Você está na página 1de 515

Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou

forma sem a prévia autorização da Editora Saraiva.


A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610/98 e punido
pelo artigo 184 do Código Penal.

ISBN 9788557173217

Copyright © Tom Butler-Bowdon, 2013

Tom Butler-Bowdon assegurou seu direito de ser identificado como autor desta obra em
conformidade com o Copyright, Designs and Patents Act 1988.

Título original: 50 Philosophy Classics

Publicado pela primeira vez em inglês em 2013 pela Nicholas Brealey Publishing.

Todos os direitos reservados.

Butler-Bowdon, Tom
50 clássicos da filosofia: as principais ideias das mais importantes obras
filosóficas, da Antiguidade à era moderna / Tom Butler-Bowdon; tradução de Petê
Rissatti. -- São Paulo: Benvirá, 2019.
432 p.
Bibliografia
ISBN 9788557173217
Título original: 50 Philosophy Classics
1. Filosofia - Miscelânea 2. Filósofos 3. Literatura filosófica I. Título II. Rissatti,
Petê
19-1717
CDD 100
CDU 1

Índices para catálogo sistemático:


1. Filosofia - Miscelânea

Preparação: Renato Potenza Rodrigues


Revisão técnica: Jean Rodrigues Siqueira

Revisão: Laila Guilherme

Diagramação: Fernanda Matajs

Capa: Deborah Mattos

Livro digital (E-pub)

Produção do e-pub Guilherme Henrique Martins Salvador

1ª edição, setembro de 2019

Todos os direitos reservados à Benvirá, um selo da Saraiva Educação, parte do grupo


Somos Educação. Av. das Nações Unidas, 7221, 1º Andar, Setor B Pinheiros – São Paulo –
SP – CEP: 05425-902

Dúvidas?

Acesse sac.sets@somoseducacao.com.br

CL 670883
Sumário

Introdução

1 | Hannah Arendt A condição humana


2 | Aristóteles Ética a Nicômaco
3 | A. J. Ayer Language, Truth and Logic
4 | Julian Baggini The Ego Trick
5 | Jean Baudrillard Simulacres et Simulation
6 | Simone de Beauvoir O segundo sexo
7 | Jeremy Bentham Princípios da moral e da legislação
8 | Henri Bergson A evolução criadora
9 | David Bohm Totalidade e a ordem implicada
10 | Noam Chomsky Para entender o poder
11 | Cícero Dos deveres
12 | Confúcio Os analectos
13 | René Descartes Meditações sobre filosofia primeira
14 | Ralph Waldo Emerson Fate
15 | Epicuro Cartas
16 | Michel Foucault As palavras e as coisas
17 | Harry Frankfurt Sobre falar merda
18 | Sam Harris Free Will
19 | G. W. F. Hegel Fenomenologia do Espírito
20 | Martin Heidegger Ser e tempo
21 | Heráclito Fragmentos
22 | David Hume Investigação sobre o entendimento humano
23 | William James Pragmatismo
24 | Daniel Kahneman Rápido e devagar
25 | Immanuel Kant Crítica da razão pura
26 | Søren Kierkegaard Temor e tremor
27 | Saul Kripke Naming and Necessity
28 | Thomas Kuhn A estrutura das revoluções científicas
29 | Gottfried Leibniz Ensaios de Teodiceia
30 | John Locke Ensaio sobre o entendimento humano
31 | Nicolau Maquiavel O príncipe
32 | Marshall McLuhan O meio é a massagem
33 | John Stuart Mill Sobre a liberdade
34 | Michel de Montaigne Os ensaios
35 | Iris Murdoch A soberania do bem
36 | Friedrich Nietzsche Além do bem e do mal
37 | Blaise Pascal Pensamentos
38 | Platão A República
39 | Karl Popper A lógica da pesquisa científica
40 | John Rawls Uma teoria da justiça
41 | Jean-Jacques Rousseau Do contrato social
42 | Bertrand Russell A conquista da felicidade
43 | Michael Sandel Justiça
44 | Jean-Paul Sartre O ser e o nada
45 | Arthur Schopenhauer O mundo como vontade e como
representação
46 | Peter Singer Quanto custa salvar uma vida?
47 | Baruch Spinoza Ética
48 | Nassim Nicholas Taleb A lógica do cisne negro
49 | Ludwig Wittgenstein Investigações filosóficas
50 | Slavoj Žižek Vivendo no fim dos tempos

Mais 50 clássicos da filosofia


Glossário
Créditos
Agradecimentos
Introdução

“A filosofia é, ao mesmo tempo, a mais sublime e a


mais trivial das empreitadas humanas. Age nos
recônditos mais ínfimos e abre as paisagens mais
amplas. Ela não ‘põe o pão na mesa’, como dizem, mas
pode inspirar nossa alma com coragem; e por mais
que frequentemente suas maneiras, suas dúvidas e
seus desafios, seus subterfúgios e suas dialéticas
sejam repelentes para pessoas comuns, nenhum de
nós consegue avançar sem a luz de alcance longínquo
que ela envia sobre as perspectivas do mundo.”
William James, Pragmatismo

A palavra “filosofia” vem do grego philo (amor) e sophia (sabedoria). Tanto


como disciplina quanto como perspectiva pessoal, a filosofia trata do desejo de
pensar, existir, agir e ver da melhor maneira – para chegar à verdade das coisas.
O Oxford English Dictionary define filosofia como “o uso da razão e da
argumentação na busca da verdade e do conhecimento da realidade,
especialmente das causas e da natureza das coisas e dos princípios que regem a
existência, o universo material, a percepção de fenômenos físicos e do
comportamento humano”. Em outras palavras, a filosofia é o pensamento de
alto nível para estabelecer o que é verdadeiro ou real, dados os limites do
pensamento e os sentidos humanos, e as implicações disso sobre o nosso
modo de agir.
Embora a filosofia tenha múltiplas correntes, seu foco naquilo que
podemos realmente saber é, talvez, sua característica mais evidente. O
questionamento constante de suposições da disciplina tem irritado muitas
pessoas, até mesmo os seus próprios praticantes – “Filósofos têm levantado
poeira e depois reclamam que não conseguem enxergar”, comentou George
Berkeley –, ainda mais em nossa era, com extremos e incertezas aparentemente
crescentes, o foco da filosofia naquilo que pode ser conhecido mostra seu
valor. De fato, como Nassim Nicholas Taleb enfatiza em seu livro A lógica do
cisne negro, o que importa é o que não sabemos, porque é sempre o imprevisto
que muda nosso mundo, tanto pessoal quanto público.
Talvez a grande divisão na filosofia seja entre aqueles que acreditam que
todas as nossas informações devem vir dos sentidos (a visão empírica,
materialista) e aqueles que acreditam que a verdade pode ser alcançada por
meio do raciocínio abstrato (os racionalistas e os idealistas). O primeiro campo
tem uma longa linhagem, do cético do século II Sexto Empírico ao inglês
Francis Bacon e o pensador escocês do Iluminismo David Hume, até os
“positivistas lógicos” do século XX, incluindo A. J. Ayer e o filósofo da ciência
Karl Popper. O segundo campo conta com Platão (sua teoria das “Formas”
não físicas que sustentam o universo), Descartes (sua famosa separação entre
mente e matéria) e Kant (que ressuscitou a ideia de “lei moral” na filosofia
moderna). O propósito deste livro não é lhe dizer quem está “certo”, mas
apresentar algumas das ideias e teorias famosas para ajudar você a se decidir.
Como William James observou em Pragmatismo, os filósofos gostam de
acreditar que estão erigindo sistemas imparciais e rigorosos para explicar a
ação humana e o universo, quando, na realidade, as filosofias são expressões de
inclinações e perspectivas pessoais. A filosofia é feita pelos filósofos: pessoas
imperfeitas que oferecem sua versão da verdade. No entanto, é isso que a torna
interessante, e este livro, além de descrever algumas das principais teorias
filosóficas, tenta dar uma ideia de quem as concebeu. Até que ponto o
pensamento deles era simplesmente uma projeção de suas mentes ou eles
conseguiram chegar ao âmago de algo universal?
Como já escrevi livros sobre textos clássicos de psicologia, espiritualidade e
desenvolvimento pessoal, a pergunta mais válida para mim era: o que a
filosofia oferece que essas áreas não fornecem? No fim das contas, como ela
tem uma metodologia experimental, muitos acreditam que a psicologia é uma
disciplina mais confiável quando se trata de questões humanas. No entanto,
como Wittgenstein observou em Investigações filosóficas, às vezes o método
científico pode ocultar uma falta de profundidade conceitual. O que é
realidade? O que significa ser humano? Qual é o sentido da vida? Nietzsche
afirmava que a filosofia é a única “meta” disciplina de fato, feita para
considerar a totalidade das coisas. Embora se possa dizer que a teologia e a
espiritualidade são projetadas para tais questões, o que lhes falta é a
neutralidade necessária para uma verdadeira disciplina aberta a todos.
Não significa que a filosofia seja “científica”. Bertrand Russell observou
que cabe à ciência conhecer mais os fatos, enquanto o trabalho da filosofia é
estabelecer concepções e leis válidas por meio das quais a ciência pode ser
vista. Em vez de a ciência envolver a filosofia (uma crença do físico Stephen
Hawking), é a filosofia que pode ajudar a levar os dados brutos e as teorias
científicas a um contexto maior. A ciência é um projeto muito humano, e se ela
é a tentativa de fazer nossas teorias se encaixarem na natureza, então é com a
natureza humana que temos de lidar primeiro. Para saber para o que estamos
olhando, devemos ter consciência das lentes através das quais podemos vê-lo;
ou seja, como vemos o mundo. Sabemos, por exemplo, que a antiga
perspectiva newtoniana do universo com seu foco na matéria não dá conta da
realidade estranha e fluida que a física quântica sugere. A filosofia está bem
equipada para olhar essas incertezas em virtude do seu foco sobre a
objetividade e a própria consciência. No século XX, o físico de partículas
David Bohm teve de recorrer à filosofia para explicar o movimento de elétrons
em seu microscópio. Ele concluiu que não era possível interpretar o mundo
em termos de a mente olhando a matéria; ao contrário, a consciência é, pelo
menos, um elemento tão importante no funcionamento do universo quanto a
matéria em si. Neste livro, estas e outras questões fascinantes são analisadas
com mais profundidade.
Além do primeiro significado oferecido anteriormente, o Oxford English
Dictionary define filosofia como “uma regra pessoal de vida”.
Todos nós temos uma filosofia, e ela molda tudo o que fazemos. Nossa
perspectiva mais ampla do mundo em geral é a coisa mais interessante e
importante sobre nós, expressando “nossa noção mais ou menos estúpida do
que a vida significa sincera e profundamente”, como William James escreveu
em Pragmatismo. Longe de ser algo reservado aos nobres professores, nossa
filosofia é prática; mal conseguiríamos funcionar sem tê-la. Como G. K.
Chesterton escreveu:

Para uma senhoria considerar um inquilino, é importante conhecer sua


renda, mas ainda mais importante é conhecer sua filosofia […] para
um general prestes a lutar contra um inimigo, é importante conhecer
os números do inimigo, mas ainda mais importante é conhecer a
filosofia do inimigo […] a questão não é se a teoria do cosmos afeta as
coisas, mas se, a longo prazo, alguma outra coisa as afeta.

Evidentemente, há uma diferença entre uma filosofia pessoal e a disciplina


filosofia; este livro busca estabelecer uma ponte entre as duas. Não se trata
daquilo que uma determinada filosofia diz ou significa isoladamente, mas o
que isso pode significar para mim ou você – se pode aumentar nossa qualidade
de vida, orientar nossas ações no mundo ou lançar luz sobre nosso lugar no
universo.
Seja com Aristóteles ou Epicuro fornecendo receitas para uma vida feliz e
plena ou Platão descrevendo a sociedade ideal, as ideias desses pensadores
antigos continuam poderosas, mesmo que seja porque os seres humanos não
mudaram muito em mais de 2 mil anos. A filosofia é ressurgente porque as
grandes questões nunca desaparecem, e ela fornece conceitos prontos para
abordá-las. A genialidade da filosofia é que, apesar da sua falta de objetividade,
ela ainda tem o poder de enviar uma “luz de alcance longínquo” sobre o
mundo, permitindo-nos ver as coisas de um jeito novo.
A filosofia não nos dá apenas uma estrutura para enxergar todos os outros
conhecimentos, mas, em um nível mais pessoal e empolgante, nos oferece
maneiras renovadas e muitas vezes libertadoras de pensar, ser, agir e ver.

Pensar
Os limites do nosso conhecimento, a noção do eu
A filosofia trata primeiro de como pensar, e, considerando a propensão
humana de entender as coisas erroneamente, com frequência isso significa
questionar as bases de nosso conhecimento. Descartes envidou grandes
esforços para mostrar como a mente poderia ser facilmente enganada por
dados vindos dos sentidos e, a partir daí, imaginou como seria possível afirmar
que qualquer coisa realmente existe. No entanto, a partir dessa posição de
extrema dúvida, ele fez sua descoberta: com certeza, se ele tinha a capacidade
de ser enganado em seu pensar, tinha de haver um “eu” que estava
vivenciando o engano. Ele escreveu:

Concluí, portanto, que eu era uma substância cuja essência ou natureza


consiste unicamente em pensar e que, para existir, não precisa de lugar
e não depende de qualquer coisa material.

Mesmo se formos constantemente enganados sobre o que percebemos


como fato, não se pode duvidar que percebemos. Antes de tudo, estamos
“pensando as coisas”. A consciência é nossa essência, e aquilo de que temos
mais consciência somos nós mesmos: o que estamos pensando, como estamos
fazendo, o que faremos a seguir, o que sabemos. Como Descartes bem
colocou: “Penso, logo existo”.
David Hume e John Locke acreditavam que o único conhecimento em que
poderíamos confiar era aquele derivado diretamente de nossos sentidos, e
Hume foi ainda um passo adiante, sugerindo que os seres humanos são
simplesmente um feixe de pensamentos, impressões e sentimentos que a
qualquer momento oferecem uma sensação de ser um “eu”, mesmo que essa
identidade não tenha um núcleo sólido. Longe de possuir uma alma imortal,
somos mais como um banquete de experiências e percepções em constante
movimento, portanto a certeza e o conhecimento continuam sendo ilusão. O
filósofo contemporâneo Julian Baggini apoia a teoria do feixe de Hume,
lançando mão da neurociência para mostrar que nosso sentido de “eu” não
pode ser localizado em parte nenhuma do cérebro ou do sistema nervoso. Em
vez disso, muitas partes trabalham em conjunto para criar a sensação de um eu
autônomo e dotado de livre-arbítrio. Isso pode ser uma grande “artimanha do
ego” ou uma ilusão, mas torna a vida administrável.
A filosofia é associada com a busca de autoconhecimento, mas Iris
Murdoch é outra filósofa que questionou a ideia de que existe algum núcleo
eterno que temos a missão de revelar. Ela escreve em A soberania do bem:

O “autoconhecimento”, no sentido de uma compreensão diminuta de


seu próprio maquinário, parece-me, exceto em um nível bastante
simples, geralmente uma ilusão […] O eu é tão difícil de ver de forma
correta quanto outras coisas e, quando a visão clara é alcançada, o eu
se transforma em um objeto correspondentemente menor e menos
interessante.

Por outro lado, Murdoch diz que essa falta de solidez própria não deve nos
impedir de nos esforçar para melhorar a nós mesmos. É natural e certo nos
esforçarmos para sermos perfeitos, mesmo se formos acossados por
deficiências de percepção e de falta de coragem.
Em Os ensaios, Michel de Montaigne realizou um exame controverso do eu
usando seus próprios preconceitos e fraquezas como objeto e chegou à
conclusão de que o eu é um mistério: o conhecimento humano é limitado a
ponto de quase não sabermos nada sobre nós mesmos, e muito menos sobre o
mundo em geral. Estamos pensando continuamente, mas, em vez dos seres
racionais que supomos ser, somos uma massa de preconceitos, caprichos e
vaidades.
A falibilidade humana é um rico filão para se explorar, e alguns escritos
recentes trazem percepções especiais sobre essa área. Daniel Kahneman
ganhou o Prêmio Nobel por seu trabalho sobre propensões e erros que
cometemos no pensar cotidiano. Em Rápido e devagar, ele afirma que somos
uma “máquina de tirar conclusões precipitadas”, desenvolvida mais para se
manter viva e reagir a ameaças do que para ter uma percepção precisa. Nassim
Nicholas Taleb também aborda esse tema, constatando que acreditamos
entender mais do que está acontecendo no mundo do que realmente
entendemos; muitas vezes atribuímos erroneamente significado a
acontecimentos depois que eles já ocorreram, criando uma história; e
supervalorizamos fatos, estatísticas e categorias, o que nos deixa confortáveis
para poder prever o futuro. Nosso choque com eventos inesperados mostra o
quanto essa sensação de que estamos no controle é ilusória e, no entanto, não
tentaríamos nem metade das coisas que fazemos se tivéssemos uma imagem
mais fiel do que podemos alcançar em um determinado período de tempo.
Visto dessa forma, o erro não é um defeito da condição humana, mas parte de
sua glória futura. De fato, como observa Kahneman, o foco sobre os erros
“não é uma crítica à inteligência humana, da mesma forma que a atenção às
doenças em textos médicos não rejeita a boa saúde. A maioria de nós é
saudável na maior parte do tempo, e a maioria de nossas decisões e ações é
adequada na maior parte do tempo”.
No mesmo tom positivo, até o arquiempirista Karl Popper (A lógica da
pesquisa científica) – que também desconfiava dos sentidos e propôs um padrão
extremamente difícil para a aceitação de qualquer verdade científica – afirmou
que é papel e privilégio da humanidade teorizar sobre as leis que governam o
universo. Podemos ser fisiologicamente configurados para fazer coisas erradas
a maior parte do tempo, mas nossa capacidade de pensar de uma maneira
vagamente lógica – para usar um termo mais antigo, razão – nos torna únicos
no mundo animal.

Ser
As possibilidades de felicidade e de uma vida significativa, livre-
arbítrio e autonomia
Desde a Antiguidade, filósofos têm sugerido que a felicidade resulta do
afastamento do eu; ou nos jogando em causas ou em um trabalho importante
para nós ou soltando as amarras do ego por meio da apreciação da natureza,
do amor ou da prática espiritual.
Para Epicuro, a virtude contribuiria para uma vida agradável e feliz, pois
fazer a coisa certa naturalmente coloca nossa mente em repouso. Em vez de
ficarmos angustiados com as consequências de nossas más ações, ficamos
liberados para desfrutar de uma vida simples com amigos, filosofia, natureza e
pequenos confortos.
Aristóteles acreditava que a felicidade vem de expressar aquilo que
decidimos racionalmente ser bom para nós a longo prazo, como um serviço à
comunidade. Tudo na natureza é construído com um fim ou um objetivo em
mente, e o que é único aos seres humanos é a capacidade de agir segundo a
nossa razão e virtudes pré-selecionadas. Uma pessoa feliz é aquela que é
estável através do cultivo da virtude, que torna os caprichos da fortuna
irrelevantes. “As atividades em acordo com a virtude guiam a felicidade”, disse
Aristóteles. Portanto, a felicidade não é o prazer, mas um subproduto de uma
vida significativa, e a importância tende a vir do empenho e da autodisciplina.
Bertrand Russell registrou quase a mesma ideia em sua obra de caráter
muito pessoal A conquista da felicidade. Ele escreveu que o esforço, ainda mais
que o sucesso, é um ingrediente essencial da felicidade; uma pessoa que é
capaz de satisfazer todos os seus caprichos sem esforço considera que a
realização dos desejos não contribui para a felicidade. Um foco sobre o eu é
uma causa de infelicidade, ao passo que a alegria vem de direcionar nossos
interesses para fora, jogando-nos para dentro da vida.
Leibniz foi parodiado por Voltaire ao sugerir que o mundo em que vivemos
é “o melhor dos mundos possíveis”, mas sua verdadeira intenção era mais
sutil. O melhor mundo possível não é aquele projetado especificamente para a
felicidade humana. Os seres humanos são movidos pelo autointeresse e têm
ciência do bom resultado de tudo o que acontece. Vemos as coisas em termos
de causa e efeito, mas nossa apreciação da relação entre elas é obviamente
limitada. Leibniz argumentou que apenas um ser supremo tem a visão geral de
como tudo se encaixa, e nosso papel é confiar nessa benevolência de intenção.
É famosa sua frase de que vivemos em um mundo que é o melhor possível,
embora pareça conter uma grande quantidade de maldade, porque “uma
imperfeição na parte pode ser necessária para uma maior perfeição no todo”.
Mas e se você acreditar, como os existencialistas, que o universo não tem
nenhum propósito ou significado? A resposta de Sartre era viver
“automaticamente”, escolher seu próprio destino, em vez de aceitar cegamente
as regras da sociedade ou as “leis morais” da época. Ele escreveu: “O homem
está condenado a ser livre, pois, uma vez lançado ao mundo, é responsável por
tudo que fizer”. A partir de tal premissa pouco promissora, Sartre desenvolveu
uma filosofia da liberdade que não dependia de nenhum Deus, atraindo toda
uma geração ávida para viver de seu próprio modo.
Essa perspectiva supõe que somos seres autônomos com livre-arbítrio. Mas
somos mesmo? Spinoza, Schopenhauer e Montaigne, entre outros, defenderam
que estamos sujeitos a causas e forças maiores que nós, das quais podemos ter
apenas uma vaga consciência. Free Will [Livre-arbítrio], de Sam Harris, nos
conta da investigação que sugere que o livre-arbítrio é uma ilusão: nossas ações
são produto de estados cerebrais, que são eles próprios resultado de causas
anteriores, que, por sua vez, são geradas por um universo sobre o qual não
temos controle nenhum. Sentimos como se tivéssemos livre-arbítrio porque
nosso cérebro está configurado para nos dar essa feliz ilusão. Aonde isso nos
leva? O ponto crucial de Harris é que, independentemente de onde venham,
ainda temos intenções conscientes, e o objetivo é tentar cumprir essas
intenções. Em um nível puramente racional ou científico, esse é o “sentido” da
vida.
Heidegger alega que é impossível para nós não considerar nossa existência
significativa. Eu amo, eu ajo, eu tenho um impacto – essa é a natureza do meu
ser. Além disso, há o fato surpreendente de termos consciência. Por que eu
tenho esse nível avançado de consciência enquanto uma ovelha ou uma rocha
não tem? Heidegger diz que o ser humano é “lançado” no mundo em um
determinado lugar, tempo e situação que não são de sua escolha, e viver quer
dizer dar sentido a esse “cair” no espaço e no tempo. Sentimos a obrigação de
fazer algo com a nossa vida e, felizmente, viemos equipados com as
capacidades de fala e ação, que nos dão a oportunidade de revelar algo de nós
mesmos. Uma vida boa é aquela em que agarramos as possibilidades que
temos e fazemos algo a partir delas. Considerando a rica matéria-prima de
nossa consciência e ambiente, a vida é inerentemente significativa.
Hannah Arendt observou que, enquanto a natureza pode ser um processo
inexorável de viver e morrer, a humanidade recebeu uma forma de sair desse
processo por meio da capacidade de agir. Ela escreveu em A condição humana:
“Os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para
começar”. Outros animais só podem comportar-se de acordo com seus
instintos de sobrevivência e impulsos programados, mas nós, seres humanos,
podemos ir além de nossas necessidades biológicas egoístas para trazer à vida
algo novo, cujo valor pode ser reconhecido de forma social e pública. Nossos
feitos nunca são muito previsíveis, e cada nascimento traz consigo a
possibilidade de um mundo alterado. Resumindo, nós temos importância.

Agir
O poder e seu uso, liberdade e justiça, equidade e ética

Aja apenas segundo uma máxima que você queira que se torne uma lei
universal.

O “imperativo categórico” de Immanuel Kant apregoa que as ações indivi­-


duais serão julgadas segundo a seguinte pergunta: nós estaríamos satisfeitos se
todos na sociedade realizassem a mesma ação? As pessoas nunca devem ser
vistas como um meio para atingir um fim. Embora este princípio seja
defendido pelas religiões do mundo, Kant estava determinado a mostrar que
ele também tinha um sentido filosófico e racional. Ele acreditava que a lei
moral era tão imutável quanto as estrelas à noite e que, se formos contra ela,
estaremos fadados a ser frustrados e infelizes. Ao fazermos o que é certo,
criamos para nós mesmos um mundo de ordem e paz.
O orador romano Cícero acreditava que cada indivíduo é uma centelha ou
uma lasca de Deus, e, assim, tratar outro ser humano mal é como agir contra
nós mesmos. Para ele, é um simples fato da lei universal. Somos animais
sociais, nascidos para o bem do outro, e o objetivo da vida é simples:
“Contribuir para o bem geral por um intercâmbio de atos de bondade, dando e
recebendo, e, assim, por meio de nossa habilidade, de nossa indústria e de
nossos talentos, cimentar a sociedade humana mais estreitamente, de homem
para homem”. Cícero almejava destruir a ideia de que a pessoa às vezes precisa
sacrificar o fazer “o que é certo” em prol do fazer o que for conveniente. Ele
escreve em Dos deveres que fazer o que é certo é sempre o que é conveniente.
Platão acreditava que fazer a coisa certa é a própria recompensa, uma vez
que harmoniza as três partes da alma (razão, espírito e desejo). Agir com
justiça não é um extra opcional, mas o eixo em torno do qual a existência
humana deve girar; a vida não tem sentido se lhe faltar ação bem-intencionada.
E, embora a justiça seja uma necessidade absoluta para o indivíduo, é também
o elemento central de um bom Estado, o que ele descreve em A República.
Alguns séculos antes, na China, Confúcio disse praticamente a mesma
coisa, observando que, embora nasçamos humanos, nos tornamos uma pessoa
por meio do cumprimento de papéis responsáveis na sociedade de uma forma
altruísta. A pessoa sábia ama a virtude mais do que qualquer coisa e sempre
buscará o melhor resultado para todos, sem ponderações egoístas. Afinal,
somos apenas um elo de uma cadeia do ser que se estende ao passado e ao
futuro.
Em Quanto custa salvar uma vida?, o filósofo contemporâneo Peter Singer cita
Epicuro: “É impossível levar uma vida agradável sem também viver de forma
sensata, nobre e justa”. A boa vida não consiste apenas em ter boa saúde,
propriedades, carros novos e feriados, mas em pensar e agir sobre o que pode
ser feito para tornar o mundo mais justo. O raciocínio de Singer para
contribuição pessoal a fim de acabar com a pobreza é um lembrete de como a
filosofia pode ser poderosa para o mundo real.
Essa perspectiva utilitarista nos leva até Jeremy Bentham, no século XVIII.
Bentham passou a vida promovendo seu princípio da “maior felicidade ao
maior número de pessoas”. Seu desejo era criar uma legislação para a
felicidade, uma ideia radical, pois no seu tempo as leis da Grã-Bretanha eram
mais voltadas para a proteção de interesses estabelecidos em vez de trazer o
maior benefício a todos. Nesse sentido, Bentham enfrentou uma batalha difícil,
mas era apaixonado por sua crença de que o utilitarismo era a melhor
esperança para uma sociedade justa e civilizada.
Em seu livro de referência, Uma teoria da justiça, John Rawls pede que
imaginemos que todo mundo em uma sociedade perdeu sua memória sobre
seu lugar e seu status e, em seguida, que configuremos uma nova sociedade
baseada em conceder a máxima oportunidade para todos florescerem.
Considerando que na loteria da vida poderíamos ter nascido tanto pobres
quanto reis, não nos esforçaríamos para garantir que todos tivessem ao menos
uma oportunidade igual de sucesso? Para começar, a desigualdade de riqueza
ou status somente deveria surgir onde houvesse pleno acesso para se competir
por esses recursos ou prêmios. Nenhum sacrifício precisa ser feito para haver
um “bem maior”, como no utilitarismo, e as pessoas vão aceitar as
desigualdades de riqueza e status, contanto que saibam que elas ou seus filhos
têm chance igual de alcançar esses objetivos. A filosofia de Rawls está na
mesma tradição de Rousseau, que acreditava que uma sociedade livre eleva e
enobrece os seus cidadãos, mas também implica responsabilidades e uma
disposição de abrir mão de um tanto de liberdade pessoal em prol das
necessidades do todo.
A atemporal argumentação de John Stuart Mill acerca da liberdade
individual, Sobre a liberdade, continha seu famoso princípio do “dano” para
assegurar liberdade: “O único propósito pelo qual o poder poderá ser
legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada,
contra a sua vontade, é para evitar dano a outrem”. Um governo não deve
impor uma lei apenas porque é considerada pelo “bem” do povo. Em vez
disso, a menos que uma ação do cidadão seja manifestamente ruim para
outros, ela deve ser permitida. Mill notou a tendência de o poder do governo
aumentar e de as liberdades individuais se erodirem, a menos que isso seja
monitorado e mantido em xeque. Mas esse fato, e seu alerta aos movimentos
rasteiros do governo, não significa que os governos não tinham legitimidade.
Então, qual é o equilíbrio correto entre a liberdade pessoal e a necessidade
de controle do Estado? Mill descreve isso como “a questão do futuro”, e, de
fato, continuamos a lidar com ela atualmente. Como Platão defendeu em A
República, deveríamos ficar felizes por viver com algumas liberdades restritas e
aceitar o nosso lugar na sociedade, considerando as alternativas de exílio ou a
vida para além de leis. O problema, como Maquiavel enfatizou com
sinceridade brutal em O príncipe, é que o cidadão comum simplesmente não
considera o que é preciso para manter um Estado poderoso e pode continuar a
viver uma vida moral, enquanto os governantes precisam tomar decisões
“sujas”. Visto há muito como uma inspiração para tiranos, O príncipe estabelece
de fato uma defesa fundamentada no exercício de poder: não é para o
autoengrandecimento do governante, mas sim pela força do Estado – e de um
Estado forte que seja desejável, pois permite que as pessoas floresçam e
prosperem. Apenas com este fim em mente, meios desagradáveis podem às
vezes ser justificados.
Noam Chomsky, uma perene pedra no sapato da complacência liberal
ocidental, tem uma visão similarmente obscura do poder. Ele acredita que a
maioria dos Estados contemporâneos é configurada para servir aos interesses
do poder, e o verdadeiro inimigo dos que estão no poder é sua população; a
maioria das guerras é projetada para tirar a atenção da situação interna.
Embora o foco de Chomsky sejam os Estados Unidos, sua mensagem é a de
que a natureza corruptora do poder é universal. E, no entanto, ele observa
motivos para otimismo. É menos aceitável agora tratar as pessoas como
objetos ou meios para um fim (“A escravidão era considerada legal até pouco
tempo atrás”, ele escreve), e, mesmo se as estruturas de poder apenas fazem
elogios falsos à liberdade, à autodeterminação e aos direitos humanos, pelo
menos eles são ideais reconhecidos.
Talvez a última palavra sobre a moralidade e o poder deva ir para Iris
Murdoch, que defende em A soberania do bem que, se buscarmos o bem
primeiro, tudo o mais que vale a pena virá até nós naturalmente. Ao contrário,
se buscarmos apenas a vontade muscular, isso é tudo que teremos no fim das
contas. Como Kant sugeriu, as boas intenções são tudo.

Ver
A caverna de Platão e a verdade, a filosofia como um problema
linguístico, a vida em um mundo midiático
A alegoria da caverna de Platão é uma das mais famosas passagens da filosofia,
que continua a ressoar por causa de sua sugestão surpreendente de que a
maioria de nós cruza a vida perseguindo sombras e a aparência das coisas,
quando o tempo todo existem as “formas” eternas da Verdade, da Justiça, da
Beleza e do Bem, que esperam para ser reconhecidas. Kant também acreditava
que, como seres humanos existentes no espaço e no tempo, e com as
limitações de nossos sentidos, estamos impedidos de perceber as coisas como
elas realmente são (“coisas em si”). Mas há uma verdade metafísica elementar
por trás do mundo de percepções, e, por meio da razão, podemos ao menos
nos aproximar um pouco dela.
Filósofos modernos têm se alinhado para descartar essas noções,
salientando que somos animais com um cérebro que percebe e organiza os
fenômenos de determinadas maneiras. O conhecimento baseia-se apenas no
que vem através de nossos sentidos e não na visão metafísica, e ciência é uma
questão de aumentar a nossa objetividade. Hegel, no entanto, argumentou que
a análise objetiva é uma ilusão, pois as coisas só existem no contexto da
percepção do observador; a consciência é tão parte da ciência quanto o mundo
de objetos que ela se propõe a analisar. Para Hegel, a verdadeira história da
ciência não é a “descoberta do universo”, mas sim a descoberta de nossa
própria mente – da própria consciência. História, ciência e filosofia são
simplesmente expressões de como a consciência despertou ao longo do
tempo.
A grande e holística ideia de Hegel do despertar do “Espírito” ou da
consciência nos assuntos humanos saiu da moda filosófica, pois as guerras e as
depressões pareciam contrariar a ideia de que a história tinha um sentido
positivo. De fato, como o filósofo da ciência Thomas Kuhn mostrou em A
estrutura das revoluções científicas, e Michel Foucault também observou, o
conhecimento não procede em uma linha pura para cima, com um edifício de
descobertas sobre o outro; em vez disso, cada era tem uma lente através da
qual se vê o mundo, e algo é percebido como real apenas se a lente permite
que seja visto assim.
Quem quer que esteja aqui, qualquer avaliação de nossa capacidade de
compreender o mundo deve precisamente envolver a linguagem. Em
Investigações filosóficas, Wittgenstein admitiu que tinha se equivocado na visão
expressa anteriormente em seu Tractatus Logico-Philosophicus de que a linguagem
é um meio de descrever o mundo. As palavras não apenas nomeiam as coisas;
muitas vezes elas transmitem um significado elaborado, e muitos significados
diferentes a partir da mesma palavra. A linguagem não é uma lógica formal
que marca os limites de nosso mundo, mas um jogo social em que a ordem do
jogo é livre e evolui. Ele comentou que problemas filosóficos surgem apenas
quando filósofos enxergam a nomeação de alguma ideia ou conceito como de
grande importância, quando na realidade o significado contextual é o que
importa. É uma ideia famosa de Wittgenstein que a filosofia é uma batalha
constante contra o “enfeitiçamento” da disciplina pela própria linguagem. Essa
foi uma espetada na tradição analítica da filosofia (cujos adeptos incluíam
Bertrand Russell e A. J. Ayer), que via o uso abusivo da linguagem como um
cartão de boas-vindas para muita metafísica sem sentido, considerando que sua
boa utilização poderia nos dar uma imagem mais fiel da realidade.
Em Naming and necessity, o brilhante Saul Kripke revelou as falhas dessa
concepção, observando que o significado de algo não será encontrado em
descrições dadas, mas em suas propriedades essenciais. Uma pessoa, por
exemplo, é simplesmente o que é, e nenhuma porção de precisão de linguagem
vai adicionar, remover ou provar essa identidade. O ouro não é definido pelas
descrições que fazemos dele, como “metal amarelo, brilhante”, mas sim por
sua propriedade essencial, o elemento atômico 79.
De Platão a Kant, de Hegel a Wittgenstein, uma ideia é recorrente ao longo
da história da filosofia: o mundo não é simplesmente como nós o percebemos
ou descrevemos. Se usamos os termos “formas”, “coisas em si” ou
“propriedades essenciais”, há uma realidade subjacente que talvez não seja
óbvia para os sentidos. David Bohm foi um famoso físico teórico que se
transformou em filósofo e, em Totalidade e a ordem implicada, apresentou um
caso convincente da existência de duas ordens da realidade: a implicada e a
explicada. Embora a última seja o “mundo real”, que podemos perceber com
nossos sentidos, ela é simplesmente o desdobramento de uma mais profunda,
a realidade “implicada” que contém todas as possibilidades. As duas fazem
parte de um grande “holomovimento”, um todo fluido da realidade, que é
muito similar à totalidade do universo de que Heráclito falava. Apenas os seres
humanos dividem as coisas em partes e categorias.

***

A obsessão histórica da filosofia com as perguntas “O que é real?” e “O que é


a verdade?” é vista por alguns analistas como um elemento distrativo. Jean
Baudrillard declarou que, no mundo saturado pela mídia em que habitamos
atualmente, a “realidade” não tem significado nenhum. Em um universo hiper-
real, algo é real somente se pode ser reproduzido incessantemente, e o que não
se pode compartilhar eletronicamente não existe. Hoje, uma pessoa não é um
projeto na sua individualidade, buscando o que é “verdadeiro”, e sim se
assemelha mais a uma máquina que consome e reproduz ideias e imagens.
Baudrillard foi influenciado por Marshall McLuhan, que alegava que a mídia
de massa e a tecnologia de comunicação não são invenções neutras, mas, na
verdade, mudam a maneira como somos. Antes do advento do alfabeto, o
principal órgão sensorial da humanidade era o ouvido. Depois, o olho se
tornou dominante. O alfabeto nos fez pensar em como uma frase é
construída: de forma linear e com a ligação sequencial dos fatos ou conceitos.
O novo ambiente de mídia é multidimensional, as informações da mídia agora
vêm até nós tão rapidamente que não temos mais a capacidade de categorizá-
las de forma adequada e lidar com elas em nossa mente. As crianças criadas
hoje em dia não têm apenas seus pais e professores para influenciá-las; elas
estão expostas a todo o mundo. Como a famosa declaração de McLuhan diz:

Nosso mundo é um mundo totalmente novo de tudo ao mesmo


tempo agora. O “tempo” cessou, o “espaço” desapareceu. Vivemos
agora em uma aldeia global […] um acontecimento simultâneo.

Neste novo mundo de mídia, a alegoria da caverna de Platão ainda é


significativa? Perdemos toda a chance de perceber o real e o verdadeiro, e isso
importa? Essas perguntas vão levar a filosofia ao futuro, mas uma coisa é certa:
não podemos continuar a nos ver como entes separados da tecnologia. Como
os novos pensadores “transumanistas” sugerem, já não estamos em um mundo
em que as pessoas simplesmente usam tecnologia; as máquinas fazem parte de
nós e serão cada vez mais extensões do nosso corpo – através delas
perceberemos nós mesmos e o mundo.

Palavra final
Hegel tinha uma visão incomumente expansiva e generosa da filosofia. Como
observa no famoso prefácio à Fenomenologia do Espírito, filósofos convencionais
veem seus objetos de estudo como um campo de posições concorrentes em
que apenas se pode dizer que um sistema “vence”. Assumem a perspectiva de
um campo de batalha de ideologias. Hegel, por sua vez, adotou uma visão
abrangente da disciplina: cada filosofia concorrente tinha seu lugar, e, com o
passar do tempo, seu empurra-empurra permitiu “o desdobramento
progressivo da verdade”. Colocando isso em termos botânicos, ele escreveu
que os botões são esquecidos quando arrebentam em flor, e a flor, por sua vez,
dá lugar à fruta, que revela a verdade ou a finalidade da árvore. O objetivo de
Hegel era libertar a filosofia de sua parcialidade e mostrar a verdade do todo.
Era melhor enxergar a variedade e a riqueza da cultura e da filosofia como um
grande projeto.
O teólogo e filósofo Tomás de Aquino escreveu no Comentário ao tratado
Do céu, de Aristóteles:

O estudo da filosofia tem como finalidade saber não o que as pessoas


têm pensado, mas sim a verdade sobre como as coisas são.

Essa é a nossa meta, mas saber o que as pessoas têm pensado ainda pode
nos ajudar. Se você não tem uma visão sólida da vida, nestas páginas
encontrará muitos conceitos poderosos por meio dos quais é possível ver ou,
melhor ainda, desafiar sua visão de mundo. Para nós, é natural querer a certeza,
mas, se existe algum tipo de conhecimento absoluto, ele não será alterado ou
movido por nosso questionamento. Portanto, você não tem nada a perder ao
estudar as grandes obras da filosofia; ao contrário, tem tudo a ganhar.

O que está no livro e por quê


A lista de 50 títulos não tem a pretensão de ser definitiva,
mas sim de dar uma noção de alguns dos principais textos
da filosofia ocidental antiga e moderna, com uma pitada
de Oriente também. Eu adoraria incluir filósofos de todas
as partes do mundo e de todos os tempos, mas este livro,
no mínimo, dá um gostinho do que a vasta literatura inclui.
Ao fim dele, você encontrará uma lista de mais 50
clássicos, a maioria dos quais poderia constar no texto
principal se não houvesse limite de espaço.
O foco ficará menos na categorização habitual das
escolas filosóficas, períodos, “ologias” e “ismos”, que é a
norma em textos introdutórios ou acadêmicos. Este é um
guia de filosofia para a pessoa leiga. Aqui você não está
recebendo treinamento de nada, apenas – é o que se
espera – iluminação. Dito isso, a filosofia, como qualquer
campo, tem terminologia e linguagem próprias, por isso há
um glossário no final do livro com os termos mais comuns
para ajudar você.
A filosofia como uma seção formal da academia tem uma
história relativamente curta. Epicuro começou sua escola
no jardim de uma casa em Atenas, e hoje existem clubes
de filosofia no mundo todo que se reúnem em bares e
casas. A filosofia é uma coisa viva, e suas questões
continuarão no centro da existência humana. Para tanto,
juntamente com muitos dos indiscutíveis grandes nomes
da filosofia, a lista de 50 inclui algumas obras
contemporâneas que, embora talvez ainda não sejam
verdadeiros clássicos, trazem insights reais.
Em termos de estrutura, a ordenação alfabética pelo
sobrenome do autor e não cronológica pode parecer
contraintuitiva, porém, ao ordenar os livros dessa forma, a
possibilidade de forçar uma categorização a você diminui,
e você pode fazer conexões próprias entre ideias, escritos,
épocas e pessoas. Você pode escolher e ler os comentários
que parecem mais interessantes, mas também pode achar
que ler o livro do início ao fim vai lhe dar mais uma
sensação de viagem, podendo fazer descobertas
inesperadas ao longo do caminho.
1958

A condição humana

“Com palavra e ação, nós nos inserimos no mundo


humano, e essa inserção é como um segundo
nascimento, no qual confirmamos e assumimos para
nós mesmos o fato cru de nossa aparência física
original. Essa inserção […] se inicia quando entramos
no mundo ao nascermos e à qual reagimos ao
iniciarmos algo novo por iniciativa própria.”

“A tarefa e a grandeza potencial dos mortais residem


em sua capacidade de produzir coisas – obras, ações e
palavras – que mereceriam estar e, ao menos em um
certo grau, estão confortáveis na eternidade.”

Em resumo
É da natureza do ser humano fazer o inesperado, e cada nascimento traz
consigo a possibilidade de um mundo alterado.

Na mesma linha
Henri Bergson, A evolução criadora (p. 76)
Martin Heidegger, Ser e tempo (p. 168)
Hannah Arendt

Hannah Arendt, nascida na Alemanha, foi uma das principais intelectuais do


século XX, ganhando destaque com seu estudo sobre Hitler e Stalin, As origens
do totalitarismo (1951), e, em seguida, alcançando a fama com Eichmann em
Jerusalém (1962), um estudo sobre o julgamento do nazista Adolf Eichmann,
que incluía seu conceito de “banalidade do mal”.
A condição humana é a melhor expressão do alcance de sua filosofia. Embora
seja erudita (Arendt era especialista em Roma e Grécia clássicas) e, muitas
vezes, difícil, é verdadeiramente original e, embora possa ser estudada como
uma obra de filosofia política, oferece também uma teoria muito inspiradora
do potencial humano.

O milagre do nascimento e a ação


Arendt diz que a natureza é essencialmente cíclica, um processo interminável e
inexorável de viver e morrer que “apenas traz destruição” aos seres mortais.
No entanto, foi concedida aos seres humanos uma maneira de fugir disso por
meio da capacidade de agir: a ação livre interfere na lei inexorável da morte ao
se começar algo novo. “Os homens, embora devam morrer, não nascem para
morrer, mas sim para começar algo novo.”
Esse é o conceito de “natalidade” de Arendt, inspirado na famosa
afirmação de Santo Agostinho de “que houve um princípio, o homem foi
criado”. Arendt escreve:
É da natureza do início que algo novo seja iniciado, que não pode se
esperar de qualquer coisa que possa ter acontecido antes […] O novo
sempre acontece frente aos esmagadores obstáculos das leis estatísticas
e de sua probabilidade que, para todos os efeitos práticos do cotidiano,
se resume à certeza; portanto, o novo sempre aparece sob o disfarce de
um milagre. O fato de que o homem é capaz de agir significa que o
inesperado pode ser esperado dele, que ele é capaz de realizar o
infinitamente improvável. E isso, de novo, apenas é possível porque
cada homem é único, de modo que, a cada nascimento, algo
exclusivamente novo vem ao mundo.

Nascer é um milagre em si, mas a verdadeira glória está na forma como


confirmamos nossa identidade por meio de nossas palavras e ações. Enquanto
os animais podem se comportar apenas de acordo com seus impulsos e
instintos de sobrevivência programados, os seres humanos podem agir, indo
além de nossas necessidades biológicas egoístas para criar algo novo, cujo valor
pode ser reconhecido de forma social e pública. (Como Sócrates bebendo a
cicuta por escolha própria, ou alguém que dá a vida pelo outro, podemos até
mesmo agir contra nosso instinto de sobrevivência.) E, por conta dessa
capacidade de tomar decisões verdadeiramente livres, nossas ações nunca são
muito previsíveis. Arendt diz que a ação, “analisada do ponto de vista dos
processos automáticos que parecem determinar o curso do mundo, soa como
um milagre”. Nossa vida é “a improbabilidade infinita que ocorre
regularmente”. Em seus outros escritos, ela sugere que a essência dos regimes
fascistas está em sua negação dessa natalidade, ou possibilidade individual, e
isso é o que os torna tão repugnantes.

O perdão e a manutenção das promessas


Arendt recorda a ênfase de Jesus de Nazaré na ação, especialmente no ato de
perdoar, como ponto importante da história, pois essa descoberta concedeu a
nós, e não apenas a Deus, o poder de anular ações passadas. Jesus pôs esse
poder quase no nível dos milagres físicos, considerando sua capacidade de
transformar situações mundanas. Arendt escreve:

Somente por meio dessa constante libertação mútua daquilo que


fazem, os homens poderão continuar sendo agentes livres, somente
pela constante disposição de mudar a mente e recomeçar é que
poderão receber em confiança um poder tão grande para começar algo
novo.

Considerando que o desejo de vingança é automático e, portanto, uma ação


previsível, o ato de perdoar, por parecer ir contra as reações naturais, nunca
poderá ser previsto. O perdão tem o caráter de uma verdadeira ação bem
pensada e, nesse sentido, é mais humano do que a reação animalesca da
vingança, porque ele livra tanto quem perdoa quanto quem é perdoado. Esse
tipo de ação é a única coisa que impede vidas humanas de se debaterem do
nascimento até a morte sem um significado real.
Arendt concorda com Nietzsche que a capacidade de fazer promessas e
cumpri-las também diferencia os seres humanos de outros animais. Nossa
falibilidade básica é o preço que pagamos por nossa liberdade, mas
desenvolvemos maneiras de manter nossas promessas, desde costumes sociais
até contratos jurídicos. Os atos de perdão e de manutenção de promessas ­-
redimem a humanidade e nos levam a um novo nível. Eles também são ações
criativas que confirmam nossa singularidade. Da maneira como essas ações são
expressas, “ninguém jamais é igual a qualquer outro que já tenha vivido, vive
ou viverá”.

Labor, trabalho e ação


Arendt delineia as três atividades humanas fundamentais de labor, trabalho e
ação:
• O labor é a atividade de viver, crescer e, por fim, se deteriorar que todos
os seres humanos vivenciam; basicamente se manter vivo. Ela diz que “a
condição humana do labor é a própria vida”.
• O trabalho é a atividade não natural que os seres humanos rea­lizam
dentro de um mundo natural, que pode transcender ou sobreviver a este
mundo, conferem “uma medida de permanência e durabilidade à
futilidade da vida mortal e ao caráter fugaz do tempo humano”.
• A ação é a única atividade que não exige coisas ou matéria e, portanto, é a
essência do ser humano. A ação também transcende o mundo natural,
porque “os homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o
mundo”. Com isso Arendt quer dizer que os seres humanos são animais
gregários e políticos que buscam fazer coisas que sejam reconhecidas
pelos outros.

Redescobrindo a glória
Arendt observa que, na Grécia e na Roma antigas, o que importava era o que
se fazia na esfera pública. A vida e as perspectivas do povo pobre e aqueles
sem direitos políticos (inclusive os escravos e as mulheres) eram
essencialmente realizadas em casa; esse domínio privado, independentemente
de seus benefícios, não trazia consigo nenhuma perspectiva de influência ou de
ação real. Ao contrário, os homens de posses, livres da necessidade de
trabalhar para sobreviver e da faina doméstica maçante e diária, podiam ser
atores no palco público, agindo para melhorar ou fazer progredir toda a
sociedade.
Em nosso tempo, observa ela, é a casa que se tornou o ponto focal, e
fomos reduzidos a consumidores sem paciência para a política. Buscamos a
felicidade ao renunciar ao privilégio de fazer coisas que podem mudar o
mundo e beneficiar muitas pessoas. A antiga missão em busca de glória parece
estranha para nós, até mesmo desagradável, mas, ao nos revertermos para
sermos meros chefes de família, estamos abrindo mão de nosso potencial para
ter uma vida de verdadeira ação autônoma (o que ela chama de vita activa):

A distinção entre homem e animal permeia a própria espécie humana:


apenas os melhores (aristoi), que constantemente provam ser os
melhores e que “preferem a fama imortal às coisas mortais”, são
realmente humanos; os outros, contentes com quaisquer prazeres que
a natureza lhes traz, vivem e morrem como animais.

Por meio do amor nossa glória é revelada


Os seres humanos podem saber tudo o que há para saber sobre o mundo
natural ou sobre o mundo dos objetos, mas sempre lhes faltará o
conhecimento de si (“saltando sobre nossas próprias sombras”, como diz
Arendt). Ela observa que o que somos é o nosso corpo, mas quem somos é
revelado em nossas palavras e ações. Vamos saber quem uma pessoa é não por
ser “a favor” ou “contra” ela, mas simplesmente por conviver com ela. Com o
passar do tempo, quem a pessoa é inevitavelmente será revelado; assim, as
pessoas vivem juntas não apenas para conseguir apoio emocional ou material,
mas pelo puro prazer de ver outras pessoas revelarem seu caráter. O que é
mais interessante para nós sobre um ato não é o ato em si, mas o agente que
ele revela. A maior revelação de uma pessoa, nós chamamos de “glória”.
Ainda assim, quem somos talvez nunca seja conhecido por nós; é algo que
só pode ser visto completamente pelos outros:

Pois o amor, ainda que seja uma das ocorrências mais raras na vida
humana, possui, na verdade, um inigualável poder de autorrevelação e
uma inigualável clareza de visão para revelar quem somos,
precisamente porque é indiferente, ao ponto da completa não
mundanidade, com aquilo que a pessoa amada talvez seja, com suas
qualidades e defeitos e também com suas realizações, fracassos e
transgressões. Amor, em virtude de sua paixão, destrói o “entre” que
nos relaciona com os outros e nos separa deles.

Nossa capacidade de agir dá a toda a nossa vida um novo começo,


oferecendo esperança e fé totalmente justificadas. Por que fé? Porque, se
tivermos o conhecimento fundamental de que as pessoas podem agir e podem
mudar, então, como consequência, devemos ter fé não somente nelas, mas
também nas pessoas que amamos e na raça humana em geral.
O belo paradoxo que Arendt nos deixa é que somente por meio do amor
(que por sua natureza é não mundano, privado e apolítico) somos energizados
para termos um efeito real na vida pública.

Comentários finais
A conclusão de biólogos e sociólogos nos últimos trinta anos de que as
pessoas são moldadas por suas conexões cerebrais, seus genes e seu ambiente
muito mais do que havia se pensado parece despejar um balde de água fria
sobre as teorias de ação e decisão de Arendt.
E, no entanto, do ponto de vista da história, que no fim das contas é a
soma de milhões de decisões individuais, seria errado sugerir (como Hegel e
Marx o fizeram) que a história da humanidade envolve uma certa
inevitabilidade. Ao contrário, como uma das principais influências de Arendt,
Martin Heidegger fez questão de salientar os indivíduos. Para Arendt, a
história é a crônica do exceder as expectativas. As pessoas fazem coisas
incríveis que, muitas vezes, nem mesmo elas esperam fazer.
Nas últimas páginas de A condição humana, Arendt admite que a “sociedade
de detentores de empregos” que nos tornamos permite que as pessoas
abandonem sua individualidade e se comportem como se fossem
simplesmente uma “função”, em vez de atacar de frente o problema de viver e
realmente pensar e agir por si próprias. Simplesmente se tornam um reflexo
passivo de seu ambiente, um animal avançado em vez de uma pessoa real,
consciente, decidida. Para Arendt, ser grande é reconhecer que não se é
simplesmente um animal com vários impulsos de sobrevivência nem
meramente um consumidor com “gostos” ou “preferências”. O nascimento de
uma pessoa foi realmente um novo começo, uma oportunidade para algo que
antes não estava lá vir ao mundo.
Pode demorar um pouco para se entenderem as distinções de Arendt entre
labor, trabalho e ação, e só é possível compreender plenamente seu
pensamento em uma segunda ou terceira leitura. No entanto, em sua crença no
poder da ação humana e da imprevisibilidade, A condição humana é um trabalho
verdadeiramente inspirador.

Hannah Arendt
Nascida em Hanôver, Alemanha, em 1906, Arendt cresceu em Konigsberg, em
uma família judia. Seu pai morreu de demência sifilítica quando ela estava com
apenas 7 anos, mas ela era próxima da mãe, uma social-democrata alemã ativa.
Após o ensino médio, Arendt estudou teologia na Universidade de Marburgo,
onde um de seus professores foi Martin Heidegger. Teve um caso com ele (ele
era casado) antes de ir para a Universidade de Heidelberg. Com seu mentor, o
filósofo Karl Jaspers, concluiu a tese de doutorado sobre o conceito de amor
no pensamento de Santo Agostinho.
Arendt se casou em 1930. Como a influência do partido nazista cresceu, ela
foi impedida de lecionar em universidades alemãs e envolveu-se na política
sionista, trabalhando a partir de 1933 para a Organização Sionista Alemã. A
Gestapo a prendeu, mas ela fugiu para Paris, onde trabalhou para outra
organização, ajudando a resgatar crianças judias da Áustria e da
Tchecoslováquia. Em 1940, ela se divorciou de seu primeiro marido, casou-se
com Heinrich Blücher, e alguns meses mais tarde o casal foi confinado em
campos alemães no sul da França. Eles escaparam e viajaram aos Estados
Unidos. Arendt recebeu cidadania americana em 1951. Durante a década de
1950, ela se aproximou dos círculos intelectuais de Nova York, que incluíam
Mary McCarthy, trabalhou como editora e desenvolveu o livro As origens do
totalitarismo.
Arendt tornou-se a primeira professora de política na Universidade de
Princeton e também lecionou na Universidade de Chicago, na Universidade
Wesleyan e na New School for Social Research de Nova York. Ela faleceu em
1976. Os primeiros dois volumes de sua autobiografia, A vida do espírito (1978),
e suas Lições sobre a filosofia política de Kant (1982) foram publicados
postumamente. Uma boa biografia sua foi escrita por Elisabeth Young-Bruehl,
Por amor ao mundo: a vida e a obra de Hannah Arendt (1982).
Século IV a .C.

Ética a Nicômaco

“[Nós] nos tornamos construtores construindo e nos


tornamos harpistas tocando harpa. Da mesma forma,
então, nos tornamos justos praticando ações justas,
moderados praticando ações moderadas, corajosos
praticando ações corajosas.”

“E assim como os prêmios dos Jogos Olímpicos não


são para os melhores e mais fortes, mas para os
participantes (uma vez que apenas esses vencem), o
mesmo vale na vida; entre as belas e boas pessoas,
somente aqueles que agem corretamente ganham o
prêmio.”

Em resumo
A felicidade vem de expressar o que decidimos racionalmente ser bom para
nós no longo prazo. A felicidade não é prazer, mas um subproduto de uma
vida significativa.

Na mesma linha
Hannah Arendt, A condição humana (p. 24)
Epicuro, Cartas (p. 132)
Platão, A República (p. 308)
Bertrand Russell, A conquista da felicidade (p. 338)
Aristóteles

Tão grande era sua autoridade sobre uma variedade de assuntos, da física à
biologia até a psicologia, que, ao longo de toda a Idade Média, Aristóteles ficou
conhecido simplesmente como “o filósofo”. Dante chamava-o de “mestre
daqueles que sabem”. Aristóteles foi uma influência decisiva para Tomás de
Aquino e também filósofos islâmicos, como Averróis.
O rigor e a busca implacável de Aristóteles para categorizar tudo tiveram
um enorme impacto sobre o pensamento filosófico e científico ao longo dos
últimos 2 mil anos, instituindo uma maneira muito lógica e racional de
enxergar as coisas que é a essência da civilização ocidental.
Costuma-se dizer que a história da filosofia pode ser dividida entre
platonistas e aristotélicos. Enquanto Platão acreditava que tudo que
percebemos no mundo físico tem uma realidade metafísica subjacente e que a
“verdade” está por trás ou além do mundo das aparências, seu aluno
Aristóteles era muito mais um filósofo “mão na massa”, interessado no mundo
como nós o vemos. Depois de estudar por vinte anos sob a tutela de Platão,
Aristóteles chegou à conclusão de que nossa compreensão do mundo é
necessariamente baseada em nossos cinco sentidos; sua mente analítica
rigorosa desmantelava as coisas até suas partes integrantes, incluindo
elementos aparentemente vagos como felicidade e virtude.
A Ética a Nicômaco (dedicada a seu filho) é a melhor expressão da filosofia
moral de Aristóteles. Atualmente, seus trabalhos científicos são de interesse
principalmente para os especialistas, mas a Ética a Nicômaco continua a ser
influente, proporcionando uma receita para uma vida boa que ainda é discutida
e aplicada nos dias de hoje; seu conceito de eudaimonia (“felicidade”, em
tradução livre), por exemplo, moldou o movimento contemporâneo da
psicologia positiva. Embora o trabalho tenha sido compilado a partir de
anotações de aulas, e por isso pareça um pouco incompleto e não polido, pode
ser lido sem grandes dificuldades.

Qual é a nossa função?


Sendo distinto do conceito de Platão de “forma”, que indica a realidade
subjacente às coisas, Aristóteles usa forma simplesmente para se referir à sua
ordem ou estrutura. Para entender o que um objeto é (quer seja uma cadeira
ou uma pessoa), é necessário conhecer sua função. Por exemplo, nós não
apreciamos um barco como pedaços unidos de madeira, mas como algo que
pode nos conduzir através da água. A “causa final” de Aristóteles diz que tudo
na natureza é construído com um fim ou objetivo em mente: uma árvore ou
uma pessoa é programada para florescer de uma determinada maneira e usa as
condições disponíveis para fazê-lo.
No entanto, qual função podemos dizer que é a dos seres humanos? Não
basta crescer, pois isso nos igualaria a uma planta, nem simplesmente ver, ouvir
ou cheirar, pois temos isso em comum com um cavalo ou um boi. Aristóteles
afirma que o que é único para nós é a capacidade de agir segundo a nossa
razão. A essência da coisa é a forma como ela é organizada, e os humanos,
com sua capacidade de organizar a própria mente e as próprias ações, são
únicos na natureza. Uma pessoa, em última instância, consiste nas virtudes que
tem cultivado e nas escolhas que fez, então, aquele que organiza a vida de
acordo com as mais elevadas virtudes pode se tornar grandioso.
Não se apreende a identidade de alguém ao vê-lo como uma coleção de
bilhões de células, mas pelo que o diferencia; é na valorização de suas virtudes
ou de sua arte ou habilidades aprimoradas ao longo da vida que podemos
compreender sua essência ou função. Um flautista ou um escultor, assim diz
Aristóteles, estão fazendo bem se estiverem tocando a flauta soberbamente ou
esculpindo com grande força. O sucesso depende do cumprimento da função.

Alcançar a felicidade
O ponto de partida da teoria ética de Aristóteles é a felicidade, porque ele
acreditava que as pessoas são criaturas racionais que tomam decisões que
levarão a seu sumo último. Embora eudaimonia seja frequentemente traduzida
como “felicidade”, também pode ser lida como “fazer bem”, “sucesso” ou
“florescimento”.
Como seres racionais, nossa maior felicidade vem de escolhas que fazemos
por meio da razão. Desenvolvemos o que é melhor para nós no longo prazo, e,
ao seguir esse caminho, a felicidade chega como um subproduto. Uma vida de
mero prazer, uma vez que nos priva de atividade racional e funcional ao longo
de uma existência em busca de um objetivo, não vai nos tornar felizes. O
caminho mais virtuoso é aquele que nos proporciona o maior prazer ge­nuíno
(em vez de efêmero). O prazer de ler um romance leve ou um thriller, por
exemplo, não oferece o grande significado e a satisfação que se consegue com
a leitura de uma obra de Tolstói.
A maioria das pessoas simplesmente busca uma vida de gratificação, mas
Aristóteles não acredita que elas sejam melhores que “animais de pasto”. Para
termos uma “vida plena”, precisamos combinar ação com virtude, refinando
constantemente a nós mesmos e desenvolvendo nossas habilidades. A
felicidade genuína surge por meio do trabalho em nós mesmos e em nossos
objetivos ao longo do tempo. “Uma andorinha só não faz verão, tampouco um
dia”, diz Aristóteles, “nem, da mesma forma, um dia ou um curto espaço de
tempo nos torna abençoados e felizes.” Ele descreve o próprio tempo como
“um bom parceiro na descoberta”, revelando tanto a nossa natureza como a
do mundo.
A amizade faz parte de uma vida boa e plena, diz Aristóteles, porque
promove a partilha de raciocínio e pensamento. Por meio da ação plenamente
justificada e construtiva, ajudamos os amigos a alcançar seus objetivos, e, ao
fazê-lo, nossas qualidades racionais ou nosso caráter são ampliados.
Naturalmente, isso nos faz felizes. O mesmo princípio aplica-se à comunidade
ou cidade em que vivemos. Trabalhando para sua melhoria, é natural que
fortaleçamos nosso caráter e, portanto, aumentemos nossa felicidade.
Por último, Aristóteles considera o estudo uma das grandes fontes de
felicidade, se não a maior, pois nos permite a expressão plena da nossa
natureza racional. Ao apreciarmos verdades científicas ou filosóficas e
incorporá-las ao nosso conhecimento, estamos atingindo o auge do que é ser
humano.
A agradável conclusão de Aristóteles é de que a felicidade não é
predeterminada pelo destino ou pelos deuses, mas pode ser adquirida de forma
habitual pela expressão consciente de uma vida virtuosa por meio do trabalho,
da diligência ou do estudo. Ele diz: “[Nós] nos tornamos construtores ­-
construindo e nos tornamos harpistas tocando harpa. Da mesma forma, então,
nos tornamos justos praticando ações justas, moderados praticando ações
moderadas, corajosos praticando ações corajosas”. Em outras palavras, nós
nos tornamos pessoas bem-sucedidas pelo hábito.
Não deveríamos julgar a vida de uma pessoa de acordo com seus altos e
baixos, mas pelas virtudes duradouras que desenvolve e expressa. Essa é a
verdadeira medida do sucesso. Uma pessoa bem-sucedida e feliz é aquela que é
estável por meio do cultivo da virtude, que torna os caprichos da fortuna
irrelevantes. É essa estabilidade, nobreza e magnanimidade que mais
admiramos. “As atividades segundo a virtude guiam a felicidade”, diz
Aristóteles.

Ação e decisão
Platão acreditava que a mera apreciação da virtude é o bastante para tornar
uma pessoa virtuosa, mas, para Aristóteles, uma vida boa deve ser de virtude
expressa em ação: “E assim como os prêmios dos Jogos Olímpicos não são
para os melhores e mais fortes, mas para os participantes (uma vez que apenas
esses vencem), o mesmo vale na vida; entre as belas e boas pessoas, somente
aqueles que agem corretamente ganham o prêmio”.
Ele faz uma distinção entre ação voluntária e involuntária. Crianças
pequenas e animais podem praticar ações voluntárias, mas não tomar decisões
reais, pois essas envolvem razão ou pensamento significativos. Como os
adultos têm as faculdades de deliberação e decisão, usá-las de uma maneira boa
(por exemplo, para perseguir um objetivo que nos exige limitar os apetites
naturais) nos faz sentir que estamos vivendo de modo devido – como seres
racionais concentrados na criação de algo que vale a pena. Podemos desejar
algo, mas para alcançá-lo devemos decidir tomar determinadas ações. Da
mesma forma, podemos crer em determinadas coisas, mas é a ação que
formará nosso caráter. A pessoa “incontinente”, diz Aristóteles, age a partir do
apetite ou pelo que é agradável. Em contraste, a pessoa “continente faz o
contrário, agindo segundo a decisão, não o apetite”.
Aristóteles também cria uma distinção interessante entre ação e produção.
O fim da produção é um objeto, uma coisa fora de nós mesmos, e requer a
utilização de destreza ou manipulação hábil. Mas o agir bem é algo concluído
como o próprio fim e não precisa resultar em nada em particular.
Considerando que a produção faz uma coisa e a habilidade na produção cria
uma qualidade melhor ou pior, a ação, dependendo de sua qualidade, torna
uma pessoa melhor ou pior. É, portanto, mais pura e mais nobre.
Embora a visão de Aristóteles sobre a diferença entre a ação e a produção
tenha sido moldada por sua posição elevada na sociedade, a ideia tem
implicações contemporâneas. Como observou Hannah Arendt em A condição
humana, pensar em nós mesmos como “produtores” e “consumidores” é uma
ideia peculiarmente moderna. No entanto, não existimos para produzir, mas
para fazer uma contribuição à nossa comunidade e à sociedade. É por isso que
a Ética a Nicômaco, um livro ostensivamente sobre a virtude, tem muitos
capítulos relativos à amizade e às responsabilidades de ser um cidadão.
Comentários finais
É moda atualmente os governos estarem preocupados com a “felicidade
interna bruta” em vez de se preocuparem simplesmente com os resultados
econômicos. Seus conselheiros examinam as ideias de Aristóteles sobre boa
vida e eudaimonia para orientar a elaboração de políticas que possam criar maior
felicidade para um maior número de pessoas. Esse é um esforço nobre. No
entanto, devemos ter cautela ao dar as receitas para a felicidade individual.
Como Aristóteles ensinou, cada pessoa terá uma rota diferente para a boa vida
com base em um potencial único que ela deverá cumprir. Em vez de buscar a
felicidade como um objetivo em si mesmo, nosso desafio é buscar a vida mais
cheia de significado para nós, e, ao fazê-lo, a felicidade virá naturalmente.
Aristóteles é muitas vezes criticado por suas observações em Ética a
Nicômaco de que elementos circunstanciais, tais como o dinheiro, o status e a
família, são contribuintes importantes para a felicidade. No entanto, seu foco
sobre a vida significativa nos diz que uma pessoa não precisa ter essas coisas
para estar contente ou entusiasmada com a existência. Se sentirmos que
estamos agindo para cumprir nossa função mais elevada, será difícil não ser
feliz.

Aristóteles
Nascido na cidade macedônica de Estagira (atualmente norte da Grécia), em
384 a.C., Aristóteles era filho de um médico do rei da Macedônia. Aos 17 anos,
começou a estudar na academia de Platão, em Atenas, e permaneceu na escola
até a morte de seu mestre, em 347 a.C. Então viajou para a Turquia e para a
ilha grega de Lesbos, fazendo sua própria investigação sobre o que agora
chamamos de biologia marinha, botânica, zoologia, geografia e geologia.
Casou-se com Pítia, uma de suas colegas na academia de Platão, mas teve um
filho, Nicômaco, com sua amante, a escrava Herpília.
Durante a vida de Aristóteles, o reino macedônico sob Filipe II e seu filho
Alexandre (o Grande) era uma potência conquistadora, tomando para si
cidades gregas e o reino da Pérsia. Aristóteles desfrutava do patrocínio de
Alexandre e foi seu conselheiro próximo até os últimos anos do reinado do
imperador, antes de ele cair em desgraça em razão de suas origens
macedônicas. Morreu aos 62 anos, na Ilha de Eubeia.
Dois terços da obra de Aristóteles se perderam, mas seu corpus abrange uma
grande variedade de assuntos, e ele foi considerado um dos polímatas de
destaque de sua geração. Trabalhos notáveis incluem Metafísica, Da interpretação,
De Anima ou Da alma, Retórica e Magna Moralia.
1936

Language, Truth and Logic

“A filosofia, da forma que é escrita, está cheia de


questões […] que parecem ser factuais, mas não são.”

“Agora, se eu […] disser ‘Roubar dinheiro é errado’,


produzirei uma frase que não tem nenhum significado
factual, ou seja, não exprime nenhuma proposição que
possa ser verdadeira ou falsa. É como se eu tivesse
escrito ‘Roubar dinheiro!!’, em que o formato e a
espessura dos pontos de exclamação mostrassem, por
uma convenção adequada, que um tipo especial de
desaprovação moral é o sentimento que se expressa.
Fica evidente que nada é dito aqui que possa ser
verdadeiro ou falso.”

Em resumo
A metafísica, a estética, a ética e a teologia são todas disciplinas sem
sentido, porque nada que se diz nelas pode ser verificado.

Na mesma linha
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
Saul Kripke, Naming and Necessity (p. 222)
Karl Popper, A lógica da pesquisa científica (p. 316)
Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas (p. 398)
A. J. Ayer

Com 22 anos e calouro da Universidade de Oxford, Alfred Ayer viajou à


Áustria para reunir-se com o Círculo de Viena, um grupo de físicos,
matemáticos e filósofos (incluindo Moritz Schlick, Rudolf Carnap, Karl
Menger e Kurt Gödel) que trabalhavam sob uma crença partilhada no
“positivismo lógico”, o ponto de vista de que o único conhecimento real
baseia-se nos fatos. Fortemente influenciado pela análise de linguagem e
significado de Wittgenstein, o grupo procurava ressignificar o conhecimento
em termos do princípio da verificação, e teve um grande efeito na filosofia e na
ciência do século XX.
Com Language, Truth and Logic [Linguagem, verdade e lógica] e outros
escritos, Ayer se tornou um dos principais exportadores dessas ideias para a
Grã-Bretanha e os Estados Unidos. Escrito quando ele tinha apenas 25 anos, o
livro ficou famoso por sua exposição firme, até mesmo agressiva, das
alegações da metafísica, mas também abrange a ética, a probabilidade e a
linguagem.

O princípio de verificação
O princípio de verificação de Ayer afirma que uma frase tem sentido apenas se
houver certas circunstâncias em que nós, os usuários da língua, possamos
concordar com sua veracidade, pois a veracidade de uma sentença deve
corresponder a uma possível situação observável. A frase “Há alienígenas em
Marte”, por exemplo, é significativa, pois sabemos o que seria necessário para
confirmá-la: uma observação ou outro sinal de alienígenas em Marte. Note que
estamos menos preocupados em saber se a frase é uma verdade em si, apenas
se é ou não significativa, ou seja, verificável.
Ayer ainda permite alguma margem de manobra, salientando que só temos
de confirmar que as afirmações provavelmente são verdadeiras, e não que são
decisivamente verdadeiras, para que sejam significativas. Isso porque há muitas
proposições que, mesmo depois de se fazer um número imenso de
observações, podemos apenas confirmar que provavelmente estão corretas. O
exemplo mais comum de tal proposição é uma lei universal, tal como a
expressa pela frase “todo arsênico é venenoso”. Nós a assumimos como uma
frase significativa, mas, por causa do conhecido problema da indução, ela só
pode ser confirmada como provavelmente verdadeira considerando um
número crescente de observações. Nenhuma quantidade de observações
poderia confirmar que todo arsênico é venenoso, pois não podemos extrapolar
quaisquer exemplos específicos em direção ao caso geral, a não ser como uma
certeza provável.
Ayer também propõe a ideia de emotivismo, em que as declarações sobre
moralidade são juízos de valor impulsionados pela emoção ou pelo sentimento
de quem os expressa. Como não podem ser verificados por quaisquer “fatos”
morais objetivos ou experiência, não têm nenhum significado cognitivo nem
sentido. Quando alguém diz, por exemplo, “Maria é uma pessoa boa”, esse
alguém não está definindo nenhuma verdade objetiva ou situação, meramente
está expressando seu sentimento por Maria. Da mesma forma, quando
ouvimos a declaração “A guerra é errada”, por não ser uma proposição que
possa ser comprovada de forma conclusiva de uma maneira ou de outra, mas
sim uma opinião, é de baixo ou nenhum valor. A maior parte da língua diz
mais sobre o falante do que sobre a “realidade”.

A metafísica não tem sentido


Aplicando o princípio de verificação à filosofia, Ayer chega a questionar a
própria base da metafísica, da estética, da ética e da teologia. Ele considera
uma típica frase de um livro de metafísica da época, escolhida aleatoriamente
de Appearance and Reality [Aparência e realidade], de F. H. Bradley: “O Absoluto
faz parte, mas, em si, é incapaz, de evolução e progresso”.
Ayer insiste que não há nenhuma situação em que alguém seria capaz de
observar que essa frase é verdadeira. Além disso, no fim das contas, o que
pode significar para alguém dizer que “o Absoluto” (o que quer que isso seja)
“faz parte da evolução”? Se uma frase só faz sentido se ela é, em princípio,
verificável, não fica claro em que circunstâncias (se houver) é possível observar
a verdade na declaração de Bradley. Como seria possível dizer que o Absoluto
estava ou não evoluindo? Partindo do pressuposto de que Bradley está usando
essas palavras com seu significado comum, Ayer conclui que devemos julgar a
frase como sem sentido.
A preocupação de Ayer está no significado factual. Por exemplo, o
significado factual de “Está chovendo!” é que está chovendo – precisamente o
tipo de significado que falta às declarações metafísicas. Isso deve ser
diferenciado de outras noções de significado que uma frase pode ter, como o
significado emocional; à poesia, por exemplo, pode faltar significado factual,
mas não é motivo para deixá-la de lado, porque o poeta não tenta afirmar que
os poe­mas devem ser tomados como verdadeiras descrições da realidade. O
seu significado literal não é o que geralmente é celebrado. Os metafísicos, por
outro lado, insistem com frequência que frases sobre tais conceitos abstratos
como “o Absoluto” apresentam uma descrição fiel da realidade quando não
têm sentido. Embora fosse ateu, Ayer rejeitou a ideia de que seria possível até
mesmo falar sobre ateísmo com significado, pois era tão absurdo dizer “Deus
não existe” quanto era dizer “Deus existe”, pois nenhuma das afirmações
poderia ser verificada.
O pensamento de Ayer sobre a verificabilidade e as declarações
significativas veio de sua crença no “naturalismo” ou na ideia de que a filosofia
deveria ser tratada no mesmo nível que a ciência natural, ou seja, colocando
todo tipo de afirmação da verdade sob o escrutínio mais minucioso. Embora
não tivesse esperança de desmantelar todo o campo da metafísica, conseguiu
limitar os filósofos a pronunciamentos que ao menos fizessem sentido.

Comentários finais
Ao enfatizar os limites do conhecimento humano, Ayer fez as vezes de
herdeiro de David Hume, que ele reverenciava. Esse fato, combinado ao
enfoque cético dos positivistas lógicos continentais, à influência da análise da
linguagem de Wittgenstein e à certeza de um rapaz de 25 anos de idade, tornou
Language, Truth and Logic uma obra poderosa.
Para os leitores da filosofia acadêmica de hoje, que estuda normalmente
questões muito específicas em grande profundidade, as amplas abordagens do
livro são revigorantes. Sua brevidade e a ausência de linguagem técnica o
deixam muito legível, e, embora muitos tenham notado que não é totalmente
original, ainda é um excelente ponto de partida para a filosofia analítica e o
positivismo lógico.
Após o sucesso do livro, perguntaram certa vez a Ayer o que viria a seguir.
Em sua costumeira arrogância, ele respondeu: “Nada virá a seguir. A filosofia
acabou”.

A. J. Ayer
Ayer nasceu em 1910. Sua mãe era da família holandesa judia que fundou a
empresa automobilística Citroën, e seu pai trabalhava no setor financeiro.
Quando criança, ganhou uma bolsa de estudos para o famoso e caro Eton
College.
Estudando filosofia na faculdade Christ Church, em Oxford, seu tutor era o
filósofo da mente Gilbert Ryle. Ayer trabalhou na inteligência militar britânica
durante a Segunda Guerra Mundial e ocupou cargos acadêmicos na Christ
Church e no University College, em Londres, além de ser uma figura bem
conhecida da mídia.
Ayer foi casado quatro vezes, inclusive um recasamento, e tinha muitos
casos. Na biografia A. J. Ayer: A Life [A. J. Ayer: uma vida], Ben Rogers narra
um episódio em que Ayer estava entretendo algumas modelos em uma festa
em Nova York quando houve uma comoção em um quarto. A supermodelo
Naomi Campbell gritava que seu namorado, Mike Tyson, a estava agredindo.
Ayer entrou para falar com Tyson, que disse: “Você sabe quem eu sou? Eu sou
o campeão do mundo”. Ayer educadamente respondeu: “E eu sou o ex-
professor da cátedra Wykeham de Lógica… Nós dois somos proeminentes em
nossas áreas. Sugiro que conversemos sobre esta questão como homens
racionais”.
Após sua aposentadoria, Ayer defendeu muitas causas sociais progressistas,
inclusive a reforma da lei de direitos homossexuais. Foi nomeado cavaleiro em
1970 e morreu em 1989.
Outros livros: The Foundations of Empirical Knowledge [As bases do
conhecimento empírico] (1940), The Problem of Knowledge [O problema do
conhecimento] (1956), Russell and Moore: The Analytical Heritage [Russell e
Moore: a herança analítica] (1971), Hume (1980), Philosophy in the Twentieth
Century [A filosofia no século XX] (1982), e os volumes autobiográficos Part of
My Life [Parte de minha vida] (1977) e More of My Life [Mais da minha vida]
(1984).
2011

The Ego Trick

“A ideia do eu como uma construção é aquela a que


muitos querem resistir, pois ela parece sugerir que isso
não é real. Mas é claro que construções podem ser
perfeitamente reais.”

“Você, a pessoa, não é separada desses pensamentos,


não é a coisa que os contém. Ao contrário, você é
apenas a coleção desses pensamentos […] Esse é o
âmago da armadilha do ego. O truque é criar algo que
tenha uma forte noção de unidade e individuação
daquilo que, na verdade, é uma bagunça, uma
sequência fragmentada de experiências e lembranças,
em um cérebro que não tem um centro de controle. A
questão é que o truque funciona. [...] Não existe uma
única coisa que abrange o eu, mas precisamos
funcionar como se existisse.”

Em resumo
O cérebro e o corpo nos oferecem uma noção forte e contínua do eu, que
nos dá a liberdade de criar o que somos.

Na mesma linha
Sam Harris, Free Will (p. 152)
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
Michel de Montaigne, Os ensaios (p. 276)
Julian Baggini

Você hoje é a mesma pessoa que era quando criança? É óbvio. No entanto, por
mais diferente que você seja agora, como pessoa adulta, seu DNA ainda é o
mesmo – você ainda é “você”. Mas o que dizer de alguém que sofre de
Alzheimer ou teve uma lesão cerebral? Se as memórias não são mais acessíveis
ou não se tem mais uma noção de tempo, de espaço e das outras pessoas, é
possível dizer que o mesmo eu ainda existe? De onde vem essa noção de “eu”?
É real ou apenas uma ilusão criada pelo cérebro e pelo corpo?
O filósofo contemporâneo Julian Baggini começa The Ego Trick [A
artimanha do ego] com uma citação de David Hume (Tratado da natureza
humana):

Da minha parte, quando adentro mais profundamente no que chamo


de eu mesmo, sempre tropeço em alguma percepção específica ou
outra, de calor ou frio, luz ou sombra, amor ou ódio, dor ou prazer,
cor ou som etc. Nunca consigo capturar a mim mesmo,
independentemente de algumas dessas percepções.

É notório o fato de que Hume sugeriu que não há um eu ou alma unitário,


sólido; em vez disso, somos simplesmente um conjunto de percepções que
mudam constantemente, e nossa maneira de perceber as coisas ao longo do
tempo parece confirmar esse fato.
A área do “eu” e da “personalidade” é uma grande preocupação da filosofia
e da psicologia contemporâneas, e Baggini, fundador da revista The Philosophers’
Magazine, torna acessíveis algumas das questões mais fascinantes que exploram
duas visões antagônicas do eu: a teoria da “pérola” e a ideia do “feixe” de
Hume. Ao longo do caminho, ele fala aos não estudiosos que têm algum
ângulo ou percepção especial, como os lamas budistas, pessoas que mudaram
de sexo ou aqueles que tiveram um ente querido com demência. A ampla
questão que ele tenta responder é: “O que somos e do que depende nossa
existência ao longo do tempo?”.

A noção do eu
A visão de “pérola” do eu diz que, apesar do quanto mudamos ao longo de
uma vida, existe uma essência de “eu” que não muda. Esse eu tem livre-
arbítrio e pode até transcender o corpo após a morte. No entanto, apesar de
muita pesquisa, a neurociência não encontrou nenhuma pérola; o “eu”
essencial não existe em nenhuma parte do cérebro. Em vez disso, vários
sistemas cerebrais trabalham em conjunto para nos dar uma sensação de ser
singular e estar no controle. Outros organismos, como os lagartos, não têm
uma noção do eu com a amplitude que os seres humanos têm. Podem ter um
sentido de eu em algum momento, mas é o sentido de um eu ao longo do tempo
que nos diferencia. Temos “eus autobiográficos” que podem criar uma história
ricamente detalhada e complexa a partir de nossas experiências.
“Quanto mais velhos ficamos”, comenta Baggini, “menos somos capazes
de nos identificar verdadeiramente, com confiança, com os nossos eus
anteriores […] Nossos pensamentos e ações são inescrutáveis como os de
estranhos, ou até mais […] Ao mesmo tempo, cada um de nós tem uma noção
de “eu” que parece ser notavelmente duradoura.” Podemos não ser a mesma
pessoa que éramos trinta anos atrás, mas sustentamos uma noção de eu por
toda a vida. De certa forma, a questão não é a busca pelo “que” somos ou por
nossa “verdadeira identidade”. Para Baggini, a verdadeira maravilha é que
retemos e mantemos a individualidade durante um longo tempo.
Ele menciona o neuropsicólogo clínico Paul Broks, que trabalhou com
pacientes que sofreram lesões cerebrais em acidentes de carro. Enquanto
observava como nossa noção do eu é frágil, construída nessas circunstâncias
com base em um bom funcionamento do cérebro, Broks notou também que,
mesmo se um hemisfério do cérebro estiver danificado, afetando a memória ou
outras funções, a maioria das pessoas continua a sentir uma noção unificada do
eu. Esse movimento em direção à sensação do eu é incrivelmente forte, e por
uma boa razão: não conseguimos funcionar como animais sociais sem
enxergarmos a nós mesmos e aos outros como “eus” separados. Com efeito,
caso “o eu” se encontrasse em apenas uma parte do cérebro (a ideia da pérola),
qualquer dano ligeiro àquela parte destruiria a noção do “eu”. No entanto, se a
noção do eu é uma composição de elementos ou uma interação entre as partes,
então é mais provável que sobreviva a qualquer trauma ou destruição de
qualquer dos componentes. Mesmo se não houver grandes danos ao cérebro,
somos configurados para criar constantemente uma noção de eu narrativa.
O filósofo contemporâneo Derek Parfit caracteriza a personalidade como a
posse de “conexão e continuidade psicológicas”. Baggini explica que a
“artimanha do ego” é a criação elaborada por cérebro e corpo de “uma forte
noção de unidade e individuação daquilo que, na verdade, é uma bagunça, uma
sequência fragmentada de experiências e lembranças”. Precisamente porque
não há um único centro de controle no cérebro, o truque funciona.

O que somos?
Se o eu não tem um centro de controle real, é possível dizer que uma pessoa
tem um “caráter”?
Baggini menciona uma série de experimentos de psicologia que sugerem
que nossa confiança no caráter é descabida; nosso ambiente pode ter um efeito
muito maior sobre o que fazemos. Um exemplo são os famosos experimentos
de “obediência à autoridade” de Stanley Milgram, em que pessoas
voluntariamente acionavam choques elétricos, que sabiam que prejudicariam
pessoas, simplesmente para agradar os responsáveis do experimento. Os
participantes eram pessoas normais, atenciosas até, mas descobriu-se que
buscar a aprovação era mais importante do que a compaixão para com os
outros. No Experimento da Prisão de Stanford, igualmente bem conhecido,
Philip Zimbardo simulou um ambiente prisional ao longo de cinco dias.
Depois de apenas um dia mais ou menos, os universitários que participavam
do experimento, em geral agradáveis, estavam dispostos a agir de forma
terrível contra aqueles sobre quem tinham controle. “A mente humana nos dá
modelos ou potenciais para ser qualquer coisa a qualquer momento”,
Zimbardo disse a Baggini. Dignidade humana e caráter inerentes são mitos.
O livro de John Doris, Lack of Character [Falta de caráter], observou que
“fatores situacionais muitas vezes são melhores indicadores de
comportamento que fatores pessoais”. Baggini sugere que muitos alemães que
viveram durante o Terceiro Reich teriam levado “vidas irrepreensíveis” se não
tivessem sido postos em um ambiente que trouxe à tona o pior deles. Da
mesma forma, “muitas pessoas são capazes de viver uma vida boa e ética
apenas porque as circunstâncias não as testaram”.
O filósofo William James enfatizou o quanto somos moldados por nosso
ambiente social; nossa família e amigos formatam o que somos. Com a
convivência com outros, assumimos sua visão do mundo, e eles a nossa. James
observou que as roupas se tornam parte de nossa identidade; o mesmo poderia
ser dito de casas, carros e outros pertences. Um colega filósofo de Baggini
questionou se, considerando que o nosso smartphone contém tanta informação
sobre nós, não é, em um certo sentido, parte de nós. Onde o “você” termina e
os objetos ao seu redor começam? “É nosso lugar no mundo que define quem
somos”, alega Baggini. “As relações que constituem nossa identidade são as
relações que temos com os outros, não aquelas que consideramos entre
pensamentos e lembranças em nossa mente.” Somos nossa coleção de funções.
E, no entanto, Baggini observa que não somos apenas uma coleção de
funções – temos uma noção psicológica de eu que permanece,
independentemente da função que desempenhamos na vida. Da mesma forma,
James viu sua individualidade como o “continuum de sentimentos encontrados
no ‘fluxo’ da consciência subjetiva”. Não importa quais sejam nossas
experiências ou nosso ambiente, se temos esse fluxo de sentimentos e
pensamentos, então continuaremos a ter um eu.

Criando um eu
Baggini observa que a filosofia budista está notavelmente em sintonia com a
pesquisa contemporânea sobre o eu. Buda acreditava que não temos uma
essência fixa, imutável; em vez disso, somos a soma de nossas experiências
corporais, pensamentos e sentimentos. Essa crença é muito parecida com a
ideia de feixe de Hume, exceto que o budismo se concentra no grande potencial
positivo contido em não se ter um eu fixo. Ao longo da vida, através do
refinamento de percepções, pensamentos e ações, podemos criar um eu de
forma muito consciente. Como é dito no texto budista Dhammapada [Caminho
do Dharma]:

Poceiros orientam a água; flecheiros dobram a flecha; carpinteiros


curvam a lenha; pessoas sábias moldam a si mesmas.

Baggini admite que ver o eu como uma construção é confrontar, pois


sugere que não existe a “verdadeira” noção do eu no centro das coisas. E,
ainda assim, muitas coisas que assumimos como reais são construções: uma
árvore é uma coleção de bilhões de átomos trabalhando juntos como um
sistema, e a internet não é uma coisa única, mas uma rede. Apenas porque algo
é um composto de partes não o torna menos verdadeiro ou poderoso.

Comentários finais
Um dos exemplos interessantes de Baggini é Brooke Magnanti, uma mulher
que conseguiu combinar as funções de pesquisadora acadêmica, blogueira e
prostituta, que ficou famosa com seu blog “Belle de Jour”. Não importa o
quanto cada uma dessas funções seja aparentemente diferente, Magnanti
simplesmente as enxergou como diferentes facetas de si mesma e nunca
vivenciou qualquer divisão psicológica. Como comenta Baggini: “Somos, de
fato, menos unificados, coerentes, sólidos e resistentes do que costumamos
imaginar, mas ainda somos reais e individuais”. Walt Whitman expressou essa
ideia mais poeticamente:

Eu sou grande

Contenho multidões.

A ideia pós-modernista é que os seres humanos são essencialmente


construções moldadas pela linguagem, pela socialização e pelas relações de
poder, mas Baggini conclui que somos mais do que meras construções: temos
unidade e continuidade, mesmo não tendo uma essência fixa ou alma eterna.
“O eu claramente existe”, diz ele, “não é apenas uma coisa independente de
suas partes constituintes.”
Paradoxalmente, por viver plenamente todos os aspectos e facetas de nós
mesmos, não ficamos perdidos, mas podemos viver uma vida significativa.
Certamente é uma indicação de maturidade podermos fazer isso, enquanto, ao
mesmo tempo, rejeitamos a ideia de que temos uma essência eterna ou uma
alma imaterial.

Julian Baggini
Nascido em 1968, Baggini obteve seu Ph.D. em filosofia no University
College, de Londres. O tema de seu doutorado foi a identidade pessoal.
Baggini contribui com diversos jornais e revistas e, em 1997, cofundou a The
Philosopher’s Magazine, uma revista trimestral.
Outros livros: The Shrink and the Sage: A Guide to Living [O psicólogo e o
sábio: um guia para a vida] (com Antonia Macaro, 2012), O porco filósofo: 100
experiências de pensamento para a vida cotidiana (2008), The Ethics Toolkit
[Ferramentas da ética] (com Pedro Fosl, 2007), Para que serve tudo isso? A filosofia
e o sentido da vida, de Platão a Monty Python (2004), e Ateísmo: uma breve introdução
(2003).
1981

Simulacres et Simulation

“A abstração de hoje não é mais aquela do mapa, do


duplo, do espelho ou do conceito. A simulação não é
mais aquela do território, de um ser referencial ou de
uma substância. É a geração pelos modelos de um real
sem origem nem realidade: um hiper-real. O território
já não precede o mapa, nem sobrevive a ele.”

“Não há mais um espelho do ser e das aparências, do


real e de seu conceito […] o real é produzido a partir
de células miniaturizados, matrizes e os bancos de
memória, modelos de controle – e pode ser
reproduzido um número indefinido de vezes a partir
deles. Não precisa mais ser racional, pois já não se
mede perante um ideal ou instância negativa.”
“Vivemos em um mundo onde há cada vez mais
informação e cada vez menos sentido.”

Em resumo
Já não vivemos em um mundo onde sinais e símbolos apontam para a
verdade; eles são a verdade.

Na mesma linha
Noam Chomsky, Para entender o poder (p. 92)
Harry Frankfurt, Sobre falar merda (p. 146)
Marshall McLuhan, O meio é a massagem (p. 260)
Slavoj Žižek, Vivendo no fim dos tempos (p. 406)
Jean Baudrillard

Jean Baudrillard morreu em 2007, e ainda estamos absorvendo e processando


muitas de suas ideias. Maior teórico da pós-modernidade, ele foi, estritamente
falando, um sociólogo que passou vinte anos no departamento de sociologia
da Universidade de Nanterre, em Paris; sua carreira abrangeu as revoltas
estudantis de 1968, a queda do comunismo e a ascensão do que ele chamava
de ordem “hiper-real” do capitalismo centrado na mídia.
O pensamento de Baudrillard marca um rompimento enorme e até mesmo
subversivo com as tradições da filosofia ocidental, com foco típico em
questões do eu, do livre-arbítrio e do conhecimento, e até mesmo com a ideia
existencialista de levar uma vida “autêntica”. Em vez disso, sua visão era de um
mundo em que a individualidade é um mito e onde as pessoas são unidades
que refletem tudo o que está acontecendo na mídia, sendo seu único objetivo
consumir imagens e sinais; nesse novo universo, algo será real somente se
puder ser reproduzido incessantemente, e o que é singular ou não
compartilhável não existe.
Simulacres et Simulation [Simulacros e simulação] foi o livro que tornou
Baudrillard moda fora da França, e ele é surpreendentemente acessível.
Embora os exemplos que ele dê se relacionem à cultura e à política dos anos
1970, para a maioria dos leitores os casos contemporâneos de suas ideias virão
facilmente à mente.

O território não importa mais


Em um de seus romances, Jorge Luis Borges contou a história dos cartógrafos
de um reino que criaram um mapa tão preciso e tão abrangente que se estendia
como uma folha sobre o território real do país. Embora seja uma boa história,
Baudrillard afirma que, no mundo contemporâneo, tais empreendimentos ­-
parecem raros, uma vez que tudo o que realmente importa é o mapa em si; não
tentamos fingir que é apenas uma abstração que nos ajuda a chegar à realidade
– é a realidade. “Mas não é mais uma questão de mapas ou territórios”, diz ele.
“Alguma coisa desapareceu: a diferença soberana entre um e outro que
constituía o encanto da abstração.”
Assim, o encanto de um mapa encontra-se no espaço que lhe concedemos
para não ser uma representação precisa da realidade. Agora, nós não fazemos
essa concessão; em vez disso, fazemos o que podemos para moldar a
“realidade” segundo nossas abstrações. Já não vivemos em um mundo do
duplo: o ser e a aparência, o real e o conceito. O que é “real” pode ser
infinitamente produzido a partir de programas de computador, e o mais
perturbador é que essa nova realidade não tem mais referência em uma base
racional da verdade:

Já não é uma questão de imitação, nem de duplicação, nem mesmo de


paródia. É uma questão de substituir os sinais do real pelo real.

Baudrillard chama esse novo mundo de o “hiper-real”, e uma das suas


qualidades interessantes é que ele elimina a necessidade do imaginário, uma vez
que não existe qualquer distinção entre o que é realidade e o que é imaginado.
Ficamos com um mundo que é um “simulacro gigantesco” (uma simulação ou
semelhança), um que “nunca [é] trocado pelo real, mas é trocado por si
mesmo, em um circuito ininterrupto sem referência ou circunferência”.
Embora não seja uma analogia que Baudrillard usa, é útil para pensar aqui
no dinheiro de papel: quase nunca é trocado por ouro ou prata pelo qual ele é
teoricamente conversível; em vez disso, o dinheiro é dinheiro, e não uma
representação dele. O fato de que “na verdade” é simplesmente papel é
irrelevante.

No lugar do real, criamos um fetiche do


passado
Para Baudrillard, o ponto de virada na história foi uma transição de nossa
aceitação de um mundo de sinais que indicam a verdade ou a ideologia, e que
dá importância ao sigilo, em um mundo que não se preocupa em fazer essa
tentativa. Na era dos simulacros e da simulação, ele diz que “não existe mais
um Deus para reconhecer como seu, não existe mais um Juízo Final para
separar o falso do verdadeiro”.
Quando isso acontece, a nostalgia se infiltra e há uma superfície ansiando
pela “verdade” e pela “autenticidade”. Existe a “produção assolada pelo pânico
do real e do referencial, em paralelo e maior que o pânico de produção
material”. Quando tudo se torna abstrato, o valor do “real” é inflacionado,
mas, na verdade, é o real que queremos ou apenas os sinais do real? Quando
entramos no mundo de simulacros e da simulação, é difícil sair dele; mal
sabemos a diferença entre ele e a realidade.
Baudrillard sugere que somos como o povo tasaday, que foi encontrado por
etnólogos nas profundezas da floresta tropical na década de 1970. Para evitar
que fossem aniquilados, foram transferidos para uma área de floresta virgem
inalcançável. Esse museu vivo tinha como objetivo preservar sua “realidade” e
permitir que vivessem com suas tradições, mas vedá-los foi em si um grande
ato de simulação. Da mesma forma, cientistas ocidentais gastam uma grande
quantidade de dinheiro na conservação de múmias egípcias, não porque o
Egito antigo não signifique nada para nós, mas porque esses objetos são uma
espécie de garantia de que as coisas antigas têm sentido especial: “Toda a nossa
cultura linear e acumulativa desmoronará se não pudermos armazenar o
passado em um lugar visível”. Essa “museificação” é a marca de uma cultura
que odeia segredos e deseja “se apropriar” de outras culturas por sua dissecção
e categorização. Eles são valiosos para nós como símbolos do fato de que
foram superados por nós.
Baudrillard retrata a Disneylândia como um caso clássico de simulacros,
porque é apresentada como um lugar imaginário apenas “para nos fazer crer
que o restante [de nossa sociedade] é real”. A Disneylândia preserva a fantasia
de uma separação entre a verdade e a imaginação, uma fantasia de que
precisamos para continuar existindo em um mundo imaginado. Lugares como
esse nos ajudam a evitar o fato de que os Estados Unidos em si, de forma
geral, pertencem ao domínio da simulação.

Política em um mundo hiper-real


Baudrillard vai além da visão esquerdista/marxista típica de que o capitalismo é
imoral. Em vez disso, o capitalismo é uma “empresa monstruosa e sem
princípios, nada mais”. O capitalismo e a mídia capitalista concentram-se na
“economia”, em “indicadores econômicos” e na “demanda”, como se fossem
o núcleo da sociedade e, ao fazê-lo, “cada distinção ideal entre verdadeiro e
falso, bem e mal” é destruída “para estabelecer uma lei radical de equivalência
e troca”. No capitalismo, somos meros consumidores. No entanto, para
manter a ilusão de que somos cidadãos com livre-arbítrio que vivem em uma
democracia dinâmica, o capitalismo fabrica crises que visam nos impedir de
enxergar que seu modo de vida é apenas um construto.
O poder político como testemunhamos hoje – as eleições presidenciais, a
obsessão com as atividades presidenciais e assim por diante – é uma farsa, e a
intensidade crescente da cobertura midiática é um sinal de que o poder
executivo tradicional não existe mais. Em vez disso, o poder está em todo o
sistema, um fato que o frenesi da mídia em torno da política visa obscurecer. E
como as pessoas odeiam política cada vez mais, a farsa só vai crescer de forma
mais intensa para evocar o sentimento de que isso é real. Baudrillard retrata os
assassinatos dos Kennedy como as últimas mortes políticas reais no Ocidente,
pois se enxergava que JFK e Bobby verdadeiramente exerceriam o poder. Eles
eram reais demais, por isso tinham que partir. Mesmo assim, Baudrillard afirma
que, na era da simulação, assassinatos reais não são mais necessários; eles
podem ser simulados, como o Watergate e a decapitação política de Nixon, que
se tornaram o modelo para o ritual da morte política moderna. Quanto mais
importante é a pessoa, maior a possibilidade de seu “sacrifício”.

A sociedade midiática hiper-real


Em 1971, uma equipe de televisão viveu durante sete meses com uma família
californiana, os Loud, filmando cada movimento. A família desfez-se sob o
olhar de 20 milhões de telespectadores, o que conduziu à questão de quanto o
programa televisivo influenciou nesse fato. Os produtores disseram que o
programa seria “como se as câmeras não estivessem ali”, que Baudrillard
descreve como uma utopia de “realidade”, que era, evidentemente, um falso
brilhante, mas exemplificava o prazer que nós, o público, temos quando algo
real se torna hiper-real.
A tipicidade da família (de californianos de classe média alta, dona de casa
decorativa, garagem para três carros, várias crianças) garantiu que ela seria
destruída, uma vez que uma cultura hiper-real exige sacrifícios. No entanto,
nessa versão moderna, “como o fogo celestial não atinge mais as cidades
corrompidas, é a lente da câmera que, como um laser, vem perfurar a realidade
ordinária para levá-la à morte”. Baudrillard reflete: a televisão dos reality shows
“refere-se à verdade dessa família ou à verdade da TV?”. A televisão
transformou-se na verdade dos Loud, porque, em uma cultura baseada em
simulacros e em simulação, “é a TV que é a verdade, é a TV que traz a
verdade”.
Em uma fascinante análise do cinema da década de 1970, Baudrillard
aborda a ligação entre acontecimentos reais e filmes. Ele argumenta que o
vazamento nuclear na Three Mile Island, nos Estados Unidos, teve sua
contrapartida hollywoodiana em Síndrome da China; o evento do filme se tornou
tão importante quanto o real, assumindo uma verdade maior do que a
expressão artística. É o tipo de violência que se torna verdade em um mundo
hiper-real.
Pressagiando a ascensão da internet e o fenômeno de mídia social,
Baudrillard observa que as pessoas são agora medidas pela amplitude de seu
envolvimento no fluxo de mensagens dos meios de comunicação. “Quem está
subexposto aos meios de comunicação é dessocializado ou praticamente
associal”, diz ele, e o fluxo dessas mensagens não é questionado como um
produto que aumenta o sentido, assim como se considera que o fluxo de
capitais aumenta o bem-estar e a felicidade. Uma das frases de destaque do
livro é:

Vivemos em um mundo onde há cada vez mais informação e cada vez


menos significado.

Ele pergunta: “Os meios de comunicação de massa estão ao lado do poder


na manipulação das massas ou estão ao lado das massas na liquidação do
sentido, na violência perpetrada contra o sentido e no fascínio?”. Embora na
velha ordem as pessoas se preocupassem com o primeiro, o segundo é mais
perturbador.
A publicidade é convencionalmente vista como superficial em relação a
coisas e produtos reais a que se refere, mas, no pensamento de Baudrillard, a
publicidade é o núcleo de nossa civilização. Os produtos aos quais ela aponta
são relativamente sem valor – o que importa é a nossa identificação com as
histórias, os sinais e a imagística que servem de fachada para aqueles produtos;
é isso que desejamos e consumimos. Não vamos às compras tanto para adquirir
coisas, mas para nos mantermos dentro dos limites do hiper-real (não querer
consumir esses sinais e símbolos é subversivo). A noção do indivíduo racional
com livre-arbítrio é um mito completo; no máximo somos vistos como
entidades totalmente envolvidas pela tecnologia e pela cultura do consumo, e
somos parte delas.

Comentários finais
O argumento convincente de Baudrillard era o de que o universo que
habitamos agora é totalmente diferente do mundo modernista de “confrontos
de ideologias”. Ele alegou que os atentados terroristas de 11 de Setembro não
foram um caso de “choque de civilizações”, ou do islamismo contra a
América, mas sim o ponto focal de um mundo que reage contra a própria
globalização e a mudança para o hiper-real, uma espécie de último e horrível
tiro disparado contra a intrusão dos meios de comunicação e da tecnologia em
todos os aspectos de nossas vidas, subordinando os sistemas de valores.
Os filósofos passaram séculos discutindo sobre o peso relativo entre o
“sujeito” (eu) e o “objeto” (o mundo), mas Baudrillard enxergava que o debate
há muito se tornou insignificante – o objeto venceu com facilidade. Uma
pessoa hoje não é um projeto na individualidade, como muitas tradições da
filosofia e da teologia nos diziam, mas se assemelha mais a uma máquina que
consome e reproduz as ideias e imagens que são atuais na mídia, na
publicidade e na política. E, o mais perturbador de tudo, a substituição da
realidade pela hiper-realidade é o que Baudrillard chama de “crime perfeito”,
porque a maioria de nós mal tem consciência de que isso já aconteceu.

Jean Baudrillard
Baudrillard nasceu em Reims, França, em 1929. Seus pais eram funcionários
públicos, e os avós, agricultores. Ele foi o primeiro de sua família a ir para a
universidade. De 1966 a 1987, ocupou cargos na Universidade de Nanterre, e
depois lecionou na European Graduate School até sua morte, em 2007.
Seu primeiro livro, O sistema dos objetos (1968), foi fortemente influenciado
por Roland Barthes, e, em sua fase inicial, Baudrillard foi considerado um pós-
marxista. Seus últimos trabalhos relacionados aos meios de comunicação
foram inspirados nas ideias de Marshall McLuhan. Simulacres et Simulation serviu
de inspiração para o filme Matrix, que oferece uma ideia do que poderia
acontecer se a hiper-realidade fosse levada à sua extensão lógica que tudo
permeia.
Outros livros: La Société de Consommation [A sociedade de consumo] (1970),
Para uma crítica da economia política do signo (1972), Le Miroir de la Production [O
espelho da produção] (1973), À sombra das maiorias silenciosas (1983), América
(1986), Esquecer Foucault (1987), La Guerre du Golfe n’a Pas Eu Lieu [A Guerra do
Golfo não aconteceu] (1991) e Le Crime Parfait [O crime perfeito] (1995).
1949

O segundo sexo

“Não se nasce mulher, torna-se mulher.”

“A história individual da mulher – por ela ainda estar


encerrada em suas funções de fêmea – depende em
uma medida muito maior que a do homem de seu
destino fisiológico; e a curva de seu destino é muito
mais irregular, mais descontínua, que a curva
masculina.”

Em resumo
O conceito de “Outro” nos ajuda a entender a posição e o poder das
mulheres através da história.

Na mesma linha
Jean-Paul Sartre, O ser e o nada (p. 354)
Simone de Beauvoir

Aos 40 anos de idade, Simone de Beauvoir era autora de vários romances bem
recebidos, mas era mais conhecida como a companheira de longa data de Jean-
Paul Sartre. Tudo isso mudou com o lançamento de O segundo sexo. Desde o
início o livro foi um best-seller, e Beauvoir descobriu que era a mulher mais
controversa da França.
Considerando sua posição relativamente privilegiada – carreira docente,
nível universitário, frequência em círculos intelectuais parisienses –, Beauvoir
nunca tinha experimentado a sensação de injustiça ou desigualdade. No
entanto, começou a perceber que as pessoas a enxergavam como inferior a
Sartre apenas porque era do sexo feminino. Quando ela se sentou para
escrever O segundo sexo, ficou surpresa ao se flagrar constatando o fato mais
essencial de sua existência: “Eu sou mulher”.
O segundo sexo não trata simplesmente do papel das mulheres na história ou
na sociedade, mas da “Mulher” como um arquétipo e categoria filosófica que é
intercambiável com a ideia do “Outro”. Essa base filosófica eleva o livro acima
de outras escritas feministas e torna a leitura fascinante.
O livro estende-se por 700 páginas e não é fácil de resumir. O Livro Um
traça a história do lugar da mulher na sociedade, desde a Idade do Bronze,
passando pelos tempos medievais, até a modernidade, incluindo uma análise
do “mito da mulher” através de cinco autores: Henry de Montherlant, D. H.
Lawrence, Paul Claudel, André Breton e Stendhal. O Livro Dois investiga a
situação da mulher hoje, da infância ao despertar sexual, do casamento à
menopausa, incluindo retratos da mulher como amante, narcisista e mística,
antes de terminar em um tom mais otimista com um capítulo sobre a
independência da mulher.

A mulher como o Outro


O segundo sexo consiste em uma tentativa de responder à pergunta básica “O
que é a Mulher?”, ou seja, como um arquétipo ou uma categoria em oposição
às mulheres como indivíduos. Ao longo da história, os homens têm
diferenciado e definido mulheres com relação a si mesmos, e não como seres
por si mesmos. Uma pessoa é um homem, e nenhuma explicação a mais é
necessária, enquanto uma mulher deve ser descrita como uma pessoa do sexo
feminino. O resultado, comenta Beauvoir, é que a mulher é “a incidental, a
inessencial, como o oposto ao essencial. Ele é o sujeito, ele é Absoluto – ela é
o Outro”.
Ela observa que o termo “Outro” pode ser aplicado a qualquer grupo da
sociedade que não é considerado o grupo “principal”. Na civilização ocidental,
por exemplo, os homens brancos são o “essencial”, o “Absoluto”, ao passo
que qualquer outro tipo de pessoa, inclusive mulheres, negros, judeus, foi –
consciente ou inconscientemente – colocado na categoria do Outro. Quando
um grupo na sociedade é tornado inferior dessa forma, eles se tornam inferiores
através de oportunidades perdidas e de humilhação.
Os homens não sentem que precisam se justificar em qualquer base
objetiva, mas extraem seu sentimento de superioridade do fato de não serem
mulheres. Isso resulta na visão clichê, embora verdadeira, de que uma mulher
precisa se empenhar duas vezes mais para ser vista como igual a um homem.
Beauvoir escreve que a discriminação contra as mulheres “é um bálsamo
milagroso para os atingidos pelo complexo de inferioridade e, de fato, ninguém
é mais arrogante perante as mulheres, mais agressivo ou desdenhoso que o
homem que duvida de sua virilidade”. Atualmente estamos familiarizados com
essa verdade, mas imagine a afronta que representou na França burguesa de
1949.
Beauvoir se espanta que, embora representem metade da raça humana, as
mulheres ainda sejam discriminadas. Ela observa que, nas democracias, os
homens gostam de dizer que veem as mulheres como iguais (ou a democracia
seria uma mentira), mas suas atitudes, em muitos níveis, contam uma outra
história.

Biologia é destino?
Beauvoir remonta às primeiras concepções da biologia para mostrar como a
própria ciência serviu para reduzir o poder e a potência da mulher para
favorecer o homem. Na concepção, por exemplo, a passividade da fêmea foi
contrastada com o “princípio ativo” do esperma masculino, e se pensava que
esse fato determinava todas as características do recém-nascido. Ainda na
concepção, observa Beauvoir, nem o gameta masculino nem o feminino é
superior ao outro; na verdade, os dois perdem sua individualidade quando o
óvulo é fecundado.
O fardo da continuidade da vida ainda é feminino, e, considerando o tempo
e a energia necessários para ela, as possibilidades da fêmea são seriamente
restringidas, pois “a mulher é adaptada às necessidades do óvulo mais do que
às suas próprias”. Da puberdade à menopausa, ela está à mercê de um corpo
que se altera de acordo com as necessidades reprodutivas e deve aguentar um
lembrete mensal desse fato. Nos primeiros estágios da gravidez, vômito e
perda de apetite “sinalizam a revolta do organismo contra a espécie que o
invade”. Muitas enfermidades de uma mulher não resultam de ameaças
externas, mas de lidar com seu sistema reprodutivo muitas vezes problemático.
Além disso, a emotividade mais intensa das mulheres está relacionada a
irregularidades em secreções no sistema endócrino, que têm um efeito sobre o
sistema nervoso. Muitas dessas características, enfatiza Beauvoir, “se originam
na subordinação da mulher à espécie”. Em contraste, “o macho parece
infinitamente favorecido: sua vida sexual não está em oposição à sua existência
como pessoa e, biologicamente, segue um curso regular, sem crises e
geralmente sem contratempos”. Embora as mulheres tendam a viver mais que
os homens, ficam ­doentes com maior frequência e, em geral, têm menos
controle sobre seu corpo – seu corpo as controla. No entanto, a menopausa
pode trazer libertação, pois uma mulher não é mais determinada ou julgada de
acordo com a função reprodutiva.
Portanto, enquanto as características biológicas da mulher são a chave para
compreender a sua situação na vida, Beauvoir diz com otimismo: “Nego que
elas estabeleçam para ela um destino fixo e inevitável”. A biologia não é
motivo suficiente para a desigualdade entre homens e mulheres, nem motivo
para a mulher ser rotulada como “Outro”, e uma corporalidade feminina não a
condena a permanecer subordinada. Além disso, enquanto os animais podem
ser estudados como organismos estáticos, é muito mais difícil fazer avaliações
de pessoas como seres humanos do sexo masculino ou feminino, uma vez que
nosso sexo não nos define da maneira que o faz com outros animais. Em
muitos aspectos físicos, uma mulher é menos resistente que um homem, assim
seus projetos e suas perspectivas são ostensivamente mais limitados, mas,
inspirando-se em Heidegger, Sartre e Maurice Merleau-Ponty, Beauvoir
observa que “o corpo não é uma coisa, é uma situação”. Visto dessa forma, as
perspectivas das mulheres podem ser diferentes das dos homens, mas não mais
limitadas. Além do mais, muitas das “fraquezas” das mulheres existem apenas
no contexto das finalidades do homem. A inferioridade física, por exemplo,
perde o sentido se houver ausência de violência e guerras. Assim, se a
sociedade for diferente, a avaliação de atributos físicos muda.

Tornar-se mulher
O Livro Dois contém o famoso comentário de Beauvoir de que “não se nasce,
torna-se mulher”. Na infância não há diferença entre os sexos em termos do
que são capazes de fazer. A diferenciação começa quando se conta aos
meninos sobre sua superioridade e como precisam se preparar para o difícil
caminho heroico que têm pela frente. Enquanto o orgulho de seu sexo é
enfatizado a um menino pelos adultos, a anatomia sexual da menina não
recebe a mesma reverência. Urinar também produz uma diferença sexual: para
o menino é uma brincadeira, mas para a menina é um procedimento
vergonhoso e inconveniente. Mesmo se uma menina não tiver “inveja do
pênis”, a presença de um órgão que pode ser visto e segurado ajuda o menino
a se identificar e se torna uma espécie de alter ego. Para a menina, a boneca é o
que se torna o alter ego. Beauvoir alega que não existe realmente um “instinto
maternal”, mas através da brincadeira com as bonecas a menina determina que
o cuidado com as crianças recai sobre a mãe, e “assim a sua vocação é
poderosamente ditada a ela”.
No entanto, quando amadurece, a garota percebe que não é um privilégio
ser mãe enquanto os homens controlam o mundo. Essa revelação a ajuda a
compreender que a vida de um pai tem um “prestígio misterioso”. Quando
ocorre o despertar sexual, os meninos são agressivos e agarram, enquanto para
a menina é muitas vezes um caso repleto de “espera” (“Ela está esperando o
Homem”). Desde tempos imemoriais, a Mulher tem esperado o macho para
realização e escape, assim as meninas aprendem que, para agradar, devem
abdicar de seu poder e independência.
Beauvoir conclui que o caráter da mulher é moldado por sua situação. As
mulheres não são socialmente independentes, mas fazem parte de grupos ­-
regidos e definidos por homens. Qualquer clube ou serviço social que eles
estabeleceram ainda está dentro da estrutura do universo masculino. Beauvoir
enfatiza que “muitos defeitos pelos quais as mulheres são censuradas – a
mediocridade, a preguiça, a frivolidade, o servilismo – simplesmente exprimem
o fato de que seu horizonte é fechado”.

Mulher e mito
Como as mulheres raramente se veem como protagonistas, não há muitos
mitos femininos, como os de Hércules ou de Prometeu. As funções míticas
das mulheres são sempre secundárias; elas sonham os sonhos do Homem. O
homem criou mitos em torno da mulher, e todos os mitos têm ajudado a
reiterar que a mulher é a inessencial; ele se revoltou contra o fato de que ele é
nascido do ventre de uma mulher e também vai morrer. Como o nascimento
está ligado à morte, a Mulher condena o homem à finitude.
As mulheres também têm sido vistas como magas e feiticeiras que lançam
feitiços sobre o homem. O Homem teme e deseja a mulher. Ele a ama quando
ela é sua, mas teme quando ela permanece sendo o “Outro”; é este Outro que
ele deseja tornar dele. Como o homem, a mulher é dotada de espírito e mente,
mas “ela pertence à natureza e, portanto, aparece como uma mediadora entre o
indivíduo e o cosmo”. O cristianismo espiritualizou a Mulher, atribuindo a ela
beleza, cordialidade, intimidade e o papel de piedade e ternura. Ela já não era
mais tangível, e seu mistério se aprofundou. A Mulher é musa do homem e
também uma juíza que se pronuncia sobre o valor de suas empresas. Ela é um
prêmio a ser conquistado, o sonho no qual todos os outros sonhos estão
envoltos. Vendo pelo lado positivo, a Mulher sempre inspirou o homem a
ultrapassar seus limites.

Comentários finais
O que Beauvoir faria com a paisagem de gênero atual? Especialmente em
países mais ricos e mais livres, muitas mulheres sentem que O segundo sexo está
ultrapassado, que a igualdade é real ou que pelo menos as lacunas na igualdade
são superáveis, e que as meninas têm um futuro tão brilhante quanto o dos
meninos. No entanto, em países onde a misoginia impera e a desigualdade
sexual está inscrita nas leis e expressa nos costumes, o livro de Beauvoir
continua sendo uma bomba em potencial, revelando muito sobre as
motivações reais dos homens.
O livro foi criticado por ser demasiado anedótico e circular, por não ser um
trabalho de filosofia “adequado”, mas isso por si só pode ser visto como um
ataque sutil sobre o gênero da autora feito por filósofos com predominância
criativa e sistematizadores. De fato, Beauvoir é frequentemente negligenciada
como filósofa, o que apenas prova sua alegação de que principalmente os
homens acabam escrevendo a história das disciplinas – e não surpreende que
eles se concentrem primeiro nas contribuições de seu próprio sexo.
Muitas das afirmações de Beauvoir foram ultrapassadas pela ciência. O fato
é que não somos tábula rasa em termos de gênero, mas nascemos com certas
tendências comportamentais, dependendo se somos homens ou mulheres. O
condicionamento definitivamente é real, como ela salientou, mas isso não é
tudo, e só seremos capazes de enfrentar as limitações impostas às mulheres ao
compreender as diferenças biológicas. Quanto mais soubermos sobre nosso
corpo e nosso cérebro, menos a biologia será destino.
Se você for mulher, ler O segundo sexo vai lembrá-la dos avanços feitos pelas
mulheres desde 1949. Se você for homem, ele vai ajudá-lo a conseguir uma
compreensão maior do universo ligeiramente diferente que a mulher habita
ainda hoje.

Simone de Beauvoir
Simone de Beauvoir nasceu em 1908, em Paris. Seu pai era advogado e sua
mãe, católica devota. Simone foi enviada para uma prestigiada escola de freiras.
Em sua infância, era muito religiosa e considerou tornar-se freira, mas, aos 14
anos, virou ateia.
Quando estudou filosofia na Sorbonne, escreveu uma tese sobre Leibniz.
Em um exame nacional que classificava estudantes, ela ficou em segundo lugar,
perdendo somente para Jean-Paul Sartre (que ela já havia encontrado), e
também foi a pessoa mais jovem a entrar nesse ranking. Seu relacionamento
com Sartre influenciou seu primeiro romance, A convidada, publicado em 1943.
Beauvoir lecionou filosofia no Liceu Pierre-Corneille, em Rouen, onde a
feminista Collette Audry, sua amiga, também lecionou. Em 1947, foi enviada
pelo governo francês aos Estados Unidos para dar palestras em universidades
sobre literatura francesa contemporânea. No mesmo ano, ela escreveu Moral da
ambiguidade, seu famoso ensaio sobre o existencialismo francês. Ela viajou
bastante e escreveu vários diários de viagem quando esteve na China, na Itália
e na América, que visitou várias vezes.
Beauvoir viveu não muito longe de Sartre em Paris e escreveu A cerimônia do
adeus, um relato tocante dos últimos anos do filósofo. Ela continuou seu
trabalho literário e de ativista até sua morte, em 1986.
1789

Princípios da moral e da legislação

“A natureza colocou a humanidade sob o governo de


dois mestres soberanos, a dor e o prazer. Somente a
eles compete apontar o que devemos fazer, bem como
determinar o que devemos fazer.”

“A incumbência do governo é promover a felicidade da


sociedade pela punição e pela recompensa. A parte
dessa incumbência que consiste em punir é mais
especificamente assunto do direito penal. À medida
que um ato tenda a perturbar a felicidade […] será
exigido que ele crie uma punição.”

“Então, os prazeres e a fuga das dores são os fins que


o legislador tem em vista; cabe-lhe, por conseguinte,
compreender seu valor.”

Em resumo
É mais provável alcançar uma sociedade justa por meio de um cálculo
objetivo de maximização do prazer e minimização da dor.

Na mesma linha
John Stuart Mill, Sobre a liberdade (p. 268)
Platão, A República (p. 308)
John Rawls, Uma teoria da justiça (p. 322)
Michael Sandel, Justiça (p. 346)
Peter Singer, Quanto custa salvar uma vida? (p. 372)
Jeremy Bentham

Jeremy Bentham teve enorme influência na Grã-Bretanha do século XIX,


ainda que tenha se tornado bem conhecido apenas na década de 1820, bem
tarde na vida. Nós o associamos com as causas de reforma na Revolução
Industrial, inclusive o alívio da pobreza, um sistema de esgoto adequado para
Londres, a extensão do privilégio do voto e planos para escolas, reformatórios
e prisões (o famoso Panóptico), mas a maioria de seus escritos é anterior. Uma
introdução aos princípios da moral e da legislação, por exemplo, foi escrito em 1780 e
era para ser a abertura de uma obra de vários volumes (que nunca foi
produzida) sobre a reforma do código penal e o princípio da utilidade no
direito civil e constitucional.
Embora a maioria das pessoas já tenha ouvido falar do princípio de
utilidade de Bentham, também conhecido como “a maior felicidade para o
maior número de pessoas”, poucos leram Princípios da moral e da legislação.
Bentham admite que a maior parte do trabalho é bastante árida, mas sua defesa
é que “verdades que formam a base da ciência política e da moral só são
descobertas por investigações tão rígidas quanto as matemáticas”. Ele sentia
que a utilidade era quase um princípio matemático e queria dar uma noção de
sua lógica infalível, que não deixava muito espaço para floreios artísticos.
Ainda assim, o livro contém um texto fascinante.
Quando criança, John Stuart Mill passava com frequência alguns períodos
na casa de Bentham, sendo preparado para assumir a ideologia utilitarista
daquele senhor. O utilitarismo, de Mill (1863), desenvolveu e refinou as ideias de
Bentham, transformando-se em uma introdução mais fácil ao assunto. A
história da filosofia talvez dê uma importância maior a Mill, mas é difícil
imaginar o que ele teria conseguido se Bentham não tivesse vindo antes dele.

Uma nova forma de governar


Bentham discute vários princípios que eram utilizados para orientar os
legisladores e descarta um de cada vez. Ele argumenta que, se o princípio da
utilidade é correto, é correto o tempo todo. Todos os outros princípios
norteadores devem estar errados e só podem ser mensurados a partir do
critério de utilidade.
Um desses princípios norteadores é o “ascetismo”. Embora praticado nos
mosteiros, Bentham observa que nunca funcionou como um princípio para o
governo, e por um bom motivo: a massa é egoísta, impulsionada por desejos, e
não pelo arrefecimento deles. Bentham não era ateu, mas tinha muita clareza
de que a religião não tinha espaço na vida política. A tarefa de conhecer a
vontade divina é profundamente subjetiva e, portanto, inevitavelmente falha.
Ao contrário, ao adotarmos o princípio da utilidade, alcançamos uma ideia
clara sobre o que é bom para todos e, assim, enxergamos a vontade divina em
ação. Pois qual seria a vontade de Deus senão a maior felicidade para o maior
número de pessoas?
Outro princípio norteador é “simpatia e antipatia”: as pessoas são levadas a
agir ou julgar com base naquilo de que gostam ou não gostam. Esse é um
antiprincípio, pois não é fundamentado em nada universal (como a utilidade),
apenas em um capricho pessoal. Bentham diz que o princípio de “certo e
errado”, embora pareça ter mais seriedade, é meramente uma extensão do
“gosta e não gosta”. A política de um governo muitas vezes equivale a uma
expressão de preferências pessoais de seus membros. Não há nenhuma
concepção de utilidade ou do que é realmente melhor para o maior número de
pessoas.
Embora os governos consigam se esconder atrás de um “senso moral”
secular como motivação para seus atos, isso disfarça sua irracionalidade
fundamental. A justiça penal não repousa na utilidade racional ou naquilo que
é melhor para o criminoso e a sociedade, mas nas propensões morais de
pessoas sobre quais crimes são considerados piores. Bentham constata que “o
princípio de simpatia e antipatia tende mais a pecar pela severidade”. Quando
um grupo odeia um determinado comportamento, vai querer punir
excessivamente o perpetrador, muito além dos próprios efeitos negativos do
crime, e tais punições terão consequências negativas. E, ainda assim, “a
felicidade dos indivíduos que compõem a comunidade, ou seja, seus prazeres e
a sua segurança, é o fim e o único fim que o legislador deveria ter em vista”. O
equilíbrio a ser mantido pelos legisladores é o que permite a maior liberdade
possível, enquanto contém qualquer comportamento que possa diminuir a
felicidade dos outros (tema que John Stuart Mill desenvolveria em Sobre a
liberdade).

Princípio da maior felicidade


Bentham observa que, mesmo se as pessoas alegarem que não apoiam o
princípio da utilidade, elas o aplicam à sua vida: para ordenar suas ações,
considerar as próximas medidas a tomar e julgar as ações dos outros.
Basicamente somos máquinas de buscar felicidade e julgamos os outros pela
sua capacidade de aumentar ou diminuir o nosso estoque de felicidade. Junto
com Adam Smith, Bentham via seres humanos como essencialmente egoístas.
Então, qual o papel adequado do governo que ele tinha em mente?
Seu objetivo ao escrever o livro era “tramar o tecido da felicidade pelas
mãos da razão e da lei” – em outras palavras, para legislar sobre a criação da
felicidade. Talvez esse fosse um projeto utópico, mas ele argumenta que o
princípio da utilidade é o único em que as atividades de um Estado podem ser
racionalmente ordenadas. Era uma ideia radical, pois o sistema legislativo da
Grã-Bretanha era baseado na common law ou em precedentes. A ideia de legislar
a partir do zero com a finalidade de alcançar o objetivo do maior benefício ao
maior número de pessoas talvez nunca acontecesse na prática, embora o
pedido de Bentham de “ter a razão, e não os costumes como guia” fosse, no
seu devido tempo, revitalizar e formar o pensamento jurídico.
No grandioso projeto de Bentham, nem a história, nem outros textos
poderiam ser usados como base para criar leis, pois, se um texto fosse
considerado a “autoridade” no assunto, poderia facilmente ser contestado por
outro texto. Única e exclusivamente a razão (especificamente, o princípio da
utilidade) poderia ser a base para a política e a lei; de fato, Bentham observou
que saberíamos que o princípio estava operando em instituições e leis se seu
objetivo fosse que as pessoas precisassem gostar deles, mesmo que,
individualmente, nem sempre elas gostassem.
De seu jeito metódico, Bentham oferece uma classificação de 12 dores e 14
prazeres e vários graus de cada um, tais como intensidade, duração e extensão
que os legisladores ou, aliás, qualquer pessoa podem usar para julgar o efeito
de felicidade ou infelicidade de uma determinada ação. Embora essa
abordagem possa parecer um pouco técnica ou mecânica, para Bentham era
um importante fundamento sobre o qual construir um novo tipo de direito
que não poderia ser violado por nenhum grupo específico da sociedade para
interesse próprio. Seu objetivo era o de “abrir um novo caminho através dos
confins da jurisprudência” – de fazer leis transparentes que não beneficiassem
certas pessoas em detrimento de outras. Em um país em que privilégios
hereditários eram consagrados por lei, foi um movimento significativo, e não
causou surpresa o fato de as ideias de Bentham terem levado um longo tempo
para se consolidarem na Grã-Bretanha, apesar de sua grande lógica. Ele ficou
muito mais conhecido na França, onde era tratado como celebridade pelos
revolucionários e se fez cidadão honorário da República.

Comentários finais
Bentham não estava interessado na ideia de “direitos naturais”, mas acreditava
que toda a sociedade tem o direito de ao menos ser protegida de dano físico,
com base no pressuposto de que a ação ilícita anula ou reduz o direito
individual à felicidade.
A afirmação de Bentham de que “todos contam por um, ninguém por mais
de um” é a forma abreviada do princípio utilitarista da justiça, e ele estava à
frente de seu tempo na aplicação dele a todos os seres sencientes. Em Uma
introdução aos princípios da moral e da legislação, ele defende que os direitos não
deveriam depender da capacidade de raciocinar, mas da capacidade de sofrer.
Essa distinção foi o fundamento do movimento moderno pelos direitos
animais, principalmente nos escritos de Peter Singer (Libertação animal, 1973).
Para Singer, utilitarista contemporâneo, o teste das ações, inclusive quanto ao
que comemos e como gastamos nosso dinheiro, é de quanta dor esses atos
podem ajudar a evitar (seja para pessoas ou animais) e se esses mesmos atos
podem aumentar o estoque de vida e felicidade.
Os críticos do princípio utilitarista dizem que ele vai contra a intuição ou a
natureza humana. Por exemplo, estudos psicológicos têm mostrado que não
agimos com base em cálculos de quantas pessoas se beneficiarão de nossas
ações, mas se uma ação nos traz uma resposta emocional positiva. Essas
propensões podem estar programadas dentro de nós a partir de milhões de
anos de vínculo social e pelo desejo de proteger os nossos, e é improvável que
um princípio filosófico aparentemente árido possa superar isso. De fato, o
utilitarismo pode parecer uma maneira bem impessoal e calculista de ver a vida
e a organização da sociedade, e o próprio Bentham admitia isso, e por esse
motivo preferia a expressão “princípio da maior felicidade”. Mas ele era
apaixonado por sua crença de que era nossa melhor esperança para uma
sociedade justa e civilizada.
Em um nível puramente pessoal, perguntar “O que beneficiaria a maioria
das pessoas, da melhor forma, tanto quanto possível no futuro?” é, sem
dúvida, uma boa maneira de abordar a vida e as suas decisões. Bentham
acreditava que a maioria das pessoas era egoísta, mas todas as religiões, e
muitos tipos de filosofias morais, atestam os benefícios de se cultivar o estado
diretamente oposto: pensar no bem dos outros em primeiro lugar é, na
verdade, a única coisa com que podemos contar para proporcionar a nossa
felicidade.

Jeremy Bentham
Nascido em 1748, em Londres, filho e neto de advogados, Bentham
frequentou a Westminster School antes de, aos 12 anos, ir para a Universidade
de Oxford. Lá ele foi treinado para uma carreira em direito, que nunca chegou
a exercer. Em vez disso, seguiu os próprios interesses, e, mais tarde na vida,
uma herança permitiu que ele se mantivesse escrevendo e pesquisando sem
preocupações.
Bentham escreveu copiosamente, e seus artigos ainda estão sendo
transcritos. Ele se correspondia com o pai-fundador norte-americano James
Madison, com o revolucionário sul-americano Simon Bolívar, com o
economista político Adam Smith e com o político revolucionário francês
Mirabeau. Ele era a favor de tornar a homossexualidade uma questão
particular em vez de um delito criminal, opôs-se à escravatura, apoiou a
igualdade da mulher e o direito ao divórcio e foi promotor de um governo
transparente, escrevendo que “onde não há publicidade [ou seja, divulgação
completa], não há justiça”. Como parte de seu empenho para a reforma penal,
passou muitos anos desenvolvendo o influente “Panóptico”, embora seu
conceito de Penitenciária Nacional nunca tenha sido construído.
Em 1797, Bentham fez campanha com Patrick Colquhoun contra o roubo
de navios mercantes e a corrupção no Tâmisa, em Londres, o que levou à
criação de uma força policial fluvial. Fundou o jornal utilitarista Westminster
Review em 1823 e, três anos mais tarde, ajudou a criar a Universidade de
Londres, que mais tarde se tornou o University College. O espírito da
instituição era de abertura a todos, independentemente de riqueza ou afiliação
religiosa (em contraste com as universidades de Oxford e Cambridge).
James Mill (pai de John Stuart) conheceu Bentham por volta de 1808 e
passava os verões com ele e seu círculo em Forde Abbey, a casa de campo de
Bentham em Somerset. Bentham morreu em 1832 e, fiel a seus princípios,
deixou seu corpo para a ciência em vez de mandar enterrá-lo. O exterior de seu
corpo foi mumificado e por fim posto em exibição no University College,
onde pode ser visto ainda hoje.
Outros livros: Fragment on Government [Fragmento sobre o governo] (1776),
Defence of Usury [Defesa da usura] (1787), O panóptico (1787), Parliamentary
Reform Cathechism [Catecismo da Reforma Parlamentar] (1817) e A Treatise on
Judicial Evidence [Um tratado sobre a prova judicial] (1825).
1907

A evolução criadora

“Não questionamos em nenhum momento que a


adaptação ao meio é a condição necessária da
evolução. É evidente que uma espécie desapareceria
caso não conseguisse se submeter às condições de
existência que lhe são impostas. Mas uma coisa é
reconhecer que circunstâncias externas são forças com
as quais a evolução precisa contar, outra é afirmar que
são as causas determinantes da evolução. Esta última
teoria é a do mecanismo, que exclui absolutamente a
hipótese de um impulso originário, digo, um ímpeto
interior que impulsionaria a vida, por formas cada vez
mais complexas, para destinos cada vez mais
elevados.”

Em resumo
Queremos ver o universo em termos mecanicistas e determinados, mas a
realidade, uma vez que envolve vida e tempo, é, na verdade, fluida e
constantemente aberta a possibilidades.

Na mesma linha
Hannah Arendt, A condição humana (p. 24)
David Bohm, Totalidade e a ordem implicada (p. 84)
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação (p. 364)
Henri Bergson

Henri Bergson foi uma espécie de estrela intelectual na primeira metade do


século XX, pois, ao contrário do pessimismo e da perspectiva determinista da
maioria dos filósofos, ele enfatizava a criatividade, o livre-arbítrio e a alegria na
existência. Seu estilo de escrita também criava um contraste revigorante com o
estilo árido e excessivamente acadêmico de filósofos como Kant e Heidegger,
e A evolução criadora em especial foi amplamente lido. Ele foi muito elogiado
por William James, que incentivou o amigo a publicá-lo em inglês, e o livro
trouxe a Bergson um Prêmio Nobel de Literatura (raro para um filósofo).
Embora não desrespeite a lógica científica, A evolução criadora aborda o que
Bergson enxerga como deficiências do darwinismo e da teoria evolutiva. Em
sua mente, o darwinismo é uma teoria mecanicista por excelência e não deveria
ser confundido com a história completa da realidade. Pois, enquanto a
evolução enfoca as manifestações da vida, Bergson está preocupado com a
“força vital” que a gera. Para muitos, esse élan vital é um conceito instável
(quase místico), e a longa lista de detratores de Bergson incluía Bertrand
Russell e Wittgenstein. Certamente, ele está fora do mainstream filosófico, e sua
ênfase em ter criatividade e viver uma vida autêntica foi de grande influência
para artistas e escritores existencialistas (sua preocupação com o tempo ou a
“duração”, por exemplo, teve reconhecimento de Marcel Proust, que foi
padrinho do casamento de Bergson).
Apesar de seus livros terem ficado de fora das listas de leitura acadêmica na
década de 1940, houve um ressurgimento do interesse em Bergson, auxiliado
pelo filósofo francês Gilles Deleuze e sua ideia de “devires”. E, embora alguns
dos detalhes das discussões de Bergson tenham sido superados pela ciência, A
evolução criadora ainda apresenta algumas questões básicas e importantes para o
nosso tempo, e constitui uma alternativa interessante para o padrão de textos
materialistas da biologia evolutiva.

Um lembrete do que podemos ser


No início do livro, Bergson volta bastante atenção ao ser humano como algo
existente no tempo e no espaço. À primeira vista, nosso intelecto é
perfeitamente adequado para lidar com nosso ambiente físico: “Nossa lógica é,
sobretudo, a lógica de sólidos”, observa ele. Naturalmente vemos o universo
em termos de mecânica e matéria, mas esse ponto de vista nos traz realmente a
verdade? Temos por hábito colocar tudo em categorias, derramar a vida em
moldes, mas “todos os moldes se quebram”. O problema de Bergson com a
biologia é que ela enxerga a vida como matéria a ser estudada, mas a vida deve
ser vista desta forma? Nossas noções de individualidade e de organismos
separados são apenas conveniência: todas as coisas vivas, em última análise,
são parte de um todo.
A nossa inteligência permite que expliquemos não apenas o universo físico,
mas as forças invisíveis que o moldam. Se nos ativermos a uma visão
puramente mecanicista, nossas explicações continuarão “necessariamente
artificiais e simbólicas”, diz Bergson. Deveríamos estar tentando conquistar
uma noção do “impulso criativo” que produz e anima a vida. Além disso, se a
evolução é vista em termos de um contínuo impulso de criação, então faz
sentido que permita, “enquanto avança, não apenas as formas da vida, mas as
ideias que permitirão ao intelecto compreendê-la, os termos que servirão para
expressá-la”. Evoluímos a um nível tão elevado que podemos entender
igualmente a nós e às forças que movimentam a vida.

A constante e irrefreável criação do novo


Bergson observa que podemos submeter todos os tipos de matéria inorgânica
a cálculos de acordo com as leis da física e da química. Podemos obter uma
imagem precisa de uma rocha, por exemplo, examinando-a. No entanto,
formas de vida são diferentes, pois estão mudando a cada segundo. Podemos
examiná-las bem de acordo com seu passado e sua longa história de evolução
até este momento, mas não podemos saber com absoluta certeza o que o
organismo fará em seguida, mesmo com algo tão simples quanto um inseto,
com sua estrutura neurológica muito simples. Por que é assim?
A diferença das formas de vida (em contraste com as inanimadas) é que elas
têm uma “duração”. Elas não existem simplesmente no espaço, mas estão no
tempo, e o tempo é um conceito muito mais desafiador para análise do que a
forma espacial. Embora o mundo, na estimativa de Descartes, seja recriado a
cada momento, o conceito de Bergson leva em consideração a força da
evolução, que é uma “persistência real do passado no presente, uma duração
que é como, por assim dizer, um hífen, um elo”. O passado está todo
envolvido no presente, ainda que não determine o momento seguinte. Para
conhecer de verdade uma coisa viva, é necessário vê-la como parte de uma
espécie de fluxo energético cuja natureza é a criação constante:

Quanto mais estudarmos a natureza do tempo, mais


compreenderemos que a duração significa invenção, criação de formas,
elaboração contínua do absolutamente novo.

Aplicado à vida de uma pessoa, Bergson ecoa Hannah Arendt quando


escreve:

Nossa personalidade brota, cresce e amadurece sem cessar. Cada um


de seus momentos é algo novo adicionado ao que era antes. Podemos
ir mais longe: não é apenas algo novo, mas algo imprevisível.

Em contrapartida, os sistemas artificiais matemáticos, ou os fatos


relacionados a astronomia, química ou física, podem ser analisados fora do
tempo, porque estamos simplesmente lidando com objetos. Uma forma de
vida, por outro lado, nunca pode ser totalmente mantida estanque.
Naturalmente, quando se estuda uma pessoa, uma flor ou uma minhoca, é
possível trabalhar de frente para trás para “explicar” o organismo, mas os
limites dessa análise deveriam ser plenamente admitidos. Uma visão
mecanicista do universo diz que os eventos são determinados por suas causas,
mas para Bergson uma “causa” é algo bastante fluido. Ele inverte a
compreensão habitual de causalidade, dizendo que eventos ou produtos são o
que importa; são eles que fornecem uma causa, em vez de as causas explicarem
sua existência.
Isso levou Bergson a uma teoria da imprevisibilidade e da originalidade
absoluta na natureza, mas especialmente no homem. Ele admitiu que era algo
difícil de a mente humana engolir, pois acreditamos no “semelhante produz
semelhante” e na previsibilidade. No entanto, a própria natureza corroborava a
ideia de Bergson: quando uma criança vem ao mundo, podemos esperar que
ela tenha muitas das características físicas e mentais dos pais, embora
intuitivamente aceitemos que uma criança é alguém totalmente novo, e
certamente é.
Ao abraçar a vida diretamente, em vez de por meio de uma construção
intelectual, “a realidade aparece como um surgimento incessante de algo
novo”.

Ver o todo
A ciência “está preocupada apenas com o aspecto da repetição”, comenta
Bergson. Ela é impulsionada a criar regras baseadas naquilo que aconteceu
antes e enxergar padrões na natureza. Ao fazer isso, examina as coisas em
partes cada vez menores, chegando ao “conhecimento” da coisa. No entanto,
Bergson sugere que algo somente pode ser conhecido pelo seu conhecimento
como um todo. A percepção do todo é contrária à maneira como a ciência
funciona e também é a verdadeira função da filosofia.
Bergson admite que a vida pode ser vista como uma espécie de mecanismo,
mas um em que cada organismo faz parte de um sistema maior, que é parte de
um todo, de uma “continuidade indivisível”. Ele usa a analogia de uma linha
curvada em uma página. Se a examinarmos muito de perto, a linha é composta
de milhares de pontinhos de tinta; se considerarmos uma parte ínfima da linha,
ela não é curvada, mas reta para todos os efeitos. Somente quando olhamos de
longe vemos a verdadeira natureza ou finalidade da tinta como ela está
posicionada: em uma curva. Ele diz que, da mesma forma, “a vida é feita de
elementos físico-químicos tanto quanto uma curva é composta de linhas
retas”.
Os cientistas acreditam que, em seu trabalho, estão efetivamente fazendo
um instantâneo do universo e que, a partir desse instantâneo do momento
presente, podem fazer suposições sobre o futuro. Com inteligência sobre-
humana e dados suficientes, se colocarmos tudo o que há para ser conhecido
sobre o universo agora em um computador, poderíamos prever com precisão
quando uma nova espécie poderá surgir e como seria, ou a direção do vapor
que sai da boca de uma pessoa em um dia frio de inverno ou qualquer coisa.
No entanto, esse ponto de vista pressupõe que o tempo pode de fato ser
congelado por um momento, uma ilusão sobre a qual muito da ciência é
construído.
O fato de que o tempo não para e que a natureza de duração é a força de
criação contínua das coisas vivas significa que o futuro nunca será calculável.
Em vez disso, como Bergson sugere, apreciamos a vida no tempo, ou na
duração, justamente como “uma corrente contra a qual não podemos ir. Ele é
a base de nosso ser e, como sentimos, a própria substância do mundo em que
vivemos”. A perspectiva de uma “deslumbrante matemática universal”, que
analisa tudo em seus componentes estáticos, é uma insensatez que vai contra a
experiência e a própria natureza da vida.
Nenhum objetivo em mente
Dito isso, Bergson não acredita que não haja uma meta ou ponto-final no
sentido para o qual a vida se move (“finalismo”). Seu ímpeto é o de
simplesmente criar, e seu impulso vai no sentido de individualidade:

A natureza é maior e melhor que um plano em curso de realização.


Um plano é um termo atribuído a um trabalho: encerra o futuro cuja
forma ele indica. Diante da evolução da vida, ao contrário, os portais
do futuro permanecem abertos.

As visões mecanicista e finalista só podem ser significativas se abolirem o


próprio tempo, querendo dizer com isso que “tudo muda interiormente, e a
mesma realidade concreta nunca se repete”. A inteligência “não aprecia o que é
fluido e solidifica tudo o que toca”.
A conclusão de Bergson é que as perspectivas mecanicista e finalística são
apenas “visões externas de nossa conduta. Elas deduzem sua intelectualidade.
Mas nossa conduta desliza entre elas e se estende para muito mais longe”. Não
somos mecanismos; somos expressões da força criativa da vida.

Comentários finais
Bergson pergunta: no mundo moderno e racional em que vivemos, qual é o
lugar da intuição ou do instinto? Ele observa que a vida dos animais é simples
porque eles não precisam pensar em suas ações; simplesmente agem de acordo
com a sua natureza. A inteligência humana nos deu a capacidade de planejar,
ponderar e fazer escolhas (dotando-nos com a civilização), mas houve um
custo. Ao assumir a inteligência analítica, a humanidade deixou de viver por
instinto e, assim, perdeu contato com a essência da vida.
Cada pessoa ainda consegue acessar o poder da intuição, ou o ser e o agir
antes da análise são postos em jogo, mas o que impede isso é a preocupação
com nossas necessidades imediatas. Esse foco em suprir as necessidades (que
não têm fim) significa que estamos concentrados no mundo material em toda a
sua diversidade e multiplicidade, em vez de estarmos focados na unicidade e na
simplicidade da força vital. A filosofia é uma maneira de conciliar as duas
coisas, permitindo-nos viver dentro do corpo no mundo “real”, ainda que
sempre nos retiremos de volta à própria vida. Para Bergson, o verdadeiro
filósofo não é um analista árido de conceitos, mas aquele que cultiva o instinto
e a intuição para se reunir ao fato básico de nossa existência: como um entre
trilhões de expressões de um Todo absoluto, cuja natureza é a contínua criação
e evolução.

Henri Bergson
Bergson nasceu em uma família judia em 1859. Era um estudante talentoso e
um matemático capaz e, em seus anos de adolescência, ganhou o prestigioso
prêmio Concours General. Seguiu seus estudos na área de humanidades,
fazendo seu professor de matemática lamentar o fato de que ele “poderia ter
sido um matemático”, mas “seria um mero filósofo”.
Foi aceito na École Normale Supérieure, uma escola de elite, e teve como
seus contemporâneos Jean Leon (mais tarde um eminente estadista francês) e
David Emile Durkheim (sociólogo). Ficou em segundo lugar em uma das
provas mais proeminentes de filosofia na França, a Agrégation de Philosophie.
Após a universidade, Bergson lecionou em uma escola no centro da França.
Foi aceito no Collège de France e também passou a lecionar em sua alma
mater, a École Normale Supérieure.
A evolução criadora trouxe fama e muitos admiradores a Bergson, inclusive o
poeta T. S. Eliot. Sua primeira visita aos Estados Unidos resultou em um
congestionamento na Broadway. Ele se tornou um dos planejadores e
executores da Liga das Nações, a precursora das Nações Unidas, e como
presidente da Comissão Internacional de Cooperação Intelectual teve voz ativa
na formação da Unesco.
Outros livros incluem Matéria e memória (1896), A energia espiritual (1919) e
As duas fontes da moral e da religião (1932). No entanto, muito de sua obra foi
perdido, queimado de acordo com sua vontade após a sua morte, em 1941.
1980

Totalidade e a ordem implicada

“Logo, a ideia clássica de separabilidade do mundo em


partes distintas mas interagentes não é mais válida ou
relevante. Em vez disso, temos de considerar o
universo como um todo indiviso e ininterrupto. A
divisão em partículas, ou em partículas e campos, é
apenas uma abstração e uma aproximação grosseiras.
Assim, chegamos a uma ordem que é radicalmente
diferente da de Galileu e Newton; a ordem da
totalidade indivisa.”

“Por isso, em última análise, será enganoso e até


mesmo errado supor […] que cada ser humano é uma
realidade independente que interage com outros seres
humanos e com a natureza. Ao contrário, todos eles
são projeções de uma única totalidade.”

Em resumo
A maneira humana de perceber objetos separados e a criação de categorias
são uma ilusão. A realidade é, na verdade, indivisível e ininterrupta, e todos
os fenômenos são simplesmente perturbações deste todo único.

Na mesma linha
Henri Bergson, A evolução criadora (p. 76)
G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito (p. 158)
Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas (p. 228)
Karl Popper, A lógica da pesquisa científica (p. 316)
David Bohm

David Bohm foi um dos físicos teóricos de destaque do século XX, conhecido
pela teoria de DeBroglie-Bohm e pelo Efeito Aranozov-Bohm, muitas vezes
relacionados ao estranho comportamento dos elétrons. A teoria de DeBroglie-
Bohm postula “variáveis ocultas” na física quântica que exibem sua natureza
não local (ou seja, as partículas estão ligadas, agindo quase como gêmeas,
apesar da enorme distância entre elas). Bohm trabalhou sob o comando de
Robert Oppenheimer (do grupo da bomba atômica de Los Alamos) e
colaborou com Albert Einstein. No entanto, em uma vida passada entre o
Oriente e o Ocidente, a ciência e a metafísica, ele também foi muito
influenciado por sua amizade com Jiddu Krishnamurti, sábio e escritor
indiano, e por conversas com o Dalai Lama.
Bohm ficou especialmente fascinado por resultados de laboratório que
mostravam partículas subatômicas distantes que ainda conseguem se
comunicar de maneira que não poderia ser explicada por sinais físicos viajando
à velocidade da luz. Essa comunicação instantânea (ou não local) foi uma das
muitas coisas que lhe sugeriam que o universo não é um espaço vazio que
contém partículas de matéria, mas sim que o espaço em si é quase vivo e tem
inteligência. O espaço é entendido como um todo ininterrupto do qual a
consciência faz parte. São só os sentidos humanos que abstraem certos
fenômenos para dar a impressão de que as coisas são separadas e autônomas, e
que mente e matéria estão separadas. Essas visões eram contrárias à física
determinista, mas a ciência ainda precisa provar que as ideias de Bohm estão
erradas.
Enquanto a maioria dos físicos fica contente em se afundar em sua
especialização, Bohm era extremamente preocupado com as implicações de
suas ideias. Muito dos problemas do mundo, pensava ele, vinha da percepção
de que cada pessoa e cada coisa é separada da outra, o que faz com que
queiramos nos defender da percepção do “outro” e ver a humanidade como
algo separado da natureza. Tal pensamento mais amplo transformou Bohm em
filósofo, e seu trabalho demonstra como o pensamento filosófico mostra seu
valor quando a ciência não consegue revelar o significado de uma investigação.
Bohm escreveu Totalidade e a ordem implicada para um público geral, e isso
torna a leitura do livro atraente.

Uma nova visão do universo


Bohm enfatiza que a visão atômica do universo pareceu uma explicação muito
boa da realidade por um longo tempo, mas que a teoria da relatividade e a
física quântica mostraram que o nível básico da realidade não era tão simples.
As partículas reais são fugazes, na medida em que é melhor entender matéria
como uma forma de energia, e não como um composto de coisas mínimas.
Um átomo não é tanto uma coisa em si, mas existe mais como uma “nuvem
mal definida”, diz Bohm, muito dependente de seu meio ambiente, inclusive
de quem ou do que estiver observando. O átomo é mais como uma abstração
ou simplificação da realidade do que a própria realidade. Ele afirma de forma
memorável que uma partícula é mais bem-vista como um “tubo de universo”,
sempre em movimento, já que é um ponto de energia, não uma coisa. Cada
partícula/tubo de universo se estende através do espaço e tem um campo em
torno dela que se funde com outros campos.
Essa visão do universo não consiste em um espaço vazio que contém um
tanto de matéria; ao contrário, tudo é um campo unificado, e “em lugar
nenhum há uma interrupção ou divisão”. Essa é a noção de Bohm de
“totalidade”. Ele usa a analogia da estampa de um tapete: não faz sentido dizer
que as flores ou figuras no desenho são objetos separados – são, obviamente,
parte do tapete.

As ordens implicadas e explicadas


Se o primeiro aspecto da cosmologia de Bohm é a totalidade, o segundo é sua
noção de ordens implicadas e explicadas. A ordem explicada é basicamente
tudo o que conseguimos perceber com nossos sentidos, o “mundo real”. Na
explicada, as coisas existem em sua própria área de espaço (e de tempo),
aparentemente separadas de outras. A implicada, por outro lado, está fora do
espaço e do tempo e contém a semente de tudo o que se manifesta no mundo
real. Ela envolve tudo o que é possível. Dito de outra maneira, a ordem é
envolta no tempo e no espaço e, apenas às vezes, se expressa nas formas de
ordem explicada. É a implicada que é verdadeiramente real e estável; a
explicada é uma subordem distinta dessa realidade mais primária.
Bohm dá o exemplo de uma gota de tinta que é posta em um grande
recipiente de fluido viscoso. Quando o recipiente é girado em alta velocidade, a
tinta parece se dissolver no líquido, e ele fica mais turvo; porém, quando o giro
é invertido, a tinta refaz seu movimento circular no fluido e volta para sua
posição original. Assim, a ordem de seu movimento está envolta no líquido,
mesmo que, posteriormente, esta ordem pareça ter desaparecido. Mais adiante
no livro, Bohm retoma esse exemplo para observar que o caminho da tinta no
fluido é sua ordem implicada e sua visibilidade, parte da explicada. Esta última
é possível devido à interação entre a luz e nossos olhos, nosso cérebro e nosso
sistema nervoso.
Como é que essa explicação se refere à totalidade? A totalidade, que inclui
espaço, tempo, consciência e tanto a ordem implicada quanto a explicada, é
parte daquilo que Bohm chama de “holomovimento”, uma “totalidade indivisa
e ininterrupta”. Porém, como entender o fato de que nossas análises do
mundo em partes autônomas na verdade não funcionam? “Holonomia”, ou “a
lei do todo”, ainda permite que as coisas no universo pareçam autônomas,
mesmo que na verdade não sejam. Cada coisa ou evento aparentemente
separado na verdade é apenas um aspecto (estampas de um tapete, ondulações
em um rio), e não de fato separado e autogerenciável.

Mente e matéria
Qual é a relação do pensamento, ou da consciência, com a realidade?
Para serem práticos, os seres humanos há muito tempo criaram uma grande
distinção entre a fixidez, a estabilidade e a “realidade” das coisas e a
impermanência e a irrealidade do reino do pensamento. Foi uma distinção de
conveniência, não da verdade. A visão de “totalidade” de Bohm diz que, se a
mente e a matéria decorrem ambas do fluxo universal, não faz sentido ver
“pensamento” e “realidade” como entes separados. Isso tem implicações
importantes para a física quântica e o ethos de um “observador objetivo” na
ciência. Os cientistas pensam que estão separados daquilo que observam, mas,
se aceitarmos a realidade como um movimento de fluxo, então objeto,
observador, instrumento de observação e resultados experimentais devem ser
vistos como parte de um mesmo fenômeno.
Apenas nossos pensamentos individuais, surgidos no cérebro e no sistema
nervoso (o que chamam de ego), podem promover a separação, a confusão e
as suposições incorretas. No entanto, deve-se estar, pelo menos, consciente
dessa possibilidade para estar aberto àquilo que talvez sejam simplesmente
nossas projeções e falsas categorizações, tão diferente daquilo “que é” do todo
universal. Por isso, como a filosofia oriental nos diz, é somente quando
podemos realmente observar nossos pensamentos, ou na meditação ter um
momento de “não pensar”, que conseguimos começar a saber o que realmente
é. A visão de mundo da pessoa vai ditar suas relações. Se a pessoa perceber a
realidade em termos de objetos separados, essa será a experiência dela. Se a
pessoa perceber a realidade como um todo ininterrupto, naturalmente isso vai
mudar a maneira como ela se relaciona com outras formas de vida e com a
própria consciência.
De onde vêm o conhecimento intuitivo e a
criatividade
Bohm faz uma distinção entre pensamento, que é naturalmente associado à
memória, e “percepção inteligente”, que pode ser um flash de entendimento no
qual enxergamos que todo nosso pensamento estava errado ou
“condicionado”. Essas percepções são verdadeiramente novas e parecem vir
do nada. Como o autor observa, a opinião dominante é que toda percepção,
por mais recente que pareça, vem de neurônios e sinapses do cérebro. No
entanto, se as percepções são realmente novas e não condicionadas, é
impossível que venham de bancos de memória e experiências depositadas no
cérebro. Elas surgem a partir do fluxo de consciência universal, que fica além
ou acima de qualquer arranjo determinado de átomos e partículas no cérebro.
É possível “conhecer” uma coisa por meio de percepção, sem ter uma base
para conhecê-la por meio da memória ou do pensamento mecânico;
simplesmente estamos sintonizados com o fluxo universal (na verdade, sempre
fomos parte dele). O mesmo vale para a verdadeira criatividade: ninguém jamais
foi capaz de dizer de onde vem uma ideia original. A criatividade é misteriosa
porque realmente não vem de “nós”, apenas como o resultado de nosso ser,
uma abstração de um fluxo maior de informações. A analogia de Bohm é um
receptor de rádio que, quando ligado, produzirá um zumbido sem significado
próprio. “Quando o pensamento funciona sozinho”, escreve ele, “ele é
mecânico e não inteligente, porque impõe sua ordem, em geral irrelevante e
inadequada, retirada de memória.” Apenas quando o pensamento está em
sintonia com uma frequência – uma forma inteligente – é que se torna um
instrumento de ordem e significado em si.

Comentários finais
Apesar daquilo que sabemos sobre física quântica, Bohm observa que os
cientistas continuam a ter uma visão mecanicista do universo. Primeiro eram
os átomos que formavam o universo, depois os elétrons, agora são os quarks e
os prótons. Embora ele estivesse escrevendo antes do advento do Grande
Colisor de Hádrons e da busca para encontrar o bóson de Higgs, ou “partícula
de Deus”, ele antecipou isso como parte da mesma busca para localizar os
blocos básicos construtores do universo. Porém, mesmo a teoria da
relatividade sugeria que a existência de uma única partícula estável era ilusória;
Einstein preferiu pensar o universo em termos de campos. Foi apenas nosso
apego obstinado de descobrir “coisas” que manteve em nós o desejo de ver o
universo como um recipiente cheio de coisas, quando o espaço é mais como
um campo pleno de potencial. Como Bohm coloca:

Aquilo que chamamos de espaço vazio contém um pano de fundo


imenso de energia e […] a matéria como conhecemos é uma pequena
agitação ondulatória “quantizada” sobre este pano de fundo, um pouco
como uma pequena ondulação em um mar vasto […] o espaço, que
tem tanta energia, está cheio, e não vazio.

A ideia de Bohm de que o universo é um todo fluido tem sido chamada na


filosofia de “monismo neutro”. Bertrand Russell, extremamente racional,
concordava com essa visão e escreveu que “toda a dualidade da mente e da
matéria […] é um erro; há apenas um tipo de material do qual o mundo é feito,
e esse material é chamado de mental em uma disposição e de físico em outra”.
Na visão de Bohm, podemos dizer que os indivíduos realmente existem?
Ele escreve: “Em última análise, será enganoso e até mesmo errado supor […]
que cada ser humano é uma realidade independente que interage com outros
seres humanos e com a natureza. Ao contrário, todos eles são projeções de
uma única totalidade”. Nós existimos como fenômenos distintos, mas apenas
antes de sermos absorvidos de volta para um movimento maior. Nunca
estivemos realmente separados; somos mais como redemoinhos em um tapete
ou ondulações em um riacho.
David Bohm
Nascido na Pensilvânia em 1917, Bohm gostava, quando garoto, de montar,
desmontar e inventar coisas. Era filho de imigrantes da Hungria e da Lituânia,
e seu pai era dono de uma bem-sucedida loja de móveis. Frequentou o
Pennsylvania State College e a Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde
trabalhou no Laboratório de Radiação Lawrence e fez parte de um grupo de
física teórica liderado por Robert Oppenheimer. Nessa mesma época, também
estava envolvido na política radical, inclusive na liga da Juventude Comunista e
em questões de anticonscrição.
Oppenheimer queria que Bohm trabalhasse no projeto de Los Alamos, que
desenvolvia a bomba atômica, mas, por causa do posicionamento político do
aluno, não recebeu liberação do departamento de segurança. Em vez disso,
Bohm foi lecionar em Berkeley, onde obteve o seu doutorado, embora com
alguma dificuldade: sua pesquisa tornou-se secreta e lhe foi recusado acesso a
ela. Após a guerra, Bohm assumiu um cargo na Universidade de Princeton,
trabalhando ao lado de Albert Einstein. Em 1950, ele foi chamado pelo
Comitê de Atividades Antiamericanas do senador Joe McCarthy por causa de
seus laços comunistas anteriores e se recusou a testemunhar contra amigos e
colegas. Foi preso e suspenso de Princeton; mesmo depois de sua absolvição,
em 1951, foi incapaz de recuperar seu cargo. Ofereceram a Bohm uma cátedra
de física na Universidade de São Paulo, e, em 1951, ele publicou Quantum
Theory [Teoria quântica], um relato clássico sobre a ortodoxa interpretação de
Copenhague da física quântica.
Bohm mudou-se para Israel em 1955, onde conheceu Sarah Woolfson, com
quem se casou. Dois anos mais tarde, ele se tornou um “research fellow” na
Universidade de Bristol, e lá descobriu, com um aluno, o Efeito Aharanov-
Bohm, que se relaciona com a estranha capacidade de as partículas “sentirem”
campos magnéticos. Em 1961, ele assumiu seu último posto como Professor
de Física Teórica no Birkbeck College de Londres, onde seu colaborador mais
próximo foi Basil Hiley. Bohm tornou-se um grande incentivador de uma
forma de discussão aberta para acabar com os problemas sociais do mundo
(conhecida como “diálogo de Bohm”). Ele morreu em Londres, em 1992.
Outros livros: Causalidade e acaso na física moderna (1961), O findar do tempo
(1985, com Jiddu Krishnamurti), Changing Consciousness [Alterando a cons­-
ciência] (1991), e The Undivided Universe [O universo indiviso] (1993, com Basil
Hiley). O livro de Lee Nichol sobre Bohm, The Essential David Bohm [David
Bohm Essencial] (2002), inclui um prefácio do Dalai Lama.
2002

Para entender o poder

“O critério operacional para o que contava como crime


de guerra em Nuremberg foi um ato criminoso que o
Ocidente não cometeu: em outras palavras,
considerava-se legítima defesa se fosse possível
demonstrar que os norte-americanos e os britânicos
fizeram a mesma coisa […] E tudo isso é declarado
sem rodeios – se você ler o livro do norte-americano
Telford Taylor, o promotor norte-americano nos
julgamentos, é assim que ele descreve; ele é muito
claro sobre a coisa toda. Se o Ocidente fez, não foi
crime; seria crime apenas se os alemães tivessem
cometido e nós não.”

“Apesar do que sempre se ouve, o intervencionismo


norte-americano não tem nada a ver com a resistência
à propagação do comunismo, é a independência que
sempre combatemos para todo mundo – e por um
bom motivo. Se um país começa a prestar atenção à
sua população, não vai prestar a devida atenção às
necessidades imperiosas dos investidores dos EUA.
Bem, essas são prioridades inaceitáveis, de modo que
esse governo simplesmente precisa desaparecer.”

Em resumo
Em democracia, o poder silencia dissidentes através do abuso de
linguagem.

Na mesma linha
Harry Frankfurt, Sobre falar merda (p. 146)
Nicolau Maquiavel, O príncipe (p. 252)
Platão, A República (p. 308)
Noam Chomsky

Talvez Noam Chomsky seja o mais famoso filósofo contemporâneo, mas,


estritamente falando, ele é um linguista. Ganhou fama com o livro Estruturas
sintáticas (1957), no qual refutou a ideia de que nossa mente é uma lousa em
branco, demonstrando que somos neurologicamente ligados pela língua (e por
isso nós a aprendemos tão rapidamente). No entanto, é seu pensamento sobre
a política, o poder e os meios de comunicação que o coloca no topo da lista
dos principais intelectuais do mundo.
O que é um intelectual? Definições de dicionário sugerem “uma pessoa
dada a atividades que exigem o exercício do intelecto”, mas, em um sentido
social mais amplo, significa aquele que não segue o roteiro da sociedade
cegamente, aquele que questiona tudo. O clássico livro de Chomsky, A
manipulação do público (1988), estilhaçou o mito de uma mídia imparcial,
mostrando como a imprensa faz parte dos planos do establishment. Para entender
o poder, que segue no formato de perguntas e respostas e se baseia em
transcrições de palestras e seminários que o autor deu de 1989 a 1999,
apresenta uma imagem mais abrangente do seu pensamento. Os editores do
livro original, Peter Mitchell e John Schoeffel, observam que “o que distingue
[seu] pensamento político não é um insight original ou uma única ideia
abrangente. De fato, a postura política de Chomsky está enraizada em
conceitos que já foram compreendidos há séculos. Em vez disso, a grande
contribuição de Chomsky é seu domínio de uma enorme quantidade de
informações factuais e sua habilidade excepcional de desmascarar, caso após
caso, os jogos e engodos de poderosas instituições no mundo de hoje”. Na
verdade, o livro tem um site de apoio com centenas de páginas de notas de
rodapé e links para documentos reais do governo. Ao contrário de sua
reputação como teórico da conspiração, o objetivo de Chomsky é sempre levar
as pessoas a pensar por si mesmas.
Para entender o poder abre os olhos das pessoas. Para se ter uma ideia de
quantos assuntos o livro cobre, as questões resumidas abaixo são apenas da
primeira parte.

Linguagem política
Chomsky começa com uma discussão de como se usa e abusa da linguagem
para ocultar ações injustas.
Ele observa a distinção entre o significado das palavras do dicionário e seu
significado conforme são empregadas em “guerras ideológicas”. Por exemplo,
“terrorismo” é algo que apenas os outros fazem. Outra palavra da qual se
abusa é “defesa”. “Nunca ouvi falar de um Estado que admite estar realizando
um ato agressivo”, observa Chomsky, “eles estão sempre empenhados na
‘defesa’.” Os meios de comunicação nunca questionam isso: por exemplo,
nenhuma publicação mainstream contestou a ideia de os Estados Unidos
estarem “defendendo” o Vietnã do Sul, quando na verdade eles estavam
atacando o país. “Defesa” tornou-se um termo orwelliano, cujo significado é
seu exato oposto. “Os termos do discurso político”, comenta ele, “são
concebidos de modo a evitar o pensamento.”
Chomsky argumenta que o desejo dos Estados Unidos de posar como
apoiadores das democracias de todo o mundo é uma ilusão; na verdade, eles só
apoiam as democracias de que gostam. Por exemplo, como sob o comando dos
sandinistas os negócios não têm um grande papel no Estado nicaraguense, aos
olhos dos EUA o país não era uma verdadeira democracia, então estava pronto
para ser desmontado. Ele contrasta com El Salvador e Guatemala, governos
que foram liderados por militares em benefício das oligarquias locais
(latifundiários, empresários ricos e a classe profissional), cujos interesses
estavam alinhados com os dos Estados Unidos:

Não importa se eles explodirem a imprensa independente, dizimarem a


oposição política, abaterem dezenas de milhares de pessoas e nunca
realizarem nada nem remotamente parecido com uma eleição livre,
tudo isso é totalmente irrelevante. São “democracias” porque as
pessoas certas estão no comando; se as pessoas certas não estivessem
no comando, então não seriam “democracias”.

O poder real
Chomsky não critica simplesmente o governo, observando que:

Na nossa sociedade, não acontece de o poder real residir no sistema ­-


político, mas sim na economia privada: é onde as decisões são tomadas
sobre o que é produzido, quanto é produzido, o que é consumido,
onde se realiza o investimento, quem tem emprego, quem controla os
recursos e assim por diante.

Como esse é o caso, uma verdadeira democracia não existe, porque o


capital está nas mãos de poucos, não de muitos, e é o dinheiro, não o poder
político em si, que é o centro de nossas sociedades. Hoje, as nossas economias
são nossas sociedades, de modo que são conduzidas na base do “vamos manter
o rico feliz”.
Chomsky enxerga a si próprio como parte da tradição liberal clássica, que
ele nos lembra de ter sido pré-capitalista e se concentrava “no direito das
pessoas de controlarem o próprio trabalho e na necessidade do trabalho
criativo livre sob seu controle – para a liberdade humana e a criatividade”.
Segundo esse raciocínio, o trabalho assalariado no capitalismo de hoje teria
sido visto como imoral. Se a pessoa não controla o próprio trabalho, ela é uma
escrava do salário.
Chomsky diz que as economias nunca são estruturadas em termos do que é
melhor para as pessoas que realmente trabalham, mas para o próprio capital.
Não significa que ele queira a nacionalização das indústrias, pois isso
simplesmente colocaria o poder nas mãos de uma burocracia estatal. Em vez
disso, ele é a favor das empresas de propriedade do trabalhador real e do
controle de capital dentro de um sistema de mercado. Apenas quando isso
acontecer a democracia se estenderá ao poder econômico; até lá, “o poder
político [do povo] sempre será um fenômeno muito limitado”.
Chomsky estava anos à frente do movimento Occupy quando observou
que “cerca de metade da população acha que é simplesmente conduzida por
‘alguns grandes interesses cuidando de si mesmos’. As pessoas sabem ou
podem ser rapidamente convencidas de que não estão envolvidas na política,
que a política está sendo feita por interesses poderosos que não têm muito a
ver com elas”.
Discutindo o meio ambiente, Chomsky observa a contradição entre o ­-
desejo das pessoas de preservar e valorizar a vida e o lucro motivador das ­-
corporações: “O CEO da General Electric [...] seu trabalho é aumentar o lucro
e o market share, não garantir que o meio ambiente sobreviva ou que os seus
trabalhadores levem vidas decentes. Além disso, esses objetivos simplesmente
estão em conflito”.
Ainda assim, ele enxerga motivo para otimismo: apesar de a mídia camuflar
a realidade e as corporações tomarem conta da política, as pessoas são de fato
muito céticas frente às elites e a interesses comerciais e de poder estabelecidos.
Ele enfatiza que a desilusão não é algo da esquerda. Ela pode ser canalizada
por qualquer causa ou grupo disposto a se mobilizar, o que pode incluir
evangelistas, ambientalistas e, para exemplos mais recentes, membros do
movimento Occupy e do movimento Tea Party.

Estados de dependência
Apesar da retórica de disseminar a liberdade ao redor do mundo, Chomsky
alega que a finalidade real da política externa norte-americana é manter o
maior número possível de Estados dependentes dela. Chomsky vem dizendo
isso há vinte anos, mas o mesmo poderia ser dito hoje da China e de seus
esforços de “comprar” países como Nepal em sua periferia, e de muitos outros
países africanos ricos em recursos. Grandes potências opõem-se à
independência de potências menores porque elas podem começar a prestar
mais atenção ao bem-estar de seu povo em vez de instituir políticas que sirvam
aos grandes interesses do país. A política externa norte-americana é projetada
para atender a investidores, comenta ele; portanto, se qualquer governo
estrangeiro trouxer medidas que na verdade ponham seu povo em primeiro
lugar, “esse governo simplesmente precisa desaparecer”.
Embora os Estados Unidos insistam para que os países em
desenvolvimento abram seus mercados, Chomsky salienta que “não há uma
única economia na história que se desenvolveu sem intervenção extensa do
Estado, como altas tarifas protecionistas, subsídios e assim por diante. Na
verdade, todas as coisas que precisamos evitar que o Terceiro Mundo faça eram
pré-requisitos para o desenvolvimento em toda parte”.

Tudo é assunto interno


Chomsky argumenta que todos os movimentos de política externa existem
para servir fins internos. Mas o que as autoridades estão defendendo? Ele dá o
exemplo da ascensão ao poder dos bolcheviques na Rússia. Ninguém estava
falando sério que os bolcheviques armariam um ataque contra os Estados
Unidos. Na verdade, o medo era que as ideias bolcheviques pudessem infectar
a política norte-americana. Logo após a Revolução Russa, o secretário de
estado, Robert Lansing, avisou o presidente Wilson que os bolcheviques
estavam “enviando um apelo ao proletariado de todas as nações, aos
analfabetos e mentalmente deficientes, que simplesmente por sua quantidade
deveriam tomar o controle de todos os governos”. Em outras palavras, as
elites imaginaram o povo norte-americano realmente pensando por si só e
insurgindo-se, quando deveria ser mantido em seu lugar. A reação foi enviar
tropas para a Rússia e lançar o “Medo Vermelho” nos EUA para rotular o
bolchevismo como antiamericano, desacreditando-o.
A “guerra contra o terrorismo” de tempos mais recentes pode ser vista
como mais uma manifestação disso, em que as liberdades civis são reduzidas
para que se combata uma (talvez exagerada) ameaça.
Chomsky chama a atenção para o contraste entre os enormes orçamentos
de defesa e os mirrados gastos em educação e saúde. Ele comenta que a razão
para isso é que gastos sociais “aumentam o perigo da democracia”. Se mais
dinheiro for gasto em hospitais e escolas, obviamente isso afetará as pessoas
em suas áreas, e elas vão querer se envolver nas decisões; ao contrário, o
dinheiro gasto em um bombardeiro invisível é incontestável, pois não tem
efeito direto na vida das pessoas, e o cidadão médio não sabe nada sobre a
aviação militar. “E, como um dos principais objetivos da política social”,
observa Chomsky, “é manter a população passiva, as pessoas com poder vão
querer eliminar qualquer coisa que tenda a incentivar a população a se envolver
no planejamento, pois a participação popular ameaça o monopólio do poder
por parte das empresas e também estimula as organizações populares, mobiliza
as pessoas e, provavelmente, levaria à redistribuição dos lucros, e assim por
diante.”
Os custos do imperialismo são pagos pelo povo, na forma de impostos,
mas os lucros do imperialismo vão para os ricos. Portanto, o cidadão médio
simplesmente não se beneficia da política externa imperialista, mas paga preços
exorbitantes por ela.

Comentários finais
É difícil enxergar a política e os meios de comunicação da mesma forma após
a leitura de Chomsky, mas seria errado considerar este livro como um ataque
apenas contra os Estados Unidos. A natureza corruptora do poder é universal,
e, onde quer que você more, exemplos locais vão saltar à mente. Entender o
poder não é simplesmente saber o que um determinado país, empresa ou
instituição tem feito, mas o que provavelmente fará se não for verificado e
exposto. No entanto, considerando seus ataques implacáveis ao Estado norte-
americano, se este fosse mesmo todo-poderoso, Chomsky já não teria sido
silenciado há muito tempo? Sua resposta é que ele é um homem branco, e
homens brancos são vistos como sacrossantos no Ocidente moderno. Matar
causa uma celeuma imensa, então seria contraproducente para os interesses
estabelecidos.
Geralmente é sinal de genialidade quando uma pessoa reconhece quanto ela
não sabe, e Chomsky faz questão de salientar quanto realmente a ciência
pouco explica o mundo, em especial quando se trata de fatores extremamente
complexos como a ação e a motivação humanas. Considerando sua visão do
poder, é surpreendente que ele não seja um pessimista com relação ao nosso
futuro. Ele não acompanha os sociobiólogos, que afirmam que os seres
humanos são, de alguma forma, projetados para o egoísmo; em vez disso, ele
observa que, “se olharmos para os resultados da natureza humana, veremos
tudo: […] veremos um enorme autossacrifício, veremos uma enorme coragem,
veremos integridade, veremos destrutividade”.
Sempre há potencial para quaisquer conquistas serem revertidas, mas, no
geral, Chomsky vê progresso. É menos aceitável agora tratar as pessoas como
objetos ou meios para um fim (“A escravidão era considerada uma coisa boa
até pouco tempo atrás”), e, mesmo que as estruturas de poder apenas façam
elogios falsos à liberdade, à autodeterminação e aos direitos humanos, pelo
menos eles são ideais reconhecidos.

Noam Chomsky
Chomsky nasceu na Filadélfia em 1928. Seu pai, imigrante russo, foi um
eminente estudioso do hebraico. Aos 10 anos, escreveu um artigo sobre a
ameaça do fascismo após a Guerra Civil Espanhola e, a partir dos 12 ou 13
anos, passou a se identificar com a política anarquista. Ingressou na
Universidade da Pensilvânia em 1945, entrando em contato com Zellig Harris,
um proeminente linguista. Em 1947, decidiu se especializar em linguística e,
em 1949, se casou com a linguista Carol Schatz.
De 1951 a 1955, Chomsky foi “junior fellow” em Harvard, onde completou
o seu doutorado; sua tese foi publicada mais tarde como The Logical Structure of
Linguistic Theory [A estrutura lógica da teoria linguística]. Recebeu um cargo de
docente no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), em 1955, e vem
lecionando lá desde então. Em 1965, organizou um comitê de cidadãos para
divulgar a recusa fiscal em protesto durante a Guerra do Vietnã, o que lhe
trouxe reconhecimento público. Quatro anos depois, lançou seu primeiro livro
sobre política, O poder americano e os novos mandarins (1969).
Outros livros: The Political Economy of Human Rights [A economia política
dos direitos humanos] (1979, com Edward S. Herman), Contendo a democracia
(1991), Os caminhos do poder (1996) e Estados fracassados (2006). Uma versão
cinematográfica de A manipulação do público foi lançada em 2001.
44 a.C.

Dos deveres

“Pois o que, em nome dos céus, é mais desejável que


a sabedoria? O que deve ser mais valorizado? O que é
melhor para o homem, o que é mais digno de sua
natureza? Aqueles que a buscam são chamados de
filósofos; e a filosofia não é outra coisa, se traduzirmos
a palavra ao nosso idioma, senão ‘o amor à sabedoria’.
Sabedoria […] é ‘o conhecimento das coisas humanas
e divinas e das causas pelas quais essas coisas são
controladas’. E se vive o homem que desvaloriza o
estudo da filosofia, não vejo no mundo o que ele
enxergaria como adequado para se louvar.”

“Enquanto todo o campo da filosofia for fértil e


produtivo e nenhuma parte dele estéril e desperdiçada,
nenhuma parte será mais rica ou mais proveitosa do
que a que lida com os deveres morais; pois a partir
deles se derivam as regras para se levar uma vida
moral e coerente.”

Em resumo
O que é certo e o que é conveniente nunca podem ser coisas distintas.

Na mesma linha
Confúcio, Os analectos (p. 108)
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
Nicolau Maquiavel, O príncipe (p. 252)
Platão, A República (p. 308)
Cícero

Uma das grandes figuras da Roma Antiga, Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.)
apoiava tanto a democrática, nobre e mais inocente República Romana quanto
o autocrático e predatório Império Romano. Vale a pena recontar brevemente
sua história.
Vindo de uma família rica, mas não aristocrática, e proprietária de terras ao
sul de Roma, o pai de Cícero estava determinado a fazer com que ele e seu
irmão, Quinto, deixassem uma marca em Roma. Depois de uma educação de
alta qualidade, Cícero foi trabalhar como assistente de generais do alto escalão
no campo de batalha, mas ele não dava a mínima para a guerra e ficou feliz ao
voltar a Roma para trilhar sua carreira como advogado. Suas habilidades
fizeram dele uma das estrelas em ascensão de Roma. No entanto, ele também
ansiava por aprender filosofia grega e direito. Passou alguns anos viajando pela
Grécia e pela Ásia, onde ouviu epicuristas como Zenão e Fedro.
Aos 31 anos, Cícero recebeu seu primeiro cargo de questor (magistrado que
cuidava de questões financeiras), na Sicília, onde sua integridade impressionou
tanto os cidadãos locais que ele foi convidado a representar a Sicília em uma
acusação bem-sucedida contra seu ambicioso governador, Caio Verres. Aos 37
anos, recebeu um cargo de edil, que fez dele encarregado de organizar os jogos
e o entretenimento em Roma, e aos 40 anos virou pretor, ou magistrado
sênior. O auge de sua carreira veio aos 43 anos, quando se tornou cônsul (o
equivalente a primeiro-ministro ou presidente de hoje) de Roma – uma grande
conquista para um homo novus (“homem novo”) que não era de uma das antigas
famílias senatoriais.
Cícero entrou na maioridade em uma Roma que ainda operava por meio
das nobres instituições da República, mas sua pureza foi se tornando cada dia
mais turva por causa da guerra civil e da ascensão de ditadores como Júlio
César. Como cônsul, Cícero viu a si mesmo como defensor da verdadeira
Roma. Essa perspectiva foi testada no primeiro ano de seu reinado pela
Conspiração Catilinária, no qual um senador descontente (Lúcio Sérgio
Catilina), impedido de ser cônsul devido à corrupção eleitoral, conspirou para
derrubar o governo. Cícero soube desse boato e declarou lei marcial. Ordenou
a captura e a execução dos conspiradores sem julgamento. Cícero pintou o
evento como um ataque à República e a si mesmo como seu salvador. No
entanto, sua ação decisiva mais tarde voltaria para assombrá-lo, quando um
inimigo senatorial, Públio Clódio, mandou promulgar uma lei para a acusação
de qualquer pessoa que tivesse executado cidadãos sem julgamento.
Para evitar o julgamento, Cícero exilou-se por um tempo e canalizou suas
energias na escrita, retirando-se para sua casa em Tusculum, perto de Roma.
Em menos de dois anos, ele produziu a maioria de seus famosos escritos,
inclusive Discussões tusculanas, Da amizade e Dos deveres.

Uma filosofia da obrigação


Dos deveres (De Officiis), o trabalho mais influente de Cícero, é uma longa carta
em três partes dirigida a seu filho, Marcus. Embora Cícero provavelmente
tivesse a pretensão de que a obra fosse lida amplamente, o formato de carta a
torna relativamente informal.
É em parte uma defesa da filosofia em si, com Cícero tentando mostrar a
seu filho por que ela deveria ser relevante para ele. Em uma civilização que
honrava o êxito político acima de tudo, a filosofia era considerada um pouco
suspeita (até mesmo uma “coisa de grego”). Essa é a razão por que Cícero
avança com sua carreira política e é muito modesto em suas contribuições para
a filosofia. Ao mesmo tempo, ele é apaixonado por transmitir o esplendor da
filosofia grega ao público romano; o objetivo de Dos deveres é mostrar como a
filosofia dá uma boa base para as questões mais práticas de obrigação moral e
social. “Pois quem pretenderia chamar a si mesmo de filósofo”, ele pergunta,
“se não inculcar quaisquer lições dos deveres?”
Cícero acreditava que o universo era conduzido segundo um plano divino, e
que cada ser humano era uma fagulha ou lasca de Deus. Por isso, tratar mal
outra pessoa era como fazê-lo a nós mesmos. Ele observa o absurdo de
alguém que diz que não vai roubar ou enganar um membro da própria família,
mas encaixa o restante da sociedade em outra “cesta”. Ele diz que essa
negação de obrigações, laços ou interesses comuns com aqueles que não se
conhece bem é a ruína da sociedade. Da mesma forma, aqueles que têm uma
forte consideração por seus concidadãos, mas não por estrangeiros,
“destruiriam a fraternidade universal da humanidade” junto com qualquer
sentimento de bondade ou de justiça. Ele aponta Platão, que disse que “não
nascemos apenas para nós mesmos; nosso país reivindica uma parte de nosso
ser, e nossos amigos outra parte”. Somos animais sociais, nascidos para o bem
dos outros. Segundo Cícero, o objetivo de vida é simples:

contribuir para o bem geral por um intercâmbio de atos de bondade,


dando e recebendo, e, assim, por meio de nossa capacidade, de nossa
dedicação e de nossos talentos, cimentar a sociedade humana mais
estreitamente, de homem para homem.

Quando trabalha nossas obrigações mais pesadas, Cícero sugere esta


ordem: primeiro o país e os pais; segundo nossos filhos e familiares, “que
buscam apenas a nós para apoiarmos e não podem ter nenhuma outra
proteção”; e, finalmente, nossos compatriotas, com quem temos de viver em
bons termos e estar unidos na causa comum.

O que é certo e o que é conveniente


Cícero tem como objetivo acabar com a ideia de que se deve, às vezes, deixar
de fazer o que é certo para fazer o que é conveniente. A visão estoica que ele
adotou é de que, “se algo é moralmente certo, é conveniente, e, se uma coisa
não é moralmente correta, não é conveniente [...] Esse dever que os mesmos
estoicos chamam de ‘correto’ é perfeito, absoluto e ‘satisfaz a todos’”.
Pessoas que estão concentradas somente em obter lucro e ficar à frente
farão habitualmente uma divisão entre a boa ação e a ação conveniente, mas
Cícero diz que são iludidas. Fazer o que é certo, alinhado como está com a lei
moral universal, não pode “fazer alguém ficar falido”. Todos que tentaram
enganar o outro e, em seguida, se viram falidos conhecem essa verdade. Cícero
observa que, se alguém diz “esse é o caminho correto mas este aqui traz
vantagem, ele não hesitará, em seu julgamento equivocado, em dividir em duas
concepções o que a natureza criou como uma”. O resultado é uma abertura de
porta “a todo tipo de desonestidade, ilicitude e crime”. Assim como dois males
não fazem um bem, não importa o quanto a pessoa seja boa em encobri-lo,
“pois o que não é moralmente correto não pode se tornar conveniente, pois a
Natureza recusa e se opõe”.
Ele alerta que mesmo transgressões leves da justiça natural podem ter
grandes consequências. Há poucos exemplos melhores do que o do político ou
do empresário que escamoteia relatórios de despesas, ainda que os pequenos
valores auferidos os levem, quando descobertos, a perder o seu trabalho e seu
status. Certamente, ele observa, não há nenhuma vantagem a ser recebida que
valha a pena arruinar a reputação de um “bom homem” e, mais que isso, o
sentimento da própria pessoa como justa e honrada: “Pois que diferença faz se
um homem é realmente transformado em uma fera ou se, mantendo a
aparência de homem, tem a natureza selvagem de uma fera dentro de si?”.
Obviamente essas declarações são uma reminiscência de declarações bíblicas
como “Pois que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a alma?”,
o que tornou Cícero atraente para os primeiros cristãos.
A visão estoica da vida
Dos deveres faz várias referências a Panécio, filósofo estoico grego que viveu
entre 185 a.C. e 110 a.C. aproximadamente, e cujo trabalho se perdeu. Cícero
eloquentemente exprime a visão estoica da vida sobre uma variedade de
assuntos, conforme descritos a seguir.

Os perigos do sucesso

Quando a fortuna sorri e o fluxo da vida flui de acordo com nossos


desejos, vamos diligentemente evitar toda a arrogância, a altivez e o
orgulho. Pois é mesmo sinal de fraqueza ceder aos sentimentos de
alguém no sucesso como o é na adversidade.

Moderação e autocontrole

Cada ação deveria ser livre de pressa indevida ou descuido; nem


deveríamos fazer uma coisa para a qual não se pode atribuir um
motivo razoável; pois nessas palavras temos praticamente uma
definição de dever.

As pessoas deveriam gozar de tranquilidade de alma e ser livres de


toda espécie de paixão. Como resultado, a força de caráter e o
autocontrole brilharão em todo o seu resplendor.
E, se vamos apenas ter em mente a superioridade e a dignidade de
nossa natureza, devemos perceber o quanto é errado abandonar-nos
ao excesso e à vida em luxo e voluptuosidade, e como é direito viver na
frugalidade, na abnegação, na simplicidade e na sobriedade.

Seguindo o próprio caráter e “espírito”

No entanto, todos devem se apegar resolutamente a seus próprios


dons peculiares […] Temos de agir de modo a não nos opormos a leis
universais da natureza humana […] e, mesmo se outras carreiras
fossem melhores e mais nobres, ainda seria possível regular nossas
buscas pelo padrão de nossa natureza. De nada vale lutar contra a
natureza ou almejar o que é impossível de se atingir […] nada que
“nade contra a corrente” é adequado, como se diz – ou seja, se estiver
em oposição direta ao espírito natural.

Se há qualquer coisa parecida com decência, pode não ser nada


além da coerência uniforme ao longo da nossa vida como um todo e
todas as suas ações individuais. E essa coerência uniforme seria
impossível de manter ao se copiarem características pessoais de outros
e eliminar as próprias.

Sobre o uso do poder


Cícero observa a declaração de Platão de que “todo conhecimento que estiver
separado da justiça deve ser chamado de astúcia em vez de sabedoria”. Ações
ousadas que não sejam inspiradas pelo bem público “deveriam ter o nome do
descaramento em vez de coragem”, diz ele. O paradoxo é que, quanto mais
uma pessoa é ambiciosa, mais é tentada a fazer qualquer coisa para atingir seus
objetivos ou ganhar fama. Se ela for honrada, os “perigos e provações” que ela
precisa enfrentar para ganhar eminência lhe darão uma mentalidade de “eu
mereço” e farão com que ela queira se agarrar ao poder ou se tornar vulnerável
para aceitar coisas que não são dela.

Comentários finais
Cícero é um enigma. Por um lado, ele é o grande defensor da República
Romana e de seu ideal do primado da lei; por outro, sentenciou vários
conspiradores à morte sem julgamento. Embora Roma estivesse funcionando
sob a lei marcial à época, os conspiradores ainda eram cidadãos, e muitos
acharam o ato imperdoável.
No entanto, não se pode duvidar de sua influência. Ele foi providencial
para levar a filosofia grega, em especial a de Platão, às classes romanas
educadas. Sua perspectiva foi adaptada por filósofos cristãos, particularmente
por Santo Agostinho, cuja vida, ao que dizem, mudou após a leitura do
Hortensius de Cícero (obra hoje perdida), e sua ética e o conceito de direito
natural foram fundamentais para a filosofia cristã medieval. Filósofos como
Erasmo proclamaram Cícero o arquétipo humanista, e os pensadores
iluministas Voltaire e Hume elogiaram sua visão cética e tolerante do mundo.
Os ideais republicanos de Cícero foram de grande influência para os pais
fundadores dos Estados Unidos (John Adams o reverenciava), e ele foi até
aceito pelos revolucionários franceses. No entanto, Friedrich Engels queixava-
se de que Cícero nunca se importou com a extensão dos direitos econômicos
ou políticos para além da classe abastada.
Rígido e intransigente no cargo, era de esperar que Cícero fosse um homem
durão que acreditava no dever em detrimento das aspirações pessoais. Na
verdade, seu humanismo era de um contraste brutal com ditadores como Sula
e César, e ele se esforçava para dizer que as pessoas deveriam, se possível,
seguir uma carreira que fosse fiel ao seu caráter. Esse tipo de sentimento revela
que a filosofia estoica, apesar de sua reputação de obediência empedernida, era
na verdade centrada no indivíduo e no papel único que poderia desempenhar
no mundo.

Cícero
Após o assassinato de César, Cícero esperava que a República pudesse renascer
e apoiou Otaviano (Augusto) contra Marco Antônio. Quando Augusto e
Marco Antônio concordaram com uma temporária ditadura de partilha do
poder no âmbito do Segundo Triunvirato, os dois lados quiseram eliminar os
inimigos. O nome de Cícero foi adicionado às listas de morte, e ele foi caçado
e morto em 43 a.C., enquanto tentava fugir para a Macedônia. Sob as
instruções de Marco Antônio, as mãos e a cabeça de Cícero foram cortadas e
exibidas no Senado. Dizem que a esposa de Marco Antônio, Fúlvia, se deliciou
puxando a língua de Cícero para fora da boca e furando-a com um grampo de
cabelo.
O nome da família de Cícero vem da palavra cicer, grão-de-bico em latim.
Seu irmão Quinto Cícero também chegou a ser pretor e foi governador da
Ásia junto com Pompeu. Cícero teve um filho e uma filha com Terência, que
vinha de uma família rica. Ficou extremamente consternado quando Túlia, sua
filha, faleceu com 30 e poucos anos.
Os livros do autor britânico Robert Harris, Imperium (2006) e Lustrum (2009)
são os primeiros dois volumes de uma trilogia romanceada sobre a vida de
Cícero, visto através dos olhos de seu secretário, Tiro, um escravo que Cícero
libertou.1
Século V a.C.

Os analectos

“Tzu-chang perguntou a Confúcio sobre a virtude


perfeita. Confúcio respondeu: ‘Ser capaz de praticar
cinco coisas no Império constitui a virtude perfeita’. Ele
perguntou o que eram e recebeu como resposta:
‘Seriedade, generosidade de alma, sinceridade,
diligência e bondade’. Se você for sério, não será
tratado com desrespeito. Se for generoso, vai
conquistar a todos. Se for sincero, as pessoas vão
confiar em você. Se for diligente, vai conquistar muitas
coisas. Se for bom, isso permitirá que você empregue
os serviços de outrem.”

“O Mestre disse que Tzu-chang tinha quatro das


características de um homem superior – na conduta de
si mesmo, era humilde; ao servir seu superior, era
respeitoso; ao nutrir o povo, era bom; ao dar ordens
às pessoas, era justo.”

“Fan Ch’ih perguntou sobre a benevolência. O Mestre


respondeu: ‘É amar a todos os homens’. Ele perguntou
sobre o conhecimento. O Mestre respondeu: ‘É
conhecer todos os homens’.”
Em resumo
Nascemos humanos, mas nos tornamos uma pessoa ao cumprir um papel
responsável na sociedade de forma altruísta.

Na mesma linha
Cícero, Dos deveres (p. 100)
Confúcio

Pode-se dizer que Confúcio é o filósofo mais influente da história,


considerando o grande número de pessoas impactadas por suas ideias e o
tempo que essas ideias têm circulado. Ele conduzia uma escola para treinar
líderes políticos completos dois séculos antes de Platão ter estabelecido sua
academia, e sua filosofia de virtude pessoal e ordem política, ou “unidade que
tudo permeia”, foi uma das boas coisas que resultaram de Estados beligerantes
ou do período de Primavera e Outono Chinês.2
A ética confuciana guiou a China por séculos; no entanto, durante a
Revolução Cultural do presidente Mao, Confúcio foi declarado persona non grata,
pois suas ideias eram vistas como parte do sistema feudal que o Partido
Comunista queria destruir. Nos últimos tempos, o Estado chinês tem
permitido que o confucionismo floresça por defender as virtudes morais, que
contribuem para uma “sociedade harmoniosa”, e oferecer uma valiosa
alternativa para a democracia liberal no estilo ocidental. Escolas secundárias
agora ensinam os clássicos confucionistas, e o governo financia unidades do
Instituto Confúcio ao redor do mundo.
Dando grande ênfase à lealdade à família e ao serviço público, a filosofia de
Confúcio é em grande parte uma ética de abnegação e boa adequação à
comunidade. Suas “regras de decência”, expressas em instituições antiquadas e
maneiras adequadas de fazer as coisas, contrastam com a inconstância de
emoções e circunstâncias pessoais. Como o estudioso de Confúcio D. C. Lau
observou, “não há nenhum indivíduo – nenhum ‘eu’ ou ‘alma’ – que
permaneça depois que as camadas de relações sociais são arrancadas. Os
papéis e os relacionamentos de uma pessoa são uma dessas camadas”. A
harmonia nessas relações é o objetivo da vida, e apenas quando agimos
corretamente para com nossos pais, parentes e governantes conseguimos
alcançar a satisfação. Isso não significa que todo mundo precisa ser igual; há
espaço para todos os tipos na unidade maior, como os diversos instrumentos
de uma orquestra que fazem um belo som.
“Confúcio” é a versão latina de Kongfuzi, e “Analectos” significa
simplesmente uma coleção de extratos literários, nesse caso provérbios e
histórias que seus discípulos reuniram em um registro dos pensamentos do
“Mestre”. Após sua morte, os seguidores de Confúcio difundiram seus
ensinamentos em toda a China, cada um enfatizando um aspecto particular da
filosofia do Mestre que refletisse seus próprios defeitos como virtudes.

Tornando-se uma pessoa


Ren é o conceito central na ética confuciana. Tem significados diferentes n’Os
analectos, um dos quais é a “benevolência”, uma característica que temos de
desenvolver; outra maneira de entendê-lo é como o processo de tornar-se uma
“pessoa”, um ser que vem cultivando uma gama completa de virtudes. Essas
virtudes incluem a reciprocidade (shu), o respeito e o pensar constante no bem
do todo em vez de no eu. Alguns dos pensamentos de Confúcio sobre esse
conceito:

O Mestre disse: “O homem superior pensa na virtude; o homem


pequeno pensa no conforto. O homem superior pensa nas sanções da
lei; o homem pequeno pensa nos favores que ele pode receber”.

O Mestre disse: “Quem age com uma visão constante para sua
própria vantagem terá muitos resmungos contra si”.
O Mestre disse: “A mente do homem superior é versada na justiça;
a mente do homem mau é versada no lucro”.
A pessoa sábia ama a virtude mais do que qualquer coisa, e sempre fará o
que é correto. A virtude é como um freio que um homem precisa para manter
sob controle sua ambição e suas paixões. Confúcio compara a veracidade, por
exemplo, ao jugo a que bois estão presos, que permite que o carro se mova
adiante. Sem isso, os cavalos ficam loucos e provocam o caos.
Como sugere a passagem a seguir, é preciso ser verdadeiro com o próprio
eu, mas o paradoxo é que, por mais que analisemos esse eu, arrancando as
camadas de ignorância, provavelmente não encontraremos nenhuma grande
verdade da personalidade. Em vez disso, simplesmente nos tornaremos um
receptáculo para a expressão de qualidades que beneficiem a todos:

O Mestre saiu e os outros discípulos perguntaram: “O que as palavras


dele significam?”. Tsang disse: “A doutrina de nosso mestre é ser fiel
aos princípios da nossa natureza e o exercício benevolente deles para
com os outros, isso e nada mais”.

Qualidades do mestre
Os analectos não são apenas uma coleção de provérbios de Confúcio, mas uma
imagem do homem e de suas qualidades apresentadas por seus discípulos. Um
diz que “o Mestre era moderado e, no entanto, digno; majestoso, mas não
feroz; respeitoso e, no entanto, tranquilo”. Outro observa “quatro coisas das
quais o Mestre estava completamente livre. Ele não tirava conclusões
precipitadas, nem dava predeterminações arbitrárias, não apresentava
ostentação nem egoísmo”.
Embora Confúcio pudesse muitas vezes admoestar seus homens, era sem
malícia e apenas para agir como um espelho para seu comportamento ou
perspectiva. Ele ainda era muito humano (por um tempo ficou inconsolável
quando um de seus discípulos favoritos morreu com apenas 31 anos de idade),
mas também estava “além do pessoal”, com uma liberdade e uma clareza da
mente com que a maioria das pessoas apenas sonha. ­Muitas passagens falam
de sua compostura e da adequação e tempestividade de todas as suas ações.
Uma de suas frases citadas: “O homem superior é satisfeito e composto, o
homem mau está sempre cheio de aflição”. Seu método de contrastar duas
qualidades era memorável e até mesmo espirituoso:

O Mestre disse: “O homem superior é afável, mas não adulatório; o


homem mau é adulatório, mas não afável”.

O Mestre disse: “O homem superior tem uma tranquilidade digna


sem orgulho. O homem mau tem orgulho sem tranquilidade digna”.
Seus seguidores sempre queriam palavras de sabedoria dele, mas um dia
Confúcio disse simplesmente: “Prefiro não falar”. Ao que um deles retrucou:
“Se o senhor, Mestre, não falar, o que nós, seus discípulos, teremos para
recordar?”. Confúcio respondeu:

O Céu fala? As quatro estações seguem seu curso, e todas as coisas


continuam sendo produzidas, e o Céu diz alguma coisa?.

Como conseguir sucesso


Na época de Confúcio, conseguir um cargo no governo era a ambição de
muitos jovens. Um discípulo, Tzu-chang, pergunta a Confúcio a melhor
maneira de conseguir uma boa posição. Ele responde:

Quando alguém dá poucas ocasiões para ser repreendido por suas


palavras e poucas ocasiões para se arrepender de sua conduta, ele está
no caminho de conseguir a compensação.

Mais tarde, ele observa:

Um homem deveria dizer: Não estou preocupado por não ter lugar,
estou preocupado em como posso me encaixar em um. Não estou
preocupado por não ser conhecido, procuro ser digno de ser
conhecido.

Como governar com justiça e a visão de longo


prazo
O Mestre disse: “Aquele que exerce o governo por meio da virtude
pode ser comparado à estrela polar do norte, que mantém seu lugar e
todas as estrelas se viram na direção dela”.

Como consultor para governos e do próprio ministro, as percepções de


Confúcio eram o que havia de melhor para criar políticas que levassem as
pessoas à virtude em vez de impor penas duras para quem transgredisse a lei:

O Mestre disse: “Se o povo for guiado por leis, e a uniformidade


buscada for dada a ele por punições, vai tentar evitar a punição, mas
não sentirá vergonha. Se for guiado pela virtude, e a uniformidade
buscada for dada a ele pelas regras de decência, terá vergonha e, além
disso, se tornará bom”.

Ele tinha semelhanças com outro conselheiro do governo, o general


contratado Sun Tzu (autor de A arte da guerra) que era um militar. Os dois
punham a compreensão da natureza humana no centro de suas filosofias.
A receita de Confúcio de como ganhar respeito como governante e evitar a
corrupção era simples. Um governante deve “promover os justos”, e não
elevar os canalhas, assim as pessoas naturalmente se submeterão, porque
poderão ver a justiça em ação. Se o oposto acontece e os canalhas estiverem no
comando, as pessoas vão apenas tecer elogios falsos ao regime. Confúcio
destaca outras características de um bom governante, tais como garantir que as
pessoas sejam bem pagas e recompensadas, mas evitando gastos excessivos em
outros lugares; garantir que os regimes de trabalho não sejam severos em
demasia; e ser uma pessoa majestosa, mas não feroz.
Por fim, Confúcio destacou a paciência na construção de uma comunidade
ou Estado. Em vez de governar por capricho pessoal, é preciso desejar que as
coisas aconteçam em seu ritmo natural. Essa visão de longo prazo permite que
os interesses de todos sejam levados em consideração, inclusive para as futuras
gerações, e reconhece os avanços realizados em áreas particulares por
antepassados e administrações passadas. Em uma época de guerra e revolta,
essa visão de paz de longo prazo, prosperidade e justiça no Estado era
altamente atraente para governadores.

Aprendizagem constante
Confúcio foi um grande erudito, editava coleções de poesia e textos históricos
que formavam a crônica sobre sua terra natal, Lu, e também escreveu um
importante comentário sobre o I-Ching [O livro das mutações].
Via o aprendizado a partir dos livros como um meio de
autoaperfeiçoamento e podia ficar impaciente com discípulos que não eram
tão intelectuais. Uma linha n’Os analectos atribuída ao Tsze-hsia diz: “Artesões
têm suas oficinas para habitar, para realizar seus trabalhos. O homem superior
aprende para chegar ao máximo de seus princípios”. O próprio Confúcio
define isso da forma mais simples e poderosa: “Sem conhecer a força das
palavras, é impossível conhecer os homens”.

Comentários finais
Confúcio enfatizou o valor de piedade filial, especialmente do profundo
respeito e lealdade para com nossos pais, e há várias menções n’Os analectos da
importância do período de luto de três anos depois da morte dos pais. Em
resposta a uma pergunta de um discípulo sobre o significado da piedade filial,
Confúcio lamenta que seu significado tenha virado mero “apoio”, quando um
cão e um cavalo também são capazes de apoiar. O que é decisivo é a reverência.
Aquele que venera os pais refina o eu, permitindo-nos ver que somos
simplesmente um elo em uma cadeia de ser que se estende para o passado e
para o futuro.
No entanto, Confúcio não se subjugava à tradição por si só. Conta-se a
história de que ele salvou e mantinha em sua casa um menino escravo que
havia escapado de ser enterrado com seu mestre, que era o costume da época.
Confúcio alegou no tribunal que o costume era bárbaro, um caso de piedade
filial levado a um extremo horrível, e o garoto foi salvo. Sua mensagem: o
dever é importante, mas é dever alinhar-se sempre à virtude, não a costumes
ou tradições específicos. Embora eles necessariamente mudem, qualidades
como respeito e honestidade são atemporais.

Confúcio
Nasceu em 551 a.C. onde hoje fica a província de Shandong; os detalhes da
vida de Confúcio foram objeto de relatos engrandecedores, mas
provavelmente ele nasceu na casa de Song, como descendente da dinastia
Shang. Seu pai morreu quando ele tinha apenas 2 anos, e, apesar de seus
antecedentes nobres, teve uma infância e uma adolescência pobres.
Teve uma variedade de empregos dos 20 aos 40 anos de idade, mas sua
sabedoria reuniu seguidores, e, como oficial, treinava jovens para o serviço. Era
um burocrata bem-sucedido e, aos 53 anos, tornou-se ministro da Justiça na
cidade de Lu. No entanto, depois de cair em desgraça com seu regente, foi
exilado, tornando-se um consultor político autônomo para vários governantes.
Em 485 a.C., foi autorizado a retornar a Lu e lá escreveu muito do seu
trabalho, inclusive o Shi-ching [Livro dos Cânticos] e Shu-ching [Livro de
Documentos].
Até o final de sua vida, Confúcio foi reverenciado por seus patronos e
discípulos, que diziam ser mais de 3 mil. Ele morreu em 479 a.C.
1641

Meditações sobre filosofia primeira

“Mas logo depois tomei consciência de que, enquanto


eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria
necessariamente que eu, que pensava, devia ser algo;
e observando que esta verdade penso, logo existo era
tão certa que todas as afirmações mais extravagantes
dos céticos não eram capazes de abalar, eu julguei que
poderia aceitá-la sem escrúpulos como primeiro
princípio da filosofia que eu buscava.”

“E toda a força dos argumentos que tenho usado aqui


para provar a existência de Deus consiste nisso, que
reconheço que não seria possível à minha natureza ser
como é, ou seja, eu ter em mim a ideia de um Deus se
Deus de fato não existisse.”

Em resumo
Posso duvidar que tudo o que percebo seja real, mas o fato de que eu
duvido me diz que penso, que tenho consciência. E, se eu tenho
consciência, devo existir.

Na mesma linha
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas (p. 228)
Gottfried Leibniz, Ensaios de Teodiceia (p. 236)
Baruch Spinoza, Ética (p. 380)
René Descartes

René Descartes era um homem do Iluminismo que fez contribuições


profundas não apenas à filosofia, mas também à ciência e à matemática; ele
nos deu, por exemplo, o conceito de plano cartesiano e geometria de
coordenadas e fez avanços na astronomia e na óptica. No seu tempo, a religião,
a filosofia e a ciência não eram consideradas domínios separados, e ele usou a
metáfora de uma árvore para capturar sua abordagem holística do
conhecimento:

As raízes são a metafísica, o tronco é a física e os ramos que emergem


do tronco são todas as outras ciências, que podem ser reduzidas a três
principais, a saber: a medicina, a mecânica e a moral.

Depois de se alistar no exército da Baviera, encasulado em uma casa no


inverno, teve a ideia de um novo tipo de filosofia no qual todas as áreas de
conhecimento poderiam ser interligadas. Vivendo dos rendimentos de uma
herança de seu pai, ele saiu do exército, se isolou na Holanda (que tinha muito
mais liberdade de expressão do que a França ou a Inglaterra) e, nos anos que
seguiram, produziu diversas grandes obras da ciência, do método científico e
da filosofia.
Descartes nunca foi professor escolar ou universitário, e seus escritos eram
dirigidos ao leigo inteligente. Meditações sobre filosofia primeira foi sua tentativa de
descobrir exatamente o que poderia ser conhecido. Ele escreveu:
Agora, pois, minha mente está livre de todas as preocupações, e, como
tenho conseguido para mim lazer garantido na solidão pacífica, vou me
empenhar séria e livremente para a destruição de todas as minhas
antigas opiniões.

Seu objetivo radical era o de “demolir tudo completamente e começar de


novo desde as fundações, se eu quisesse estabelecer alguma coisa nas ciências
que fosse estável”. A obra tem o poder de chocar até hoje e continua sendo
uma leitura muito clara, tanto breve quanto pessoal.
Embora Descartes visse a si mesmo como um homem da ciência, também
se preocupava em fornecer uma justificativa para a intervenção divina no
mundo. Este é o outro aspecto, muitas vezes negligenciado, do livro: sua
engenhosa acomodação de ciência e religião.

Existe alguma coisa que podemos dizer ser


real?
As primeiras duas meditações de Descartes avançam por seu famoso “método
da dúvida”. Ele observa que todas as informações reunidas por meio dos
sentidos podem ser questionadas. O exemplo óbvio é quando acabamos de ter
uma rica experiência e, em seguida, acordamos e percebemos que foi apenas
um sonho. Ou quando uma torre quadrada parece redonda a distância ou a
perspectiva prega peças em nossa percepção. Esses parecem exemplos
menores, mas Descartes levanta uma questão mais importante: as ciências
físicas como a astronomia e a medicina dependem da observação e da medição
pelos sentidos e, portanto, não podem ser confiáveis. Ele leva em consideração
disciplinas como a geometria e a aritmética, que não dependem da existência
de mais nada no mundo; sua abstração é capaz de torná-las infalíveis. Afinal,
dois mais dois é igual a quatro, esteja eu sonhando ou não. Por outro lado, uma
vez que os seres humanos frequentemente cometem erros aritméticos, temos
de duvidar da exatidão de todos os nossos juízos matemáticos. Assim, o
conhecimento também não pode ser reivindicado neste domínio.
Tendo justamente enfatizado o quanto a base de nosso conhecimento é
incerta e frágil, Descartes descobre algo que pode ser confiável. Ele percebe
que, para ser enganado sobre algum conhecimento, até mesmo para ser
enganado sobre tudo que se considera conhecimento, precisa haver um “eu”
que se enganou:

Portanto, concluí que eu era uma substância, cuja essência ou natureza


toda consiste no pensar e que, para existir, não precisa de lugar nem
depende de nenhuma coisa material.

A essência de ser humano é que somos “coisas pensantes”. Apesar de todo


tipo de julgamento que fazemos sobre o mundo poder ser falho (na verdade,
nem sequer podemos ter a certeza de que o mundo físico existe mesmo), e,
embora possamos ser constantemente enganados sobre o que percebemos ser
verdade, não se pode duvidar que percebemos, que temos consciência. Essa
linha de pensamento conduz Descartes à sua famosa conclusão: “Penso, logo
existo”. Na filosofia, isso é conhecido como o “cogito”, a partir da frase latina
Cogito, ergo sum. Como Descartes explica:

Convenci-me de que não há nada no mundo – nem céu, nem terra,


nem mentes, nem corpos. Então significa que não existo? Não,
certamente preciso existir se sou eu que estou convencido de algo.

Descartes imagina um “grande enganador” que sempre tenta atirar areia em


seus olhos quanto ao que é real. Ele ainda considera que, se está sendo
enganado, deve existir: “Ele nunca fará com que eu seja nada enquanto eu
pensar que sou alguma coisa”.
A outra grande ideia de Descartes nessa linha é que, enquanto conseguia se
imaginar em alguma situação estranha sem um corpo, não era capaz de
imaginar ser um corpo sem uma mente. Portanto, sua essência é a sua mente
ou consciência, o corpo é bastante secundário.
Depois de afirmar que sua mente existe, Descartes quer se assegurar da
existência dos objetos externos à mente. Tendo duvidado de tudo, ele tenta
novamente construir uma base de conhecimento. Ele conclui que os objetos
da percepção sensorial – as coisas que vemos, cheiramos e ouvimos – não
podem ser parte da mente, porque eles forçam seus efeitos sobre nós
involuntariamente. Não é minha decisão consciente ouvir um objeto em queda
batendo no chão; o som me atinge sem que eu queira. Portanto, o som não
pode se originar em minha mente, e sim deve estar fora dela. Isso o incentiva a
concluir que existem objetos corpóreos externos.
Em contraste com o imaginário enganador que tenta fazê-lo duvidar de
tudo, Descartes constata que, em sua benevolência, Deus – que nos deu nosso
corpo e nossos sentidos – não é um enganador. Deus não faria parecer que os
dados sensoriais se originam de objetos externos, quando de fato não se
originam. Para filósofos modernos, essa suposição é questionável. Por
exemplo, uma pessoa propensa a delírios esquizofrênicos pode pensar que
ouve uma voz falando com ela, quando, na realidade, está tudo em sua mente.
Ainda assim, a identificação de consciência de Descartes como a essência do
ser humano, que nos separa de nosso corpo, foi um golpe de mestre filosófico.
O risco era que sua jornada para descobrir exatamente o que poderia saber
o levasse a uma conclusão niilista, embora, na verdade, parecesse apresentar
uma certeza pétrea, oferecendo à humanidade confiança em nosso universo. O
“dualismo” entre a mente e o corpo permitiu que a ciência moderna
florescesse, pois havia uma clara diferença entre o observador (nós) e o
observado (o mundo), que inclui nosso próprio corpo e de outros animais.
Privilegiada com raciocínio e mente observadora, a humanidade encontra
justificativa para dominar a natureza e criar coisas que pode aspirar a ser uma
expressão da perfeição. Nossa consciência é uma versão menor da vontade do
Deus que tudo vê, da natureza que tudo sabe.
O propósito da dúvida e provas de Deus
Descartes considera a dúvida em si e observa que isso é especialmente
humano. Dependendo do ponto de vista, somos ou afligidos ou abençoados
pela dúvida, mas saber é claramente melhor do que duvidar, portanto saber é
uma “perfeição” maior do que duvidar. Desse modo, considerando o quanto
duvidamos das coisas, os seres humanos devem ser imperfeitos. Além disso,
seres imperfeitos não podem produzir a perfeição, quer para si ou para outros;
precisa haver algo mais que seja perfeito em primeiro lugar, que os fez e gera a
ideia de perfeição. Descartes considera que, se ele tivesse criado a si próprio,
ele seria perfeito, mas ele não é, portanto deve ter sido criado por outra coisa.
Trata-se, evidentemente, de Deus; portanto, ele conclui, Deus deve existir.
Para Descartes, o pensamento sobre Deus não é simplesmente uma ideia
maluca de seres humanos, mas seria o pensamento mais importante que o
Criador garantiu que tivéssemos. Por meio desse pensamento, se­ríamos
capazes de enxergar que não somos perfeitos mas viemos da perfeição. De
fato, Descartes diz que o pensamento de Deus é a “marca do Criador” sobre
nós.
Não só onipotente, o Deus de Descartes é benevolente, esperando que os
seres humanos percebam seu caminho para a verdade da existência divina e
ajudando-nos ao longo desse processo, quase esperando que cheguemos a um
ponto em que duvidássemos de tudo (não só de Deus, mas de que o próprio
mundo existe). No entanto, Deus também espera que percebamos nosso
caminho de volta para algumas verdades essenciais. Ele não nos leva a um
beco sem saída. A natureza divina não deve apenas nos dizer tudo por meio da
fé ou da razão. Temos que experimentar, questionar, descobrir por nós
mesmos.
Descartes chegou a acreditar que a não crença em Deus seria perversa, mas
também promoveu a ideia de manter separadas a religião e a ciência, que são,
pode-se dizer, símbolos da mente e da matéria. Em última análise, todas as
realizações da humanidade na ciência, na arte e na razão são nossa maneira de
voltar às verdades essenciais, e a matéria seria simplesmente uma expressão de
tal verdade.

Comentários finais
Filósofos contemporâneos gostam de disfarçar ou menosprezar o lado
metafísico de Descartes, vendo esse lado como uma mancha em uma
concepção brilhante do mundo. Livros didáticos tendem a “perdoar” seu
desejo de fornecer provas de Deus, salientando que mesmo o mais racional
dos homens não poderia escapar da natureza religiosa de seu tempo.
Certamente, se estivesse vivo hoje, será que ele não mergulharia os pés nessa
nebulosidade metafísica?
Não vamos esquecer que a “árvore do conhecimento” de Descartes tem a
metafísica como sua raiz, a partir da qual todo o restante se espalha. Seu
pensamento sobre a consciência, a separação da mente e da matéria e o seu
amor à ciência natural são simplesmente ramos. A ciência e uma perspectiva
cética não adiantariam para desmantelar a realidade divina.
No entanto, Descartes era também um racionalista supremo que ajudou a
desmontar a ideia medieval de que os objetos eram dotados de “espíritos”. Sua
dualidade entre a mente e a matéria dispensou essas superstições, permitindo
que se originassem as ciências empíricas e, ao mesmo tempo, não desmentindo
a noção de que o universo fora criação de uma mente inteligente. Com efeito,
o brilhante equilíbrio entre a mente e a matéria, a física e a metafísica de
Descartes foi um extraordinário eco de São Tomás de Aquino, cujos escritos
ele estudara na juventude. Seu sistema dualista também teve enorme influência
sobre filósofos racionalistas como Spinoza e Leibniz.

René Descartes
Descartes nasceu em 1596, em La Haye, França, que mais tarde foi rebatizada
de Descartes em sua homenagem. Ele recebeu uma excelente educação em um
colégio jesuíta que ensinava lógica aristotélica, ética, metafísica e física dentro
da abrangência da teologia tomista (de Tomás de Aquino). Estudou direito na
Universidade de Poitiers, depois, aos 22 anos, viajou pela Europa, trabalhando
como engenheiro militar. Foi quando servia ao duque da Baviera que teve suas
famosas visões filosóficas. Pelo restante da vida, viveu com discrição, e não se
sabe muito sobre sua vida pessoal. Aos 50 anos, foi convidado para ir à Suécia
para ser o tutor de filosofia da rainha Cristina, mas o trabalho era mais
exigente do que seu regime solitário normal. Descartes morreu de pneumonia,
em 1650.
Seu primeiro trabalho foi O mundo ou tratado da luz, mas ele decidiu não
publicar porque continha a heresia de que a Terra girava em torno do Sol, e
Descartes não queria enfrentar o mesmo problema que Galileu. Outros livros
incluem Discurso do método (1637), Princípios de Filosofia (1644) e As paixões da
alma, publicado após sua morte.
1860

Fate

“Porém, se houver uma ordem irreversível, essa ordem


se autoexplica. Se devemos aceitar o destino, não
somos menos obrigados a afirmar a liberdade, a
importância do indivíduo, a grandeza do dever, a força
do caráter.”

“A história é a ação e a reação destes dois – Natureza


e Pensamento –, dois garotos empurrando um ao
outro sobre o meio-fio. Tudo é quem empurra ou é
empurrado: e a matéria e a mente estão, dessa forma,
em inclinação e equilíbrio perpétuos. Enquanto o
homem for fraco, a terra o sustentará. Ele planta seu
cérebro e afetos. Aos poucos ele sustentará a terra e
terá seus jardins e vinhas na bela ordem e
produtividade de seu pensamento. Cada sólido no
universo está pronto para tornar-se fluido na
aproximação da mente, e o poder de fluir é a medida
da mente.”

“Um sopro de vontade soprará eternamente pelo


universo de almas na direção do Correto e do
Necessário.”
Em resumo
O argumento de sermos simplesmente produto do destino é forte, e
mesmo assim, paradoxalmente, somente aceitando isso poderemos
perceber nossa força criativa.

Na mesma linha
Henri Bergson, A evolução criadora (p. 76)
Sam Harris, Free Will (p. 152)
Baruch Spinoza, Ética (p. 380)
Ralph Waldo Emerson

Quando nem havia completado 40 anos, o grande transcendentalista norte-


americano Ralph Waldo Emerson havia escrito “Self-Reliance”
[Autossuficiência]. Esse aclamado ensaio tornou-se símbolo da ética do
individualismo norte-americano, mas era mais complexo do que geralmente se
considerava. Embora tenha promovido a responsabilidade pessoal e o dever
recorrente de ser ele mesmo em face da conformidade social, a mensagem
mais profunda de Emerson era de que o desejo de ter sucesso não significa
impor nossa vontade contra o mundo, mas, na verdade, trabalhar a favor da
corrente do universo.
Quase vinte anos mais tarde, seu ensaio “Fate” [Destino] foi uma tentativa
de resolver o problema de quanto somos resultado de nossos esforços ou o
produto de forças invisíveis. É ainda uma excelente meditação sobre essa
questão filosófica básica.

O argumento em favor do destino


Emerson começa admitindo que a “ordem irresistível” da vida é verdadeira: o
destino é real. E, no entanto, também afirma a “importância do indivíduo” e a
“força do caráter” como forças reais. Como conciliar esses aparentes opostos?
Em um nível pessoal, a maioria de nós sente que nossa individualidade
atinge um equilíbrio com o mundo, que de alguma forma preenchemos uma
lacuna entre necessidade e liberdade e que, apesar de ser “irresistível, essa
ordem se autoexplica”. Nossa vida consiste essencialmente em desenvolver
nossas vontades dentro do espírito e das limitações da época em que vivemos.
“O enigma da época”, comenta Emerson, “tem uma solução particular para
cada época.”
Emerson admite a percepção de superficialidade na perspectiva do norte-
americano típico, observando que grandes nações não foram “presunçosas e
bufonas, mas observadoras do terror da vida, e se armaram para enfrentá-lo”.
Ele menciona os espartanos que correram felizes para a morte em batalha e os
povos turco, árabe e persa que fizeram o mesmo, aceitando facilmente seu
“destino predeterminado”. Mesmo os antigos calvinistas, observa ele, tinham
uma dignidade semelhante, segundo a qual sua individualidade pouco
significava frente ao “peso do Universo”. Emerson insinua que é arrogância
acreditar que nosso pequeno eu pode ter qualquer efeito real, quando, como
Chaucer comenta, o destino é o “ministro-geral” que realmente decide o curso
da guerra e da paz, do ódio e do amor.
Além disso, escreve Emerson, a natureza não é sentimental, “não se
importa em afogar homem ou mulher” e engole um navio inteiro “como um
grão de poeira”. Raças de animais alimentam-se umas das outras, vulcões
explodem, uma mudança no fundo do mar inunda uma aldeia, a cólera domina
uma cidade. A “providência” vai nos salvar dessas coisas? Mesmo se a
providência existir, ela se movimenta em caminhos indiscerníveis para nós e
não é uma força com a qual podemos contar em nível pessoal; é pura vaidade,
diz ele, “vestir aquele benfeitor magnífico com camisa limpa e cachecol branco
de estudante de teologia”.
A natureza não apenas não é sentimentalista como suas formas são
tirânicas. Exatamente como a existência de um pássaro é determinada pela
forma e pelo comprimento de seu bico e pela medida de suas penas, o gênero,
a raça, o clima e os talentos dos seres humanos moldam suas possibilidades:
“Todo espírito faz a sua casa, mas, depois disso, a casa confina o espírito”.
Nosso DNA e nossa herança familiar criam nosso destino:
Os homens são o que suas mães fizeram deles. Pode-se perguntar a um
tear que tece linho por que não faz caxemira, tanto quanto se pode
esperar poesia desse engenheiro ou uma descoberta química daquele
empreiteiro. Peça ao escavador na vala para explicar as leis de Newton:
os finos órgãos de seu cérebro foram esmagados pelo excesso de
trabalho e pela pobreza sórdida de pai para filho há cem anos […] Por
isso ele tem apenas um futuro, e esse já está predeterminado em seus
lobos cerebrais […] Todos os privilégios e toda a legislação do mundo
não podem interferir ou ajudar a fazer dele um poeta ou um príncipe.

Emerson era bem versado na literatura espiritual oriental, especialmente


nos conceitos de carma, reencarnação e a “roda da vida”, que apontam para a
natureza e as circunstâncias de nossa vida presente, sendo, em grande medida,
o resultado de ações e experiências em encarnações anteriores. Ainda na
tradição ocidental, ele encontra apoio para essa perspectiva, notando a
observação do filósofo alemão Friedrich Schelling de que “há em cada homem
um certo sentimento de que ele foi o que é por toda a eternidade e de forma
alguma se tornou assim com o passar do tempo”. Todos são “parte de sua
situação presente”. Se isso é verdade, o que nos permite a audácia de nos
vermos como tábulas rasas?
Olhando para trás ao longo da história científica, muitas vezes parece
inevitável que uma determinada descoberta tenha surgido em um momento
específico. Gostamos de atribuir invenções e descobertas a um indivíduo, mas
em geral há duas, três ou quatro pessoas que chegaram às mesmas conclusões
simultaneamente. A verdade é que o progresso é impessoal e tem uma
dinâmica própria. As pessoas são “veículos” intercambiáveis, e pensar o
contrário provoca o riso dos deuses.
O peso do destino, no entanto, parecerá diferente para pessoas diferentes.
Emerson sugere que uma pessoa embrutecida vai se ver cercada por todos os
lados por um destino igualmente embrutecido, ao passo que uma pessoa mais
refinada parecerá vivenciar um controle mais refinado de suas ações. Porém,
enquanto nossas limitações, ou nosso destino, se tornam menos pesadas
quanto mais pura for nossa alma, “o círculo da necessidade sempre fica
empoleirado no topo”.

O argumento em favor do poder pessoal


Depois de apresentar o argumento mais forte em favor do peso do destino,
Emerson, de repente, muda de rumo. O destino, ele começa a dizer, está
igualmente sujeito à limitação, pois há outra força que move o mundo, a qual
ele chama de “poder”. Se o destino é “história natural”, o poder é seu inimigo,
e a humanidade não é “ignominiosa bagagem”, mas um “antagonismo
estupendo” que joga areia nos planos de uma história aparentemente
determinada.
Parte do destino, Emerson diz, é a liberdade humana, e, “enquanto o
homem pensar, ele será livre”. Insistir no destino não é saudável, e entre os
mais fracos e preguiçosos fica fácil culpá-lo por tudo. A maneira correta de ver
o destino é invocar sua força natural sem diminuir nossa própria liberdade de
agir. Ele pode nos inspirar firmeza quando, de outra forma, estivermos sob os
efeitos da emoção ou das circunstâncias:

Um homem deveria se comparar vantajosamente a um rio, um


carvalho ou uma montanha. Ele deve ter pelo menos o fluxo, a
expansão e a resistência deles.

Enquanto outros acreditam em destino como uma força prejudicial,


devemos vê-lo como uma força benéfica, saber que somos “vigiados pelo
querubim do destino”. Tendo comentado longamente a ira inesperada da
natureza, Emerson sugere que podemos “enfrentar o destino com destino”,
pois “se o universo tem esses acidentes selvagens, nossos átomos ficam
selvagens em oposição a eles”. Além disso, temos uma força criativa que nos
liberta, por isso não nos tornamos uma engrenagem na máquina, mas um
participante do desenvolvimento do universo, tendo epifanias de como ele
opera e, ainda assim, encontrando nichos para preencher com nossa
originalidade. Pois, quando expandimos o conhecimento da unidade das coisas,
é natural que nosso valor para o mundo aumente; podemos dizer “o que está”
tanto quanto o que parece estar escrito no livro do destino:

O pensamento dissolve o universo material ao elevar a mente até uma


esfera onde tudo é flexível.

Emerson observa ainda que: “Sempre um homem representa mais do que


outro a vontade da Providência Divina para o período”. E a essa percepção da
verdade “reúne-se o desejo de que ela deve prevalecer”. Embora o poder da
natureza seja significativo, a vontade humana exaltada é incrível, galvanizando
potencialmente nações inteiras ou dando início a novas religiões. O herói age
de maneira que parece bastante alheia ao destino, sem sequer considerar que o
mundo poderia ser de outra forma.
Quando se olha de perto, sugere Emerson, o destino é simplesmente a
causa daquilo que não explicamos por completo. Afinal, a morte por febre
tifoide parecia “um capricho de Deus” até que alguém descobriu que a
drenagem correta ajudava a eliminá-la; foi o mesmo com o escorbuto, que
matou inúmeros marinheiros antes de percebermos que ele poderia ser
interrompido com um estoque de suco de limão. Grandes massas de terra
eram intransponíveis até trilhos férreos serem instalados. O engenho humano
frequentemente zomba do aparentemente todo-poderoso “destino”.

A conclusão de Emerson
No final de seu ensaio, Emerson volta para a relação entre as pessoas e os
eventos. Ele sugere que “a alma contém o evento que deverá acontecer, pois o
evento é apenas a realização de seus pensamentos […] O evento é a impressão
de sua forma. Adapta-se a você como sua pele”. Ele continua:

A fortuna do homem é fruto de seu caráter […] seu crescimento está


declarado em sua ambição, em seus companheiros e em seu
desempenho. Ele parece ter um tanto de sorte, mas conta com um
tanto de causalidade.

Ele compara a história de dois meninos empurrando um ao outro no chão.


Os seres humanos são quem empurra e quem é empurrado. Aquele que é fraco
é empurrado pelas circunstâncias, enquanto o sábio e forte enxerga que
objetos aparentemente imóveis podem ser movidos, que podemos estampar
nossos pensamentos no mundo. Ele pergunta:

O que é a cidade em que estamos aqui sentados senão um agregado de


materiais incongruentes que obedeceram à vontade de algum homem?
O granito estava relutante, mas as mãos dele foram mais fortes, e o
granito veio.

Comentários finais
Qual é a relação entre o ensaio anterior de Emerson, “Self-Reliance”, e “Fate”?
Seria tentador afirmar que o trabalho posterior reflete um Emerson mais sábio,
que estava mais sintonizado com a força da natureza e as circunstâncias na
vida das pessoas. É quase como se estivesse desafiando a si mesmo a acreditar
em seu ensaio anterior, mais direto, sobre o poder do indivíduo.
Mas, embora seja verdade que “Self-Reliance” tem a certeza de um homem
mais jovem e “Fate” seja mais sutil, este último ensaio, de fato, mostra o
posicionamento básico de Emerson sobre a relação entre a pessoa e o
universo. Na última parte, ele fala de algo chamado de “Bela Necessidade”,
uma maior inteligência ou “lei da vida” que parece mover o universo. Essa
força impulsiona a natureza e está além das palavras. Não é nem impessoal
nem pessoal. O sábio enxerga que não há nada deixado ao acaso, “não há
contingências” – tudo acaba como deve acabar. No entanto, tendo notado esse
aparente determinismo, e justamente quando se pensa que Emerson estava
finalmente apoiando o destino, ele diz que essa bela necessidade (natureza,
Deus, as leis, a inteligência) “solicita aos puros de coração que se inspirem em
toda a sua onipotência”.
Por fim, esta é a abertura que recebemos. Embora a lei da vida seja
imparável e tenha suas próprias razões, ao mesmo tempo quer que
trabalhemos com ela. Ao fazê-lo, podemos perder nosso pequeno eu, mas, no
processo, ficamos sintonizados com algo infinitamente maior e mais poderoso.
Deixamos de ser apenas subalternos e nos tornamos um poderoso cocriador
do desenvolvimento do mundo.

Ralph Waldo Emerson


Nascido em 1803 em Boston, Emerson tinha sete irmãos; seu pai morreu
pouco antes de ele completar 8 anos. Aos 14, ele se matriculou na
Universidade Harvard, graduando-se quatro anos depois. Após algum tempo
atuando como professor escolar, frequentou a faculdade de teologia da
Universidade Harvard, tornou-se um pastor unitarista e casou-se, mas sua
mulher, Ellen, morreu de tuberculose. Após renunciar a seu cargo por causa de
disputas teológicas, Emerson viajou à Europa e se encontrou com Thomas
Carlyle, Samuel Taylor Coleridge e William Wordsworth.
Voltando aos Estados Unidos, em 1835, estabeleceu-se em Concord e
casou-se novamente, com Lydia Jackson, com quem teve cinco filhos. Em
1836, publicou Natureza, que estabelece os princípios transcendentalistas; seus
amigos transcendentalistas incluíam Henry David Thoreau, Margaret Fuller,
Amos Bronson Alcott e Elizabeth Peabody. Nos dois anos seguintes, Emerson
fez palestras controversas em Harvard, a primeira sobre a independência
intelectual norte-americana da Europa, a segunda para defender a
independência da crença acima de todos os credos e igrejas.
Em 1841 e 1844, duas séries de ensaios foram publicadas, incluindo Self-
Reliance [Autossuficiência], Spiritual Laws [Leis Espirituais], Compensation and
Experience [A compensação e a experiência], Over-Soul [Superalma] e, na década
de 1850-60, Homens representativos, English Traits [Traços ingleses] e A conduta
para a vida. Emerson morreu em 1882.
Século III a.C.

Cartas

“Devemos, portanto, buscar as coisas que contribuam


para a felicidade, visto que, quando a felicidade está
presente, temos tudo; mas, quando está ausente,
fazemos tudo para possuí-la.”

“A morte, portanto – o mais terrível dos males – não é


nada para nós, pois, quando existimos, a morte não
está presente, e, quando a morte está presente, não
existimos.”

Em resumo
Podemos alcançar tranquilidade e felicidade ao abandonar crenças e medos
irracionais e simplesmente viver.

Na mesma linha
Aristóteles, Ética a Nicômaco (p. 32)
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
Bertrand Russell, A conquista da felicidade (p. 338)
Epicuro

Quando Epicuro começou sua escola de filosofia em uma casa com jardim em
Atenas, em 306 a.C., ela aceitava membros dos dois gêneros, o que fez as
pessoas pensarem que ele estava realizando orgias; de fato, “epicurismo”
passou a significar viver para o prazer sensual. Na realidade, o prazer físico era
apenas um aspecto de sua concepção, e quando ele o elogiava era apenas
porque significava a ausência da dor, que ele via como um mal.
A verdadeira filosofia de Epicuro significava viver de forma simples e
racional, e, uma vez que um mínimo de necessidades era satisfeito, desfrutar da
amizade e da natureza. Ele não acreditava em ideias metafísicas como as
“Formas” de Platão, optando, em vez disso, por uma visão materialista do
universo; o que importava era o que podíamos perceber com nossos sentidos.
Por ele não acreditar em vida após a morte, alcançar a felicidade na terra
assumia um significado real.
Epicuro morreu em 271 a.C., deixando mais de trezentos rolos de papiro de
seus escritos, embora apenas uma pequena quantidade de seu trabalho tenha
sobrevivido. Seu muito breve Principle Doctrines [Principais doutrinas] chegou
até nós através da biografia de Epicuro escrita por Diógenes Laércio em seu
Vida e doutrinas dos filósofos ilustres, e há também uma coleção de aforismos
encontrada em um manuscrito do Vaticano em 1888 junto com fragmentos de
escavações arqueológicas. Também subsistiram as cartas de Epicuro a três de
seus alunos, Heródoto (não o historiador), Pítocles e Meneceu. Elas são
representativas de suas principais ideias, e vamos nos concentrar nelas aqui.
As Cartas estendem-se longamente sobre cosmologia e natureza, e, em
primeiro lugar, é possível se perguntar por que Epicuro tinha tanto interesse ­-
nessas questões. É fácil esquecer agora que, antes de a ciência ter se
desenvolvido de forma autônoma, questões sobre a natureza física dos “céus”
eram vistas como parte da filosofia.

A natureza do universo
Ao escrever para Pítocles, Epicuro observa que é possível saber algo sobre os
céus a partir de nossas observações; não devemos confiar em histórias e mitos
para explicar como o universo funciona. Não há nenhum “homem na lua”,
por exemplo; os rostos que achamos ver em sua superfície são meramente um
arranjo da matéria. Da mesma forma, as alterações do clima não se devem à ira
dos deuses, mas a coincidências de determinadas condições atmosféricas;
Epicuro discute terremotos e vulcões de forma semelhante. O universo não é
conduzido de momento a momento por algum ser celestial; na verdade, todas
as massas físicas estavam lá desde o início do mundo, o qual continua a ser
ordenado e conduzido de acordo com princípios próprios óbvios. Não há nada
no universo que “admita variação de aleatoriedade”, diz Epicuro.
Precisamos estar abertos ao conhecimento de como o universo realmente
funciona, estar dispostos a nos despojar de nossas noções caras se elas não
corresponderem aos fatos. Nós seres humanos enfrentamos dificuldades, diz
Epicuro, apenas quando tentamos impor nossa vontade ou motivação sobre o
funcionamento do universo. Tememos represálias por nossas ações ou perda
de consciência (morte) quando, na realidade, esses fatos não significam nada
no plano mais amplo das coisas. Quanto mais soubermos do universo e de
seus princípios, menos teremos a inclinação de vincular nossos medos e
pensamentos irracionais a esse universo, apreciando-os simplesmente como
fenômenos dentro de nossa cabeça. Ele diz a Pítocles que “nós não devemos
pensar que não existe qualquer outro objetivo no conhecimento sobre os céus
[...] do que a paz de espírito e a confiança inabalável, assim como é o nosso
objetivo em todas as outras investigações”. Em outras palavras, quanto mais
soubermos, menos temerosos seremos. Descobrir fatos somente pode ser uma
coisa boa.
Em sua carta a Heródoto, Epicuro detalha um pouco sua teoria da origem
do universo e da natureza da matéria. Sugere que ele foi criado a partir da
oposição da matéria e do nada e não tem limite, “tanto no número de corpos
quanto na magnitude do vazio”. Ele chega ao ponto de dizer que, como existe
uma infinidade de “átomos” (o termo do grego antigo para as menores
partículas), pode haver uma infinidade de mundos. As linhas a seguir poderiam
ter sido escritas por um físico quântico:

Os átomos movem-se continuamente e para sempre, alguns […]


parados a uma longa distância um do outro, outros, por sua vez,
mantendo sua vibração rápida sempre que acontece de estarem
controlados por seu entrelaçamento com outros ou cobertos por
átomos entrelaçados.

No entanto, Epicuro diz também que não podemos continuar quebrando a


matéria em partes cada vez menores, caso contrário chegaríamos à
inexistência. Sua outra questão cosmológica interessante é que o universo pode
ter muitas causas; é irracional sugerir que exista apenas uma única “história”
que explique tudo. Em vez disso, é provável que a investigação racional
descubra muitas razões para os fenômenos. Ele observa:

Sempre que admitimos uma explicação mas rejeitamos outra que


combine igualmente bem com as evidências, é fato que estamos aquém
de todas as formas da verdadeira investigação científica e, em vez
disso, recorremos ao mito.

A verdadeira fonte da felicidade


Cientificamente, Epicuro parece estar à frente de seu tempo; mas como seu
pensamento sobre o universo se relaciona com seus pontos de vista sobre
como viver? Sua declaração “Para a nossa vida não há necessidade de
insensatez ou opinião ociosa, mas de uma existência livre de confusão” pode
aplicar-se igualmente à ciência e à vida pessoal. Em suma, a felicidade é estar
livre de ilusões.
Epicuro diz em sua carta a Meneceu que todas as nossas escolhas devem
ser direcionadas “à saúde do corpo ou à calma e à tranquilidade da alma, pois
essa é a meta de uma vida feliz”. É bom e natural que nossas ações sejam para
evitar a dor e o medo e rumem na direção do prazer. No entanto, isso não
significa que devemos simplesmente nos entregar a qualquer prazer a qualquer
momento. A pessoa racional sopesa na mente a dificuldade que talvez
acompanhe alguns prazeres, e também sabe que algumas dores são melhores
do que alguns prazeres, porque levam a um maior prazer no final:

Todo prazer, portanto, por causa de sua relação natural conosco, é


bom, mas nem todo prazer deve ser escolhido.

Ao discutir sobre a alimentação, ele observa que devemos ser felizes com
uma comida simples, não uma “mesa suntuosa”. Se tivermos esta última todos
os dias, temeremos que ela nos seja tirada. Ao contrário, poderemos desfrutar
mais de alimentos sofisticados se os comermos apenas ocasionalmente.
Epicuro admite que associar prazer à felicidade abre sua filosofia para ser
vista como um desfrute de sensualidade. Na verdade, seu objetivo é mais sério:
“liberdade da dor e da angústia mental”. Não é comida, bebida e sexo que
criam uma vida agradável, mas refletir sobre todas as escolhas da pessoa, de
modo que não façamos coisas ou pensemos em coisas que causem
perturbação na alma. Para Epicuro, uma vida virtuosa é a mesma coisa que
uma vida agradável, porque fazer a coisa certa naturalmente coloca nossa
mente em repouso. Em vez de termos angústia sobre as consequências de
nossas más ações, ficamos liberados para desfrutar de uma vida simples com
amigos, filosofia, natureza e pequenos confortos.
Epicuro salienta ainda que não devemos pôr nossa confiança no acaso ou
na sorte, apenas na prudência, que proporciona estabilidade. A pessoa sábia
“acha que é preferível permanecer prudente e sofrer de má fortuna do que
desfrutar de boa sorte ao agir estupidamente. É melhor nas ações humanas
que a decisão sólida fracasse do que a decisão precipitada renda bons frutos
devido à sorte”.
Se agir das maneiras acima, diz Epicuro a Meneceu, “você não será
perturbado nem no sono nem no despertar e viverá como um deus entre os
homens”.

Comentários finais
Epicuro não negou que havia deuses, mas também disse que não estavam
preo­cupados com as trivialidades da vida humana, e, portanto, a ideia de
deuses que podem querer nos punir tinha que ser errada. A filosofia epicurista
visa desviar as pessoas para longe de medos e superstições irracionais e
mostrar que a felicidade é muito mais provável se a pessoa usar a razão para
fazer escolhas. Antecipando a filosofia pragmática de William James em 2 mil
anos, ela sugere que, se essas escolhas nos fizerem felizes e nos permitirem
ficar em paz, então saberemos que a razão é o melhor guia para a vida. A
pessoa boa está livre de problemas em si (“não é limitada por qualquer raiva ou
favor”, como Epicuro expressa em Principle Doctrines) e não causa problemas
para ninguém. E, em outro fragmento que chegou até nós, ele aconselha:

É melhor para você estar livre do medo e deitado sobre uma cama de
palha do que possuir uma cama de ouro e mesa opulenta e ainda não
ter paz de espírito.

Uma fonte de paz da mente era a conexão humana; apropriadamente para


alguém que promovia a amizade como o maior prazer da vida, Diógenes ­-
Laércio informa que Epicuro tinha mais amigos do que praticamente qualquer
outra pessoa de seu tempo.

Epicuro
Nascido na ilha grega de Samos, em 341 a.C., Epicuro recebeu uma educação
em filosofia de Pânfilo, um platonista. Aos 18 anos, ele foi para Atenas
cumprir o serviço militar e, em seguida, passou a viver com seus pais, que
haviam se mudado para Cólofon, na costa asiática. Lá, outro professor,
Nausífanes, ensinou a Epicuro as ideias de Demócrito, inclusive a “não
perturbação” como objetivo da vida.
Em 306 a.C., Epicuro inaugurou uma escola de filosofia em Atenas, e o
movimento que cresceu ao redor se tornou conhecido como o “Jardim”.
Excepcionalmente, seus alunos incluíam mulheres e escravos. Epicuro
sobreviveu com contribuições de membros que procuravam viver de acordo
com seu lema, “Viver sem ser visto”, ou viver tranquilamente sem chamar a
atenção. As comunidades epicuristas na Grécia e na Roma antigas copiavam o
Jardim original.
A filosofia de Epicuro espalhou-se rapidamente durante sua vida e resistiu
depois de sua morte, em 270 a.C. Em Roma, Lucrécio ajudou a mantê-lo
popular, e Cícero também o reconheceu em seus escritos. No início da Idade
Média, o cristianismo tinha criado uma caricatura de Epicuro como um
sensualista grosseiro, mas, no século XVI, Erasmo e Montaigne, entre outros,
o viram sob uma nova luz, como uma figura sensata e racional, em
comparação com as superstições e os excessos da Igreja Católica. De Vita et
Moribus Epicuri Libri Octo [Oito livros sobre a vida e as maneiras de Epicuro]
(1647), de Pierre Gassendi, lhe trouxe ainda maior credibilidade.
1966

As palavras e as coisas

“Os historiadores querem escrever histórias da biologia


no século XVIII, mas não percebem que a biologia não
existia à época e que o padrão de conhecimento que
tem sido familiar para nós há 150 anos não é válido
para um período anterior. E que, se a biologia era
desconhecida, havia uma razão muito simples para
isso: a própria vida não existia. Tudo o que existiu
eram seres vivos visualizados através de uma grade de
conhecimento constituída pela história natural.”

“As ciências são línguas bem-feitas.”

Em resumo
Cada época tem pressupostos inconscientes sobre como o mundo é
ordenado, fazendo com que o sabor do conhecimento difira muito de um
período para outro.

Na mesma linha
Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas (p. 228)
Karl Popper, A lógica da pesquisa científica (p. 316)
Michel Foucault

As palavras e as coisas foi o livro que fez de Michel Foucault um intelectual


famoso na França. Com o subtítulo “Uma arqueologia das ciências humanas”,
ele tenta mostrar como o conhecimento é um produto cultural, com
disciplinas diferentes sendo simplesmente expressões da visão de mundo
dominante. Quando o livro foi publicado nos Estados Unidos com o título The
Order of Things, em 1971, o crítico literário George Steiner escreveu:

Uma primeira leitura honesta produz quase uma sensação intolerável


de verbosidade, arrogância e banalidade obscura. Cada página poderia
ser a retórica de uma sibila um tanto exausta cedendo à livre
associação. Ao recorrermos ao texto francês, vemos que não é uma
questão de tradução canhestra.

Na verdade, algumas partes do livro são bem difíceis de entender, não tanto
devido ao conteúdo, mas pelo estilo de Foucault, que leva uma página para
expressar uma ideia que realmente requer apenas uma linha ou um parágrafo.
Felizmente, seu prefácio para a tradução ao inglês oferece uma chave para a
obra.
A ideia básica de Foucault é que cada época, ou “episteme”, recende a um
“inconsciente positivo”, uma maneira de ver o mundo do qual ela é
completamente inconsciente. Nossas mentes lineares são utilizadas para
absorver uma determinada disciplina, como biologia ou economia, e visualizá-
la como uma área do conhecimento em evolução a partir de suas primeiras
concepções até os dias de hoje. Porém, isso não reflete a realidade. O modo
como as pessoas viam a ciência da vida (biologia) no século XVII, diz
Foucault, tem mais em comum com a forma como viam a riqueza e o dinheiro
naquela época do que tem com a biologia no século XIX. Cada episteme é
culturalmente contida e não “leva” a outra episteme.

Construção de categorias
A ideia do livro ocorreu a Foucault quando estava lendo um romance de
Borges e riu alto de uma referência a uma enciclopédia chinesa que dividia os
animais em:

(a) pertencentes ao Imperador, (b) embalsamados, (c) domados, (d)


leitões, (e) sereias, (f) fabulosos, (g) cães vadios, (h) incluídos na
presente classificação, (i) frenético, (j) inumeráveis, (k) desenhados com
um pincel muito fino de pelo de camelo, (l) et cetera, (m) que acabou
de quebrar a moringa, (n) que, de muito longe, parecem moscas.

Essa taxonomia bizarra levou Foucault à ideia de que todos nós possuímos
maneiras de pensar e ver que tornam outras impossíveis. Mas o que
exatamente achamos impossível? A estranheza da lista de Borges vem de não
haver nenhuma ordem de correlação entre as coisas apresentadas, nem
“terreno” de conhecimento. Isso leva à pergunta: qual é o terreno sobre o qual
estão nossas categorias? O que supomos ser verdadeiro ou não verdadeiro,
relacionado ou não relacionado, em nossa cultura e tempo? Foucault sugere que
não só não percebemos nada objetivamente, como nossos sistemas de
categorização são suposições, recebidas e aceitas inconscientemente:

Ordem é, ao mesmo tempo, aquilo que é oferecido nas coisas como


sua lei interior, a rede oculta que determina a maneira como elas se
confrontam e também aquilo que só tem existência na grade de um
olhar, de uma análise, de uma linguagem; e é somente nos espaços em
branco dessa grade que a ordem se manifesta em profundidade, como
se já estivesse lá, esperando em silêncio pelo momento de sua
expressão.

Foucault desejava substituir a ideia de que uma ciência ou determinada área


do conhecimento tem um ponto de partida e uma história linear de descoberta
por uma visão dela como “um espaço epistemológico específico para um
determinado período”, substituindo a tradicional história do pensamento pela
qual “fulano de tal descobriu algo e suas influências foram…” por uma análise
que nos diz o que qualquer um teria pensado ou acreditado em uma
determinada época. Foucault observa que, em uma escavação arqueológica,
ninguém está procurando por uma pessoa em especial, mas quer saber como
toda uma comunidade vivia e no que ela acreditava. Se olharmos para o
naturalista sueco Lineu, por exemplo, não basta descrever suas descobertas,
precisamos compreender o “discurso” intelectual e cultural que permitiu que
elas fossem expressas e observadas; ou seja, a “ordem tácita” dos tempos. Os
códigos fundamentais de uma cultura – aqueles que regem sua língua, seus
esquemas de percepção, suas trocas, suas técnicas, seus valores, a hierarquia de
suas práticas – “estabelecem para cada homem, desde o início, as ordens
empíricas com as quais ele lidará e dentro das quais se sentirá confortável”.
Foucault propõe fazê-lo investigando o limiar entre o conhecimento
clássico (conhecimento antes do século XVI) e o pensamento e o saber que
viria a constituir a modernidade. Ele estuda arte (a pintura de Velázquez Las
Meninas) e literatura (Dom Quixote) como prelúdio para a análise de três áreas:
linguagem, economia e biologia.

A criação de modernidade: a linguagem por si



Para Foucault, a chave para o saber clássico é a representação mental.
Pensadores clássicos poderiam discordar da veracidade ou não das ideias, mas
todos concordaram que as ideias eram uma representação de seus objetos. A
partir daí se deu que a linguagem, como mera representação de verdades ou
objetos, poderia não ter nenhum papel real próprio. A linguagem era a
representação física de ideias, sem nenhum significado exceto em relação a
elas:

A partir de um ponto de vista extremo, pode-se dizer que a linguagem


na era clássica não existe. Mas que ela funciona: toda a sua existência
está localizada em seu papel representativo, é limitada justamente a
esse papel e, por fim, esgota-o. A linguagem não tem outro locus,
nenhum outro valor, além da representação.

Foucault argumenta que, após a época de Kant, a linguagem ganhou uma


vida independente e essencial, além da mera representação de ideias. A ­-
gramática geral já não era suficiente. Em vez disso, desenvolveram-se a
filologia, ou o estudo da história das línguas naturais e seu foco nos próprios
textos, e a filosofia analítica, que tentou eliminar as confusões e as distorções
da linguagem. Essas duas abordagens complementares do pensamento
moderno vieram para fundamentar a divisão da filosofia analítica e a
continental. Liberta da representação direta de ideias, a linguagem poderia ser
tratada como uma realidade autônoma, sem nenhum sistema de semelhanças
vinculando-a ao mundo. Abriu-se um abismo entre o conteúdo e a forma, e
nós nos movemos de uma fase de comentários para uma fase de críticas. A
linguagem tornou-se uma verdade em si.
Essa nova episteme também considerava o reino da “pura literatura”,
evocado por Mallarmé quando respondeu à pergunta de Nietzsche “Quem
está falando?” com “A própria língua”. A literatura não é nem semelhança nem
representação, mas se torna uma força própria. Escrevendo sobre Dom Quixote,
Foucault diz:

nele a língua rompe seu antigo parentesco com as coisas e entra


naquela soberania solitária a partir da qual ela reaparecerá, em seu
estado separado, apenas como literatura; porque ele marca o ponto
onde a semelhança entra em uma época que é, do ponto de vista da
semelhança, de loucura e imaginação.

Foucault diz que, se escrevermos qualquer tipo de história que envolva


opiniões, crenças, preconceitos e superstições, “o que é escrito sobre esses
assuntos sempre será de menor valor como prova do que são as palavras em
si”. Para descobrir o que as pessoas realmente pensaram em qualquer época
determinada, o que nos traz insights não é o conteúdo do que disseram, mas
como disseram e quais suposições fizeram. Pensamos nas ciências como se
tivessem uma realidade objetiva, mas Foucault as descreve simplesmente como
“linguagens bem-feitas”.

A criação de modernidade: o nascimento do


homem
No desenvolvimento do modo de pensar moderno, ainda mais importante que
a língua é a figura do “homem” em si como um conceito epistemológico.
Foucault diz que o “homem” não existia durante a idade clássica (ou antes
dela). Não porque não houvesse nenhuma ideia de seres humanos como
espécie ou de natureza humana como uma noção psicológica, moral ou
política. Na verdade, “não havia consciência epistemológica do homem como
tal”.
A modernidade, no entanto, nos levou, a partir da taxonomia horizontal das
coisas, para a categorização conceitual vertical – a abstração. Com isso veio o
homem como um conceito, assim como a “ciência da vida” (essencialmente
uma taxonomia dos seres vivos) deu lugar à ciência mais abstrata e conceitual
da biologia. Ainda assim, Foucault argumenta que “o homem é uma invenção
recente. E uma que talvez esteja se aproximando de seu fim”. Com isso ele
quer dizer que, se a nossa visão de mundo atual desmoronar, a nossa
autoimagem exaltada também seria, no devido tempo, vista como severamente
limitada.

Comentários finais
A noção de Foucault de epistemes não é diferente dos “paradigmas” do
pensamento científico de Thomas Kuhn, e é interessante que o livro A
estrutura das revoluções científicas de Kuhn tenha sido publicado apenas quatro
anos antes de As palavras e as coisas – talvez uma prova de que o conhecimento
vem sob a forma de visões de mundo particular das quais o indivíduo mal tem
consciência. Os dois livros são um antídoto para a arrogância do
conhecimento atual e para a crença em um modelo linear de acumulação de
conhecimento. Na realidade, seja lá o que constitua o terreno do
conhecimento em qualquer campo, ele não vai, de repente, se abrir e engolir
tudo, com novas formas de “saber” surgindo em um lugar completamente
diferente.
É da natureza da moderna filosofia francesa que muitas afirmações sejam
feitas sem serem respaldadas, e As palavras e as coisas não é diferente. No
entanto, o livro é valioso em sua “meta” abordagem ao conhecimento e seu
questionamento de pressupostos e tendências. Foucault escreve sobre seu
próprio trabalho: “Entre todas as pessoas, dificilmente seria conveniente para
mim alegar que meu discurso independe de condições e regras das quais sou
imensamente inconsciente”. De fato, exatamente como agora ridicularizamos a
taxonomia chinesa mencionada por Borges, é provável que as pessoas daqui a
cem anos riam das estranhas categorias e associações cegas que atualmente
chamamos de conhecimento.

Michel Foucault
Foucault nasceu em Poitiers, França, em 1926. Seu pai era médico e queria que
ele estudasse medicina, mas, na escola, Foucault se interessava mais por
literatura e história. Ele deixou Poitiers em 1945 para estudar no Liceu
Henrique IV, em Paris, e foi admitido na École Normale Supérieure um ano
depois. Apesar de ser um excelente aluno, era socialmente inapto e sofria com
sua homossexualidade. Durante esse período, se tornou amigo de Louis
Althusser (um filósofo marxista). Foucault acabou se formando em filosofia,
psicologia e psiquiatria.
Em 1950, tornou-se professor-assistente na Universidade de Lille. Depois
de um tempo, deixou a França para lecionar na Universidade de Uppsala, na
Suécia; teve passagens também por diretorias de Institutos Franceses na
Universidade de Varsóvia e na Universidade de Hamburgo. Ele começou a se
interessar por história, em especial pela mudança de perspectivas da prática
psiquiátrica, o que resultou no muito bem recebido História da loucura. Em
1963, publicou O nascimento da clínica.
Quando seu companheiro Daniel Defert foi lotado na Tunísia para o
serviço militar, em 1965, Foucault foi trabalhar na Universidade de Tunis.
Após As palavras e as coisas ter sido publicado com grande sucesso em 1966, foi
saudado como um dos grandes pensadores de seu tempo, juntamente com
Jacques Lacan, Claude Lévi-Strauss e Roland Barthes. No mesmo ano,
publicou A arqueologia do saber e assumiu o cargo de chefe de filosofia na
Universidade de Clermont-Ferrand. Em 1970, foi nomeado professor de
História dos Sistemas de Pensamento no Collège de France. Seu crescente
envolvimento político e interesse na ação social foram refletidos no livro de
1975, Vigiar e punir, que examina as “tecnologias” de organização e controle.
O primeiro volume de História da sexualidade foi lançado em 1976. A
reputação de Foucault cresceu nas décadas de 1970 e 1980, e ele lecionou em
todo o mundo, passando mais tempo em instituições norte-americanas.
Também fez duas turnês no Irã, escrevendo ensaios sobre a Revolução
Iraniana para um jornal italiano. Ele morreu em Paris, em 1984.
2005

Sobre falar merda

“Um dos traços mais característicos de nossa cultura é


que se fala muita merda. Todo mundo sabe disso.
Cada um de nós contribui com sua parcela. Mas
tendemos a achar que essa situação é normal. A
maioria das pessoas confia muito em sua capacidade
de reconhecer quando alguma merda está sendo dita e
evitar se envolver. Por isso o fenômeno não tem
despertado muitas preocupações específicas nem
suscitou uma investigação contínua. Como
consequência, não temos uma compreensão clara do
que é falar merda, de por que se fale tanta ou qual sua
serventia.”

Em resumo
O falar merda permeia nossa cultura, e precisamos saber por que é
diferente de mentir.

Na mesma linha
Noam Chomsky, Para entender o poder (p. 92)
Michel de Montaigne, Os ensaios (p. 276)
Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas (p. 398)
Harry Frankfurt

Em 2005, esse pequeno livro de apenas 72 páginas tornou-se um best-seller


surpresa. Pareceu atingir a preocupação pública sobre os “pontos de vista
peculiares” que cercavam o lançamento da segunda Guerra do Iraque por
Estados Unidos e Reino Unido, mas sua mensagem ressoou para além de
eventos específicos.
Harry Frankfurt, professor de filosofia moral de Princeton, diz que o “falar
merda” nos rodeia, mas a gente não vê esse fato pelo que ele é. Por isso
precisamos de uma teoria.

Por que é diferente de mentir


Frankfurt pergunta se falar merda é simplesmente o mesmo que “impostura”.
Em seu livro The Prevalence of Humbug [A prevalência da impostura] (1985),
Max Black definiu impostura como “embuste enganoso, quase uma mentira,
especialmente por meio de palavras ou atos pretenciosos, relacionado aos
próprios pensamentos, sentimentos e atitudes”.
Falar merda é semelhante à impostura por ser uma tentativa deliberada de
enganar e, no entanto, fica um pouco distante de uma mentira deslavada. Falar
merda também pode ser pretensioso e uma deturpação consciente da maneira
como a pessoa realmente vê uma situação. Assim, tanto a impostura quanto o
falar merda têm como objetivo criar uma impressão de que penso ou acredito
em alguma coisa, mesmo que eu não tenha constatado e realmente dito isso.
Nessa lacuna, portanto, a inverdade pode surgir sem eu proferir uma mentira
de verdade. O principal objetivo da impostura não é criar um tipo diferente de
realidade por meio da alteração dos “fatos”, mas sim de quem fala ser visto de
forma distinta. Um grande discurso político, por exemplo, não pretende dizer
como o mundo realmente é; seu objetivo é fazer com que o orador pareça um
patriota, uma pessoa espiritualizada ou um protetor da moral.
Frankfurt conclui que a impostura não compreende plenamente a
verdadeira natureza do falar merda. Para explicar o porquê, ele começa citando
Longfellow:

Nos tempos idos da arte

Construtores com cuidado máximo moldavam

Cada diminuta e invisível parte,

Pois os Deuses em todos os lugares estavam.

Antigamente, um artesão não queria impressionar, mas sim o oposto: queria


garantir que algo tinha sido feito corretamente, mesmo que ninguém notasse
os detalhes do trabalho. Por outro lado, itens feitos com desleixo são
semelhantes a falar merda, porque o tempo, a habilidade e o cuidado são
totalmente deixados de fora do processo. Tudo se volta a um esperado efeito
de curto prazo que beneficiará o produtor, e a qualidade do produto e sua
durabilidade são irrelevantes.
Frankfurt menciona uma recordação que Fania Pascal teve de seu amigo
Wittgenstein, que lhe fez uma visita enquanto ela estava no hospital depois de
uma operação para retirada das amígdalas. Quando ela disse, no pós-
operatório, que se sentia como “um cão que tinha acabado de ser atropelado”,
ele ficou chateado, observando: “Você não sabe como um cão se sente quando
é atropelado”. Wittgenstein não era um defensor dos sentimentos caninos, mas
o famoso analista de linguística sentiu que Pascal não estava fazendo um
esforço correto com a linguagem. Ela não estava nem informando os fatos dos
próprios sentimentos, tampouco podia saber como um cão se sentia. Embora
a reação de Wittgenstein tenha sido, obviamente, exagerada, Frankfurt se
inspira nela para moldar sua definição de falar merda: que não é simplesmente
a mentira deslavada e, de fato, com frequência não chega a ser uma mentira,
mas sim uma total falta de preocupação se algo é verdadeiro ou não.

A diferença entre os mentirosos e os artistas


de merda
Em uma “falação” (um grupo de rapazes reunidos para conversar sobre
mulheres, política, esporte ou carros), o objetivo não é descobrir ou declarar
uma grande verdade, mas simplesmente falar pelo prazer de falar: como verbo,
“falar merda” pode simplesmente ser uma maneira de revelar a personalidade
de alguém (um mundo de distância de dar a palavra final sobre um assunto ou
demonstrar compromisso com ele). No entanto, os problemas começam
quando esse tipo de conversa informal vergonhosa, em que a pessoa não está
preocupada com a verdade, torna-se o modo de ser inteiro da pessoa. Para
funcionarmos bem na vida precisamos de fatos e, quando alguém parece “falar
pelos cotovelos”, ficamos furiosos.
“Contar uma mentira é um ato com enfoque nítido”, diz Frankfurt, um ato
que pode envolver um elemento de habilidade, porque precisamos criar nossa
mentira contra aquilo que sabemos perfeitamente serem os fatos ou a
moralidade aceita. Portanto, o mentiroso, “para inventar uma mentira […]
precisa pensar que sabe o que é verdadeiro”.
Em contraste, uma pessoa que queira falar merda durante a vida inteira tem
muito mais liberdade, porque não tem de fabricar mentiras à luz da verdade,
mas sim “atropelar uma história” que nem sequer precisa estar relacionada à
verdade ou à mentira. Ela pode ser muito mais criativa; a analogia apropriada é
arte, não artesania. O artista de merda não precisa realmente deturpar ou
alterar os fatos, porque ele é um mestre em tramá-los de maneira que apoiem
ou justifiquem o que está fazendo. Ao contrário do mentiroso ou da pessoa
honesta, os olhos do falador de merda não estão de forma alguma sobre os
fatos; fatos são importantes apenas na medida em que o ajudam a “se safar”.
Considerando isso, conclui Frankfurt, “falar merda é um inimigo da verdade
muito pior do que mentir”.

Por que se fala tanta merda?


Frankfurt admite que não há como dizer se as pessoas falam mais merda agora
do que em outras épocas, só que o volume hoje é “inegavelmente grande”. Um
motivo é que muitos de nós somos convocados para falar de assuntos sobre os
quais pouco sabemos; em uma democracia, se espera que tenhamos opiniões
sobre uma variedade de questões políticas, assim nós as damos para evitar
responder “não sei” às pessoas. Além disso, vivemos em um mundo relativista
em que a crença de que podemos identificar e isolar a verdade é vista como
suspeita, portanto o ideal de revelar o que é correto está sendo substituído pelo
ideal de sinceridade:

Em vez de buscar principalmente chegar a representações precisas do


mundo comum, o indivíduo se dedica a tentar fornecer representações
sinceras de si mesmo. Convencido de que a realidade não tem
nenhuma natureza inerente, que ele poderia esperar identificar como a
verdade sobre as coisas, ele se dedica a ser fiel à sua natureza.

Apesar de Frankfurt não o mencionar, seria possível alegar que essa


podridão em especial começa com Montaigne, que se deliciava em dizer quão
pouco sabia sobre o mundo e, portanto, recuava para examinar o que ele
conhecia: a si mesmo. Frankfurt enfatiza a falha neste ponto de vista: não se
pode dizer que há uma visão correta ou verdadeira de nós mesmos, mas, ao
mesmo tempo, sugere que nada pode ser dito com certeza sobre qualquer
outra coisa. Em vez disso, quanto mais sabemos sobre o mundo, mais
provavelmente estaremos começando a revelar algo verdadeiro sobre nós
mesmos.
Comentários finais
Uma mentira pode chocar ou assustar, mas nós a aceitamos, no fim das contas,
como algo coerente com a natureza humana. Falar merda, no entanto,
especialmente no que se estende além dos indivíduos, para as organizações e
os governos, é perverso, uma corrupção da humanidade. A rejeição à
“autoridade da verdade” em favor de vender ou contar uma história pode levar
ao surgimento de Hitlers e Pol Pots, cuja influência manipuladora sobre a
história é tão cativante que atrai milhões de seguidores.
Falar merda importa, e, ao transformar isso em uma teoria, Frankfurt fez
uma valiosa contribuição para a filosofia. É claro que outros têm escrito sobre
o assunto de maneiras diferentes; Sartre nos deu o conceito de
“autenticidade”, por exemplo, mas ele foi enterrado em um livro longo e
difícil. Se mais filósofos utilizassem termos comuns e escrevessem livros muito
sucintos como este, seu impacto sobre a pessoa média certamente aumentaria.

Harry G. Frankfurt
Nascido em 1929, Frankfurt recebeu seu Ph.D. na Universidade Johns
Hopkins, em 1954. Lecionou em Yale e na Universidade Rockefeller antes de
assumir seu cargo em Princeton, onde permaneceu como professor de
filosofia moral até 2002. Suas áreas de interesse acadêmico têm incluído a
racionalidade cartesiana e a verdade, a questão do livre-arbítrio e do
determinismo (especialmente suas implicações para a responsabilidade moral)
e cuidado e amor. Outros livros: The Importance of What We Care About [A
importância daquilo com que nos importamos] (1988), As razões do amor
(2004), Sobre a verdade (2006) e Taking Ourselves Seriously and Getting It Right
[Como nos levarmos a sério e fazer isso direito] (2006). Sobre falar merda foi
publicado originalmente na revista literária Raritan, em 1986.
2012

Free Will

“O livre-arbítrio é uma ilusão. Nossas vontades não são


simplesmente criadas por nós mesmos. Os
pensamentos e as intenções emergem de causas
secundárias das quais não temos consciência e sobre
as quais não exercemos nenhum controle consciente.
Não temos a liberdade que pensamos que temos.”

“O que farei em seguida e por que, no fundo,


permanece um mistério, que é completamente
determinado pelas leis da natureza e pelo estado
anterior do universo.”

Em resumo
Nossas ações são o resultado de estados do nosso cérebro a qualquer
momento, o que, por sua vez, está sujeito a causas anteriores. É inútil culpar
as pessoas por aquilo que elas são.

Na mesma linha
Julian Baggini, The Ego Trick (p. 46)
Ralph Waldo Emerson, Fate (p. 124)
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal (p. 292)
Baruch Spinoza, Ética (p. 380)
Sam Harris

Sam Harris inicia esse curto livro (cem páginas) com um relato de um crime
terrível. Em 2007, em uma pacata cidade americana, dois homens entraram em
uma casa antes do amanhecer e, ao encontrarem um homem adulto
adormecido, espancaram-no com um taco de beisebol. Depois se dirigiram ao
andar de cima, onde estavam a esposa e as filhas do homem, que ainda
dormiam. Após prender as filhas às camas, um dos invasores levou a mãe até o
banco, onde ela retirou 15 mil dólares e entregou aos homens. De volta para
casa, os criminosos dividiram o dinheiro e estupraram a filha mais velha.
Quando ouviram o pai se mexer, encharcaram a casa de gasolina e a
incendiaram. O pai escapou vivo, mas as garotas e a mãe morreram pela
inalação de fumaça. Quando mais tarde a polícia perguntou a um dos homens
por que ele não tinha desamarrado as mulheres antes de iniciar o incêndio, ele
respondeu: “Nem me passou pela cabeça”.
Qual o objetivo de Harris ao contar essa história? A nossa reação de horror
pelo que os homens fizeram se baseia na suposição de que tinham a escolha de
não o fazer, mas o fizeram mesmo assim. É essa intencionalidade insensível
que importa para nós (não nos importa de verdade que um dos homens tenha
sido estuprado repetidamente quando criança ou que o outro recentemente
tivesse tentado suicídio por remorso). Embora Harris ache o comportamento
deles repugnante, também admite que, se fosse forçado a trocar de lugar com
um deles, ele seria aquele homem: “Não haveria nenhuma parte em mim que
pudesse ver o mundo de forma diferente”. Com os mesmos genes, histórico
de vida, cérebro e até mesmo “alma”, nós teríamos feito o que aquele homem
fez naquele momento.
O livre-arbítrio sempre foi um tema importante na filosofia, mas ganhou
relevo nos últimos tempos por causa das descobertas da neurociência. Harris
menciona testes que demonstram que a decisão de fazer alguma coisa (levantar
um braço, mover uma cadeira) é feita no cérebro algum tempo antes de “nós”
conscientemente tomarmos consciência dela. Portanto, nossa neurologia está
quase configurada para nos fazer acreditar na ilusão de que estamos agindo
livremente. Ele argumenta que, na realidade, nossas ações e nossos
pensamentos são resultado direto de nossa configuração neurológica e
cerebral.

Se somos o que somos, não podemos ser


diferentes
Há tantos processos em nosso cérebro que nós não temos nenhum controle
sobre eles, não mais do que temos sobre nosso batimento cardíaco ou nossa
respiração. Não “decidimos o nosso próximo pensamento” – o pensar
simplesmente acontece. As decisões não surgem da consciência, elas aparecem
na consciência.
No entanto, se tanto de nosso pensamento consciente e ação é resultado de
nossa herança física e emocional, como podemos considerar as pessoas
realmente responsáveis por suas ações? Harris diz que seu pensamento não
exime as pessoas de crimes – obviamente devemos tratar um homem que
assassina uma criança de forma diferente da que tratamos aquele que mata
uma em um acidente de carro. No entanto, dizer que um estuprador ou um
assassino poderia ter se comportado de forma diferente é dizer também que
ele estava livre para resistir a seus impulsos, mas, considerando que os estados
de seu cérebro estão sujeitos a causas anteriores, das quais ele subjetivamente
não tinha consciência, como poderia ter agido de outra forma? E, se assim for,
como podemos “culpá-los”?
Contudo, se somos de fato meros instrumentos de nossa biologia, como
podemos ter responsabilidade moral? E o que essa situação causa ao nosso
sistema de justiça penal? Mesmo se o livre-arbítrio for ilusório, está claro que
nossas ações têm efeitos benéficos ou prejudiciais. Em termos de justiça penal,
portanto, a ênfase deve mudar de punição para avaliação de risco. Harris diz
que algumas pessoas precisam ser aprisionadas se forem uma ameaça aos
outros; no entanto, o tradicional apontar de dedo moral que vem associado ao
crime não será mais válido.

De onde vêm nossas escolhas?


Harris alega que não determinamos nossos desejos, eles são “enviados pelo
cosmos” de maneiras que não conseguimos compreender. Talvez a pessoa
sinta sede e beba um copo de água, mas não um copo de suco. Por que não
suco? Isso não lhe ocorreu, como não ocorreu ao homem desatar suas vítimas
da cama antes que o incêndio começasse.
Harris faz questão de salientar que existe uma diferença entre estados de
espírito não volitivos e volitivos, que são regidos por diferentes sistemas do
cérebro. Portanto, a consciência é bastante real. Mas o fato de que temos um
estado de deliberação consciente não significa que temos livre-arbítrio, porque
“não sabemos o que pretendemos fazer até que surja a intenção”.
A tradicional visão libertária imagina que “a influência humana
magicamente se eleva acima do plano da causalidade física” e que nossas
intenções conscientes mostram que temos livre-arbítrio. Harris diz ser verdade
que intenções nos dizem muito sobre uma pessoa, mas a origem das intenções
é totalmente misteriosa.
A questão controversa de Harris é que nossa “atribuição de influência” (o
motivo que damos para ter feito alguma coisa) é sempre incorreta. Criamos
motivos depois do fato para ordenar nossa mente, mas a verdade é que não
sabemos por que somos como somos. “Fazemos o que fazemos, e não tem
sentido afirmar que poderíamos ter feito de outra forma.” Ou, dito de outra
maneira: “É possível fazer o que se decide fazer, mas não é possível decidir o
que se vai decidir fazer”.

Comentários finais
A ideia de que o livre-arbítrio é uma ilusão teve muito apoio na filosofia.
Schopenhauer dispensou o livre-arbítrio sem pensar duas vezes, e Plotino
disse, séculos antes, que “todas as nossas ideias serão determinadas por uma
cadeia de causas anteriores”. Em Além do bem e do mal, Nietzsche escreveu:
“Nunca me canso de enfatizar um fato pequeno, conciso, a saber, que um
pensamento vem quando ‘ele’ quer, e não quando ‘eu’ quero”. A ideia de um
ego obstinado é um mito, segundo o pensamento de Nietzsche; é mais preciso
falar de coisas que “alguém” faz, ou seja, um complexo de sensações, emoções
e pensamento.
Harris vê a ideia de livre-arbítrio como fruto da religião, que tem o principal
objetivo de proporcionar alívio psicológico. Mas, ao final do livro, ele pergunta:
a consciência da ilusão de livre-arbítrio não vai diminuir a qualidade de nossa
vida? Essa é uma pergunta subjetiva, e ele pode falar apenas de sua experiência;
diz que isso somente aumentou sua compaixão para com os outros e reduziu
sua sensação de direito adquirido ou orgulho, uma vez que suas realizações não
podem realmente ser chamadas de “suas”, mas são o resultado de sua criação
de sorte, de genes e do período e do local onde ele vive. A consciência da
ilusão do livre-arbítrio não o deixou mais fatalista, mas aumentou de fato sua
noção de liberdade, pois suas esperanças, seus medos e assim por diante não
são vistos de maneira tão indelével, pessoal.
Harris passou anos praticando meditação budista exatamente com o
objetivo de abandonar a noção de um eu indelével, sólido, e a influência dessa
prática é evidente em sua obra. A outra característica essencial do budismo,
claro, é sua ênfase na causalidade. Nossa vida é moldada por nossas ações em
outras vidas, das quais nunca teremos consciência. O carma agirá, acreditemos
nós em livre-arbítrio ou não.
Sam Harris
Nascido em 1967, Harris cresceu em Los Angeles, filho de mãe judia e pai
quacre. Embora não tenha recebido uma educação religiosa, o assunto religião
sempre lhe interessou. Matriculou-se na Universidade de Stanford para estudar
língua inglesa, mas saiu ainda no segundo ano para viajar à Ásia, onde estudou
meditação com professores budistas e hindus. Em 1997, retornou para
Stanford a fim de concluir o bacharelado em Filosofia. Em 2009, concluiu seu
doutorado em neurociência na Universidade da Califórnia, em Los Angeles.
Entre os best-sellers de Harris estão A morte da fé (2004), Carta a uma nação
cristã (2006), A paisagem moral (2010), e Free Will [Livre-arbítrio] (2012). Ele
também é cofundador e diretor-presidente do Project Reason, uma fundação
sem fins lucrativos dedicada à difusão do conhecimento científico e dos
valores seculares na sociedade.
1807

Fenomenologia do Espírito

“Auxiliar para que a filosofia se aproxime da forma da


Ciência, da meta em que possa deixar de lado o título
de “amor ao saber” para ser “saber efetivo” – é isso
que me proponho.”

“A história é um processo consciente e meditativo – o


espírito esvaziado no tempo.”
“O verdadeiro é o todo.”

Em resumo
A história real do desenvolvimento humano não é avanço científico ou
“descoberta do mundo”, mas sim a percepção da própria consciência e a
forma como ela busca expressão por meio das pessoas, da política, da arte e
das instituições.

Na mesma linha
David Bohm, Totalidade e a ordem implicada (p. 84)
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
Søren Kierkegaard, Temor e tremor (p. 216)
G. W. F. Hegel

A Fenomenologia do Espírito é lendariamente impenetrável, e aqueles que se


prepararam para lê-la e atestam sua força podem ainda ser perdoados por
fazerem um questionamento imaginário a Georg Hegel: “Eu meio que entendi
o que você está dizendo, mas por que precisava escrever tão difícil?”. Como
observa Frederick Beiser, estudioso de Hegel, os livros de Hegel são “muitas
vezes uma experiência desgastante e exaustiva, o equivalente intelectual de
mascar cascalho”.
Beiser também comenta que nossa época parece ter perdido o “gosto pelo
Absoluto” de Hegel e, depois de guerras mundiais, o Holocausto e inúmeras
outros eventos horríveis, a fé de Hegel no progresso parece terrivelmente
inocente. Em um nível mais mundano, no mundo especializado, atomizado,
pluralista em que vivemos hoje, as noções de “totalidade” e “unidade” (duas
das favoritas de Hegel) também não parecem fazer muito sentido.
Apesar disso, a simples escala da visão de Hegel ainda pode cativar, e suas
visões talvez não sejam tão conflitantes com a vida contemporânea quanto
parecem à primeira vista. O fato de depositarmos Hegel em uma caixa em­-
poeirada com o rótulo “Idealismo alemão do século XIX” impede que
vejamos sua genialidade como um intérprete e apoiador da modernidade.
Contrariando a visão romântica de que a tecnologia, a liberdade e o
capitalismo eram hostis à alma, Hegel disse que, na verdade, o mundo
moderno é nossa maior conquista – a oportunidade pela qual a humanidade
esperou por muito tempo, uma grande expressão do “Espírito” ou a
consciência que não podia ser refreada. O papel do indivíduo em tudo isso é
levemente problemático, mas, como veremos, a solução de Hegel é positiva.
A Fenomenologia do Espírito é, de fato, difícil de ler, mas seria uma pena deixar
de conhecer por completo seus insights. Embora o livro seja impossível de
resumir, o texto a seguir deve trazer um gostinho das visões de Hegel.

Um panorama geral
Como Hegel observa no famoso Prefácio, os filósofos convencionais veem sua
disciplina como um campo de posições concorrentes, no qual apenas um
sistema pode ser considerado o “vencedor”. Eles enxergam as questões a
partir da perspectiva de um campo de batalha de ideologias. A abordagem bem
original de Hegel, por outro lado, é ter uma visão panorâmica de tudo: ele vê
cada uma das filosofias concorrentes como tendo seu lugar, permitindo, com o
passar do tempo, “o desenvolvimento progressivo da verdade”. Em termos
botânicos, ele observa que os botões são esquecidos quando estouram em flor,
e as flores, por sua vez, dão lugar ao fruto, que revela a verdade ou o obje­tivo
da árvore. A intenção de Hegel é libertar a filosofia de sua visão limitada e
mostrar a verdade do todo. É melhor ver a variedade e a riqueza da cultura e
da filosofia como um grande movimento.
O título original do livro também pode ser traduzido como
“Fenomenologia da mente” e, como tal, não é sobre um “espírito” mítico, mas
sim sobre a consciência em si. A fenomenologia é o estudo das coisas sendo
manifestadas ou surgindo; então, em termos literais, o título significa como a
consciência se manifesta no mundo real. Cada pessoa é o resultado de milhares
de anos de desenvolvimento, e o objetivo de Hegel é dizer aonde chegamos
como espécie. Para ele, “ciência” não é simplesmente o estudo de fenômenos
naturais, mas o desenvolvimento da consciência com o passar do tempo.
“História” torna-se o processo de uma consciência cada vez maior de nós
mesmos. O universo manifestado inteiramente é apenas um processo do
Espírito que se projeta e, em seguida, retorna a si mesmo em um movimento.
Para compreen­dermos adequadamente o projeto de Hegel, podemos também
olhar para o título provisório de sua obra, que poderia ter deixado as coisas
mais claras para os leitores: “Ciência da experiência da consciência”.

Uma visão mais ampla da ciência


Em oposição a todo filósofo empirista ou materialista antes e depois dele,
Hegel pensava que era loucura considerar que o projeto de conhecimento
deveria ficar confinado aos fenômenos naturais e físicos. Em vez disso, ao
olhar diretamente para o mundo fenomênico, acabaríamos entendendo a
verdade interna por trás dele, ganhando conhecimento do Absoluto. A ideia de
que a humanidade deveria parar no mundo material, ou de que esse era o único
mundo que existia, era vista por Hegel como falta de coragem ou excesso de
preguiça. A compreensão plena deveria englobar tudo, fosse material ou não.
Esse era o trabalho da Ciência real, com “C maiúsculo”.
O “Conceito” (Begriff) de Hegel significa a natureza essencial de alguma
coisa, não apenas as manifestações óbvias. Ele escreve:

Os pensamentos verdadeiros e a intelecção científica devem ser


alcançados pelo trabalho do Conceito. Apenas o Conceito pode
produzir a universalidade do saber, que não é a indeterminação nem a
inadequação do senso comum, mas um conhecimento cultivado e
completo.

Em outras palavras, para ser realmente científico, é necessário ir além do


puramente físico e identificar a lógica invisível de alguma coisa, ou a verdade
de como as questões se desenvolvem. Ele admite que essa visão da ciência
nunca será bem recebida, e, de fato, pode-se ver por que os filósofos analíticos
posteriores, como A. J. Ayer e Bertrand Russell, pouco escreveram sobre
Hegel.
Como um pensador do pós-Iluminismo, Hegel precisava falar em termos
“científicos”, mas é uma ciência que Stephen Hawking não reconheceria. E,
ainda assim, Hegel observou que as ciências naturais são sedutoras, porque, se
simplesmente olharmos para o que está diante de nós, nenhum detalhe parece
estar omitido. Portanto, elas dão a sensação de que estamos vendo tudo. Porém
é, na verdade, uma espécie pobre e abstrata de conhecimento, pois oferece
informações ou dados, mas nenhuma compreensão. Além disso, a análise
“objetiva” é uma ilusão, porque as coisas apenas existem no contexto da
percepção que o observador tem delas. Objeto e sujeito são, portanto, unidos:
o objeto, o observador e o ato de ver são todos uma coisa só. Ver as coisas
dessa maneira ridiculariza o “fato científico” e nos diz que a consciência é tão
parte da ciência quanto o mundo dos objetos que ela se propõe a analisar. Isso,
para Hegel, é a forma mais realista de apreender o mundo.
Em suas aulas sobre Fenomenologia do Espírito, Heidegger chamava a atenção
para a distinção de Hegel entre realidade “absoluta” e “relativa”. O
conhecimento relativo é simplesmente o conhecimento das coisas em sua
relação com outras coisas. O conhecimento absoluto é de uma realidade que
existe apenas de acordo consigo própria, sem precisar estabelecer uma relação
com qualquer outra coisa. De acordo com Hegel, a ciência trata de discernir a
realidade absoluta por meio de nossa consciência, o que obviamente vira a
definição habitual de ciência de cabeça para baixo, que é a de examinar e
compreender o mundo das coisas reais. Porém, Hegel diz que o mundo dos
fenômenos relativos são as árvores, quando o que precisamos fazer é ver a
madeira, ou a realidade não física por trás de tudo. O verdadeiro cientista está
disposto a olhar tudo (tanto o conhecimento relativo quanto o absoluto) para
chegar à verdade. E, por sorte, nossa consciência nos equipou para fazê-lo.
Hegel chamava a filosofia de a ciência, porque possibilitava a consciência do
conhecimento absoluto, que vem antes de todos os outros tipos de
conhecimento. Como ele escreve no Prefácio, seu objetivo é levar a filosofia de
mero amor ao saber para saber real.
Para Hegel, a verdadeira história da ciência não é nossa “descoberta do
universo”, mas sim a descoberta de nossa própria mente, da consciência em si.
Ciência, história e filosofia são, na verdade, apenas maneiras de dizer como
nossa consciência despertou ao longo do tempo. A trajetória da ciência trata de
partir tudo em pedaços e categorias cada vez menores e, uma vez tendo sido
feito, juntar tudo de novo, voltando à compreensão do todo.

O indivíduo na visão de mundo de Hegel


Qual é a implicação de reconhecer que o desenvolvimento do mundo é o
desenvolvimento da consciência (Espírito)? Hegel diz que a pessoa percebe
que sua contribuição deve necessariamente ser pequena em relação a um
movimento tão grande. Precisamos obviamente nos esforçar para alcançar o
que pudermos, mas também podemos ter certeza de que o mundo não se
voltará contra nós.
Talvez seja surpreendente para um pensador de visão tão abrangente, mas
Hegel oferece uma receita para a felicidade pessoal. Uma pessoa fica feliz
quando enxerga que sua individualidade é ilusória, que a experiência de ter um
corpo é meramente um “acordo […] com a coisidade”. Quando conseguimos
ver que a crença em nossa singularidade é um beco sem saída, embora a
apreciação de nossa unidade com tudo o mais seja verdade, isso não pode nos
deixar nada além de felizes. Sofrer é pouco mais que ficar preso em nosso
mundinho e acreditar em sua realidade. No entanto, a consciência de que
somos meramente uma expressão ou um agente do Espírito em sua unidade
nos leva além da dicotomia felicidade/infelicidade até a verdade.
Dentro de uma cultura ou nação, diz Hegel, as pessoas têm uma indivi­-
dualidade óbvia e podem expressá-la graças ao “poder” de uma nação. Isso
lhes dá um contexto adequado. Mas, em termos mais universais, abstratos, o
que parece como apenas nosso é, de fato, “a capacidade e a prática costumeira
de tudo”. O que parecemos fazer por nós resulta na satisfação das
necessidades alheias e no desenvolvimento da sociedade como um todo (o
“indivíduo em seu trabalho individual realiza inconscientemente um trabalho
universal”). Ainda assim, ao desempenharmos nosso papel em algo maior,
nossa individualidade também é plenamente expressada. Mostrando seu
conservadorismo político, Hegel observa que as pessoas mais sábias da
Antiguidade sabiam que “sabedoria e virtude consistem em viver de acordo
com os costumes de uma nação”.
Uma pessoa naturalmente procura suas finalidades, assumindo e
desfrutando coisas com desinibição vigorosa, “agarrando a vida do mesmo
modo como se colhe uma fruta madura”, sem pensar nas noções abstratas de
felicidade, e menos ainda nas leis e costumes. A Terra é simplesmente um
playground para a satisfação prazerosa de desejos. No entanto, acabamos
descobrindo que viver apenas por nós mesmos não oferece satisfação total;
esse fim é substi­tuído por uma consciência de que uma pessoa é “apenas um
momento, ou um universal ”.
Essa transição na autoconsciência, de uma consciência simples do eu como
um feixe de desejos (“ser para si”) para a percepção de que a pessoa é parte de
uma universalidade ou consciência maior (“ser em si”) ou, pelo menos, uma
comunidade de outros, não é sempre uma experiência positiva, porque nós nos
vemos como apenas parte da necessidade. Perdemos alguma coisa (a sensação
de individualidade), e não parece haver nada para substituí-la. Uma pessoa
pode ser “estraçalhada” pelo “poder incompreendido da universalidade”.
Ainda assim, a consciência pessoal não está de fato morta, mas apenas ascende
para um nível novo de consciência, no qual o eu da pessoa é entendido como
parte da necessidade ou do funcionamento da lei universal. Sendo um objeto
no universo, nós nos tornamos parte daquela operação dele, ou um “coração
que […] tem dentro dele uma lei”, que é mais aberto a cuidar do bem-estar da
humanidade.
Os prazeres de que desfrutamos antes abrem espaço para a estupen­da
percepção de que abrir mão de nossa particularidade era o que sempre deveria
acontecer, mesmo se, originalmente, nunca tivéssemos feito isso ­-
voluntariamente. O que nos motiva é o ego, mas o ego não reconhece que,
nesse movimento, ele está escrevendo a própria sentença de morte. Vemos
agora que a lei de nosso coração se torna a lei de todo coração; “Eu” sou
apenas parte do crescimento mais amplo na consciência. Para Hegel, “virtude”
simplesmente significa o desejo de desconsiderar a individualidade, que causa
um número imenso de perversões (“o jeito do mundo”). Ainda assim, somos
indivíduos da mesma forma que as gotas de um borrifo d’água são indivíduos.
Depois de um breve período separadas no ar, retornam e caem de volta dentro
de sua fonte.

A visão de Hegel da religião


Como Stephen Houlgate, estudioso de Hegel, observa, a principal
preocupação de Hegel era a razão. O universo opera apenas de acordo com a
razão, e a filosofia especulativa está equipada para decodificá-la. A maioria das
pessoas não é capaz ou não deseja estudar filosofia, então é quando a religião
se torna relevante. Para Hegel, a ideia de que vivemos em um universo bem
funda­mentado tem muito mais impacto se ele é sentido, e é isso que a religião
oferece. O que, em termos filosóficos, se pode chamar de “terreno do ser”,
que origina o mundo material, na religião se transforma em “Deus”. Um amor
de Deus é, portanto, simplesmente um amor da razão em si. Se sentimos que
Deus sempre trabalha de maneira que faz perfeito sentido (talvez nem sempre
no momento, mas em retrospecto), aceitaremos uma cosmologia baseada mais
na razão do que na aleatoriedade.
A equação da razão com Deus de Hegel ainda permite que a pessoa
moderna diga “Bem, eu vou acreditar na razão, você pode ficar com Deus”.
Essa é uma maneira de enxergar Hegel, ainda que ele teria dito como réplica
algo como “Tudo bem, mas você não pode ter uma percepção plena do
desenvolvimento da Razão no mundo se apenas enxergá-lo em termos
materiais”. Para o ateísta, todas as crenças religiosas são contos de fadas, mas,
para o luterano Hegel, o cristianismo não significava interpretar toda palavra
da Bíblia literalmente; o imaginário religioso e a narrativa são simplesmente
uma maneira de revelar a razão e suas engrenagens. Os sentimentos de “fé” e
“amor” permitem que expressemos a razão de forma não intelectual.
Observe que Hegel não via a religião como uma “muleta” ou um
“conforto”, o que sugeriria que ela é uma ilusão psicológica; em vez disso, fé e
amor são um caminho natural humano até o núcleo da realidade, levando-nos
para além das verdades aparentes do mundo físico. Como Houlgate observa,

precisamos nos lembrar de que Hegel não considerava fé e filosofia


como a oferta de dois relatos rivais do mundo. Em vez disso, ele
pensava que as duas contam a mesma história e revelam a mesma
verdade, mas que elas estabelecem essa verdade de maneiras diferentes.

O sentimento de certeza de que somos o objeto do amor divino é


simplesmente outra maneira de expressar a noção de que a Razão é a força que
conduz o universo. Isso permitiu que tanto religiosos como ateus
reivindicassem Hegel para si, embora estivessem sendo seletivos. A questão
dele era que as formas espiritual e materialista de ver são igualmente relevantes
e verdadeiras, e sua filosofia é tão ampla que os dois se acomodam nela sem
contradição.

Comentários finais
Cada período parece julgar Hegel novamente, e tem sido moda enxergar sua
“ciência” como qualquer coisa menos ciência, pois sua visão repousa sobre
uma metafísica obviamente improvável. Para muitos, ele é interessante
principalmente porque suas ideias provocaram reações que resultaram em
novas filosofias, como o existencialismo, o pragmatismo, a tradição analítica e,
claro, o marxismo (a “dialética” de Marx foi uma consequência natural da visão
de história de Hegel). Houve uma retomada de um interesse sério em Hegel
nas décadas de 1980 e 1990, mas sua ênfase na teleologia (o mundo tendo um
sentido positivo) ainda é vista com desconfiança pela maioria dos filósofos
contemporâneos. Denunciar Hegel tornou-se uma espécie de esporte, ainda
que essa antipatia tenha apenas mantido seu nome em evidência.
Estaria ele tão imensamente errado em seus preceitos básicos? A pessoa
precisa ser muito corajosa hoje em dia para sugerir que a história é
essencialmente o crescimento da consciência e que, por isso, tudo acontece por
um motivo.
Muitas pessoas tiveram seu primeiro encontro com Hegel por meio do
best-seller de Francis Fukuyama O fim da história e o último homem (1992). Escrito
não muito tempo depois do colapso do comunismo na Europa Oriental, o
argumento desse livro de que o desenvolvimento histórico estava chegando à
sua conclusão com uma transição global para a democracia liberal foi
amplamente inspirado por Hegel. Seus muitos críticos condenaram a ideia de
que a história tem uma direção, uma noção que muitos eventos desde então
(guerras étnicas, 11 de Setembro, uma recessão profunda) pareciam desmentir.
E, ainda assim, na esteira das mais recentes revoltas populares contra regimes
totalitários, a sugestão de Hegel de que a liberdade inevitavelmente busca
expressão, e faz isso por meio de instituições da modernidade (tecnologia, arte,
democracia liberal), faz sentido.
Fenomenologia do Espírito nos recorda que a consciência (de nós mesmos, da
vida política, da história) geralmente é positiva. De fato, o livro foi escrito
quando as forças de Napoleão estavam esmagando o antigo sistema imperial
da Alemanha, que deu a Hegel um exemplo bem assustador e próximo de suas
teorias. Ele escreveu:

O espírito rompeu com o mundo que até hoje habitou e imaginou, e


está a ponto de submergi-lo no passado e na tarefa de sua
transformação. O espírito, decerto, nunca repousa, mas sempre é
tomado por um movimento para a frente.

Quando a consciência (manifestada em pessoas, instituições, costumes e


leis) cresce, ela destrói ou transforma o que fez, abrindo caminho para
substituições que mostram uma autoconsciência cada vez maior. Claro que há
inversões aparentes nesse fluxo de eventos, mas o padrão geral é claro.

G. W. F. Hegel
Filho de um funcionário público de baixo escalão, Georg Wilhelm Friedrich
Hegel nasceu em 1770. Suas capacidades intelectuais o levaram para a
Universidade de Tübingen, onde conheceu Friedrich von Schelling, mais tarde
um filósofo idealista, e Friedrich Hölderlin, que viria a se tornar um célebre
poeta. Após a universidade, Hegel trabalhou como tutor particular em Berna e
Frankfurt e, depois, como professor autônomo na Universidade de Jena.
Quando concluiu Fenomenologia do Espírito, as tropas de Napoleão entraram em
Jena, e a universidade foi fechada. Sem emprego, tornou-se editor de um jornal
em Bamburgo e, depois, diretor de uma escola de ensino médio em
Nuremberg, cargo que ocupou por muitos anos (1808-15). Durante esse
período, publicou os três volumes de Ciência da lógica e escreveu sua Enciclopédia
das ciências filosóficas.
Em Nuremberg, Hegel se casou e começou uma família (uma filha morreu
não muito depois de nascer, mas o casal teve outros dois filhos). Em 1816, ele
retomou a carreira acadêmica com uma cátedra na Universidade de Heidelberg
e, em 1818, mudou-se para a Universidade de Berlim, onde trabalhou até sua
morte em 1831. Depois de seu falecimento, os seguidores de Hegel separaram-
se em facções de direita e de esquerda, tendo Karl Marx como líder expoente
desta última.
O primeiro livro de Hegel foi Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems
der Philosophie [Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling]
(1801). Ciência da lógica (1812 e 1816) foi a sequência de Fenomenologia do Espírito.
Filosofia do direito, contendo sua filosofia política, foi publicado em 1821 e
Filosofia da história, depois de sua morte, em 1831.
1927

Ser e tempo

“Por que existe o ente e não antes o Nada? Eis a


questão […] Claro que não é a primeira pergunta no
sentido cronológico […] E ainda assim […] somos
todos tocados uma vez, talvez até mesmo de vez em
quando, pelo poder velado dessa questão, sem
compreender direito o que está acontecendo conosco.
Em grande desespero, por exemplo, quando todo o
peso tende a minguar das coisas e a noção das coisas
se obscurece, a questão se avulta.”

“Definimos a ideia de existência como uma habilidade


de ser, como uma que é em cada caso minha, e livre
também para a autenticidade ou para a inautenticidade
ou para um modo no qual nenhuma delas se
diferencia.”

Em resumo
A existência humana é um mistério, e a pessoa autêntica é aquela que reflete
sobre esse mistério e ainda vive no mundo real, fazendo o máximo dentro
de suas possibilidades.

Na mesma linha
Hannah Arendt, A condição humana (p. 24)
René Descartes, Meditações sobre filosofia primeira (p. 116)
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
Søren Kierkegaard, Temor e tremor (p. 216)
Jean-Paul Sartre, O ser e o nada (p. 354)
Martin Heidegger

Martin Heidegger é com frequência considerado o maior filósofo do século


XX, e sua abordagem investigativa a questões ou tópicos óbvios continua a ter
um grande impacto na filosofia contemporânea. Ser e tempo é sua principal
obra, mas foi precedida por um “período de silêncio” de doze anos e pareceu
vir do nada. De fato, Heidegger estava lecionando para públicos enlevados
havia anos, construindo uma fama underground entre estudantes alemães como
um pensador verdadeiramente original. Uma famosa observação de Hannah
Arendt (no passado sua aluna) foi: “Dificilmente havia mais de um nome, mas
o nome viajava por toda a Alemanha como o rumor de um rei escondido”.
Ser e tempo foi publicado para auxiliar a candidatura de Heidegger à cadeira
de filosofia na Universidade de Friburgo e foi planejado como a primeira parte
de um trabalho muito maior. Com o livro veio a aclamação internacional, e ele
foi alçado ao cargo de reitor de Friburgo, substituindo seu mentor, Edmund
Husserl. Ainda assim, a posição expôs a compreensão ingênua de Heidegger
(ou simplesmente obscura, dependendo do ponto de vista) no tocante à
política, pois ele se tornou um apoiador público do partido nazista. Depois das
humilhações da Primeira Guerra Mundial, ele (junto com muitos outros)
queria que a Alemanha fosse grandiosa de novo, mas permanece aberta a
questão se ele era realmente antissemita. Ele teve um caso com a judia Hannah
Arendt, e ela continuou sendo uma apoiadora leal dele durante a vida inteira.
Por mais que se veja a controvérsia, o fato de a filosofia de Heidegger ter se
emaranhado em sua política foi, por acaso, uma demonstração de sua visão de
que o ser humano nunca pode se separar de seu ambiente social, não importa
o quanto ele pareça individuado.
Conhecido por ser de difícil compreensão, a melhor maneira de lidar com
Ser e tempo é lê-lo junto com um dos muitos excelentes comentários à obra. Lê-
lo a seco pode parecer uma experiência movediça.

Ser e personalidade
No início de Ser e tempo, Heidegger observa que a questão do “ser” certamente
já foi abordada por filósofos antigos e medievais, mas que nenhum deles a
explorara adequadamente. O que era quase natural, pois todo mundo “é” e,
portanto, sabe o que é “ser”. Ainda assim, em termos de análise filosófica,
escreve ele, “o significado de ser é envolto na mais completa escuridão”.
Comentaristas têm lutado com a resposta de Heidegger à questão, pois ele a
envolveu em uma variedade de termos alemães que não são facilmente
traduzíveis. O mais importante deles é Dasein, que, em sua tradução literal, é
“ser-aí”, mas que Heidegger usou para significar uma unidade de consciência
autorreflexiva, da qual uma pessoa é o exemplo mais óbvio. Sua grande
questão era: O que é a personalidade? Como é ser humano no mundo, limitado
por espaço e tempo?
Para ele, a preocupação da filosofia com a existência do mundo externo e
questões daquilo que podemos realmente saber eram uma perda de tempo. O
que importa é “ser no mundo” ou o fato de que existimos em um mundo rico
de significado e possibilidade. Embora filósofos anteriores tenham visto o eu
como uma consciência observadora, a colocação de Heidegger do eu no
mundo levou-o por um caminho completamente diferente, influenciado por
seus estudos da teologia cristã medieval. Enquanto para Descartes o lema para
o eu era “Penso”, o de Heidegger era “Importo-me” – não no significado
convencional de comiseração emocional, e sim mais como a busca, a
exploração, a negociação, a construção de algo; ou seja, meu lugar entre outros
em um sentido social ou político (que inclui a preocupação com os outros) e
meu próprio desenvolvimento ou desdobramento.
Para Heidegger, existem três modos de ver o mundo: Umsicht, a
“circunvisão”; Rücksicht, a “consideração” por outros seres; e a Durchsichtigkeit,
a “transparência” de nossos eus. Cada um é fundamentalmente diferente e vai
além da simples dualidade cartesiana da “mente” e da “matéria”. Por meio
dessas distinções, começamos a ver por que Heidegger sentia que havia muito
mais no “ser” do que o olho enxerga.

Jogado no mundo
Heidegger foi aluno e, mais tarde, assistente do fundador da fenomenologia (a
filosofia da consciência), Edmund Husserl. De seu costumeiro jeito
meticuloso, Heidegger remontou às raízes da palavra “fenomenologia”, que
vem da palavra grega phainesthai, que significa “mostrar a si mesmo”, que, por
sua vez, deriva de phaino, que é trazer algo à luz. A fenomenologia de
Heidegger tornou-se uma explicação de como as coisas se mostram,
especificamente como os seres humanos se “mostram” no mundo. Nesse
sentido, ele se afastou de qualquer tipo de concepção teológica de uma pessoa
ser a manifestação de alguma essência ou alma eterna indo na direção do Ser
como ele se manifesta agora, no teatro da vida humana. A natureza do Dasein
deve estar continuamente se autoquestionando e explorando seu espaço, tendo
de lidar com incertezas e, ainda assim, afirmando sua identidade. Parte dessa
natureza é mostrar-se ou revelar-se ao mundo, no caso dos seres humanos por
meio do discurso e das ações. Viver é explorar nossas possibilidades dentro do
ambiente no qual nos encontramos.
O “estar-lançado” é uma ideia fundamental em Ser e tempo. Um ser
humano é moldado em um determinado lugar, tempo e família que não são de
sua escolha, e a vida significa compreender essa queda dentro do domínio do
espaço e do tempo. Como cheguei aqui? Por que estou aqui? O que faço
agora? Parte dessa perplexidade é uma noção incorporada de “culpa” ou
“dívida”. Sentimos a responsabilidade de fazer algo com nossa vida e,
felizmente, viemos equipados com a capacidade de fala e ação. Ao usá-las,
descobrimos o sentido de nossa vida; na verdade, seria impossível para a vida
não ter significado, considerando as matérias-primas de consciência e ambiente
diante de nós. A morte também é importante para Heidegger, porque marca o
final da autoexibição de uma pessoa. A natureza da morte de uma pessoa pode
ser em si uma revelação.

O que são os humores?


Heidegger apresenta uma visão de humores e emoções que é completamente
diferente de uma interpretação psicológica convencional. Ele vê a natureza do
Ser para os seres humanos como um estado constante de emoções variadas.
Nossos sentimentos e humores não são uma coisa a se menosprezar ou
diminuir em relação à nossa vida real ou trabalho; em vez disso, são
fundamentais para nosso ser. Experienciamos uma emoção em todos os
momentos, ou ao menos estamos “tateando nosso caminho na direção de
alguma coisa”.
Humores, negativos ou positivos, possibilitam nossa reação ao mundo.
Com os humores não conseguimos permanecer neutros; eles nos deixam
sempre atentos a como é existir no agora. De fato, nossa compreensão do
mundo não acontece por meio de algum raciocínio lógico neutro, mas salta de
nossas disposições ou humores. Como Tom Greaves, estudioso de Heidegger,
observou, Heidegger não suportaria a ideia de “inteligência emocional” como
um dos vários tipos de inteligência. Em vez disso, toda inteligência emerge do
terreno do sentimento e da disposição; ou, como o próprio Heidegger escreve:
“A compreensão sempre tem sua disposição”.
Em alemão, a palavra para humor é Stimmung, que significa a afinação de
um instrumento musical. Um humor é uma “afinação” de nosso ser ao mundo
que nos rodeia. Podemos estar em desafinação com ele (vivenciando medo,
ansiedade ou pavor) ou em afinação (quando as coisas vão bem), ou podemos
deparar com um evento ou lugar que instila em nós um novo humor (um
grande discurso ou uma bela floresta). Estamos o tempo todo nos afinando.

Ser-aí
Para Heidegger, autenticidade significa reconhecer o improvável fato de se ter
consciência e, ainda assim, proceder para “compreender” nossa existência.
Embora a vida da pessoa não autêntica seja moldada por um “eles” social, o
indivíduo autêntico compreende plenamente sua liberdade para ser mestre de
seu próprio ser, ao menos na medida em que as fronteiras de tempo, espaço e
comunidade permitem. A autenticidade sempre é uma questão de grau, pois
ninguém jamais se separa realmente da voz comum ou social, que Heidegger
também chama de “impessoal”.
Heidegger observa que a natureza essencial da existência é aquela que é
minha. Existe uma enormidade nessa percepção; de fato, o peso dela é tanto
que poucas pessoas conseguem compreender o que uma vida autêntica
significaria para elas. O modo mais natural de ser para um humano é existir
como um entre muitos, sem optar por um caminho de autorrealização ou
severa autocrítica. No entanto, mesmo para aqueles que o fazem, não há isso
de uma pessoa totalmente “feita por si própria”, que venceu pelos próprios
esforços.
A reação adequada à vida é lançarmo-nos para ela, chegando, ao longo do
caminho, a conclusões sobre o que é real ou verdadeiro, separado da opinião
pública. Paradoxalmente, é apenas admitindo que somos parte do mundo que
poderemos ver com sagacidade os pontos onde podemos fazer a diferença.
Somente seres humanos podem ajudar a conformar um mundo, bem como
simplesmente existir nele.

Angústia e decisão
A sensação de ansiedade, observa Heidegger, é um resultado natural do não-
estar-em-casa que os seres vivenciam no mundo. Ainda assim, a angústia é
também parte integrante de uma vida autêntica, pois a natureza da
autenticidade não consiste em anular ou reduzir essa noção de isolamento, mas
em reconhecermos a angústia como uma circunstância e continuar vivendo
apesar dela. De fato, é um sinal de inautenticidade quando uma pessoa está
plenamente afinada com a vida e se sente totalmente em casa, porque sugere
que ela não está consciente por completo de sua existência contingente e
absolutamente misteriosa. A grandeza reside em questionar o mistério de
nosso ser e, ainda assim, aceitar essa incerteza (com todos os seus medos) e
escolher fazer algo com a vida de qualquer maneira.
A “consciência” na terminologia de Heidegger não é algo moral, mas está
ali para nos lembrar continuamente de manter o caminho da autocrítica e da
ação original. “Decisão” é a determinação de não se submeter ao “Eles” ou ao
“impessoal” de costumes ou opinião públicos, mas estar ciente do papel único
que podemos desempenhar em relação ao mundo e aos outros.

Seres no tempo
Para Heidegger, a questão crucial sobre ser é que ela é representada dentro do
tempo. A natureza do ser humano é nossa orientação futura. Portanto, ser um
ser no tempo é a sensação de sempre se mover na direção de alguma coisa; a
natureza de ser humano é uma orientação futura. Embora sejamos criaturas do
passado e vivamos no passado, a verdadeira natureza do homem é olhar
adiante. Somos nossas possibilidades.
Heidegger rejeitava a ideia de que a filosofia deve se basear apenas naquilo
que pode ser percebido pelos sentidos ou somente na lógica. Rejeita
totalmente a ideia schopenhauriana de que o mundo é meramente uma
projeção de nossa mente. Claramente existimos no mundo, e é impossível para
nós existir sem nosso ser ter um significado em relação ao mundo: eu amo, eu
ajo, eu tenho um impacto – essa é a natureza do meu ser, e a sensação dele fica
aparente durante a vida.
Comentários finais
Heidegger foi uma grande influência para Sartre e outros existencialistas,
embora ele mesmo negasse que era um, dizendo que seu foco não era o
homem e sua existência, mas o Ser em si, do qual o homem era a articulação
mais avançada. A visão geral dos estudiosos é de que a exploração do Ser por
Heidegger não foi projetada para ser útil para se viver. Ser e tempo não é um
livro de autoajuda, mas é difícil não tirar dele alguma inspiração.
O senso comum precisaria confirmar a distinção que faz entre modos
autênticos e inautênticos de ser. Em um nível, exigimos que uma pessoa seja
sociável, aceite os costumes da época e participe da vida política. Por outro
lado, aceitamos que uma vida autêntica seja aquela em que a pessoa aproveita
as possibilidades que tiver e cria algo a partir delas. De fato, apesar de seu
estilo clínico, conhecer Ser e tempo é uma veia de paixão sobre a possibilidade
humana e o privilégio de ser. É possível forjar um ser forte com o tempo,
superando a perplexidade de ser lançado na existência.

Martin Heidegger
Heidegger nasceu em 1889, na pequena cidade alemã de Messkirch, no
sudoeste da Alemanha, em uma família católica conservadora. Aos 14 anos, foi
para o seminário com perspectivas de se tornar sacerdote, mas saiu para seguir
os estudos em literatura, filosofia e ciências. Aos 18 anos, ele teve uma epifania
lendo uma dissertação do filósofo Brentano sobre “a noção múltipla do ser em
Aristóteles”, o que o levou aos escritos de Husserl. Aos 20 e poucos anos, teve
artigos publicados em periódicos católicos e, em 1913, recebeu seu título de
doutor em filosofia. Sua tese de pós-doutorado sobre o filósofo medieval
Duns Scotus foi concluída dois anos depois.
Em 1918, Heidegger tornou-se professor livre-docente (Privatdozent) na
Universidade de Friburgo e assistente de Husserl. Em 1923, foi nomeado
professor adjunto na Universidade de Marburgo e, em 1928, ganhou uma
cátedra na Universidade de Friburgo. Um forte nacionalista alemão, foi atraí­do
pelo estridente “nacional-socialismo” do Partido Nazista. Como reitor em
Friburgo, seguiu as diretrizes nazistas para reorganizar a universidade, o que
envolvia a discriminação contra estudantes judeus. Nas audiências de
“desnazificação” depois da guerra, Hannah Arendt ajudou-o a formar a defesa
de que era um crédulo ingênuo do nacional-socialismo e não tinha previsto o
que os nazistas fariam no poder. Os dois permaneceram em contato até a
morte de Heidegger, em 1976.
Século VI a.C.

Fragmentos

“É uma e a mesma coisa estar vivo ou morto, desperto


ou dormindo, jovem ou velho. O primeiro aspecto em
cada caso se torna o segundo, e o segundo o
primeiro.”

“A natureza humana não tem objetivo definido, mas a


divina tem.”

“Um homem é considerado tolo por um deus, como


uma criança por um homem.”

“O todo e o não todo, o convergente e o divergente, o


consonante e o dissonante, de todas as coisas uma e
de uma coisa todas.”

Em resumo
Tudo muda o tempo todo, ainda assim há uma harmonia oculta no
universo.

Na mesma linha
David Bohm, Totalidade e a ordem implicada (p. 84)
Platão, A República (p. 308)
Heráclito

Um dos grandes filósofos antes de Sócrates e Platão, Heráclito era o filho mais
velho da família de líderes de Éfeso, uma das principais cidades do mundo
grego antigo e famosa por seu templo de Ártemis.
Não temos uma grande quantidade de informações sobre Heráclito, exceto
que ele evitou se envolver em política, era uma espécie de lobo solitário e, em
um momento em que era normal para filósofos comunicarem suas ideias em
discursos, ele se concentrou na palavra escrita. Como resultado, seus
pensamentos sobreviveram a ele, e seu livro de aforismos ficou famoso no
mundo antigo. Platão e outros discutiam-no, mas sua influência era maior
entre os estoicos.
Os Fragmentos são uma coleção de aforismos e declarações relacionadas à
natureza do universo físico, ética e política, mas foram as ideias metafísicas de
Heráclito que conservaram seu poder.

O logos
O livro começa com esta afirmação:

Embora este Logos seja eternamente válido, ainda assim os homens


são incapazes de entendê-lo – não apenas antes de ouvi-lo, mas até
mesmo depois de tê-lo ouvido pela primeira vez […] embora todas as
coisas aconteçam segundo este Logos, os homens parecem não ter
nenhuma experiência nele […] Meu método próprio é distinguir cada
coisa de acordo com sua natureza e especificar como ela se comporta;
outros homens, ao contrário, são tão esquecidos e despercebidos em
seus momentos de vigília daquilo que está acontecendo ao redor e
dentro deles como quando estão dormindo.

O que Heráclito quer dizer com “Logos”? A tradução literal do grego é


“palavra” e, às vezes, é traduzida por “relato”. Ele está dizendo que aquilo que
seguimos no livro é um relato e algo atemporal e confiável: uma força invisível,
não tão diferente da “Palavra” bíblica ou do “Tao” no taoísmo, que
regulamenta e conduz o universo.
Os seres humanos podem agir da maneira correta apenas se suas ações
estiverem em sintonia com o Logos. No entanto, a maioria das pessoas não o
entende, mesmo se ele for a força que molda sua vida. Quem quer que pense
que tem uma mente separada e se comporta como se estivesse em um reino
isolado está se enganando. Acredita na própria opinião em vez de ver as coisas
sob sua verdadeira luz. “O pensar”, diz Heráclito, “é compartilhado por
todos.” No fim das contas, somos todos a mesma mente. Fechar os olhos para
esse fato é a causa de nosso sofrimento.

Mudança constante
Muito do renome de Heráclito vem da ideia de que nada permanece igual.
Numa época em que a ciência natural estava em sua infância e as pessoas
estavam tentando identificar o que era certo e estável em nosso universo,
Heráclito disse: “Tudo flui e nada permanece; tudo cede e nada fica fixo”. A
frase mais famosa nos Fragmentos é:

Não se pode entrar no mesmo rio duas vezes, pois outras águas fluem
continuamente.

Em um mundo que se identifica com a matéria, esse pensamento é quase


herético e pôs Heráclito em contraste com outro pensador antigo, Parmênides,
que alegava que o movimento e a mudança não eram reais e que a realidade era
fixa e estável. De fato, a ideia de Heráclito de que a estabilidade do universo
físico é, em grande parte, uma ilusão é aquela que associamos mais à filosofia
oriental. “Coisas frias esquentam, as quentes esfriam”, escreve ele, “a umidade
seca, e o ressecado se torna úmido.”
Essa visão do universo como essencialmente energia (Heráclito via o
elemento fogo como seu componente físico básico) que está perpetuamente
assumindo formas diferentes tem implicações maiores para a condição
humana. Heráclito ficou conhecido como o “filósofo chorão”, porque ele se
desesperava por grande parte da humanidade; somos seres conscientes com
uma variedade completa de sentimentos, ainda assim existimos em um mundo
cuja natureza é de conflito.
A visão de Heráclito é de que, em um universo feito de matéria (e
concepções concorrentes de verdade entre animais inteligentes), o conflito é
inevitável. A guerra organiza os destinos humanos, tornando algumas pessoas
escravas e outras libertas. Ele observa o desejo de Homero de que “pereça a
contenda entre deuses e homens” e diz, na verdade, que “todas as coisas
passam pela compulsão da contenda”. O conflito, ou, em termos mais
abstratos, a tensão dinâmica entre os opostos, é a própria natureza do universo.
Ainda assim, Heráclito também diz: “A oposição traz a concórdia. Da
discórdia vem a mais bela harmonia”.

A harmonia oculta
É da nossa natureza separar as coisas em partes, fazer distinções, mas, se
houvesse um Ser Supremo, é dessa maneira que ele veria o universo? Não, diz
Heráclito: “Não escutai a mim, mas ao Logos, ele é sábio em reconhecer que
todas as coisas são uma”. E não está simplesmente falando sobre o universo
físico, mas também o que chamamos de ética: “Para Deus tudo é belo, bom e
justo; os homens, por outro lado, consideram algumas coisas certas e outras
erradas”. Isso não significa que deveríamos agir do jeito que quisermos, mas
sim que o bem e o mal, o certo e o errado são parte de um todo maior, tudo
sobre o que é correto – se é parte de um todo, não pode ser de outra forma.
Heráclito parece se contradizer sobre a existência de um Deus. O Logos
não é Deus em si, e, em algumas declarações, ele vê o universo como uma
espécie de mecanismo autoperpetuador que “não foi feito por nenhum deus
ou homem, mas sempre foi, é e será – um fogo sempre vivo, acendendo-se a si
mesmo em medidas regulares e apagando em medidas regulares”. Ainda assim,
em outros momentos, ele diz claramente que há uma mente divina com um
objetivo, em contraste com a cegueira do homem:

O homem não é racional; apenas o que o circunda é inteligente.

É possível saber, ou ao menos estar ciente, “[d]a inteligência pela qual todas
as coisas são conduzidas”. Existe uma “harmonia oculta” no universo,
escondida porque todos os nossos nomes que talvez se aproximassem dela –
Deus, Zeus, Logos e assim por diante – são concepções nossas, quando a
unidade essencial está além das palavras e conceitos. Heráclito escreve sobre as
pessoas medianas: “Eles rezam para imagens, muito como se falassem com as
casas; pois não conhecem a natureza dos deuses”. A única coisa que nos
impede de ter consciência dessa harmonia oculta é nossa incredulidade. Nossa
mente está tão fixa no material que assumimos esse relativo nível de realidade
como sendo tudo, ainda assim existe uma realidade absoluta que aguarda nosso
reconhecimento.

Comentários finais
A declaração de Heráclito de que “todas as coisas passam pela compulsão da
contenda” pode ser lida como se seu significado fosse: o mundo é
simplesmente o caos, ou que o acaso determina tudo. É certamente como
muitas pessoas o vivenciam. De fato, Heráclito parece oferecer apenas uma
visão obscura da humanidade, na qual as pessoas estão em grande parte cegas
e perpetuam essa cegueira pela reprodução.
Existe uma saída? Existe algo que está além do ciclo de nascimento,
sofrimento e morte, que é essa harmonia oculta (chame de Logos, Deus,
Mente ou Tao). Apenas ao senti-la e apreciá-la podemos pôr em perspectiva a
vida do ser humano. O maior sofrimento vem de acreditar que algo efêmero é
sólido e permanente. Apenas ao aceitar o fluxo pelo que ele é conseguimos
espaço para enxergar o que nunca mudará, o que é atemporal.
1748

Investigação sobre o entendimento


humano

“Quando olhamos ao redor na direção de objetos


externos e consideramos a operação de causas, jamais
somos capazes de descobrir, a partir de um único caso,
qualquer força ou conexão necessária; qualquer
qualidade que una o efeito à causa e apresente um
deles como consequência infalível do outro.”

“A mais perfeita filosofia da espécie natural apenas


retém nossa ignorância por um pouco mais de tempo,
bem como a mais perfeita filosofia da espécie moral ou
metafísica serve somente para descobrir porções
maiores dessa ignorância.”

Em resumo
Nunca podemos supor que um efeito é o resultado de uma determinada
causa, ou que uma determinada causa terá um efeito definido. Seres
humanos gostam de ver padrões e interpretar histórias a partir de eventos,
mas não há necessidade causal entre os objetos (ou, ao menos, não a ponto
de os sentidos humanos serem capazes de identificar).

Na mesma linha
René Descartes, Meditações sobre filosofia primeira (p. 116)
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas (p. 228)
John Locke, Ensaio sobre o entendimento humano (p. 244)
Nassim Nicholas Taleb, A lógica do cisne negro (p. 390)
David Hume

David Hume é considerado o maior filósofo britânico e, por sua influência


sobre figuras como Kant (é famoso seu comentário de que Hume o acordou
de seu “sono dogmático”), um dos maiores nomes da filosofia dos últimos 250
anos.
Embora seu primeiro livro, Tratado da natureza humana, tenha vindo ao
mundo “natimorto pela imprensa”, mal sendo percebido, foi um feito notável,
especialmente porque ele o escreveu aos 20 e poucos anos. No entanto, as
visões de Hume sobre religião fizeram com que ele fosse preterido para cargos
acadêmicos em filosofia, e foram apenas seus livros História da Inglaterra e
Political Discourses [Discursos políticos], publicados aos 40 anos, que o levaram a
ficar bem conhecido e próspero.
Em termos de história da filosofia, a estrela de Hume brilhou com os
positivistas lógicos do século XX, como A. J. Ayer (que escreveu a biografia
dele); hoje em dia, ele é o padroeiro de todo tipo de escola filosófica que
defenda o empirismo e condene a especulação metafísica. Ele pode ser
interpretado de maneiras diferentes, como veremos a seguir.
Investigação sobre o entendimento humano é uma versão madura do Tratado e, em
seu estilo relativamente fácil e não acadêmico, é um excelente ponto de partida
para explorar Hume.

Nós deveríamos ser os reais objetos de estudo


Embora Hume seja tradicionalmente visto como um grande cético filosófico
que não acreditava que seu pensamento poderia chegar longe, nas últimas duas
décadas de seu trabalho como um “cientista da natureza humana” ficou bem
enfatizada sua tentativa de fazer pela filosofia o que Newton fez pelas ciências
naturais.
Hume acreditava que nossa capacidade de raciocinar era simplesmente
resultado das habilidades de linguagem e que a “natureza humana”, ou o que
agora chamamos de psicologia, poderia ser explicada se conhecêssemos mais
sobre o cérebro e o sistema nervoso. Ele acompanhava John Locke e George
Berkeley ao dizer que a experiência, ou as impressões que chegam até nós
pelos cinco sentidos, e não a razão deveria ser a base da filosofia.
Prenunciando o que o filósofo da ciência Thomas Kuhn diria em nosso
tempo, Hume observou que “Todas as ciências têm uma relação, em maior ou
menor grau, com a natureza humana”. Nós estaremos nos enganando se
pensarmos que as ciências naturais são um reino objetivo de conhecimento
apartado da humanidade. De fato, ao conhecer a natureza humana, Hume
acreditava que seria possível criar “um sistema completo das ciências”. Sentia
que questões de lógica, moral e política deveriam ser ao menos do mesmo
nível que as ciências naturais, pois, como ele coloca no Tratado, “a ciência do
homem é o único fundamento sólido para as outras ciências”.

Os limites do conhecimento
Para Hume, os filósofos antigos e modernos supervalorizaram os poderes da
razão humana. Grandes sistemas foram construídos para compreender os
seres humanos, Deus e o universo, embora se tenha esquecido que, no fim das
contas, tudo o que podemos saber é aquilo que observamos diretamente por
meio de nossos cinco sentidos. Indo completamente contra Descartes, Hume
alegava que não havia ideias atemporais, abstratas. Em vez disso, todos os
conceitos são apresentações de segunda mão de percepções ou impressões
iniciais das coisas a partir de nossos sentidos; não podemos ter a noção de
alguma coisa até a termos vivenciado. Podemos apenas imaginar uma
montanha de ouro (se nunca tivermos visto uma), por exemplo, porque somos
capazes de pegar nossas experiências anteriores de ouro e montanha e
combiná-las.
As visões de Hume sobre a casualidade são fundamentais para seu
pensamento. Ele observou que, embora as coisas pareçam causar umas às
outras, isso é simplesmente nossa mente criando conexões. Nunca poderemos
de fato dizer com certeza que uma coisa causou a outra, apenas que duas
coisas com frequência formam uma “conjunção habitual”. Quando o fogo
toca a pele, por exemplo, podemos supor que haverá dor, ou que neve
normalmente significa frio, mas não há nada que realmente ligue essas duas
coisas.
Tampouco podemos dizer que, porque uma coisa parece ser verdadeira,
sempre será verdadeira. De fato, Hume alega, muito do “conhecimento”
humano é simplesmente uma dependência dos costumes ou a aceitação de que
aquilo que todo mundo diz é verdadeiro. Os costumes não apresentam a
verdade, apenas tornam a vida mais fácil. Permitem que construamos um
mundo significativo sem ter que recriá-lo por meio dos sentidos a cada
segundo.
Analisando a percepção humana, Hume notou que não há diferença real
entre imaginação e realidade, exceto no nível da crença que temos em uma ou
em outra. “Realidade” é simplesmente aquilo em que acreditamos com mais
força. Ele também rejeita a ideia de que há um self sólido, unitário, um “eu”.
Em vez disso, somos apenas um feixe de percepções, nossa mente é como um
teatro, cujos cenários e cenas mudam a cada minuto. (É notavelmente
semelhante à visão budista de que não há um eu sólido e que o “eu” que
vivenciamos é apenas uma parada constante de emoções e percepções
efêmeras.) Hume duvidava da ideia de Descartes de que, porque pensamos,
existimos. Tudo que ele sentia que poderia ser dito era que “o pensamento
existe”, mas isso não prova a existência ou a permanência do eu ou de uma
alma individual.
O debate de Hume
Hume transformou-se em um campo de batalha para os estudiosos.
A interpretação positivista tradicional de Hume pode ser resumida na
“teoria da regularidade” da causalidade: as coisas não fazem com que outras
aconteçam, e tudo o que podemos dizer é que os eventos podem assumir um
certo padrão regular. Para usar o exemplo de Hume, podemos ver uma bola de
bilhar batendo em outra e presumir que essa é a causa do segundo movimento
da bola, mas nunca poderemos ter certeza disso. Tudo que podemos dizer é
que dois objetos são “contíguos, sucessivos e constantemente unidos” e que
não há “força” ou “energia” invisível movendo as coisas. “Um objeto pode ser
contíguo e anterior a outro”, escreve ele, “sem ser considerado sua causa.”
O campo positivista apoia a visão de Hume de que qualquer pessoa que
alegue identificar uma causa e seu efeito estará falando em “termos
ininteligíveis” (no sentido metafísico), que são uma afronta à filosofia. De fato,
é famosa a maneira como Hume termina Investigação, com um apelo dramático
pelo rigor na filosofia e para que todas as obras metafísicas sejam consideradas
com ceticismo. Qualquer livro que não contenha “qualquer raciocínio abstrato
relativo a quantidades ou números” ou que não repouse em raciocínio basea­do
“em questões de fato e de existência” deve ser lançado às chamas, “pois não
contém nada além de sofismas e ilusões”.
A visão realista de Hume (mais bem representada por Galen Strawson)
enfatiza as declarações em Investigação de que provavelmente há uma relação
entre os eventos, o que Hume (talvez de forma contraditória) chamou de
“conexão necessária”, mas que nossa capacidade restrita de enxergar o mundo
por nossos sentidos faz com que não possamos ver que causas são essas. Uma
das declarações de Hume para corroborar essa visão é:

A experiência nos ensina apenas como um evento acompanha


constantemente o outro; sem nos instruir sobre a conexão secreta que
os une e os torna inseparáveis.
Para os realistas, as alegações da teoria da regularidade de que nada jamais
causa nada são ridículas. Hume, no fim das contas, acreditava no bom senso e
nas “crenças naturais” em coisas ou ideias que as pessoas mantinham em
comum. Se uma dessas crenças naturais for de que na vida real as coisas fazem
com que outras aconteçam, por que isso não seria verdade na filosofia
também? Como Hume mesmo escreve:

A natureza tem nos mantido a uma grande distância de todos os seus


segredos e nos permitiu ter apenas o conhecimento de poucas
qualidades superficiais dos objetos, enquanto nos esconde aqueles
poderes e princípios dos quais depende por completo a influência
desses objetos.

Ao enfatizar isso, Hume abriu caminho para filósofos como Kant e


Kierkegaard, que, embora observassem a impossibilidade de saber ao certo se
existia uma causa primeira, um ser supremo ou uma ordem invisível por trás
das coisas (por mais limitados que somos por nossos sentidos), alegavam que
isso não significava que não poderíamos dizer que não existe nada além do
mundo físico ou que não há causas subjacentes.

Qual interpretação é a correta?


A investigação de Hume sobre aquilo que os seres humanos sabem sobre
objetos, causalidade e universo pode ser vista como um projeto em lógica, à
maneira de Descartes e seu Meditações. Suas conclusões podem ser lidas
simplesmente como uma “posição” lógica sobre as questões para as quais ele
escolheu olhar, mas que não necessariamente define suas crenças pessoais.
Como escreveu em carta a um amigo: “Não sou tão Cético como você talvez
possa imaginar”.
Hume refutou a acusação de que era ateu, embora seu ceticismo extremo
tenha feito com que assim parecesse aos teólogos enfurecidos de seu tempo.
Talvez a chave para o debate é que ele nunca disse “Deus não existe”, apenas
que as várias “provas” da existência de Deus eram pura especulação de um
tipo muito humano e não nos levariam a lugar nenhum.

Comentários finais
Seja um filósofo, mas, em meio a toda a sua filosofia, seja ainda um
homem.

Como sugere essa citação, Hume não tinha nenhuma grande fé na filosofia
em si. Depois de passar algumas horas felizes com amigos, às vezes voltava a
seus aposentos e lia coisas que havia escrito e observava que pareciam
ridículas. Ele sentia que olhar para certezas era o trabalho de um tolo, e
continuava sua obra filosófica principalmente por causa do prazer que lhe
causava. Hume reconheceu que, comparada à “superstição” e à religião, a
especulação fria da filosofia era desinteressante para a maioria das pessoas.
Se o refrão de Investigação é “O que realmente sabemos?”, Hume não nos
devolve respostas tranquilizadoras. No entanto, ele diz que a falta de
conhecimento real não deve fazer com que desistamos do mundo, e ele admira
filósofos como Cícero, cujo enfoque não estava no significado em si, mas em
viver uma vida honrada e agir racionalmente de acordo com as crenças
refletidas. Para a maioria das pessoas, esse tipo de filosofia é suficiente e a
outra, mais especulativa (às quais o próprio Hume se dedica), embora
interessante, talvez no fim não nos leve a lugar nenhum. No entanto, em uma
defesa cômica de seu passatempo, Hume escreveu no Tratado: “Falando de
forma geral, os erros na religião são perigosos; na filosofia, apenas ridículos”.
Embora sentisse que nossa capacidade de ter conhecimento objetivo do
mundo era naturalmente limitada por nossos sentidos, admitiu de qualquer
forma que os seres humanos precisavam criar sentido a partir daquela
experiência, e que temos de viver como se o que vivenciamos fosse real. Não
podemos sair por aí pensando como filósofos, duvidando de tudo.
Hume era bastante querido (seu apelido era “le bon David”), e seu estilo de
escrita reflete sua personalidade: não dogmático e compassivo. Tal como seu
amigo e contemporâneo Adam Smith (economista e autor de A riqueza das
nações), ele escreveu de forma que o máximo de pessoas possível pudesse ler –
o que é mais um motivo para gostar dele.

David Hume
Hume nasceu em Edimburgo, em 1711, vindo de boas famílias dos dois lados,
embora não fosse rico. Seu pai faleceu quando ele era um bebê. Enquanto
estava na Universidade de Edimburgo, começou a escrever Tratado da natureza
humana e, em vez de se graduar, foi para Bristol trabalhar em uma empresa de
contabilidade. Em seguida, viveu na França por três anos, entrando em um
rigoroso programa autodidata.
O Tratado foi publicado em 1739 com quase nenhum reconhecimento, mas
seus Ensaios (1741-42), inclusive seus escritos sobre economia política que
prenunciaram os de Adam Smith, obtiveram sucesso. Nunca tendo sido
professor de filosofia, suas visões sobre religião impediram que tivesse cargos
na Universidade de Edimburgo e na de Glasgow. Seus vários empregos
incluíram ser tutor por um ano de um nobre inglês louco, bibliotecário,
subsecretário de Estado em Londres e secretário do embaixador britânico em
Paris. Este último posto possibilitou que ele encontrasse outras figuras do
Iluminismo europeu fora da Escócia, inclusive Jean-Jacques Rousseau, com
quem travou amizade mas mais tarde rompeu. Hume era apoiador da união
entre a Inglaterra e a Escócia, que acontecera em 1707.
Seus livros incluem Uma investigação sobre os princípios da moral (1751), Political
Discourses [Discursos políticos] (1752) e História da Inglaterra (6 volumes, 1754-
62). Seu controverso Dialogues Concerning Natural Religion [Diálogos sobre a
religião natural] foi publicado postumamente (ele morreu em 1776). James
Boswell visitou Hume em seu leito de morte e relatou que o famoso “ateu”
permaneceu bem-humorado até o último suspiro.
1907

Pragmatismo

“Um pragmatista vira as costas de forma resoluta e de


uma vez por todas a muitos dos hábitos inveterados
caros a filósofos profissionais. Afasta-se da abstração e
da insuficiência, de soluções verbais, das más razões a
priori, de princípios fixos, sistemas fechados e
pretensos absolutos e origens. Ele se volta à
concretude e à adequação, aos fatos, à ação e ao
poder.”

“Uma ideia é ‘verdadeira’ desde que se acredite que


ela é útil à nossa vida […] a verdade é UMA ESPÉCIE
DE BEM e não, como se supõe em geral, uma
categoria distinta de bem, e se coordena com ele. A
VERDADE É O NOME DAQUILO QUE PROVE SER BOM.”

“O racionalismo atém-se à lógica e ao empírico. O


empirismo atém-se aos sentidos externos. O
pragmatismo está disposto a assumir tudo, seguir a
lógica ou os sentidos, e contar as experiências mais
humildes e pessoais. Ele contará experiências místicas
se elas tiverem consequências práticas.”

Em resumo
Uma crença ou ideia tem valor apenas se “funcionar” – ou seja, se mudar
nosso mundo de alguma maneira. Outras noções e ideias, por mais
atraentes e elegantes que sejam, devem ser descartadas.

Na mesma linha
A. J. Ayer, Language, Truth, and Logic (p. 40)
Jeremy Bentham, Princípios da moral e da legislação (p. 70)
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
William James

Pragmatismo é uma coleção de aulas não editadas que William James deu na
Universidade Columbia, em Nova York, entre 1906 e 1907, no fim de sua
carreira. Um dos maiores pensadores norte-americanos, ele não afirmava ter
criado a filosofia do pragmatismo (que foi uma realização de Charles Sanders
Peirce e continuou a ser desenvolvida por F. C. S. Schiller e John Dewey), mas
ele a deixou mais clara e a levou para o público geral. James define
pragmatismo como “a atitude de desviar o olhar das primeiras coisas,
princípios, ‘categorias’, supostas primeiras necessidades e olhar na direção das
coisas últimas, frutos, consequências, fatos”. Pragmatismo é um primo
intelectual próximo do utilitarismo. As duas perspectivas carregam uma
desconfiança profunda da filosofia acadêmica abstrata e um interesse
permanente apenas no valor prático dos conceitos.

Filosofia é temperamento
James começa observando que cada indivíduo tem uma filosofia, que ele
descreve como a

noção mais ou menos estúpida do que a vida significa sincera e


profundamente. É apenas parcialmente alcançada nos livros; é nossa
maneira individual de apenas ver e sentir o impulso e a pressão
completos do cosmos.

Ele comenta a observação de G. K. Chesterton de que a senhoria não quer


apenas saber da renda e do trabalho do inquilino, ela quer uma noção da visão
geral do candidato sobre a vida. A filosofia pessoal é tudo, um fato que
filósofos acadêmicos, em seu desejo de serem vistos como discernidores
objetivos da verdade, de alguma forma encobrem.
James diz sem rodeios: “A história da filosofia é, em grande medida, a
história de uma certa colisão de temperamentos humanos”. Ele quer dizer que
as conclusões de filósofos vêm mais de suas tendências pessoais do que de
descobertas objetivas. Suas teorias, percebidas como “empiristas” ou “idea-
listas”, são um reflexo de sua constituição emocional e sua visão básica do
mundo. Um filósofo profissional não pode fazer alegações sobre o terreno de
seu temperamento, assim ele tenta esconder suas tendências temperamentais.
Portanto, no coração do filósofo jaz a mentira, porque “a mais potente de
todas as nossas premissas nunca é mencionada”.
Nós, como consumidores de filosofia, também não somos inocentes:
instintivamente rejeitamos ou abraçamos certas filosofias se elas se adéquam a
nosso temperamento.

A grande divisão
James divide os filósofos em duas categorias básicas: os empiristas, que
querem reduzir tudo a fatos e observações nuas e cruas; e os racionalistas, que
acreditam em princípios abstratos e eternos. Os primeiros tendem a ter uma
visão não sentimental, fatalista, irreligiosa e com frequência obscura do
mundo, enquanto os últimos são otimistas que tendem a acreditar no livre-
arbítrio, na ordem espiritual e na unidade de todas as coisas. Obviamente cada
campo tende a diminuir o outro.
James observa que vivemos em uma época de mentalidade empírica, no
entanto ainda não nos livramos do impulso humano natural à religião. Muitos
se veem presos entre a filosofia que não cobre as necessidades espirituais, que
oferece um universo completamente materialista, e a filosofia religiosa, que
não considera os fatos. Ele observa que a maioria de nós está atrás de “uma
filosofia que não exercitará apenas seus poderes de abstração intelectual, mas
fará alguma conexão positiva com o mundo real de vidas humanas finitas”.
Não surpreende que os tipos científicos viraram as costas para a filosofia
metafísica como “algo enclausurado e espectral”, que não tem espaço no
mundo moderno.
Ainda assim, diferentemente de um empirista puro, o pragmatista estará
aberto às verdades teológicas, ou a conceitos metafísicos livres de Deus, como
o idealismo transcendental de Kant, se eles provarem ter um benefício
concreto:

Da mesma forma que certas comidas não são apenas agradáveis a


nosso paladar mas boas para nossos dentes, nosso estômago e nossos
tecidos, algumas ideias não são apenas agradáveis de pensar ou
agradáveis por corroborar com outras que nos são caras, mas também
são úteis nos esforços práticos da vida. Se houver alguma vida que seja
realmente melhor que a que deveríamos levar e se houver alguma ideia
que, se nela acreditarmos, nos ajudaria a levar essa vida, então
realmente seria MELHOR PARA NÓS acreditar nessa ideia, A
MENOS QUE, DE FATO, ACREDITAR NELA
INCIDENTALMENTE SEJA CONTRÁRIO A OUTROS
BENEFÍCIOS VITAIS MAIORES.

James apresenta o pragmatismo como um caminho, preocupado com


provas e fatos, mas ainda assim aberto para a religião se ela oferecer benefícios
concretos para quem acreditar nela. Como uma filosofia, o pragmatismo é
raro, pois pode ser usado tanto por empiristas “calculistas” como por
abstracionistas “idealistas”.

O que o pragmatismo pode fazer por você


James lança mão da ideia de Peirce de que uma crença ou um pensamento
apenas tem significado nos termos de seus efeitos. Qualquer ideia que for mera
especulação e não mude as coisas de alguma forma prática não tem valor.
Precisamos questionar como o mundo seria diferente, supondo que a ideia seja
verdadeira. James diz a seu público:

É surpreendente ver quantas contendas filosóficas desmoronam na


insignificância no momento em que nós as submetemos ao simples
teste de rastrear uma consequência concreta. Não pode HAVER
nenhuma diferença em algum lugar que não FAÇA diferença em outro
lugar – nenhuma diferença na verdade abstrata que não se expresse em
uma diferença no fato concreto […] Toda a função da filosofia deveria
ser a de descobrir qual a diferença definitiva que ela fará para vocês e
para mim, em momentos definitivos de nossa vida, se essa fórmula do
mundo ou aquela fórmula do mundo for a verdadeira.

Os filósofos sempre estiveram à procura do princípio único – seja chamado


de Deus, Matéria, Razão, o Absoluto ou Energia – que destrancaria todos os
segredos do universo, mas, com o método pragmático, observa James,
ninguém poderá se fiar nessas coisas como autoevidentes, mas deverá
descobrir o “valor de compra” de cada conceito, seu valor prático. Se
imaginarmos a filosofia como um hotel, com diferentes filosofias habitando
diversos quartos, o pragmatismo não é simplesmente outro quarto, mas um
corredor que leva aos quartos, alguns dos quais talvez sejam religiosos, alguns
científicos. Cada filosofia poderá ser julgada precisamente se estiver disposta a
sair de seu quarto e encontrar o pragmatismo no corredor e, assim, será capaz
de expor seus argumentos ao valor real e à praticidade.
Apontando para o dilema para muitos de nós que vivemos em uma era
científica, James diz:

O maior inimigo de qualquer uma de nossas verdades pode ser o


restante de nossas verdades. As verdades têm […] o instinto
desesperado de autopreservação e o desejo de extinguir qualquer coisa
que as contradisser. Minha crença no Absoluto, com base no bem que
me faz, deve receber as severas críticas de todas as minhas outras
crenças.

Em outras palavras, uma crença em Deus ou em algum tipo de absoluto


nos oferece um “feriado moral”, mas é um com que podemos arcar
considerando a realidade de tudo o mais que aprendemos? Se uma pessoa
ainda acha que, apesar de todas as provas contrárias, sua fé ou sua crença na
realidade não material ainda traz grandes benefícios, então ela não está sendo
irracional; ela está sendo pragmática. O pragmatismo difere-se totalmente do
empirismo no fato de não ter “nenhum preconceito, nem cânones rígidos ou o
que contará como prova […] ele considerará qualquer hipótese”, contanto que
possa ser mostrado seu benefício racional.
Em suma, o pragmatismo “amplia o campo de busca por Deus”, seguindo
ou a lógica ou os sentidos, e “incluirá as experiências mais humildes e pessoais.
Ele contará experiências místicas se elas tiverem consequências práticas”. O
último ponto é um link para outro livro de James, As variedades da experiência
religiosa, que admitiu plenamente (mesmo que o próprio James não tivesse
temperamento para epifanias) que as experiências de conversão poderiam
transformar a vida de uma pessoa. As conversões mostraram, sem sombra de
dúvida, que o imenso benefício prático poderia vir de uma ideia abstrata.

Comentários finais
James enfatiza a divisão entre a visão monística do universo, na qual tudo é
visto como um, e uma pluralista, que se concentra na diversidade e na
pluralidade estonteante da vida. A visão tradicional é que apenas a primeira é
religiosa e a segunda traz uma visão do caos. No entanto, James sustenta que
podemos ter uma crença no poder de uma cosmologia pluralista, mesmo se
acreditarmos que não há “necessidade lógica” ou divina no desenvolvimento
do mundo. O progresso acontecerá por meio do “simples desejo”, diz ele,
ocorrendo por meio dos indivíduos e “em pontos”. Somos nós que fazemos o
mundo como ele é e, se quisermos uma vida diferente ou um mundo diferente,
precisamos agir.
Ao perguntar por que qualquer coisa deveria existir, James responde:

o único motivo REAL que posso pensar em por que qualquer coisa
deveria sequer existir é que alguém deseja que ela esteja aqui. É
EXIGIDA […] para dar alívio a uma fração da massa do mundo, não
importa quão pequena seja. É a razão de viver, e, comparadas com ela,
as causas materiais e as necessidades lógicas são coisas espectrais.

A resposta de James não surpreende quando consideramos sua filosofia no


geral, que é a de que os eventos em si carregam a verdade (só dá para saber
provando, como se diz). Podemos acreditar que Deus criou o universo em sete
dias ou que ele se iniciou sozinho com o Big Bang, mas de qualquer maneira
nossas explicações não importam de verdade. O fato é que o universo está
aqui, então, em termos pragmáticos, faz sentido apenas estudar o que existe.

William James
Nascido em Nova York, em 1842, James teve uma criação confortável e culta.
Em sua adolescência, a família, inclusive seu irmão Henry (que se tornaria um
escritor famoso), mudou-se para a Europa, onde James aprendeu várias
línguas. Ao voltar aos Estados Unidos, em 1860, passou um ano e meio
tentando se tornar pintor, em seguida se matriculou em Harvard, onde cursou
medicina. Em 1865, James saiu em uma expedição científica com o famoso
naturalista Louis Agassiz, mas durante a viagem enfrentou vários problemas de
saúde e ficou saudoso de casa.
Em 1867, James foi para a Alemanha, onde estudou fisiologia e foi exposto
a pensadores e ideias no novo campo da psicologia. Dois anos depois, voltou a
Harvard, onde, aos 27 anos, finalmente recebeu seu diploma de médico. Aos
30, conseguiu uma vaga na mesma universidade para lecionar fisiologia, mas
apenas após ter se recuperado de um colapso emocional. Em 1875, começou a
dar aulas de psicologia e também estabeleceu o primeiro laboratório de
psicologia experimental nos Estados Unidos. No ano em que começou a
trabalhar em The Principles of Psychology [Os princípios da psicologia], James se
casou com Alice Howe Gibbons, uma professora de Boston. Tiveram cinco
filhos.
James conheceu Sigmund Freud e Carl Jung em suas visitas aos Estados
Unidos, conheceu Bertrand Russell, Henri Bergson, Mark Twain e Horatio
Alger e teve entre seus alunos o educador John Dewey e o psicólogo Edward
Thorndike. Outros escritos importantes incluem The Will to Believe [A vontade
de crer] (1897) e As variedades da experiência religiosa (1902). James morreu em
1910.
2011

Rápido e devagar

“Previsões extremas e uma disposição para prever


eventos raros a partir de evidências fracas são
manifestações do Sistema 1 […] E é natural para o
Sistema 1 gerar opiniões superconfiantes, porque a
confiança […] é determinada pela coerência da melhor
história que se pode contar a partir da evidência
disponível. Fique alerta: sua intuição vai oferecer
previsões que são extremas demais, e você terá a
tendência a pôr fé demais nelas.”

“Minha política pessoal de evitar o retrospecto tem que


ser muito intensa ou casual ao tomar uma decisão com
consequências de longo prazo.”

Em resumo
Como o jeito que pensamos determina o que sabemos, a pesquisa
psicológica desempenha um papel importante na busca pela verdade
filosófica.

Na mesma linha
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
Nassim Nicholas Taleb, A lógica do cisne negro (p. 390)
Daniel Kahneman

Daniel Kahneman é um psicólogo que por acaso também ganhou um Prêmio


Nobel de Economia por seu trabalho sobre “teoria da perspectiva” (ou sobre
tomar decisões sob incerteza). Também fez grandes contribuições para a
psicologia da percepção e atenção, a economia comportamental e a psicologia
hedônica (ou o que faz as pessoas felizes, e quando elas ficam mais felizes). O
fato de ter sido laureado com o prêmio máximo em duas disciplinas é
indicação de que Kahneman é um homem renascentista dos dias modernos e
seu trabalho (como ele admitiu) tem implicações significativas para a filosofia.
Em uma palestra de 2012, “Thinking That We Know” [Pensando que
sabemos], Kahneman observou que “a busca compartilhada pela verdade
consensual e objetiva é a missão principal da ciência. Mas a noção de verdade é
uma experiência subjetiva que recai no domínio da psicologia”. Em outras
palavras, estamos desesperados para saber as coisas, mas, como Hume
observou, percebemos o mundo através de nossos sentidos, então nossa
interpretação do que vemos e ouvimos é diferente para cada um de nós.
Temos uma experiência diferente de “verdade”. Mesmo dentro de nossa mente
não há universalidade ou uma maneira-padrão de perceber.
Rápido e devagar é o ápice de sua carreira estelar como psicólogo
pesquisador, resumindo os famosos experimentos com o colega Amos
Tversky sobre julgamento e tomada de decisões, especificamente os erros
sistemáticos (ou vieses) que são razoavelmente previsíveis em determinadas
circunstâncias. Nossa intuição com frequência está correta, mas há muitas
outras vezes em que ela erra. Além disso, não é raro estarmos muito confiantes
de nossas opiniões, mais do que temos o direito de estar (somos “uma
máquina de tirar conclusões precipitadas”, diz ele); observadores objetivos
com frequência têm um quadro mais preciso de uma situação do que nós.
Somos “estranhos para nós mesmos”, alega Kahneman, sem ter um controle
real de nossos pensamentos. E o preocupante é que não apenas podemos estar
cegos para o óbvio, mas também “podemos estar cegos para nossa cegueira”.
O trabalho de Kahneman também revelou dois jeitos diferentes pelos quais
pensamos: o “rápido” (Sistema 1) e o “devagar” (Sistema 2).

Como o pensamento realmente acontece: dois


sistemas
Acreditamos que nosso pensar ocorre por um pensamento consciente levando
a outro, mas Kahneman diz que na maior parte do tempo não é da maneira
como imaginamos que acontece. Os pensamentos chegam sem que saibamos
como.

Você não consegue rastrear como chegou à crença de que há uma


luminária na mesa diante de você, ou como detectou um traço de
irritação na voz de seu cônjuge ao telefone, ou como conseguiu evitar
um perigo na estrada antes de se conscientizar dele. O trabalho mental
que produz impressões, intuições e muitas decisões ocorre de maneira
silenciosa.

Kahneman descreve essas impressões imediatas como pensamento rápido


ou de Sistema 1. Nós o usamos com muito mais frequência do que o
pensamento lento, deliberativo, de Sistema 2, que inclui qualquer coisa, desde
preencher um formulário de imposto, estacionar em um espaço apertado até
tentar testar um argumento. O pensamento do Sistema 2 envolve atenção e
esforço, ou, para usar uma palavra filosófica, razão.
Os sistemas podem operar em conjunto. Quando o Sistema 1 não pode
resolver um problema imediatamente, ele convoca o Sistema 2 com seu
processamento detalhado e deliberado para ponderar sobre a questão e
descobrir uma resposta. O Sistema 1 permite que dirijamos em uma
autoestrada sem pensar na direção; o Sistema 2 vem à tona quando de repente
pensamos aonde estamos indo. O Sistema 1 permite que leiamos uma história
para nossa filha sem realmente absorvê-la; o Sistema 2 desperta quando ela faz
uma pergunta.
As avaliações rápidas do Sistema 1 em geral são boas, e, se você for um
especialista em sua área de atuação, provavelmente usa as avaliações do Sistema
1 o tempo todo com base na quantidade de seu conhecimento. Elas nos
economizam bastante tempo e esforço. No entanto, o pensamento do Sistema
1 está longe de ser perfeito; tem vieses sistêmicos, e isso não pode ser
desligado. Em geral, o Sistema 2 está no comando, pois pode diminuir a
velocidade do pensamento e criar avaliações mais fundamentadas, mas também
é um admirador dos julgamentos mais intuitivos do Sistema 1.
O pensamento do Sistema 1 não está preocupado com a falta de
informação; ele simplesmente pega o que sabe e salta para uma conclusão. Por
exemplo, quando ouvimos a declaração “Mindik será uma boa líder? Ela é
inteligente e forte”, automaticamente supomos que sim, ela será uma boa líder.
Mas e se o restante da frase fosse “corrupta e cruel”? Por que não pedimos
mais informações sobre os atributos de Mindik para fazer uma avaliação
adequada? Kahneman diz que nosso cérebro não funciona dessa forma.
Criamos vieses com base em conhecimento inicial e incompleto ou tramamos
uma história além dos fatos limitados: esse é o WYSIATI3 – “O que você vê é
tudo que há” –, a regra do julgamento humano.

Pensando nos erros


Rápido e devagar perpassa uma série de vieses e erros do pensamento intuitivo,
muitos dos quais Kahneman e Tversky descobriram.
Kahneman já tinha uma teoria particular de que os políticos tinham mais
propensão a ser adúlteros do que pessoas em outras áreas, por conta do
afrodisíaco do poder e de suas longas estadas longe de casa. De fato, o que ele
percebeu mais tarde era que os casos de políticos ficavam mais em evidência
nos noticiários. É o que ele chama de “heurística da disponibilidade”. Uma
heurística é algo que permite que descubramos algo ou resolvamos um
problema; nesse contexto, se as coisas estiverem na memória recente, teremos
mais propensão a identificá-las como relevantes. Os meios de comunicação
obviamente têm seu papel nisso.
Somos mais propensos a lutar pela sobrevivência na savana do que na vida
urbana. Como resultado, “situações são avaliadas constantemente como boas
ou más, exigindo fuga ou permitindo a abordagem”. No dia a dia, isso significa
que nossa aversão a perdas é naturalmente maior (duas vezes mais) do que
nossa atração pelo ganho. Temos um mecanismo embutido que dá prioridade
às más notícias. Nosso cérebro é configurado para detectar um predador em
uma fração de segundo, muito mais rápido do que a parte do cérebro que ­-
reconhece ter visto um. É por isso que podemos agir antes mesmo de
“sabermos” que estamos agindo. “Ameaças são privilegiadas frente às
oportunidades”, diz Kahneman. Essa tendência natural significa que
“supervalorizamos” eventos improváveis, como ser pego em um ataque
terrorista. Isso também nos leva a superestimar nossas chances de ganhar na
loteria.
“Aja com calma e gentileza apesar de como se sente” é um bom conselho,
diz Kahneman; nossos movimentos e expressões condicionam a forma como
realmente nos sentimos. Ele comenta um experimento que descobriu que,
quando participantes seguravam um lápis na boca de forma que ela ficasse
esticada (como um sorriso), eles achavam os desenhos animados mais
engraçados do que quando seguravam um lápis com a boca em forma de bico.
Uma imagem de olhos arregalados e fixos sobre uma “caixa da
honestidade” em uma cantina universitária faz com que as pessoas tenham
mais propensão a serem honestas quando colocam o valor do que consumiram
na caixa. Quando a imagem é substituída pela de flores, a propensão diminui.
É o efeito de “priming”. Em outro experimento, participantes estimulados com
imagens de notas de dólares ficavam menos propensos a cooperar ou se
envolver em uma atividade em grupo e mais propensos a querer fazer algo
sozinhos. Outros estudos demonstraram que a menção de pessoas de idade
avançada para jovens faz com que eles andem mais devagar e que ter cabines
de votação em escolas deixa as pessoas mais propensas a votar a favor de
medidas de financiamento escolar (se elas estiverem indecisas).
Semelhante ao efeito de “priming” é o efeito de ancoragem, mais bem
ilustrado pelo fato de que um número sugerido ou declarado antes de uma
questão ser feita afetará a resposta. Por exemplo, pessoas para as quais foi dito
que “Gandhi morreu quando tinha 114 anos” quase sempre dão uma
estimativa maior de sua idade real quando faleceu do que pessoas que não
receberam essa informação. Outro exemplo é de pessoas que, ao fazer
compras, são informadas de que há um limite de “12 unidades por pessoa”;
essa informação quase sempre faz com que elas comprem mais.
Kahneman discute o “efeito halo”, que afirma que, por exemplo, se
gostarmos das propostas de um político, provavelmente consideraremos que
ele tem boa aparência também. Se flertamos com alguém em uma festa, somos
mais propensos a dizer que esse alguém é “generoso” se nos pedirem para
avaliar a probabilidade dele de fazer doações a uma instituição beneficente,
mesmo se não soubermos nada sobre a pessoa. O efeito halo às vezes aumenta
drasticamente o peso das primeiras impressões, e com frequência as
impressões posteriores não vão importar. Ao dar nota em provas, Kahneman
admite que a nota dada ao primeiro trabalho no caderno de provas de um
aluno tinha uma grande influência em como ele avaliava os outros trabalhos.
Ele passou a ler os trabalhos da classe por ordem de tópico, não de aluno, e as
notas atribuídas ficaram mais precisas.
O “viés de disponibilidade” nos diz que nossa estimativa de probabilidade
de coisas que ocorrem é muito afetada por aquilo que nos aconteceu na
memória recente, ou aquilo que estava no noticiário. Por exemplo, as pessoas
acham que a morte causada por raio é mais comum do que a morte por
botulismo, mas esta última é 52 vezes mais frequente.
Kahneman discute “miswanting”, que é tomar decisões com base naquilo que
pensamos que nos fará felizes (por exemplo, um carro novo, uma casa nova ou
morar em outra cidade), mas que, no longo prazo, não nos fará. Foram
Kahneman e seu colega David Schkade que demonstraram que o clima tem
zero efeito sobre a felicidade. Os californianos gostam de seu clima e o pessoal
do Meio-Oeste norte-americano não gosta do deles, mas essas visões não
afetam sua sensação geral de bem-estar. Alguém que se muda de uma área fria
para a Califórnia parecerá feliz nos primeiros anos, quando lembrar a si mesmo
do contraste entre o clima lá e como era antes, mas essas coisas não afetam a
felicidade no longo prazo.
Kahneman também discute a descoberta de que o momento atual que
estamos vivendo deixa muito menos impressão no cérebro do que começos,
términos e grandes eventos. É por isso que, quando decidimos aonde ir ou o
que fazer nas férias seguintes, pagamos mais pelas lembranças do que pela
experiência real. O eu recordativo é mais poderoso do que o eu experiencial,
que molda nossas decisões. No entanto, ainda somos deixados com o “tempo
entre”, o restante da vida que temos de viver. “A mente é boa com histórias”,
diz Kahneman, “mas não parece ser bem projetada para processar tempo.”
Cada idade tem seus vieses de pensamento. Nos anos 1970, a maioria dos
cientistas sociais fazia uma suposição de que pessoas em geral são racionais e
seu pensamento sadio, mas que às vezes a emoção sequestra essa raciona­lidade.
De fato, as coisas funcionam mais ou menos ao contrário. Invocamos a mente
racional apenas quando realmente precisamos dela. Nosso pensamento não é
“corrompido” pela emoção em vez disso, muito de nosso pensa­men­to é
emocional.
Lendo causas em tudo
O Sistema 1 tende a acreditar e confirmar, não a questionar. Esse tipo de
pensamento sempre está em busca de elos entre os eventos e a causalidade,
mesmo quando não existem. Gostamos de tramar a causalidade nos eventos
que na verdade são aleatórios, e essa atividade é corroborada pelo fato de que
os processos aleatórios podem parecer muito não aleatórios. “A tendência a ver
padrões na aleatoriedade é avassaladora”, diz Kahneman.
Para obter a compreensão real se algo é estatisticamente significativo,
precisamos de uma amostra muito grande para excluir a aleatoriedade.
Kahneman argumenta que criamos “uma visão de mundo ao nosso redor que
é mais simples e mais coerente do que os dados justificam”. Ele escreve que
“explicações causais de eventos ao acaso estão inevitavelmente erradas”. Para
evitar ler demais em qualquer coisa, precisamos ter uma avaliação da natureza
da aleatoriedade verdadeira, que pode com frequência não pare­cer aleatória.
Um jogador de basquete enterra algumas bolas na sequência ou tem um
período de jogos bons, e pensamos que ele é “mão quente”. Um consultor de
investimentos tem três bons anos na sequência, e supomos que ele tem um
toque de gênio. Mas os dois indivíduos podem simplesmente estar tendo o
tipo de bom desempenho que a verdadeira aleatoriedade preveria.
Kahneman observa que a exigência pela certeza ilusória fica ainda mais
aparente no mundo dos negócios, onde se pensa que os CEOs têm um efeito
imenso sobre o desempenho da empresa. Esse efeito em geral é exagerado
(tanto no aspecto positivo quanto no negativo), pois todos queremos acreditar
que uma única pessoa tem alguma fórmula mágica para o sucesso, ou que uma
maçã podre destruiu a empresa. Na verdade, “a comparação de empresas que
foram mais ou menos bem-sucedidas é, em uma medida significativa, uma
comparação entre empresas que foram mais ou menos sortudas”. Por
exemplo, não existe quase nenhuma diferença entre “grandes” exemplos de
empresas perfiladas por Tom Peters e Robert Waterman em seu livro Vencendo
a crise e por Jim Collins em Feitas para durar e aquelas consideradas ruins ou
medíocres à época. Os livros gostam de preservar uma ilusão de compreensão
com base em nosso amor por histórias de triunfo ou fracasso.

A ilusão da opinião especializada


Quando Kahneman trabalhou como psicólogo do exército israelense, uma de
suas tarefas era julgar a capacidade de oficiais em potencial. Com base em suas
observações, ele e seus colegas tinham confiança nas avaliações deles, ainda
que, quando os soldados chegavam à escola de oficiais, todas as suas opiniões
se provavam erradas. A lição? “[Declarações] de confiança elevada informam
principalmente que um indivíduo construiu uma história coerente na cabeça,
não necessariamente que a história seja verdadeira.”
Kahneman gosta de dissipar o mito do gerente de investimento especialista.
Ele diz que selecionar ações é um pouco mais que jogar dados. Estudo após
estudo mostrou que, por mais bizarro que seja para um setor que construiu
uma imagem de habilidade, os negociadores de ações na verdade não agem
melhor que o acaso, e há zero correlação entre desempenhos de ano a ano.
Ele também discute o livro Expert Political Judgment: How Good Is It? How Can
We Know? [Opinião política especializada: ela é boa? Como podemos saber?],
de Philip Tetlock, que demonstrou como os especialistas políticos não têm
desempenho melhor para fazer previsões do que “macacos atiradores de
dardos” – e, na verdade, pior do que se tivessem deixado suas previsões ao
sabor do acaso. Não apenas sua capacidade de ler as situações não é melhor do
que a de um leitor médio de jornais: quanto mais famoso o especialista, em
geral pior serão suas previsões, por conta da confiança excessiva.
Kahneman acredita que, na maioria das situações, fórmulas simples
superam a intuição humana. Em muitas áreas, como avaliação de risco de
crédito, chance de morte infantil repentina, perspectivas de sucesso de novas
empresas ou adequação de pais adotivos, os algoritmos, fazem previsões mais
precisas do que os profissionais “especialistas”. Seres humanos são
extremamente incoerentes em suas avaliações; os algoritmos, não. Especialistas
querem considerar toda uma série de informações complexas, mas, em geral,
apenas dois ou três parâmetros são suficientes para fazer um bom julgamento.
Por exemplo, existe um algoritmo para prever o valor futuro dos vinhos
Bordeaux usando apenas três variáveis climáticas, e é muito mais preciso do
que as avaliações de enólogos profissionais. A intuição ou o julgamento global
podem ser úteis, mas apenas depois de chegar aos fatos – não como
substituição. A intuição do especialista pode ser de confiança apenas quando o
ambiente for estável e regular (por exemplo, no xadrez), não aberto e
complexo.

Comentários finais
Uma das conclusões fascinantes de Kahneman é que estudar psicologia não
tem efeito nenhum em termos de mudança na maneira como pensamos e
agimos. Podemos aprender sobre experimentos mostrando, por exemplo, que
as pessoas são muito relutantes em ajudar outras em dificuldades quando
acham que outros indivíduos poderiam interferir; porém, nosso conhecimento
da escuridão da natureza humana não significa que isso mudará nosso
comportamento no futuro. Em vez disso, pensamos que não somos assim. Seu
insight é que a consciência da probabilidade estatística em experimentos não
nos altera, apenas em casos individuais – porque a partir desses casos podemos
tecer uma história significativa, e somos criaturas contadoras de histórias.
Ainda assim, Kahneman também diz que o foco do livro no erro

não é uma crítica à inteligência humana da mesma forma que a atenção


às doenças em textos médicos não rejeita a boa saúde. A maioria de
nós é saudável na maior parte do tempo, e a maioria de nossas decisões
e ações é adequada na maior parte do tempo.

De fato, o foco de Rápido e devagar na enorme série de vieses e falhas no


pensamento humano não significa que o livro tenha um tom negativo. Em vez
disso, oferece esperança, porque muitos desses pontos cegos de pensamento
ficavam escondidos ou inconscientes antes – e assim estávamos à mercê deles.
Agora, podemos incluí-los no cálculo de qualquer decisão racional que
precisemos tomar ou teoria que desejemos desenvolver.
A filosofia é tão vulnerável a esses erros cognitivos quanto qualquer área, e
pensar que ela está acima de todos eles é arrogância.

Daniel Kahneman
Kahneman nasceu em 1934, em Tel Aviv, enquanto sua mãe estava visitando
Israel. Seus pais eram lituanos, e seus primeiros anos foram na França, onde a
família conseguiu evitar a perseguição nazista. Mudaram-se para a Palestina
Britânica em 1948, e Kahneman foi para a Universidade Hebraica de
Jerusalém, onde se formou em psicologia.
Depois da graduação, trabalhou como psicólogo no exército israelense,
desenvolvendo testes para avaliação de oficiais. Aos 20 e poucos anos, foi para
os Estados Unidos fazer doutorado em psicologia na Universidade da
Califórnia, em Berkeley, e em 1961 voltou a Israel para assumir um cargo de
docente, ficando lá por muitos anos. Locais posteriores onde ele se dedicou à
docência e à pesquisa incluíram a Universidade de Michigan, Harvard e
Stanford. Atualmente, é estudioso sênior e professor emérito do departamento
de psicologia na Woodrow Wilson School of Public and International Affairs
da Universidade de Princeton. É casado com a professora de psicologia Ann
Treisman.
1781

Crítica da razão pura

“A razão humana tem o destino peculiar […] de ser


perturbada por questões que não pode dispensar,
porque são apresentadas a ela pela natureza da
própria razão, mas que ela também não consegue
resolver, porque superam toda a faculdade da razão
humana.”

“Na verdade, ninguém será capaz de se vangloriar pelo


fato de saber que existe um Deus e que há uma vida
futura […] Não, a convicção não é uma certeza lógica,
mas moral; e, como ela repousa em bases subjetivas
(da atitude moral), não devo sequer dizer que é
moralmente certo que existe um Deus etc., mas devo
dizer que estou moralmente certo etc.”

Em resumo
Em um mundo racional baseado na ciência, existe lugar para a lei moral?

Na mesma linha
Aristóteles, Ética a Nicômaco (p. 32)
Cícero, Dos deveres (p. 100)
Martin Heidegger, Ser e tempo (p. 168)
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação (p. 364)
Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas (p. 398)
Immanuel Kant

Immanuel Kant foi um produto do Iluminismo, em que tudo – natureza, leis,


política – estava sujeito à luz fria da razão. O trabalho de Newton, Hume,
Rousseau, Leibniz e Spinoza sinalizou o final da superstição e da
irracionalidade raivosas da Idade Média. Kant não apenas aceitava a visão
científica de mundo, como também começou sua carreira escrevendo livros
científicos, inclusive um sobre as origens do sistema solar. Ainda nesse
universo aparentemente funcionando como um mecanismo de relógio, ele
imaginou se havia um lugar para a moralidade. A tentativa de reconciliar o
físico e o metafísico talvez parecesse um projeto impossível, mas esse era o
objetivo ousado de Crítica da razão pura.
O livro surgiu da insatisfação de Kant tanto com os empiristas, como
Hume, que argumentavam que o conhecimento era apenas o que podíamos
confirmar por meio de nossos sentidos, quanto com a visão racional de que a
razão humana era tão poderosa que podia explicar o universo. A “terceira via”
de Kant dizia que a razão podia mesmo nos levar muito longe, mas havia
limites. Estávamos errados em pensar que, como seres existentes no espaço e
no tempo, podíamos saber tudo sobre as questões metafísicas. Ainda assim,
nossos poderes de razão nos levaram à metafísica, da mesma forma que nos
levaram às ciências naturais. Portanto, poderia nosso raciocínio sobre
moralidade, Deus e a alma estar tão errado se nosso raciocínio sobre questões
físicas, empíricas estava correto?
A questão não era se a metafisica é legítima, mas como poderíamos lidar
com ela de forma rigorosa e científica. Sua “crítica da razão pura” investigaria
o que somos capazes de saber sobre o mundo imaterial (Deus, por exemplo)
considerando os limites de nossos sentidos.
A Crítica é extremamente difícil de ler porque Kant abordou o assunto
como um cientista forense, usando termos precisos e técnicos e procedendo
por meio de argumento rigoroso. Ainda assim, qualquer um que estude o livro
um pouco será recompensado por preciosidades de uma das maiores mentes
da história da filosofia.

Seres no espaço e no tempo


Fundamental para o livro é o conceito de “idealismo transcendental” ou a
distinção que Kant faz entre a essência atemporal, a realidade ou a verdade de
uma “coisa em si” e o mundo das aparências que vemos a nosso redor.
Como seres humanos, pensamos em nós mesmos como observadores de
um mundo real de coisas (planetas, móveis etc.) e no tempo como algo
objetivo e externo a nós. Porém, a ideia radical de Kant é que espaço e tempo
não têm realidade independente, mas que são simplesmente a maneira como
os seres humanos percebem o mundo. Espaço e tempo permitem que
filtremos e compreendamos os dados que nos chegam pelos sentidos. Somos
equipados para reconhecer padrões, por exemplo, e dar muita atenção a
qualquer movimento físico em nome da sobrevivência. Não somos
construídos para ver as coisas “como elas são” – ou seja, sua realidade
permanente, metafísica –, mas o que elas poderiam significar para nós. Nosso
conhecimento do mundo não se conforma com a maneira como o mundo
“realmente é”; em vez disso, o mundo como o percebemos se conforma com
o conhecimento que temos dele.

A crença espiritual pode ser racional?


Quando mais jovem, Kant acreditava que era possível adquirir conhecimento
metafísico de maneira científica. No entanto, depois de ler e se impressionar
com a obra do místico Emmanuel Swedenborg, que descrevia suas visões de
um mundo espiritual, Kant mudou de rumo e concluiu que não poderíamos
sequer ter o conhecimento real de questões metafísicas. O único terreno firme
que poderíamos encontrar era o de identificar os limites da razão humana.
Tendo chegado a esse ponto, era de esperar que Kant (como fez Hume)
dissesse que a metafísica não fazia sentido, mas ele meramente comenta que é
um erro, limitado como somos por nossos cinco sentidos e vivendo nas
dimensões do espaço e do tempo, esperar falar sobre ela de forma inteligente.
Como nada de natureza espiritual poderia sequer ser provado de forma
racional ou científica, a teologia não poderia ser considerada uma disciplina
adequada e racional. Ainda assim, ele também concluiu que, embora fosse
impossível provar que Deus existe, tampouco era possível provar que Deus
não existe. Estava na natureza da humanidade querer algum tipo de base firme
sobre as questões metafísicas, e os esforços para alcançar a certeza, portanto,
eram racionais. Fazer as grandes perguntas, mesmo se as respostas estiverem
além de nós, era essencial para o ser humano. Ele era realmente contra o
dogmatismo: crença cega sem o pensamento racional.

A moralidade é real
Kant acreditava que o melhor proveito da razão era nos levar na direção de
uma moralidade mais objetiva. Se alguma coisa não pudesse ser mostrada
como boa de forma racional e não pudesse ser aplicada universalmente, então
provavelmente não era boa. Esse era o famoso “imperativo categórico”.

Aja apenas segundo uma máxima que você queira que se torne uma lei
universal.

Suas ações devem ser julgadas da seguinte forma: se todos fizerem o


mesmo, será benéfico a todos. As pessoas nunca deveriam ser vistas como
meios para um fim; elas são o fim. Claro, esse é um princípio básico da maioria
das religiões, mas Kant estava determinado a mostrar que isso fazia sentido
racional e filosoficamente.
Para ele, uma pessoa ou uma sociedade que agisse de acordo com o
imperativo categórico não poderia estar muito errada, porque sua moralidade
seria basea­da na razão. Kant acreditava que era correto para nós tentar
descobrir todas as leis e mistérios do mundo natural, ainda assim era também o
destino humano identificar e desenvolver a lei moral. Sebastian Gardner, um
estudioso de Kant, expressa esta posição do filósofo: “Como membros do
mundo sensível, estamos sujeitos às leis newtonianas e, como membros do
mundo espiritual, às leis morais”.
A moralidade não era uma questão fraca a ser coagida pela ciência, mas sim
podia ser vista como uma das grandes conquistas da humanidade – conquanto
se baseasse na razão. Este epitáfio (tirado de Crítica da razão prática) está
esculpido na lápide de Kant:

Duas coisas povoam a mente a cada vez com admiração e reverência


crescente e renovada, quanto mais frequente e continuamente ela se
ocupa delas: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de
mim.

Moralidade é uma espécie de ponte entre a experiência de ser humano e o


mundo não material. A sensação de que alguma coisa está correta ou errada
não é falsa ou arbitrária, mas sugere que estamos ligados a um conjunto de leis
metafísicas. A lei moral é tão real quanto os planetas e as estrelas.

Kant sobre a felicidade


Diferentemente dos estoicos, que acreditavam que a busca da felicidade era
secundária ao cumprimento das obrigações e à aceitação do lugar da pessoa no
universo, Kant acreditava que a felicidade era um objetivo legítimo dos seres
humanos, parte de nossa natureza física como seres no espaço e no tempo.
Ainda assim, a busca pela felicidade precisava ser vista dentro da busca mais
ampla da excelência moral. Sua solução era: “Faça o que lhe traga merecimento
para ser feliz”. Embora pareça algo que talvez ele tenha pegado de sua criação
pietista, sua questão era que deveríamos levar uma vida moral, não porque
Deus está nos dizendo para fazê-lo, mas porque, em um nível puramente
racional, é a vida que muito provavelmente nos dará felicidade. Ao irmos
contra a lei moral, estamos fadados a viver infelizes; ao fazermos o que é
correto, criamos para nós mesmos um mundo de ordem e paz. O próprio
Kant vivia dessa forma, e dizem que era um homem muito feliz.

A glória de ser humano


Em seu último livro, Der streit der Fakultäten [O conflito das faculdades] (1798),
Kant se deu ao trabalho de dizer que a filosofia não é uma ciência de ideias, ou
a “ciência de todas as ciências”, mas, em vez disso, “é a ciência do ser humano,
de seu representar, pensar e agir – deveria apresentar o ser humano em todos
os seus componentes, como ele é e deveria ser, de acordo com suas
determinações naturais, bem como segundo sua condição de moralidade e
liberdade”. Embora a filosofia antiga tenha transformado os seres humanos
em máquinas que eram uma parte passiva do universo, a visão de Kant era de
que os humanos tinham “um lugar totalmente ativo no mundo”:

O ser humano em si é o criador original de todas as suas


representações e conceitos e deveria ser o único autor de todas as suas
ações.

Não somos bolas sendo lançadas em um universo de relógio newtoniano, e


nossas ações também não são controladas por uma divindade externa. Em vez
disso, somos seres autônomos que podem melhorar ao refinar nossas
percepções e, consequentemente, moldar o mundo de maneira positiva.
Kant foi um precursor de Freud no reconhecimento de que as ações das
pessoas são com frequência formadas por suas inclinações inconscientes, de
forma que parece haver pouco livre-arbítrio. E, ainda assim, por meio do
poder de raciocínio, elas poderiam começar a viver de acordo com ideias e
ideais mais elevados, cumprindo seu potencial e contribuindo com a
humanidade.
A própria essência do ser humano é a liberdade: somos livres para ver e
organizar o mundo como consideramos adequado, com base em nossa razão e
nossa experiência. Nenhum outro animal é sequer remotamente capaz de fazer
isso, e, de fato, nossa maior conquista é a percepção de que existe uma lei
moral universal que, em sua natureza atemporal e não espacial, nos parece vir
de outro lugar e que felizmente representamos como “Deus”. Se Deus é uma
realidade objetiva ou não, nunca saberemos, mas essa não é a questão. A
questão é a liberdade poderosa que temos para organizar nosso universo de
forma significativa, o que inclui o desenvolvimento da ética baseada na lei
moral universal. Esse é o destino da humanidade, e a mensagem central de
Kant.
A suposição de Kant de que seres humanos são essencialmente livres,
obstinados e capazes de serem vistos separadamente do contexto cultural ou
político, transformou-o em uma inspiração filosófica para a Revolução
Francesa. Da perspectiva da pesquisa contemporânea sobre o livre-arbítrio, sua
posição não parece rigorosa demais. Mesmo assim, se você acreditar na
liberdade essencial do indivíduo, Kant é uma grande figura, pois ele
transforma essa ideia simples em uma filosofia totalmente elaborada.

Comentários finais
Se um filósofo supremo como Kant viu a metafísica como algo importante,
talvez a questão importante para a filosofia, então ela nunca poderia ser
dispensada de forma leviana, como uma visão empírica ou racional extrema
desejaria fazer. Filósofos anteriores como Berkeley e Leibniz mantiveram Deus
no centro da filosofia, sugerindo que o mundo “real” era metafísico, enquanto
o mundo natural como percebemos era uma mera expressão dessa realidade
mais importante. Não, diz Kant, eles são igualmente importantes.
Para ele, a religião não era um caminho que se conectava com a verdade
espiritual (que era impossível), mas uma validação de posições morais
cuidadosamente justificadas. Seu pensamento fez com que parecesse aceitável
para uma pessoa racional e moderna que aceita a ciência e a lógica também
manter espaço na vida para a espiritualidade. Ainda assim, ao dizer que nada
concreto poderia ser dito na teologia (porque era um campo de investigação de
um objeto ou realidade que não poderia ser conhecido, ou sobre o qual não se
poderia escrever ou falar de forma inteligente), Kant também abriu o caminho
filosófico para a filosofia moderna, inclusive para positivistas lógicos e para
Wittgenstein.
Seu trabalho permaneceu atraente e influente porque consegue servir a dois
campos: quem tem a mente empírica pode dizer que Kant demonstrou que
toda a fala de Deus e da teologia é essencialmente bobagem; e os que
acreditam em Deus podem ver em seu trabalho uma fundamentação racional
para a lei moral e a metafísica. De qualquer forma, como seu sistema é muito
rigoroso, abrangente e internamente coeso, nenhum filósofo desde então foi
capaz de ignorá-lo.

Immanuel Kant
Kant nasceu em 1724 em Konigsberg, Prússia Oriental (atualmente
Kaliningrado, Rússia). Seu pai era um artesão e a família, pobre, mas Kant
recebeu educação gratuita em uma escola pietista. Na Universidade de
Konigsberg, teve uma variedade de disciplinas, inclusive ciência, filosofia e
matemática. Para ganhar dinheiro, trabalhou como tutor particular por oito
anos, mas em seu tempo livre se ocupava escrevendo textos científicos,
inclusive História geral da natureza e teoria do céu, sobre as origens do sistema
solar.
A publicação de sua primeira obra filosófica, A New Elucidation of the First
Principles of Metaphysical Cognition [Uma nova elucidação dos primeiros
princípios da cognição metafísica], permitiu que ele começasse a dar aulas
sobre tudo na universidade, de geografia a direito e física. Apenas em 1770,
quando estava com 46 anos, conseguiu uma posição segura como professor de
filosofia em Konigsberg.
Outros textos incluem “Sonhos de um visionário explicados pelos sonhos
da metafísica” (1766), Prolegômenos a qualquer metafísica futura que possa se apresentar
como ciência (1783), Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), Crítica da razão
prática (1788), Crítica da faculdade do juízo (1790), Religião nos limites da sim­ples razão
(1793) e Metafísica dos costumes (1797).
Kant nunca se casou e mal saía de Konigsberg. Considerado sociável e
espirituoso, realizava reuniões vespertinas em sua casa. Morreu em 1804.
1843

Temor e tremor

“A fé é um milagre, e, no entanto, nenhum ser


humano está dela excluído; pois é a paixão que une
toda a vida humana, e a fé é uma paixão.”

“O cavaleiro da fé sabe que ela lhe dá inspiração para


render-se ao universal, que é preciso coragem para
fazê-lo, mas também que existe uma certa segurança
nisso, apenas porque é pelo universal.”

“Não, aquele que foi grande neste mundo não será


esquecido. Mas cada herói foi grande à sua maneira, e
cada um foi eminente na proporção das grandes coisas
que amava. Pois aquele que amava a si mesmo se
tornou grande por si mesmo, e aquele que amava aos
outros se tornou grande por meio de sua devoção;
mas aquele que amava a Deus se tornou o maior de
todos eles. Cada um deles será lembrado, mas cada
um se tornou grande na proporção de sua confiança.”

Em resumo
A confiança total em um absoluto ou na realidade espiritual não é uma
fraqueza, mas a expressão mais alta da vida.
Na mesma linha
René Descartes, Meditações sobre filosofia primeira (p. 116)
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
Blaise Pascal, Pensamentos (p. 300)
Søren Kierkegaard

Para Søren Kierkegaard, parecia que, na Idade Moderna, todos começavam a


duvidar de tudo. Essa foi exatamente a abordagem adotada pelo arquicético da
filosofia moderna, Descartes. Ou era? Descartes, observa Kierkegaard, de fato
“não tinha dúvida em matéria de fé”. Em seu Princípios de filosofia, por exemplo,
Descartes apoiava a “luz natural” da razão apenas se nada contrário a ela fosse
revelado por Deus.
O oposto da dúvida é a fé, e Kierkegaard ficara fascinado pela história de
Abraão, o “pai da fé”, do Antigo Testamento. Temor e tremor narra a jornada de
três dias de Abraão até o monte Moriá, onde Deus aparentemente ordenou
que ele fosse sacrificar seu filho Isaque como oferenda. Kierkegaard passa o
livro todo tentando compreender como Abraão pôde se dispor a fazer uma
coisa dessas. Isaque não era apenas uma criança, mas o único filho de Abraão e
Sara, que milagrosamente tinha sido dado a eles em sua velhice, após muitos
anos de espera. Assim, era especialmente amado e estimado.
Contudo, Abraão não hesita nem questiona o pedido de Deus, mas sela
seus cavalos e parte. Quando Isaque percebe o que está acontecendo, suplica
ao pai, mas, como seria de esperar, Abraão não põe a culpa de suas ações em
Deus; em vez disso, assume total responsabilidade. Justifica que é melhor que
seu filho acredite que ele seja um “monstro do que perca a fé em Ti”.
O que acontece? No último minuto, quando Isaque é preso e uma fogueira
está sendo atiçada, Abraão avista um carneiro, e fica claro que o animal, e não
Isaque, deve ser ofertado. Abraão foi testado e descobriu ser um homem da
maior fé.
Para Kierkegaard, a disposição absoluta de Abraão parece extraordinária,
desumana. Em certo nível, Abraão é simplesmente um assassino. No entanto,
como está disposto a seguir com o que parece manifestamente absurdo apenas
porque Deus o deseja, Kierkegaard afirma que as ações de Abraão
representam a grandeza do ser humano.

Níveis de grandeza
Kierkegaard diz que todo mundo pode ser grande à sua maneira de acordo
com o que a pessoa ama e espera. Pessoas que amam a si mesmas podem ser
“grandes em si”; quem ama os outros pode tornar-se grande “por meio de sua
devoção”; mas aqueles que amam o absoluto ou Deus estão acima desses. O
primeiro grupo torna-se grande ao esperar o possível, o segundo, ao esperar o
eterno, “mas aquele que espera o impossível se tornou maior que todos”. Além
de força pessoal ou de autossacrifício está a grandeza de quem fica
voluntariamente impotente, dando todo o poder ao Absoluto. Como
Kierkegaard explica, “aquele que espera sempre pelo melhor envelhece,
enganado pela vida, e aquele que está sempre preparado para o pior envelhece
prematuramente; mas aquele que tem fé mantém sua eterna juventude”.
Tal pessoa pode parecer, para o restante da humanidade, seguir um
caminho que é louco ou absurdo, mas apenas porque ela não depende de
sabedoria terrena ou da razão. Se Deus move-se de maneiras misteriosas, então
alguém que é simplesmente um veículo de Deus também vai, por vezes,
parecer estar agindo além da razão.

Crer no absurdo
A resignação, observa Kierkegaard, na verdade, é um ato do ego, que faz a
pessoa parecer heroica. A fé, na realidade, é algo muito maior, pois significa
acreditar mesmo depois de termos renunciado a nós próprios. Significa não
desistir de nossas ações neste mundo.
Sobre o monte Moriá, Abraão estava disposto a fazer o sacrifício “se aquilo
foi, de fato, o exigido”. Como toda a racionalidade humana havia sido
suspensa, Abraão teve de crer no absurdo. Efetivamente teve que dizer a si
mesmo: “Não sei o significado disso, mas estou deixando esse significado nas
mãos de Deus”.
Kierkegaard descreve o salto de fé de Abraão como um “movimento” que
parece exigir a desistência de tudo – e, no entanto, finalmente proporciona
tudo a Abraão. Não apenas Isaque foi devolvido a Abraão, mas ele era um
novo Isaque, ainda mais maravilhoso do que antes, que cumpriria a profecia de
prosperidade e fertilidade ao longo de várias gerações. Por ter reconhecido
Deus como a fonte de tudo, Abraão tinha agora a segurança absoluta do ­-
conhecimento.
Apesar de um salto de fé ser tremendamente difícil, unir-nos com o que é
universal é a única e verdadeira segurança.

Cavaleiros da fé
Um “cavaleiro da fé”, diz Kierkegaard, transforma o salto de fé em um modo
de andar – para essa pessoa é simplesmente uma forma normal de ser. Ela terá
todo o prazer em apostar a vida em um único amor ou em um grande projeto.
Em contraste, será uma pessoa cuja vida consistirá simplesmente em “realizar
tarefas”.
Kierkegaard dá o exemplo de um cavaleiro da fé apaixonado por uma
mulher. Parece que sua busca é inútil, e ele admite isso. Mas então faz mais um
movimento, dizendo: “Não obstante, acredito que a conseguirei, quer dizer,
em virtude da força do absurdo, da força do fato de que para Deus tudo é
possível”. Em um nível puramente humano, ele admite que suas chances de
conseguir a mulher são zero, mas essa mesma impossibilidade o força a dar um
salto de fé, sabendo que só Deus pode fazê-lo. Ele deve crer no absurdo para o
Infinito encontrar expressão.
A questão de Abraão é que ele sofre (obviamente em grande angústia,
chegando ao ponto de amarrar Isaque e iniciar uma fogueira para a oferenda),
embora ainda acredite. Ele não é grande porque transcende o medo, a angústia
e a agonia, mas porque vive com eles. Ao fazê-lo, ele se torna um mestre da
vida. O engano que as pessoas cometem é ler a história de Abraão e pensar
que sua grandeza é inevitável, apenas vendo o resultado e ignorando o que ele
passou para chegar do outro lado. Se quisermos ser como Abraão, devemos
olhar para como ele começou, como agiu antes de se tornar a famosa figura
bíblica.

Comentários finais
Kierkegaard observa que a filosofia despreza a fé como algo inconsequente.
De fato, a filosofia não pode realmente nos dizer nada sobre a fé, porque ela
está além de palavras e conceitos. O pensamento normal não pode
compreender as ações de Abraão, porque, em tais situações, o pensamento
normal é redundante.
Como Kierkegaard enxergava, a fé é, na verdade, “a maior paixão em um
ser humano”. O universal é expresso por meio de uma pessoa, e essa pessoa
expressa algo atemporal e ilimitado. Ele acreditava que todos podemos ser
cavaleiros da fé.

Søren Kierkegaard
Nascido em Copenhague, em 1813, Kierkegaard pertencia a uma família
abastada e profundamente religiosa. Aos 17 anos, se matriculou em cursos de
teo­logia na Universidade de Copenhague, mas, para decepção de seu pai, foi
atraído para a filosofia e a literatura. Seu pai morreu quando ele ainda estava na
universidade. Depois de formado, Kierkegaard pediu a filha de um funcionário
público em casamento, no entanto o casamento nunca aconteceu e ele
permaneceu solteiro, vivendo principalmente da herança do pai.
Em 1843, publicou Either/Or [Ou/ou], seguido alguns meses depois por
Temor e tremor. Um ano mais tarde, vieram os livros Migalhas filosóficas e O conceito
de angústia, e, em 1846, Concluding Unscientific Postscript [Pós-escrito conclusivo
não científico]. Também escreveu, sob pseudônimos, O desespero humano e
Training in Christianity [Prática do cristianismo]. Discursos edificantes em diversos
espíritos (1847) apresentou o que Kierkegaard acreditava ser a verdadeira
mensagem do cristianismo. Ele se tornou um crítico severo da Igreja da
Dinamarca e de suas perspectivas mundanas.
Kierkegaard morreu em 1855. Wittgenstein descreveu-o a um amigo como
“de longe o mais profundo pensador do século passado. Kierkegaard era um
santo”.
1972

Naming and Necessity

“Poderíamos descobrir que o ouro na verdade não era


amarelo? Suponha que uma ilusão de óptica fosse
predominante devido às propriedades peculiares da
atmosfera na África do Sul e na Rússia e em algumas
outras áreas onde as minas de ouro são comuns.
Suponha que havia uma ilusão de óptica que fez com
que a substância parecesse amarela mas, na verdade,
uma vez que as propriedades peculiares da atmosfera
foram removidas, vimos que de fato é azul […] Nesse
sentido, haveria um anúncio nos jornais: ‘Descoberto
que não há ouro. O ouro não existe. O que achávamos
ser ouro não é ouro de fato’? […] Parece-me que não
haveria tal anúncio. Pelo contrário, na realidade seria
anunciado que, embora se tenha verificado que o ouro
era amarelo, foi revelado que o ouro não é amarelo,
mas sim azul. A razão, creio eu, é que usamos ‘ouro’
como termo para um certo tipo de coisa. Outros
descobriram esse tipo de coisa, e nós ouvimos falar
dele. Assim, nós, como partes de uma comunidade de
falantes, temos uma certa ligação entre nós e um certo
tipo de coisa.”

Em resumo
O significado de algo não é encontrado nas descrições que lhe são dadas,
mas em suas propriedades essenciais.

Na mesma linha
A. J. Ayer, Language, Truth and Logic (p. 40)
Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas (p. 398)
Saul Kripke

No século XX, Gottlob Frege, Bertrand Russell, Ludwig Wittgenstein e outros


da tradição da análise da linguagem viram-se como salvadores da filosofia,
voltando a seus princípios. A má utilização da linguagem permitiu
“obviamente” o florescimento de uma metafísica sem sentido, considerando
que, se bem usada, poderia nos dar uma imagem mais fiel da realidade. Os
filósofos analíticos tornaram-se a filosofia, e quaisquer alternativas eram
execradas como “não sendo filosofia”.
Uma contestação ao establishment pode, por vezes, vir de dentro de suas
próprias fileiras, e poucos estavam tão bem equipados como Saul Kripke para
salientar que havia falhas no paradigma materialista-linguístico. Ao fazê-lo,
permitiu que a metafísica fosse novamente levada a sério.
Kripke era filho de um rabino e de uma escritora de livros infantis de
Omaha, Nebraska, nos Estados Unidos. Seus pais tinham conhecido o
lendário investidor de Omaha, Warren Buffett, e enriqueceram com um
investimento na empresa dele. Criança prodígio, Kripke disse ter aprendido
hebraico antigo aos 6 anos de idade, lido as obras de Shakespeare aos 9, lido
Descartes e dominado problemas matemáticos complexos no início da
adolescência. Aos 15 anos, desenvolveu um novo teorema em lógica modal e,
aos 18, publicou-o no Journal of Symbolic Logic. Ele se graduou em matemática
em Harvard e, embora ainda fosse um estudante, estava dando cursos de lógica
em nível de pós-graduação. Com apenas 23 anos tornou-se um Harvard
Fellow, membro de um grupo de estudiosos com grande potencial acadêmico,
e assumiu cargos acadêmicos em lógica e matemática em Princeton e na
Universidade Rockefeller.
Naming and Necessity [O nomear e a necessidade] é essencialmente a
transcrição de três palestras apresentadas por Kripke na Universidade de
Princeton, em 1970, quando tinha 29 anos, em que palestrou sem anotações.
Apesar de curto, o livro não é fácil de entender.

As descrições não são iguais à identidade: a


visão essencialista
A lógica modal de Kripke foi uma reação contra a visão “descritivista” exposta
por Frege, Russell, Wittgenstein e John Searle, que declarava que todos os
nomes próprios das coisas tinham de corresponder de alguma maneira às
descrições factuais delas, quando confirmadas pelos sentidos ou demonstradas
como verdadeiras por meio de lógica impecável (por exemplo, “todos os
solteiros são não casados”). Esse ponto de vista também permitia que
afirmações como “o primeiro diretor-geral dos correios dos Estados Unidos”,
“o inventor da lente bifocal” e “o autor do Poor Richard’s Almanack” fossem
reunidas para se chegar a uma identidade; neste exemplo, Benjamin Franklin.
Um nome próprio como Benjamin Franklin é o que Kripke chama de
“designador rígido”. Considerando que as informações ou descrições sobre
uma pessoa podem ou não ser verdadeiras ou podem ser provadas como falsas
(podemos descobrir que Franklin, de fato, não inventou a lente bifocal ou não
escreveu o Almanack e, por algum erro, nunca foi oficialmente o diretor-geral
dos correios); o que permanece verdadeiro é que a pessoa que sabíamos ser
Benjamin Franklin era Franklin. Na verdade, argumenta Kripke, é possível
referir alguém sem que nenhuma das descrições desse alguém esteja correta;
existem “mundos possíveis” em que Franklin talvez não tenha sido nenhuma
das coisas mencionadas acima. E, se assim fosse, levando a teoria descritivista à
sua conclusão, Benjamin Franklin poderia nem ter existido. Ainda assim
existiu, o que sugere que há alguma qualidade em Franklin que fazia dele
Franklin, independentemente de nossas descrições e independentemente do
fato de essas descrições se revelarem verdadeiras.
A visão “essencialista” de Kripke diz que a existência de Franklin é
determinada por nada além do fato de ele ter existido. Embora pareça
totalmente óbvia essa afirmação, ela abriu uma divisão entre duas concepções
de “necessidade”. Considerando que, para os filósofos analítico-descritivistas, a
identidade dependia da descrição precisa, Kripke afirmou que a identidade é
somente a relação “entre uma coisa e ela própria”. Outro de seus exemplos é
alguém ter ouvido algo sobre o físico Richard Feynman e usado seu nome para
referi-lo, mesmo que a pessoa não saiba nada sobre Feynman. Todo o
conhecimento da pessoa sobre ele pode estar de fato errado, mas ainda é
Feynman, a pessoa real, a quem ela está referindo.
Outro exemplo consiste nos nomes “Cícero” e “Tully”. “Tully” é o antigo
nome inglês para Cícero (em virtude de seu nome completo, Marcos Túlio
Cícero), então são simplesmente nomes diferentes para a mesma pessoa. No
entanto, Kripke supõe que as descrições de “Tully” e “Cícero” podem ter
variado de tal forma que, em termos de lógica descritivista, poderiam ter sido
pessoas diferentes. O fato de não serem diferentes identidades revela a
fraqueza de querer ligar todo nome a descrições dele. Aqui Kripke ecoa a visão
de John Stuart Mill sobre nomes: Mill argumentava que nomes conotam uma
identidade em vez de denotá-la.
Quando uma criança nasce, observa Kripke, ela recebe um nome e, por
meio de uma “cadeia causal de uso” daquele nome, ele se torna nossa
abreviação para aquela pessoa. Pode haver centenas de descrições dela, mas
elas são essencialmente irrelevantes para o seu nome, que nos diz que a pessoa
existe ou existiu no passado. Não temos de ficar confirmando sua identidade
para chegar a descrições precisas dela. Em seu zelo para tornar a linguagem
mais precisa, disse Kripke, os filósofos analítico-linguísticos simplesmente
foram longe demais.
Para resumir sua filosofia da identidade, Kripke cita o bispo Joseph Butler:
Tudo é o que é e não outra coisa.

Uma pessoa é quem ela é – tem propriedades que são essenciais a ela –, e
nenhuma porção de precisão de linguagem vai adicionar, remover ou provar
essa identidade.

Nomes e seus significados


Kripke observa que, mesmo se tivermos que mudar o nome de alguma coisa,
ainda saberemos a que o nome antigo e o nome novo referem. Os nomes não
se descrevem, são apenas o meio de comunicar o fato de alguma coisa através
do tempo. O exemplo de Kripke é o do ouro. Se descobrirmos que o ouro só
apresenta a cor amarela devido à natureza da atmosfera em partes do mundo
onde é extraído e que, tirado desse ambiente, o “ouro” na verdade é azul, isso
significa que o ouro não existe mais? Não, simplesmente diríamos que
cometemos um erro quanto à cor do ouro; ele continua sendo ouro.
Da mesma forma, se definirmos uma determinada espécie, por exemplo,
um tigre, como tendo certas características e propriedades e descobrimos que
o animal ao qual estamos referindo na realidade não tem essas características
ou propriedades, significa que não vamos mais chamá-lo de tigre? Não,
continuamos chamando-o do que sempre o chamávamos, porque as descrições
reais e as propriedades importam menos do que nosso desejo de preservar
uma cadeia causal de significado. O que importa são as características ou
propriedades que formam uma única “espécie natural” do animal. Se
descobrirmos um novo tipo de animal que tenha as propriedades que no
passado associamos ao tipo antigo de animal, não transferiremos o nome
antigo para o novo, mas inventaremos um novo nome. O que importa é o que
nós nomeamos.
Voltando ao exemplo do ouro, Kripke pergunta o que torna o ouro, em um
sentido científico, ouro. Que qualidade essencial ele tem? Podemos descrever o
ouro de muitas formas: um metal de cor amarela brilhante que não enferruja, e
assim por diante. Mas tais descrições podem facilmente levar a erros, tais como
as pessoas pensarem que a pirita (“ouro de tolo”) é a coisa real. É preciso
haver algo além desses termos – para além da própria linguagem – para nos
dizer o que é o ouro. Essa “essência de ouro”, diz Kripke, é que ele é o
elemento de número atômico 79. Dessa forma, Kripke é capaz de mostrar que
sua teoria não é anticientífica; de fato, analisar as qualidades essenciais das
coisas é o que faz a ciência. Podemos descrever algo para o além, mas apenas a
presença de uma microestrutura específica nos dirá o que aquela coisa
essencialmente, de verdade, é.

Comentários finais
Para a maior parte do século XX, a filosofia foi dominada pela ideia de que
apenas analisando a linguagem se poderia descobrir o que era verdadeiro, o
que não era verdadeiro, e sobre o que não se podia sequer falar com algum
sentido. A bomba de Kripke foi demonstrar que, se o descritivismo era falho e
a linguagem não poderia mesmo chegar à essência da identidade de uma coisa,
por que ela deveria ser considerada o núcleo da filosofia? Talvez a visão
materialista do mundo, que incorporou a ideia de que somente o que poderia
ser fisicamente descrito era relevante ou importante, fosse apenas um viés.
Estas são as últimas linhas de Naming and Necessity:

O materialismo, penso eu, deve sustentar que uma descrição física do


mundo é uma descrição completa dele, que quaisquer fatos mentais
são “ontologicamente dependentes” de fatos físicos no sentido direto
de seguir a partir deles por necessidade. Nenhum teórico da identidade
me parece ter apresentado um argumento convincente contra a visão
intuitiva de que este não é o caso.

Declarações como esta permitem a existência (ao menos na teoria) de


alguma ordem de realidade, mental ou metafísica, que não pode ser definida
por nossas descrições dela. Kripke, um judeu religioso que guarda o Sabá, algo
talvez pouco habitual para um matemático e um filósofo da lógica, disse a um
entrevistador:

Eu não tenho os preconceitos que muitos têm hoje, não acredito em


uma visão naturalista do mundo. Não baseio meu pensamento em
preconceitos ou em uma visão de mundo e não acredito no
materialismo.

O paradigma naturalista-materialista (a base da ciência e do mundo


moderno) como um mero preconceito ou ideologia? Essa é uma afirmação
surpreendente de alguém tão incorporado ao establishment racional. Embora
Kripke tenha dito que a filosofia em geral tem pouca aplicação à vida normal,
certamente, se ele estiver correto, significaria o fim da visão de mundo
materialista “moderna”. Seria o equivalente filosófico de uma tecnologia
disruptiva que mudasse tudo.

Saul Kripke
Kripke nasceu em Nova York, mas, quando ainda era muito jovem, sua família
se mudou para Omaha, Nebraska. Recebeu diploma de bacharel em
matemática em Harvard, em 1962, e, em 1973, foi a pessoa mais jovem a
ministrar as John Locke Lectures, na Universidade de Oxford. Ocupou
posições de docência em Harvard, Princeton e na Universidade Rockefeller.
Naming and Necessity foi publicado pela primeira vez em uma coletânea
editada, Semantics of Natural Language [Semântica da língua natural] (1972).
Kripke não escreve livros, mas edita palestras que dá para que possam ser
publicadas. Sua interpretação controversa de Wittgenstein está expressa em
Wittgenstein on Rules and Private Language [Wittgenstein sobre as regras e a
linguagem privada] (1982).
Atualmente, Kripke faz parte do corpo docente do The Graduate Center da
Universidade da Cidade de Nova York.
1962

A estrutura das revoluções


científicas

“Todas as teorias historicamente significativas


concordaram com os fatos, mas apenas mais ou
menos.”

“[O] novo paradigma, ou uma indicação suficiente que


permita articulação posterior, emerge de repente, às
vezes no meio da noite, na mente de um homem
profundamente imerso em crise.”

“A transferência de fidelidade de um paradigma a outro


é uma experiência de conversão que não pode ser
forçada.”

“A assimilação de uma nova espécie de fato exige mais


do que um ajuste adicional da teoria, e, até que o
ajuste seja concluído – até que o cientista tenha
aprendido a ver a natureza de uma maneira diferente
–, o novo fato não será, de forma alguma,
completamente científico.”

Em resumo
Em vez de um acúmulo linear de fatos, o conhecimento pode ser visto
como a substituição de uma visão de mundo por outra.

Na mesma linha
Michel Foucault, As palavras e as coisas (p. 138)
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
Karl Popper, A lógica da pesquisa científica (p. 316)
Thomas Kuhn

Thomas Kuhn era um aluno de pós-graduação em física teórica na


Universidade Harvard, próximo de terminar sua tese de doutorado, quando foi
convidado a lecionar em um curso universitário de ciência experimental para
não cientistas. Essa foi sua primeira experiência verdadeira com história da
ciência.
Para sua surpresa, o curso alterou alguns de seus pressupostos básicos
sobre o tema, e o resultado foi uma grande mudança em sua carreira, da física
para a história e filosofia da ciência. Aos 30 e poucos anos escreveu um livro
sobre Copérnico e, cinco anos mais tarde, produziu A estrutura das revoluções
científicas. Uma monografia de apenas 170 páginas, o livro vendeu mais de um
milhão de cópias, foi traduzido para 24 idiomas e se tornou uma das obras
mais citadas de todos os tempos, tanto em ciências naturais quanto em sociais.
Seu sucesso foi bastante incomum para um trabalho acadêmico e deixou o
próprio Kuhn surpreso.
O trabalho é bem curto porque foi originalmente composto com o objetivo
de ser um longo artigo na Encyclopedia of Unified Science. Uma vez publicado, o
artigo se expandiu em um livro independente. Essa limitação acabou sendo
benéfica, pois Kuhn foi impedido de entrar em longos e difíceis detalhes
científicos, tornando o livro legível para os leigos.
Por qual razão A estrutura das revoluções científicas teve um grande impacto? Se
sua mensagem se restringisse à própria ciência, a obra ainda seria muito
importante, mas é a ideia genérica de paradigmas, em que uma visão de mundo
substitui a outra, que foi considerada valiosa em muitas áreas do
conhecimento. Com efeito, em vários pontos do livro, Kuhn aborda o fato de
que paradigmas não existem só na ciência, mas que são a maneira natural de os
humanos compreenderem o mundo. As raízes do livro subjazem a uma
experiência que Kuhn teve ao ler Aristóteles, quando percebeu que as leis de
movimento de Aristóteles não eram simplesmente leis de “Newton malfeitas”,
mas sim uma maneira completamente diferente de ver o mundo.

A ciência é feita por cientistas


Kuhn começa dizendo que o que os relatos tradicionais dos livros didáticos
sobre o desenvolvimento da ciência falam sobre a realidade equivale ao que um
folheto turístico apresenta sobre a cultura de uma nação. Os livros apresentam
um acúmulo incremental de fatos e descrevem teorias corroboradas por
experiências bem-sucedidas que levam a uma quantidade cada vez maior de
conhecimento. Mas será que a ciência realmente avança desse jeito organizado?
Kuhn procurou uma visão menos arrogante e mais aberta que compreen­-
desse o avanço científico não como indivíduos isolados fazendo grandes
descobertas, mas sim em termos da comunidade científica e do ambiente
intelectual do momento permitindo (ou proibindo) a reinterpretação de dados
existentes. Seu argumento central é a noção de que os cientistas não avançam
simplesmente descrevendo como a natureza funciona, mas operam dentro de
paradigmas de compreensão que, quando se mostram deficientes para explicar
fenômenos, são substituídos por novos. Ele define paradigmas como
“realizações científicas universalmente reconhecidas que, por um tempo,
proporcionam problemas e soluções modelares para uma comunidade de
praticantes de uma ciência”.
Por que essa ideia de progresso científico é diferente? A visão convencional
de ciência é “aqui estão os fatos” sobre o mundo e “aqui estamos” (os
cientistas), desvendando-os. No entanto, os fatos não existem sem um
observador, o que significa que os interesses do observador são importantes
para o que constitui a ciência atual. Além disso, o progresso da ciência trata
apenas parcialmente da descoberta do novo; também diz respeito a alterações
na forma como vemos o que já acreditávamos saber. Kuhn observa sobre os
raios X: “Fomos pegos não só de surpresa, mas com choque”, porque eles não
se encaixam em nenhuma teoria existente. Quando um paradigma é
substituído por outro, o próprio mundo parece mudar: “O que eram patos no
mundo do cientista antes da revolução são coelhos depois”.
Um dos insights surpreendentes de Kuhn é que os paradigmas podem ter
integridade, fornecendo a maior parte das respostas para a maioria das
questões levantadas para eles em sua época e, no entanto, também podem estar
fundamentalmente errados. Durante muito tempo, a visão de que a Terra era o
centro do universo parecia uma boa explicação da cosmologia, satisfazendo a
maioria das pessoas, até que várias anomalias dentro do modelo ficaram óbvias
demais para se ignorar e um paradigma do Sol como centro do universo
tornou-se aceito. No entanto, a afinidade do ser humano pela certeza significa
que sempre se resiste a tais revoluções. A descoberta real começa com o
reconhecimento de anomalias, ou com a natureza agindo de uma forma como
não deve agir. Os cientistas não sabem o que fazer com esses fatos, que são,
portanto, não “científicos”, até que se encontre refúgio em uma teoria
existente.
Um paradigma começa a desmoronar quando há uma maior insegurança
quanto à sua capacidade de resolver os quebra-cabeças que estabeleceu para si
próprio. Os praticantes da ciência recebem o tempo todo respostas “erradas”.
O paradigma entra em modo de crise, e é nesse momento que os avanços para
um novo paradigma são possíveis, tais como a astronomia de Copérnico ou a
teoria especial da relatividade de Einstein.
Kuhn observa que, nas fases iniciais de uma nova disciplina, geralmente não
há paradigma estabelecido, apenas visões concorrentes tentando explicar
algum aspecto da natureza. Todas essas opiniões podem estar seguindo o
método científico estabelecido, mas apenas uma se transforma na maniera
aceita de ver. Não é porque todos entram em um acordo sobre os fatos, mas
porque é mais fácil trabalhar com um único paradigma; a psicologia humana
entra muito mais em jogo do que gostaríamos de admitir. A ciência, observa
Kuhn, não avança fria e clinicamente por vontade própria; ela é feita por
cientistas.

Ciência normal e revolucionária


Kuhn faz uma distinção entre a ciência “normal” e o tipo de pensamento
científico ou pesquisa que pode provocar revoluções na forma como vemos o
mundo.
A ciência normal tem como base a suposição de que “a comunidade
científica sabe como é o mundo”, e, além disso, “muito do sucesso do
empreendimento resulta da vontade da comunidade de defender aquela
hipótese, se necessário a um custo considerável”. A ciência normal tende a
suprimir fatos anômalos, porque eles são um obstáculo em um caminho
teórico previamente comprometido. Kuhn define essas novidades ou
anomalias dentro de um paradigma existente como “violação de expectativas”.
A reação de uma anomalia quase sempre é de não renunciar ao paradigma
existente, mas sim manter-se trabalhando dentro dele para ver o que saiu
errado. Apenas uma ínfima minoria de cientistas consegue verdadeiramente
“pensar diferente” e olhar para a natureza de uma nova forma.
A base de ingresso em qualquer comunidade científica é o estudo de seu
paradigma, e a grande maioria dos cientistas vai passar a vida trabalhando em
coisas dentro desse paradigma: pequenos quebra-cabeças que devem ser
resolvidos ou pesquisa incremental. Como alternativa, eles trabalham para
produzir resultados que podem aproximar mais a natureza e a
teoria/paradigma, como muitos cientistas fizeram na esteira do Principia de
Newton. Ciência normal é

uma tentativa de forçar a natureza à caixa pré-formada e relativamente


inflexível que o paradigma oferece. Nenhuma parte do objetivo da
ciência normal é suscitar novos conjuntos de fenômenos; com efeito,
aqueles que não se encaixam geralmente não são vistos.

O problema é que, quando aparece uma novidade inesperada, os cientistas


ou a rejeitam de pronto como “erro” ou a derrubam como falha de método
para provar o que estavam esperando. Assim, o objetivo da ciência normal não
é descobrir algo de novo, mas deixar o paradigma existente mais preciso, fazer
com que a natureza esteja em perfeita harmonia com a teoria.
Revoluções científicas, por outro lado, são os “complementos que
estilhaçam a tradição da atividade da ciência normal ligada à tradição”. Novas
teorias não são simplesmente fatos novos, mas mudanças completas na forma
como vemos esses fatos, o que, por sua vez, leva à reconstrução de teorias, que
é um “processo intrinsecamente revolucionário que raramente é concluído por
um único homem e da noite para o dia”.

Dois mundos diferentes: a


incomensurabilidade de paradigmas
Como a mudança de paradigma não é um processo racional, mas sim um
abismo entre o que partes diferentes veem, os paradigmas não competem. Eles
podem não concordar com a metodologia para resolver os problemas ou
mesmo com a linguagem necessária para descrevê-los; os paradigmas são
“incomensuráveis”, diz Kuhn, porque não têm nenhum padrão comum pelo
qual julgar uns aos outros.
Nem é o caso de cada paradigma estar mais próximo ou mais distante de
uma verdade objetiva sobre o universo. A essência dos paradigmas é que eles
tratam das pessoas que os fazem e os propõem, e cada um efetivamente habita
um mundo diferente. Kuhn cita Max Planck:

[Uma] nova verdade científica não triunfa ao convencer seus


adversários e fazê-los ver a luz, mas sim porque seus oponentes um dia
morrem, e uma nova geração mais familiarizada com ela surge.

Na verdade, foi só mais de um século depois da morte de Copérnico que


suas visões realmente se difundiram, e as ideias de Newton só foram aceitas de
forma geral mais de cinquenta anos depois de ele ter publicado Principia. Kuhn
conclui que “a transferência de fidelidade de um paradigma a outro é uma
experiência de conversão que não pode ser forçada”. No entanto,
comunidades científicas acabam se difundindo e começam o processo de
“provar” que o que sugere o novo paradigma deve estar correto.

Comentários finais
A estrutura das revoluções científicas foi chocante na sua sugestão de que a ciência
não conduz a humanidade em um caminho organizado e linear na direção de
uma verdade objetiva sobre a realidade do mundo por meio do acúmulo de
observações empíricas (o que pode ser chamado de visão do Iluminismo), mas
é, na verdade, uma criação humana. Se a ciência é a tentativa de fazer nossas
teorias se encaixarem na natureza, então é a natureza humana que temos de
enfrentar primeiro.
Gostamos de tramar avanços ou mudanças na compreensão científica em
uma grande história de progresso, mas a implicação de Kuhn é que a ciência
não tem nenhum objetivo, simplesmente vai adaptando suas explicações da
realidade da melhor forma que pode. Na segunda edição do livro, Kuhn
deixou claro que não era um relativista e que acreditava no avanço científico.
No entanto, também afirmou que a ciência era como a teoria da evolução:
evolui de algo mais simples, mas não se pode dizer que tem um fim último ou
uma direção.
Uma interpretação comum de Kuhn é de que os paradigmas são “ruins” e
dão às pessoas uma visão tacanha, quando deveriam sempre estar
questionando o paradigma que subjaz sua disciplina. Na verdade, Kuhn
observou que a aquisição de um paradigma é um sinal de que um campo
amadureceu para se tornar algo real, porque pelo menos tem um conjunto de
regras com que os praticantes podem concordar. Paradigmas não são nem
positivos nem negativos, simplesmente nos dão uma lente para enxergar o
mundo. O verdadeiro valor está em ver os paradigmas objetivamente e admitir
a possibilidade de que as nossas verdades podem ser meras suposições.

Thomas S. Kuhn
Kuhn nasceu em 1922. Seu pai era um engenheiro hidráulico que virou
consultor de investimento, e sua mãe era editora. Ele cresceu perto de Nova
York e frequentou várias escolas particulares antes de ser aceito em Harvard.
Depois de se formar, Kuhn juntou-se aos esforços de guerra, trabalhando
em radares nos Estados Unidos e na Europa, antes de retornar para Harvard a
fim de fazer sua pós-graduação em física. Ele também frequentou cursos de
filosofia e considerou mudar seus estudos para essa matéria, mas sentiu que era
muito tarde para começar nesse campo. Aos 30 anos, começou a lecionar
história da ciência, e sua curva de aprendizagem íngreme em um campo novo
fez com que percebesse que tinha pouco tempo para produzir um trabalho
próprio. Como resultado, passou dez anos escrevendo A estrutura das revoluções
científicas. Kuhn não conseguiu ser empossado em Harvard, então assumiu um
cargo de professor assistente na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Em
1964, Princeton ofereceu a ele um cargo de docente em história e filosofia da
ciência, e ele ficou lá por quinze anos, até se mudar para o Instituto de
Tecnologia de Massachusetts (MIT), onde passou a fase final de sua carreira
(1979-91).
O primeiro livro de Kuhn foi A revolução copernicana: a astronomia planetária no
desenvolvimento do pensamento ocidental (1957). Ele também escreveu Sources for the
History of Quantum Physics [Fontes para a história da física quântica] (1967). Nos
anos após a publicação de A estrutura das revoluções científicas, Kuhn revisitou e
esclareceu alguns de seus conceitos (confira O caminho desde a estrutura, que
inclui uma entrevista autobiográfica com Kuhn). Ele morreu em 1996.
1710

Ensaios de Teodiceia

“[Como] Deus fez o universo, não era possível fazer


melhor.”

“Deus, tendo escolhido o mais perfeito de todos os


mundos possíveis, foi instado por sua sabedoria a
permitir o mal que estava preso a ele, o que não
impediu este mundo de ser, considerando todas as
coisas, o melhor que poderia ser escolhido.”

“É verdade que se pode imaginar mundos possíveis,


sem pecado e sem infelicidade, e seria possível fazer
alguns romances utópicos ou sevarambianos: mas
esses mesmos mundos seriam de novo muito inferiores
ao nosso em bondade. Não posso mostrar isso em
detalhes. Pois como posso eu apresentar infinidades a
ti e compará-los? Mas deves me julgar ab effectu [a
partir do efeito], uma vez que Deus escolheu este
mundo como ele é. Sabemos, além disso, que um mal,
muitas vezes, traz um bem que não se teria
conseguido sem aquele mal. De fato, muitas vezes dois
males têm feito um grande bem.”

Em resumo
O mundo que existe deve ser o melhor de todos os mundos possíveis.

Na mesma linha
Blaise Pascal, Pensamentos (p. 300)
Platão, A República (p. 308)
Baruch Spinoza, Ética (p. 380)
Gottfried Leibniz

Gottfried Leibniz era um homem cosmopolita bem relacionado que


normalmente se encontrava perambulando pela Europa em missões políticas
para seus empregadores. Entre os amigos que fez estava uma jovem rainha,
Sofia Carlota, da casa de Hanôver. Em visitas à corte real em Berlim, passava
horas conversando com Sofia, fazendo observações sobre as controvérsias
religiosas, filosóficas e políticas do dia.
Para o proveito da rainha, Leibniz respondeu longamente às ideias do
pastor calvinista francês Pierre Bayle, autor do famoso Dictionnaire Historique et
Critique [Dicionário histórico e crítico]. Bayle alegava que o cristianismo era
uma questão de fé, e não de algo que poderia ser penetrado pela razão, e que a
questão do sofrimento humano só poderia permanecer um mistério.
Quando Sofia morreu, com apenas 36 anos, como legado para ela Leibniz
reuniu as anotações que ela o havia encorajado a fazer e publicou os Ensaios de
Teodiceia. Dividido em três ensaios sobre a “bondade de Deus”, a “liberdade do
homem” e a “origem do mal”, o trabalho buscava criar uma elegante defesa de
um Ser Supremo justo e benevolente, enquanto conciliava isso com o fato de
existir o mal no mundo. Num momento em que a ciência estava em ascensão e
os antigos pressupostos religiosos estavam sendo desafiados, o livro era uma
réplica à crença de Bayle na incompatibilidade entre fé e razão.
Além de seu papel como um burocrata sênior e conselheiro político,
Leibniz foi um dos grandes polímatas, fazendo revelantes contribuições à
matemática (descobriu o cálculo infinitesimal separadamente de Isaac Newton
e construiu uma das primeiras calculadoras mecânicas), bem como a
jurisprudência, física, óptica e filosofia. Apesar de estar na vanguarda do
pensamento laico no seu tempo, Leibniz não estava pronto para jogar fora
séculos de pensamento sobre a natureza de Deus e considerava ser sua missão
refutar as ideias de Descartes, Locke e, sobretudo, de Spinoza, que retratava
um universo impessoal gerido por leis naturais, sem espaço para o julgamento
ou as intenções de Deus e com pouca atenção à escolha humana e à liberdade.
O mundo do século XVII ainda era muito baseado em Deus, mesmo que a
ciência e a modernidade estivessem vindo à tona. Mas Leibniz não queria ver a
ciência e a metafísica como coisas separadas, e suas provas para o papel de um
Ser Supremo ainda são bastante convincentes.
“Teodiceia” foi uma palavra que Leibniz cunhou combinando o grego theos
(deus) e dike (justiça). Literalmente “justificando deus”, o título expressa a
intenção do livro: explicar como Deus pode permitir o mal se ele é todo-
poderoso. Como essa é uma pergunta que as pessoas hoje em dia fazem
continuamente, o livro de Leibniz permanece pertinente e parece projetado
para qualquer pessoa que, sem pensar, aceita a visão de que, “como há tanta
maldade ou sofrimento no mundo, Deus não pode existir”.
A ideia de Leibniz do “melhor dos mundos possíveis” foi satirizada por
Voltaire em sua famosa peça Cândido, ou o otimismo (1759), em que o
personagem perpetuamente otimista do dr. Pangloss era em parte uma paródia
de Leibniz. A compreensão de Voltaire da filosofia de Leibniz é um pouco
superficial, mas o próprio Leibniz fez questão de observar que a sua noção de
benevolência divina e o melhor de todos os mundos possíveis fizeram dele um
homem genuinamente feliz, o que não surpreende, pois a ideia oferece uma
noção de segurança e ordem em um universo aparentemente aleatório e sem
sentido.

Como vivemos no melhor de todos os mundos


possíveis
O conceito de Leibniz de que vivemos no melhor dos mundos possíveis
implica a aceitação da perfeição de Deus. Posto de forma simples, se Deus é
perfeito, então qualquer mundo que ele fizer deve ser perfeito, mesmo que, no
nível humano, possa parecer a própria imagem da imperfeição. No entanto,
Deus não poderia nos fazer perfeitos, já que assim estaria fazendo outros
deuses. Em vez disso, existem diferentes graus na perfeição das coisas; os seres
humanos não são um exemplo de divindade corrompida, mas da perfeição
levemente limitada. Leibniz exalta a quase perfeição do corpo humano,
escrevendo: “Não fico espantado que os homens às vezes fiquem doentes, mas
que […] fiquem doentes tão pouco e não sempre”.
O universo é organizado de acordo com a “razão suficiente”, que inclui
intenções divinas. O mundo que existe deve fazê-lo por razões muito
particulares, mesmo que nós – com nosso conhecimento limitado – não
consigamos compreendê-las. De fato, diz Leibniz (e isso contradiz a caricatura
dele como um tolo otimista), o melhor mundo possível não é, muitas vezes, o
que proporciona a felicidade humana imediata. Os seres humanos são movidos
por autointeresse e não estão cientes do bom resultado de tudo que acontece.
Vemos as coisas em termos de causa e efeito, mas nossa avaliação do
relacionamento entre coisas é naturalmente limitada.
Leibniz sugere que o universo é composto de trilhões de mônadas,
entidades ou formas de existência autossuficientes (inclusive as almas
humanas). Elas não se influenciam mutuamente, mas Deus ordena que tudo
no universo funcione harmoniosamente em conjunto. Esse é o princípio da
“harmonia preestabelecida”. Apenas Deus tem uma visão geral de como tudo
está unido e da sabedoria por trás de eventos. Nosso papel é o de confiar nessa
infinita sabedoria e na benevolência da intenção.
O mundo que Deus criou não é uma utopia insana onde nunca acontece
nada de negativo, mas um mundo real, rico, variado e cheio de significado. É
um lugar em que coisas más podem ser necessárias para o bem finalmente se
manifestar, ou no qual “uma imperfeição em parte pode ser necessária para
uma maior perfeição no todo”. Leibniz cita Santo Agostinho e São Tomás de
Aquino, que observaram que Deus permite o mal a fim de que um bem possa
advir dele; de fato, que às vezes um mal é necessário para o mundo seguir na
direção em que precisa ir. Um mundo com o mal pode realmente ser o melhor
mundo possível, mesmo que não seja sempre bom para cada pessoa o tempo
todo. “Não é que deveríamos ter prazer no pecado, Deus nos livre!” Leibniz é
cuidadoso ao dizê-lo, mas o pecado permite a “graça abundante” e eleva as
pessoas, quando poderiam ter ficado pouco desenvolvidas. Apesar da
aparência negativa no curto prazo, tudo no fim das contas trabalha para o
melhor.

Como o livre-arbítrio pode existir


Leibniz mergulha nos detalhes para demonstrar como o livre-arbítrio é ­-
possível dentro de um universo ordenado por Deus. Diz ele que não há
“necessidade absoluta” nas ações humanas: “Sou da opinião de que a vontade
é sempre mais inclinada ao curso que adota, mas nunca se prende à
necessidade de adotá-lo”. Deus deu ao homem a liberdade de agir, portanto, se
Deus descesse e consertasse os erros antes que acontecessem ou logo depois,
eliminaria essa liberdade, o que levaria à diminuição de um mundo. Essa
liberdade significa que, embora Deus crie tudo o que vemos, ao mesmo tempo
ele não é o autor do “pecado”. De fato, Deus permite que muitos mundos
possíveis surjam com base na liberdade da humanidade de pensar e agir.

Embora sua vontade seja sempre indefectível e tenda sempre ao


melhor, o mal ou o bem menor que ele rejeita ainda será possível em si
mesmo. Do contrário […] a eventualidade das coisas seria destruída, e
não haveria escolha.

Leibniz qualifica sua discussão sobre livre-arbítrio ao observar que, embora


os seres humanos tenham opção de criar eles mesmos um dos diversos
mundos possíveis, suas ações passadas farão com que apenas um surja. No
entanto, conhecendo a humanidade e as ações do passado como ele, o Ser
Supremo sabe qual mundo possivelmente se manifestará.
A linha em que Leibniz caminha entre o livre-arbítrio e a necessidade é boa,
ilustrada por seu exemplo do “fatum mahometanum”. Os povos islâmicos de
sua época não tentavam evitar lugares devastados pela peste, sob a alegação de
que o destino havia decretado se eles pegariam a peste ou não, assim suas
ações não fariam diferença. No entanto, essa “razão preguiçosa”, como era
chamada pelos antigos filósofos, não levava em conta o papel que as causas
desempenham na vida ou a noção de que, ao alterar o presente, novos mundos
possíveis se abrem. Leibniz diz que, mesmo se o futuro for determinado de
alguma forma por um Ser Supremo, isso não deve nos impedir de viver de
acordo com boas intenções e bom comportamento e criar causas novas e boas.
Então, podemos deixar o restante a cargo de Deus. Também deveríamos supor
que Deus deseja para nós aquilo que desejamos para nós mesmos, a menos
que ele tenha algum bem maior em mente para nós. De qualquer forma, não se
duvida de que haverá um resultado benéfico.

Comentários finais
Ironicamente para alguém agora associado a oferecer uma razão para crer em
Deus, Leibniz foi acusado de ser ateu. Não era um grande frequentador de
igrejas e se opunha a algumas crenças de seu tempo, como, por exemplo, que
crianças não batizadas seriam enviadas ao inferno. Uma parte importante de
seu trabalho, tanto em seu papel político como de filósofo, era a de conciliar as
Igrejas Católica e Protestante, e Ensaios de Teodiceia era um trabalho pancristão
escrito para esse fim (embora Leibniz fosse protestante, o livro faz copiosa
referência aos filósofos “papistas” São Tomás de Aquino e Santo Agostinho).
Uma das grandes histórias da filosofia moderna é a viagem de Leibniz para
a Holanda para visitar Baruch Spinoza, bem comentada em The Courtier and the
Heretic [O cortesão e o herege], de Matthew Stewart. Os dois não poderiam ser
mais diferentes: Leibniz era um jovem, suave relações-públicas e guru
científico promissor, e Spinoza era um brilhante filósofo recluso, desprezado
por muitos como o “judeu ateu”. Stewart retrata o encontro como o momento
decisivo na vida e na filosofia de Leibniz, porque ele se sentiu compelido a
acomodar o que eram visões aparentemente opostas às suas. Stewart sugere:
“Mesmo hoje, os dois homens que se reuniram em Haia defendiam uma
escolha que todos nós precisamos fazer e implicitamente já fizemos”.
Qual é a escolha? A crença em um universo que funciona de acordo com
rigorosas leis naturais que não exigem um Ser Supremo; ou uma em que Deus
é o controlador de tudo (inclusive do avanço da humanidade na direção do
conhecimento científico). Qualquer um que opte pela primeira com base no
pressuposto de que, “se Deus existisse, o mal não existiria”, deveria, no
mínimo, suspender a opinião até ler os argumentos de Leibniz.

Gottfried Wilhelm Leibniz


Leibniz nasceu em 1646, em Leipzig. Seu pai era professor de filosofia, mas
morreu quando o filho tinha 6 anos de idade. Estudante brilhante, Leibniz
estudou latim (no qual tinha notável fluência), grego, filosofia e matemática na
Universidade de Leipzig, antes de se especializar em direito. Na sequência,
recebeu o título de doutor pela Universidade de Altdorf.
Seu primeiro trabalho foi como consultor e bibliotecário de um político, o
barão von Boineburg. Com apenas 21 anos, escreveu um célebre livro sobre a
reforma da legislação alemã e, aos 24 anos, foi nomeado conselheiro particular
de justiça do príncipe-eleitor de Mainz, um cargo burocrático sênior. Com 30 e
poucos anos, Leibniz foi para Paris como enviado especial. Lá, estudou
matemática, travou amizade com dois grandes filósofos da França, Nicolas
Malebranche e Antoine Arnauld, e tomou familiaridade com o pensamento de
Descartes.
Em novembro de 1676, viajou para Haia para encontrar Spinoza,
permanecendo por três dias em discussão. Embora não tenha deixado detalhes
dos encontros, uma única página com uma “prova de Deus” sobrevive, escrita
provavelmente na presença de Spinoza. No mesmo ano, Leibniz assumiu um
posto como bibliotecário, historiador e consultor na administração do duque
de Hanôver. A posição, que manteve até sua morte, lhe deu a oportunidade de
viajar com o pretexto de investigar a história nunca acabada da família
Brunswick, que governava Hanôver, e fazer contatos científicos em Paris,
Londres, Itália, Rússia e dentro da própria Alemanha.
Outros escritos incluem The Philosopher’s Confession [A confissão do filósofo]
(1672-73) e Discurso de metafísica (1686). Seu livro Novos ensaios sobre o entendimento
humano foi escrito em 1704, mas só publicado em 1765. A monadologia foi
publicado em 1714, ano de sua morte. Leibniz nunca se casou.
1689

Ensaio sobre o entendimento


humano

“Pelo que foi dito, penso não haver dúvida de que não
existem princípios práticos com os quais todos os
homens concordem; e, portanto, nenhum é inato.”

“Se, então, lhe for perguntado QUANDO um homem


COMEÇA a ter quaisquer ideias, penso que a
verdadeira resposta é: QUANDO ELE TEM QUALQUER
SENSAÇÃO. Pois, uma vez que parece não haver
nenhuma ideia na mente antes que os sentidos
tenham transmitido, concebo que as ideias no
entendimento são concomitantes à SENSAÇÃO.”

“Se por esta investigação acerca da natureza do


entendimento eu puder descobrir seus poderes, qual
seu alcance, a quais coisas são em algum nível
proporcionais e onde nos são falhas, suponho que
pode ser útil para persuadir a mente ocupada do
homem a ser mais cautelosa ao interferir em coisas
que ultrapassam a sua compreensão.”

Em resumo
Todas as nossas ideias, simples ou complexas, são originárias da experiência
sensorial. Somos tábula rasa; a moralidade e o caráter não são inatos.

Na mesma linha
A. J. Ayer, Language, Truth and Logic (p. 40)
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
William James, Pragmatismo (p. 190)
Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social (p. 330)
Nassim Nicholas Taleb, A lógica do cisne negro (p. 390)
John Locke

John Locke estudou medicina em Oxford e iniciou a vida adulta como médico
particular de um político do Partido Whig: o primeiro conde de Shaftesbury.
Dizem que ele salvou a vida de seu chefe com uma operação no fígado, mas
seu interesse em medicina não conseguia competir com sua paixão pela
política e pela filosofia.
Durante a maior parte da vida, Locke ficou mais conhecido como
conselheiro político e força intelectual do Partido Whig. Suas opiniões liberais
foram expressas em Dois tratados sobre o governo (publicado anonimamente um
ano após o Ensaio sobre o entendimento humano), que faz uma defesa brilhante das
liberdades individuais e dos direitos naturais do povo contra o “direito divino
dos reis” e o absolutismo de Thomas Hobbes. Os tratados tornaram-se uma
grande influência para os revolucionários franceses e os fundadores da
república norte-americana, e o conceito lockiano de busca da felicidade
encontrou espaço na constituição norte-americana.
Durante sua carreira política, Locke estava trabalhando em seu Ensaio sobre o
entendimento humano, uma obra puramente filosófica. Francis Bacon foi o
desenvolvedor do método científico e, como se sabe, morreu de pneumonia
em 1626 enquanto fazia experimentos com congelamento de carnes. Locke,
nascido seis anos mais tarde, se tornaria seu herdeiro intelectual, ampliando a
visão empírica britânica para uma filosofia completa. Ensaio sobre o entendimento
humano criou o espaço pelo qual Hume pôde andar, e este último, por sua vez,
abriu o caminho para os filósofos analíticos do século XX, como Russell e
Wittgenstein. Em suas primeiras páginas, Locke modestamente observa que,

em uma época que produz mestres como o grande Huygens


[matemático e astrônomo holandês] e o incomparável sr. Newton
[Isaac, que ele conhecia] […] é ambição suficiente ser empregado
como um trabalhador inferior que limpa um pouco o terreno e retira
um pouco do entulho que fica no caminho do conhecimento.

Esse “trabalhador inferior” era uma espécie bem moderna de filósofo. Ele
declarou a construção de um grande sistema para descobrir o que um único
indivíduo poderia realmente saber e, como os filósofos de hoje, estava muito
preocupado com a precisão na linguagem em si:

Formas vagas e insignificantes de fala e abuso de linguagem têm desde


muito se passado por mistérios da ciência; e palavras difíceis e mal
aplicadas, com pouco ou nenhum significado, têm, pela prescrição, tal
direito que são confundidas com o aprender profundo e o ápice da
especula­ção que não será fácil convencer nem àqueles que as falam,
nem tampouco àqueles que as ouvem de que não passam de refúgios
de ignorância e impedimentos do verdadeiro conhecimento.

Ainda assim, os filósofos contemporâneos, que reivindicam Locke como


um dos seus, muitas vezes ignoram que ele ainda carrega muitas visões de seu
tempo. O Ensaio, por exemplo, tem uma boa quantidade do que hoje
chamaríamos de teologia, e a linha sobre a qual ele caminha entre ceticismo e a
visão do mundo como produto de um criador traz algumas explicações
interessantes, como veremos. Estudos recentes têm se concentrado em suas
ideias sobre o eu, as quais nós consideramos também.

Se todos percebemos de forma diferente, onde


está a verdade?
A visão geral desde Aristóteles era de que há certos princípios ou verdades
universais que são considerados verdades por “comum acordo” e, portanto,
devem ser inatos. Mas Locke argumenta que os seres humanos não possuem
nenhum conhecimento inato: somos tábula rasa. Todo o nosso conhecimento
vem a nós por meio de nossa visão, nossa audição, nosso olfato, nosso tato e
nosso paladar, e as ideias ou conceitos (por exemplo, “alvura, dureza, doçura,
pensamento, movimento, homem, elefante, exército, embriaguez”) que
formamos a partir deles simplesmente resultam dessa entrada sensorial. Como
ele escreve:

Perguntar em que MOMENTO um homem começa a ter quaisquer


ideias é perguntar quando ele começa a perceber, pois TER IDEIAS e
ter PERCEPÇÃO são a mesma coisa.

Não podemos vivenciar uma coisa sem antes ter tido uma experiência
sensorial dela. Mesmo uma ideia complexa tem raízes nos sentidos.
Na terminologia de Locke, ideias “simples” são experiências básicas que os
sentidos nos trazem, por exemplo, a frieza e a dureza sentidas ao mesmo
tempo ao tocar um bloco de gelo ou a brancura e o cheiro vivenciados quando
se segura um lírio. Essas ideias simples formam a base de qualquer quantidade
de ideias complexas mais abstratas sobre como o mundo funciona. A visão de
um cavalo galopando, por exemplo, acaba nos levando a reflexões sobre a
natureza do movimento. Ainda assim, devemos sempre ter a experiência de
ideias simples antes de podermos criar ideias complexas. Até mesmo um
conceito abstrato, como força, originalmente deriva de nossa consciência de
que podemos mover os nossos membros para fazer algo. A partir desse
simples conhecimento do que é força, podemos compreender por que um
governo ou um exército pode ter força. Locke separa ainda mais as coisas de
acordo com suas qualidades primárias e secundárias. As qualidades primárias
de uma rocha, por exemplo, são suas dimensões e o movimento, que são
verdadeiras, mesmo se não são percebidas. Suas qualidades secundárias são a
maneira como nós a percebemos, por exemplo, o fato de ela ser preta e dura.
A crença de Locke de que todas as ideias devem vir originalmente da
sensação levou-o a uma visão interessante: se os sentidos podem dar a uma
pessoa uma visão de mundo diferente daquela da pessoa ao lado (por exemplo,
a mesma banheira pode ser fria para uma pessoa, mas quente para outra),
como pode haver uma certeza ou verdade nas ideias proferidas por filósofos
individuais, que são muito mais complexas? Cada visão de mundo, sugere ele,
deve ser pessoal, e as abstrações e ideias, por mais atraentes que sejam, devem
continuar sob suspeição, especialmente se fizerem falsas reivindicações de
universalidade.

A moralidade é inata?
Na época de Locke, supunha-se que a moralidade era inata (as pessoas nascem
boas ou más) e que existe um conjunto de princípios morais universais. Ele
tenta mostrar que a moralidade não pode ser universal, enfatizando a ampla
variação entre indivíduos e povos em termos de crenças. Por exemplo, práticas
como deixar as crianças em estado selvagem, sob mau tempo ou enterrá-las
juntamente com a mãe caso ela morra eram normais em várias culturas, mas na
Inglaterra de sua época eram consideradas anormais.
“Então”, pergunta ele, “são inatos os princípios de justiça, piedade,
gratidão, equidade, castidade?” Se às crianças, aos “idiotas” e a vários povos
estrangeiros faltam tais princípios, inclusive a aceitação “inata” de Deus, isso
sugere que eles, os princípios, são criados por seres humanos. Em seguida,
Locke aborda o argumento de que a nossa razão, dada por Deus, nos permite
descobrir as verdades morais atemporais. A razão é uma criação da mente
humana, conclui ele e, portanto, não pode ser invocada para revelar a verdade
eterna.
Os princípios parecem inatos, diz ele, apenas porque “não nos lembramos
de quando os aceitamos em primeiro lugar”. As crianças absorvem o que lhes
é dito, questionando apenas na idade adulta. Talvez a única coisa inata em nós
seja nosso desejo de viver de acordo com princípios, quaisquer princípios, desde
que eles criem alguma ordem ou significado. Mas “ideias e noções não são
mais inatas a nós que as artes e as ciências” e, muitas vezes, são utilizadas por
uma pessoa contra a outra. Portanto, o caminho para a liberdade deve ser cada
pessoa testar verdades por si mesma para que não esteja sob o falso domínio
de ninguém.
Na visão empírica de Locke, onde fica a crença espiritual? Ele a vê
simplesmente como uma ideia complexa, extraída de outras ideias complexas,
tais como existência, duração, conhecimento, poder e bondade. Tomamos
essas e as multiplicamos pelo infinito para chegarmos à compreensão de um
Ser Supremo. Embora Locke não possa “provar” a existência de Deus, ele, de
alguma forma, consegue mostrar que a crença em Deus é perfeitamente
natural e lógica, algo elaborado a partir de nossa experiência direta do mundo a
nosso redor.

Identidade pessoal
Na segunda edição do livro (1694), Locke incluiu um novo capítulo, “As ideias
de identidade e de diversidade”. Para muitos estudiosos, essa se tornou a parte
mais fascinante do trabalho, pois é uma tentativa de explicar questões de
consciência e identidade.
Identidade, Locke diz, sempre se baseia em nossas percepções de algo ao
longo do tempo. A identidade de criaturas vivas não depende simplesmente de
serem a mesma massa de partículas que eram dois anos antes. Um carvalho é a
mesma planta que uma vez foi uma muda, e um cavalo é o mesmo cavalo que
era quando potro. Isso diz a Locke que a identidade não se baseia apenas na
matéria, que ela muda constantemente, menos na organização de algo.
No entanto, como isso funciona em relação aos seres humanos? Locke
levanta a questão fascinante das almas, que podem habitar corpos sucessivos e
assumir novas identidades durante muitas vidas. Mesmo pressupondo, por
exemplo, que cada uma dessas encarnações é masculina, não se pode dizer que
tal sucessão de identidades é o mesmo “homem”. O principal em seu
argumento é a separação dos conceitos de “homem” e “pessoa”. Enquanto
um homem ou uma mulher é uma expressão da espécie humana – um corpo,
um animal, que também é combinado com uma consciência –, a identidade
pessoal implica uma duração de consciência que expressa uma identidade,
transcendendo o físico. Assim, poderíamos quase dizer que um gato ou um
papagaio muito inteligente parece uma pessoa e atribuímos a ele uma
personalidade, ao passo que podemos considerar alguém que perdeu a
memória mais como um organismo que perdeu sua identidade pessoal. Locke
menciona expressões cotidianas como ele “não é ele mesmo” ou está “fora de
si”, o que implica que “a mesma pessoa não estava mais naquele homem”.
Essas palavras confirmam que a consciência, não a fisicalidade, é identidade.

Comentários finais
Embora a refutação de Locke sobre o caráter inato parecesse ser um passo na
direção da verdade, a ciência foi menos gentil nesse sentido. A ideia da mente
como uma tábula rasa teve um efeito enorme sobre a cultura e a política
pública (dando-nos a noção, por exemplo, de que meninos e meninas agem de
forma diferente apenas por causa do condicionamento social), mas a
investigação sobre o cérebro mostra que um número significativo de
tendências comportamentais é, de fato, inato. A ação moral em si é
considerada por muitos uma característica evolutiva que ajuda os seres
humanos a viver melhor em comunidade.
O Ensaio sobre o entendimento humano de Locke, no entanto, ainda é uma
grande expressão da visão empírica e foi muito ousado para o seu tempo.
Também é bastante legível (mais do que muito da filosofia contemporânea) e
abrange muitas ideias que não temos espaço para explorar aqui, tal como sua
posição sobre o livre-arbítrio e a ética.
Locke também escreveu em defesa da tolerância religiosa (Cartas sobre a
tolerância, 1689-92), principalmente para superar a divisão católico-protestante,
e sua visão de uma sociedade aberta, tolerante e democrática tem sido
influente. Especificamente, a sua modesta opinião de seres humanos como
seres moldados pelos sentidos, que naturalmente buscam a própria felicidade e
evitam a dor, tem sido uma influência duradoura sobre instituições políticas
modernas, especialmente aquelas dos Estados Unidos. Sua concepção de seres
humanos como animais morais era muito moderna e realista, e tem sido bem-
sucedida porque dá todo o crédito à nossa capacidade de criar uma mudança
positiva, mas não tenta fazer de nós algo que não somos.

John Locke
Locke nasceu em 1632, em Somerset, Inglaterra. Seu pai era advogado e oficial
de baixo escalão. Locke frequentou a prestigiada Westminster School, em
Londres, e ganhou uma bolsa de estudos para Oxford. Depois de obter dois
títulos, permaneceu lá para investigar e lecionar sobre questões políticas e
teológicas, vivendo na cidade durante quinze anos. Em 1665, concentrou seus
estudos na medicina e, no ano seguinte, conheceu Anthony Ashley Cooper, o
Lord Ashley (mais tarde, conde de Shaftesbury), a cuja família em Londres ele
se juntou. Foi em 1668 que supervisionou a operação no fígado de Cooper.
Quando Cooper tornou-se lorde-chanceler do governo inglês, Locke atuou
como seu conselheiro, e, depois desse período, ajudou a organizar a nova
colônia norte-americana da Carolina. Considerando que a constituição do país
(na qual ele ajudou com a minuta) estabeleceu uma aristocracia feudal baseada
no comércio de escravos, muitos têm apontado a aparente hipocrisia do
trabalho de Locke lá em contraste com suas amplas opiniões políticas.
De 1683 a 1689, ele se exilou na Holanda por motivos políticos, mas
retornou depois da Revolução Gloriosa, que instalou William de Orange como
monarca da Grã-Bretanha. Sem nunca ter se casado, Locke passou os últimos
anos em Essex, vivendo com sua amiga Lady Damaris Masham e seu marido.
Trabalhou em um comitê de aconselhamento do governo sobre questões
monetárias e publicou anonimamente The Reasonableness of Christianity [A
racionalidade do cristianismo] (1695). No ano seguinte, foi nomeado para um
cargo assalariado na Câmara de Comércio e se envolveu em um prolongado
debate público com o clérigo Edward Stillingfleet sobre as implicações
teológicas do Ensaio. Locke morreu em 1704.
1513

O príncipe

“E é preciso entender que um príncipe, sobretudo um


príncipe novo, não pode observar todas as regras de
conduta consideradas boas, sendo muitas vezes
forçado, a fim de preservar seu principado, a agir em
oposição à boa-fé, à caridade, à humanidade e à
religião. Deve, portanto, manter a mente pronta para
mudar conforme os ventos e marés da fortuna e, como
eu já disse, não deve desistir de ser bom se puder
evitar, mas deve saber como seguir cursos de mal se
for preciso.”

Em resumo
O bom governante construirá um Estado forte e bem-sucedido, que
oferece prosperidade e paz a seus cidadãos; mantê-lo às vezes requer ação
em desacordo com a moral da época.

Na mesma linha
Noam Chomsky, Para entender o poder (p. 92)
Cícero, Dos deveres (p. 100)
Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal (p. 292)
Platão, A República (p. 308)
Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social (p. 330)
Nicolau Maquiavel

Dizem que O príncipe teria sido o livro de cabeceira de Napoleão, Hitler e


Stalin, e que Shakespeare usou o termo “maquiavélico” para nomear um
maquinador que ficava feliz ao sacrificar as pessoas para objetivos maléficos. O
livro foi colocado na lista de obras proibidas da Igreja Católica e foi igualmente
desprezado pelos reformadores protestantes. É chocante, pois ele tenta
apresentar as coisas como elas são em vez de tentar alinhar a vida política a
alguns ideais éticos ou espirituais. Apenas por ter feito isso, Nicolau Maquiavel
sentiu que seu livro seria realmente útil.
Maquiavel era conselheiro nos níveis mais altos do governo da Florença
renascentista e só depois que os ventos políticos sopraram contra ele é que
começou a escrever. O príncipe foi dedicado a um membro da aristocracia
governante de Florença, os Médici, em um esforço para obter emprego, e,
embora talvez tenha sido escrito com vistas a um público maior, o autor não
poderia ter adivinhado seu impacto sobre gerações posteriores.
Esse é realmente um manual do mal? Como Erica Benner, de Yale, sugeriu
em Machiavelli’s Ethics [A ética de Maquiavel], O príncipe é mais bem considerado
não como um guia sobre como ser cruel ou agir apenas em causa própria, mas
como uma lente através da qual objetivamente se enxergam as visões
prevalecentes da época, como um dispositivo para abrir os olhos do leitor para
outras causas. Portanto, pode ser utilizado como um manual de eficácia para
qualquer líder contemporâneo que queira manter seus nobres objetivos
essencialmente nos trilhos ou, de modo geral, como uma das grandes filosofias
do poder. Dito isso, ainda é um trabalho muito perturbador quando
comparado às filosofias políticas utópicas.

Vamos ser honestos


Do século XIV ao XVI, houve um gênero de guias, “espelhos para príncipes”,
escrito para os homens jovens que estavam prestes a herdar um reino. The
Education of a Christian Prince [A educação de um príncipe cristão], de Erasmo,
publicado apenas alguns anos depois de Maquiavel ter terminado O príncipe,
exortava governantes a agir como se fossem santos, alegando que a regra bem-
sucedida correspondia naturalmente à bondade do governante. Séculos antes,
A cidade de Deus, de Santo Agostinho, oferecia um contraste gritante às
estruturas políticas de seres humanos imperfeitos, propondo que a verdadeira
realização estava em se voltar intimamente para Deus.
Porém, Maquiavel não só não acreditava que, dada a natureza humana, um
governante verdadeiramente bom ou um Estado perfeito pudesse existir, como
via a incursão de ideais religiosos na política como prejudicial para a eficácia do
Estado. Embora apreciasse o valor da religião na criação de uma sociedade
coesa, sentia que o envolvimento direto da Igreja nos assuntos do Estado
corrompia, em última análise, tanto o Estado quanto a Igreja. Não há melhor
exemplo disso do que os Estados papais ou eclesiásticos, que, na sua época, se
tornaram muito poderosos, capazes de fazer com que grandes Estados como a
França tremessem. Alguns papas tiveram várias amantes, deram origem a filhos
ilegítimos e aumentaram sua riqueza por meio de suas conquistas. Maquiavel
dedica um a esses Estados, mas pesa suas palavras cuidadosamente,
observando com algum sarcasmo que, uma vez que são “criados e apoiados
pelo próprio Deus […] seria uma coisa de homem grosseiro e presunçoso se
aventurar a discorrer a seu respeito”.
Sua visão é a de que a política e a religião são dois reinos diferentes; “o
bom”, enquanto um objetivo nobre, era melhor deixar para o privado e
religioso, enquanto a eficácia de um governante deve ser medida pela virtù,
força ou destreza decisiva necessária para construir e preservar um Estado.
Maquiavel quis contrariar o Estado idealizado que Platão estabelecera em A
República e discordou do código da ação política de princípios estabelecido pelo
estadista romano Cícero. Sua conclusão é a de que um líder não pode ser eficaz
operando de um jeito ciceroniano se tudo ao redor dele for inescrupuloso e
predatório. Para preservar seus bons objetivos, diz Maquiavel em observação
famosa, o príncipe deve aprender “como ser diferente de bom”. Um
governante tem que fazer escolhas que o cidadão normal nunca faz, como se
vai à guerra ou o que fazer com pessoas tentando matá-lo ou derrubá-lo. Para
manter a ordem e a paz e preservar a honra de seu Estado, talvez seja
necessário agir da forma que o cidadão privado nunca agiria.

Por que a força é justificada


Enquanto Maquiavel estava trabalhando para a cidade-estado de Florença, a
cidade de Pistoia estava sendo devastada por lutas internas. Ele propôs que
Florença a tomasse para subjugá-la e trazer a ordem, mas o público não teve
apetite para tal empreendimento, e nada foi feito. Entregue à própria sorte, no
entanto, houve um banho de sangue nas ruas. Assim, Maquiavel afirma:

Aquele que sufoca desordem com poucos exemplos sinalizadores será,


no final, mais misericordioso do que aquele que, a partir de uma
leniência grande demais, permite que as coisas sigam seu curso e,
portanto, resultem em pilhagem e derramamento de sangue; pois esses
ferem o Estado inteiro, ao passo que as severidades do Príncipe ferem
apenas indivíduos.

O fato é que qualquer governante, não importa quão benigno for, precisa
encarar o uso da violência para manter sua existência. Maquiavel observa que
“todos os profetas armados foram vitoriosos, e todos os profetas desarmados
foram destruídos”. Ele se refere a Savonarola, líder florentino clerical cujo erro
fatal foi não possuir meios enérgicos para garantir que sua visão da cidade se
tornasse real. Embora fosse um bom homem de qualquer forma, que tentou
trazer de volta a moralidade e os ideais republicanos em contraste com os
cruéis Médici, no final Savonarola ficou impotente para impedir a própria
morte.
Um príncipe deve ser capaz de atuar como homem e como fera, declara
Maquiavel; um governante eficaz deve ser “uma raposa para discernir
armadilhas e um leão para expulsar os lobos”. Ele imagina o líder sábio como
aquele que passa muitas de suas horas durante o tempo de paz considerando
vários cenários de guerra e pensando em como o reino vai reagir se o evento
realmente acontecer. Um príncipe poderia se enganar acreditando que suas
energias devem ser gastas em outras coisas, mas, em última instância, seu papel
é o de proteger e preservar o Estado.
O que, necessariamente, envolve tomar medidas que normalmente seriam
consideradas ruins, mas, “se é permitido falar bem de coisas do mal”, como
Maquiavel delicadamente coloca, há uma distinção entre a violência que é
cometida em razão da criação ou da manutenção de um bom Estado e a
crueldade que é perpetrada apenas para preservar o poder de um governante
individual. Ele dá nota baixa para os imperadores romanos Cômodo, Caracala
e Maximino, que fizeram da crueldade um modo de vida. Tornaram-se tão
odiados que suas mortes prematuras foram inevitáveis. Portanto, o excesso de
crueldade não é apenas ruim, mas politicamente insensato.
Quando se trata de tomar um principado ou Estado, a regra geral de
Maquiavel é a de que “o usurpador deve ser tão rápido para infligir os
ferimentos que precisar, de um só golpe, para que não precise ter que renová-
los todos os dias”. Se estiver indo tomar ou atacar alguma coisa, faça-o o mais
rapidamente possível e com o máximo de força, de modo que seus inimigos
desistam logo e, paradoxalmente, a violência possa ser minimizada. Ao fazê-lo,
você será temido e poderá, posteriormente, ser visto como magnânimo por
seus favores. Em contraste, um golpe sem força permitirá que seus inimigos
vivam e que você viva para sempre com medo de ser derrubado.
Para entender Maquiavel, é preciso avaliar a geopolítica de seu tempo. A
Itália, ele lamenta, “foi invadida por Carlos, pilhada por Luís, arrasada por
Ferdinando e insultada pelo Suíço”, uma situação que poderia ter sido evitada,
caso seus governantes tivessem fortes exércitos nacionais. No entanto, em vez
de poder pelo poder, a proposta de Maquiavel é o estabelecimento de um
governo forte que permita que a economia privada floresça, trabalhe de acordo
com leis e instituições e preserve a cultura. Ele acreditava que Deus desejaria
uma Itália unida e forte, que fosse capaz de trazer a segurança e a prosperidade
a seu povo, com uma cultura e uma identidade nacional florescentes. O príncipe,
do ponto de vista de seu autor, é uma obra com claro fundamento moral.

Do povo, pelo povo


Essa era a visão de Maquiavel; mas o que isso significa em termos do sabor de
um verdadeiro governo? Ele encheu César Bórgia, governante italiano, cardeal
e filho do Papa Alexandre VI, de elogios, cujas ações notoriamente implacáveis
ofereciam uma noção do que Maquiavel estava disposto a aceitar pelo poder.
Ainda assim, Maquiavel acreditava que um bom Estado poderia fazer o
melhor brotar nas pessoas, criando uma fase em que elas poderiam encontrar
glória por meio de grandes atos. Como observou Hannah Arendt, O príncipe é
um “extraordinário esforço para restaurar a antiga dignidade à política”,
trazendo de volta a ideia clássica romana e grega de glória à Itália do século
XVI. Maquiavel admira os homens de origem humilde que subiram na vida
por seus atos, arriscando tudo pelo reconhecimento público e pela
possibilidade de poder.
Mas como essa adulação da forte ação individual se encaixa com o ethos
republicano que perpassa os outros escritos de Maquiavel (História de Florença,
Discursos) e com sua longa experiência trabalhando para uma república? O
príncipe pode ser visto como um grande manual de fundação de um Estado, uma
grande empresa que é inevitavelmente a inspiração e o trabalho de uma única
pessoa. Uma vez estabelecido, o poder do governante passaria então a ser
devidamente controlado e equilibrado por um conjunto de instituições
democráticas.
Maquiavel foi extremamente sensível à delicada dança de poder entre o
governante, a nobreza e o povo. Ele declara sua desconfiança de um príncipe
que sempre depende da nobreza para manter o poder, uma vez que esta deseja
muitos favores para sua instalação e, se não os tiver, vai querer substituí-lo. O
apoio do povo, por outro lado, pode ser mais instável e menos capaz de ser
controlado, mas, em tempos difíceis, vale muito, fornecendo uma fonte de
legitimidade: “Por mais forte que possa ser no tocante a seu exército, é
essencial que, ao entrar em uma nova província, você conte com a boa vontade
de seus habitantes”. Mais adiante ele aborda a questão de como um príncipe
pode controlar um Estado que já viveu sob leis próprias. Ele observa que o
povo, não importa há quanto tempo esteja subvertido, não se esquece das
liberdades de que antes seus indivíduos gozavam ou das leis e das instituições
que os tornavam um Estado orgulhoso. Aqui, Maquiavel encobre levemente
suas simpatias republicanas, constatando que, apesar do aparente poder de
usurpadores e governantes conquistadores, o Estado de direito e as liberdades
democráticas são tão propícios para o estado natural da humanidade que têm
uma força duradoura que não é facilmente esquecida ou apagada.
Em resumo, o Estado ideal é aquele que é aberto o suficiente para
indivíduos notáveis de qualquer nível satisfazerem suas ambições, e estes
motivos amplamente egoístas podem levar a bons resultados para todos, uma
vez que esses indivíduos especiais, para terem sucesso em longo prazo,
precisam modelar seus projetos de forma que satisfaçam também o querer
natural do povo.

Comentários finais
O príncipe continua a fascinar, chocar e inspirar as pessoas tanto hoje como fez
com os leitores no século XVI. Embora escrito como uma espécie de
mostruário do conhecimento do autor em estadística e muito preocupado com
os acontecimentos de sua época, os insights atemporais do livro sobre a
natureza do poder e a motivação humana transcenderam sua configuração
original.
A habitual acusação contra o livro é que é maléfico ou imoral. No entanto,
ele é mais bem-visto como um texto fundador da ciência política, que analisa
clinicamente as situações políticas como são e fornece prescrições para a ação.
Na tentativa de minimizar a revolta e a miséria ao promover um Estado forte
que possa garantir prosperidade e segurança a todos, o objetivo de Maquiavel
foi ético, ainda que permitisse o uso da força ou da violência institucionalizada.
Maquiavel continua sendo leitura essencial para qualquer um em posição de
liderança. Cada um de nós deve tomar decisões que talvez não sejam bem-
vindas ou até firam aqueles que estão sob o nosso comando. No entanto,
temos de agir para o benefício e o bem-estar em longo prazo do órgão que
administramos, quer se trate de uma empresa, alguma outra organização ou até
mesmo uma família. Nesse sentido, o papel do líder pode ser solitário e muitas
vezes traz consigo responsabilidades obscuras. Essa é a natureza do poder.

Nicolau Maquiavel
Maquiavel nasceu em Florença, em 1469. Seu pai era advogado, e ele recebeu
uma boa educação em latim, retórica e gramática. Viveu o reinado de
Savonarola e sua república cristã e, nos anos seguintes à execução do frei,
ascendeu pelas fileiras do governo florentino. Em 1498, foi nomeado
secretário da Segunda Chancelaria da República e secretário do Conselho dos
Dez da Liberdade e da Paz. Dois anos mais tarde, ingressou em sua primeira
missão diplomática, encontrando o rei Luís XII da França. Em 1501, casou-se
com Marietta Corsini, com quem teve seis filhos.
Em 1502-03, passou um período de quatro meses na corte de César Bórgia,
o duque Valentino, governante temeroso que é considerado por muitos o
modelo de príncipe para Maquiavel. Também participou de missões para o
Papa Júlio II e o Imperador Maximiliano. Com a queda da República de
Florença, em 1512, Maquiavel foi demitido de suas posições, acusado de
conspiração, preso, torturado e, em seguida, liberado, dando-lhe tempo para
escrever O príncipe.
Outros escritos incluem Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, um
comentário sobre o trabalho do historiador romano que revela as simpatias
republicanas de Maquiavel; A mandrágora, uma peça satírica sobre a sociedade
florentina; A arte da guerra, um tratado sob a forma de um diálogo socrático
que foi a única obra política ou histórica a ser publicada em vida (em 1521), e
seu História de Florença, encomendado pelo Cardeal Giulio de’ Medici, em 1520,
mas não publicado até 1532. Maquiavel morreu em 1527.
1967

O meio é a massagem

“O círculo familiar ampliou-se. O redemoinho mundial


de informações gerado pelos meios elétricos […]
ultrapassa qualquer influência possível que mamãe e
papai consigam ter. O caráter não é mais moldado por
apenas dois especialistas sérios mas tateantes. Agora,
todo mundo é sábio.”

“As sociedades sempre foram mais moldadas pela


natureza dos meios de comunicação social pelos quais
os homens se comunicavam do que pelo conteúdo da
comunicação.”

“A roda é uma extensão do pé, o livro é uma extensão


do olho, a roupa uma extensão da pele […] circuitos
elétricos, uma extensão do sistema nervoso central
[…] Os meios de comunicação, ao alterarem o
ambiente, evocam em nós proporções únicas de
percepções sensíveis. A extensão de qualquer sentido
altera a forma como pensamos e agimos – a maneira
como percebemos o mundo. Quando essas proporções
se alteram, os homens mudam.”

Em resumo
Os meios de comunicação de massa e a tecnologia de comunicações não
são invenções neutras, mas mudam a maneira como somos.

Na mesma linha
Jean Baudrillard, Simulacres et Simulation (p. 54)
Noam Chomsky, Para entender o poder (p. 92)
Marshall McLuhan

Marshall McLuhan foi o primeiro guru dos meios de comunicação. Alcançou a


fama internacional nas décadas de 1960 e 1970, cunhando, em seu livro de
1962, A galáxia de Gutenberg: a formação do homem tipográfico, a expressão “aldeia
global”. Sua fama diminuiu ligeiramente nos anos de 1980, antes de aumentar
novamente com o advento da internet, que foi uma previsão dele.
O meio é a massagem não é um típico livro de filosofia. Primeiramente, não foi
escrito por McLuhan. Quentin Fiore, um talentoso designer de livros, pegou
algumas das principais citações de McLuhan e as colocou em ordem visual
muito marcante, com muitas imagens, mudanças de fonte e artifícios, tais
como impressão de cabeça para baixo, de acordo com as ideias de McLuhan
sobre a impressão ser um meio demasiado restrito. O livro parece muito
“transado” à maneira dos anos 1960, mas esse jeito disfarça o aprendizado
literário e metafísico profundo de McLuhan. Ele era, afinal, um professor da
faculdade.
Por que motivo o livro recebeu o nome O meio é a massagem, quando
McLuhan é mais conhecido por seu bordão “o meio é a mensagem”? A mudança
foi realmente um erro de digitação que passou no processo de edição, mas o
pensamento de McLuhan foi muito ágil (e ele insistiu para que ficasse assim),
pois sentia que “todos os meios de comunicação trabalham completamente em
nós” – a tecnologia dos meios de comunicação muda tanto nossa vida pessoal,
política, estética, ética e social de forma que “nenhuma parte de nós fica
intocada, não afetada, inalterada”.
A aldeia global
Hoje, toda criança aprende o alfabeto, e nós a ensinamos sem realmente
pensar nisso. E, no entanto, diz McLuhan, as palavras e seu significado fazem
uma criança agir e pensar de maneiras específicas. Ele explica isso com mais
detalhes em A galáxia de Gutenberg, mas a questão é que o alfabeto e o advento
da impressão criaram um tipo de ser humano muito mais fragmentado,
desapegado e especializado mentalmente. No entanto, a era eletrônica e suas
tecnologias têm revigorado o envolvimento social, juntando-nos de novo. Os
celulares e a internet permitem que tenhamos centenas de amigos e conexões
em todo o mundo. Embora ainda estejamos usando o alfabeto, os diferentes
meios de comunicação para sua expressão permitem exponencialmente uma
maior influência sobre os outros e que sejamos também influenciados por
outros infinitamente. Uma pessoa douta na Idade Média tardia talvez tivesse
acesso a uma biblioteca de algumas centenas de volumes; hoje, a pessoa média
tem milhões de livros à disposição em um clique. Como é que tais mudanças
não alterariam quem e o que somos? Conforme a famosa frase de McLuhan,

estamos em um mundo novo em folha do tudo-ao-mesmo-tempo-


agora. O “tempo” parou, o “espaço” desapareceu. Agora vivemos em
uma aldeia global […] um acontecimento simultâneo.

Antes do advento do alfabeto, argumenta ele, o principal órgão sensorial da


humanidade era o ouvido. Depois, o olho tornou-se dominante. O alfabeto fez
com que pensássemos na maneira como uma sentença é construída: linear,
com cada letra ligada em uma ordem. “O continuum tornou-se o princípio
organizador da vida.” A racionalidade passou a significar a ligação sequencial
dos fatos ou conceitos.
Porém, o novo ambiente dos meios de comunicação é multidimensional –
não mais destacado, e volta a envolver mais de nossos sentidos. Agora, as
informações dos meios de comunicação chegam tão rapidamente a nós que
não temos mais a capacidade de categorizá-las adequadamente e lidar com elas
em nossa mente. É mais um caso de reconhecimento de padrões tão rápido
quanto possível. Influenciado por sua leitura de Lao Tzu, McLuhan comenta:

Os circuitos elétricos estão orientalizando o Ocidente. O contido, o


distinto, o separado – nossa herança ocidental – estão sendo
substituídos pelo fluido, o unificado, o fundido.

O eu e as mudanças sociais
No início de O meio é a massagem, McLuhan observa que os alunos de
comunicação são frequentemente atacados por “concentrarem-se ociosamente
em meios ou processos”, em vez de focar na substância. De fato, na era em
que vivemos, são exatamente esses meios e processos que mudam rápida e
profundamente o que é “conhecido”. A “tecnologia elétrica”, como ele a
descreve, está remodelando cada aspecto da vida social e pessoal, “obrigando-
nos a reexaminar e reavaliar praticamente cada pensamento, cada ação, cada
instituição que antes era considerado natural”. Ele adverte: “Tudo está
mudando – você, sua família, seu bairro, sua educação, seu trabalho, seu
governo, sua relação com ‘os outros’. E eles estão mudando drasticamente”.
Uma criança que cresce no moderno ambiente dos meios de comunicação
não tem apenas seus pais e professores para influenciá-la; está exposta a todo o
mundo: “O caráter não é mais moldado por apenas dois especialistas sérios
mas tateantes. Agora, todo mundo é sábio”. Toda criança é exposta a um
bombardeio de informações adultas pelos meios de comunicação, que fazem a
própria ideia de “infância” parecer estranha. No lado positivo, a tecnologia está
tornando o aprendizado mais divertido e devolve algum controle ao aluno. A
educação não precisa consistir em aprendizado rotineiro, quadros-negros e dias
escolares regulamentados.
A relação entre “público” e “privado” também foi alterada:
Os dispositivos elétricos de informação para vigilância tirânica
universal de toda a vida estão causando um grave dilema entre a nossa
pretensão de privacidade e a necessidade de saber da comunidade. As
ideias mais antigas e tradicionais do privado, os pensamentos e ações
isoladas […] estão seriamente ameaçados por novos métodos de
recuperação instantânea de informações elétricas.

As redes sociais de fato borram a distinção entre o que é privado e o que é


público. O fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, vê isso obviamente sob
uma luz positiva – ele pensa que o rosto público e particular das pessoas deve
ser único e o mesmo. É uma questão justa, mas a maior questão no mundo
hiperconectado é até que ponto se pode dizer que uma pessoa existe se as suas
ações e seus pensamentos não são frequentemente atualizados on-line. Se o eu
não está sempre em exibição, existe um eu? Tais pensamentos validam a
afirmação de McLuhan de que o novo ambiente dos meios de comunicação
muda tudo: o eu, a família, a sociedade.
Uma de suas afirmações é que a tecnologia de cada época induz a formas
de pensar e a reações condicionadas nas pessoas, reações que se tornam
incompatíveis em uma época subsequente. As novas tecnologias não apenas
destroem a velha ordem comercial, elas tornam as mentalidades inúteis também.
Diante do novo, voltamos insistentemente ao antigo. São apenas “o artista, o
poeta e o detetive” que estão dispostos a dizer as coisas como elas realmente
são.

O mundo do trabalho
McLuhan também acaba com a ideia convencional de “emprego”, que foi uma
consequência da mecanização e da especialização da era industrial e na qual as
pessoas eram reduzidas a engrenagens de uma máquina. No novo mundo, ele
diz que:
padrões de trabalho fragmentados tendem a se misturar mais uma vez
a papéis envolventes e exigentes ou formas de trabalho que se
assemelham cada vez mais ao ensino, à aprendizagem e ao serviço ao
“ser humano”, no sentido mais antigo da lealdade dedicada.

Isso parece muito com os trabalhos freelance de hoje em dia, a economia do


“consultor”, do “especialista”, na qual as pessoas criam seguidores dedicados
de suas ideias ou produtos, e sua maior oferta é a orientação ou o treinamento
para outros que gostariam de fazer o mesmo (por exemplo, escrever, cozinhar,
ter um e-commerce). Tudo isso acontece fora das corporações e das habituais
estruturas organizacionais – outro caso de um meio de comunicação (a
internet) ditando as mudanças.

Política
O ambiente dos meios de comunicação também muda a política de um modo
fundamental. O que antes era um “público” composto de muitos pontos de
vista separados e distintos, hoje foi substituído por uma “audiência” que dá
retorno instantâneo sobre qualquer decisão política. Por meio da televisão e de
outros meios de comunicação, podemos ver o que está acontecendo em tempo
real em qualquer parte do mundo e reagir ao acontecimento. As emoções
ficam pulverizadas em nossas telas, e as agruras de uma pessoa podem ser
sentidas por milhões.
O acesso quase universal a esses meios de comunicação tem outro efeito:

Em um ambiente de informações elétricas, os grupos minoritários não


podem mais ser contidos, ignorados. Pessoas demais sabem demais
umas sobre as outras. Nosso novo ambiente obriga ao empenho e à
participação. Nós nos tornamos irremediavelmente envolvidos uns
com os outros e mutuamente responsáveis.

Essa questão sobre grupos minoritários se tornando a corrente


predominante (o mainstream) foi aproveitada por Noam Chomsky. Se esses
grupos tiverem acesso à informação e puderem expressar seus pontos de vista
usando os meios de comunicação, podem exercer o mesmo poder que um
partido político convencional ou uma grande corporação.

Comentários finais
McLuhan equivocou-se em algumas coisas. Acreditava que, na era da
informação, as cidades – dos monumentos às estações de trem – se tornariam
menos importantes, lugares semelhantes a museus, e não onde as pessoas
viveriam ou trabalhariam. Por um tempo ele parecia estar certo, pois as pessoas
fugiam das cidades para os subúrbios, mas a nova moda da vida na cidade
surgiu de um desejo de experiência real (a possibilidade de encontros casuais,
acesso à música ao vivo e assim por diante), não só virtual. No entanto, de
forma geral, é espantoso como alguém que morreu em 1980 pôde ter
prenunciado tão bem como vivemos agora.
McLuhan observa que, antes da invenção da imprensa, a autoria de um livro
era secundária à informação que ele continha. Foi só depois de Gutenberg que
a “fama literária e o hábito de considerar o esforço intelectual como
propriedade privada” vieram à tona. Mas ele também diz o seguinte: “Quando
as novas tecnologias entram em jogo, as pessoas ficam cada vez menos
convencidas da importância da autoexpressão. O trabalho em equipe substitui
o esforço particular”. Não vem à mente a Wikipédia? Embora a fama de
autores individuais não tenha se alterado, McLuhan estava essencialmente
correto em sua sensação de que a colaboração e o texto em si poderiam voltar
a ser destaque.
De acordo com o seu raciocínio, os aplicativos de redes sociais como
Twitter e Facebook não apenas auxiliam as revoluções, mas estão no coração
delas. Mais do que simplesmente conectar pessoas que de outra forma
permaneceriam desconectadas, eles realmente viram o peso do poder para o
povo. Enquanto alguns comentaristas tentaram minimizar o papel das redes
sociais, McLuhan provavelmente teria argumentado que essa é uma reação da
velha guarda. Os novos aplicativos são a mensagem e vão continuar a
transformar o mundo.
Perto do final do livro, há uma imagem da capa do The New York Times de
setembro de 1965, um dia depois da grande pane elétrica que mergulhou a
cidade de Nova York na escuridão. McLuhan afirma que, “se o [blecaute]
tivesse continuado por meio ano, não haveria dúvida de como a tecnologia
elétrica modela, opera, altera – massageia – cada instante de nossa vida”. E isso
foi em 1965, quando muitas pessoas não tinham nem mesmo televisão. Acelere
o tempo até o presente e imagine se a internet deixasse de funcionar por seis
meses – nós viveríamos no mesmo mundo? Seríamos as mesmas pessoas?

Marshall McLuhan
McLuhan nasceu em 1911. Sua mãe era uma professora que mais tarde se
tornou atriz, e seu pai tinha uma corretora de imóveis em Edmonton, Canadá.
McLuhan frequentou a Universidade de Manitoba, obtendo seu mestrado
em língua inglesa em 1934; no mesmo ano, foi admitido como aluno na
Universidade de Cambridge. Em 1936, ele retornou ao Canadá para um
trabalho como professor assistente na Universidade de Wisconsin. No início
da década de 1950, deu início aos seminários de Comunicação e Cultura
financiados pela Fundação Ford na Universidade de Toronto. Durante esse
período, sua reputação cresceu, e, em 1963, a universidade criou o Centro de
Cultura e Tecnologia, que ele dirigiria até 1979.
Seu primeiro grande trabalho, The Mechanical Bride [A noiva mecânica]
(1951), foi uma análise do efeito da publicidade na sociedade e na cultura.
McLuhan apontou que os meios de comunicação em si criam um impacto,
independentemente do que está sendo dito, em vez da atitude geralmente
aceita de que o conteúdo de uma mensagem é mais importante do que sua
forma. Seus outros livros fundamentais são: Os meios de comunicação como extensões
do homem (1964) e Guerra e paz na aldeia global (1968). McLuhan morreu em
1980.
1859

Sobre a liberdade

“A única liberdade que merece esse nome é a de


perseguir nosso próprio bem em nosso próprio
caminho, contanto que não se tente impedir que
outros persigam o deles nem se dificulte seus esforços
para consegui-lo.”

“[O] indivíduo não é responsável perante a sociedade


por suas ações, na medida em que essas digam
respeito apenas aos seus interesses e aos de mais
ninguém. Conselhos, instrução, persuasão e fuga de
outras pessoas, se considerados necessários por elas
para o próprio bem, são as únicas medidas pelas quais
a sociedade pode legitimamente manifestar seu
desagrado ou a desaprovação de sua conduta.”

“Na proporção do desenvolvimento da individualidade,


cada pessoa se torna mais valiosa para si mesma e,
portanto, é capaz de ser mais valiosa para os outros.”

Em resumo
As ações de uma pessoa devem ser permitidas, a menos que causem danos
diretos a outras. A prioridade em qualquer sociedade aberta deve ser a
liberdade, e não as políticas que parecem ser para o próprio bem da pessoa.
Na mesma linha
Jeremy Bentham, Princípios da moral e da legislação (p. 70)
John Rawls, Uma teoria da justiça (p. 322)
John Stuart Mill

Qual é o equilíbrio correto entre a liberdade pessoal e o controle do Estado?


Ao escrever em 1859, John Stuart Mill descreveu essa pergunta como “a
questão do futuro”, e seus pensamentos continuam sendo leitura indispensável
sobre o assunto.
No início de Sobre a liberdade, sua obra mais famosa, Mill reclama que,
“devido à ausência de princípios gerais reconhecidos, muitas vezes a liberdade
é concedida quando deveria ser retida, bem como retida onde deveria ser
concedida”. Ele procurou corrigir tal confusão, e o livro se tornou uma
contrapartida política para A riqueza das nações, de Adam Smith, descrevendo a
justa medida da liberdade individual e dos limites do governo.
O pai de Mill, James, era discípulo de Jeremy Bentham, e John foi
preparado para liderar os utilitaristas. No entanto, quando fez 30 anos, tanto
seu pai quanto Bentham estavam mortos, e ele ficou livre para encontrar um
caminho filosófico próprio. Aos 35 anos, tornou-se amigo de Harriet Taylor, e
ele considerava Sobre a liberdade uma “produção conjunta” com ela. A
influência dela sobre o outro ensaio famoso de Mill, A sujeição das mulheres
(1869), também é clara. Seu romance intenso, ainda que casto, resultou em
casamento, que ocorreu apenas depois da morte do marido comerciante de
Harriet.
Qual é a ligação entre as ideias de Mill sobre a liberdade pessoal e a
liberdade política? O livro traz o argumento de que a liberdade permite o
florescimento do indivíduo, mas resulta em toda uma sociedade cumprindo
seu potencial, uma vez que todas as questões ficam abertas ao debate e, por
conseguinte, os avanços – tanto sociais quanto científicos – podem acontecer
mais facilmente. Em última análise, cada aspecto da vida se beneficia de uma
maior liberdade.

Liberdade genuína
No momento em que estava escrevendo, Mill admitiu que vários países
poderiam ser descritos como democráticos, ainda que essa estrutura de
governo não garantisse a real liberdade, porque os que estão no poder se
tornaram uma classe apartada do povo. Além disso, um governo eleito
popularmente ainda podia oprimir algum grupo dentro da sociedade – o que
era conhecido como “tirania da maioria”. Ele sentia que isso poderia ser um
tipo ainda pior de regra do que a opressão política regular, porque se torna
uma tirania social, forçando um modo “correto” de agir para todos. Ao dizê-lo,
Mill prenuncia perfeitamente os Estados comunistas do século XX, em que
aqueles que não estavam em conformidade com as novas normas sociais
tinham de ser “ree­ducados”. Esses regimes, observa ele, concentram-se na
escravidão não do corpo, mas da mente e da alma.
Numa sociedade democrática, a questão essencial é onde deveria ser
colocado o limite entre a necessidade de controle social e a liberdade do
indivíduo de pensar e acreditar como desejar. A regra da maioria não
estabelece nenhum tipo de moralidade universal; é, antes, a expressão de
gostos e desgostos da classe ascendente. Mill observa que a liberdade religiosa
só foi promulgada quando vários grupos minoritários, sabendo que nunca
poderiam ser dominantes, lutaram pelo princípio da liberdade religiosa
constando da lei. Os seres humanos são intolerantes por natureza, portanto
uma política ou lei de tolerância surge apenas quando há tantas crenças
concorrentes que nenhum grupo está disposto a permitir que o outro se torne
dominante.
Todas essas ideias levam a seu famoso critério ou princípio para garantir a
liberdade, a evitação de dano:

O único propósito pelo qual o poder poderá ser legitimamente


exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada,
contra a sua vontade, é para evitar dano a outrem. Seu próprio bem,
seja físico ou moral, não é motivo suficiente. Ele não pode ser
legitimamente obrigado a fazer ou não fazer algo porque será melhor
para ele, porque isso vai deixá-lo mais feliz, porque, na opinião de
outros, fazê-lo seria sábio ou mesmo correto.

Um governo ou um órgão dominante na sociedade não pode impor uma lei


sobre as pessoas apenas porque é considerada “para seu bem”. Em vez disso, a
liberdade deve ser vista em um sentido negativo: a menos que uma ação do
cidadão seja manifestamente ruim para os outros, ele ou ela devem ser
autorizados a fazê-la. “No que diz respeito apenas a si mesmo, sua
independência é, decerto, absoluta”, diz Mill. “O indivíduo é soberano de si
mesmo, de seu corpo e de sua mente.”

Liberdades específicas
Mill descreve áreas da liberdade individual que devem ser consideradas como
um direito fundamental, contanto que não envolvam danos a terceiros:
• liberdade de consciência;
• liberdade de pensamento e de sentimento, inclusive “opinião e
sentimento sobre todos os assuntos, práticos ou especulativos, científicos,
morais ou teológicos”;
• liberdade de publicar essas opiniões;
• liberdade de gostos e ocupações, ou de “elaboração do plano de nossa
vida para se adequar ao nosso caráter”, mesmo que outros pensem que
nossa conduta é “insensata, perversa ou errada”;
• liberdade de associação com quem quisermos e de união das pessoas por
trás de um propósito específico.
Mill observa que, mesmo na Inglaterra da década de 1850, as pessoas
estavam sendo enviadas para a prisão por não professar a fé em Deus, e, além
disso, essas mesmas pessoas não tinham o direito de recurso em relação a
crimes cometidos contra elas. Acreditar em algo diferente do que era
socialmente aceito tornava uma pessoa um fora da lei.
Mill diz que a estupidez de regulamentar pensamento e crença é
testemunhada na perseguição de Sócrates e Jesus, que agora são apresentados
como duas das maiores figuras da história. Se cada época enxerga que pessoas
que eram consideradas “más” agora são “boas”, deve perceber que a opinião
geralmente é falha. Sempre que na história houve uma sociedade ou nação que
manteve alguns princípios incontestáveis ou impediu a discussão de alguma
grande questão, Mill observa, “não podemos esperar encontrar uma atividade
mental de alta escala que em geral tornou alguns períodos da história tão
notáveis”. Uma nação torna-se grande não por uma mera imposição de ordem
e poder, mas por deixar as coisas correrem livres, sabendo que há muito a
ganhar com a discussão aberta. De fato, isso é o que liberta as melhores
mentes para criar os maiores avanços.

A individualidade como a base de uma boa


sociedade
Mill argumenta que a “autoafirmação pagã” é tão válida quanto a
“autonegação cristã” em termos de desenvolvimento pessoal. Uma pessoa se
torna mais valiosa para a sociedade em proporção direta ao florescimento de
sua individualidade: “O início de todas as coisas sábias ou nobres vem e deve
vir dos indivíduos; geralmente, em princípio, de um indivíduo”.
Mill escreve que a quantidade de excentricidade em uma nação se espelhará
no “gênio, no vigor mental e na coragem moral” nela contidos. A Grã-
Bretanha vitoriana ficou famosa por um conjunto de valores, mas também era
conhecida como uma terra de excêntricos. Ele observa que as pessoas são
como plantas: diferem grandemente no que tange às condições necessárias
para seu florescimento. Ele arrisca dizer que o êxito da Europa é o resultado
de sua promoção ou aceitação da individualidade, em contraste com a
perspectiva chinesa ou japonesa, que é a de que todos devem se adequar.
Mill estava escrevendo quando o mormonismo era novidade (um pouco
como a cientologia em sua época), e as pessoas queriam bani-lo porque ele
permitia a poligamia, que um escritor chamou de “um retrocesso na
civilização”. Não obstante a própria aversão de Mill quanto à religião, ele
escreve: “Não penso que nenhuma comunidade tenha o direito de forçar outra
a ser civilizada”. Se o restante da sociedade não é diretamente afetado por ela,
não há motivo para uma lei contra ela. Ele enquadra a questão desta forma:

Nenhuma pessoa deve ser punida simplesmente por estar bêbada; mas
um soldado ou um policial em serviço deveria ser punido por estar
bêbado. Em suma, sempre que exista um dano definido ou um risco de
dano definido, seja a um indivíduo ou ao público, o caso está fora da
jurisdição da liberdade e entra naquela da moralidade ou do direito.

No entanto, tal dano precisa ser manifesto e claro. Se não for, deve-se
deixar que as pessoas sigam, sem impedimentos, suas crenças, seus projetos de
vida, suas causas e seus interesses.

Aplicação dos princípios


Mill inclui uma longa seção sobre questões de política de governo decorrentes
de seus princípios. Por exemplo, embora observe que em uma sociedade livre
não se possa realmente defender a proibição da prostituição ou da jogatina –
as pessoas devem ser livres para fornicar ou apostar na medida em que sua
consciência permita –, “uma pessoa deve ser livre para ser um cafetão ou
manter uma casa de apostas?”. Mill não dá uma resposta clara sobre isso, mas
em geral repete que não é papel do governo promulgar leis para o “próprio
bem”, apenas para evitar danos diretos; se as pessoas querem beber ou jogar
(com todas as desvantagens), a escolha é delas. No entanto, o governo pode
desempenhar um papel na prevenção de danos, por meio de impostos e
licenças, e Mill aprova a tributação do álcool para fazer com que as pessoas
bebam menos. Também apoia que o Estado exija das pessoas que desejam se
casar provas de que dispõem de recursos suficientes para ter filhos, evitando
assim que bebês entrem no mundo para enfrentar uma vida miserável por
causa da pobreza.
Hoje, a economia e a psicologia comportamentais oferecem maneiras de
alcançar resultados socialmente úteis sem reduzir as liberdades pessoais. Em
seu livro Nudge (2008), Richard Thaler e Cass Sunstein descrevem o
“paternalismo liberal”, uma forma de os governos influenciarem decisões das
pessoas sem realmente forçá-las a fazer nada. Por exemplo, formulários de
doação de órgãos podem ter como implícito que uma pessoa com carteira de
motorista doará órgãos no caso de morte, a menos que especificado o
contrário. Essa simples mudança pode afetar drasticamente o número de
órgãos que se tornam disponíveis em um país, salvando centenas de vidas por
ano. Ainda assim, não há regulamento envolvido, apenas uma mexidinha na
“arquitetura de escolha”, como os autores descrevem.

Comentários finais
Mill observou a disposição humana natural (seja nos governantes ou nos
cidadãos) de querer impor nossa vontade aos outros. Isso resulta na tendência
de o poder governamental aumentar e as liberdades individuais serem
corroídas, a não ser que esse poder seja monitorado e mantido sob controle.
Ainda assim, esse fato, e o alerta da insídia do governo, não significa que os
governos não tinham legitimidade, como alguns libertários extremos de hoje
acreditam. O filósofo Robert Nozick, de Harvard, descreveu em seu clássico
Anarquia, Estado e utopia (1974) uma visão da função central do governo:
proteção da vida e da propriedade e a execução dos contratos. Qualquer coisa
além disso implicaria a diminuição dos direitos e das liberdades fundamentais.
Embora se possa pensar que os herdeiros de Mill são os libertários de hoje,
Mill nunca foi um extremista, e estava muito mais no molde do senso comum
de Adam Smith. Embora ambos advertissem contra a lentidão do governo em
todos os âmbitos da sociedade e da economia, nenhum deles negou ou
questionou que o governo desempenhava um papel importante. A maneira
precisa de ver Mill é como um grande farol de política progressiva. Ele escreve
que o princípio progressista, “seja como amor à liberdade ou à melhoria, é
antagônico ao domínio do Costume, envolvendo, pelo menos, a emancipação
desse jugo; e a disputa entre os dois constitui o principal interesse da história
da humanidade”.
Mesmo que a esquerda e a direita tenham reivindicado Mill como estando
do seu lado, sua expressão do que significa liberdade está para além dos
diversos tons da política. Sobre a liberdade é mais bem-visto como um manifesto
para uma sociedade aberta.

John Stuart Mill


Nascido em 1806, em Londres, Mill teve notavelmente uma educação intensa
graças a seu pai, o benthamiano James. Quase sempre excluído das
brincadeiras com outras crianças, aprendeu grego aos 3 anos, latim aos 8; aos
12 era bem versado em lógica e, aos 16, já escrevia sobre assuntos econômicos.
Ainda na adolescência, depois de mais estudos na França nas áreas de
história, direito e filosofia, Mill começou a carreira na Companhia das Índias
Orientais, onde seu pai tinha uma posição sênior. Serviu na Companhia até o
Motim de 1857, quando se aposentou como examinador chefe. Junto com sua
carreira burocrática, deu início à Sociedade Utilitarista, que se reunia na casa de
Bentham, com quem também fundou (em 1825) o University College, em
Londres. Foi editor e colaborador da Westminster Review e de outras revistas. Seu
ativismo na reforma social o levou à prisão por distribuir informações de
controle de natalidade aos pobres de Londres.
Foi eleito para o Parlamento em 1865 e fez campanha para o direito de voto
para as mulheres e outras questões liberais. Seu grande corpo de escritos
abrange lógica, economia, religião, metafísica, epistemologia, assuntos atuais e
filosofia social e política. Os títulos incluem Um sistema de lógica dedutiva e
indutiva4 (1843), Princípios da economia política (1848), Three Essays on Religion [Três
ensaios sobre religião] (1874) e sua Autobiografia (1873). O utilitarismo (1863)
refinou a filosofia benthamiana e a manteve influente para uma nova geração.
Em 1872, Mill se tornou padrinho do segundo filho de seu amigo Lord
Amberley, Bertrand Russell. Morreu no ano seguinte, em Avignon, França.
1580

Os ensaios

“Então, leitor, sou eu mesmo a matéria de meu livro, e


não há nenhuma razão para que desperdices teu lazer
em um assunto tão frívolo e vão. Então, adeus. De
Montaigne, neste dia 1o de março de 1580.”

“Deixa o homem que está em busca de conhecimento


pescá-lo onde ele se encontra; não há nada que eu
reivindique menos como meu do que isso. São essas
as minhas fantasias, nas quais não faço nenhuma
tentativa de transmitir informações sobre as coisas,
apenas sobre mim.”

“Somos todos convenção; a convenção nos distancia, e


negligenciamos a substância das coisas […] Temos
ensinado às senhoras corarem à mera menção de
coisas de que elas não têm o mínimo medo de realizar.
Não ousamos chamar nossas partes pelos seus nomes
certos, mas não temos medo de usá-las para toda
sorte de devassidão […] A convenção proíbe-nos de
expressar em palavras as coisas que são legítimas e
naturais; e nós a obedecemos. A razão nos proíbe de
fazer o que é ilegal ou impróprio, e ninguém a
obedece.”
Em resumo
A maioria das formas de conhecimento é vaidade; é uma tarefa
suficientemente grande tentar saber algo de nós mesmos.

Na mesma linha
René Descartes, Meditações sobre filosofia primeira (p. 116)
Blaise Pascal, Pensamentos (p. 300)
Nassim Nicolas Taleb, A lógica do cisne negro (p. 390)
Michel de Montaigne

Quando Michel de Montaigne estava com 42 anos, que ele considerava ser o
início da velhice, mandou fazer um medalhão com os dizeres Que sais-je? (O
que eu sei?) em um dos lados.
Embora vivesse em uma época de ciência emergente, não era cientista, mas
um homem das letras e um cavalheiro do interior, e se voltou a si mesmo em
sua busca por conhecimento. Se tenho qualquer conhecimento ou opinião, ele
se perguntava, em que se baseiam? O que é essa coisa que chamo de meu
“eu”? Sou apenas um turbilhão de emoções e pensamentos passageiros ou
algo mais substancial?
Montaigne utilizou a palavra essai no sentido de “tentativa” para testar o que
parecia ser verdadeiro, tanto sobre o mundo como sobre si mesmo. Sua
coleção de ensaios é uma espécie de autobiografia, mas para ele é muito difícil
que não seja uma autoglorificação; o tom dos Ensaios é mais de curiosidade do
que de qualquer outra coisa. Em uma carta prefacial, ele observa:

Se fosse meu objetivo buscar os favores do mundo, eu teria envergado


as roupas mais finas e me presenteado em uma atitude bem pensada.
Mas quero aparecer em meus trajes simples, naturais e cotidianos, sem
esforço ou artifício.

De fato, Os ensaios muitas vezes parecem um catálogo de suas deficiências.


Nos primeiros anos de vida, Montaigne foi educado em latim, e o livro é
repleto de citações de seus heróis: Virgílio, Ovídio, Sêneca, Plutarco, Cícero,
Catão e Catulo. Ele não lhes faz referência para mostrar seu aprendizado, mas,
como diz, utiliza as virtudes deles “como uma capa para minha fraqueza”.
Seus temas peculiares incluem: “Sobre cheiros”, “Sobre a afeição dos pais
pelos filhos”, “Sobre o costume de vestir roupas”, “Sobre o poder da
imaginação”, “Sobre três relações” e “Sobre os canibais”. Aqui olhamos um
punhado de ensaios que parecem encapsular a visão de mundo de Montaigne,
que influenciou William Shakespeare, Blaise Pascal, Ralph Waldo Emerson,
Friedrich Nietzsche, entre outros.

A fraqueza humana e a vaidade


O mais longo dos ensaios, “Sobre a presunção”, é indiscutivelmente o melhor
e pode ser resumido nesta sentença:

É minha opinião que a ama e a mãe das opiniões mais falsas, tanto
públicas quanto privadas, são o excesso de opinião que o homem tem
sobre si mesmo.

Montaigne não é grande fã de cientistas, ou pelo menos não do seu ar de


certeza: “As pessoas que montam no epiciclo de Mercúrio e veem tão longe
céu adentro me fazem ranger os dentes”. Com o seu estudo da humanidade
lhe dizendo que estamos errados com frequência, mesmo nas questões mais
básicas, Montaigne se pergunta por que devemos dar tanto crédito a quem
“define as causas da ascensão e queda do Nilo”. Ele questiona por que nossos
“fatos” sobre o universo deveriam ser considerados confiáveis se
reiteradamente nos falta autoconhecimento?
Montaigne confessa que nada que ele tenha escrito o satisfez, e que as boas
opiniões de outras pessoas não configuram uma compensação. Ele é inútil em
contar histórias divertidas ou bater papo e ruim em dar discursos ou criar
argumentos. Sua prosa é simples e seca, sem a destreza de Platão e Xenofonte.
Ele é baixo em estatura, o que considera um inconveniente para aqueles que
tentam manter altas posições, porque “falta uma boa presença e dignidade”.
Outras lacunas de habilidades incluem tênis, luta livre e controle de animais.
De sua ética de trabalho, ele diz: “Sou extremamente lento e extremamente
independente tanto por natureza como por intenção. De bom grado eu
emprestaria meu sangue e minhas dores”. Ele discute sua memória ruim (“Me
custam três horas para aprender três linhas”), o que significa que nunca
consegue lembrar os nomes de seus serviçais. Entre os outros defeitos estão
“uma mente lenta e preguiçosa”, que lhe permite compreender apenas as peças
e os jogos mais simples, e a visão turva quando lê demais. Apesar de ter
recebido uma propriedade rural para gerenciar, admite que está desesperado
com as finanças, não consegue diferenciar os grãos e, apenas um mês antes, ele
se flagrou sem saber que era necessária a levedura para fazer pão.
Sobre o aspecto geral, Montaigne escreve:

Acho que seria difícil para qualquer homem ter uma opinião pior de si
mesmo, ou mesmo ter uma opinião pior de mim do que eu mesmo
tenho […] Confesso a culpa dos mais maléficos e mais ordinários
fracassos; nem os nego nem me eximo deles.

Ainda que admitindo plenamente o alcance e a extensão de sua ignorância e


seus defeitos, ele espera ser capaz de revelar algumas coisas sobre si mesmo
que são verdadeiras, observando que, “seja lá como eu consiga me retratar,
desde que eu me mostre como sou, estarei cumprindo meu propósito”.
Tudo com que ele ficou, por fim, foi com seu próprio julgamento, ou razão.
Talvez de forma surpreendente, Montaigne parece ter um grande respeito por
essa faculdade em si, mas também a reconhece como uma fonte de vaidade:
“Nós prontamente reconhecemos em outros uma superioridade em coragem,
força física, experiência, agilidade e beleza. Mas não concedemos a ninguém
um julgamento superior”. Ele observa que nossa “vanglória” tem dois lados,
“a superestimação de nós mesmos e a subestimação dos outros”.
Chega de máscaras
A ousadia da ação é considerada “viril”, de modo que sabemos que Montaigne
está se expondo quando admite sua indecisão. Ele lembra a observação sincera
de Petrarca: “Nem sim, nem não é o que soa claramente em meu coração”. Ele
é bom em defender pontos de vista, mas tem problemas para desenvolver as
próprias opiniões, resultando que as decisões poderiam muito bem ser
tomadas jogando-se dados: “Então, adéquo-me apenas como seguidor, e
facilmente me permito ser levado pela multidão. Não tenho confiança
suficiente em minha capacidade de avançar como comandante ou guia; fico
muito feliz em encontrar meu caminho traçado por outros”.
O resultado dessa furtividade é que Montaigne se mostra cético quando
outros fazem afirmações sobre a certeza e a verdade absoluta, o que não diz
respeito apenas aos cientistas, mas também aos filósofos, e aqui ele resume sua
motivação para Os ensaios:

É uma característica covarde e servil sair por aí disfarçado, escondido


atrás de uma máscara, sem a coragem de mostrar-se como se é […]
Um coração generoso nunca deve disfarçar seus pensamentos, mas sim
revelar voluntariamente seu íntimo. Ou é todo bom ou é todo humano.

Como William James observa em Pragmatismo, a alegação dos filósofos de


estarem oferecendo teorias objetivas é fraca, porque a filosofia é,
normalmente, apenas o caráter de alguém expresso de forma grandiloquente.
Montaigne também entendia que as chamadas ciência objetiva e filosofia eram
muitas vezes apenas uma projeção de mentes humanas, e tentar manter a
opinião pessoal oculta significava que a pessoa tinha algo a esconder.
Na vida política, Montaigne é crítico da ideia de Maquiavel de que é
necessário se tornar um mestre do engodo e da falsidade para ter sucesso; o
que tende a acontecer é que um ganho inicial feito pelas razões erradas será
seguido por uma corrente de perdas. Em vez disso, ele cita Cícero: “Nada é tão
popular quanto a bondade”. Montaigne preferiria ser visto como uma pessoa
sem tato que diz o que vem à mente do que alguém que trama, mente e bajula.

O mistério do eu
Montaigne diz que, no uso de nossas mentes, “geralmente temos mais
necessidade de chumbo que de asas”. Nosso estado normal é de constante
desejo e agitação, então precisamos nos prender à terra e ver o jeito que as
coisas realmente são. A meditação ou a contemplação talvez sejam melhores
nesse sentido, o que ele descreve como “um método rico e poderoso de estudo
para qualquer um que saiba como examinar sua mente e usá-la
vigorosamente”.
O “principal talento” dos humanos é a sua adaptabilidade e flexibilidade.
Como a própria vida é desigual e irregular, é loucura se ater a nossos hábitos
rígidos da mente, que nos levam a nos tornar escravos de nós mesmos. “As
melhores mentes”, diz Montaigne, “são aquelas que são as mais diversas e
flexíveis.”
Os ensaios continuamente evocam a natureza transitória e não confiável
desta coisa que chamamos de “eu”. Em “Sobre livros”, Montaigne descarta a
ideia de que uma pessoa cresce em conhecimento e sabedoria à medida que
envelhece e se torna “semelhante”:

Talvez eu tenha algum conhecimento objetivo um dia, ou talvez tenha


tido no passado quando aconteceu de eu chegar a passagens que
explicaram as coisas. Mas esqueci tudo isso; pois, embora eu seja um
homem de leitura, sou um que não retém nada.

Tudo o que pode fazer, comenta Montaigne, é dizer o que ele parece saber
em um determinado momento. De todo modo, ele não quer nem mesmo saber
tudo. É mais importante para ele viver agradavelmente e sem grande esforço.
Quando lê, é apenas para entretenimento; ou, se o tomo for mais sério, deve
lhe mostrar uma forma clara de autoconhecimento ou uma maneira para viver
e morrer bem.
Montaigne contradiz a si mesmo em várias passagens, porém não é
necessariamente um sinal de fraqueza. Como diria Walt Whitman alguns
séculos mais tarde: “Sou grande, contenho multidões”; e aqueles mesmos eus
verão as coisas de forma diferente em diferentes épocas.

Comentários finais
Na ausência de uma visão de mundo cuidadosamente elaborada, alguns
sugeriram que Montaigne não era um filósofo. No entanto, sua aversão a
grandes sistemas filosóficos ou teológicos realmente fez dele um filósofo de
um tipo muito moderno, questionando as certezas científicas e religiosas de
sua época. Sobre a questão do livre-arbítrio, por exemplo, ele põe de lado o
dogma da Igreja para tomar a posição dos estoicos de que somos parte de um
universo completo. Em seu ensaio “Sobre o arrependimento”, ele se pergunta
por que se arrepender de qualquer coisa faz sentido: “A sua mente não pode,
por desejo ou pensamento, alterar sequer a menor parte sem perturbar toda a
ordem das coisas, ou mesmo o passado e o futuro”.
Com essa perspectiva, fazia sentido que Montaigne não pudesse se levar
demasiado a sério, e, ao fazê-lo, evitou as mentiras que a maioria das pessoas
diz a si mesma. Ele contrapõe dois filósofos, Demócrito e Heráclito. O
primeiro era conhecido por sua visão zombeteira e amarga da vida humana,
enquanto o último ficou conhecido como o filósofo chorão, de tão profundas
que eram a sua piedade e a compaixão frente à condição humana. Montaigne
toma partido de Demócrito, porque o homem é tão digno de escárnio, como
um recipiente não de pecado ou tristeza, mas simplesmente de loucura. “Não
somos tão cheios de maldade”, observa ele, “quanto somos de estupidez.”
Mas o ceticismo e o fatalismo não são desculpa para uma vida dissoluta, e,
evitando paixões e extremos (a palavra “contenção” estava escrita no outro
lado da medalha), Montaigne se libertou para a contemplação e a meditação,
práticas que ele sentia que lhe revelavam algo sobre si mesmo, os outros e o
mundo. Uma das muitas frases divertidas no livro é: “É bom ter nascido em
tempos muito depravados; pois, em comparação com os outros, tu ganhas uma
reputação de virtude a um custo pequeno”.
Embora Montaigne tenha comentado a observação do satirista romano
Pérsio, “nenhum homem tenta descer para dentro de si mesmo”, ao fazer
exatamente isso ele criou um modelo para um tipo mais pessoal de filosofia.
Qualquer pessoa que vá escrever uma autobiografia faria bem em lê-lo; a
pessoa vai aprender que é menos interessante registrar “Como eu fiz isso” do
que “Como seria ter sido eu” – isto é, uma pessoa que vive neste período e
neste lugar com estas limitações e este potencial.

Montaigne
Michel de Montaigne nasceu em 1533, filho de um latifundiário de Dordogne e
de sua esposa, ambos judeus sefarditas. Recebeu uma excelente educação,
conhecendo o latim aos 7 anos de idade, e, na adolescência, estudou na
Universidade de Bordeaux e na de Toulouse. Exerceu a advocacia e foi
conselheiro no Parlamento de Bordeaux, onde conheceu seu mentor, Etienne
de la Boétie, e trabalhou por um tempo na corte de Carlos IX.
Em 1570, Montaigne voltou às propriedades da família em Perigord, que
ele tinha herdado, e minimizou suas obrigações para que pudesse se concentrar
nos estudos; passou os nove anos seguintes lendo, escrevendo e pensando. Sua
biblioteca ficava em uma torre circular acima dos prédios da propriedade, para
que ele pudesse ver o que estava acontecendo sem se envolver demais. Ele
escreveu: “Miserável, na minha opinião, é o homem que não tem lugar em sua
casa onde possa estar sozinho, onde possa atender às suas necessidades em
particular, onde possa se esconder!”.
Depois de viajar de um balneário a outro da Europa em busca de cura para
seus cálculos biliares muitas vezes doloridos, Montaigne foi chamado de volta
para casa quando eleito (contra sua vontade) prefeito de Bordeaux, uma
posição antes ocupada por seu pai. Ele cumpriu dois mandatos.
Seu casamento foi arranjado, e sua esposa quase não é mencionada n’Os
ensaios. Mais tarde, ele adotou como filha Marie de Gournay, uma jovem que
veio conhecê-lo por meio de seus escritos. Ele morreu de um abscesso
amigdaliano em 1592.
1970

A soberania do bem

“Precisamos de uma filosofia moral em que o conceito


de amor, tão raramente mencionado por filósofos,
agora possa voltar a ser central.”

“[O] que está aqui em jogo é a liberação da moral e da


filosofia como um estudo da natureza humana a partir
do domínio da ciência: ou melhor, a partir da
dominação de ideias inexatas da ciência que
assombram filósofos e outros pensadores.”

“O ‘autoconhecimento’, no sentido de uma


compreensão diminuta de seu próprio maquinário,
parece-me, exceto em um nível bastante simples,
geralmente uma ilusão […] É tão difícil ver o eu de
forma correta quanto outras coisas, e, quando a visão
clara é alcançada, o eu se transforma em um objeto
correspondentemente menor e menos interessante.”

Em resumo
Os esforços que fazemos para melhorar moralmente a nós mesmos são
concretos. Tentar criar alguma medida empírica disso seria ridículo e não
poderia diminuir ou questionar sua realidade.
Na mesma linha
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
Platão, A República (p. 308)
Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas (p. 398)
Iris Murdoch

Mais conhecida como romancista (a revista Time incluiu Under the Net [Sob a
rede] na lista dos 100 principais livros do século XX), Iris Murdoch também
escreveu duas importantes obras de filosofia: Metaphysics as Morals [Metafísica
como moral] e A soberania do bem. O último foi escrito quando o
existencialismo estava muito em voga e parecia ser o herdeiro intelectual da
filosofia ocidental.
Mas Murdoch descreve o existencialismo como “uma doutrina irrealista e
superotimista e fornecedora de certos valores falsos”. Também rejeita o
utilitarismo e o behaviorismo que estavam na moda devido a seu foco em
resultados externos em vez da sugestão de que o desenvolvimento de
qualidades interiores, ainda que um projeto menos óbvio, é tão valioso quanto
esses resultados.
O título do livro refere-se à noção de Bem em Platão, uma realidade sem
forma ou ordem que sustenta o universo e da qual os seres humanos só
podem ter vislumbres e, no entanto, passam a vida perseguindo, em geral, de
forma inconsciente. Embora os filósofos modernos menosprezem essa ideia
com prazer, Murdoch acreditava que o Bem era o conceito central da filosofia
moral (e, aliás, da própria vida, mesmo em um universo que não parece ter
qualquer significado).
Os tópicos abaixo seguem mais ou menos a organização de A soberania do
bem, que consiste em três capítulos originalmente compostos como artigos ou
palestras.
A ideia da perfeição
Com toda a nossa fragilidade, o mandamento “seja perfeito” faz
sentido para nós. O conceito de Bem resiste à queda na consciência
empírica egoísta.

Murdoch começa com uma discussão do filósofo G. E. Moore, que


acreditava que o Bem tinha uma realidade além da experiência pessoal e que a
bondade era um componente real do mundo. Filósofos posteriores, de forma
convincente, refutaram essa ideia, sugerindo que a bondade não tinha
nenhuma realidade objetiva, mas simplesmente dependia da percepção do
indivíduo. De acordo com esse ponto de vista, o “Bem deve ser pensado não
como parte do mundo, mas como um rótulo móvel para o mundo”.
Murdoch traça um retrato do “homem típico”, representado pela moderna
filosofia moral: essa pessoa tem clareza de intenção, é obstinada, sabe o que
está fazendo e o que quer, está focada em resultados e atos públicos; e sua vida
mental é essencialmente sem valor. Por fim, como sua vontade é soberana, ela
tem responsabilidade por suas ações. Murdoch chama isso de imagem
“existencialista-behaviorista-utilitarista”: existencial porque enfatiza a primazia
da vontade como único meio de causalidade em um universo de outra forma
sem sentido, e behaviorista e utilitarista em seu foco em resultados e ação, em
oposição à pessoa interior.
A autora aponta a observação de Wittgenstein de que, como os
pensamentos interiores não têm nenhum procedimento de controle interno,
tudo o que “parece” ser para nós é irrelevante. Sua analogia da mente em
relação à ação é a de que “uma roda que pode ser girada, embora nada mais se
mova, não faz parte do mecanismo”. Como crenças, sentimentos e
pensamentos não têm nenhum teste de precisão, tudo o que importa são as
nossas ações, e todo tipo de visões abstratas de bondade é, portanto, suspeito
ou sem valor.
Murdoch registra também o ponto de vista do filósofo moral Stuart
Hampshire de que “qualquer coisa que deva contar como realidade definitiva
precisa estar aberta a vários observadores”. Ela contesta, dizendo que todas
essas ideias estão erradas. Considere o exemplo de uma sogra que se esforça
para mudar a opinião que tem sobre a nova esposa do filho, desafiando seus
próprios preconceitos para ver a nora de forma mais correta ou sob uma luz
amorosa. É esse tipo de luta, tão claramente retratada na literatura, que
certamente é real, possa ela ser observada objetivamente ou não. Trata-se de
um ato moral interior de liberdade, cujo objetivo é a percepção clara. Essa
tentativa de assumir a “visão mais elevada” de outra pessoa envolve um
progresso na direção da perfeição, e essa ideia de aperfeiçoar-se em um senso
de moral é certamente básica para o ser humano e central para a filosofia
moral.

A moral não é ciência


Murdoch enfatiza que todo o vocabulário do empirismo é “rude e bruto
quando aplicado ao indivíduo humano”. Enquanto a psicanálise foi concebida
para ser a “ciência” objetiva que expunha a história de um indivíduo, Murdoch
é cética quanto à ideia de que um psicanalista pode ser um observador
científico e juiz. (Claro, o tempo provou que ela estava correta: a psicanálise é
considerada agora tão subjetiva que está fora dos limites de tratamento
terapêutico corrente.) Sua visão alternativa do indivíduo está na seguinte
observação:

Conceitos morais não se movem dentro de um mundo configurado


pela ciência e pela lógica. Eles configuram, para fins diferentes, um
mundo diferente.

Ela alega que os termos morais podem ser tratados como concretos e
universais, enquanto a linguagem moral envolve uma realidade que é
“infinitamente mais complexa e diferente do que a da ciência”. Embora a
linguagem usada para descrever a realidade moral seja “em geral idiossincrática
e muitas vezes inevitavelmente inacessível”, é “infinitamente mais complexa e
variada que a da ciência”, e ainda pode ser tratada como concreta e universal.
Além disso, é um erro colocar a “ciência” em um cesto e a “cultura” em
outro, pois a ciência é parte de nossa cultura. “Somos homens e somos agentes
morais antes de sermos cientistas”, comenta Murdoch, “e o lugar da ciência na
vida humana deve ser discutido em palavras.” É por isso que será sempre mais
importante conhecer Shakespeare antes de conhecer um determinado cientista.
A literatura é a lente por meio da qual podemos ver e entender todos os
esforços humanos, morais ou científicos.

No lugar do querer, o ver


Murdoch vê como crenças vazias tanto o existencialismo quanto o
humanismo: o primeiro acredita muito no eu e em nada mais, e o último pede
às pessoas que vivam de acordo com uma “racionalidade cotidiana” a partir da
qual qualquer tipo de seriedade moral está ausente. O indivíduo torna-se “um
princípio isolado de vontade” ou “um pedaço de ser que foi entregue a outras
disciplinas, como a psicologia ou a sociologia”. Tais filosofias de
autoafirmação estão envoltas em uma espécie de “determinismo”
pseudocientífico e, embora promovam alguns bons valores – liberdade,
racionalidade, responsabilidade, autoconsciência, sinceridade, bom senso –,
“não há, claro, menção de pecado, sem falar do amor”.
No mundo do Tractatus de Wittgenstein, Murdoch observa, julgamentos
morais não tinham vez, porque nada de valor factual poderia ser dito sobre
eles. Com outros filósofos, julgamentos morais eram simplesmente vistos
como “emoção”. Na visão existencialista, uma pessoa é um “querer” solitário
em um mar de fatos físicos. Embora não haja nenhuma visão moral da vida, o
lado positivo é a liberdade para agir. No entanto, Murdoch considera essa visão
irreal e simplista. A realidade é que a moral de uma pessoa é um projeto muito
real e importante que abrange a vida toda:
A mudança moral e a realização moral são lentas; não somos livres no
sentido de sermos de repente capazes de alterar a nós mesmos, pois
não podemos de repente alterar o que conseguimos ver e, logo, o que
desejamos e pelo que somos atraídos.

A opinião contrária a essa é nos vermos como seres presenteados com uma
infinidade de opções, desejando um curso de vida para o ser. Murdoch
claramente vê isso como um modo inferior de vida. Sua alternativa é uma
espécie de “necessidade” que os santos e os artistas conhecem bem, ou seja,
“uma consideração paciente, amorosa, dirigida a uma pessoa, uma coisa, uma
situação”, o que não é bem um caso de vontade consciente, mas de obediência.
Essa atenção instala-se por muitos anos, na verdade é vitalícia, e diminui a
importância de atos isolados de decisão. Se nossa atenção está em uma pessoa,
por exemplo, durante um longo período, “em momentos cruciais de escolha, a
maior parte do ato de escolher já terminou”. Querer não é resolver de forma
consciente, mas ser fiel ao que se ama ou vê.
Essa visão permite a grandeza da arte, que o modelo existencialista-
behaviorista enxerga como um mero subproduto indulgente da irracionalidade
humana. Na opinião de Platão, a beleza e a arte são parte da mesma coisa; o
ato de estar aberto para ver a beleza é desinteressado e assim é, em si, moral.
Para Murdoch, o que é Bom, o que é Real e o Amor estão intimamente
ligados. Onde está a atenção de uma pessoa se encontra a moral. Ao olharmos
com amor, encontramos o que é real, verdadeiro ou bom.

O que a arte nos faz enxergar


A arte perfura o véu e dá sentido à noção de uma realidade que está
além da aparência; ela exibe a virtude em sua verdadeira aparência no
contexto da morte e do acaso.

Murdoch supõe abertamente que os seres humanos são egoístas e que não
há nenhum ponto ou fim externo em qualquer sentido divino de nossa
existência. Em vez disso, somos “criaturas mortais transitórias sujeitas à
necessidade e ao acaso”. Ela não acredita em um Deus, mas também não
diviniza a razão, a ciência ou a história. Na era pós-kantiana, a liberdade, a
vontade e o poder do indivíduo são tudo, uma posição levada ao seu extremo
na filosofia moral de Nietzsche. Mas o que fazemos com essa
responsabilidade?
A resposta de Murdoch é que o significado da vida deve ser sobre como
podemos nos tornar melhores, e parte desse projeto é reduzir o tamanho de
nosso ego para que possamos ver os outros e o mundo claramente. A forma
mais óbvia de “abnegação” é a apreciação da beleza e da verdade: na natureza,
na arte e na literatura. Podemos estar remoendo alguma afronta, olhando
distraidamente pela janela, quando vemos um gavião voando e, de repente, nos
esquecemos de nós mesmos. A boa arte, não do tipo que visa simplesmente
consolar ao fornecer a fantasia, “oferece-nos um puro deleite na existência
independente do que é excelente”. Em um mundo que parece “incerto e
incompleto”, a beleza, a bondade e o amor são as únicas coisas que têm
significado. Além disso, ao contrário da crença comum, a arte e a literatura não
dizem respeito ao artista ou ao escritor; em vez disso, para serem boas, o eu do
criador deve ser retirado da equação.

Comentários finais
“Liberdade”, escreve Murdoch, “não é retirar de forma inconsequente o peso
de uma pessoa, é a superação disciplinada de si mesmo. A humildade não é um
hábito peculiar de autoanulação […] é o respeito altruísta pela realidade”. Sua
receita é retirar a atenção do eu e voltá-la em direção ao Bem, como o homem
de Platão na alegoria da caverna olhou para o Sol. Esse movimento distancia-
se também da particularidade, da variedade e da aleatoriedade do mundo.
Uma das implicações é que a busca de autoconhecimento é um tanto
ilusória. Mesmo se precisarmos encontrar esse eu ilusório e enxergá-lo
corretamente, talvez o vejamos como um “objeto menor e menos
interessante” do que tínhamos imaginado. É muito mais valioso ir além do
pessoal, usando nossa atenção e amor para tentar ver o mundo e as pessoas em
sua verdadeira luz.
A elevação da vontade ou o poder de decisão pela escola behaviorista-
existencialista é um erro, porque só o “Bem, não a vontade, é transcendente”,
comenta Murdoch. Embora a vontade seja a “energia natural da psique” que
pode ser aplicada para bons fins, o Bem revela as coisas como elas realmente
são. Não há comparação em termos de poder: a vontade é parte da pessoa, o
Bem é universal. Por isso, ela diz, “é a bondade que deveria ser almejada, e não
a liberdade ou a ação correta”. Dito isto, “a ação correta e a liberdade no
sentido de humildade são os produtos naturais de atenção para o Bem”. Em
outras palavras, busque o bem em primeiro lugar, e tudo o mais que vale a
pena virá naturalmente. Busque apenas ter vontade muscular, e isso é tudo que
você terá.

Iris Murdoch
Murdoch nasceu em 1919 e, quando criança, era apaixonada por animais, por
cantar e ler. Destacou-se na Froebel Demonstration School, em Londres, e na
Bristol’s Badminton Girls’ School. Leu Platão e Sófocles para se preparar para
a Universidade de Oxford e foi aceita no Somerville College, onde fez amizade
com Mary Midgley, que mais tarde se tornaria uma filósofa ilustre. Em Oxford,
foi influenciada pelo marxismo e, posteriormente, ingressou no Partido
Comunista.
Murdoch teve vários relacionamentos e amantes, incluindo o poeta Frank
Thompson, o historiador militar e soldado Michael Foot e o ganhador do
Prêmio Nobel Elias Canetti. Casou-se com John Bayley, estudioso da língua
inglesa de Oxford, em 1956. O casal viveu em Londres e Oxford e
permaneceu sem filhos para que Iris pudesse se concentrar em sua escrita.
Outros trabalhos incluem A cabeça decepada (1961), O unicórnio (1963) e O mar, o
mar (1978), que lhe garantiu o Booker Prize. Suas obras filosóficas incluem:
Sartre: Romantic Racionalist [Sartre: racionalista romântico] (1953), The Fire and
the Sun [O fogo e o Sol] (1977) e Metaphysics as a Guide to Morals [Metafísica
como guia da moral] (1992).
Murdoch foi diagnosticada com o mal de Alzheimer em 1996 e faleceu em
Oxford, aos 79 anos. Uma biografia, Iris Murdoch: A Life [Iris Murdoch: uma
vida], de Peter Conradi, inspirou o filme Iris, de 2001, com Judi Dench no
papel de Murdoch.
1886

Além do bem e do mal

“Psicólogos deveriam refletir sobre si mesmos antes de


insistir no instinto de conservação como o instinto
básico dos seres orgânicos. Uma coisa viva busca
sobretudo descarregar sua potência – a própria vida é
Vontade de Potência; a conservação é apenas um de
seus resultados indiretos e mais frequentes.”

“Para nós, a falsidade de uma opinião não é uma


oposição a ela: é aqui, talvez, que nossa nova
linguagem soa mais surpreendente. A questão é: até
que ponto uma opinião pode promover e preservar a
vida, preservar a espécie.”

Em resumo
Os seres humanos têm um impulso natural e saudável de serem criativos e
poderosos, e a moralidade apenas suprime e distorce esse impulso.

Na mesma linha
Martin Heidegger, Ser e tempo (p 168)
Nicolau Maquiavel, O príncipe (p. 252)
Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação (p. 364)
Slavoj Žižek, Vivendo no fim dos tempos (p. 406)
Friedrich Nietzsche

Friedrich Nietzsche via a história da filosofia como uma expressão da


“vontade de Verdade”, ainda que essa obsessão pela verdade fosse
simplesmente um preconceito arbitrário. Por que, questionava ele, os filósofos
não estão tão interessados na inverdade ou na incerteza?
Como ele escreve em Além do bem e do mal: “Apesar de todo o valor que
talvez pertença à verdade, à veracidade e ao desinteresse, é possível que um
valor maior e mais fundamental à vida devesse, em geral, ser atribuído à
aparência, à vontade da ilusão, ao egoísmo e à cobiça”. Talvez o bem e o mal
sejam mais interligados do que pensamos, apesar de (em prol da pureza)
gostarmos de vê-los como entes separados.
O bem e o mal são uma criação do homem: “Não existem fenômenos
morais, apenas uma interpretação moral dos fenômenos”. E, se assim for, isso
nos liberta para viver de acordo com nosso desejo natural de ser mais, ter mais,
fazer mais e não nos preocupar muito com os outros. O egoísmo, inclusive a
evasão, a desconfiança e um amor à dissimulação e à ironia, diz Nietzsche, são
um sinal de saúde – são as pessoas que estão sempre atrás de algum objetivo
puro e absoluto (seja na religião ou na filosofia) que estão doentes.
Embora a reação comum à leitura de Nietzsche seja o choque, existem
poucos filósofos que conseguem ser mais divertidos ou que carreguem o
potencial de realmente mudar a visão das coisas. A lista de pessoas que ele
influenciou é longa e inclui Sigmund Freud, Rainer Maria Rilke, Thomas
Mann, Heidegger, W. B. Yeats, Sartre e Foucault. Entre os filósofos
contemporâneos, Nassim Nicholas Taleb e Slavoj Žižek, embora muito
diferentes em seus conteúdos, tomam emprestado um pouco do estilo fluido,
idiossincrático e subjetivo de Nietzsche. Sua surpreendente originalidade e sua
prosa não técnica e carregada de emoção não poderiam ser mais diferentes dos
escritos acadêmicos secos e superespecializados de hoje.
Depois de um promissor início precoce (ele se tornou professor de filosofia
com apenas 24 anos), a doença e um espírito verdadeiramente independente
fizeram Nietzsche sair da corrente predominante, e seu desprezo pela filosofia
como ciência objetiva lhe permitiu escrever com um estilo pessoal brilhante e,
muitas vezes, raivoso. Embora em Além do bem e do mal algumas das pessoas ou
eventos que ele menciona sejam de sua época e não tão relevantes para os dias
de hoje, em geral suas percepções – inclusive a forma de ver a ciência e a
religião – parecem muito recentes.

Por que a “verdade” em primeiro lugar?


Os filósofos criam uma suposição de que “o certo é melhor que o incerto, que
a ilusão é menos valiosa que a ‘verdade’”, mas Nietzsche comenta que essas
avaliações só podem ser superficiais, necessárias para uma noção de eu e parte
de nossa necessidade de criar um sentimento de certeza para nossa
sobrevivência. Queremos gerar ficções lógicas a fim de compreender a
realidade. Ele alega ainda que o que a maioria das pessoas enxerga como
pensamento consciente é, na verdade, mero instinto. Nós pensamos muito
menos do que gostaríamos de acreditar.
Os filósofos, embora se vejam como mentes independentes que criam
sistemas de lógica fria e objetiva, também estão, na maioria das vezes,
meramente cuspindo quem e o que são; não são máquinas geradoras da
verdade, mas defensores de um preconceito. Kant, por exemplo, criou o
disfarce de filósofo científico para transmitir seu moralista “imperativo
categórico”, mas Nietzsche o enxerga apenas como mais um de uma longa
linha de “velhos moralistas e pregadores éticos”. E o desejo de Spinoza de
fazer sua filosofia parecer mais científica envolveu-a em um formato de
malabarismo matemático. Em suma, os filósofos não são amantes da
sabedoria, mas amantes de sua sabedoria. No cerne de cada uma de suas visões
de mundo existe uma posição moral, e o “conhecimento” é a fantasia com a
qual ele se veste. Mas Nietzsche admite que não é o primeiro a sugerir essa
ideia; Epicuro, um ex-escravo bastante realista, também destacou a
grandiosidade e a vaidade de filósofos como Platão, que apresentava verdades
aparentemente “óbvias”.

A vontade de potência e o livre-arbítrio


Nietzsche acreditava que os psicólogos estavam errados ao dizer que o instinto
mais forte nos seres vivos era o da conservação e da sobrevivência. Em vez
disso, o principal objetivo é descarregar sua potência. Esta é a famosa Vontade de
Potência (um conceito, em parte, derivado da “Vontade” de Schopenhauer).
Em suma, queremos continuar vivendo não pela vida em si, mas para que
possamos expressar nossas potências.
Considerando esse fato, o que Nietzsche tem a dizer sobre o livre-arbítrio
talvez seja surpreendente, e está resumido na declaração:

Nunca me cansarei de enfatizar um pequeno e conciso fato, a saber,


que um pensamento vem quando “ele” quer, e não quando “eu” quero.

A ideia de um ego obstinado é uma suposição; é mais preciso falar de coisas


que “alguém” faz em vez do “eu”, porque somos um complexo de sensações,
emoções e pensamentos. Nietzsche diz que a “coisa mais estranha sobre a
vontade” é que ela constitui um mecanismo que tanto dá quanto aceita ordens.
Nós nos identificamos com quem ordena (o que chamamos de “eu”), mas, na
realidade, o nosso corpo é “uma estrutura coletiva complexa, composta de
muitas almas”. Acreditamos que as nossas decisões são a base de nosso
sucesso, mas isso é como supor que o governante de uma terra é responsável
apenas por resultados, esquecendo todos os outros fatores envolvidos. Não
estamos nem totalmente no controle do que acontece, nem somos
absolutamente irresponsáveis. A verdade reside no meio do caminho, e a
crença no livre-arbítrio puro, ou no que Nietzsche chama de “moral das
intenções”, deve ser colocada na mesma categoria que a astrologia e a alquimia.
Mas como os pensamentos de Nietzsche sobre o livre-arbítrio se ajustam
com a Vontade de Potência e, de fato, em seu conceito de Übermensch5 (“super-
homem” ou “homem-além-do-homem”), o ator soberano que está livre de
todas as convenções morais e maneiras de ver habituais? A resposta é que
Nietzsche acredita que as pessoas pensam demais, quando deveriam dar livre
curso à sua Vontade instintiva de criar e dominar. A ideia de livre-arbítrio é
uma delicadeza cristã baseada em uma crença na santidade de todas as almas,
quando, na verdade, um ser humano é mais bem-visto como um animal
superior que compreende o que quer da vida. A natureza do Übermensch não é
contemplar ou racionalizar, mas fazer e criar de maneira enérgica.

Ciência, filosofia e o verdadeiro filósofo


Nietzsche gosta de enfatizar a arrogância e a insolência da ciência quando
afirma ser a única disciplina que importa na Idade Moderna, substituindo tanto
a filosofia quanto a religião. A filosofia tem “função diretiva”, afirma ele,
suprema entre todas as áreas de aprendizagem. Ele se desespera com a
renúncia da filosofia moderna de sua nobre função, especializando-se como
uma mera “teoria do conhecimento”, por exemplo; e não se surpreende que a
pessoa média veja a filosofia como tendo um rosto bastante abatido, enquanto
o rosto da ciência é feliz e confiante, afirmando ser a medida de todas as
coisas. Na verdade, diz ele, a ciência explica pouco; é apenas uma forma de
organizar o mundo de acordo com a percepção humana.
Nietzsche observa que seria perigoso, revolucionário, para um filósofo
moderno dizer que não é cético. O filósofo prefere, em vez disso, dizer que
não sabe de nada ou que nada pode ser conhecido. Mas o ceticismo é uma
“prazerosa e acalentadora papoula” que conforta seu usuário e o faz sentir
parte de seu mundo. Nietzsche comenta que essa perspectiva surge porque a
pessoa é um amálgama de diferentes raças e classes, em que nada é estável e
tudo é relativo. Tudo é pensado à exaustão, e nada é feito por meio da pura
vontade. “Objetividade” e “espírito científico” são simplesmente expressões da
paralisia da Vontade, uma doença que se espalha onde quer que a civilização
dure mais tempo. Nietzsche distingue entre “trabalhadores filosóficos” e
“homens científicos” de um lado e filósofos reais do outro. Inclui entre os
trabalhadores filosóficos Kant e Hegel, que têm buscado identificar valores e
verdades e colocá-los em alguma ordem. Mas o verdadeiro filósofo de
Nietzsche é um “dominador e legislador”, um criador cujo lema é “Portanto,
assim será !”.
A visão convencional do filósofo é que ele ou ela é sábio, prudente e vive
apartado da vida normal. Mas Nietzsche esboça uma imagem alternativa: “O
verdadeiro filósofo […] vive de forma ‘antifilosófica’ e ‘contrária à filosofia’,
sobretudo ‘imprudentemente’, e sente a obrigação e o peso de uma centena de
tentativas e tentações da vida – arrisca-se ele próprio constantemente, joga este
jogo ruim”. Os filósofos reais deveriam ser a “má consciência” de seu tempo e
sua cultura, seu trabalho deveria ser aplicar um “escalpelo de vivissecção no
peito de todas as virtudes de sua época”.
Ao fazer a pergunta “Hoje em dia a grandeza é possível?”, Nietzsche
precisa lidar com a natureza da sociedade moderna, que ele diz ser “uma
guerra geral contra tudo que é raro, estranho e privilegiado, contra o homem
superior, a alma superior, o direito superior, a responsabilidade superior, a
plenipotência criativa e a nobreza”. Acima de tudo, a pessoa moderna busca
uma vida livre do medo ou da dor. Este é um triste abandono de nosso
potencial. Em vez disso, deveríamos nos lançar à vida, qualquer que fosse o
risco, sem precisar de permissão para nada.

Moralidade do escravo e moralidade do senhor


Existe uma hierarquia natural para a humanidade, uma espécie de justiça ­-
natural. A “alma nobre”, diz Nietzsche, não gosta de olhar acima para nada; ela
olha para a frente ou para baixo, porque “sabe que está em uma altura”.
Nietzsche admite que isso é o oposto do que muitas religiões e morais
sugerem – que ficamos satisfeitos quando nos tornamos menores que os outros.
O que parece falsidade. A educação e a cultura modernas resumem-se ao
engodo, tentando exaltar o plebeu e o medíocre à custa de uma verdadeira
aristocracia do espírito.
Nietzsche desprezava a democracia e as noções de “igualdade de direitos” e
de “compaixão por todos os sofredores”, porque acreditava que essa tentativa
de nivelar o campo roubava das pessoas as condições que poderiam torná-las
grandes. A opressão, a pobreza, a violência e a seriedade de todo tipo
carregavam a oportunidade de fazer do medíocre algo substancial, pois ele
invocaria assim seus poderes criativos, a ousadia e o espírito.
Ele chamava o cristianismo de “moral do escravo”, pois ele acentuava o
“sacrifício de toda a liberdade, de todo o orgulho, de toda a autoconfiança do
espírito” e transformava o fiel em uma sombra do que poderia ser e que
ridicularizava a si próprio. No entanto, ele admira o Antigo Testamento como
uma grande obra da justiça divina.
A moral era concebida para fazer com que os seres humanos parecessem
simples e inteligíveis; se há regras comuns, então podemos todos ser julgados
da mesma forma. Mas, se olharmos para além das categorias habituais de
“bem” e “mal”, podemos ver as pessoas à sua verdadeira luz: tendo uma
crença natural e uma reverência por si mesmas. E, quando as pessoas precisam
responder a nós, é assim que deve ser. Em vez de ser algum voo de vaidade, a
potência sobre os outros é simplesmente um sinal da “alma nobre”.

Comentários finais
A desaprovação de Nietzsche do tradicional projeto filosófico – a busca de
verdades fundamentais – teve grande influência sobre as filosofias
existencialista e desconstrutivista. Infelizmente, sua aversão à “mistura de
raças”, bem como sua desaprovação da moral tradicional e dos ideais
democráticos, tornavam-no um elemento pronto para ser assumido pela
ideologia nazista (embora ele não fosse antissemita). Considerando tantos
acontecimentos horríveis do século XX, a postura de Nietzsche sobre muitos
assuntos agora parece ingênua, mas, talvez por ter sido tão pouco lido
enquanto estava vivo, ele claramente sentiu que não tinha nada a perder ao
colocar seus explosivos filosóficos debaixo da cama da Europa.
O livro tem duas seções de aforismos, nas quais é possível encontrar
pérolas como “A loucura é algo raro em indivíduos, mas em grupos, partidos,
nações e épocas é a regra” e “A ideia de suicídio é um meio de conforto
potente: com ela, muitos atravessam uma noite ruim”. Nietzsche teve pouca
sorte com as mulheres e, por conseguinte, as desprezava, mas seus aforismos
continham algumas observações interessantes sobre relacionamentos,
inclusive: “Na vingança e no amor, a mulher é mais brutal que o homem”. Mas
somente quando se chega à conclusão de que ele é demasiado tacanho ou até
mesmo desagradável, vem este: “Aquilo que se faz por amor se faz além dos
limites do bem e do mal”. O amor transcende qualquer classificação de
moralidade. Não é nem bom nem mau, mas apenas é – esse é seu poder. O
desejo de Nietzsche de ir além dos opostos é um pouco diferente do conceito
de “dualidade” em religiões orientais, nas quais a luz e as trevas, o bem e o mal
são construções mentais. Em última análise, tudo simplesmente “é” e não
necessita de rótulos.

Friedrich Nietzsche
Nietzsche nasceu em Röcken, na Prússia, em 1844. Seu pai (que morreu
quando Nietzsche tinha 5 anos) e seu avô tinham sido ministros luteranos. Ele
frequentou um internato em Pforta, depois estudou filologia clássica na
Universidade de Bonn. O jovem Nietzsche era considerado tão brilhante que
com apenas 24 anos foi nomeado professor na Universidade da Basileia.
Depois de um período em uma ordem hospitalar na Guerra Franco-Prussiana,
escreveu O nascimento da tragédia.
Marcado por uma saúde debilitada, teve de renunciar ao cargo de professor
e, a partir daí, viveu de uma modesta pensão em uma série de quartos alugados
pela Europa. Em 1889, sofreu um colapso mental (talvez causado por sífilis ou
depressão) e, posteriormente, recebeu os cuidados de sua mãe, em seguida de
sua irmã, até sua morte, em 1900.
Principais obras: Humano, demasiado humano (1878), A gaia ciência (1882),
Assim falou Zaratustra (1883-85), Sobre a genealogia da moral (1887), Crepúsculo dos
ídolos (1888), O anticristo (1888) e o autobiográfico Ecce Homo (1888).
1660

Pensamentos

“Vamos pesar o ganho e a perda na aposta de que


Deus exista. Vamos estimar estas duas possibilidades.
Se você ganhar, você ganha tudo; se perder, perde
nada. Aposte, então, sem hesitação que Ele existe.”

“A única coisa que nos consola por nossas misérias é a


diversão, e, ainda assim, essa é a maior de nossas
misérias. Pois é, principalmente, o que nos impede de
pensar em nós mesmos […] a diversão nos distrai e
nos guia imperceptivelmente na direção da morte.”

“Pois, no fim das contas, o que é o homem na


natureza? Um nada em relação ao infinito, tudo em
relação ao nada, um ponto central entre nada e tudo e
infinitamente longe de compreender qualquer um
deles […] É igualmente incapaz de ver o nada a partir
daquilo a que ele foi atraído e o infinito em que está
envolvido.”

Em resumo
Como temos pouco a perder com uma crença em um poder superior e
muito a ganhar se ele for verdadeiro, é racional que acreditemos nele.
Na mesma linha
René Descartes, Meditações sobre filosofia primeira (p. 116)
Søren Kierkegaard, Temor e tremor (p. 216)
Gottfried Leibniz, Ensaios de Teodiceia (p. 236)
Michel de Montaigne, Os ensaios (p. 276)
Blaise Pascal

Blaise Pascal possuía uma grande mente científica. Depois de construir 50


protótipos, ele inventou a calculadora mecânica, a Pascaline, que inspirou
Leibniz a construir a sua calculadora. Por meio da correspondência com
Fermat, Pascal desenvolveu a probabilidade e teve ideias brilhantes na filosofia
da matemática. Inventou a prensa hidráulica e a seringa e mostrou claramente
como os barômetros de mercúrio funcionam. A lei de Pascal relaciona-se a
uma unidade de pressão, e sua famosa aposta é apreciada como uma
contribuição para a teoria dos jogos, a probabilidade e a teoria da decisão. O
nome da linguagem de programação Pascal é uma homenagem a ele.
Como esse convicto defensor do método científico também se tornou um
defensor tão intenso da fé espiritual?
Quando Pascal morreu, foi encontrado um bilhete costurado em seu
casaco. Este registrava uma experiência mística de 23 de novembro de 1654,
depois da qual Pascal desistiu de seu trabalho em matemática e ciência e se
dedicou a questões do espírito e da filosofia. Em uma curta mas movimentada
vida, Pascal já tinha, aos 20 e poucos anos, se convertido a uma forma mais
intensa de cristianismo (jansenismo, sob a influência de sua irmã Jacqueline),
mas a saúde debilitada aos 30 anos o conduziu ainda mais a questões do lugar
dos seres humanos no universo.
Em particular, ele escrevia resmas de observações que pretendia trabalhar
para formar uma apologia do cristianismo, e, após a sua morte, esses
Pensamentos foram ordenados por sua família. Em uma época de crescente
ceticismo para com a religião estabelecida, Pascal sentiu que sua missão era
abordar o mundo irreverente, indiferente, de Montaigne, por um lado, e a
postura excessivamente racional de figuras como Descartes, que tinha morrido
apenas dez anos antes do Pensamentos ter sido compilado. Ele queria mostrar ao
leitor que o ceticismo e a resignação ao destino que a filosofia estoica oferecia
levavam a uma tristeza desorientada. Sua resposta aos dois era a simples fé. No
entanto, como as pessoas de seu tempo procuravam cada vez mais uma base
racional para suas crenças, ele teve a ideia de uma aposta que invalidaria
qualquer dúvida quanto aos benefícios da religião.

A aposta de Pascal
Se você ganhar, você ganha tudo; se perder, perde nada. Aposte, então,
sem hesitação que Ele existe.

Pascal usou seu domínio da probabilidade e da matemática para criar sua


aposta. Começa com a questão de saber se Deus existe. É algo para o qual a
razão nunca poderá fornecer uma resposta; na verdade, algo que ela não
poderá confirmar de qualquer forma. Mas ele nos pede para apostar que é
verdade. Certamente, justifica, seria loucura não arriscar em um jogo em que
potencialmente havia tanto a ganhar (“a eternidade da vida e a felicidade”) e
tão pouco a perder (uma crença que se comprovou estar errada).
Observando que apostar na existência de Deus provavelmente fará a pessoa
agir de acordo com sua crença – ou seja, ser uma pessoa melhor que está
convencida do amor de Deus –, Pascal continua a perguntar:

Agora, que mal lhe acometerá ao assumir este lado? Será fiel, honesto,
humilde, grato, generoso, um amigo sincero, verdadeiro. Certamente
não terá os prazeres venenosos, glória e luxúria; mas não terá outros?
Vou lhe dizer que assim ganhará nesta vida e que, a cada passo que der
sobre esta estrada, verá tamanha certeza de ganho, com nada a arriscar,
que finalmente reconhecerá que apostou em algo certo e infinito pelo
qual não dera nada.

Aquele que não crê pode dizer que isso pode soar atraente, mas ainda não
há nada certo aí. Muito bem, diz Pascal, não podemos ter absoluta certeza, por
outro lado, os resultados de batalhas e viagens marítimas tampouco são certos,
e não é possível saber se ainda estaremos vivos amanhã. No entanto, não é
sábio fazer uma pequena aposta em algo com pouca possibilidade de perda se
é certo que proporcionará enormes benefícios? Para si mesmo, ele diz:

Eu teria muito mais medo de estar enganado e descobrir que a religião


cristã era verdadeira do que não estar enganado ao acreditar que é
verdade.

Podemos aplicar a aposta de Pascal sem acreditar que Deus existe dessa
forma. Em vez disso, podemos apostar que existe algum tipo de verdade
absoluta ou universal, e que essa verdade é favorável. Se virmos seus efeitos
em nossa vida e comunidade, é bastante racional torná-la o centro de nossa
existência.

O lado negativo da dúvida


Pascal previu que, em uma era secular, a posição-padrão da maioria das
pessoas não seria “Não tenho nenhum motivo para acreditar, então não
acredito”. Ele acreditava na dúvida, porque tinha visto coisas suficientes que
sugeriam a inexistência de Deus. Porém, ele também chegou à visão de que a
vida não poderia ser explicada satisfatoriamente em seu plano puramente
físico. Em uma seção intitulada “Miséria do homem sem Deus”, Pascal afirma
que apenas quando nos entregamos totalmente a um poder superior
conseguimos encontrar a paz, a verdade e a felicidade. Não o fazer traz o
desespero, a escuridão, a confusão e o erro. Àqueles que perguntam por que, se
Deus é real, ele não é mais evidente, Pascal retruca: “Em vez de queixar-se de
que Deus tem se escondido, agradeça por ele revelar tanto de si”.
Ele observa que existem apenas três tipos de pessoas:

Aqueles que servem a Deus, pois o encontraram; outros que estão


ocupados em busca Dele, pois não o encontraram; enquanto o restante
vive sem buscá-Lo e sem tê-Lo encontrado. Os primeiros são razoáveis
e felizes, os últimos são insensatos e infelizes; aqueles que estão no
meio são infelizes e razoáveis.

Para Pascal, a falta de fé era uma espécie de preguiça, uma visão resumida
por T. S. Eliot em sua introdução aos Pensamentos:

A maioria da humanidade é preguiçosa, apática, absorta em vaidades,


tépida em emoções e, portanto, incapaz de muita dúvida ou muita fé; e,
quando o homem comum chama a si mesmo de cético ou incrédulo,
normalmente é uma simples pose que esconde uma falta de inclinação
ao pensar qualquer coisa até chegar a uma conclusão.

Ir além da dúvida era, na opinião de Pascal, uma grande realização humana.


Pessoas humildes acreditam alegremente, em contraste com outras, “que têm
entendimento suficiente para ver a verdade, seja lá o que possam ter contra
ela”. Esse é o desafio assinalado por ele para que as pessoas “inteligentes” de
seu tempo pensassem por meio de suas crenças em vez de cair em um duvidar
preguiçoso e irônico de tudo.

Superando nossa vaidade


Apesar de sua oposição a Montaigne, Pascal foi, no entanto, altamente
influenciado pela visão irônica da natureza humana de seu colega francês, com
sua postura de “eu desisto”. Assumimos um ar de certeza, racionalidade e
conhecimento, mas a condição geral do homem, escreve Pascal, é a
“inconstância, o tédio, a ansiedade” e, acima de tudo, a vaidade. Se uma pessoa
não consegue enxergar como o mundo é vão, disse ele, então a própria pessoa
deve ser muito vã.
Ele observa: “Temos uma visão tão sublime da alma do homem que não
suportamos ser desprezados e não estimados por alguma alma. E toda a
felicidade do homem consiste nessa estima”. As pessoas fazem coisas loucas
por amor, ou melhor, para serem amadas, e essa ação com frequência
“perturba a terra inteira, os príncipes, os exércitos, o mundo todo”. Pascal faz
uma famosa observação sobre o rosto de uma governante egípcia: “O nariz de
Cleópatra: se tivesse sido menor, toda a face da Terra teria sido alterada”.
Pequenas coisas (a beleza de uma mulher, por exemplo) podem ser o ponto em
que a história muda.
O acadêmico Pascal observa a loucura das pessoas que gastam seus dias
preciosos “perseguindo uma bola ou uma lebre”. Não é o objeto que importa,
mas a perseguição em si, porque as pessoas envidam esforços extraordinários
para evitar pensar corretamente sobre si mesmas. Ele oferece uma receita
alternativa de felicidade:

Convidar um homem a viver tranquilamente é convidá-lo a uma vida


feliz […] em que ele pode pensar em seu tempo livre sem encontrar aí
uma causa de aflição.

Às vezes, esse pensamento é expressado da seguinte maneira: “Todas as


misérias do homem vêm de sua incapacidade de sentar-se sozinho em um
quarto”. Somos tristes se não tivermos uma distração, mas a diversão,
enquanto nos diverte, guia-nos o tempo todo “de forma imperceptível na
direção da morte”. Na verdade, nossos melhores momentos são aqueles gastos
examinando nossos motivos e nossa finalidade, uma vez que corrigem a ação
errada e nos abrem para a ordem, a verdade e a intenção divinas.
Pascal ainda observa que os seres humanos são potencialmente ótimos
porque podemos reconhecer nossa própria miséria, algo que um cão ou uma
árvore não conseguem fazer. No entanto, a partir de nossa concupiscência
(nosso desejo natural por pessoas e coisas) conseguimos, de alguma forma,
elaborar uma ordem moral:

O homem não deve pensar que está no mesmo nível dos animais ou
dos anjos e não deve ignorar esses níveis, mas conhecer os dois.

Acreditar que somos apenas animais inteligentes nos deprecia, mas também
não podemos dizer que somos seres puramente espirituais. O objetivo da vida
é aceitar o fato do corpo e de nossas inclinações naturais e, ainda assim,
reconhecer nossa origem divina.

Comentários finais
Pensamentos inclui a conhecida distinção de Pascal entre a matemática e a mente
intuitiva, o esprit de géométrie e o esprit de finesse. O problema com alguém de
mente matemática é que, como está acostumado a conhecer princípios claros e
incontestes, não confia no conhecimento intuitivo. Só consegue falar em
termos de definições e axiomas, mas, como resultado dessa mentalidade
estreita e exageradamente exigente, desconhece outros tipos de saber. (Para
Pascal, Descartes foi um bom exemplo de uma mente assim.) Os princípios
intuitivos – as leis da vida, se preferir – são “sentidos em vez de vistos” e
“existe a maior das dificuldades em se fazerem sentir por aqueles que não os
percebem eles mesmos”. No entanto, eles são reais.
Então, é assim que Pascal une as visões de mundo científica e espiritual no
nível da pessoa: devemos alimentar nossa intuição ou sentido metafísico, o que
economiza muito tempo ao trilharmos nosso caminho no mundo, levando-nos
ao cerne das coisas, mas também devemos ser abertos para aceitar princípios
abstratos apreciados por meio da razão.
Talvez a frase mais famosa de Pensamentos é “Le coeur a ses raisons que la raison
ne connait point”, geralmente traduzida como “O coração tem razões que a
própria razão desconhece”. Embora a frase muitas vezes seja adequada para
explicar as ações daqueles que estão enamorados, o significado para Pascal era
mais geral. Não devemos duvidar quando podemos usar nosso poder de
raciocínio e, quando conseguimos usar o julgamento humano racional,
devemos fazê-lo. No entanto, a espécie mais elevada de raciocínio admite que
há questões em que a razão para, submetendo-se a uma ordem diferente da
realidade.
Pascal, matemático e cientista, queria apaixonadamente saber tudo que
havia para saber do mundo, mas era sábio o suficiente para admitir que nem
tudo podia ser conhecido. Deus parece querer estas duas coisas de nós: o uso
máximo de nossa razão para agir e criar no mundo e a aceitação de que somos
“seres espirituais que têm uma experiência humana”. Sobre as maiores
questões, precisamos, em última análise, nos submeter a uma inteligência maior
para que o nosso “coração” forneça uma ligação.

Blaise Pascal
Pascal nasceu em 1623, em Clermont, França. Sua mãe morreu quando ele
tinha 3 anos, e seu pai, Etienne, mudou-se com a família, incluindo as duas
irmãs, para Paris. Pascal era precocemente brilhante e participava de encontros
sobre matemática e questões filosóficas com o pai. Quando tinha 17 anos, sua
família se mudou para Rouen, onde Etienne foi nomeado comissário de
impostos. Para auxiliá-lo nos cálculos de impostos, Pascal inventou sua
calculadora mecânica.
Aos 20 e poucos anos, Pascal e sua piedosa irmã Jacqueline se converteram
ao jansenismo, uma forma de cristianismo, e se afiliaram ao mosteiro de Port-
Royal. Dois anos depois de sua experiência mística, ele publicou suas
polêmicas políticas e religiosas, “As provinciais”, para defender o jansenismo
contra o ataque dos jesuítas. No mesmo ano, ele viu sua sobrinha Margarida
ser milagrosamente curada de uma fístula lacrimal em Port-Royal.
Pascal morreu em 1662, com apenas 39 anos. A causa de sua morte é
incerta, mas provavelmente foi uma tuberculose ou um câncer de estômago.
Século IV a.C.

A República

“[A forma do bem é] a autora universal de todas as


coisas belas e corretas, mãe da luz e do senhor da luz
neste mundo visível, e a fonte imediata da razão e da
verdade no intelectual […] este é o poder sobre o qual
ele, que agia racionalmente, quer na vida pública ou
na privada, não deveria tirar os olhos.”

“Enquanto reis não forem filósofos ou filósofos não


forem reis, cidades nunca deixarão de adoecer: não,
nem a raça humana, nem nossa política ideal
começará a existir.”

“O Estado no qual os governantes são mais relutantes


para governar é sempre mais bem governado e mais
tranquilo, e o Estado em que são mais ávidos é pior.”

Em resumo
O que você acredita ser verdadeiro pode ser apenas um reflexo ruim e
distorcido da realidade. A filosofia abre a porta para um maior
conhecimento, que pode ser usado para servir seu Estado e comunidade.

Na mesma linha
Noam Chomsky, Para entender o poder (p. 92)
Cícero, Dos deveres (p. 100)
Nicolau Maquiavel, O príncipe (p. 252)
Iris Murdoch, A soberania do bem (p. 284)
Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social (p. 330)
Platão

Platão veio de uma família aristocrática que tinha um papel no Estado


ateniense havia muito tempo. Embora não saibamos muito sobre sua infância,
dizem que ele teve um amor inicial pela poesia antes de seu mestre, Sócrates, o
guiar em direção à filosofia. O principal evento de sua vida foi a morte de
Sócrates (399 a.C.), cujas perguntas estranhas se tornaram uma ameaça para o
establishment ateniense. Platão se fez presente imediatamente antes do
falecimento de seu professor e, mais tarde, escreveria relatos de seu
julgamento, dos últimos dias em uma cela e de sua morte em Apologia, Críton e
Fédon.
Após a morte de Sócrates, Platão viajou muito por toda a Grécia, a Itália e
o Egito, passando algum tempo com o filósofo Eucleides e pensadores
pitagóricos. Aos 40 anos, retornou a Atenas e fundou sua famosa academia,
que se tornou o centro da vida intelectual da cidade, ampliando os limites da
filosofia, da matemática e das ciências.
Antes de Sócrates morrer, Platão havia feito algumas tentativas de entrar na
política, primeiro após a derrota de Atenas na Guerra do Peloponeso e, um
ano mais tarde, quando a democracia foi restaurada. Mas a experiência o
desiludiu com relação à vida política, e ele concluiu que a mudança só poderia
vir por meio de uma abordagem totalmente nova para o governo. A República é
o esboço de um Estado ideal, mas também carrega a sua teoria da justiça, sua
explicação das “três partes da alma” e a sua famosa alegoria da caverna.
Apesar de ser uma das grandes obras da filosofia ocidental, ela é
relativamente fácil de ler, sem a necessidade de conhecimentos especiais, e é
uma das melhores expressões do método socrático, ou seja, perguntas e
respostas concebidas para conduzir o leitor a conclusões inescapáveis. Ao
longo de dez livros, Platão descreve como Sócrates respondeu com lógica
poderosa às ­questões e contra-argumentos de um elenco de personagens,
incluindo Glauco e Adimanto, os irmãos mais velhos de Platão, Polemarco,
cuja casa em Pireu (o porto de Atenas) é onde o diálogo acontece, seu pai
Céfalo, um ancião da cidade, e Trasímaco, um orador.

Alegoria da caverna
Enquanto a maior parte de A República é uma expressão do que Platão tinha
aprendido com Sócrates, a teoria das formas, ou ideias essenciais, é
propriamente sua. E a melhor expressão dela é a alegoria da caverna. Embora
aparentemente não esteja relacionada à teoria de justiça e governo de Platão, a
alegoria oferece seu cerne metafísico e carrega uma mensagem atemporal.
Sócrates fez seus amigos imaginarem um grupo de pessoas vivendo em
uma caverna que tem apenas uma pequena abertura para a luz do mundo
exterior. O grupo passou a vida toda na caverna, acorrentado de tal forma que
só conseguia ver as paredes e não podia se virar para ver a luz. Atrás das
pessoas há um fogo perpétuo, e entre o fogo e as paredes caminha um desfile
de pessoas carregando várias coisas, inclusive modelos de animais, cuja sombra
é projetada na parede diante dos prisioneiros. As pessoas acorrentadas só
conseguem ver as sombras dessa procissão e as suas próprias, fazendo com
que a “realidade” para elas seja um filme bidimensional de sombras, nunca as
formas originais que as lançam.
Então, chega alguém para libertar um dos prisioneiros de sua escravidão.
Em vez de o prisioneiro ficar satisfeito ao ver que o que percebiam era apenas
uma projeção, a súbita percepção deslocada é demasiada. O prisioneiro fica
ofuscado pela luz do fogo antes de ser levado para fora da caverna e ver o Sol,
que parece horrivelmente brilhante e fere seus olhos. Nesse momento o
prisioneiro começa a entender que o Sol é a verdadeira luz do mundo e a fonte
de toda a percepção. Ele se compadece de seus companheiros prisioneiros na
caverna, que ainda acreditam que o que veem vagamente é a “realidade”.
Quando o prisioneiro retorna à caverna e não consegue ver muito bem no
escuro, seus companheiros cativos alegam que sua jornada à luz foi um
desperdício de tempo que apenas danificara seus olhos. Eles não conseguem
compreender que seu mundo havia mudado para sempre, e ele próprio não
consegue se imaginar voltando à vida anterior, em que as meras aparências
valiam como verdade.
Aqui Platão está usando o Sol como metáfora para a Forma do Bem e
salientando o fato de que o reconhecimento do Bem não é fácil. Em outros
pontos, ele descreve a jornada para fora da caverna como um movimento do
“tornar-se” para o “ser”, da realidade condicional à absoluta – da experiência
mundana do ser humano à pura luz da realidade.

As recompensas de ser justo


O livro começa na verdade com a discussão de Platão sobre o sentido da
justiça. Céfalo argumenta que a justiça é simplesmente dizer a verdade e
garantir que as dívidas sejam pagas. Ele vai morrer um homem
comparativamente rico e diz que um dos benefícios da riqueza é que uma
pessoa pode morrer em paz, sabendo que todas as contas estão pagas. Mas
Sócrates pergunta se não existe algo mais para a verdade e a boa vida do que
isso.
Glauco e Adimanto justificam uma injustiça, dizendo que podemos viver
como nos convier e escapar de críticas, até mesmo prosperar. Glauco admite
que a justiça é boa em si mesma, mas desafia Sócrates a mostrar como a justiça
pode ser boa em um nível individual. Menciona a história de Giges e seu anel
mágico, que lhe deu o poder de ficar invisível à vontade; Giges, obviamente,
usa o anel para fazer coisas das quais não poderia se safar se estivesse visível.
As pessoas só agem de forma justa quando temem ser apanhadas, sugere
Glauco, e não têm nenhum interesse em ser boas apenas por ser.
Sócrates responde que agir com justiça não é uma opção, mas o eixo em
torno do qual a existência humana deve girar; a vida não tem sentido se não
tiver ação bem-intencionada. E, embora a justiça seja uma necessidade
absoluta para o indivíduo, é também a plataforma central de um bom Estado.

As três partes da alma


Platão divide a alma humana em três partes: a razão, o espírito e o desejo. A
razão é a supervisora da alma e busca os melhores resultados gerais; ela nos dá
a capacidade de tomar decisões e nos proporciona nossa consciência. O
espírito gera a ambição e a iniciativa, mas também dá origem a sentimentos
como raiva, orgulho e vergonha. O desejo envolve simplesmente os impulsos
básicos de alimentação, sono e sexo. O indivíduo torna-se justo quando não
solta as rédeas do espírito e do desejo, mas sim os molda e guia pela razão, que,
por sua vez, é influenciada pelo conhecimento do Bem, uma forma universal
básica. Assim alcançamos o equilíbrio, e nossas ações ficam, naturalmente, em
harmonia com o mundo que nos cerca.
Platão fez Sócrates recontar o mito de Er, um homem a quem os deuses
deram permissão para ver o que acontece às almas entre as vidas. Er descobriu
que as almas frequentemente eram seduzidas pela possibilidade de serem ricas
ou famosas em sua próxima vida, embora não conseguissem escolher segundo
o fato de a vida ter sido justa ou não. Aqueles que avançavam mais durante
muitas vidas naturalmente escolhiam o caminho justo. A mensagem? Sempre
buscar fazer a coisa certa é a rota eterna para uma vida plena e feliz. Assim,
Platão bate seu último prego no caixão da ideia de que a justiça é um conceito
nobre mas impraticável. Na verdade, é a única rota para a boa vida.
Apenas um “filósofo” pode desenvolver o equilíbrio certo entre as partes
da alma, diz Sócrates. O desejo principal do filósofo é que o mundo seja tão
bom quanto possível, e, para ajudar a conseguir isso, ele estará disposto a
renunciar ao que poderia naturalmente desejar. Aqueles que têm conhecimento
de verdades absolutas e estão psicológica e espiritualmente em equilíbrio têm o
dever de servir ao restante da sociedade a quem essas coisas faltam. Essa é a
relação entre a teoria de justiça e o corpo de A República de Platão, que
descreve sua visão de um Estado ideal.

O estado ideal
Platão percorre as falhas dos tipos de governo de seu tempo – timocracia,
oligarquia e tirania –, mas seu foco real é a democracia ateniense. Era uma
assembleia popular de homens cidadãos livres que se reunia regularmente para
votar questões específicas e que delegava a administração a um Conselho dos
Quinhentos. O problema de Platão com esse tipo de democracia direta é que
questões complexas relativas à política externa ou à economia, por exemplo,
estavam sujeitas ao capricho irracional do bloco de votação de um
determinado dia. Além disso, uma vez que a composição do conselho era
limitada a um ano e nenhum cidadão poderia ser membro mais de duas vezes,
havia pouco pensamento estratégico ou de longo prazo. Líderes atenienses
ganhavam poder dizendo aos eleitores o que eles queriam ouvir, quando
deveriam estar traçando um plano para a saúde do Estado. O resultado era
“uma espécie de governo agradável e desenfreado, que distribuía a igualdade
da mesma forma ao que era igual e ao que era desigual”.
A alternativa de Platão é um corpo de elite de filósofos cuja única finalidade
seria trabalhar para o bem do Estado. Brilhantes, altamente educados,
espiritualmente avançados e incorruptíveis, esses indivíduos provavelmente
prefeririam passar seu tempo em contemplação, considerando as formas
eternas (do Bem, da Beleza, ou da Verdade) que fundamentam o mundo das
aparências. Em vez disso, seriam convidados a abandonar seu estado
onisciente de felicidade e escolheriam voltar ao mundo prosaico para governar
em benefício de todos.
Platão sugere que não deveríamos esperar que uma nação ou um Estado
fosse governado corretamente por mercadores, comerciante ou soldados, mas
apenas por aqueles que têm a melhor visão geral do que constitui o bem da
sociedade. Uma sociedade liderada por soldados estaria sempre em guerra e
limitaria a liberdade de seus cidadãos; um Estado gerido por negociantes
avançaria com inveja e materialismo; e a um Estado gerido por trabalhadores
faltariam a amplitude e a profundidade intelectual de saber o que é a boa
governança ou o que é a administração adequada das relações com outros
Estados. Somente um generalista altamente educado, treinado ao longo de
muitos anos em temas abstratos (Sócrates sugere dez anos de estudo da
matemática antes de avançar para a filosofia), pode governar bem. O
conhecimento prático da administração é o mínimo de suas necessidades,
sendo a condição básica de superioridade e aptidão para reger o conhecimento
das formas espirituais essenciais de Justiça, Bem, Beleza e Temperança que se
manifestam em circunstâncias reais.
A relação que Platão cria entre a qualidade do Estado e a qualidade do
indivíduo, também conhecida como sua analogia entre a cidade e a alma, pode
parecer um pouco estranha para o leitor moderno. Hoje é provavelmente mais
comum pensar que a natureza ou a qualidade de uma nação advém da
combinação de atributos de seus cidadãos, mas Platão era da opinião contrária.
Via a ética do Estado como o impulsionador e o modelador da ação individual.

Engenharia social
Uma parte controversa de A República de Platão é a discussão do controle da
cultura. Ele acreditava que os grandes poetas e as histórias de seu tempo não
inculcavam valores morais corretos. Sim, a educação precisa concentrar-se em
instilar a ideia do Bem. Histórias contadas para crianças deveriam ser
censuradas para que seus cérebros não fossem preenchidos com imagens
negativas. Os cidadãos deveriam ser expostos à literatura que não glorificasse a
mentira, a falta de autocontrole ou a violência, pois naturalmente enfraqueciam
e corrompiam as mentes, levando ao naufrágio do navio do Estado. Pior ainda
são histórias em que personagens injustas dizem ser felizes ou vencem à custa
dos justos, ou aquelas que sugerem que ser bom é uma desvantagem.
Embora possa parecer arrogante no front cultural, Platão foi notavelmente
visionário quando o assunto era igualdade de gênero. Ele demonstra que
considerar as mulheres como fracas é, em geral, errado e defende que
mulheres que parecem ser talhadas para governar deveriam receber a mesma
educação e ter oportunidades semelhantes às dos homens. Mas era cruel
quando o assunto era vida familiar, que não via como um domínio privado,
mas sim que existia para o benefício do Estado. Ele fez Sócrates expressar uma
proposta de regulamentação do casamento e do sexo para que as pessoas
“corretas” fossem reunidas. Os filhos dessa elite seriam cuidados em berçários
do Estado, deixando os pais livres para se dedicarem ao governo. O próprio
Platão nunca se casou, o que talvez revele algo sobre seu ponto de vista nessa
área.

Comentários finais
O modelo de Platão para o indivíduo justo e equilibrado ainda funciona para
nós? Em uma cultura que parece oferecer rotas fáceis para todo tipo de prazer
e nos encoraja a expressar emoções com desinibição, sua ênfase em permitir
que a razão seja nossa governante pode parecer austera. Mas os frutos da
autodisciplina e da razão são os mesmos para uma pessoa hoje como eram
para o indivíduo da Grécia Antiga. O poder de A República não reside em
apresentar um modelo de governo (é improvável que vejamos Estados geridos
por “reis-filósofos”), mas em mostrar como as qualidades de sabedoria,
coragem, autodisciplina e justiça criam indivíduos bem equilibrados. Se as três
partes da alma estiverem em harmonia, isso é bom para nós, como pessoas,
para nossa comunidade e para o Estado a que pertencemos.
A alegoria da caverna de Platão é um precioso lembrete de que a maioria de
nós passa a vida perseguindo sombras e crendo em aparências, quando por trás
do mundo superficial dos sentidos uma esfera mais permanente da verdade
nos aguarda. Platão faz Sócrates defender que os filósofos sejam os únicos que
podem determinar essa verdade por meio de seu estudo das Formas, mas, na
realidade, cada pessoa pode ter uma noção do que é imutável e perfeito. Cada
um de nós vive em uma caverna de percepção negligente e de ilusão, que, se
nos esforçarmos, podemos abandonar.
1934

A lógica da pesquisa científica

“De acordo com a minha proposta, o que caracteriza o


método empírico é a sua maneira de expor à
falsificação, de todos os modos concebíveis, o sistema
a ser testado. Seu objetivo não é salvar a vida de
sistemas insustentáveis, mas, ao contrário, selecionar
aquele que seja comparativamente mais forte,
expondo-o todo à luta mais feroz pela sobrevivência.”

“O velho ideal científico da episteme – do


Conhecimento absolutamente certo, demonstrável –
provou ser um ídolo. A exigência de objetividade
científica torna inevitável que cada declaração
científica deva permanecer provisória para sempre.”

Em resumo
Avançamos na compreensão não ao provar teorias, mas ao tentar falsificá-
las.

Na mesma linha
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas (p. 228)
Nassim Nicholas Taleb, A lógica do cisne negro (p. 390)
Karl Popper

Quando A lógica da pesquisa científica foi publicado em Viena, em 1934, Karl


Popper tinha apenas 32 anos e trabalhava como professor de ensino médio –
um pouco surpreendente, considerando a enorme influência do livro no
pensamento do século XX. A lógica da pesquisa científica trouxe uma base sólida à
filosofia da ciência, e figuras como Imre Lakatos, Paul Feyerabend e Thomas
Kuhn seguiram em sua esteira.
A Viena dos 20 anos de Popper era um lugar de efervescência intelectual e
política. O marxismo e o socialismo eram causas populares entre os
universitários de mente revolucionária, inclusive Popper, e o “Círculo de
Viena” de positivistas lógicos estava tentando derrubar as muralhas da filosofia
com sua demarcação entre declarações comprováveis e especulação metafísica.
Essa riqueza intelectual acabaria com a ascensão do nazismo, e, em 1937,
Popper, que teve educação luterana mas tinha avós judeus, fugiu para a Nova
Zelândia, onde assumiu um cargo de professor de filosofia. Lá ele escreveu A
sociedade aberta e seus inimigos, seu famoso ataque contra o totalitarismo, antes de
se mudar para a Grã-Bretanha, onde reinou na London School of Economics
por 25 anos.
A lógica da pesquisa científica era uma reação à filosofia analítica da linguagem
que surgiu com o Círculo de Viena e era representada por Wittgenstein, que,
como se sabe, não leu Aristóteles e acreditava que todos os problemas
filosóficos podiam ser resolvidos apenas olhando para a linguagem. Em
contraste, Popper acreditava que a finalidade da filosofia era trazer clareza para
problemas do mundo real: deveria procurar nos dizer algo sobre nosso lugar
no universo. No entanto, diferentemente da engenharia ou de algum ramo da
ciência física, em que sabemos qual é o problema e partimos para trabalhar em
sua resolução, Popper afirmava que a filosofia não tem “situação-problema” –
não há fundamento de fatos aceitos para que se possa trazer uma nova
pergunta. Por isso, ele comentou: “Sempre que propomos uma solução para
um problema, devemos tentar ao máximo derrubar nossa solução, em vez de
defendê-la”.
Em outras palavras, a filosofia (e a ciência) não poderia mais se propor a
encontrar provas para comprovar uma teoria; isso não era suficientemente
rigoroso. Um verdadeiro filósofo ou cientista trabalharia para provar que ele
mesmo estaria errado, tentando encontrar falhas em qualquer teoria existente. Só
então o conhecimento poderia ser digno desse nome.

O problema da indução e sua alternativa


Popper reconheceu um buraco gigante na filosofia e na ciência: o pensamento
indutivo.
Declarações indutivas tomam o particular e, a partir dele, afirmam algo
universal. Por exemplo, a partir da observação de que todos os cisnes que
vemos são brancos, afirmamos a probabilidade de que cisnes são brancos. Mas
precisamos apenas de um caso em que isso não seja verdade (como, por
exemplo, quando cisnes negros foram descobertos na Austrália) para perceber
que o raciocínio indutivo é falho.
Ele faz a distinção entre a psicologia do conhecimento, que trata de reunir,
enfatizar ou criar relações entre os fatos, e a lógica do conhecimento, que trata
de testar o conhecimento propriamente dito. Se dizem que algo é verdade,
como podemos testá-lo? Ele pode de fato ser testado?
Para uma teoria ser considerada verdadeiramente científica, deve poder ser
provada errada – falsificada por qualquer um, com resultados que sejam
reproduzíveis. É totalmente errado acreditar que sua teoria é “comprovada”,
“verificada” ou “confirmada” se simplesmente for possível coletar casos
suficientes que pareçam demonstrá-la verdadeira:

Em vez de discutirmos a “probabilidade” de uma hipótese, deveríamos


tentar avaliar a quais testes, quais experimentos ela resistiu; ou seja,
devemos tentar avaliar até que ponto foi capaz de provar sua aptidão
para sobreviver e aguentar os testes. Em suma, devemos tentar avaliar
até que ponto ela foi “corroborada”.

Uma teoria não é real se não houver nenhuma maneira de testá-la para ver
se é falsa. Além disso, por não acreditar na indução, Popper afirma que as
teorias nunca serão final e conclusivamente verificáveis, sendo apenas
conjecturas “provisórias” que podem demonstrar aparente comprovação.

Popper sobre metafísica


A partir desses argumentos, começamos a ver como Popper aumentou o nível
de exigência na ciência, separando ideias boas de teorias autênticas. Mas ele fez
isso apenas porque acreditava no projeto científico. Descreveu teorias como
“redes lançadas para apanhar o que chamamos de ‘o mundo’: para racionalizá-
lo, explicá-lo e dominá-lo. Envidamos esforços para deixar a trama cada vez
mais fina”.
No entanto, sua exigência por rigor levou-o a denunciar a metafísica. Os
positivistas alegaram que tinham aniquilado a metafísica porque haviam
demonstrado que ela era sem sentido: ideias não podiam ser testadas pelos
sentidos ou transformadas em uma declaração impecavelmente lógica. No
entanto, como Popper enfatiza, muitas leis da ciência natural não podem ser
reduzidas a demonstrações elementares baseadas apenas em informações dos
sentidos, e não teria sido permitido seu avanço se os sentidos fossem nosso
único critério. “De fato”, escreve ele, “fico inclinado a pensar que a descoberta
científica é impossível sem a fé em ideias que sejam de uma natureza
puramente especulativa e, às vezes, até bastante nebulosa; uma fé que seja
completamente injustificável do ponto de vista da ciência e que, nessa medida,
é ‘metafísica’.”
Por último, ele não nega que uma pessoa possa ter uma forte convicção
sobre algo e possa apreender alguma verdade, só que tal convicção, pois sua
validade não pode ser testada por qualquer pessoa que assim desejar, não é
ciência. A “intuição criativa” de que falava Bergson, ou o “amor intelectual”,
como disse Einstein, são bem reais na visão de Popper, mas, por sua natureza,
não podem ser logicamente analisados.

Comentários finais
Mais adiante no livro, Popper compara o projeto científico a uma cidade sobre
a água:

A ciência não repousa sobre um leito de rocha sólido. A estrutura


arrojada de suas teorias eleva-se como se estivesse sobre um pântano.
É como um edifício erigido sobre estacas […] e se paramos de afundar
as estacas não é porque alcançamos solo firme. Simplesmente paramos
quando ficamos satisfeitos pelas estacas estarem firmes o bastante para
aguentar a estrutura, ao menos por ora.

Embora possa ser apenas uma estrutura “erigida sobre estacas”, e mesmo
que nunca nos dê a certeza que desejamos, a ciência ainda é valiosa. Veneza
não ser construída sobre um leito de rocha não diminui o fato de que é um
lugar onde vale a pena estar. Isso também vale para a filosofia.

Karl Popper
Popper nasceu em Viena, em 1902. Seu pai era advogado, mas também teve
grande interesse nos clássicos, na filosofia e em questões sociais e políticas. De
sua mãe veio a paixão pela música, e ele quase seguiu a música como carreira.
Na Universidade de Viena, envolveu-se intensamente na política de
esquerda e com o marxismo, mas, após uma revolta de estudantes, abandonou-
os por completo. Conseguiu um diploma de docente primário em 1925, obteve
o título de doutor em filosofia em 1928 e se qualificou para ensinar matemática
e física no ensino médio no ano seguinte.
O avanço do nazismo obrigou-o a deixar a Áustria e, em 1937, assumiu um
cargo na Universidade de Canterbury, na Nova Zelândia, onde permaneceu
durante o período da Segunda Guerra Mundial. Em 1946, se mudou para a
Inglaterra, onde se tornou professor de lógica e de método científico na
London School of Economics. Foi nomeado cavaleiro da rainha em 1965 e se
aposentou em 1969, mas permaneceu ativo como escritor, radialista e
palestrante até sua morte, em 1994.
1971

Uma teoria da justiça

“No entanto, uma teoria elegante e econômica deve


ser rejeitada ou revista se for falsa; da mesma forma
as leis e instituições, não importa o quanto sejam
eficientes e bem organizadas, precisam ser reformadas
ou abolidas se forem injustas.”

“Os homens devem decidir com antecedência como


precisam regular suas reclamações contra o outro e o
que deve ser a carta constitucional de fundação de sua
sociedade. Assim como cada pessoa precisa decidir
pela reflexão racional que constitui seu bem, ou seja, o
sistema de fins que seja racional para ela prosseguir,
um grupo de pessoas deve decidir de uma vez por
todas o que deve valer entre elas como justo e
injusto.”

“A concepção geral de justiça não impõe restrições


sobre que tipo de desigualdades é admissível; ela
exige apenas que a posição de todos seja melhorada.”

Em resumo
As melhores sociedades são aquelas que não oferecem simplesmente
liberdade pessoal, mas diminuem a loteria da vida ao dar chances justas para
todos.

Na mesma linha
Jeremy Bentham, Princípios da moral e da legislação (p. 70)
John Locke, Ensaio sobre o entendimento humano (p. 244)
John Stuart Mill, Sobre a liberdade (p. 268)
Platão, A República (p. 308)
Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social (p. 330)
Peter Singer, Quanto custa salvar uma vida? (p. 372)
John Rawls

John Rawls é visto como o mais importante filósofo político do século XX, e
Uma teoria da justiça é um texto-chave em filosofia moral e política por causa de
seu brilhante tratamento sobre a questão da “justiça”.
No entanto, por causa de sua insistência básica na liberdade pessoal nos
moldes de John Stuart Mill, o livro de Rawls não defende uma redistribuição
de riqueza e poder de qualquer maneira socialista. Em vez disso, seu foco recai
na igualdade de oportunidades em primeiro lugar. A famosa questão do livro é:
o que aconteceria se roubassem temporariamente dos cidadãos a consciên­cia
de seu lugar na sociedade (de sua riqueza, status etc.) e dissessem para eles
organizarem as coisas da forma mais justa possível? Como essa sociedade seria
diferente daquela que existe agora?
Esse cenário engenhoso é o cerne de Uma teoria da justiça. Porém, vamos
começar olhando o conceito básico de Rawls de uma sociedade justa por meio
de seus dois princípios orientadores de liberdade e igualdade.

A posição original e dois princípios


orientadores
Como filósofo político, Rawls foi fortemente influenciado pelas tradicionais
teorias de “contrato social” expostas por Locke e Rousseau, em que os
cidadãos voluntariamente abrem mão de algumas de suas liberdades
fundamentais em troca de proteção do Estado e da ordem. Nessas teorias, o
“estado de natureza” é a posição original antes de qualquer sistema de leis ou
justiça. Rousseau, por exemplo, comparou os custos e benefícios do tal Estado
com a vida em uma sociedade baseada na lei, concluindo que o que se perde é
mais do que compensado pelo que se ganha.
Rawls tem uma “posição original” correspondente em que um grupo de
pessoas livres se reúne para imaginar possíveis princípios pelos quais uma
sociedade pode se ordenar de forma justa. Eles incluem princípios utilitaristas
(a maior felicidade para o maior número), princípios intuicionistas (aqueles
considerados adequados ou aceitáveis pelos cidadãos) e princípios egoístas
(sociedade é organizada, se muito, pelo único benefício do indivíduo).
Imagine que você esteja neste grupo. Entre esses conjuntos alternativos de
princípios, você precisa fazer uma escolha baseada na incerteza. Se não
conhece o futuro, como pode organizar a sociedade em termos de menor dano
e potencialmente maior vantagem para todos? Uma outra maneira de ver isso
é: como cada conjunto de princípios se desenvolve se for assumido pelos
piores inimigos de seu grupo? Se optarmos por basear uma sociedade em
princípios egoístas, por exemplo, podemos imaginar que seria maravilhoso
para algumas pessoas (que têm acesso a muitos recursos e vantagens), mas
terrível para outras (que não os possuem).
Rawls propõe seus próprios princípios pelos quais uma sociedade justa
poderia ser guiada:
• deve haver liberdades fundamentais (por exemplo, de expressão, de
associação, de religião);
• as desigualdades que inevitavelmente resultem da liberdade serão
dispostas de forma a trazer mais benefícios para os mais desfavorecidos,
inclusive a plena igualdade de oportunidades.
A primeira “regra de prioridade” que norteia esses princípios é a de que a
liberdade só pode ser restringida quando resultar em outras liberdades. Como
Rawls apresenta, “uma liberdade menos extensa deve fortalecer o sistema total
da liberdade compartilhada por todos”.
A segunda regra de prioridade é que a justiça é sempre mais importante do
que a eficiência ou a utilidade dos resultados. Especificamente, as oportunidades
iguais são mais importantes do que alcançar um determinado resultado para a
sociedade inteira, ou o que algum governo possa crer ser pelo bem da
população. O indivíduo é mais importante que a massa, porque, qualquer que
seja o ganho obtido por toda a sociedade (de maneira utilitária), ele deverá
ocorrer em caráter secundário ou como resultado de todos terem a chance de
avançar.

O véu da ignorância como um caminho para a


justiça
O grande problema, como Rawls enxerga, com as teorias existentes para
alcançar uma sociedade justa reside nos vieses e preconceitos daqueles
encarregados por administrá-la. Para contornar isso, ele faz sua famosa
proposta de “véu da ignorância”.
Todos os membros na sociedade concordam com uma amnésia voluntária e
temporária. Quando o véu da ignorância desce sobre eles, eles se esquecem de
quem são e do lugar que ocupam na sociedade, de modo que a justiça para
todos seja sua principal preocupação. Afinal, observa Rawls, se alguém
soubesse que era rico, talvez quisesse se opor a impostos ou políticas de bem-
estar, não só porque isso poderia reduzir sua fortuna, mas porque talvez
pudesse se condicionar a ver o bem-estar como um princípio injusto. O véu da
ignorância elimina esses preconceitos, porque cada pessoa é cega perante sua
posição na vida.
Sob o véu da ignorância, sabemos que nossas chances de terminar em uma
boa posição, embora sejam atraentes, não são grandes. Para nos protegermos
de terminar como escravos oprimidos, por exemplo, escolheríamos uma
sociedade onde houvesse uma chance razoável de uma vida boa, qualquer que
fosse nossa posição, e muito espaço para mobilidade ascendente. Essa é uma
decisão racional, não apenas para nós, mas para nossa família e para as
gerações futuras, que serão todas afetadas.
Justiça como equidade
Rawls batiza sua posição como “justiça como equidade”. Ele a enxerga como a
herdeira da teoria do contrato social e, no entanto, como distinta de formas
utilitaristas de justiça.
Instituições sociais devem existir não apenas para trazer ordem ou proteger
a propriedade, mas para alcançar os resultados mais justos. No entanto, Rawls
rejeita o modelo utilitarista com a sua “soma algébrica das vantagens”, porque
ele não dá a devida atenção aos direitos e aos interesses individuais. Para ele, o
bem maior nunca deveria ser construído sobre a perda da liberdade para
alguns.
Ele supõe que qualquer sociedade tem escassez de recursos, e, por
conseguinte, quem fica com o que e quanto se torna a questão-chave. Enquan-
to alguns podem ver isso negativamente em termos de “redistribuição”, Rawls
o coloca em termos de “justiça social”, que envolve direitos, bem como ­-
responsabilidades, ou “a adequada distribuição dos benefícios e do ônus da
cooperação social”.
Enquanto discordam sobre o que constitui a justiça e a equidade, as pessoas
geralmente concordam que um conceito de justiça deve regular a sociedade.
Rawls sugere que, para a maioria de nós, “instituições são justas quando não
são feitas distinções arbitrárias entre as pessoas na atribuição de direitos e
deveres básicos, e quando as regras determinam um equilíbrio adequado entre
reivindicações de vantagens da vida social”.
O problema com as instituições existentes é que elas tendem a ser
distorcidas para beneficiar algumas pessoas em detrimento de outras, não por
causa de algum mérito especial, mas puramente por causa de um acidente de
nascimento ou um ponto de partida sortudo na vida. A principal tarefa da
justiça social é, portanto, acabar com a discriminação contra as pessoas com
base em fatores ou características sobre as quais elas não tiveram controle. Por
causa de sua insistência sobre a liberdade, Rawls nunca sugere que sua
sociedade ideal seria de igualdade absoluta, mas somente que, onde houver
desigualdade em riqueza ou status, ela surja apenas após ter havido um
nivelamento total do campo de atuação. As hierarquias podem ser necessárias
para administrar organizações, mas esses temas só viriam à tona dessa maneira
depois de ter havido pleno e livre acesso a empregos e posições. Embora uma
sociedade baseada na meritocracia possa ser um ideal, ela só atinge sua plena
expressão se houver igualdade de oportunidades para atingir o mérito.

Criando a sociedade justa


Na Parte Dois de Uma teoria da justiça, Rawls imagina que seus cidadãos, tendo
decidido sobre seus princípios orientadores para uma sociedade justa,
começam a trabalhar, criando uma constituição e desenvolvendo leis. Somente
após esse processo é levantado o véu da ignorância, e todos os envolvidos
podem ver sua posição na sociedade.
A ênfase escolhida na liberdade torna a sociedade um eco da constituição
norte-americana; de fato, ela acaba parecendo uma democracia liberal, com
corpos de legisladores, tribunais independentes e assim por diante. Outras
características incluem as escolas públicas, um salário social mínimo, uma
economia aberta e concorrencial e a prevenção dos monopólios. Apenas por
um princípio de “poupança justa”, a geração atual precisa separar alguns
recursos para gerações futuras.
Na Parte Três, Rawls mostra como uma sociedade baseada na justiça como
equidade será também boa e estável, pois todos os seus membros verão como
ela os ajuda a crescer em um nível pessoal, beneficiando também suas famílias.
A justiça como equidade é uma espécie de cola que une a sociedade. A
psicologia humana entra nela também: se virmos como a justiça beneficia a
todos, então romper com as leis sociais envolverá também problemas jurídicos,
que as pessoas tentarão evitar. Cooperar com um sistema justo significa nos
sentirmos justos, assim a sociedade baseada na equidade tem benefícios
pessoais, egoístas, bem como benefícios públicos. Ecoando Rousseau, Rawls
observa:

[O] desejo de expressar nossa natureza como um ser racional livre e


igual pode ser satisfeito apenas ao agirmos segundo os princípios da
retidão e da justiça como prioridade.

Ao aceitarmos ser parte de uma sociedade bem ordenada e justa,


paradoxalmente vivenciamos a liberdade. Não estamos lutando pela
sobrevivência ou por direitos, e podemos perseguir outros projetos como
desejarmos.
Mas, acima de tudo, uma sociedade baseada na justiça como equidade se
adéqua bem à nossa natureza moral. Se nosso coração estiver no lugar correto
com relação a nossos semelhantes, tudo o mais que for bom seguirá. O
problema com a visão utilitarista é que ela nos enxerga apenas como máquinas
de satisfazer desejos. Não é viável como modelo de longo prazo para uma
sociedade boa. A visão de Rawls, em contraste, leva em conta todos os aspectos
de nossa natureza, o nobre e o ignóbil.

Comentários finais
O ato de equilíbrio que Rawls tenta atingir com seus dois princípios é o de
preservar liberdades enquanto reforça a oportunidade. Onde existe
desigualdade, ela seria organizada para oferecer o maior benefício possível para
os que estivessem em situação pior na sociedade. No entanto, como muitos
enfatizaram, uma sociedade organizada para reduzir a desigualdade significa,
inevitavelmente, uma mão forte do governo e, por conseguinte, liberda­-des
reduzidas.
Anarquia, Estado e utopia (1974), o manifesto libertário de Robert Nozick,
chamou a atenção para o paradoxo inerente nos princípios de Rawls. Nozick
escreveu:

Indivíduos têm direitos, e existem coisas que nenhuma pessoa ou


grupo pode fazer com eles (sem violar seus direitos). Esses direitos são
tão fortes e de longo alcance que levantam a seguinte questão: existe
algo que o Estado e seus agentes podem fazer? Quanto espaço os
direitos individuais deixam para o Estado?

O espaço que resta é apenas para um Estado mínimo que protege contra a
violência, o roubo e a fraude e garante o cumprimento de contratos. Nada
mais forçará as pessoas a fazerem coisas por algum bem maior com o qual
podem não concordar. Embora a visão de Rawls possa colocar uma ênfase
nobre na liberdade, os críticos dizem que, na realidade, ela fornece a
justificativa para um grande Estado de bem-estar que leva a igualdade de
oportunidades aos extremos. Por outro lado, a filosofia de Rawls fornece uma
perfeita oposição aos ideais políticos individualistas no estilo Ayn Rand, que
muitos comentaristas pensam ter corrompido a sociedade e o cidadão.
Qualquer que seja seu ponto de vista, devemos admitir as boas intenções e
a humanidade de Uma teoria da justiça. Seu âmbito de aplicação e a imaginação
tornam esta obra um correspondente moderno do livro A República, de Platão:
os dois trazem uma visão de sociedade justa, uma baseada na justiça para
todos, e a outra no conhecimento superior de uma classe de elites. Apesar das
diferenças de conteúdo, o “véu da ignorância” de Rawls está em pé de
igualdade com a alegoria da caverna de Platão como uma das grandes imagens
em filosofia.

John Rawls
Rawls nasceu em 1921. Sua educação confortável em Baltimore (seu pai foi um
proeminente advogado) foi marcada pela doença e pela morte de seus dois
irmãos.
Ele frequentou a Kent School, uma escola particular em Connecticut, antes
de ir para a Universidade de Princeton. Era um estudante de primeira e
considerava entrar em um seminário episcopal. Depois de se formar com
honras em 1943, juntou-se ao exército e foi lotado no Pacífico. No Japão,
testemunhou o rescaldo dos bombardeios de Hiroshima.
Após obter seu título de doutor em filosofia moral em Princeton, Rawls foi
professor lá por vários anos, antes de receber uma Fulbright Scholarship, uma
bolsa de estudos, para Oxford, onde foi influenciado pelo ensaísta e filósofo
Isaiah Berlin. Depois de ensinar economia na Universidade Cornell e no
Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), assumiu uma cátedra em
Harvard, onde permaneceu por toda a sua carreira, influenciando muitos
filósofos emergentes, inclusive Martha Nussbaum e Thomas Nagel.
Outras importantes obras são O liberalismo político (1993), O direito dos povos
(1999), em que aplicava seus conceitos de justiça para assuntos internacionais,
e Justiça como equidade: uma reformulação (2001), além de muitos artigos.
Em 1999, Bill Clinton laureou Rawls com a Medalha Nacional de
Humanidades, observando que suas ideias tinham “ajudado toda uma geração
de norte-americanos instruídos a reavivar sua fé na democracia”. No mesmo
ano, Rawls ganhou o Prêmio Schock de Lógica e Filosofia.
Ele morreu em 2002. Um asteroide, o “16561 Rawls”, foi batizado em sua
homenagem.
1762

Do contrato social

“Renunciar à liberdade é renunciar à humanidade, aos


direitos como um homem, e igualmente a seus
deveres.”

“O pacto social, longe de destruir a igualdade natural,


substitui, ao contrário, qualquer desigualdade física
que a natureza possa ter imposto à humanidade por
uma igualdade legal e moral; de modo que, por mais
desiguais que sejam em força e inteligência, os
homens se tornam iguais por convenção e por direito.”

“Todo homem nasceu livre e senhor de si mesmo, [e]


não há quem possa, sob qualquer pretexto, sujeitá-lo
sem seu consentimento. Afirmar que o filho de um
escravo nasce escravo é afirmar que ele não nasce um
homem.”

Em resumo
Uma sociedade livre eleva e enobrece seus cidadãos, mas também implica
abrir mão de um tanto de nossa liberdade pessoal para as necessidades do
todo.

Na mesma linha
Noam Chomsky, Para entender o poder (p. 92)
Nicolau Maquiavel, O príncipe (p. 252)
John Stuart Mill, Sobre a liberdade (p. 268)
Platão, A República (p. 308)
John Rawls, Uma teoria da justiça (p. 322)
Jean-Jacques Rousseau

Uma das principais figuras do Iluminismo francês, juntamente com Denis


Diderot e Voltaire, Jean-Jacques Rousseau foi um homem de muitos interesses,
mas foram seus escritos sobre filosofia política que tiveram o maior impacto.
Rousseau seguia John Locke e Thomas Hobbes, que, antes dele, já
rejeitavam a ideia do “direito divino” ou “direito natural” de monarcas para
governar. Como eles, acreditava que a soberania estava com o povo. No
entanto, enquanto Hobbes e Locke aceitavam que fosse dado ao governante o
consentimento para governar, Rousseau levou a questão de forma mais literal:
se o poder estava realmente com o povo, então era o próprio povo que deveria
governar.
Ao pesquisar a paisagem política de sua época, Rousseau, nascido em ­-
Genebra, escreve na primeira página de Do contrato social a famosa frase:

O homem nasceu livre, e em todos os lugares ele está acorrentado.


Aqueles que pensam que são senhores de outros são, de fato, mais
escravos que eles.

É fácil ver por que ele acabou sendo expulso da França e da Suíça por tais
observações. Não poderiam ter sido uma afronta maior ao ancien régime da
Europa, que se valia dos pressupostos medievais de que todos na sociedade
tinham um lugar.
O pensamento de Rousseau teve grande influência sobre a Revolução
Francesa (depois que ele morreu, recebeu a maior honraria da França e foi
sepultado no Pantheon), mas a sua mensagem vai além de situações históricas
particulares. No fervor da liberdade e da participação política, da Revolução de
Veludo à Primavera Árabe, o fantasma de Rousseau caminha em nosso tempo
também.

A ordem social e seus benefícios


O contrato ou o pacto social de Rousseau funciona com base na seguinte
afirmação: “Por mais desiguais que sejam em força e inteligência, os homens se
tornam iguais por convenção e direito”. Ou seja, apenas por meio de uma vida
dentro de uma estrutura de leis as pessoas podem florescer. Embora possam
ser felizes (de um jeito bruto) vivendo em um estado de natureza, nunca
poderão alcançar seu pleno potencial, porque só a sociedade fornece um
ambiente que pode desenvolver virtudes humanas, e são as virtudes que
elevam o homem. A igualdade política e a liberdade não são direitos naturais,
mas os direitos necessários para o mais elevado tipo de ser humano ou
comunidade existir.
Rousseau acreditava que a liberdade não era possível, a menos que houvesse
leis. Em seu livro Cartas escritas da montanha, ele escreveu:

A liberdade consiste menos em fazer a própria vontade do que não


estar sujeito à de outro; consiste mais em não submeter a vontade dos
outros à nossa.

Um homem das cavernas olharia de sua caverna para a cidade e só veria


restrições, incapaz de apreciar o alto desenvolvimento que a civilização oferece.
Aquilo de que o homem abre mão ao sair de um estado de natureza (a
liberdade de fazer o que quiser, pilhar e roubar sem recurso à lei) é mais do
que compensado pelo que ele ganha. Ao abrir mão de suas liberdades para o
Estado, uma existência precária e arbitrária é substituída pela justiça e pelo
direito inalienável à propriedade.
Em sociedade, o homem é instado a substituir instintos e impulsos por
deveres, razão e pensamento dos outros. Na natureza, o homem é um “animal
sem imaginação e estúpido”, que, ao ingressar em uma comunidade baseada na
lei e na igualdade de direitos, se torna “um ser inteligente e um homem”. As
pessoas só existem corretamente no arcabouço de um Estado, e uma boa
sociedade enobrece os seus cidadãos, “pois ser governado apenas pelo apetite
é escravidão, enquanto a obediência a uma lei prescrita a si mesmo é
liberdade”.

Quando poder e força são legítimos?


A ideia de “a força faz o direito” era aceita sem ironia na época de Rousseau, e
em Do contrato social ele busca revelar o vazio dessa ideia:

A força é um poder físico; não vejo como seus efeitos podem produzir
moralidade. Ceder à força é um ato de necessidade, não de vontade;
isso é, na melhor das hipóteses, um ato de prudência. Em que sentido
ele pode ser um dever moral?

Quanto ao princípio de “obedecer a quem está no poder”, ele observa que,


assim que esse poder enfraquece, não há nenhuma base para obediência. A
única maneira de haver uma obrigação de ser obediente é se os que estiverem
no poder contarem com uma autoridade moral que todos reconheçam.
Portanto, ele reflete que, “como nenhum homem tem autoridade natural sobre
seus semelhantes, e como apenas a força não confere direito nenhum, toda a
autoridade legítima entre os homens deve basear-se em convenções”. E quanto
à ideia (que ainda tinha alguma credibilidade no século XVIII) de que
governantes receberam sua autoridade de Deus? A réplica espirituosa de
Rousseau a esse conceito é:

Todo poder vem de Deus, concordo; mas também toda doença, e


ninguém nos proíbe de chamar um médico.
Ele traz a ideia de uma barganha entre o povo e os déspotas, na qual o que
as pessoas parecem receber em troca é “a garantia de tranquilidade”. No
entanto, ele observa que déspotas tendem a não governar bem, e é bem
provável que desperdicem somas vultuosas de dinheiro público em guerras ou
usem o povo como bucha de canhão. E, mesmo que um indivíduo faça essa
barganha com um Estado despótico, Rousseau argumenta que não pode fazê-
lo em nome de seus filhos, pois eles são nascidos em liberdade, e “ninguém
além deles tem o direito de dispor dela”.

A vontade particular e a vontade geral


Rousseau acreditava que o problema da fidelidade pessoal a reis era que não
havia transparência ou certeza na governança. Contratos civis estavam sempre
correndo o risco de serem minados pelo capricho do soberano, enquanto que
em uma verdadeira democracia, em que cada um abre mão de bom grado de
seus direitos pelo povo ou pelo Estado como um todo, os direitos contratuais
de cada pessoa são claros e inalienáveis. Esse é o grande benefício do Estado
de direito se comparado ao governo por regime monárquico.
No entanto, ao ceder seus direitos ao Estado, é possível que a vontade
particular seja diferente da vontade geral do conjunto. O pacto social entre o
indivíduo e o Estado exige que os indivíduos que “se recusam a obedecer à
vontade geral sejam obrigados a fazê-lo pelo corpo geral”. Rousseau deixa isso
ainda mais claro: tal indivíduo será “forçado a ser livre”.
Aqui é o ponto em que Rousseau, o extremo democrata, começa a parecer
autoritário. No entanto, suas intenções eram simplesmente boas; de acordo
com seu modelo, apenas a soberania da assembleia ou da vontade popular
pode garantir o bom funcionamento de uma sociedade democrática. Ele faz
uma distinção entre a vontade de todos (ou o que todos os indivíduos querem)
e a vontade geral: enquanto a vontade de todos é simplesmente a soma de
todos os interesses e desejos particulares, a vontade geral é o interesse comum,
ou o que é realmente melhor para todos. Todos os desejos individuais
equilibram-se, e a partir desse debate emerge o interesse público mais amplo.
Rousseau adverte que devemos estar sempre atentos frente a alguns estudos
seccionais ou interesses de grupo que se tornam tão poderosos que desviam a
vontade geral. (Considerando o poder que os grupos lobistas e as associações
industriais exercem sobre os governos de hoje, ele foi muito presciente sobre
essa questão.) O Estado, se for apoiado por todos, deve existir para todos, e
não para um grupo ou uma pessoa em detrimento de outros.
A advertência de Rousseau de que não é saudável uma sociedade marcada
por uma polaridade de opiniões e rebeldias, em que ninguém está disposto a
subordinar as suas opiniões pessoais em nome do interesse geral, parece falar
de muitas das atuais democracias maduras, que são marcadas mais pelo
partidarismo do que por um espírito de cooperação. Seu foco está nas
assembleias de pessoas que tenham uma real participação no governo,
seguindo o modelo suíço com o qual ele crescera, e não previa as morosas
democracias eleitas de hoje, com seus blocos de partidos representantes e falta
de participação direta pessoal. No entanto, cada vez que ouvimos falar de um
movimento na direção de as pessoas terem maior influência no governo, existe
aí um eco de Rousseau.

Comentários finais
Enquanto Hobbes pensava que as pessoas tinham que fazer uma escolha entre
serem governadas e serem livres, Rousseau afirmava que era possível ter as
duas coisas; era possível você ser livre se seu “governante” fosse você mesmo
(na forma de um conjunto de cidadãos criado para fazer as leis). Os críticos
têm dito que, embora isso pudesse ter funcionado nos cantões suíços
familiares a Rousseau em sua juventude, esse otimismo era menos adequado ao
mundo real. No entanto, sua visão geral continua poderosa.
De fato, Rousseau sabiamente não tenta ditar uma forma ideal de governo,
uma vez que ela diferiria de acordo com o povo e o país. No entanto, em uma
seção intitulada “Dos sinais de um bom governo”, ele dá indicação de como
seria um bom Estado democrático – teria uma grande população florescente,
que se sente segura e livre dentro de suas fronteiras. Se este for o caso, a
natureza exata da estrutura de governo é acadêmica.
Enquanto houver pessoas que vivem sob regimes despóticos, Do contrato
social continuará a ser relevante. Os monarcas muitas vezes sentiram que, se
estabelecessem a paz, estariam indo bem, mas Rousseau observa que “o que
realmente faz a espécie prosperar não é a paz, mas a liberdade”. Enquanto as
pessoas “permanecerem sob o jugo” (ou seja, em uma monarquia absoluta ou
ditadura), viverão em um estado de decadência em que governantes podem
destruí-las a qualquer momento. Grandes guerras, fome e outros eventos vêm
e vão, mas o fato de uma população ser basicamente livre ou não, expresso em
uma sólida e duradoura constituição, é o que mais importa.
Do contrato social também é um eterno lembrete para as democracias
modernas, muitas das quais se tornaram representativas e excessivamente
partidárias, para melhorar sua ação. Como Rousseau alertou:

Quanto maior a harmonia que reinar nas assembleias públicas, tanto


mais […] a vontade geral será dominante; enquanto longos debates,
dissensões e distúrbios anunciam a ascensão de interesses particulares
e o declínio do Estado.

Tanto como arma intelectual contra déspotas quanto como tônico para
democracias doentes, Rousseau permanece sendo uma leitura atemporal.

Jean-Jacques Rousseau
Rousseau nasceu em 1712, e sua mãe morreu poucos dias depois. O relojoeiro
Isaac, seu pai, foi sábio e instilou nele o amor à leitura, especialmente à
literatura clássica.
Aos 16 anos, Rousseau se tornou aprendiz de gravador, mas odiava seu
chefe. Ele estava na fronteira da Savoy católica, onde fez amizade com uma
nobre, Madame de Warens. Na casa da fidalga, de quem também era amante,
ele tinha acesso a uma grande biblioteca e recebia aulas de música – acabou
depois se tornando professor de música. Durante seus 20 anos, seguiu a
carreira musical e criou um sistema de notação musical. Aos 31 anos, ganhou
experiência em política, trabalhando para o embaixador francês na República
de Veneza, mas aquele não era um papel diplomático adequado, e Rousseau
sentia-se um serviçal. Na volta a Paris, iniciou uma relação com sua lavadeira.
Tiveram cinco filhos, mas todos foram entregues a orfanatos.
Em 1749, encorajado por seu amigo Denis Diderot (da famosa
Enciclopédia), Rousseau entrou em um concurso de ensaios, que ganhou,
tornando-se uma sensação literária. Também foi um compositor de sucesso
razoável de óperas e balés e, em 1752, teve uma peça representada a Luís XV,
rei da França.
Rousseau tinha interesse profundo em educação, e seu famoso livro Emílio
ou da educação (1762) tentou mostrar como as crianças poderiam ser educadas
para que não procurassem dominar, mas ter um sentimento de igualdade para
com os outros. Ao criticar as práticas da Igreja e do dogma, Rousseau foi
duramente atacado pela Igreja. Foi forçado a fugir de Paris, e os ataques o
deixaram paranoico. Depois de um convite de seu amigo David Hume, ele
buscou refúgio na Grã-Bretanha, mas acabou se desentendendo com Hume.
Em seus últimos anos em Paris, escreveu As confissões, uma obra clássica de
autobiografia que foi publicada poucos anos depois de sua morte, em 1778.
1930

A conquista da felicidade

“Felicidade não é, exceto em casos muito raros, algo


que caia na boca como fruta madura pela simples
operação de felizes circunstâncias.”

“Gostar de muitas pessoas espontaneamente e sem


esforço talvez seja a maior de todas as fontes de
felicidade pessoal.”

Em resumo
A felicidade vem de nos entregarmos à vida, o que, em geral, diminui a
preocupação com o eu – a causa primária da infelicidade.

Na mesma linha
Aristóteles, Ética a Nicômaco (p. 32)
Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas (p. 398)
Bertrand Russell

Bertrand Russell foi um dos mais elogiados filósofos e matemáticos da época


moderna. Escreveu o monumental Principia Mathematica [Princípios
matemáticos] (com Alfred North Whitehead), muitos artigos acadêmicos e
livros sobre lógica e best-sellers como História da filosofia ocidental. Em
Cambridge, foi mentor de Wittgenstein e era um intelectual público que
apoiava causas energicamente, inclusive o comunismo (antes de Lênin e
Trotsky) e o desarmamento nuclear.
Russell herdou o título de conde aos 60 anos, casou-se quatro vezes e era
um ateu notório. Tendo vivido até os 98 anos, teve tempo suficiente para testar
a validade de suas ideias filosóficas e políticas e aplicá-las à própria vida.
Este é o valor de A conquista da felicidade. Houve uma leva imensa de livros
sobre felicidade nos últimos anos, muitos deles com base em pesquisa
empírica. Russell não teve acesso a nenhum desses dados, mas sua filosofia
carrega o atestado da verdade. Ele levou uma vida extremamente plena,
produtiva e, em grande medida, feliz, e talvez esse fato seja a melhor
propaganda do livro.

Como crescer mais feliz


No início de A conquista da felicidade, Russell admite que não foi uma criança
feliz. Seu hino favorito era “Farto da terra e cheio de pecado” [Weary of earth
and laden with my sin, em inglês]. Sobre a adolescência, ele escreve: “Eu odiava a
vida e estava continuamente à beira do suicídio, que, no entanto, era reprimido
pelo desejo de conhecer mais a matemática”. Porém, a cada ano que passa, sua
felicidade aumenta, tanto por fazer mais coisas das quais gostava como por
eliminar desejos que eram inatingíveis. Mas a principal causa de sua felicidade,
comenta ele, foi “uma diminuição da preocupação comigo mesmo”:

O interesse em si mesmo […] não leva a nenhuma atividade de


natureza progressiva. Pode nos levar a manter um diário, a procurar
um psicanalista ou, talvez, a nos tornar monges. Mas o monge não será
feliz enquanto a rotina do mosteiro não fizer com que esqueça a
própria alma.

A felicidade é impedida pela introspecção, que repousa sobre a crença de


que estamos separados uns dos outros. Ela é adquirida ao nos identificarmos
com causas, paixões e interesses e ao tornarmos o bem-estar alheio mais
importante do que o nosso. Russell não aprendeu isso por meio da filosofia,
mas pela experiência.
Sua vida foi, em parte, uma reação à moral vitoriana e à ideia de pecado.
Como Freud, ele acreditava que a repressão do sexo e do amor é muito mais
prejudicial à pessoa do que o ato em si. A repressão dos sentimentos naturais
cria uma discórdia entre a mente consciente e a inconsciente, discórdia essa
que se manifesta de diversas maneiras insalubres. A noção de pecado faz com
que nos sintamos inferiores e sozinhos e, assim, nos priva da felicidade;
assombrados e tolhidos por conflitos internos, não seremos capazes de
alcançar objetivo nenhum. Claro que a infelicidade também pode surgir
quando as pessoas não conseguem regular a sua conduta, porque não há ética
racional na qual basear seu comportamento. Russel sentia que a solução estava
na adoção de uma visão “moderna”, em que as superstições não tivessem
lugar, e na qual agiríamos apenas quando soubéssemos que nossas ações não
causariam dano a outrem.

O erro da infelicidade
A infelicidade é uma condição que não se baseia apenas em coisas que
acontecem com você. É, antes de tudo, o resultado de erros no pensamento e
na perspectiva, como diz Russell:

Visões equivocadas do mundo, ética equivocada, hábitos de vida


equivocados que levam à destruição daquele tempero e apetite naturais
para possíveis coisas de que a felicidade, seja de homens ou animais,
depende em última análise.

As causas psicológicas da infelicidade são muitas e variadas, mas uma razão


comum parece ser a privação de alguma satisfação normal enquanto jovens.
Como a satisfação é valorizada acima de tudo, a ênfase é direcionada para se
conseguir aquela coisa, e as outras atividades são relegadas a segundo plano.
Algumas pessoas acham que o estado do mundo não lhes dá nenhum
motivo para ser feliz. Contudo, Russell observa: “A verdade é que elas são
infelizes por algum motivo de que não têm ciência, e essa infelicidade as leva a
se concentrar nas características menos agradáveis do mundo em que vivem.

A vida equilibrada
A maioria das pessoas não luta pela vida – é mais uma luta pelo sucesso.
Russell observa que um empresário vai chamá-la de luta pela vida para dar
dignidade a algo essencialmente trivial:

O que as pessoas temem quando entram na luta não é não


conseguirem seu desjejum na manhã seguinte, mas sim não
conseguirem ofuscar seus vizinhos.

Para a realização da felicidade, uma noção de perspectiva e uma vida


equilibrada são tudo. Uma busca apenas pelo dinheiro não traz felicidade,
resulta em tédio. Precisamos ter interesses intelectuais se quisermos crescer e
cumprir o nosso potencial.
Russell diz que, ainda mais que o sucesso real, o esforço é um ingrediente
essencial da felicidade; uma pessoa que é capaz de satisfazer todos os
caprichos sem esforço começa a sentir que a realização de desejos não a deixa
feliz. “Ficar sem algumas das coisas que se quer”, conclui ele, “é parte
indispensável da felicidade.”

Sobre o tédio
O desejo de emoção e aventura é inato aos seres humanos, observa Russell,
sobretudo no sexo masculino. No estágio da caça na civilização, isso era
gratificado naturalmente, mas, com o advento da agricultura, tem início o
tédio. A era das máquinas diminuiu aquela prostração um pouco, mas não o
medo de se entediar. “O tédio é, portanto, um problema vital para o moralista,
pois ao menos metade dos pecados da humanidade é causada pelo medo.” A
ousada alegação de Russell é que a maioria das guerras, massacres e
perseguições é resultado do desejo de fugir do tédio. “Um certo poder de
suportar o tédio é, portanto, essencial para uma vida feliz”, afirma ele. Os
prazeres da infância devem incluir atividades que exijam esforço e criatividade,
e, por conseguinte, divertimentos passivos, como ir ao teatro ou ao cinema,
devem ser limitados. É útil cultivar a “monotonia fecunda” em uma criança em
vez de expô-la constantemente a novos estímulos.
Entre os adultos, os prazeres, como as apostas que são afastadas da
natureza, não resultam em alegria duradoura, enquanto aqueles que levam uma
pessoa ao contato com a terra são profundamente satisfatórios. Populações
urbanas sofrem de tédio apenas porque são apartadas da natureza.

Outras visões
• Russell diz que é difícil aceitarmos que outros não partilham da alta conta
que temos de nós mesmos. Sabemos que os outros têm falhas, mas
esperamos que pensem que nós não temos nenhuma. A superestimação
de nossos méritos, o amor ao poder e a vaidade levam à infelicidade.
• O sentimento de amor é o que nos dá felicidade, e não o objeto desse
sentimento. “O amor é, em si, uma fonte de prazer” e, além disso, ele
“aprimora todos os melhores prazeres, tais como a música, o nascer do
sol nas montanhas e o mar sob a lua cheia”.
• Nossa felicidade vem principalmente daqueles que são próximos a nós:
“Pouquíssimas pessoas conseguem ser felizes, a menos que todo o seu
modo de vida e sua visão sobre o mundo sejam aprovados por aqueles
com quem têm relações sociais, e mais especialmente por aqueles com
quem vivem”.
• Os pretensiosos são desagradavelmente surpreendidos pelo fracasso,
enquanto aqueles que são modestos ficam agradavelmente surpreendidos
com o sucesso. Portanto, é melhor ter baixas expectativas.
• O desencanto é uma doença, e, mesmo se for causado por circunstâncias
particulares, é sábio superá-lo o mais rápido possível. Quanto mais coisas
uma pessoa tiver em seu rol de interesses, maior sua chance de felicidade.
• Aqueles que renunciam à paternidade abrem mão de uma grande
felicidade e provavelmente sentirão insatisfação sem saber o porquê.
Nossa prole traz continuidade e a sensação de união, o que faz com que
nos “sintamos parte do fluxo da vida que flui desde o primeiro germe” e
continua para um futuro desconhecido. Russell teve mui­-tos filhos.
• Outro elemento essencial para a felicidade, a continuidade do propósito,
vem do trabalho: “Sem respeito próprio genuíno, a felicidade mal é
possível. E o homem que tem vergonha de seu trabalho mal consegue
alcançar o respeito próprio”.
• Todas as áreas da vida de uma pessoa, seja seu trabalho, o casamento ou a
criação dos filhos, exigem um esforço externo, e é o esforço em si que
cria a felicidade.

Comentários finais
A prescrição de Russell para a felicidade envolve vários elementos importantes,
entre eles o que ele chama de “áureo meio-termo” entre esforço e resignação.
Buscar a perfeição em tudo inevitavelmente causa infelicidade, enquanto que
(para usar seu exemplo curioso) a pessoa sábia ignorará a poeira que a
empregada não limpou, ou o fato de que o cozinheiro não fez o jantar
adequadamente, até o momento em que estará livre para lidar com isso de
forma não emocional. Se renunciarmos a muitas coisas, poderemos nos
concentrar naquilo que importa e no que realmente pode fazer a diferença. De
fato, a pessoa que for capaz de lidar com causas variadas de infelicidade será
aquela que permanecerá feliz.
Russell conclui (de certa forma obviamente) que a felicidade depende
“parcialmente de circunstâncias externas e parcialmente de nós mesmos”, o
que deriva da comida, do abrigo, do amor, do trabalho, da família e de uma
centena de coisas. Considerando que as fontes de felicidade estão a nosso
redor, observa ele, apenas alguém que seja psicologicamente mal ajustado
fracassará em se tornar uma pessoa feliz.
Aprofundando-se um pouco mais, ele observa que a infelicidade é o
resultado de uma falta de integração entre a mente consciente e a inconsciente,
ou entre o eu e a sociedade: “O homem feliz é aquele que não sofre de
nenhuma dessas falhas de unidade, cuja personalidade nem contradiz a si
mesma nem combate o mundo”.
Acima de tudo, a felicidade pode ser coletada a partir do direcionamento de
nossos interesses para fora, sendo menos autocentrados e evitando a inveja, a
autocomiseração, o medo, a autoadmiração e a noção de pecado. Olhar para
essas paixões conscientemente, examinar por que elas se fazem presentes e
depois enfrentá-las vão ajudar a superá-las.
Mesmo que, em termos de filosofia acadêmica, A conquista da felicidade não
seja uma das principais obras de Russell, é uma ponte entre o Russell filósofo e
o Russell homem e, por esse motivo, é fascinante. Ele defendia o “monismo
neutro”, a noção metafísica de que tudo no universo é feito da mesma
“substância”, seja ela matéria ou consciência. Portanto, somos menos
separados das outras pessoas do que imaginamos, e uma crença de que somos
uma entidade verdadeiramente separada é um erro que causará infelicidade,
porque todos os pensamentos perturbadores provêm de uma sensação de
separação indesejada e um foco no eu como algo real. Quando essa ilusão de
separação é vista pelo que ela é, fica difícil não ser feliz.

Bertrand Russell
Russell nasceu em 1872, em Trellech, País de Gales, em uma família
aristocrática influente e liberal. Seus pais eram o Visconde de Amberley e
Katherine, filha do 2º Barão de Stanley Alderley. Ficou órfão com apenas 3
anos de idade e foi educado por governantas e tutores.
Em 1890, ele entrou no Trinity College, na Universidade de Cambridge, e
seu brilho logo foi notado. Ainda na adolescência, publicou um livro sobre a
social-democracia alemã e, durante seu período em Trinity, descobriu “o
paradoxo de Russell”, que desafiou os fundamentos da teoria matemática.
Em 1903, publicou seu primeiro livro importante de lógica matemática, The
Principles of Mathematics [Os princípios da matemática], e, em 1905, escreveu o
ensaio Da denotação.6 O primeiro dos três volumes de Principia Mathematica, em
coautoria com Alfred North Whitehead, foi publicado em 1910. O trabalho
tornou Russell famoso nos campos da lógica e da matemática.
Russell ficou conhecido por seus muitos protestos antinucleares e
antiguerra, o que o levou por um tempo à prisão e causou sua demissão do
Trinity College e do City College, em Nova York. Foi laureado com o Prêmio
Nobel da Literatura, em 1950.
Doou grande parte de sua riqueza herdada, mas, em 1931, aceitou e
manteve seu condado, embora alegasse que a única vantagem era conseguir
lugares em restaurantes. Ele morreu em 1970.
2009

Justiça

“Às vezes pensamos em raciocínio moral como uma


forma de persuadir outras pessoas. Mas também é
uma forma de resolver nossas convicções morais, de
descobrir em que acreditamos e por quê.”

“A justiça é inevitavelmente crítica […] questões de


justiça estão associadas às noções concorrentes de
honra e de virtude, orgulho e reconhecimento. A
justiça não é apenas a forma correta de distribuir as
coisas. É também a forma correta de valorizar as
coisas.”

Em resumo
O objetivo da política não é simplesmente proteger a liberdade pessoal ou
econômica; ela deveria nos tornar pessoas melhores e consagrar valores
morais. Há coisas que o dinheiro não pode comprar.

Na mesma linha
Aristóteles, Ética a Nicômaco (p. 32)
Jeremy Bentham, Princípios da moral e da legislação (p. 70)
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
John Rawls, Uma teoria da justiça (p. 322)
Peter Singer, Quanto custa salvar uma vida? (p. 372)
Michael Sandel

As famosas palestras de Michael Sandel sobre filosofia política, que usam


exemplos atuais para destacar eternas questões espinhosas de justiça,
converteram uma nova geração ao entusiasmo do raciocínio moral. A maior
parte de Justiça: o que é fazer a coisa certa? consiste em uma discussão dos
argumentos de Aristóteles, Bentham, Mill, Rousseau, Kant e Rawls, e esses
capítulos são brilhantes por si sós. No entanto, a introdução de Sandel apenas
define o cenário para a declaração de sua própria filosofia.
Fiel à sua marca registrada de uso de exemplos fascinantes, o livro começa
com um relato da extorsão de preços que teve início após a passagem do
Furacão Charley, que varreu a Flórida em 2004. Na sequência da tempestade,
os postos de gasolina começaram a cobrar dez dólares por sacos de gelo que
normalmente custavam dois dólares, empreiteiros queriam 23 mil dólares para
tirar algumas árvores de um telhado, e os hoteleiros multiplicaram suas tarifas
por quatro. Alguns comentaristas notaram que, em uma sociedade capitalista,
isso já era esperado: quando a procura aumenta, os preços sobem até os
fornecedores correrem para preencher a lacuna, voltando, assim, a se
estabilizar. Mas a reação mais comum foi de indignação, porque, em vez de
serem punidos, os extorsionários estavam sendo recompensados. Sandel sugere
que a raiva era contra a injustiça em si.
O exemplo compõe perfeitamente o tema do livro: não somos sim­-
plesmente atores egoístas em uma economia, somos cidadãos em uma
sociedade. As pessoas na Flórida ficaram enfurecidas porque a maioria de nós
tem a sensação de que “uma sociedade em que as pessoas exploram seus
vizinhos em prol de um lucro financeiro não é uma boa sociedade”. Uma
sociedade boa, ou justa, é aquela em que ocorre o oposto: as pessoas se unem
em tempos difíceis, custe o que custar. Talvez seja apenas em eventos extremos
que percebamos que nossas comunidades não existem simplesmente para
“promover o bem-estar”, como um utilitarista poderia argumentar, “respeitar a
liberdade” como consideraria um libertário ou até mesmo criar a justiça em um
sentido rawlsiano. As sociedades também existem para promover a virtude – para
nos tornar pessoas melhores. Nesse sentido, Sandel recebe inspiração de
Aristóteles.

A finalidade de uma pólis


Sandel observa que Aristóteles estava preocupado com o telos das coisas: seu
fim ou propósito último. Sua concepção de justiça também se assentava na
ideia de finalidade. Um dos exemplos de Aristóteles é uma cidade que tem
apenas um certo número de flautas. Quem deveria usá-las? Elas não devem ir
para os membros mais ricos da cidade, ou para os mais bonitos ou mais
influentes, e sim para os melhores flautistas, pois as flautas foram feitas para
serem bem tocadas. O propósito de uma comunidade ou de uma cidade em si
é o de melhorar o caráter de seus cidadãos e criar uma pólis saudável para
permitir que “o bem” surja.
Sandel observa a grande diferença entre a visão de política, moral e justiça
de Aristóteles e a visão moderna: hoje em dia, acreditamos que a política
consiste em deixar os indivíduos sozinhos para decidir o que é melhor para
eles. Em contraste, Aristóteles acreditava que nos foi dado o poder do discurso
por uma razão definida: para identificar o que é bom e justo e para lhe dar voz.
A pólis nos humaniza quando poderíamos estar isolados e abandonados para
viver como animais. Ela nos dá a oportunidade de exercer a virtude moral e o
juízo que não poderíamos obter em outro lugar. Sandel refere-se ao filósofo
Robert Nozick, que alegava que o governo moderno deve ser
escrupulosamente “neutro” quando se trata de valores e crenças. Immanuel
Kant e, depois dele, John Rawls enxergaram a necessidade de definir direitos e
liberdades fundamentais, em primeiro lugar, e só então pensar em uma lei
moral ou em valores. A ideia de Aristóteles de que a finalidade da pólis é
inculcar a virtude é vista como suspeita, pois atualmente isso parece ameaçar a
liberdade individual. Por que o Estado deveria ter envolvimento em decisões
particulares? E, aliás, quem é que vai dizer o que constitui a virtude?
Em uma cultura política liberal e pluralista, a ideia de cultivar a virtude é
quase um tabu, porque evoca regimes nos quais as pessoas precisam se ater a
alguma linha moral fundamentalista. No entanto, Sandel argumenta que as
sociedades que varrem para baixo do tapete as questões morais também são,
em si, insalubres.

O mito da liberdade pessoal total


Na década de 1980, Sandel liderou a crítica à ideia de Rawls e do liberalismo
contemporâneo do “eu desconectado”, oferecendo uma perspectiva que dava
pleno reconhecimento do peso da comunidade em nossas vidas. Para Sandel, a
ênfase moderna na liberdade pessoal configura uma contradição com as
obrigações morais e políticas que também valorizamos. A solidariedade, a ­-
lealdade e a história fazem suas exigências para nós. O erro dos individualistas
é supor, como observou Alasdair MacIntyre em Depois da virtude (1981), que “o
eu é destacável de seus papéis e posições sociais e históricas”. Sandel cita deste
livro:

Sou filho ou filha de alguém, primo ou tio de alguém; sou um cidadão


dessa ou daquela cidade, membro dessa ou daquela agremiação ou
profissão; pertenço a esse clã, tribo, nação. Portanto, o que é bom para
mim tem de ser bom para aquele que pertença a esses papéis […]
[Minhas heranças familiar, social e cultural] constituem o que me foi
dado na vida, meu ponto de partida moral.
Em outras palavras, não viemos ao mundo em um vácuo, mas somos
continuação de alguma coisa – de uma história. Extirpar ou negar nosso papel
nessa história tem um efeito negativo sobre nossos relacionamentos atuais.
Não somos tão livres como gostaríamos de pensar; não é nosso eu
desconectado, mas sim nossas raízes e filiações que formam quem somos.
Tendo definido sua posição (que se tornou conhecida como visão
comunitária), Sandel toma a precaução de dizer que não está apoiando
nenhum tipo de sociedade na qual regras morais dizimem a liberdade pessoal.
Nega que sua abordagem à política de “valores e virtudes” resultará em
conservadores religiosos tentando impor suas opiniões aos outros. Em vez
disso, ele aponta que é ingênuo pensar que valores morais pessoais não podem
ou não devem desempenhar um papel na vida política moderna, uma vez que
abrangem o espectro de questões políticas e sociais, desde o casamento entre
pessoas do mesmo sexo, o aborto, até o sistema de saúde. Ele escreve:

Pedir aos cidadãos democráticos que deixem suas convicções morais e


religiosas para trás quando entram na esfera pública pode parecer uma
forma de garantir sua tolerância e respeito mútuo. Na prática, no
entanto, pode se dar o contrário. Decidir questões públicas
importantes fingindo uma neutralidade que não pode ser alcançada é
uma receita para o retrocesso e o ressentimento. Uma política
esvaziada de engajamento moral substancial empobrece a vida cívica
[…] Os fundamentalistas correm para ocupar os espaços onde os
liberais receiam entrar.

É exatamente esse o alerta feito por Slavoj Žižek em Vivendo no fim dos
tempos: é perigoso termos uma visão politicamente correta demais e liberalista
demais com relação ao respeito às visões alheias. Uma sociedade precisa ter
alguma ideia do sentido moral ao qual está se dirigindo. “Respeito espúrio”,
um termo definido por Sandel, gera ressentimento e cria retrocesso. Para uma
vida política mais robusta, deveríamos ser capazes de desafiar as convicções de
outras pessoas, bem como estar dispostos a mudar nossas convicções.

A justiça de pessoas, não de objetos


Na campanha para a presidência dos Estados Unidos de 2008, Barack Obama
nunca tentou insinuar que seus valores cristãos não teriam nenhum papel se
fosse eleito. Em vez disso, apontou que grandes problemas sociais foram
resolvidos por “mudanças em corações e mentes”, em que valores morais e
religiosos com frequência eram envolvidos. Observou que a maioria dos
grandes reformadores da América – Abraham Lincoln, Frederick Douglass,
Martin Luther King – teve motivações espirituais, portanto “os secularistas
estão errados quando pedem a quem tem uma fé que deixe sua religião de fora
antes de entrar na vida pública”. A visão de Obama separa-o do liberalismo
secular dos tempos modernos, pois reconhece que a vida não consiste apenas
em buscar fins econômicos ou profissionais, mas recebe significado por uma
dimensão moral ou espiritual. Grande parte do que faz a vida valer a pena está
além de dinheiro.
Para Sandel, uma “política do bem comum” reconhece o valor da cidadania,
do sacrifício e da prestação de serviço e conhece os limites morais dos
mercados. Na sua opinião, o que está errado na vida contemporânea está
relacionado ao ingresso do raciocínio de mercado em áreas às quais ele não
pertence: a terceirização de serviços militares pelos países, a venda de rins no
mercado aberto, pagamentos em dinheiro para melhorar o desempenho de
alunos, prisões com administração que visa ao lucro. Ainda assim, a justiça
“não é apenas a forma correta de distribuir as coisas”, diz ele. “É também a
forma correta de valorizar as coisas.”
Ele discute o caso do “Baby M”, em que uma mulher norte-americana
concordou em ter um bebê para um casal sem filhos usando o esperma do pai.
Após o nascimento, a mulher decidiu que queria ficar com a criança, e seguiu-
se uma luta pela custódia. A visão libertária seria a de que a mãe assinou
voluntariamente um contrato para abrir mão do bebê, e, como um dos
propósitos principais da lei é garantir os contratos, o Estado deveria fazer com
que o contrato se cumprisse. O primeiro juiz de fato assumiu esse ponto de
vista, mas, quando o caso foi levado a um tribunal superior, um segundo juiz
decidiu que o contrato foi feito sem o conhecimento apropriado e configurou-
o como venda de bebê. (No final, a guarda foi atribuída ao pai biológico, mas
com direito de visitação para a mãe de aluguel).
Uma resposta utilitária para a transação original entre a mãe e os pais
poderia ser: se isso for uma transação em que ambas as partes serão
beneficiadas, qual é o problema? Como argumenta Sandel, o caso é um
exemplo perfeito da visão de Kant de que as pessoas não podem ser tratadas
como um meio para um fim (a mãe) ou como uma mercadoria (a criança).
Uma criança é um fim em si mesmo, e as coisas que o dinheiro não pode
comprar devem incluir bebês e a capacidade das mulheres de se reproduzir. O
caso é um lembrete das falhas no pensamento utilitarista – existem algumas
coisas que não podemos definir de acordo com seu uso. São valiosas em si
mesmas e não como meio para atingir a felicidade de alguém. Não só não
devemos tratar os outros como objetos, mas também não devemos tratar a nós
mesmos como objetos. Sandel argumenta que, quando os Estados legislam
contra a paternidade por substituição, a venda de rins, a prostituição ou o
aborto, estão em terreno moral firme. No caso do aborto, uma sociedade pode
muito bem decidir que o direito de uma mãe de escolher é mais importante,
mas essa decisão ainda terá de ser defendida contra um cenário do raciocínio
moral kantiano.
O utilitarismo resulta em uma política de “cálculo, não de princípio”, diz
ele, em que o modo de decidir questões se dá por meio da análise do custo-
benefício. Um exemplo clássico foram os esforços da montadora Ford para
limitar as consequências e os custos do seu defeituoso modelo Pinto. O carro
tendia a explodir e incendiar-se quando recebia uma batida na traseira devido
ao posicionamento do tanque de combustível. Quinhentas pessoas morreram
nessas explosões, e muitas ficaram marcadas por queimaduras. Descobriu-se
que os engenheiros da Ford estavam conscientes dos perigos do tanque
problemático, mas não agiram, porque o benefício de salvar vidas não era
maior do que os onze dólares que teria custado para corrigir cada carro (ou
137 milhões de dólares no total de 12,5 milhões de automóveis). A Ford
chegou a essa conclusão por meio de um cálculo no qual cada vida valia 200
mil dólares e cada ferimento, 67 mil dólares, mais um total de 180 mortos se
nenhuma alteração fosse feita no carro.
Para Sandel, a moralidade precisa envolver “alguma coisa relativa à própria
maneira como os seres humanos tratam uns aos outros”, independentemente
dos resultados finais. Os direitos humanos básicos vão além de qualquer tipo
de cálculo. É possível alegar que John Stuart Mill humanizou o utilitarismo ao
afirmar que “deve ser utilidade no sentido mais amplo, fundamentada nos
interesses permanentes do homem como um ser em evolução”. Sandel admite
que Mill “salva o utilitarismo da acusação de reduzir tudo a um cálculo de
prazer e dor”, mas apenas “ao invocar um ideal moral de dignidade humana e
de personalidade independente da própria utilidade”. Ao final, parece que
mesmo a visão utilitarista precisa apelar para alguma lógica moral superior para
justificar suas conclusões.

Comentários finais
Sandel diz que a confusão entre diferentes impulsos ou convicções em termos
de a coisa certa a fazer “é o impulso à filosofia”. Certamente ele concordaria
com a conclusão de Iris Murdoch de que raciocinar a partir de nossas escolhas
e, possivelmente, alterá-las durante o processo, não é um processo fácil nem
lento. No entanto, se o fizermos, podemos ficar mais confiantes de que nossos
pontos de vista não são simplesmente “confusão ou preconceito”, como
Sandel coloca, ou mesmo um ato de autoconsistência. No sentido aristotélico,
o próprio ato de pensar e raciocinar significa que estamos cumprindo nosso
objetivo. Justiça talvez faça você rever suas suposições e questionar seus
preconceitos e o ajude a ver que ser consumidor e ser cidadão não são a
mesma coisa.

Michael J. Sandel
Sandel nasceu em Mineápolis, nos Estados Unidos, em 1953, e sua família se
mudou para Los Angeles quando tinha 13 anos. Ele se destacou na escola e na
Universidade Brandeis, antes de ganhar uma bolsa de estudos Rhodes
Scholarship para o Balliol College, Oxford.
Dá aulas em Harvard desde 1980 e ocupa a cátedra Anne T. and Robert M.
Bass. Em 2002, foi eleito membro da Academia Americana de Artes e Ciências
e, de 2002 a 2005, atuou no President’s Council on Bioethics [Conselho de
Bioética do Presidente]. Em 2005, as palestras de Justiça foram filmadas e
tornaram-se uma série de televisão em doze episódios. Em 2009, foi
convidado para dar as palestras BBC Reith; seu tema era cidadania e
perspectivas de uma “política do bem comum”.
Outros livros: Liberalism and the Limits of Justice [Liberalismo e os limites da
justiça] (1982), Democracy’s Discontent: America in Search of a Public Philosophy
[Descontentamento da democracia: a América em busca de uma filosofia
pública] (1996), Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética (2007) e O que o
dinheiro não compra: os limites morais do mercado (2012).
1943

O ser e o nada

“O homem está condenado a ser livre, porque, uma


vez lançado ao mundo, é responsável por tudo o que
ele faz.”

“Eu sou responsável por tudo […] exceto por minha


própria responsabilidade, pois não sou o fundamento
de meu ser. Portanto, tudo ocorre como se eu fosse
coagido a ser responsável. Estou abandonado no
mundo […] no sentido de que eu me vejo, de repente,
sozinho e sem ajuda, envolvido em um mundo do qual
carrego toda a responsabilidade, sem ser capaz, seja lá
o que eu faça, de me afastar dessa responsabilidade
por um instante.”

“A realidade humana não existe primeiro para agir


depois; mas, para a realidade humana, ser é agir.

Em resumo
Não há nenhuma natureza essencial no âmago de nosso ser. Somos livres
para inventar um eu e criar uma vida como desejamos.

Na mesma linha
Simone de Beauvoir, O segundo sexo (p. 62)
Martin Heidegger, Ser e tempo (p. 168)
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
Jean-Paul Sartre

O existencialismo com frequência atrai uma caricatura do lema “A vida não


tem sentido”, mas, na verdade, seu expoente mais conhecido, Jean-Paul Sartre,
foi realmente um dos maiores filósofos da liberdade humana. No entanto, não
é fácil chegar a esta constatação, devido à pura dificuldade e ao peso de seu
mais importante trabalho, O ser e o nada.
Por exemplo, na introdução, Sartre define a consciência como “um ser para
o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser enquanto este ser implica
outro ser que não ele mesmo”. A influência de Heidegger é óbvia nessa
impenetrabilidade; o que isso significa de verdade?
Para entender, deveríamos começar com a divisão básica do mundo por
Sartre em dois: coisas que têm consciência do eu (seres “para-si”); e as coisas
que não têm (as coisas “em-si”, os objetos que compõem o mundo). A
consciência existe por si, porque ela pode compreender-se. A maior parte do
livro é dedicada a esse tipo de consciência e o que ela significa para aqueles que
realmente a têm: os seres humanos.
Essencial ao pensamento de Sartre é a visão de que as pessoas não têm uma
“essência” básica. De fato, quando os seres humanos analisam seu próprio ser,
o que encontram no cerne dele é nada. Mas esse nada tem sua importância,
pois significa que somos totalmente livres para criar o eu ou a vida que
queremos. Somos livres de forma negativa, pois não há nada que nos impeça de
sermos livres. Sartre observa que “o homem, estando condenado a ser livre,
carrega todo o peso do mundo sobre os ombros; ele é responsável pelo
mundo e por si mesmo enquanto modo de ser”.
O ser e o nada capturou a atmosfera da França pós-guerra, na qual todas as
antigas certezas haviam desmoronado. Se o sistema de valores existente da
França tinha entrado nessa bagunça de guerra, ele valia alguma coisa? Sartre
representava uma nova forma de ver e de ser. As pessoas poderiam escolher seu
futuro, e foi aparentemente essa nova filosofia que empolgou uma geração.

Liberdade e responsabilidade
Sartre diz que não apenas somos responsáveis pelo que fazemos, mas também
somos responsáveis por nosso mundo. Cada um de nós está vivendo um certo
“projeto” com a nossa vida, então, seja lá o que aconteça conosco, deve ser
aceito como parte dela. Sartre chega ao ponto de dizer que “não há acidentes na
vida”.
Ele dá o exemplo de ser convocado para lutar na guerra. É errado pensar
na guerra como algo externo, que vem de fora e, de repente, assume a nossa
vida. De fato, a guerra deve se tornar a minha guerra. Eu poderia sair dela a
qualquer momento me matando ou desertando, mas, por um motivo ou outro
(covardia, inércia ou não querer deixar minha família ou meu país), eu
permaneço na guerra e, “por deixar de sair dela, eu a escolhi”. Uma guerra
depende de seus soldados para sua existência, e eu “decidi que ela existe”. Não
há motivo para vê-la como um bloco de tempo removido de minha vida,
levando-me para longe do que eu realmente quero fazer (seguir uma carreira,
ter uma família e assim por diante); por estar na guerra, eu devo assumir a
responsabilidade completa por ela e pelo meu tempo nela. “Eu escolho a mim
mesmo todos os dias”, como Sartre coloca. O estado de ser da humanidade é
uma constante escolha de si mesmo. As pessoas podem desejar ter vivido em
outro tempo para evitar estar na guerra, mas o fato é que elas fazem parte da
época que levou à guerra, e estar em qualquer outro momento contrariaria esse
fato. “Assim, sou esta guerra” – minha vida é uma expressão da época em que
vivo, de modo que desejar outra vida é uma fantasia ilógica, sem sentido.
Sartre comenta que estamos “abandonados” no universo. A angústia vem
da percepção de que não somos “o fundamento de nosso próprio ser” (ou
seja, não inventamos a nós mesmos nem escolhemos nosso nascimento) e não
podemos ser o fundamento do ser de outras pessoas. Tudo o que podemos
fazer é escolher o significado de nosso ser, vendo tudo no mundo como uma
oportunidade (seja aproveitada, não aproveitada ou faltante em primeiro lugar).
Aqueles que percebem que escolhem o significado de seu ser, mesmo que esse
seja um pensamento assustador, são absolutamente livres. Podem viver sem
desculpas, arrependimentos ou remorso e ter absoluta responsabilidade por
suas ações.
O objetivo humano é perceber e apreciar nosso ser e nossa liberdade.
Outros objetivos que criamos como substitutos daquele indicam um “espírito
de seriedade”, que sugere erroneamente que o que estou fazendo é crucial.
Como Sartre observa: “O sucesso não é importante para a liberdade”. Para
sermos livres, não precisamos alcançar o que queremos, temos simplesmente
que ser livres para fazer uma escolha.
Viver como se nossas ações fossem cruciais ou passar a nossa vida tentando
viver de acordo com algum tipo de sistema de valores morais universais é uma
espécie de má-fé. Apenas ao realmente escolhermos por nós mesmos o que
seremos a cada minuto, criando nossa vida como se ela fosse uma obra de arte
decorrente dessa liberdade total, perceberemos nosso potencial como seres
humanos.
A declaração de Sartre de que “o homem é o que não é e não é o que é”
significa que não podemos escapar à nossa “facticidade”, a fatos de nossa
existência, como nosso gênero, nacionalidade, classe ou raça. Todos esses fatos
oferecem um “coeficiente de adversidade” que torna qualquer tipo de
realização na vida uma batalha árdua. E, no entanto, nem somos simplesmente
a soma das nossas facticidades. O problema é que evitamos fazer coisas
totalmente novas, coisas que não sejam características, porque valorizamos a
coerência em nós mesmos. Coerência, ou caráter, é tanto uma forma de
segurança quanto a lente através da qual podemos visualizar e compreender
nosso mundo, mas é, em grande medida, uma ilusão. Sartre diz que, apesar de
todos os fatores limitantes de nossa existência, somos mais livres do que
imaginamos.

Má-fé
O famoso conceito de Sartre de “má-fé” (mauvaise foi) repousa sobre uma
distinção entre dois tipos de mentira: a mentira regular, que implica que “o
mentiroso, na verdade, está em plena posse da verdade que está escondendo”,
cuja mentira se refere a algo no mundo dos objetos, expressando a visão de
que eu e outros estamos separados; e a mentira para si mesmo, uma mentira de
consciência que não envolve uma separação entre o enganador e o enganado.
Essa segunda mentira é menos absoluta, mas mais grave, já que se trata de um
voo para longe de nossa liberdade. Como Sartre explica:

Então, a má-fé tem em aparência a estrutura da mentira. Só o que


muda tudo é o fato de que na má-fé é de mim mesmo que estou
escondendo a verdade.

A má-fé exige que uma pessoa aceite as coisas de cara e repousa sobre uma
resistência à ideia de desvelá-las completamente para encontrar a verdade. Se
não for uma mentira deslavada, é convencer a si mesmo a não olhar perto
demais, caso se encontre algo de que não se goste.
Sartre dedica várias páginas a refutar Freud. Freud acreditava que as
escolhas e as ações das pessoas são constantemente sequestradas pela mente
inconsciente, mas, quando Sartre se sentou para ler casos de Freud, descobriu
que as pessoas no divã do médico vienense eram simplesmente exemplos de
estados patológicos de má-fé. Outro psiquiatra vienense, Stekel, concordou
com Sartre e escreveu: “Toda vez que fui capaz de avançar o suficiente em
minhas investigações, estabeleci que o cerne da psicose era consciente”. De
fato, Sartre recebera de bom grado a revolução na terapia cognitiva dos
últimos quarenta anos, que descarta a ideia de que somos sabotados por
compulsões subterrâneas e salienta que, na verdade, podemos condicionar
nosso pensamento.
No entanto, a liberdade é um fardo, e por isso tantas pessoas escapam para
a má-fé. Sartre observa que a má-fé pode ser um modo de vida normal, com
apenas breves e ocasionais despertares de boa-fé. Aqueles de má-fé conseguem
enxergar claramente o que estão fazendo, mas optam por se enganar quanto à
sua importância. Ele dá o exemplo de uma mulher que concordou em ir a um
primeiro encontro com um homem. Embora ela não tente impedir os atos de
flerte e declarações de amor ou afeto por ela, ao mesmo tempo não toma
nenhum tipo de decisão sobre o relacionamento. Então, o que ela faz? Para
continuar a desfrutar o encanto da noite, ela reduz as declarações do homem
apenas a seu significado literal. Quando ele diz a ela “eu acho você tão
atraente”, ela cuida para não aceitar nenhum outro significado (como “Quero
dormir com você” ou “Quero um relacionamento sério”). Quando ele pega a
mão dela, ela não quer destruir a noite puxando-a, portanto finge para si
mesma que não notou sua mão na dele. Ver o próprio corpo como mero
objeto tem o efeito de preservar sua liberdade. Ela não fechou nenhum
compromisso, ou, pelo menos, essa é a forma como ela escolhe ver a situação.
No entanto, ao separar seu corpo, ou os “fatos” da situação, de seu eu
transcendental (seu verdadeiro “eu”, se quiser), ela está criando uma mentira
para servir a uma finalidade específica: a manutenção de um sentido de
liberdade ou não compromisso.
Todo mundo funciona entre a má-fé e a boa-fé o tempo todo, mas Sartre
diz que é possível alcançar a autenticidade, que significa simplesmente uma
pessoa “ser o que é”, por meio da “reassunção do ser”. Para essa pessoa, a
franqueza “deixa de ser seu ideal e se torna, em vez disso, seu ser”. Isso não
acontece naturalmente; uma pessoa se torna sincera, ou o que ela é, apenas
como ato consciente.
Liberdade e relacionamentos
Pode parecer uma pergunta óbvia, mas por que seres humanos são obcecados
por relacionamentos? A resposta de Sartre é que, embora cada um de nós seja
um ser consciente, também precisamos de outros para nos vermos e nos
tornarmos “reais”. O problema em relacionamentos é que tentamos
transformar outras consciências livres (pessoas) em objetos, o que nunca é
possível.
A implicação das visões de Sartre é que nossa melhor opção de felicidade
ou sucesso nos relacionamentos é reconhecer e permitir a liberdade do outro,
apesar de nosso desejo natural de nos “apropriarmos” dela. Temos de ver a
pessoa como um ser livre, e não simplesmente a soma de suas facticidades.
Podemos tentar tornar os outros dependentes de nós, emocional ou
materialmente, mas nunca poderemos possuir sua consciência. “Se Tristão e
Isolda [o mítico par amoroso] caem loucamente apaixonados por causa de uma
poção de amor”, escreve Sartre, “ficam menos interessantes” – porque uma
poção cancelaria sua consciência.
Não é apenas a pessoa que queremos possuir como objeto, mas sua
liberdade consciente de nos querer. Nem mesmo uma promessa ou um voto
chega a esse nível; de fato, esses atos não são nada em comparação com a
plena doação de uma pessoa para outra em espírito. Como comenta Sartre: “O
Amante quer ser ‘o mundo inteiro’ para o amado”. Para a outra pessoa, “eu
devo ser aquele cuja função é fazer com que as árvores e a água existam”.
Devemos representar para a outra pessoa o limite final de sua liberdade, onde
ela escolhe voluntariamente não ver mais nada. Para nós, queremos ser vistos
pelo outro não como objeto, mas como algo sem limites:

Eu não preciso mais ser visto no terreno do mundo como um “isto”


entre outros “istos”, mas o mundo deve ser revelado a partir de mim.

Sartre diz que relacionamentos românticos são tão potentes porque unem o
estado de Nada de uma pessoa ao Ser de outra pessoa. Em termos simples,
quando nos apaixonamos por alguém, esse alguém parece preencher um
buraco. Dependemos do Outro para nos fazer existir (caso contrário, somos o
estado do Nada). Mas estamos perpetuamente inseguros no amor, porque a
qualquer momento podemos nos tornar, em vez de o centro do mundo do
amante, apenas uma coisa entre muitas. Assim, para Sartre, esse empurra e
puxa entre objetividade e subjetividade está no cerne de todos os conflitos e
problemas não resolvidos no amor. Os relacionamentos são uma eterna dança
entre amantes que querem perceber mutuamente a liberdade do outro e ver o
outro como objeto. Sem o outro ser livre, eles não são atraentes, mas, se não
são de alguma forma um objeto, não podemos tê-los. É apenas no
reconhecimento da total liberdade do outro que poderemos dizer que o
possuímos de alguma maneira. Talvez reduzirmos a nós mesmos a um objeto a
ser usado pelo outro, mas voluntariamente, seja, de um jeito estranho, o auge
do ser humano, pois é um tipo de doação que vai contra a natureza dos seres
humanos de serem livres – um dom como nenhum outro.

Sexo e desejo
Sartre vê o desejo sexual como tendo muito menos a ver com os órgãos
sexuais do que com os estados do ser. Somos seres sexuais do nascimento à
morte, ainda que os órgãos sexuais não expliquem nossos sentimentos de
desejo.
Não desejamos alguém simplesmente por prazer ou porque ele é um ­-
receptáculo para o prazeroso ato de ejaculação; como observado acima, nós
desejamos uma consciência. Ele enfatiza que existe uma grande lacuna entre o
desejo e o desejo sexual. Podemos desejar beber um copo de água e, assim que
o bebemos, ficamos satisfeitos. Simples assim. Mas Sartre observa que o desejo
sexual nos compromete. A consciência fica “entupida” pelo desejo; dito de outra
forma, ele nos invade. Podemos deixar que isso aconteça ou tentar impedi-lo,
mas, de qualquer maneira, o apetite sexual não é o mesmo que os outros, pois
envolve a mente, não apenas o corpo. Dizemos que desejo “toma conta de
nós” ou “nos assola”, frases que não tendemos a usar em relação à fome ou à
sede, por exemplo.
Sartre compara o desejo sexual a ser vencido pelo sono, e é por isso que
parecemos ter pouco poder sobre ele. A consciência cede espaço para ser
apenas um corpo, ou, em suas palavras, “o ser que deseja é a consciência
fazendo-se corpo”. Ao mesmo tempo, durante o sexo, desejamos tornar a outra
pessoa apenas carne (portanto, também revelando-nos como apenas carne).
Não só queremos que a outra pessoa se livre de todas as roupas e adornos,
queremos que o corpo seja um objeto, não mais em movimento:

Nada menos “carnal” que uma dançarina, mesmo que esteja nua. O
desejo é uma tentativa de despir o corpo de seus movimentos, assim
como de suas roupas, e fazê-lo existir como pura carne; é uma
tentativa de encarnar o corpo do Outro.

A carícia, diz Sartre, “faz com que a carne do Outro nasça”, desperta o
desejo nele e, ao mesmo tempo, faz com que compreendamos a nós mesmos
como um corpo, um que pertence ao mundo. Ele descreve a interação entre a
mente e o corpo desta forma: “A consciência é sugada em um corpo que é
sugado no mundo”.

Comentários finais
Para uma pessoa que disse que apreciar a liberdade e o estado de ser era mais
importante do que as conquistas “burguesas” (ele recusou o Prêmio Nobel,
por exemplo), as conquistas de Sartre foram excelentes. Apesar de sua
observação de que “o sucesso não é importante para a liberdade”, é possível
dizer que ele nos deixou uma receita para o sucesso?
Claro que sim. Além da ética mais ampla de liberdade individual, a receita é
“inserir minha ação nas malhas do determinismo”. Com isso, ele quis dizer que
devemos aceitar o meio em que nascemos, mas estar dispostos a transcendê-lo.
Devemos aceitar a disposição de nosso universo particular e, ainda assim, ser
criativos em nossa busca de uma vida significativa. Todo o livro O ser e o nada é
um aviso para não deixar os fatos aparentes de nossa existência ditarem seu
estilo ou sua natureza. Quem somos sempre será um projeto feito por nós
mesmos. O próprio Sartre viveu essa filosofia. A morte de seu pai quando ele
era muito jovem significou que não houve pressão para se modelar segundo o
progenitor, e ele se sentiu livre para inventar a si mesmo como a pessoa que
desejasse.
Coerente com sua refutação de todos os valores burgueses ou de classe
média, ele e sua companheira filósofa, Simone de Beauvoir, nunca se casaram
nem tiveram filhos, mas sua união de mentes fez deles um dos grandes casais
do século XX. Em grande parte de sua vida, eles viveram em apartamentos a
uma curta distância um do outro e gostavam de passar várias horas por dia
juntos; admitiam que era difícil saber quais ideias em sua escrita se originavam
de um ou de outro. Seus pensamentos sobre ser, amor e relacionamentos
permanecem como os mais sagazes jamais escritos.

Jean-Paul Sartre
Sartre nasceu em Paris, em 1905. Seu pai era um oficial naval que morreu
quando ele tinha apenas 1 ano. Sartre foi criado por sua mãe, prima de
primeiro grau do filósofo e missionário Albert Schweitzer, e seu avô, um
médico que lhe proporcionou o conhecimento dos clássicos.
Frequentou a prestigiada École Normale Supérieure, onde sua leitura de
Essais sur les données de la conscience [Ensaios sobre os dados imediatos da
consciência], de Henri Bergson, despertou seu amor pela filosofia. Foi
profundamente influenciado por Hegel, Kant, Kierkegaard e Heidegger e
ficou bem conhecido na École pelas peças que pregava. Em 1929, ele
conheceu Simone de Beauvoir, que estava na Sorbonne. Seu relacionamento
incluiria casos de ambos os lados e o compartilhamento de amantes dos dois
sexos.
Sartre foi recrutado durante a Segunda Guerra Mundial, servindo como
meteorologista. Tornou-se prisioneiro de guerra e, mais tarde, foi exonerado
do serviço militar devido a problemas de saúde. O ser e o nada foi um produto
desse rico período, tal como foram As moscas (1943), Entre quatro paredes (1944)
e A questão judaica (1944). Ele colaborou com o existencialista Albert Camus
brevemente antes de trabalhar em Os caminhos da Liberdade (1945), uma trilogia
de romances sobre os pontos de vista filosófico e político sobre a guerra.
Outro título fundamental é Crítica da razão dialética (1960).
Sartre viajou muito, visitando Cuba para conhecer Fidel Castro e Ernesto
“Che” Guevara. Em 1964, ele recusou o Prêmio Nobel de Literatura, mas que,
de qualquer forma, foi concedido a ele. O fumo constante e o consumo de
anfetaminas fizeram sua saúde se deteriorar; ele morreu em 1980 e foi
enterrado no Cemitério de Montparnasse.
1818

O mundo como vontade e como


representação

“O mundo é a minha representação: essa é uma


verdade válida com referência a cada ser que vive e
sabe, embora só o homem possa trazê-la à consciência
reflexiva e abstrata. Se ele realmente o fizer, o
discernimento filosófico terá despontado nele. Então,
ficará claro e certo que ele não conhece um Sol e uma
Terra, mas apenas um olho que vê um Sol, uma mão
que sente a terra; o mundo ao redor dele existe
apenas como representação […] Se alguma verdade
pode ser expressa a priori, é essa.”

“ O mundo objetivo, o mundo como representação,


não é o único lado do mundo, mas apenas seu lado
externo, por assim dizer, e […] o mundo tem um lado
totalmente diferente, que é seu ser mais íntimo, seu
cerne, a coisa em si.”

Em resumo
A pessoa avançada tenta viver menos de acordo com o estímulo cego de
sua vontade (ou ego) e mais em sintonia com o que é eterno e está além do
eu.
Na mesma linha
Henri Bergson, A evolução criadora (p. 76)
Martin Heidegger, Ser e tempo (p. 168)
Immanuel Kant, Crítica da razão pura (p. 208)
Platão, A República (p. 308)
Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas (p. 398)
Arthur Schopenhauer

No início do segundo volume de O mundo como vontade e como representação,


Arthur Schopenhauer inclui uma citação de Sêneca: “Paucis natus est, qui
populum aetatis suae cogitat” [Quem quer que em pensamento tome nota de
sua própria época influenciará apenas alguns]. Embora mais tarde ele tivesse
grande influência sobre Richard Wagner, Nietzsche, Freud, Einstein e
Wittgenstein, durante a maior parte da vida Schopenhauer foi um estudioso
que recebeu pouco reconhecimento. O grande nome alemão na filosofia de
sua época era Hegel, e o rabugento Schopenhauer o desprezava e a suas ideias.
A mensagem da citação acima é: “Não seja conduzido por filosofias como a de
Hegel, que pode parecer correta agora, mas será desacreditada a seu tempo.
Em vez disso, dou-lhe uma visão do que é correto e atemporal”.
O que foi surpreendente: Schopenhauer escreveu O mundo como vontade e
como representação quando ainda tinha 20 e poucos anos. Em 1844, ele publicou
uma versão estendida com o dobro do tamanho do original e continuou a
mexer no livro pelo resto da vida, embora suas ideias básicas tenham
permanecido as mesmas. Sempre franco, disse a seus leitores para lerem a obra
duas vezes, observando que “o que é para ser transmitido por ela é um
pensamento único. No entanto, apesar de todos os meus esforços, não tenho
sido capaz de encontrar forma mais curta de compartilhar esse pensamento
que não seja pela integralidade deste livro”.
Apesar de ter sido fortemente influenciado por Platão e Kant, o que
destacou Schopenhauer entre os filósofos ocidentais foi seu profundo
conhecimento de antigos textos hindus e budistas, e seu pensamento fornece
uma ponte valiosa entre o Oriente e o Ocidente. Ele foi um escritor brilhante,
que tornou suas ideias inteligíveis para o leitor não acadêmico, e, quase
duzentos anos após sua publicação, o livro permanece acessível e ricamente
gratificante, misturando rigor acadêmico com pensamentos muito pessoais
sobre o mundo.

Representação e realidade
Para compreender Schopenhauer devemos, em primeiro lugar, voltar a Kant,
que acreditava que existe o mundo fenomênico, que podemos perceber com
nossos sentidos, e então existem “coisas em si”, que têm uma realidade eterna
separada existente à parte de nossa percepção. Considerando que estamos
restritos a nossos sentidos, podemos, na verdade, nunca conhecer esse
“mundo em si”. Schopenhauer aceitou esse fato, mas pensou que, por meio da
razão, poderíamos descobrir a verdadeira realidade (o “númeno”).
Em contraste com nosso mundo multiforme de muitas coisas e muitas
percepções, o númeno tinha que ter uma unidade e estar além do espaço e do
tempo. Schopenhauer argumenta que o que consideramos ser tão real na
verdade é apenas uma representação ou uma projeção da mente. Em uma
inversão total do senso comum, o mundo com o qual mal temos intimidade
tem uma realidade permanente e, logicamente, o mundo fenomênico,
condicional ou representacional (o mundo “real”) não tem qualquer substância
ou realidade permanente, pois tudo nele morre ou muda de forma.
No entanto, Schopenhauer diz que o mundo fenomênico não é o caos, mas
opera de acordo com a “razão suficiente”, ou as leis de causa e efeito.
Contanto que admitamos que vivemos em um mundo de causalidade, ele faz
todo o sentido, mesmo se for projetado por nossas mentes. De fato, o
princípio da razão suficiente é o que impede um mundo de representação de
ser uma ilusão desesperançada. Ele observa que até mesmo as leis do tempo e
do espaço são parte do mundo condicional e não têm nenhuma verdade eterna
em si – não são coisas em si, mas simplesmente uma boa maneira de explicar
os fenômenos de tempo e espaço. O tempo realmente não existe, mas parece
existir para nós, observadores, que precisamos construir um mundo de
representação ao longo das dimensões de tempo e espaço. Para Schopenhauer,
a noção de Kant de “coisas em si” era muito semelhante às “Formas” de
Platão, expressas na alegoria da caverna.
Tudo no tempo e no espaço é relativo. Ou seja, um momento no tempo
tem realidade apenas em relação ao momento vindo logo após ou antes dele.
No espaço, um objeto possui apenas realidade em relação a um outro. A partir
da tradição ocidental, Schopenhauer invoca a observação de Heráclito de que
as coisas estão em fluxo eterno e não têm nenhuma realidade fixa, e do
Oriente ele lança mão do conceito hindu de “Maya”, em que o mundo é
simplesmente uma projeção ou um sonho, muito aberto a interpretações
erradas pelo observador. Não apenas o espaço, ou seja, o mundo dos objetos,
é uma representação de quem o vê, mas também o tempo. Lançando uma
indireta a seu inimigo Hegel, Schopenhauer argumenta que a história não é um
relato objetivo do que aconteceu, ou algum processo que leva a uma
determinada meta ou objetivo, mas simplesmente uma história contada dentro
do olho do observador: “Passado e futuro são tão nulos e irreais quanto
qualquer sonho”.

A vontade em Schopenhauer
Para Schopenhauer, “vontade” é o núcleo íntimo do mundo fenomênico e
manifesta-se como uma espécie de esforço cego e sem propósito de todos os
tipos – uma vontade de viver. Em vez de o significado tradicional do termo
como disposição consciente, é mais bem-visto como um tipo de energia
constantemente à procura de um escape. Ele explica não apenas o esforço de
seres humanos, mas a força vital em animais, plantas e até mesmo no mundo
inanimado.
No premiado Parerga e Paralipomena, Schopenhauer examinou a questão do
livre-arbítrio, escrevendo o seguinte:

Subjetivamente […] todo mundo sente que faz somente o que deseja.
Mas isso significa apenas que suas ações são a pura manifestação de
sua própria essência.

O que desejamos é apenas a expressão do que somos, de nosso caráter, e


não podemos ter quaisquer ações que não sejam coerentes com esse caráter.
Nossos motivos não são escolhidos livremente, e, portanto, não podemos
dizer que temos livre-arbítrio. De fato, muitas de nossas ações são tomadas
sem realmente sabermos por quê. Para a pessoa média, “a consciência a
mantém sempre trabalhando de forma firme e ativa, em conformidade com o
objetivo de sua vontade […] Essa é a vida de quase todos os homens”.
É fácil ver como Sigmund Freud, que descrevia os seres humanos como
criaturas impulsionadas por estímulos do subconsciente, foi influenciado por
Schopenhauer. A concepção de “ego” de Freud claramente se assemelha à
vontade de Schopenhauer.

A vontade pode ser transcendida?


Considerando que a maioria dos filósofos veria essa força vital ou vontade em
termos neutros ou positivos, Schopenhauer a contempla como uma potência
negativa que deve ser transcendida para se chegar a algum lugar. Ele observa
que “a grande intensidade da vontade” inevitavelmente causa sofrimento, pois
toda vontade vem do querer. Considerando que a pessoa boa e sábia se
identifica com o disforme e o verdadeiro, vendo-se apenas como uma
expressão corporal da substância espiritual atemporal, a pessoa inculta ou
perversa se identifica totalmente com seu corpo e sua vontade. Tal pessoa
acredita plenamente em sua soberania como indivíduo; em contraste, todos e
tudo o mais são menos importantes. No entanto, a vontade individual é menos
importante do que a vontade geral que impulsiona a tudo e a todos, portanto
crença demais em si mesmo implica uma vida de ilusão, sem que se perceba
que o mundo fenomênico é meramente uma grande construção atrás da qual
se esconde algo real:

Nessa forma, ela não vê a natureza interior das coisas, que é uma, mas
seus fenômenos como separados, destacados, inúmeros, muito
diferentes e, na verdade, opostos.

Tal pessoa tende a ver as coisas em opostos, a ter opiniões fortes o tempo
todo e busca o prazer para evitar a dor, sem perceber que sua busca na verdade
causa dor. Por fim, talvez ela enxergue que o principium individuationis [princípio
de individuação] pelo qual ela vive é a fonte de sua apreensão.
Aqueles que observam o mundo de uma maneira menos separada
encontram um caminho para a liberdade. Compreendemos que o que fazemos
aos outros, fazemos a nós mesmos. Apenas quando vemos que não há
nenhum “eu”, e nossas ações refletem isso, podemos nos libertar do ciclo de
nascimento, velhice, doença e morte, bem como de prisão dentro dos limites
de tempo, espaço e causalidade. A pessoa sábia vê o bem e o mal, o prazer e a
dor como simples fenômenos, diversas expressões de Unidade. Ela sabe que a
negação de sua vontade pessoal (ou ego) e a percepção de que não são
separados de outros levam à paz.

Meios de transcendência
Para Schopenhauer, avançar para além do “eu” era a chave para transcender a
vontade, e o caminho óbvio para isso era através da vida monástica ou ascé-
tica, que permitia que uma pessoa se desviasse do ataque das forças brutas da
vontade, do desejo e do corpo. Felizmente, porém, havia outro caminho,
através da experiência da natureza ou da arte.
O estado de espírito humano normal é de análise, raciocínio ou avaliação
constante, mas é possível dedicar toda a nossa mente ao momento presente.
Ao olhar uma paisagem, por exemplo, podemos nos perder no objeto de tal
forma que “esquecemos o indivíduo, a vontade, e continuamos a existir como
um sujeito puro, como espelho claro do objeto […] e assim não seremos mais
capazes de separar quem percebe da percepção; os dois se tornam um”.
O que resta, observa Schopenhauer, não é apenas um objeto existente em
relação a outros objetos, mas a própria “Ideia” da coisa, sua forma eterna.
Perdido em vê-la, o observador não é mais um indivíduo, mas é um com a
ideia. De repente, o mundo parece mais claro e mais significativo, porque
penetramos além das aparências óbvias até a essência. A Arte pode isolar uma
ideia ou coisa crucial e, ao apresentá-la de certa maneira, iluminar o Todo, que
está além da razão ou da causalidade. A Ciência, por outro lado, estando
apenas preocupada com o mundo fenomênico, é uma busca interminável que
não consegue nos trazer satisfação plena.
Schopenhauer define genialidade como a “capacidade de permanecer em
um estado de percepção pura”, esquecendo o eu individual e existindo por um
tempo apenas em estado de imaginação, vendo as ideias atemporais do
universo. Quando, inevitavelmente, voltamos à experiência de ser um eu
individual, teremos simpatia compassiva por todos os seres vivos. Esse
sentimento pelos outros é um meio para permanecermos fora do alcance da
vontade ou do ego, porque, ao vivermos uma vida compassiva, mal teremos
tempo para nos preocupar conosco.

Comentários finais
Escrito num momento em que os missionários europeus estavam se
espalhando por toda a Ásia para converter povos ao cristianismo, O mundo como
vontade e como representação oferecia a profecia bem conhecida de Schopenhauer
de que tais esforços seriam tão eficazes quanto “disparar uma bala em um
precipício”. Em vez disso, ele acreditava que a sabedoria que fluiria de volta à
Europa “produziria uma mudança fundamental em nosso conhecimento e
nosso pensamento”.
Ele estava certo. Embora o cristianismo tenha tido mais sucesso no
subcontinente do que ele esperava, a religião e o misticismo vêm tendo um
impacto grande e crescente no Ocidente, em especial os conceitos de Todo em
comparação com a perspectiva atomizante, categorizante da mente ocidental.
A visão convencional de Schopenhauer é que ele era o “supremo
pessimista”. Como a vontade não tinha objetivo positivo, obviamente a
experiência humana tinha que ser um desafio constante, no melhor dos casos,
ou uma dor sem sentido, no pior. Ele não tenta fingir que o mundo e as
motivações das pessoas eram algo que não eram, e isso impressionou
escritores pessimistas como Joseph Conrad e Ivan Turguêniev, bem como os
existencialistas. E, no entanto, a conclusão de Schopenhauer não é de jeito
nenhum sombria, mas edificante: é apenas nossa dependência do mundo dos
fenômenos (o “mundo real”) como a fonte da verdade que sempre demonstra
ser um impasse doloroso. Embora sejamos seres que existem no tempo e no
espaço, paradoxalmente, é somente ultrapassando esses construtos que somos
libertados.

Arthur Schopenhauer
Schopenhauer nasceu em 1788 no que agora é a cidade polonesa de Gdansk.
Quando tinha 5 anos, sua família partiu para Hamburgo, porque sua cidade
natal estava prestes a ser tomada pela Prússia. Esperava-se que ele seguisse os
passos do pai, comerciante, e assumisse a empresa familiar. Entre 1797 e 1799,
passou um longo período na França com o pai, e também viveu na Inglaterra,
Holanda, Suíça e Áustria. Em 1805, seu pai cometeu suicídio, o que abriu
caminho para Schopenhauer seguir seus desejos e frequentar a universidade.
Em Göttingen, matriculou-se em medicina, mas também frequentou aulas
de filosofia e estudou Platão e Kant. Passou dois anos em Berlim, onde foi
para palestras com Fichte, e apresentou sua tese na Universidade de Jena,
também na Alemanha. O tema foi “Sobre a Quádrupla Raiz do princípio da
razão suficiente”. Depois de escrever O mundo como vontade e como representação,
Schopenhauer retornou a Berlim, onde se tornou um conferencista autônomo.
Hegel também estava na universidade, e Schopenhauer programava suas
palestras para coincidir precisamente com as de Hegel, com a expectativa de
atrair os alunos, mas, na verdade, eles abandonaram Schopenhauer, e sua
carreira acadêmica se estagnou. Só conseguia sobreviver graças a uma herança
de seu pai.
Sua mãe, Johanna, era escritora e socialite, e durante grande parte da vida
de Schopenhauer foi mais famosa que o filho. Apesar de seu relacionamento
com ela ser instável, o círculo literário dela permitiu que ele conhecesse
Goethe (com quem se correspondeu) e outros escritores e pensadores.
Fugindo da epidemia de cólera que matou Hegel, Schopenhauer fugiu de
Berlim em 1831 e se estabeleceu em Frankfurt. O premiado Parerga e
Paralipomena (1851) finalmente lhe trouxe a fama que desejava. Ele morreu em
1860.
2009

Quanto custa salvar uma vida?

“A maioria de nós está absolutamente certa de que


não hesitaríamos em salvar uma criança do
afogamento e o faríamos a um custo considerável a
nós mesmos. Mas, enquanto milhares de crianças
morrem a cada dia, gastamos dinheiro em coisas que
acreditamos serem parte do dia a dia e dificilmente
sentiríamos falta delas se não estivessem lá. Está
errado? Em caso afirmativo, até onde vai nossa
obrigação para com os pobres?”

“Doar a estranhos, especialmente àqueles para além


da própria comunidade, talvez seja bom, mas não
pensamos nisso como algo que precisamos fazer. No
entanto, se o argumento básico apresentado acima
está correto, então o que muitos de nós consideramos
um comportamento aceitável deve ser visto sob uma
nova luz, mais nefasta. Quando gastamos nosso
excedente em concertos ou sapatos da moda,
restaurantes requintados e bons vinhos, ou em férias
em lugares distantes, algo estamos fazendo de
errado.”

Em resumo
Doar sistematicamente àqueles que precisam é parte importante de viver
uma boa vida.

Na mesma linha
Aristóteles, Ética a Nicômaco (p. 32)
John Rawls, Uma teoria da justiça (p. 322)
Michael Sandel, Justiça (p. 346)
Peter Singer

Todos os dias, no caminho para o trabalho, você passa por uma lagoa em um
parque onde as crianças gostam de brincar quando o tempo está quente. Certa
manhã você vê uma criança se debatendo na água, aparentemente se afogando.
Se você entrar na água para chegar à criança, vai arruinar os sapatos novos que
acabou de comprar, enlamear o terno e se atrasar para o trabalho.
Nas aulas sobre ética prática de Peter Singer, seus alunos dizem por
unanimidade que você deveria entrar na água para salvar a criança; as outras
coisas simplesmente não importam. Mas se nossa reação normal a essas coisas
é que naturalmente ajamos para salvar a vida da criança, por que gastamos tanto
em coisas desnecessárias (mais pares de sapatos, jantares fora, reforma da
casa), quando esse dinheiro poderia facilmente salvar a vida de crianças? Ou,
como Singer pergunta, sem rodeios: “É possível que, ao optar por gastar seu
dinheiro nessas coisas, em vez de contribuir para uma agência de ajuda
humanitária, você esteja deixando uma criança morrer, uma criança que
poderia ter salvo?”.
Essas questões são o cerne de filosofia utilitarista de Singer. O professor de
Princeton nascido na Austrália alcançou a notoriedade com Libertação animal
(1973). Sua abordagem completamente racional levou-o a posições
controversas, tais como a rejeição da santidade da vida humana e a elevação
dos direitos dos primatas; assim, quando começou a analisar a questão da
pobreza no mundo, os resultados seriam interessantes de qualquer forma.
Quanto custa salvar uma vida? é um livro muito acessível, que também consegue
encapsular as posições filosóficas mais amplas do autor; por isso é um ótimo
ponto de partida para seu pensamento.

Olhe os fatos
Singer não ignora o aumento gigantesco da prosperidade nos últimos
cinquenta anos, o que tem retirado centenas de milhões de pessoas da pobreza.
Em 1981, quatro em cada dez pessoas em todo o mundo viviam em extrema
necessidade; em 2008, era uma em cada quatro. No entanto, mais de 1,4 bilhão
de pessoas ainda vivem com menos de 1,25 dólar por dia, o limiar da pobreza
para o Banco Mundial, e, apesar do rápido aumento dos padrões de vida no
leste da Ásia, o número de pessoas que são extremamente pobres na África
Subsaariana (50% da população) não mudou em trinta anos.
Além disso, Singer enfatiza que aquilo que significa “pobre” em países
desenvolvidos é diferente de “pobre” no restante do mundo. A maioria das
pessoas nessa categoria em países ricos ainda tem água encanada, energia
elétrica e acesso ao sistema de saúde, e seus filhos podem receber educação
gratuita; a maioria tem carro e televisão e, mesmo que sua dieta não seja boa,
dificilmente tem fome. Para as populações pobres nos países em
desenvolvimento, a pobreza significa não ter comida suficiente para se
alimentar pelo menos em parte do ano, ter dificuldade em encontrar água
limpa e pouco ou nenhum espaço para receber cuidados de saúde. Mesmo se
tiverem comida suficiente, sua dieta pode muito bem não oferecer os
nutrientes essenciais, o que pode trazer danos permanentes ao cérebro de seus
filhos.
Uma em cada cinco crianças nos países pobres morre antes dos 5 anos de
idade; nos países ricos, é uma em cada cem. Milhares morrem de sarampo,
uma doença facilmente tratável, pelo simples fato de que seus pais não
conseguem recursos para levá-las ao hospital. Singer pergunta: como deve ser
para os pais ver uma criança definhar e morrer, sabendo que isso poderia ter
sido evitado?
Por meio de vários exemplos, Singer descreve como, embora “a maioria de
nós considere obrigatório atenuar o sofrimento grave de semelhantes
inocentes, mesmo com algum custo (ou mesmo com alto custo) para nós
mesmos”, parecemos fazer isso apenas quando confrontados com tais
situações. No entanto, se quisermos viver de acordo com essa declaração, a
intuição deve ser substituída pela lógica:
1
.Se pessoas estão morrendo por não ter comida ou água o suficiente ou
cuidados médicos, e você pode evitar isso sem sacrificar nada de muito
grande, você deveria fazê-lo.
2
.Ao dar dinheiro a agências de ajuda humanitária, você pode ser
diretamente responsável por salvar vidas sem muito custo para você.
3
.Portanto, é errado não doar às agências de ajuda humanitária.

Nosso dever de agir


Para montar seu argumento, Singer recorre a uma fonte surpreendente: a
religião. Ele observa que existem 3 mil referências na Bíblia ao alívio da
pobreza. Tomás de Aquino disse que o que quer que tenhamos além da
disposição natural para nós e para nossa família “é devido, por direito natural,
ao pobre, para seu sustento”. A palavra hebraica para caridade, tzedakah,
significa “justiça”, um termo que se assenta no pressuposto de que a doação é
parte essencial de viver uma vida boa. Além disso, o Talmude afirma que a
caridade é igual a todos os outros mandamentos, e que os judeus devem dar
pelo menos 10% de sua renda como tzedakah. Nos conceitos islâmicos de
zakat e sadaqa, também encontramos ideias de doação sistemática; na tradição
chinesa há mensagens semelhantes. Singer sugere: “Não há nada de novo na
ideia de que temos uma forte obrigação moral de ajudar àqueles que estão
passando necessidade”. Doar, diz ele, não é uma questão de caridade, mas é
“nosso dever e o direito deles”.
Em resposta ao argumento de que “dar dinheiro ou comida gera
dependência”, Singer concorda, observando que deveríamos dar dinheiro ou
comida apenas para emergências, como secas ou inundações. É muito melhor
ajudar as comunidades a construir fontes sustentáveis de riqueza ou a plantar o
próprio alimento. E, em resposta à opinião de que devemos doar aos nossos
antes de pensar no mundo de forma mais ampla (“a caridade começa em
casa”), Singer admite que pode ser mais natural para nós querer doar para
nossa família, amigos e comunidades locais, mas que isso não torna a doação
mais eticamente justificada.
Também aborda o ponto de vista de que as pessoas devem tomar decisões
sobre doar por si próprias e que não existe certo ou errado absoluto sobre o
assunto. Singer rejeita esse fraco relativismo moral. Certamente, se nossa
capacidade de salvar a vida de uma criança for uma questão de obrigação: se
um adulto que vê uma criança se afogando não fizer nada com base na
“liberdade de escolha”, pensaríamos que ele está louco ou é ruim.

Por que não doamos mais?


Singer aponta vários fatores psicológicos que explicam a não doação. Ele
observa o fato de que as pessoas doam mais quando veem uma foto de uma
criança faminta, se comparado à apresentação de estatísticas sobre a pobreza.
Ele lembra a observação de Madre Teresa: “Se eu olhar para a massa, eu nunca
agirei. Se eu olhar para um, sim”. Ficamos menos perturbados com catástrofes
naturais que acontecem em algum país distante, porque não temos nenhuma
ligação emocional com elas. Por exemplo, os norte-americanos doaram 1,5
bilhão de dólares às vítimas do tsunami na Ásia, mas, no ano seguinte, doaram
6,5 bilhões de dólares para ajudar os atingidos pelo Furacão Katrina, em Nova
Orleans. O desejo de ajudar àqueles de nossa família ou do grupo tribal faz
parte de nossa evolução, de modo que esse foco mais imediato para doar é
compreensível. No entanto, em nossos dias de comunicação instantânea, esse
bairrismo não é mais justificado. Podemos ver a devastação no noticiário
noturno, e, dentro de poucos dias, nosso dinheiro pode ter um efeito real na
vida de pessoas no outro lado do planeta.
Singer também considera o fato de que estamos menos propensos a agir se
nossa doação parecer “gotas no oceano”. Esse fator “futilidade” significa que
somos muito mais propensos a doar quando nossa contribuição puder salvar
cinquenta pessoas em um grupo de cem do que se puder salvar duzentas em
um grupo de mil. Não é o número total de vidas salvas que nos afeta, mas o
poder que consideramos que nossa doação terá. E, no entanto, a vida das
pessoas que ajudamos pode ser transformada.
Embora estudos psicológicos demonstrem que os seres humanos preferem
cuidar dos seus em vez de ajudar estranhos, Singer diz que isso nunca deve ser
justificativa para não doar àqueles que não conhecemos ou que nunca vamos
encontrar. A pergunta-chave deve ser: o que devemos fazer? – nossa doação não
deve se basear em reações emocionais. Enquanto algumas tradições têm
enfatizado o anonimato como a mais elevada forma de doação, Singer sugere
que, em vez disso, se faça “abertamente”, criando, assim, um novo culto de
doar que tornará o ato cada vez mais socialmente aceitável e esperado.

Seu filho ou o meu?


Considerando quantas vidas o dinheiro poderia salvar, Singer questiona se
podemos justificar o envio de nosso filho para uma escola particular cara ou
uma universidade de primeira linha. Podemos, mas só se houver a intenção de
que a criança beneficie muitas pessoas como resultado de sua educação (seja
por meio de trabalho direto com os necessitados ou da doação do dinheiro
ganho), em vez de unicamente a si. Essa questão faz parte do problema maior
de como avaliar o valor da vida de nossos filhos em relação aos filhos de
outras pessoas. Se, por exemplo, gastamos quatrocentas ou 4 mil vezes mais
com nossos filhos do que com uma criança desesperadamente pobre em
algum outro lugar, significa que sua vida é 4 mil vezes mais valiosa? Ele conclui
que nunca conseguiremos levar a natureza humana a pensar que podemos
amar e cuidar dos filhos dos outros tanto quanto de nossos filhos; mas não
podemos realmente justificar que nossos filhos tenham luxos quando isso
significar que não poderemos ajudar no atendimento de necessidades básicas
de outras crianças.
Singer não é comunista nem socialista extremo. Não defende, por exemplo,
o aumento de impostos e tira o chapéu para empresários por tornarem o
mundo mais rico. Também admite que às vezes é melhor doar menos agora se
você estiver montando um negócio que pode gerar riqueza mais tarde; por
outro lado, ao doar agora, você pode reduzir a pobreza, que mais tarde
reduzirá os efeitos dessa pobreza.

Quanto doar
Quanto devemos doar? Singer observa que existem cerca de 855 milhões de
pessoas ricas em todo o mundo, ou seja, com um rendimento maior que o
salário médio de um adulto em Portugal. Se cada um doasse apenas duzentos
dólares por ano, a pobreza mundial seria reduzida pela metade (não em
mobilizações de ajuda de curto prazo, mas dinheiro que seja investido para
tornar comunidades pobres realmente sustentáveis). E duzentos dólares não
representa um monte de dinheiro: algumas refeições agradáveis ou menos de
vinte dólares ao mês.
Singer mira na extravagância ridícula de bilionários do mundo. Além das
dezenas de milhões gastos em enormes iates e jatos particulares, ele menciona
o empresário das telecomunicações Anousheh Ansari, que pagou 20 milhões
de dólares para passar apenas 11 dias no espaço. O iate do cofundador da
Microsoft, Paul Allen, custou 200 milhões de dólares e tem tripulação
permanente de sessenta pessoas, bem como enormes emissões de carbono. “É
hora de pararmos de pensar essas formas de gastar dinheiro como
demonstrações de vaidade idiotas mas inofensivas”, comenta Singer, “e
começar a pensar nelas como prova de uma grave falta de preocupação com os
semelhantes.”
Ele conta a história de Chris Ellinger e sua esposa Anne, que criaram uma
organização chamada The 50% League, cujos membros se comprometem a
doar pelo menos metade de seu patrimônio. Destinado não apenas para
milionários, o site da organização menciona um casal que se comprometeu a
viver com menos do que a renda média de 46 mil dólares e doar tudo o que
ganhar além disso. O doador observa: “Eu poderia facilmente ter vivido uma
vida entediante e inconsequente. Agora sou abençoado com uma vida de
serviço e significado”.

Comentários finais
Singer termina o livro citando seu amigo Henry Spira, defensor dos direitos
dos animais e da justiça social, que, em seu leito de morte, disse:

Acho que, no fundo, ninguém quer sentir que a vida se resumiu apenas
ao consumo de produtos e à geração de lixo. Creio que todo mundo
gostaria de olhar para trás e dizer que fez o melhor possível para
tornar este mundo um lugar melhor para os semelhantes. Você pode
olhar para isso a partir deste ponto de vista: que motivação maior pode
haver do que fazer o que se pode para reduzir a dor e o sofrimento?

Uma pesquisa com 30 mil norte-americanos revelou que aqueles que


fizeram doações em parte da vida estavam, em média, 43% mais propensos a
dizer que eram “muito felizes” em comparação com aqueles que não o
fizeram. O número foi semelhante para aqueles que fizeram trabalho
voluntário em instituições de caridade, o que parece provar a declaração de
Buda: “Leve seu coração a fazer o bem. Faça isso repetidamente e você se
encherá de alegria”. No entanto, parte da questão de Quanto custa salvar uma
vida? é que devemos ir além dos benefícios emocionais de doar e enxergar sua
ética inatacável.
Singer nos rememora que boa vida não é ter boa saúde, propriedades,
carros novos e férias, mas reconhecer o que podemos fazer para tornar o
mundo um lugar mais justo. Seu desejo de chegar além das muralhas da
filosofia acadêmica o levou à lista dos maiores intelectuais públicos. Quanto
custa salvar uma vida? é um lembrete de como a filosofia pode ser poderosa no
mundo real.

Peter Singer
Singer nasceu em 1946. Seus pais emigraram para a Austrália para escapar da
perseguição nazista na Áustria, sua terra natal. Ele estudou direito, história e
filosofia na Universidade de Melbourne e depois ganhou uma bolsa de estudos
para Oxford, onde se concentrou na filosofia moral. Depois de períodos
lecionando em Oxford e na Universidade de Nova York, passou duas décadas
na Austrália, na Universidade de Melbourne e na de Monash. Em 1999,
assumiu seu atual cargo, na cátedra Ira W. DeCamp de Bioética, na
Universidade de Princeton.
Outros livros: Ética prática (1979), The Expanding Circle: Ethics and Sociobiology
[O círculo em expansão: a ética e a sociobiologia (1981), Hegel (1982), Should the
Baby Live? The Problem of Handicapped Infants [O bebê deveria viver? O problema
das crianças deficientes] (1985), Rethinking Life and Death: The Collapse of Our
Traditional Ethics [Repensando vida e morte: o colapso da nossa ética
tradicional] (1994), A Darwinian Left [Uma esquerda darwiniana] (2000) e A
ética da alimentação (2007, com Jim Mason).
1677

Ética

“As coisas particulares nada mais são que as afeições


dos atributos de Deus, ou modos pelos quais os
atributos de Deus são expressos de certa e
determinada forma.”

“Quanto aos termos bom e mau, não indicam


nenhuma qualidade positiva nas coisas consideradas
em si mesmas, mas são apenas modos de pensar ou
noções que formamos a partir da comparação das
coisas umas com as outras. Assim, uma e a mesma
coisa pode ser boa, má e indiferente ao mesmo tempo.
Por exemplo, a música é boa para aquele que está
melancólico, ruim para o enlutado; para aquele que é
surdo, não é nem boa nem má.”

“Chamo de servidão a impotência humana de moderar


e verificar as emoções, pois, quando um homem é
vítima de suas emoções, não é seu próprio mestre,
mas fica à mercê do acaso.”

Em resumo
O livre-arbítrio é uma ilusão, mas, ao dominarmos nossas emoções e
apreciar a perfeição das leis universais, podemos levar uma vida boa.
Na mesma linha
Sam Harris, Free Will (p. 152)
Gottfried Leibniz, Ensaios de Teodiceia (p. 236)
Baruch Spinoza

Ética de Baruch Spinoza foi uma obra inovadora na filosofia ocidental, porque,
em um momento em que a teologia era tudo, trouxe uma visão naturalista ou
científica do universo. Também se tornou um guia para abordar a vida de
forma racional, e não de modo religioso. De acordo com seu desejo de ser a
voz da razão, o livro adota um estilo quase matemático, copiando a forma de
tratados sobre geometria, com cada termo claramente definido e “provas”
oferecidas para cada proposição feita. Essa forma de fazer filosofia vem sendo
muito copiada por muitos depois dele, como Wittgenstein e outros.
Spinoza vê o mundo como se funcionasse de acordo com rigorosas leis
físicas que não permitem milagres, sem um fim ou objetivo em mente – uma
noção que mais tarde apoiaria o conceito de Darwin da evolução por seleção
natural sem direcionamento. Com tais ideias, podemos ver por que Spinoza é
muitas vezes considerado o primeiro filósofo verdadeiramente moderno, que
tenta excluir o dogma e a superstição para abraçar uma cosmologia naturalista.
Também oferece algumas respostas a respeito de como, em meio às
engrenagens impessoais do universo que parecem não dar espaço para o livre-
arbítrio, uma pessoa pode viver e se elevar ainda mais.
Quando Spinoza terminou de escrever Ética, rumores se espalharam;
teólogos de um lado e seguidores de Descartes de outro estavam “prontos
para dar o bote” se o livro fosse publicado. Nesse clima, Spinoza, que tinha
sido expulso de sua famosa sinagoga holandesa aos 20 e poucos anos por suas
visões “ateístas” e cujas outras obras já tinham tido uma recepção hostil,
decidiu não o imprimir.
Atualmente, é difícil enxergar o porquê de tanto alarde, pois o objetivo de
Spinoza era simplesmente oferecer um tratamento mais funda-mentado da
religião, das paixões humanas e da natureza. Nesse processo, ele ­realmente
defende, em razoáveis detalhes, a existência de uma divindade, e termina com
uma recomendação do “amor intelectual de Deus”. No entanto, o problema
residia na natureza de Deus de Spinoza, que não era o salvador pessoal do
Novo Testamento, mas sim uma “substância” impessoal que percorre o
universo de acordo com rigorosas leis imutáveis que não fazem concessões
para a singularidade dos seres humanos; somos meramente uma expressão
impermanente da força da vida que corre através do universo. A visão
“panteísta” (Deus manifestado por meio da natureza) era contra o dogma
cristão de uma clara separação entre o criador e a criação.
Aqui vamos olhar aquilo que Spinoza realmente disse e por que tem sido
tão influente.

O universo opera por meio de causas, e não


somos um caso especial
Spinoza postula que tudo que existe tem uma causa, e tudo o que não existe
também tem uma razão para não existir. A qualquer momento, é necessário
que alguma coisa exista ou será impossível para ela existir (“se, na natureza, um
certo número de indivíduos existe, deve haver um motivo para esses
indivíduos, nem mais nem menos, existirem”). No entanto, essa causa
normalmente não pode ser discernida por seres humanos.
Spinoza escreve que “o homem é a causa de um outro homem [em um
nível biológico simples], mas não de sua essência, pois esta última é uma
verdade eterna”. Deus é, portanto, a causa de nossa existência, mas Ele
também nos dá o desejo de perseverar em ser – nossa força de vida, por assim
dizer. Isso não deveria ser confundido com a liberdade da vontade. Os seres
humanos são simplesmente “modos pelos quais os atributos de Deus são
expressos de certa e determinada forma”, e não há nada que uma pessoa possa
fazer para reverter essa determinação. Obviamente, quando uma entidade cria
algo, tem uma intenção em mente para esse algo. Essa intenção é a essência da
coisa. Por conseguinte, observa Spinoza,

na natureza não há nada contingente, mas todas as coisas foram


determinadas a partir da necessidade da natureza divina de existir e
produzir um efeito de uma forma determinada.

As pessoas pensam que são livres porque parecem ter vontade, apetites e
desejos, mas nós atravessamos a vida em grande parte ignorantes das causas
reais das coisas; de fato, nunca as conheceremos. Para Spinoza, a vontade é
apenas como o intelecto, simplesmente um “certo modo de pensar”. Nossa
vontade não consegue existir sozinha: “Deus não opera pela liberdade da
vontade”.
Nossa vontade está relacionada a Deus da mesma forma que as leis da física
estão, ou seja, a vontade é posta em movimento, em primeiro lugar, e faz com
que as outras coisas aconteçam ao redor. “As coisas não poderiam ter sido
produzidas por Deus de outra maneira”, observa Spinoza, “e em nenhuma
outra ordem diferente da que foram produzidas.” Se a natureza fosse diferente
do que é, teria exigido que a natureza de Deus fosse diferente do que é. O que
significa que haveria a necessidade da existência de dois ou mais deuses, o que
seria absurdo.
Os seres humanos são capazes de perceber que as coisas podem existir de
qualquer maneira “apenas pela deficiência de nosso conhecimento”, escreve
Spinoza. Como a “ordem de causas não está à mostra para nós”, não
conseguimos perceber que algo é, na verdade, necessário ou impossível. Por
isso, acreditamos erroneamente que é contingente.
No entanto, nada disso serve para dizer que Deus organiza todas as coisas
“para o Bem”, como afirma Leibniz. Esse é um preconceito dos seres
humanos, diz Spinoza, que gostam de acreditar que Deus organizou o universo
para eles. A superstição e a religião desenvolveram-se para que as pessoas
pudessem sentir que eram capazes de ler, na mente de Deus, as causas finais
das coisas e para que elas pudessem permanecer como favoritas de Deus. Mas
esse exercício é um desperdício de tempo; é melhor buscar verdades que
possamos realmente compreender. Por meio da matemática, por exemplo, a
humanidade tem “outro padrão de verdade” para dar sentido a seu mundo.

A natureza de Deus
Spinoza não estava contente simplesmente em concordar com a existência de
Deus ou discordar dela. Ele traz seus grandes poderes de análise para a
questão e conclui o seguinte.
Ele iguala Deus à “substância”, definida como aquela que é a causa de si
mesmo, sem precisar ser criada por qualquer outra coisa. Apenas Deus é,
portanto, totalmente livre, porque ele não tem causa; todo o restante não é
livre, porque é causado ou determinado. Deus é “absolutamente infinito”,
expresso em uma infinidade de “atributos” ou formas, a maioria das quais os
seres humanos conseguem perceber. Não podemos enxergar a substância de
algo, apenas seus atributos – este é o meio pelo qual devemos perceber. Os
atributos de Deus são infinitos, enquanto os atributos de uma pessoa são
muito mais limitados.
Spinoza observa que, se Deus não existe, teria de haver uma razão muito
boa para ele não existir; também haveria a necessidade de existir outra
substância que pudesse causar a existência de Deus ou retirá-la. E, no entanto,
essa outra substância não teria nada em comum com Deus (e, portanto,
nenhum poder sobre Ele) e, assim, não poderia causar ou retirar a existência
de Deus. O único poder de dar ou retirar a existência de Deus encontra-se no
próprio Deus; e, mesmo que Deus tivesse escolhido anular sua existência, esse
ato ainda demonstraria que Ele existe. Além disso, tal contradição não seria
possível “de um Ser absolutamente infinito e sumamente perfeito”. Portanto,
Deus deve existir.
Aquelas coisas que existem têm força, e falta força àquelas que não existem.
Se as únicas coisas que existem são seres finitos, então essas seriam mais
poderosas do que um Ser infinito. No entanto, Spinoza observa que isso seria
absurdo. Portanto, ele reflete que “ou o nada ou um Ser absolutamente infinito
tem que existir”. A partir daí ele conclui:

Pois se poder existir é potência, segue-se que, quanto mais realidade


pertencer à natureza de uma coisa, mais forças ela terá, por si só, de
existir. Portanto, um Ser infinito, ou Deus, tem, em si mesmo, uma
força absolutamente infinita de existir. Por essa razão, ele existe
absolutamente.

A perfeição expressa a identidade de algo, enquanto a imperfeição a retira.


Nesse sentido, a perfeição de Deus faz com que fique extremamente claro que
Deus existe. (Em contraste, o grau de imperfeição das coisas do dia a dia
deveria indicar que elas não têm existência real.) Quanto mais uma entidade faz
com que outras coisas existam, maior é sua realidade. Portanto, Deus é o
criador de tudo, é a coisa mais real no universo.

Nenhum fim em mente para o universo, e isso


não existe para nós
Uma das noções radicais em Ética é que a “natureza não tem fim definido a
priori”. Com isso Spinoza quer dizer que o universo, apesar de existir de acordo
com leis específicas (“todas as coisas advêm de uma certa necessidade eterna
da natureza, e com a maior perfeição”), ao mesmo tempo não tem nenhum
objetivo específico para o qual esteja se movendo.
Como Spinoza reconcilia sua crença na perfeição de Deus com a noção de
que Ele não tem em mente um fim para seu universo? Certamente, se Deus
tem potência total, ele deseja alcançar algum objetivo? Spinoza cria aqui um
raciocínio um tanto engenhoso, observando que, “se Deus age por causa de
um fim, necessariamente quer algo que lhe falta”. Como Ele é perfeito e
perfeitamente autossuficiente, isso não é possível.
Spinoza também tenta destruir a ideia de que o universo foi criado para a
humanidade. Esse preconceito significa que temos de rotular tudo em termos
de bom ou mau, ordem ou caos, quente ou frio, bonito ou feio. Na verdade, se
tudo foi gerado pela substância divina, tudo tem de ser intrinsecamente bom.
Não definimos o mundo por nossas reações ou nossos julgamentos – estes
nos definem. Até mesmo a percepção de ordem é um fingimento, porque
certamente tudo o que existe está em ordem.
De novo, Spinoza está criando uma plataforma para a moderna visão de
mundo científica, sugerindo que precisamos estudar o universo de forma tão
objetiva quanto possível, descartando nosso antropomorfismo.

Cientista da natureza humana


Na terceira parte do livro, “A origem e a natureza dos afetos”, Spinoza se
define como um cientista da natureza humana, com todos os afetos definidos
em pormenor. Ele observa que, se as leis e as regras da natureza são
uniformes, então precisam se aplicar a tudo. Com sua precisão característica,
ele diz:

Os afetos, portanto, de ódio, raiva, inveja etc., considerados em si


mesmos, vêm da mesma necessidade e força da natureza como as
outras coisas singulares […] Considerarei as ações e os apetites
humanos como se fossem uma questão de linhas, superfícies e
corpos”.

Ele observa que todos os estados emocionais vêm de três principais afetos:
desejo, prazer e dor. Porém, ao atravessar os milhares de estados emocionais
que “excedem todo cálculo”, ele os enxerga como se servissem a um único e
claro propósito: confirmar a existência de seu corpo e, assim, confirmar que o
“eu” existe; corpo e mente não são separados, conforme Descartes. Aí Spinoza
antecipa a psicologia em seu ponto de vista de que os estados emocionais são
firmemente o produto do cérebro, do sistema nervoso e da sensação corporal,
e não da “alma”.
Spinoza lamenta que, no dia a dia, a maioria de nós seja arrastada por
eventos externos e por nossa reação emocional a eles. No entanto, na última
parte do livro, ele observa que, se tudo acontece de acordo com causas
anteriores, ou necessidade, então não devemos ser afetados demais por nada,
pois tudo se desenrola como deveria. Em vez disso, devemos criar uma
estrutura para lidar com as emoções, com base no conhecimento de que uma
emoção só é superada por outra com a mesma potência. Assim, o ódio deve
ser superado “com amor ou generosidade, e não […] com ódio”.
Um afeto só é mau ou prejudicial na medida em que impede a mente de ser
capaz de pensar. O mais importante é que somos capazes de escolher nossas
reações. Na quarta parte, Spinoza descreve como “servidão” o estado em que
somos enredados pelos afetos, incapazes de nos disciplinar a um estado de
razão.

Tornar-se livre
Spinoza não fala de “moralidade”, apenas de coisas que são feitas de acordo
com a razão. Ele observa que o bem e o mal nada mais são do que
sentimentos de prazer ou dor. Uma coisa é boa se conserva ou melhora nosso
ser, e má se o diminui. O “pecado” não existe naturalmente, mas somente em
uma comunidade ou sociedade; o que constitui o bem ou o mal é “declarado
de comum acordo”. Em outras palavras, o pecado é simplesmente a
desobediência das leis que foram acordadas. Sua compreensão da “virtude”
também é decididamente moderna. A virtude é simplesmente agir de acordo
com nossa própria natureza ou “com base na busca do que é útil para nós”.
Aqui, o conceito “conatus” de Spinoza é importante. Conatus é o desejo de
uma coisa de persistir em ser; não uma luta pela existência ou a “vontade de
poder”, mas um simples desejo de manter seu impulso. “De tudo isso, então”,
observa ele, “é evidente que nem lutamos por uma coisa, nem temos vontade
dela, nem a queremos, tampouco a desejamos porque julgamos que seja boa;
ao contrário, julgamos que uma coisa é boa porque lutamos por ela, temos
vontade dela, a queremos, a desejamos.”
A felicidade também não resulta do desejo ou do prazer, mas da razão.
Razão inclui o conhecimento de nós mesmos e do mundo ao nosso redor
tanto quanto nossa inteligência permite. Tudo o que impede o crescimento de
nossa inteligência não é bom. Em um nível de caráter, as pessoas devem
concentrar-se apenas na “virtude ou na potência humana, e na maneira pela
qual ela possa ser aperfeiçoada”. Não devemos viver de acordo com o que
tememos ou queremos evitar, mas de acordo com a alegria que buscamos ao
viver segundo a razão.
Spinoza faz uma distinção entre ideias “adequadas”, aquelas verdades sobre
a vida que geramos autonomamente, por meio da percepção ou da razão, e que
levam a uma verdadeira ação; e ideias “inadequadas”, aquelas que nos levam a
agir. Viver de acordo com ideias inadequadas leva a um estado passivo no qual
a pessoa está sempre à mercê dos afetos e dos eventos. Não é uma existência
livre. Ele dá alguns exemplos: uma criança acredita que livremente quer leite;
uma criança nervosa busca vingança; um bêbado fala naquilo que parece ser
um jeito livre, mas se arrepende mais tarde do que disse. Loucos, bêbados,
tagarelas e crianças, todos fazem a mesma coisa; não conseguem impedir seus
impulsos. Na maioria dos casos, o que as pessoas acreditam ser suas decisões
são de fato seus apetites, e estes, naturalmente, “variam conforme a disposição
do Corpo varia”. No entanto, por meio da autodisciplina e da razão, nossos
afetos são postos em contexto e vistos por aquilo que são: coisas efêmeras que
não têm verdade elementar. Por meio do “amor intelectual de Deus” (ou da
persistência em mantermos nossa mente concentrada em um reino de
perfeição além de nosso eu mortal), seremos capazes de separar o fato da
ficção, a verdade da realidade.
Nosso objetivo na vida é fazer uma transição de ideias inadequadas para
ideias adequadas, de modo que possamos ver o universo da maneira que Deus
o vê, em vez de nos sujeitarmos a afetos e apegos. Pressagiando a psicologia
cognitiva e ecoando o budismo, Spinoza observa que, quando analisamos um
forte afeto, seu efeito desaparece.
A pessoa sábia vai além de suas paixões e seus apegos ao que Sêneca
chamou de vita beata, a vida bem-aventurada. Spinoza traça um contraste entre
a pessoa sábia – consciente de si mesma, com suas emoções sob controle e em
harmonia com as leis naturais de Deus – e a pessoa ignorante, impulsionada
pelo desejo e distraída, que nunca alcança o autoconhecimento, que “tão logo
deixa de sofrer, deixa também de ser”. Em suma, as pessoas que vivem de
acordo com a razão são muito mais úteis para outras do que aquelas que vivem
apenas de acordo com suas paixões.
O caminho do sábio não é fácil e é muito menos trilhado, mas, conforme a
famosa observação de Spinoza na última linha de Ética, “tudo que é precioso é
tão difícil quanto raro”.

Comentários finais
Certa vez perguntaram a Einstein se ele acreditava em Deus, e ele respondeu:
“Eu acredito no Deus de Spinoza”. Com isso ele quis dizer que acredita em
um universo conduzido não por algum espírito pessoal e intrometido, mas por
leis naturais impessoais.
O que significa ser humano em um mundo como este? Uma clara
implicação, como viu Spinoza, era a necessidade de o governo, que era liberal,
aberto e democrático, permitir uma grande variedade de interesses e crenças, e
seu Tractatus Theologico-Politicus [Tratado Teológico-Político], publicado em 1670,
oferece uma justificativa para a liberdade religiosa. A Holanda de seu tempo
era um dos lugares mais liberais do mundo, mas, mesmo assim, o livre
pensamento de Spinoza lhe trouxe problemas.
Hegel, entre muitos outros, acreditava que o trabalho de Spinoza marcava o
início da filosofia em sua forma moderna, e é bem possível defender que
Spinoza é o Isaac Newton de sua disciplina. Tal era sua tendência naturalista
que, se renascesse hoje, poderíamos estar bem certos de que ele sequer usaria a
palavra “Deus” em seus escritos, mas em vez disso se concentraria na
perfeição infalível das leis segundo as quais o universo funciona.

Baruch Spinoza
Os antepassados judeus de Spinoza fugiram da Inquisição portuguesa e
estabeleceram-se na próspera Holanda. Ele nasceu em Amsterdã, em 1622; seu
pai, Michael, era um comerciante bem-sucedido.
Spinoza recebeu uma boa educação em uma escola judaica que se
concentrava no aprendizado e na memorização da Bíblia hebraica e na
gramática. Ele estava destinado a tornar-se rabino, mas, quando a fortuna da
família minguou, e dentro de um espaço relativamente curto de tempo sua
irmã mais velha, sua madrasta e seu pai morreram, a responsabilidade de
continuar o negócio da família recaiu sobre ele. Ele desempenhava suas
funções, mas também um programa de autoeducação, aprendendo latim e
estudando Descartes. Começou a manifestar dúvidas sobre sua educação
bíblica e a crença nas almas e na imortalidade e, quando correram os boatos
sobre suas visões, sofreu um atentado. Aos 24 anos foi excomungado, e nem
mesmo sua família estava autorizada a falar com ele. Apesar da pressão social e
emocional, Spinoza não desistiu.
Mesmo sendo um pouco recluso, diziam que era prestativo e aberto, e se
tornou popular nos círculos intelectuais da Holanda. Morava em um quarto
alugado sobre o ateliê de um pintor em um dos canais de Amsterdã, e
conseguia uma renda com o polimento de lentes. Morreu em 1677, com
apenas 44 anos, poucos meses depois de seu famoso encontro com Leibniz.
Ética foi publicado logo em seguida.
2007

A lógica do cisne negro

“Relações lineares são realmente a exceção; só nos


concentramos nelas em salas de aula e livros-texto
porque são mais fáceis de entender. Ontem à tarde
tentei olhar ao redor com novos olhos para catalogar o
que conseguia ver durante o meu dia que fosse linear.
Não consegui encontrar nada, não mais do que alguém
caçando quadrados ou triângulos em uma floresta
tropical.”

“Nós, membros da variedade humana de primatas,


temos fome de regras porque precisamos reduzir a
dimensão das questões para que elas possam entrar
em nossa cabeça. Ou melhor, infelizmente, para que
possamos espremê-las em nossa cabeça. Quanto mais
aleatórias as informações, maior a dimensionalidade e,
portanto, mais difíceis de resumir. Quanto mais você
resume, quanto mais coloca em ordem, menor a
aleatoriedade. Portanto, a mesma condição que nos
faz simplificar nos força a pensar que o mundo é
menos aleatório do que realmente é.”

Em resumo
Queremos fazer com que o mundo pareça um lugar ordenado, mas a
frequência de eventos realmente inesperados deveria nos apontar que não
sabemos de verdade o que causa as coisas.

Na mesma linha
David Hume, Investigação sobre o entendimento humano (p. 182)
Daniel Kahneman, Rápido e devagar (p. 198)
Karl Popper, A lógica da pesquisa científica (p. 316)
Baruch Spinoza, Ética (p. 380)
Slavoj Žižek, Vivendo no fim dos tempos (p. 406)
Nassim Nicholas Taleb

Até um cisne negro ser avistado na Austrália Ocidental pelos primeiros


exploradores, as pessoas acreditavam que todos os cisnes eram brancos; era
parte da definição de cisnes que fossem brancos. No entanto, como Nassim
Nicholas Taleb enfatiza nessa obra vasta e brilhante, tudo o que você precisa é
de uma variação para mostrar a falsidade de suas suposições.
A partir dessa observação simples, derivada de Hume, Taleb cria toda uma
teoria de eventos e causalidade. Sua definição de evento “cisne negro” é a
seguinte: um evento que acontece contra todas as expectativas e tem um
enorme impacto. Curiosamente, a natureza humana após o fato tenta explicá-
lo como se tivesse sido previsível.
Nossa história se tornou a história de grandes eventos que ninguém
esperava. Ninguém, por exemplo, previa a gravidade da Primeira Guerra
Mundial, a ascensão de Hitler, o súbito colapso do bloco soviético, a difusão
da internet ou os atentados terroristas de 11 de Setembro. Ninguém prevê
ideias, modas, arte ou gêneros específicos que entram em voga. No entanto,
Taleb enfatiza que

um pequeno número de Cisnes Negros explica quase tudo em nosso


mundo, do sucesso das ideias e religiões até a dinâmica de
acontecimentos históricos, passando por elementos de nossa vida
pessoal.

Além disso, o efeito dos cisnes negros está aumentando porque o mundo
está ficando mais complicado. A combinação de baixa previsibilidade e grande
impacto causa um problema para a mente humana, pois nosso cérebro é
constituído para se concentrar no conhecido e no visível.
Taleb imagina dois lugares para expressar nossas formas de ver o mundo.
“Mediocristão” é um Estado em que há uma relação de igualdade entre
esforço e resultado, onde o futuro pode ser previsto e onde a maioria das
coisas se encaixa em uma ampla faixa de médias. “Extremistão” é
intrinsecamente instável, imprevisível, o tipo de lugar em que o vencedor leva
tudo. É neste último que vivemos realmente, e aceitar esse fato é o primeiro
passo para prosperar nele.
Como um “empirista cético”, os heróis de Taleb são David Hume, Sexto
Empírico e Karl Popper. Ele é bastante crítico ao tipo de filosofia concentrada
na linguagem que inunda a academia. Embora seja interessante, ele diz que não
tem nada a ver com o mundo real, um mundo em que as pessoas precisam
viver com a incerteza.

O que não sabemos…


O efeito do cisne negro é uma paródia das tentativas de reduzir a incerteza,
quer sob a forma de algoritmos financeiros sofisticados que têm a intenção de
eliminar o risco, quer sob a forma de previsões de cientistas sociais. Pense em
sua vida: como muitas coisas, desde conhecer seu cônjuge até a profissão que
você escolheu, vieram de acordo com um plano ou um cronograma? Quem
esperava ser demitido, exilado, enriquecer ou empobrecer? Taleb observa que
“a lógica do Cisne Negro torna o que você não sabe muito mais relevante do que
o que você sabe”, porque é o inesperado que molda nossas vidas. E, se é
assim, por que continuar acreditando que as coisas continuarão como no
passado? Ele diz que nossa mente sofre de um “terceto da opacidade”:
• Ilusão da compreensão – acreditamos que entendemos mais do que está
acontecendo no mundo do que realmente compreendemos.
• Distorção retrospectiva – atribuímos significado aos eventos depois de
terem acontecido, criando uma história. É o que chamamos de
“História”.
• Supervalorização da informação factual, de estatísticas e categorias – não
deveríamos nos enganar que as pessoas podem prever o futuro ou
mesmo nos dar uma imagem fiel da realidade.
Vivemos de acordo com as regras do que consideramos normal, mas
dificilmente a normalidade é prova de alguma coisa. Quando algo importante
acontece do nada, ficamos ansiosos para descontar sua raridade e sua
imprevisibilidade. Queremos ser capazes de explicá-lo. Mas não conhecemos
realmente uma pessoa até vermos como ela age em uma situação extrema, nem
podemos avaliar o perigo de um criminoso com base no que ele faz em um dia
comum. É o evento raro ou incomum que muitas vezes define uma situação, e
não o que quer que seja “normal”.
Não significa simplesmente que a pessoa média não enxerga o que está
acontecendo, os chamados especialistas e responsáveis também não veem. O
avô de Taleb foi ministro do governo libanês durante a guerra civil, mas afirma
que ele não conhecia mais sobre o que estava acontecendo do que seu
motorista. Ele não hesita em enfatizar a “arrogância epistêmica da raça
humana”, inclusive de CEOs que acreditam que o sucesso da empresa é
responsabilidade deles e não de um milhão de outros fatores, inclusive a pura
sorte. Ele observa que tais fantasias são incentivadas em escolas de negócios.
Taleb comenta que ninguém esperava a ascensão das religiões no mundo.
Estudiosos cristãos ficam perplexos pela falta de menção do início de sua fé
pelas crônicas romanas; da mesma forma, quem poderia ter previsto a rápida
difusão do islamismo? O historiador Paul Veyne observou que as religiões se
disseminam “como best-sellers”. No entanto, em nossa mente, rapidamente se
tornam parte da paisagem – nós as normalizamos. Pela mesma característica,
significa que ficaremos chocados com o aumento repentino da próxima nova
religião.
Para ilustrar seu ponto de vista sobre eventos extremos, Taleb pede que
consideremos um peru de fazenda. O peru vai olhar o fazendeiro com bons
olhos, pois todos os dias ele fornece uma abundância de comida, além de
abrigo. Mas sua experiência até agora é totalmente enganosa, porque, um dia,
de forma totalmente inesperada, ele será abatido. A moral da história é que,
apesar daquilo que nos foi dito, o passado em geral não nos diz nada sobre o
futuro; a aparente “normalidade” de hoje é “perversamente enganadora”. E. J.
Smith, capitão de um navio, disse, em 1907: “Nunca vi um naufrágio nem
estive em um, tampouco tive qualquer contratempo que ameaçasse terminar
em qualquer tipo de desastre”. Cinco anos mais tarde, o navio sob seu
comando era o Titanic.
O cérebro humano é desenvolvido para criar pressupostos gerais a partir da
experiência. O problema é que na vida real um cisne negro pode chegar depois
de toda uma existência vendo apenas cisnes brancos. É melhor insistir no fato
de que pouco sabemos e estar cientes das falhas de nosso raciocínio; a questão
não é sermos capaz de prever eventos de cisne negro, apenas estarmos um
pouco mais preparados mentalmente. É da natureza humana reagir a
acontecimentos imprevistos com pequenas adaptações concentradas que ou
tentam impedir que o evento aconteça de novo (se foi ruim) ou fazer com que
se repita (se foi bom). No entanto, o que deveríamos fazer é olhar para o que
não sabemos e por que não sabemos. Taleb diz que nós, seres humanos,
pensamos muito menos do que achamos que pensamos; a maioria de nossas
ações é instintiva, o que faz que com que seja menos provável que entendamos
os eventos de cisne negro, pois estamos sempre perdidos nos detalhes, apenas
reagindo. Tudo vem de fatores desconhecidos, enquanto “a todo momento
gastamos nosso tempo envolvidos em conversas supérfluas, concentrando-nos
no conhecido e no que se repete”.

… e como contorná-lo
Gostamos da certeza, mas o sábio enxerga que a certeza é ilusória, que
“compreender como agir segundo informações incompletas é a busca humana
mais elevada e mais urgente”.
Taleb observa que “as sucessões de episódios anedóticos selecionados para
montar uma história não constituem uma prova”. Em vez de tentar confirmar
nossas ideias existentes, devemos, como ensinava Popper, tentar falsificá-las.
Só então poderemos obter um sentido semipreciso da verdade. Quando
fazemos uma aposta financeira, os melhores investidores, como George Soros,
tentam encontrar casos em que sua suposição está errada. Taleb vê essa
“capacidade de olhar o mundo sem a necessidade de encontrar sinais que
afaguem o próprio ego” como a verdadeira autoconfiança. Ele admite que

é preciso um esforço considerável para enxergar os fatos […]


enquanto se abstém de julgamentos e se resiste a explicações. Essa
doença da teorização raramente está sob nosso controle: é amplamente
anatômica, parte de nossa biologia, de modo que combatê-la exige um
combate contra o próprio eu.

É compreensível que sejamos assim. Precisamos criar regras e simplificar


demais para colocar infinitas informações em alguma ordem em nossa cabeça.
Mitos e histórias permitem que compreendamos nosso mundo. A ciência
deveria ser diferente, mas, em vez disso, nós a usamos para organizar as coisas
em benefício próprio. Visto nesse contexto, o conhecimento é a terapia, que
apenas faz com que nos sintamos melhores. Cientistas e acadêmicos de todos
os tipos têm culpa aí, e é claro que vemos exemplos na imprensa todos os dias.
Se um candidato perde uma eleição, as “causas” serão exibidas à exaustão. Se
estão corretas ou não, pouco importa; o que realmente importa é que a
narrativa seja rapidamente veiculada, explicando por que o evento aconteceu.
Seria chocante para o âncora do jornal dizer: “Smith perdeu a eleição, mas
realmente não temos ideia do porquê”.
Não somente não sabemos das coisas, mas superestimamos totalmente a
extensão de nosso conhecimento, nossa eficiência e eficácia. Esse excesso de
confiança parece vir de fábrica. Taleb menciona experiências com estudantes
que precisavam estimar o tempo necessário para concluir seus projetos.
Divididos em dois grupos, os otimistas acharam que poderiam entregar em 26
dias; os pessimistas prometeram que entregariam em 47 dias. Qual foi o tempo
médio real de conclusão? 56 dias. (O próprio manuscrito de Taleb foi entregue
a seu editor com quinze meses de atraso.)
Somos assim porque criamos um “túnel” mental, sem levar em conta as
coisas “inesperadas” que nos tiram do rumo, embora, naturalmente, o
inesperado deva ser incorporado aos cálculos para se conseguir qualquer coisa.

Comentários finais
É fácil contestar a afirmação de Taleb de que “quase nenhuma descoberta,
nenhuma tecnologia digna de nota, veio de projeto e planejamento – foram
apenas Cisnes Negros”. Por exemplo, a DuPont passou anos desenvolvendo o
náilon, sabendo quanto o material seria valioso; e os medicamentos mais bem-
sucedidos, ainda que muitas vezes tenham surgido de descobertas ao acaso,
precisam de anos de desenvolvimento e planejamento antes de serem
comercializados. Mas Taleb tem razão quando comenta que organizações e
indivíduos precisam se concentrar mais em experimentar do que em planejar,
na probabilidade de que, por meio de constantes tentativas e erros, aumentem
as chances de criação de um cisne negro positivo – uma ideia que varra tudo à
sua frente, um produto que se torne líder de mercado. A outra dica que Taleb
apresenta é ter paciência:

Terremotos duram minutos, o 11 de Setembro durou horas, mas


mudanças históricas e implementos tecnológicos são Cisnes Negros
que podem levar décadas. Em geral, os Cisnes Negros positivos
demoram para mostrar seus efeitos, enquanto os negativos acontecem
muito rapidamente.

A construção de um grande empreendimento ocupará muitos anos, e,


embora nunca possamos saber o que o futuro nos reserva, a visão de longo
prazo nos permite que nos ajustemos aos obstáculos e reveses.
A lógica do cisne negro em si é um microcosmo do argumento de Taleb sobre a
complexidade: ele tem quase informação demais, desafios surpreendentes
demais à nossa maneira de pensar, para ser suscetível a um bom resumo. É
melhor lê-lo, mesmo que seja apenas pelas muitas digressões e exemplos
divertidos que não encontraram espaço aqui. O resumo anula a possibilidade
da descoberta aleatória, e são essas descobertas que fazem toda a diferença em
nossa vida e carreira.
Taleb é famoso por ter previsto, na edição original do livro, a crise
financeira de 2008, quando escreveu sobre a fragilidade dos grandes bancos,
sugerindo que, se um desmoronasse, todos poderiam acompanhar, pois eram
muito entrelaçados uns nos outros. Na segunda edição (2010), ele desenvolve o
conceito de fragilidade, observando que algumas lições foram aprendidas. Sua
crítica a megaempresas e instituições é que elas se dão melhor em muitos
aspectos do que as menores, e assim seus riscos tendem a ficar escondidos, o
que as torna mais vulneráveis a eventos de cisne negro.

Nassim Nicholas Taleb


Taleb nasceu em Amiún, Líbano, em 1960. Seus pais tinham cidadania
francesa, e ele frequentou uma escola francesa. Durante a Guerra Civil
Libanesa, que começou em 1975, ele estudou por vários anos no porão de sua
casa.
Antigo corretor de derivativos que virou um analista especializado em
problemas matemáticos de probabilidade e incerteza, ele ocupou cargos em
grandes bancos, como o Credit Suisse First Boston, UBS e BNP-Paribas. Taleb
atualmente é professor de engenharia de risco no Instituto Politécnico da
Universidade de Nova York e consultor da Universa, um fundo de hedge, e do
FMI. Seus títulos incluem um MBA da Wharton School, Universidade da
Pensilvânia, e um doutorado pela Universidade de Paris.
Outros livros: Iludidos pelo acaso (2001), Dynamic Hedging [Hedging dinâmico]
(1997), The Bed of Procrustes [O leito de Procusto] (2010) e Antifrágil (2012).
1953

Investigações filosóficas

“Denominar e descrever não estão no mesmo nível:


denominar é uma preparação para a descrição. O
denominar não é ainda um lance no jogo de linguagem
– como colocar uma peça no lugar no tabuleiro não é
um movimento no xadrez.”

“Alguém diz, por exemplo: ‘Na verdade, não tinha em


mente minha dor agora; não prestei atenção nela o
suficiente?’. Eu pergunto a mim mesmo, dizendo: ‘O
que eu quis dizer com esta palavra agora? Minha
atenção estava dividida entre a minha dor e o ruído?’.”

“Filosofia é a luta contra o enfeitiçamento de nosso


entendimento por meio da linguagem.”

Em resumo
Linguagem diz respeito a significado, não a palavras. Ainda assim, a
linguagem não pode expressar todo tipo de significado.

Na mesma linha
A. J. Ayer, Language, Truth and Logic (p. 40)
Saul Kripke Naming and Necessity (p. 222)
Bertrand Russell, A conquista da felicidade (p. 338)
Ludwig Wittgenstein

Quando Hermine, irmã de Ludwig Wittgenstein, o visitou na Universidade de


Cambridge, em 1912, Bertrand Russell disse a ela: “Esperamos que o próximo
grande passo na filosofia seja dado pelo seu irmão”. Ele tinha apenas 23 anos.
Dez anos mais tarde, o Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein foi
publicado em uma edição bilíngue alemão-inglês com introdução de Russell.
Escrito em reclusão em uma cabana de madeira na Noruega, sua sentença-
chave é: “Os limites de minha linguagem são os limites de meu mundo”. A
linguagem deveria simplesmente tentar expressar imagens dos fatos; todo o
restante, inclusive falar de conceitos abstratos, valores, filosofia e assim por
diante, é sem sentido. O Tractatus descreveu a fase doutrinária de Wittgenstein
e se resume na famosa afirmação: “Sobre aquilo de que não se pode falar,
deve-se calar”.
Com a conclusão do Tractatus, Wittgenstein acreditava que havia posto um
ponto-final na filosofia, e, por isso, ele deixou o mundo acadêmico. Doou todo
seu dinheiro a seus irmãos (era o oitavo filho de uma rica família vienense),
trabalhou como professor primário em uma aldeia montanhosa, foi jardineiro
de um mosteiro e projetou uma casa para sua irmã (em medidas incrivelmente
exigentes). Em 1929, porém, retornou à Universidade de Cambridge como
pesquisador, tornando-se mais tarde professor de filosofia.
Investigações filosóficas foi publicado depois de sua morte. Como observa no
prefácio, o livro é composto de comentários, declarações e pensamentos que
muitas vezes parecem saltar de um assunto a outro. Seu desejo era tecer um
trabalho mais fluido, mas decidiu que dar uma direção ao livro o deixaria
artificial. Consistindo principalmente de experiências de pensamento e jogos
de palavras, é mais fácil de ler que o Tractatus, e não se empenha em ter a
exatidão do livro anterior. Mas, nos dois livros, o que Wittgenstein deixa por
dizer (propositalmente) é quase mais importante que o texto em si.

O que é linguagem?
A linguagem simples não consiste em explicação, diz Wittgenstein, é apenas
um guia para as coisas. Assim, quando uma criança começa a falar, é uma
questão de treinamento para ela saber o nome dos objetos. Nenhuma
explicação da linguagem em si é necessária. “Proferir uma palavra é como
tocar uma tecla no piano da imaginação”, escreve ele, em que cada “nota” ou
palavra evoca uma imagem.
Como o significado das palavras em relação às coisas difere de acordo com
o contexto, o tempo e o lugar em que elas são faladas, Wittgenstein não
descreve a linguagem em termos de um conjunto de regras abstratas. Em vez
disso, ele é um “jogo”. Quando crianças, passamos de palavras quase
literalmente “sendo” coisas (por exemplo, a palavra “cadeira” vem a significar
cadeira em nossa mente) para um entendimento de que as palavras significam
as coisas, com o uso de palavras mais abstratas como “isso” e “lá”. Então,
começamos a pensar em termos de categorias. Dessa forma, afirma
Wittgenstein, a linguagem cresce:

Nossa linguagem pode ser vista como uma cidade velha: um labirinto
de vielas e praças, casas novas e antigas e de casas com acréscimos de
diferentes épocas; e ela está cercada por uma multiplicidade de novos
bairros com ruas retas e regulares e casas uniformes.

Wittgenstein tenta mostrar a grande variedade de jogos de linguagem, que


inclui dar ordens e obedecer a elas, descrever a aparência de um objeto ou
atribuir medidas, relatar ou especular sobre um evento, formar e testar uma
hipótese, apresentar os resultados de um experimento em tabelas, criar uma
história e lê-la, atuar, cantar uma cantiga de roda, resolver enigmas, criar e
contar piadas, resolver problemas de aritmética, traduzir de uma língua para
outra e “pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar”. Ele observa:

É interessante comparar a multiplicidade de ferramentas de linguagem


e as formas como são usadas, a multiplicidade de tipos de palavra e
frase com aquilo que os lógicos disseram sobre a estrutura da
linguagem (inclusive o autor do Tractatus Logico-Philosophicus).

Aqui Wittgenstein está admitindo que estava errado sobre a linguagem


como meio de descrever o mundo; ela é muito mais. Palavras não
simplesmente denominam coisas, com frequência transmitem significado
elaborado, e muitos significados diferentes a partir da mesma palavra. Ele
menciona exclamações como Água! Fora! Ai! Socorro! Bonito! e Não! e
pergunta: é possível realmente dizer que essas palavras são simplesmente
“denominações de objetos”?
A linguagem, então, não é uma lógica formal que marca os limites de nosso
mundo, como ele havia dito antes; é um meio de fluxo livre e criativo de criar
nosso mundo. A profundidade e a variedade de nossa linguagem são o que nos
separa de outros animais; “Comandar, questionar, recontar, conversar são tão
parte de nossa história natural quanto andar, comer, beber, brincar”.
As palavras reais faladas com frequência dizem menos do que a maneira
como são faladas e a linha de discurso como um todo. Quando pedimos a
alguém para nos trazer uma vassoura, não montamos a frase nos seguintes
termos: “Por favor, traga-me um cabo de madeira com uma escova presa a
ele”. A linguagem não decompõe as coisas em partes lógicas; na verdade,
funciona para criar a representação de objetos reais sem levar em conta o uso
pretendido. Se pedirmos a alguém para nos trazer uma vassoura, pode ser
outra forma de dizer que estamos prestes a varrer, e a outra pessoa pode
entender isso instantaneamente. Uma palavra não existe por si, mas é parte de
uma “família de significados”. Wittgenstein entra em minúcias, por exemplo,
para identificar o que queremos dizer quando falamos a palavra “jogo”. Ele
esgota todos os tipos de jogos (jogos de tabuleiro, esportes, uma brincadeira
de criança e assim por diante) e é incapaz de dizer exatamente o que um jogo é
e o que não é. E, no entanto, todos nós sabemos o que é um jogo. De novo, isso
nos mostra que, diante do significado, as definições não importam; dito de
outra forma, a linguagem não dita os limites de nosso mundo. Não tem regras
fixas e definidas, nem lógica objetiva, como filósofos esperavam identificar. A
linguagem é uma construção social, um jogo em que a ordem é livre e evolui
enquanto jogamos.
Wittgenstein comenta que denominar as coisas é um “processo oculto” que
os filósofos levam a extremos. Eles fazem conexões entre denominações e
objetos apenas por desejar que a conexão exista. Problemas filosóficos surgem
quando os filósofos veem a denominação de alguma ideia ou algum conceito
como um “batismo”, um momento importante, quando, na verdade, o
significado contextual é o que importa, e não as denominações. É famosa sua
frase de que a verdadeira filosofia é uma luta constante contra o
“enfeitiçamento” da disciplina pela própria linguagem.

Linguagem privada
Wittgenstein levanta a questão da “linguagem privada”, ou palavras ou
significados que damos a nós mesmos para descrever certos estados ou
sensações. Esses significados particulares não são realmente uma linguagem,
porque uma linguagem requer alguma configuração social externa na qual seu
significado possa ser confirmado. Ele imagina várias pessoas, cada qual com
uma caixa, dentro da qual elas têm algo que todo mundo vai chamar de
“besouro”. Mas e se o que está nas caixas for totalmente diferente em cada
caso? Isso nos mostra que a denominação das coisas, se for feita de maneira
privada, não é uma denominação de verdade, uma vez que denominar exige o
comum acordo quanto a seu significado. Consequentemente, pensamentos só
têm validade se puderem ser expressos e compreendidos. “Um ‘processo
interior’”, observa ele, “exige critérios externos.”
Outra frase famosa do livro é: “Se um leão pudesse falar, não
conseguiríamos compreendê-lo”. A linguagem depende do acordo comum
quanto a seu significado, e os animais naturalmente têm uma ordem totalmente
diferente de significado. Um leão, por exemplo, vê alguém caminhando através
da savana não como uma “pessoa”, mas como uma potencial fonte de
alimento. Sem concordarmos com o que as coisas significam, como
poderíamos ter uma conversa com um leão, mesmo supondo que ele pudesse
falar? Wittgenstein traz a ideia de entrar em um país estrangeiro. Além das
barreiras de linguagem, não podemos sentir nenhuma relação com as pessoas
simplesmente porque sua maneira de ver o mundo é totalmente diferente da
nossa. Sentimos que elas não “falam nossa língua” – ou seja, nossa linguagem
de significados, não de palavras reais.

Evidência imponderável
Wittgenstein diz que o problema com a psicologia como disciplina é que ela
está tentando estudar os seres humanos em termos de evidências, mas muito
de nosso conhecimento sobre o que motiva as pessoas se baseia em
informações “imponderáveis”. Somos capazes de perceber as sutilezas dos
estados interiores alheios, mas não podemos dizer exatamente como chegamos
a ter esse conhecimento:

Evidência imponderável inclui sutilezas do olhar, dos gestos, do tom.

Posso reconhecer um verdadeiro olhar amoroso, distingui-lo de um


fingido (e aqui, claro, pode haver uma confirmação “ponderável” do
meu juízo). Mas posso ser absolutamente incapaz de descrever a
diferença. E não porque as linguagens que conheço não têm palavras
para tanto.
Pergunte-se: como se aprende a ter um “olhar” para alguma coisa?
E como esse olhar pode ser utilizado?
Saber o que move alguém não é uma questão de prendê-lo a uma máquina e
testar seus estados fisiológicos ou cerebrais; isso envolve um julgamento, e é
possível obter esse conhecimento, diz Wittgenstein, somente por meio da
experiência de vida, não por meio de um “curso”. Se a psicologia tem regras,
elas não fazem parte de um sistema que possa ser estudado, porque não
podemos colocar em palavras tal indefinição.

Comentários finais
Wittgenstein não tentou negar que temos uma vida interior, só que não se
poderia falar dela de forma lógica. Embora o “jogo da linguagem” seja de
extraordinária profundidade e complexidade, existem áreas da experiência que
nunca podem ser adequadamente expressas na linguagem, e é errado tentar
fazê-lo.
Wittgenstein foi fortemente influenciado por As variedades da experiência
religiosa, de William James, pelo cristianismo filosófico de Kierkegaard e pelos
escritos de Santo Agostinho; apesar de sua ascendência judaica, ele foi criado
católico, e durante seus anos de guerra era impossível separá-lo de sua Bíblia.
Adorava visitar igrejas e catedrais e comentou com seu amigo de Cambridge,
M. O’C. Drury, que “todas as religiões são maravilhosas”. Mas ele era
realmente fiel ou simplesmente gostava dos paramentos da espiritualidade? Se
seguirmos o pensamento do próprio Wittgenstein, isso não importa de
nenhuma maneira, ou pelo menos uma discussão sobre isso não tem
significado, pois não se podem identificar os estados interiores de uma pessoa.
O que realmente importa é como uma pessoa se manifesta. Em um livro de
memórias, Drury relatou que Wittgenstein disse: “Se você e eu tivermos de
levar vidas religiosas, não deve ser porque falamos muito de religião, mas
porque, de alguma forma, nossa vida é diferente”.
Em um relato sobre seu irmão, Hermine admitiu completamente a irritação,
o constrangimento social e a sensibilidade extremos dele, mas também falou de
seu “grande coração”. Sua professora de russo, Fania Pascal, descreveu-o em
termos semelhantes, mas também observou sua “integridade” incomum e a
certeza sobre seus pontos de vista; alguém bom para ter por perto em uma
crise, mas que não perdoava as preocupações e as manias cotidianas dos seres
humanos.
Essas memórias retratam um homem amplamente desinteressado em si
mesmo, ou no eu, e, em vez disso, sugerem um foco no ser útil em um mundo
onde as coisas podem “funcionar bem”. Quando Drury teve dúvidas sobre sua
formação como médico, Wittgenstein lhe disse para não pensar em si mesmo,
apenas no bem que ele poderia fazer. Que privilégio, enfatizou ele, ser o último
a dizer boa-noite aos pacientes ao fim do dia! Embora fosse importante para
ele, Wittgenstein via seu trabalho como apenas mais um “jogo”; a linguagem e
o filosofar não eram nada frente à própria vida.

Ludwig Wittgenstein
Nascido em 1889 em uma família vienense ilustre e culta (sua irmã Margaret
foi pintada por Gustav Klimt), Wittgenstein foi educado em casa,
frequentando a escola apenas nos três anos finais. Na adolescência, foi para
Berlim estudar engenharia mecânica e, em seguida, para Manchester, onde fez
uma pesquisa em aeronáutica. Enquanto estava na Inglaterra, leu The Principles
of Mathematics [Os princípios da matemática], de Bertrand Russell, o que o fez
mudar seu curso em direção à lógica e à filosofia.
Ele se mudou para Cambridge em 1911 e, quando a guerra eclodiu, se
alistou no exército austríaco; abriu caminho por vontade própria até a linha de
frente, recebendo medalhas por bravura, mas se tornou prisioneiro de guerra
na Itália. No campo prisional, ele escreveu o Tractatus.
Entre 1920 e 1926, Wittgenstein não era afiliado a nenhuma universidade.
A escola onde ele lecionou ficava em Trattenbach, uma aldeia montanhesa
austríaca. A casa que ele projetou em Kundmanngasse, Viena, agora é um
museu.
Voltou a Cambridge em 1929 como pesquisador e, mais tarde, foi laureado
com uma cátedra no Trinity College. Faleceu em Cambridge, em 1951.
2010

Vivendo no fim dos tempos

“Compare a reação à crise financeira de setembro de


2008 com a conferência de Copenhague de 2009:
salvar o planeta do aquecimento global
(alternativamente: salvar pacientes com Aids, salvar
aqueles que morrem por falta de recursos para
tratamentos e operações caras, salvar crianças
famintas, e assim por diante) – tudo isso pode esperar
um pouco, mas o chamado de “Salve os bancos!” é um
imperativo incondicional que exige e recebe uma ação
imediata. O pânico aqui foi absoluto, uma unidade
transnacional e apartidária foi imediatamente
estabelecida, todos os rancores entre líderes mundiais
esquecidos momentaneamente a fim de evitar a
catástrofe. Podemos nos preocupar quanto quisermos
com as realidades globais, mas o Capital é o Real de
nossa vida.”

“Não podemos mais confiar no âmbito limitado de


nossos atos: ele já não aguenta mais, seja lá o que
façamos, a história vai prosseguir, independentemente
de qualquer coisa.”

Em resumo
O capitalismo tornou-se uma ideologia que não permite alternativas, mas é
mal equipado para enfrentar grandes problemas ambientais, científicos e
sociais.

Na mesma linha
Jean Baudrillard, Simulacres et Simulation (p. 54)
Noam Chomsky, Para entender o poder (p. 92)
G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito (p. 158)
Martin Heidegger, Ser e tempo (p. 168)
Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal (p. 292)
Slavoj Žižek

Uma “espécie de comunista” que ama os escritos da arquicapitalista Ayn Rand,


o filósofo esloveno Slavoj Žižek é cheio de contradições. Fortemente
influenciado por Lacan, Hegel, Freud, Kant e Heidegger, seus escritos não
oferecem nenhuma teoria abrangente e, em vez disso, tentam desafiar
pressupostos sobre a era contemporânea. Uma “má consciência” do mundo
nos moldes nietzschianos, seu questionamento das vacas sagradas liberais, tais
como a tolerância e a democracia, levou a conservadora revista norte-
americana National Review a descrevê-lo como “o mais perigoso filósofo do
Ocidente”.
Best-seller de quinhentas páginas, Vivendo no fim dos tempos faz a dramática
sugestão de que o capitalismo liberal está chegando a um ponto de crise, e
Žižek conta os quatro “cavaleiros do apocalipse” que sinalizam seu final: a
crise ecológica (que é, no mínimo, subestimada), as consequências da
revolução biogenética (mercados e governos não serão capazes de controlá-la
ou regulá-la, e isso vai levar a novas divisões na sociedade, entre aqueles que
poderão pagar por manipulação genética ou melhorias mentais e físicas e
aqueles que não poderão), lutas por matérias-primas, alimentos e água e “o
crescimento explosivo das divisões sociais e exclusões”.
Ele começa por discutir a ideia de Freud de Unbehagen in der Kultur, o mal-
estar na civilização. Duas décadas após a queda do Muro de Berlim, ele
observa que o capitalismo liberal não trouxe a utopia que as pessoas esperavam
e, de fato, em muitos países ex-comunistas, candidatos comunistas têm se dado
bem nas eleições. O socialismo, na forma em que era expresso, obviamente foi
um fracasso, mas, como o homem que sonha em fugir com sua amante e,
assim que tem a oportunidade, fica chocado que isso não o faz feliz, a
transição para o capitalismo só tem servido para realçar suas falhas, comenta
Žižek. “Há uma grande desordem sob os céus”, mas não queremos admitir
que isso está acontecendo.

Angústia do fim dos tempos


A estrutura de Vivendo no fim dos tempos segue os famosos “cinco estágios do
luto” de Elisabeth Kubler-Ross: negação, raiva, barganha, depressão e
aceitação. Žižek afirma que há uma abundância de branqueamento ideológico
acontecendo para negar que alguma coisa está mudando. A raiva é expressa em
protestos contra a ordem capitalista global, de um lado, e o fundamentalismo
religioso, de outro. A negociação está assumindo a forma de um novo nível de
discussão sobre a economia política e o renascimento do pensamento
marxista. A depressão é o resultado de eventos aleatórios que parecem não ter
significado cosmológico.
De tudo isso emerge uma aceitação da necessidade de novas formas de
participação e emancipação, possibilitadas pela crise do capitalismo e pelo
fracasso da democracia para permitir que a verdadeira voz popular seja ouvida.
Žižek comenta que parte do problema do capitalismo é que ele saiu de suas
raízes “éticas protestantes” para se tornar apenas uma cultura de inveja e
consumismo. Significa que todos os tipos de contradições e problemas sociais
devem ser resolvidos por meio da troca. Os exemplos incluem campanhas para
doar a crianças com fome em países em desenvolvimento que carregam a
mensagem “Doe dinheiro – e você não terá de pensar sobre as verdadeiras
causas dos problemas delas!”; e empresas como a TOMS Shoes, que dá um par
de sapatos para pessoas muito pobres para cada par que você comprar. Em
nenhum dos casos existe uma necessidade de realizar qualquer ação social; o
dinheiro e o mercado eximirão a pessoa de toda a culpa.
Žižek enxerga o capitalismo como uma ideologia profunda com milhões de
fiéis; por isso, quando é desafiado, sabemos que algo está errado:

Não apenas a fé religiosa faz parte do capitalismo, o capitalismo


também é, em si, uma religião, e isso também depende de fé (na
instituição do dinheiro, entre outras coisas). Esse ponto é crucial para
compreender o funcionamento cínico de ideologia: em contraste com
o período de sentimentalismo ideológico-religioso encoberto pela
brutal realidade econômica, hoje é o cinismo ideológico que obscurece
o núcleo das crenças religiosas capitalistas.

Ele faz alusão à observação de Walter Benn Michaels de que os liberais


norte-americanos se concentram no racismo e no sexismo, de modo que não
têm muito mais para abordar o problema muito maior do próprio capitalismo.
Como exemplo de ideologia contemporânea, Žižek menciona os programas de
viagem de Michael Palin na BBC. Eles trazem um olhar irônico sobre o mundo
“enquanto filtra dados realmente traumáticos” sobre as condições locais.
Parecem ser apolíticos, mas isso é impossível, considerando que o mundo
onde vivemos é saturado e totalmente moldado pelas crenças capitalistas.
A caricatura de capitalistas gananciosos deve ser substituída por uma
apreciação do esforço incansável do Capital como uma força impessoal que se
reproduz e não dá a mínima para a ecologia. A necessidade de salvar o planeta
e salvar as pessoas é ignorada quando se precisa salvar os bancos e a ordem
capitalista. Portanto, o capitalismo pode ser visto como uma ideologia que
ameaça a nossa sobrevivência no longo prazo.

Mantendo as aparências
Ao escrever sobre a organização Wikileaks, Žižek alega que o alvo real de suas
atividades não são Estados individuais ou os políticos, mas a estrutura de
poder em si, inclusive os detratores “aceitos” do poder (a imprensa,
organizações não governamentais, e assim por diante). O “sucesso” do
Wikileaks é um sinal de que a ordem existente já não pode se conter ou se
controlar. Nem é tanto porque os segredos foram expostos, mas porque a
demonstração de poder não pode mais continuar do jeito que está:

A única coisa realmente surpreendente sobre as revelações é que não


houve nenhuma surpresa nelas: não soubemos exatamente o que
esperávamos saber? Apenas a capacidade de “manter as aparências” foi
perturbada […] Esse é o paradoxo do espaço público: mesmo que
todos saibam um fato desagradável, declará-lo publicamente muda
tudo.

Ele menciona um sacerdote italiano que foi suspenso pelo Vaticano por
admitir em uma entrevista que era homossexual, enquanto centenas de
sacerdotes pedófilos continuaram impunes. Sua observação baudrillardiana de
que “o que importa é a aparência, não a realidade” poderia ser o julgamento de
Žižek sobre toda a Idade Moderna. Ele escreve:

Uma das habilidades culturais mais elementares é saber quando (e


como) fingir não saber (ou se dar conta), como continuar agindo como
se algo que aconteceu não aconteceu de fato.

Essa necessidade de manter as aparências a todo custo é a marca da


ideologia.
Žižek discute o fracassado estado do Congo, que é liderado por senhores
de guerra que drogam as crianças para servir em seus exércitos e são pagos por
empresas estrangeiras de mineração que extraem a riqueza. Os minerais
vendidos são usados em componentes para computadores portáteis e telefones
celulares. Somos levados a crer que o Congo decaiu em uma anarquia devido à
selvageria dos habitantes locais, mas, na verdade, as empresas estrangeiras são a
fonte da maioria dos problemas. “Existe certamente uma grande escuridão na
densa selva congolesa, mas suas causas estão em outro lugar, na luminosa área
dos escritórios executivos de nossos bancos e empresas de alta tecnologia”,
comenta Žižek. Por trás da guerra étnica, “discernimos as engrenagens do
capitalismo global”.
Apesar de sua visão do capitalismo, ele não é antiamericano e vê uma
grande hipocrisia na “atitude europeia de se ater a elevados princípios morais
enquanto silenciosamente conta com os Estados Unidos para fazerem o
trabalho sujo em nome de sua estabilidade”. Enquanto a Europa se vê como o
terminal civilizado do progresso humano, livre de guerra, na verdade só pode
desfrutar dessa existência porque os Estados Unidos ainda estão dispostos a
ser parte da “história” em toda a sua violenta bagunça hobbesiana. Muitos
europeus veem os Estados Unidos como os fora da lei ou os canalhas,
impulsionados pela ideologia, enquanto os norte-americanos veem a Europa
como pragmática demais e cega às ameaças reais.

O fracasso da tolerância
Um dos motivos principais pelos quais Žižek não é aceito pela esquerda
socialista tradicional são suas visões decididamente “incorretas”. Uma delas diz
respeito à tolerância. Ele não é contra ela, em princípio, mas “me oponho à
percepção (contemporânea e automática) do racismo como um problema de
intolerância. Por que há tantos problemas hoje percebidos como problemas de
intolerância, em vez de problemas de desigualdade, exploração ou injustiça?
Por que o remédio proposto é a tolerância, em vez de emancipação, luta
política ou mesmo a luta armada?”.
Assim, nós nos desdobramos tanto para sermos vistos como bons
multiculturalistas que ficamos cegos à possibilidade de que alguém possa ser
intolerante porque foi relegado à marginalidade econômica e enxerga os outros
como responsáveis por seu sofrimento. Se eles se sentissem iguais, com
direitos e com dinheiro, sua intolerância derreteria.
Liberais ocidentais não querem criticar o islamismo porque seria
“desrespeitoso” às reivindicações de verdade da religião. Mas a adesão à
ideologia do multiculturalismo e da tolerância só funciona na medida em que a
pessoa não é pessoalmente afetada. Quando as pessoas são afetadas (por
exemplo, quando os homossexuais dos Países Baixos começaram a ser
atacados por muçulmanos do país e, como resultado, muitos se alinharam a
partidos de direita que lutam pelo fim da imigração vinda de países árabes),
vemos a superficialidade dessas ideologias. A tolerância, afirmou Žižek em
entrevistas, é apenas uma “maneira descafeinada de ver o Outro” na sociedade.
O que identifica outros fundamentalistas muçulmanos e cristãos é sua
tentativa desesperada de mudar o mundo segundo seu modo de pensar, o que
sugere uma profunda falta de convicção. Eles exteriorizam isso atacando
outros que apenas insinuam blasfêmia ou críticas. Nossa tolerância
politicamente correta à crença fundamentalista apenas incita o ressentimento
do fundamentalista, e o fato de que a mera tolerância o enfurece deveria nos
mostrar que ela não funciona como um princípio social.

Comentários finais
Žižek acredita que, em sua forma atual (tomada por interesses corporativos
garantidos), a democracia simplesmente reflete a ideologia hegemônica atual e
não pode provocar o que Alain Badiou chama de “Evento da Verdade”, algo
que realmente mudará a ordem existente. Quanto mais um indivíduo ou um
grupo investiu na ordem atual, mais disposto estará a defender as mentiras.
Apenas os desfavorecidos podem dizer as coisas exatamente como elas são,
pois não têm nada a perder.
“A tarefa de hoje”, diz ele, “é, portanto, inventar uma nova forma dessa
distância em relação ao Estado, ou seja, um modo novo de ditadura do
proletariado.” Ele tenta delinear o que um ethos comunitário poderia alcançar.
Seria principalmente um protetor da “área comum”, “aquele espaço universal
da humanidade do qual ninguém deve ser excluído”. A área comum inclui o
ambiente em que vivemos e que, em última análise, ninguém pode possuir; a
área comum biogenética, que não deveria estar aberta à exploração; e a área
comum cultural, que não deveria ser capaz de ser sequestrada por qualquer
grupo particular ou ideologia. Porém, como Žižek prontamente admite, todas
as tentativas de organização comunitária foram sabotadas pela própria natureza
humana (nosso desejo de possuir ou dominar) e resultaram em regimes
horríveis que embruteceram a criatividade e a liberdade. Se sua visão é sempre
de se aproximar da realidade, ela terá de ser baseada em como os seres
humanos realmente são, e não em como gostaríamos que fossem.
As contradições e a complexidade de Vivendo no fim dos tempos podem
simplesmente refletir o estilo de Žižek, mas também espelham o nosso tempo.
Žižek compartilha com Hegel a crença de que a filosofia põe todas as outras
áreas do conhecimento – política, sociologia, psicologia, economia – em
perspectiva. Para ele, a filosofia é apenas como Nietzsche descreveu: a rainha
das disciplinas, com poder para moldar o mundo.

Slavoj Žižek
Žižek nasceu em 1949, em Liubliana, Eslovênia (então parte da Iugoslávia
comunista). Seu pai era economista e funcionário público, sua mãe, contadora
em uma empresa de propriedade do Estado. Ele se doutorou em filosofia na
Universidade de Liubliana antes de ir a Paris estudar psicanálise.
De volta à Eslovênia, Žižek foi incapaz de conseguir um cargo na
universidade, passou vários anos no serviço nacional e então ficou
desempregado. No final da década de 1970, fazia parte de um grupo de
intelectuais eslovenos concentrados no trabalho do filósofo psicanalítico
Jacques Lacan e, na década de 1980, traduziu Freud, Lacan e Althusser para o
esloveno. No final de 1980, publicou um livro sobre a teoria cinematográfica,
escreveu para a revista alternativa Mladina e era um ativista que lutava pela
democracia na Iugoslávia. Quando a Eslovênia conquistou a independência em
1990, candidatou-se à presidência (sem sucesso). Era casado com a filósofa
eslovena Renata Salecl, e sua segunda esposa foi Analia Hounie, modelo
argentina.
Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia (1989) foi seu primeiro
livro escrito em inglês e fez seu nome nos círculos internacionais de teoria
social. Outros livros incluem O sujeito incômodo (1999), Como ler Lacan (2006),
Em defesa das causas perdidas (2008), Primeiro como tragédia, depois como farsa (2009) e
Menos do que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético (2012).
O filme Žižek: a realidade do virtual (2007) concentra-se em sua vida e sua
obra; também foi o apresentador do filme O guia pervertido do cinema (2006). Ele
é professor de filosofia e psicanálise na European Graduate School, na Suíça, e
leciona na Universidade de Nova York.
Mais 50 clássicos da filosofia

1. Jane Addams, Democracy and Social Ethics [Democracia e


ética social] (1902)
O trabalho de Addams com os norte-americanos carentes expressou o
pragmatismo de William James e John Dewey na prática. Sua filosofia,
especialmente o “conhecimento compassivo” (que ajuda a diminuir as
barreiras sociais), agora é vista como valiosa em si mesma.
2. Theodore Adorno, Minima moralia: reflexões a partir da
vida danificada (1951)
Uma densa crítica ao capitalismo contemporâneo e às possibilidades de
liberdade à luz condutora da teoria crítica da Escola de Frankfurt, inspirada
por Hegel, Marx, Kierkegaard, Nietzsche e Freud.
3. Santo Agostinho, Cidade de Deus (426)
Uma grande influência no Ocidente em toda a Idade Média, este livro
estabelece uma distinção entre a cidade celestial ideal, para onde a
humanidade deve voltar seus olhos, e as preocupações terrenas, que só
podem acabar mal. Escrito não muito tempo após o saque de Roma pelos
visigodos.
4. Elizabeth Anscombe, Intention [Intenção] (1957)
Aluna de Wittgenstein e tradutora que notoriamente destruiu as provas de
C. S. Lewis quanto à existência de Deus, em sua obra-prima Anscombe
lançou as bases para a “teoria da ação”. Até que ponto nossas ações são o
produto de desejos ou crenças ou de ambos?

5. Tomás de Aquino, Suma Teológica (1273)


Mais que uma defesa do cristianismo, uma visão de como o mundo passou
a existir e para que serve, de uma época em que a teologia e a filosofia eram
interligadas. Tomás de Aquino argumenta que, se o universo funciona de
acordo com a causa e o efeito, a lógica dita que deve ter havido uma causa
inicial, algo que criou o potencial para todo o resto. No entanto, apesar de
sua origem divina, o potencial do mundo só é cumprido pela humanidade.

6. Marco Aurélio, Meditações (século II d.C.)


A expressão atemporal da filosofia estoica pelo imperador romano, ainda
amplamente lido e apreciado.

7. Averróis, The Incoherence of the Incoherence [A


incoerência da incoerência] (século XII d.C.)
Justificativa do filósofo árabe do uso do pensamento aristotélico na filosofia
islâmica; o título é uma réplica a The Incoherence of the Philosophers [A
incoerência dos filósofos], de Al-Ghazali.

8. Francis Bacon, Ensaios (1597)


Originalmente escrito como um desvio das principais obras científicas e
teológicas de Bacon, Ensaios é seu trabalho mais lido atualmente.
Pensamentos fascinantes do fundador do empirismo e do método
científico.

9. Alain Badiou, O ser e o evento (1987)


A “multiplicidade”, e não a individualidade, explica a natureza de nosso ser.
Um importante texto do pós-estruturalismo francês.

10. Roland Barthes, O grau zero da escrita (1953)


A maneira como algo é escrito é tão importante quanto o conteúdo. Uma
das principais obras da escola estruturalista.

11. George Berkeley, Tratado sobre os princípios do


conhecimento humano (1710)
Contém a argumentação notável do bispo anglo-irlandês de que o mundo é
essencialmente composto de ideias, não de coisas. Embora nunca possamos
ter certeza de como é o mundo “real” (a matéria é uma abstração), o
mundo das ideias em nossa mente é, sem dúvida, bastante real, e as coisas
só têm realidade na medida em que são percebidas (“Ser é ser percebido”).
Deveríamos confiar que o padrão de nossa experiência faz sentido, uma vez
que é divinamente ordenado.
7
12. Isaiah Berlin, O porco-espinho e a raposa (1953)
Famoso ensaio do filósofo britânico sobre os escritos de Tolstói, que ele
sugere apontar para dois níveis de realidade: o mundo fenomênico que
vemos ao nosso redor e um plano mais profundo de verdade que os seres
humanos raramente percebem.

13. Boécio, A consolação da filosofia (século VI d.C.)


Depois da Bíblia, a obra mais influente da Idade Média cristã, escrita
enquanto Boécio estava no corredor da morte. Oferece uma argumentação
elegante para a bondade de Deus em um mundo turbulento e muitas vezes
maléfico.

14. Martin Buber, Eu e tu (1923)


Buber deixou sua educação judaica ortodoxa para estudar filosofia
ocidental. Esse famoso ensaio fez a distinção entre dois modos de ser: “eu-
isso” (nossa experiência de objetos vivida pelos sentidos) e “eu-tu”
(experiência de ser por meio dos relacionamentos). O sentido da vida
encontra-se em nossos relacionamentos.
15. Gilles Deleuze & Félix Guatarri, O anti-Édipo (1972)
Como desejos privados entram em conflito com estruturas sociais,
inspirando-se na psicanálise e no pensamento marxista.

16. Jacques Derrida, Gramatologia (1967)


Descreve a teoria dos “traços”, famosa por ser difícil na linguística; também
é o livro mais acessível de Derrida.
17. John Dewey, Como pensamos (1910)
O grande pragmatista e teórico educacional norte-americano aborda um
pensar mais eficaz. Depois de cem anos, ainda tem muitas percepções
excelentes.
18. Jacques Ellul, Propagandes [Propaganda] (1973)
Mais relevante que nunca, o anarquista cristão francês Ellul explica como a
propaganda vai além da política para fazer o indivíduo servir e obedecer.
Uma de suas ideias é que as pessoas que consomem a maioria dos meios de
comunicação são as mais propagandizadas.
19. Paul Feyerabend, Contra o método (1975)
O trabalho que tornou Feyerabend quase tão influente quanto Popper e
Kuhn na filosofia da ciência. Defende uma abordagem “anarquista” à
ciência que não a privilegia com uma racionalidade fora da cultura ou
sociedade. Em vez disso, alega que a ciência é uma ideologia como qualquer
outra.

20 J. G. Fichte, Grundlagen des Naturrechts nach Prinzipien


der Wissenschaftslehre [Fundamento do direito natural]
(1797)
A filosofia da liberdade pessoal e suas implicações para a organização e os
direitos políticos.

21. Gottlob Frege, Os fundamentos da aritmética (1894)


Uma fascinante incursão no conceito de “número” na civilização, que foi
ignorado enquanto Frege estava vivo, mas tem crescido em importância.
Em vez de ser um tratado entediante sobre matemática, mostra que o
número é um caminho para a verdade e o significado filosóficos.

22. Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere (1929-35)


Um dos principais pensadores marxistas do século XX, a grande ideia de
Gramsci foi a da “hegemonia”, ou como os Estados se mantêm. Ele disse
que um grupo não toma, mas se torna o Estado.
23. Jürgen Habermas, Mudança estrutural da esfera pública
(1962)
Durante o século XVIII, na Europa, uma nova “esfera pública” surgiu da
necessidade da sociedade civil por informações. De acordo com Habermas,
isso levou ao florescimento da razão, porém, mais tarde, foi corrompido
pela comercialidade e pelo consumismo.
24. Thomas Hobbes, Leviatã (1651)
Provavelmente o primeiro livro de filosofia política moderna contra o
gradual desaparecimento da cristandade medieval. Defende um estado laico
com poder absoluto exercido por um soberano. Dentro desse sistema, a
pessoa comum teria uma chance maior de estabilidade e segurança.
25. Edmund Husserl, Investigações lógicas (1900-01)
Grande trabalho do mentor de Heidegger e fundador da fenomenologia.
26. Julia Kristeva, Séméiôtiké: recherches pour une
sémanalyse [Desejo em linguagem: uma abordagem
semiótica para a literatura e a arte] (1980)
Um dos principais trabalhos em teoria cultural, com análises incríveis da
ficção francesa do século XIX.
27. Jacques Lacan, Escritos (2002)
Uma excelente introdução à filosofia psicanalítica de Lacan, muito influente
para pensadores contemporâneos como Žižek.

28. David Lewis, On the Plurality of Worlds [Sobre a


pluralidade dos mundos] (1982)
Uma obra original e influente de “lógica modal”, que traça a teoria dos
muitos mundos que podem existir simultaneamente.

29. Jean-François Lyotard, A condição pós-moderna (1979)


Talvez a maior declaração sobre o pós-modernismo, que Lyotard descreve
como “a incredulidade em direção à metanarrativas”, tais como o conceito
de “Progresso”.
30. Maimônides, Guia dos perplexos (1190)
Uma tentativa engenhosa de estabelecer uma ligação entre o judaísmo e a
filosofia grega, influente tanto no Oriente quanto no Ocidente durante a
Idade Média.
31. Nicolas Malebranche, A busca da verdade (1674-75)
Inspirada por Descartes, a primeira e mais completa obra de um importante
filósofo racionalista.
32. Herbert Marcuse, Eros e civilização (1955)
Uma síntese de Freud e Marx, fornecendo uma visão de uma sociedade
livre de repressão.

33. Karl Marx, O capital (1867)


Comprovadamente o trabalho de filosofia política que teve o maior impacto
sobre a história.
34. Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção
(1945)
Não vivenciamos o mundo segundo as linhas do cogito de Descartes, mas
por meio do corpo.
35. Mary Midgley, A presença dos mitos em nossas vidas
(2003)
A ciência física não é simplesmente um depósito de fatos sobre como o
universo funciona, mas se tornou a ideologia de nossa era. Midgley tinha na
mira Richard Dawkins e Daniel Dennett.

36. Montesquieu, Do espírito das leis (1748)


Um importante trabalho de filosofia política liberal que influenciou a
Revolução Francesa, defendendo o governo constitucional, a separação de
poderes e o fim da escravidão.
37. G. E. Moore, Principia Ethica (1903)
Revolucionou a filosofia da ética e introduziu o famoso conceito da “falácia
naturalista”, que diz que é impossível determinar, em um sentido técnico, o
que é “O Bem” – algo intuitivamente sentido e conhecido. Moore também
foi um defensor do “senso comum”, filosofia que não nega as crenças das
pessoas comuns.
38. Robert Nozick, Anarquia, estado e utopia (1974)
Uma defesa bem fundamentada de um Estado limitado, “limitada às
funções restritas de proteção contra a força, o roubo, a fraude, a execução
de contratos e assim por diante”. Cada pessoa tem o direito de conduzir
seus próprios “projetos”, e tais direitos são violados quando os Estados se
imiscuem em todos os aspectos da vida.

39. Derek Parfit, Reasons and Persons [Razões e pessoas]


(1984)
A incursão cativante do filósofo moral de Oxford ao sentido de identidade
pessoal durante a vida e suas implicações para a ação, a ética e a justiça. Um
trabalho seminal na “filosofia do eu”, que tem sido revigorado por
descobertas recentes em neurociência.

40. Parmênides, Poema de Parmênides: Da natureza (início


do século VI a.C.)
Por trás da aparente mudança, o universo tem uma forma unificada
imutável. Quando você sentir uma desorientação pelo turbilhão de
acontecimentos em sua vida, faça uma pausa e busque conforto,
concentrando-se nessa força central.
41. Plotino, Tratado das Enéadas (século III d.C.)
Compilado por seu discípulo Porfírio, as seis “enéadas” ou livros
apresentam a ideia de Plotino de seres humanos como parte do Uno
indescritível e divino, que pode ser parcialmente vislumbrado e
compreendido por meio de contemplação, intuição e raciocínio.

42. Hilary Putnam, O colapso da verdade e outros ensaios


(2002)
A separação entre fatos empíricos e valores humanos tem sido a base de
grande parte da filosofia, mas Putnam defende que essa é uma concepção
ruim; a filosofia deveria ser revista.

43. Willard van Orman Quine, Palavra e objeto (1960)


Define a ideia do filósofo de Harvard de “indeterminação da tradução”,
pela qual uma tradução pode satisfazer determinados requisitos, sem
necessariamente refletir o que realmente significava; nenhum significado
único pode ser dado a palavras e frases.
44. Richard Rorty, A filosofia e o espelho da natureza (1979)
Um filósofo norte-americano que se desiludiu com a busca implacável e,
muitas vezes, inútil da filosofia analítica pela verdade objetiva e que, em vez
disso, gravitou na direção do pragmatismo de William James e Dewey. Essa
atitude levou a consideráveis ataques de filósofos acadêmicos.
45. Bertrand Russell & Alfred North Whitehead, Principia
Mathematica [Princípios matemáticos] (1910-13)
Uma das principais obras do século XX em qualquer campo, seus três
volumes procuraram formalizar a lógica matemática.
46. Gilbert Ryle, The Concept of Mind [O conceito de mente]
(1949)
A destruição, por um professor de Oxford, da dicotomia mente/matéria de
Descartes, descartando-a como um “erro categórico” e “o dogma do
fantasma na máquina”.
47. George Santayana, La vida de la razón o fases del
progreso humano [A vida da razão ou fases do progresso
humano] (1905-06)
Obra popular de cinco volumes sobre filosofia moral do norte-americano
de origem espanhola, que contém a famosa frase “Aqueles que não
conseguem se lembrar do passado estão condenados a repeti-lo”.

48. Sêneca, Cartas de um estoico (século I d.C.)


Somente no século XX Sêneca foi “redescoberto”, e suas cartas são um
tesouro que expressa sua filosofia estoica através dos acontecimentos de
uma movimentada vida política.
49. Sexto Empírico, Outlines of Pyrrhonism [Esboços
pirrônicos] (século III d.C.)
Trabalho fundamental do empirismo cético; a maior parte do que foi
posteriormente apresentado sobre o assunto da dúvida pelos existencialistas
e fenomenólogos já havia sido proferida por Sexto.

50. Xenofonte, Conversations of Socrates [Conversas de


Sócrates] (século IV a.C.)
Xenofonte era amigo e seguidor de Sócrates. Este trabalho é uma das
melhores introduções à sua forma de pensar.
Glossário

Behaviorismo Teoria psicológica que afirma que os organismos são o


produto de seu condicionamento ou de seu ambiente.
Empirismo Uma maneira de descobrir o que é verdadeiro ou correto com
base em dados que qualquer pessoa possa refutar ou validar usando os
próprios sentidos.
Epicurismo Uma escola filosófica baseada nos ensinamentos de Epicuro,
inclusive na crença de que o bem mais elevado da vida é o prazer (ou estar
livre de perturbações e dor); mais tarde, o termo veio a significar uma vida
de prazer sensual e de luxúria.
Epistemologia A teoria e a filosofia do conhecimento; o que podemos saber
e o que podemos validar como verdadeiro.
Estoicismo Uma escola da filosofia grega antiga que enfatizava a serenidade
frente aos altos e baixos da vida, à virtude e ao alinhamento de suas ações
com o destino ou a vontade universal.
Estruturalismo Originária da França, visão de que os seres humanos só
podem ser entendidos no contexto das estruturas sociais e instituições.
Existencialismo Perspectiva ou espírito filosófico que se concentra na
questão do viver. Enfatizando a liberdade e a escolha, frequentemente é
associado à visão de que a existência de uma pessoa não tem nenhum
motivo ou propósito predeterminado, que deve ser criado ao longo de uma
vida.
Fenomênico (mundo) O mundo como ele aparece por meio dos cinco
sentidos, o mundo “real”.
Fenomenologia Desenvolvida por Edmund Husserl, o estudo das coisas se
manifestando ou aparecendo, normalmente a consciência.
Filosofia analítica Uma escola filosófica baseada na precisão da linguagem,
das afirmações e dos conceitos.
Filosofia continental A variedade de tradições filosóficas europeias, inclusive
o idealismo alemão, a fenomenologia, o existencialismo, o estruturalismo, o
pós-modernismo e a teoria cultural, conforme distinta da tradição anglo-
saxônica da filosofia analítica e empírica.
Idealismo Qualquer filosofia preocupada com a verdade abstrata ou espiritual,
em oposição ao conhecimento obtido somente por meio dos sentidos.
Iluminismo ou Ilustração Um movimento intelectual do século XVIII na
Europa que enfatizava a razão e a ciência no avanço do conhecimento em
vez da fé, da revelação e da tradição.
Materialismo A existência ou a realidade podem ser explicadas apenas em
termos materiais. Não há nenhum papel para o espírito ou a consciência.
Metafísica Filosofias preocupadas com a propriedade essencial ou a natureza
das coisas, quer seja física ou não física, material ou espiritual.
Naturalismo A crença de que o universo é conduzido de acordo com leis
físicas e que não há nenhuma realidade além do universo físico.
Ontologia A filosofia do ser, inclusive seus diversos aspectos e níveis.
Paradigma Mentalidade, perspectiva ou padrão de pensamento particular que
existe por um tempo para resolver um problema de seus usuários.
Pós-estruturalismo Movimento do século XX que refuta a ideia de
autoridade do texto, enfatizando, em vez disso, as múltiplas interpretações
do material cultural. O que importa não é o autor da mensagem pretendida,
mas como ela é usada. O conceito de verdade objetiva torna-se irrelevante.
Pós-modernismo Perspectiva que surge no final do século XX, baseada na
consciência de “metanarrativas” ou de pressupostos inarticulados que
moldam a cultura e a sociedade (por exemplo, a ideia de “progresso”).
Pragmatismo Uma abordagem à filosofia que se concentra no valor final de
declarações ou teorias; ou seja, se elas “funcionam” em termos de
proporcionar benefícios reais a usuários, fiéis ou praticantes.
Raciocínio dedutivo Um movimento de pensamento que começa com
observações e procedimentos gerais na direção de verdades específicas,
como, por exemplo, uma teoria leva a uma hipótese, que então é testada ou
observada e, em seguida, confirmada.
Raciocínio indutivo Pensamento que provém de dados ou observações na
direção de princípios ou hipóteses. O oposto do raciocínio dedutivo.
Racionalismo Verdade ou conhecimento alcançado por meio da razão ou do
pensamento, em oposição à observação direta da natureza ou das coisas.
Teleologia Qualquer tipo de filosofia ou teoria que postula uma finalidade,
projeto ou “causa final” para o funcionamento do mundo.
Utilitarismo Uma filosofia ou linha de ação que vise alcançar a maior
felicidade ou bem-estar para o maior número de pessoas.
Créditos

A maioria das grandes obras da filosofia teve várias traduções e/ou editores.
Portanto, a lista abaixo não é definitiva, mas um guia para as versões utilizadas
nas pesquisas deste livro. Muitas das obras já estão em domínio público e estão
disponíveis gratuitamente on-line.8

ARENDT, H. The Human Condition. Chicago: University of Chicago Press,


1998. [Ed. bras.: A condição humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2014.]
ARISTÓTELES. “Nicomachean Ethics”, eml: CAHN, S. N. (ed.), Classics of
Western Philosophy, 6. ed., Indianapolis: Hackett, 2002. [Ed. bras.: Ética a
Nicômaco. 2. ed. Trad. António de Castro Caeiro. Rio de Janeiro: Forense,
2017.]
AYER, A. J. Language, Truth and Logic. Londres: Pelican, 1982.
BAGGINI, J. The Ego Trick: What Does It Mean to Be You? Londres: Granta,
2011.
BAUDRILLARD, J. Simulacra and Simulation. Trad. Sheila Faria Glaser. Ann
Arbor: University of Michigan Press.
BEAUVOIR, S. de. The Second Sex. Trad. H. M. Parshley. Nova York: Vintage,
1989. [Ed. bras.: O segundo sexo. 3. ed. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2016.]
BENTHAM, J. An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, Oxford:
Oxford University Press, 1879. [Ed. bras.: Uma introdução aos princípios da
moral e da legislação. Col. Os Pensadores. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo:
Nova Cultural, 1989.]
BERGSON, H. Creative Evolution. Trad. Arthur Mitchell. Londres: Macmillan,
1911. [Ed. bras.: A evolução criadora. Trad. Adolfo Casais Monteiro. São
Paulo: Unesp, 2010.]
BOHM, E. Wholeness and the Implicate Order. Londres: Routledge, 1980. [Ed.
bras.: A totalidade e a ordem implicada. Trad. Teodoro Lorent. São Paulo:
Madras, 2008.]
CHOMSKY, N. Understanding Power: The Indispensable Chomsky. ed. Peter Rounds
Mitchell e John Schoeffel. Nova York: New Press, 2002. [Ed. bras.: Para
entender o poder: o melhor de Noam Chomsky. Trad. Eduardo Francisco Alves.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.]
CÍCERO, M. T. De Officiis (Loeb edition). Trad. Walter Miller, Cambridge:
Harvard University Press, 1913. Disponível em:
<http://www.constitution.org/rom/de_officiis.htmrom/de_officiis.htm>.
[Ed. bras.: Dos deveres. Trad. Angélica Chiapeta. São Paulo: Martins Fontes,
1999.]
CONFÚCIO. Analects. Disponível em:
<http://classics.mit.edu/Confucius/analects.html>, s. d. [Ed. bras.: Os
analectos. Trad. Giorgio Sinedino. São Paulo: Unesp, 2012.]
DESCARTES, R. Discourse on Method and the Meditations. Trad. F. E. Sutcliffe,
Londres: Penguin, 1985. [Ed. bras.: Meditações sobre a filosofia primeira. Trad.
Fausto Castilho. Campinas: Ed. Unicamp, 2004].
EMERSON, R. W. “Fate”. in: The Online Works of Ralph Waldo Emerson.
Disponível em:
<http://user.xmission.com/~seldom74/emerson/fate.html>, (s. d.)
EPICURO. Essential Epicurus: Letters, Principle Doctrines, Vatican Sayings and
Fragments. Trad. e introd. Eugene O’Connor. Amherst: Prometheus, 1993.
[Temos traduzido em português apenas Carta sobre a felicidade: a Meneceu.
Tradução de Álvaro Lorencini e Enzo Del Carratore. São Paulo: Unesp,
1997.]
FOUCAULT, M. The Order of Things: Archaeology of the Human Sciences. Londres:
Routledge, 2005. [Ed. bras.: As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências
humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2016.]
FRANKFURT, H. On Bullshit. Princeton: Princeton University Press, 2005.
[Ed. bras.: Sobre falar merda. Trad. Ricardo Gomes Quintana. Rio de Janeiro:
Intrínseca, 2005.]
HARRIS, S. Free Will. Nova York: Free Press, 2012.
HEGEL, G. W. F. Phenomenology of Spirit. Trad A. V. Miller. Oxford: Oxford
University Press, 1977. [Ed. bras.: Fenomenologia do espírito. Trad. Paulo
Meneses, Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado. Petrópolis; Bragança
Paulista: Vozes/EdUSF, 2011.]
HEIDEGGER, M. Being and Time. Trad. John Macquarie & Edward Robinson.
Londres: SCM Press, 1962. [Ed. bras.: Ser e tempo. Trad. revisada de Márcia
Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis; Bragança Paulista: Vozes/EdUSF,
2015.]
HERÁCLITO. Fragments. Trad. com comentários T. M. Robinson, Toronto:
University of Toronto Press, 1987. [Ed. bras.: Heráclito: fragmentos contex­­-
tualizados. Trad. Alexandre Costa. São Paulo: Odysseus, 2012.]
HUME, D. An Enquiry Concerning Human Understanding, Indianapolis. IN:
Hackett, 1993. [Ed. bras.: Investigação sobre o entendimento humano. Trad. André
Campos Mesquita. São Paulo: Lafonte, 2017.]
JAMES, W. Pragmatism: A New Name for Some Old Ways of Thinking. Projeto
Gutenberg. Disponível em: <http://www.gutenberg.org/ebooks/5116>,
2004. [Ed. bras.: Pragmatismo. Trad. Jorge Caetano da Silva. 3. ed. Col. Os
Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1989.]
KAHNEMAN, D. Thinking, Fast and Slow. Londres: Penguin, 2012. [Ed. bras.:
Rápido e devagar. Trad. Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva,
2016.]
KANT, I. Critique of Pure Reason. Trad. Paul Guyer & Allen W. Wood,
Cambridge: Cambridge University Press, 1998. [Ed. bras.: Crítica da razão
pura. Trad. Fernando Costa Mattos. Petrópolis; Bragança Paulista:
Vozes/EdUSF, 2015.]
KIERKEGAARD, S. Fear and Trembling. Trad. Alastair Hannay. Londres:
Penguin, 2005. [Ed. bras.: Temor e tremor. Trad. Torrieri Guimarães. Rio de
Janeiro: Ediouro, 1993.]
KRIPKE, S. Naming and Necessity. Cambridge: Harvard University Press, 1980.
KUHN, T. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: University of Chicago
Press, 1962. [Ed. bras.: A estrutura das revoluções científicas. Trad. Beatriz
Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2006.]
LEIBNIZ, G. Theodicy: Essays on the Goodness of God, the Freedom of Man and the
Origin of Evil. Trad. E. M. Huggard, Projeto Gutenberg. Disponível em:
<http://www.gutenberg.org/ebooks/17147>, 2005. [Ed. bras.: Ensaios de
Teodiceia sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal. Trad.
William de Siqueira Piauí, Juliana Cecci Silva. São Paulo: Estação Liberdade,
2013.]
LOCKE, J. An Essay Concerning Human Understanding, Projeto Gutenberg.
Disponível em:<http://www.gutenberg.org/ebooks/10615>, 2004. [Ed.
bras.: Ensaio sobre o entendimento humano. Trad. Pedro Paulo Garrido Pimenta.
São Paulo: Martins, 2012.]
MAQUIAVEL, N. The Prince. Trad. Niniano Hill Thomson. WikiSource.
Disponível em:
<http://en.wikisource.org/wiki/The_Prince_%28Hill_Thomson%29>,
1910. [Ed. bras.: O príncipe. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.]
MCLUHAN, M. e FIORE, P. The Medium Is the Massage. org. por Jerome Agel.
Londres: Bantam, 1967. [Ed. bras.: O meio é a massagem. Trad. Sergio
Flaksman. São Paulo: Ubu, 2018.]
MILL, J. S. On Liberty. University of Adelaide e-books. Disponível em:
<http://ebooks.adelaide.edu.au/m/mill/john_stuart/m645o/>, 1909. [Ed.
bras.: Sobre a liberdade. Trad. Ari R. Tank Brito. São Paulo: Hedra, 2010.]
MONTAIGNE, M. Essays. Trad. J. M. Cohen. Londres: Penguin, 1967. [Ed.
bras.: Os ensaios. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Editora 34, 2016.]
MURDOCH, I. The Sovereignty of Good. Londres: Routledge, 1970. [Ed. bras.: A
soberania do bem. Trad. Julián Fuks. São Paulo: Unesp, 2013.]
NIETZSCHE, F. Beyond Good and Evil: Prelude to a Philosophy of the Future. Trad.
Helen Zimmern. Nova York: Dover, 1997. [Ed. bras.: Além do bem e do mal.
Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.]
PASCAL, B. Pensamentos. Ed. e trad. Roger Ariew, Indianapolis: Hackett, 2005.
[Ed. bras.: Pensamentos. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes,
2001.]
PLATÃO. The Republic. Trad. Benjamin Jowett, Project Gutenberg. Disponível
em:<http://www.gutenberg.org/files/1497/1497-h/1497-h.htm>, 2008.
[Ed. bras.: A República. Trad. Ciro Mioranza. São Paulo: Lafonte, 2017.]
POPPER, K. The Logic of Scientific Discovery. Londres: Routledge, 2002. [Ed.
bras.: A lógica da pesquisa científica. Trad. Leonidas Hegenberg e Octanny
Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 1998.]
RAWLS, J. A Theory of Justice. Oxford: Oxford University Press, 1973. [Ed.
bras.: Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta, Lenita M. R. Esteves. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.]
ROUSSEAU, J.-J. The Social Contract. Trad. Maurice Cranston. Londres:
Penguin, 1979. [Ed. bras.: Do contrato social ou Princípios do direito político. Trad.
Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.]
RUSSELL, B. The Conquest of Happiness. Londres: Routledge, 1993. [Ed. bras.:
A conquista da felicidade. Trad. Luiz Guerra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2015.]
SANDEL, M. Justice: What’s the Right Thing to Do? Londres: Penguin, 2009. [Ed.
bras.: Justiça: o que é fazer a coisa certa. Trad. Heloisa Matias e Maria Alice
Máximo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.]
SARTRE, J.-P. Being and Nothingness: An Essay on Phenomenological Ontology. Trad.
Hazel E. Barnes, Londres: Methuen, 1957. [Ed. bras.: O ser e o nada: ensaio de
ontologia fenomenológica. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 2015.]
SCHOPENHAUER, A. The World as Will and Representation. vols. 1 e 2. Trad.
E. F. J. Payne. Indian Hills: Falcon’s Wing Press, 1958. [Ed. bras.: O mundo
como vontade e como representação. Tomos I e II. Trad. Jair Barboza. Ed. Unesp,
2015.]
SINGER, P. The Life You Can Save: Acting Now to End World Poverty. Melbourne:
Text, 2009. [Ed. bras.: Quanto custa salvar uma vida?: agindo agora para eliminar a
pobreza mundial. Trad. Marcio Hack. Rio de Janeiro: Campus, 2010.]
SPINOZA, B. The Ethics. Trad. R. H. M. Elwes, University of Adelaide e-
books. Disponível em:
<http://ebooks.adelaide.edu.au/s/spinoza/benedict/ethics/>, 2012. [Ed.
bras.: Ética. Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.]
TALEB, N. N. The Black Swan: The Impact of the Highly Improbable. Londres:
Penguin, 2007. [Ed. bras.: A lógica do cisne negro. Trad. Marcelo Schild. Rio de
Janeiro: Best Seller, 2011.]
WITTGENSTEIN, L. Philosophical Investigations. Trad. G. E. M. Anscombe.
Oxford: Blackwell, 1992. [Ed. bras.: Investigações filosóficas. Trad. Marcos G.
Montagnoli. Petrópolis; Bragança Paulista: Vozes/EdUSF, 2014.]
ŽIŽEK, S. Living in the End Times. Londres: Verso, 2011. [Ed. bras.: Vivendo no
fim dos tempos. Trad. Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2012.]
Agradecimentos

50 clássicos da filosofia é dedicado à minha mãe, Marion Butler-Bowdon, falecida


em novembro de 2012. Seu grande amor e conhecimento da literatura foram
uma influência verdadeira para mim e para meus irmãos. Ela estava ansiosa
pela publicação deste livro, e tivemos algumas conversas sobre os filósofos que
eu estava estudando. Este livro foi escrito para leitores gerais como ela.
Agradeço também:
A Nicholas Brealey, que se interessou pelo livro desde o início. Eu
empaquei pelo tamanho do projeto, mas fico muito feliz por termos
perseverado.
A Sally Lansdell, pela preparação e incorporação de muitas de minhas
mudanças para corrigi-lo; e a agente Sally Holloway, por organizar as
condições de publicação.
À Biblioteca Bodleiana, em Oxford. A maioria dos clássicos de filosofia
está em estantes abertas, e tive a sorte de passar muitos dias trabalhando lá.
Aos filósofos vivos incluídos no livro, por suas grandes contribuições.
A todos que deram conselhos sobre o que deveria ser incluído na lista dos
50, e aos pesquisadores que contribuíram com um tanto de biografias e
comentários.
Cherry, Tamara e Beatrice. Seu amor e apoio trouxeram a paz de espírito e
o tempo necessários para o livro ser escrito – muito obrigado.
1 . O terceiro volume da trilogia, “Dictator”, foi lançado em 2015 na Inglaterra e em 2017 no
Brasil. [N. T.]
2 . Período da dinastia Zhou que compreende de 771 a 476 a.C. [N. T.]
3 . WYSIATI: What You See Is All There Is.
4 . Um sistema de lógica dedutiva e indutiva é uma tradução parcial de A System of Logic. [N. E.]
5 . Apesar de o Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano (Martins Fontes, 2007, tradução de
Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti), trazer o verbete “super-homem”, as traduções de
“Übermensch” na obra de Nietzsche são sempre tema de controvérsia, pois o objetivo do
autor não era invocar um ser sobre-humano, com poderes mágicos ou extraterrenos,
levando assim a um “culto ao herói”, ao qual ele não desejava se associar, mas sim o homem
que está além do homem comum. Também há estudos que apontam para o uso da palavra
“Übermensch” para caracterizar conceitos distintos dentro da própria obra do autor. [N. T.]
6 . A tradução deste texto pertence ao volume Russell da coleção Os pensadores, publicada
pela Abril Cultural [N. E.]
7 . Traduzido na coletânea de ensaios Pensadores russos (1988), por Carlos Eugenio
Marcondes de Moura, para a Companhia das Letras. [N. T.]
8 . A presente tradução, inclusive de todas as citações do 50 clássicos da filosofia, foi feita com
base nos textos em inglês com eventuais consultas terminológicas a traduções consagradas
para o português. Após a referência bibliográfica do autor, incluímos, quando existente, a
tradução mais recente ou mais consagrada ao português. Quando possível, as obras sem
tradução foram citadas na língua em que foram escritas. [N. T.]

Você também pode gostar