia e psicanálise na European Graduate School, na Suíça, e
leciona na Universidade de Nova York.
Mais 50 clássicos da filosofia
A maioria das grandes obras da filosofia teve várias traduções e/ou editores.
Portanto, a lista abaixo não é definitiva, mas um guia para as versões utilizadas
nas pesquisas deste livro. Muitas das obras já estão em domínio público e estão
disponíveis gratuitamente on-line.8