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TUTÓIA-MA, 2023

| EDITOR-CHEFE
Geison Araujo Silva

| CONSELHO EDITORIAL
Ana Carla Barros Sobreira (Unicamp)
Bárbara Olímpia Ramos de Melo (UESPI)
Diógenes Cândido de Lima (UESB)
Jailson Almeida Conceição (UESPI)
José Roberto Alves Barbosa (UFERSA)
Joseane dos Santos do Espirito Santo (UFAL)
Julio Neves Pereira (UFBA)
Juscelino Nascimento (UFPI)
Lauro Gomes (UPF)
Letícia Carolina Pereira do Nascimento (UFPI)
Lucélia de Sousa Almeida (UFMA)
Maria Luisa Ortiz Alvarez (UnB)
Marcel Álvaro de Amorim (UFRJ)
Meire Oliveira Silva (UNIOESTE)
Miguel Ysrrael Ramírez Sánchez (México)
Rita de Cássia Souto Maior (UFAL)
Rosangela Nunes de Lima (IFAL)
Rosivaldo Gomes (UNIFAP/UFMS)
Silvio Nunes da Silva Júnior (UFAL)
Socorro Cláudia Tavares de Sousa (UFPB)
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Capa
Geison Araujo
Diagramação
Editora Diálogos
Revisão
Autores e autoras

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

U48
Um percurso pelas literaturas de língua inglesa / Organizadoras Isabelle Maria Soares,
Taynara Leszczynski – Tutóia, MA: Diálogos, 2023. 460p.

Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-65-89932-79-6
DOI: 10.52788/9786589932796

1. Literatura de língua inglesa. 2. Crítica literária 3. Análise textual. I. Soares, Isabelle


Maria. II. Leszczynski, Taynara.
CDD 820

contato@editoradialogos.com
www.editoradialogos.com
Sumário

Apresentação............................................................................................9

CAPÍTULO 1
Beowulf e a poesia do inglês antigo.................................................. 16
Larissa de Menezes Constantino
Lívian Silva Santos
Giovane Alves de Souza

CAPÍTULO 2
A obscuridade da linguagem de Shakespeare em Macbeth........... 30
Christiano Pereira do Amaral
Paulo Lúcio Scheffer Lima

CAPÍTULO 3
Procedimentos técnicos da tradução na linguagem de horror de
Macbeth.................................................................................................. 50
Christiano Pereira do Amaral
Maria da Conceição Vinciprova Fonseca

CAPÍTULO 4
A criatura de Frankenstein: estereótipo e conduta moral........... 72
Beatriz Cerqueira Biscarde
Anna Paola Costa Misi

CAPÍTULO 5
Consubstanciação em Wuthering Heights: Heathcliff, a casa e a
charneca................................................................................................. 91
Gisele Gemmi Chiari
CAPÍTULO 6
Pesado como um Bildungsroman, leve como uma novela folhetinesca:
o caso Jane Eyre......................................................................................110
Lídia Maria Guimarães de Miranda
Dirlenvalder do Nascimento Loyolla

CAPÍTULO 7
O Diabo travestido em O retrato de Dorian Gray (1890): Deus, o
Diabo e a serpente.............................................................................. 137
Dante Luiz de Lima
Luiz Antônio Pereira Lima Neto

CAPÍTULO 8
Protagonismo aroace na literatura inglesa: uma análise queer do
conto “Regret” de Kate Chopin........................................................ 162
Damares Suelen Ferreira do Nascimento
Lara Ferreira Silva Dias

CAPÍTULO 9
O espaço da mulher na literatura policial: uma reflexão sobre a
personagem Josephine, de A casa torta, de Agatha Christie...... 180
Taynara Leszczynski
Isabelle Maria Soares

CAPÍTULO 10
Arthur Miller, um teatrólogo machista?........................................ 199
Antonius Gerardus Maria Poppelaars

CAPÍTULO 11
Contrapontos em “The Laughing man”, de J. D. Salinger........... 225
Isabelle Maria Soares
Taynara Leszczynski
CAPÍTULO 12
Bíblia e Literatura: Uma Análise dos Intertextos Bíblicos em As
Crônicas de Nárnia, de C. S Lewis.................................................... 242
Juarez José Pinheiro Neto

CAPÍTULO 13
Os modelos científicos e os textos ficcionais de Thomas R.
Pynchon.................................................................................................263
Saulo Cunha de Serpa Brandão

CAPÍTULO 14
Mulheres e a literatura sul-africana de língua inglesa: a construção
de uma história.................................................................................... 285
Hislla S. M. Ramalho

CAPÍTULO 15
O romance histórico inglês de Bernard Cornwell e o Brasil:
considerações sobre a tradução....................................................... 308
Alexandre José da Silva Conceição

CAPÍTULO 16
O desaparecer de si na Adolescência: Os Efeitos da Depressão e
Suicídio em As vantagens de ser invisível .................................... 326
Juarez José Pinheiro Neto

CAPÍTULO 17
(Des)localizando narrativas nacionais: modernidades negras e a
cartografia diaspórica de Dionne Brand........................................ 346
Fabio Coura de Faria
CAPÍTULO 18
Breve análise de algumas personagens femininas em Harry Potter
e as Relíquias da Morte, de J. K. Rowling....................................... 368
Hélia da Silva Alves Cardoso
Nilson Macêdo Mendes Junior

CAPÍTULO 19
O papel do narrador e seus movimentos em Direction of the Road,
de Ursula Le Guin............................................................................... 390
Vanessa de Paula Hey

CAPÍTULO 20
Uma leitura da poesia “Everything You Need to Know in Life
You’ll Learn in Boarding School” à luz da corrente literária pós-
colonial................................................................................................. 405
João Victor Pereira dos Santos
Renata Cristina da Cunha

CAPÍTULO 21
De Johannes a Jojo - a construção do protagonista na adaptação
fílmica de O Céu que nos Oprime.................................................... 427
Ingrid Caroline Benatto

Sobre as organizadoras..................................................................... 448

Sobre as autoras e autores................................................................ 450

Índice remissivo.................................................................................. 458


Apresentação

As literaturas de expressão inglesa encontram suas origens em


tempos remotos e têm acompanhado, desde então, a evolução da língua
inglesa: do poema épico anglo-saxão Beowulf, passando por Shakes-
peare até as escritoras consagradas do cenário moderno, como Mary
Shelley e as irmãs Brontë. Para além desse contexto, em decorrência do
colonialismo inglês e da expansão do império britânico, as literaturas
de língua inglesa abrangem uma miríade de culturas e perspectivas.
Nesse sentido, o objetivo deste livro é percorrer pela pluralidade dessa
literatura ao reunir vinte e um capítulos que dissertam acerca das mais
diversas manifestações literárias e escritores de língua inglesa que vi-
veram em diferentes contextos históricos e geográficos - percorremos
desde a Grã-Bretanha medieval até a contemporaneidade, abordando
diferentes temáticas debruçadas sobre diferentes gêneros literários.
O livro começa com o capítulo “Beowulf e a poesia do inglês an-
tigo”, no qual Larissa de Menezes Constantino, Lívian Silva Santos
e Giovane Alves de Souza sumarizam a gênese da Literatura Inglesa,
marcada pelo poema épico em inglês antigo Beowulf. A partir de uma
breve análise do poema, os autores apresentam também algumas ca-
racterísticas do Inglês Antigo, fazendo uma contextualização históri-
ca do período e identificando alguns simbolismos presentes na obra
literária em questão.
O segundo e o terceiro capítulos são dedicados ao consagrado
dramaturgo inglês William Shakespeare e sua peça Macbeth. Em “A
obscuridade da linguagem de Shakespeare em Macbeth”, Christiano

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 9


Pereira de Amaral e Paulo Lúcio Scheffer Lima analisam a linguagem
de horror em transição entre o real e o sobrenatural, focando na in-
vocação das três bruxas de Macbeth. De forma dialógica, Christiano
Pereira de Amaral e Maria da Conceição Vinciprova Fonseca aprofun-
dam essa questão da linguagem no capítulo seguinte “Procedimentos
técnicos da tradução na linguagem de horror de Macbeth”, ao analisa-
rem comparativamente a obra na língua original e uma de suas tradu-
ções para a língua portuguesa.
No quarto capítulo, “A criatura de Frankenstein: estereótipo e
conduta moral”, Beatriz Cerqueira Biscarde e Anna Paula Costa Mis-
si discutem como se dá a transformação da conduta da criatura no
romance da inglesa Mary Shelley, a partir de uma análise da relação
entre o bem e o mal e da estereotipização do grotesco quanto ao mal.
No quinto capítulo, “Consubstanciação em Wuthering Heights:
Heathcliff, a casa e a charneca”, Gisele Gemmi Chiari aborda a ques-
tão do espaço em Wuthering Heights, especificamente pensando a
herdade de Wuthering Heights como uma casa assombrada e como a
morada dos Earnshaws e de Heathcliff transcende o elemento arqui-
tetônico.
No sexto capítulo, “Pesado como um Bildungsroman, leve como
uma novela folhetinesca: o caso Jane Eyre”, Lídia Maria Guimarães
de Miranda e Dirlenvalder do Nascimento Loyolla refletem sobre o
enredo, os personagens, o contexto histórico e o panorama crítico de
Jane Eyre, da escritora inglesa Charlotte Bronttë, com o intuito de es-
tudar o romance como um livro que perpassa a novela folhetinesca e
o Bildungsroman feminino.

10 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


No sétimo capítulo, “O Diabo travestido em O retrato de Do-
rian Gray: Deus, o Diabo e a serpente”, Dante Luiz de Lima e Luiz
Antônio Pereira Lima Neto investigam o Diabo como personagem
literária. Para eles, é possível explorar várias facetas dessa criatura por
meio da literatura. Dessa forma, analisam como essa figura é abordada
em O retrato de Dorian Gray (1890), do escritor irlandês Oscar Wilde.
No oitavo capítulo, “Protagonismo aroace na literatura inglesa:
uma análise queer do conto Regret de Kate Chopin”, partindo de
uma abordagem bibliográfica-qualitativa, Damares Suelen Ferreira
do Nascimento e Lara Ferreira Silva Dias buscam verificar se há a pre-
sença da arromanticidade no conto Regret da escritora estadunidense
Kate Chopin, visando a representatividade para a comunidade Aroa-
ce dentro do cânone das literaturas de língua inglesa. Ao analisarem
atitudes e sentimentos da personagem Mamzelle Aurélie, as autores
objetivam contextualizar alguns termos sobre sexualidade e provocar
reflexões acerca da solidão sofrida pela comunidade Aroace.
No nono capítulo, “O espaço da mulher na literatura policial:
uma reflexão sobre a personagem Josephine, de A casa torta, de Aga-
tha Christie”, Taynara Leszczynski e Isabelle Maria Soares estudam o
lugar da mulher nas narrativas policiais, observando que tais histórias
possuíam três papéis centrais: criminoso, detetive e vítima e que, em
sua maioria, esse último era protagonizado por mulheres. No entan-
to, as pesquisadoras apontam que a partir dos romances da escritora
inglesa Agatha Christie, acontece uma ressignificação. Para melhor vi-
sualizá-la, analisam a personagem Josephine, do romance A casa torta.
No décimo capítulo, “Arthur Miller, um teatrólogo machista?”,
Antonius Gerardus Maria Poppelaars apresenta uma reflexão sobre o

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 11


papel da personagem Linda Loman, de A morte do caixeiro viajante,
do dramaturgo estadunidense Arthur Miller, partindo das seguintes
questões “Seria Arthur Miller um teatrólogo machista que deixou as
mulheres em segundo plano, sendo donas de casa estereotipadas, como
Linda? Seria Linda uma dona de casa estereotipada mesmo?”
No décimo primeiro capítulo, “Contrapontos no conto The
Laughing Man, de J. D. Salinger”, Isabelle Maria Soares e Taynara
Leszczynski fazem a leitura do conto “The laughing Man”, publicado
no livro Nine Stories (1953), do escritor estadunidense J. D. Salinger, a
fim de identificar pontos contrastantes, que não funcionam simples-
mente como opostos ou meras contradições na narrativa, mas como
interfaces.
No décimo segundo capítulo, “Bíblia e Literatura: uma análise
dos intertextos bíblicos em As Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis”,
Juarez José Pinheiro Neto aponta as semelhanças entre algumas pas-
sagens da Bíblia e episódios do romance As Crônicas de Nárnia, a fim
de observar como é construída a intertextualidade no livro do escritor
inglês C.S. Lewis.
No décimo terceiro capítulo, “Os Modelos Científicos e os textos
ficcionais de Thomas R. Pynchon”, Saulo Cunha de Serpa Brandão
estuda um modo de representação intitulado “Modelismo” que, de
acordo com ele, é adotado pelos ficcionistas que “buscam no mundo
subatômico os maneirismos de seus personagens e nas tecnologias as-
pectos de seus espaços”. Para tanto, ele se debruça na ficção do roman-
cista estadunidense Thomas R. Pynchon.
No décimo quarto capítulo, “Mulheres e a literatura sul-africa-
na de língua inglesa: a construção de uma história”, Hislla S. M. Ra-

12 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


malho evidencia a importância de não considerar a literatura africana
como uma arte homogênea, explicando que deve-se considerar a di-
versidade “linguística, étnica, cultural, política e geográfica”. Assim, a
autora apresenta um panorama das escritoras africanas e de suas mul-
tiplicidades no decorrer da história.
No décimo quinto capítulo, “O romance histórico inglês de Ber-
nard Cornwell e o Brasil: considerações sobre a tradução”, Alexandre
José da Silva Conceição reflete acerca da posição do escritor inglês
Bernard Cornwell enquanto um romancista histórico em relação às
literaturas de língua inglesa. Além disso, o capítulo também apresen-
ta um estudo acerca da tradução e recepção das obras do escritor no
mercado brasileiro.
No décimo sexto capítulo, “O desaparecer de si na adolescência:
os efeitos da depressão e suicídio em As vantagens de ser invisível”, Ju-
arez José Pinheiro Neto, por meio da leitura do livro As vantagens de
ser invisível, do escritor e roteirista estadunidense Stephen Chbosky,
propõe uma discussão importante sobre temas relacionados à saúde
mental, especialmente, na faixa etária denominada “adolescência”.
No décimo sétimo capítulo, “(Des)localizando narrativas na-
cionais: modernidades negras e a cartografia diaspórica de Dionne
Brand”, Fábio Coura de Faria propõe discutir como Dionne Brand,
escritora canadense nascida em Trindade e Tobago, abrange dimen-
sões híbridas, interculturais e intertextuais em sua obra A map to the
door of no return – notes to belonging.
No décimo oitavo capítulo, “Breve análise de algumas perso-
nagens femininas em Harry Potter e as relíquias da morte, de J. K.
Rowling”, Hélia da Silva Alves Cardoso e Nilson Macêdo Mendes Ju-

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 13


nior apontam para a igualdade de gênero que pode ser observada nes-
sa narrativa que compõe a série de livros Harry Potter. Para os autores,
isso possibilita vários diálogos sobre temas e movimentos socialmente
significativos, como por exemplo, o feminismo.
No décimo nono capítulo, “O papel do narrador em Direction of
the Road, de Ursula Le Guin”, a partir da leitura do conto da escritora
canadense, Vanessa de Paula Hey busca ilustrar como o elemento per-
sonagem funciona como agente fundamental de uma obra literária a
ponto de, em alguns casos, ofuscar outros constituintes de um texto
literário.
No vigésimo capítulo, “Uma leitura da poesia ‘Everything you
need to know in life you’ ll learn in boarding school’ à luz da corrente
literária pós-colonial”, João Victor Pereira dos Santos e Renata Cris-
tina da Cunha discutem as relações coloniais que cercam a língua in-
glesa no contexto pós-colonial, tendo como corpus de análise a poesia
“Everything You Need to Know in Life You’ ll Learn in Boarding Scho-
ol”, da autora estadunidense Linda Legarde Grover.
Por fim, no vigésimo primeiro capítulo, “De Johannes a Jojo - A
construção do protagonista na adaptação fílmica de O Céu que nos
oprime”, Ingrid Caroline Benatto disserta sobre a adaptação do ro-
mance Céu que Nos Oprime, da escritora neozelandesa Christine Leu-
nens, para o cinema, com o filme “Jojo Rabbit”, a fim de entender a
construção da protagonista da história.
Oferecemos uma coletânea que coloca em diálogo pesquisadores
de diferentes partes do Brasil, que, ao apresentarem seus diferentes
estudos, democratizam saberes para os falantes de língua portuguesa
sobre a diversidade das literaturas de língua inglesa. Buscamos, dessa

14 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


forma, contribuir para os estudos anglo-saxônicos no Brasil, percor-
rendo pela diversidade deste universo literário e cultural.

Isabelle Maria Soares


Taynara Leszczynski
As organizadoras

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 15


capítulo 1

Beowulf e a poesia do inglês antigo


Larissa de Menezes Constantino
Lívian Silva Santos
Giovane Alves de Souza

INTRODUÇÃO

Pode-se afirmar que a literatura, a arte de escrever, transgride o


tempo. A primeira obra presente na raiz da literatura inglesa é Beowulf
que, apesar de ter seu autor e data exata de publicação desconheci-
dos, é um poema épico escrito em inglês antigo por volta de VIII. Em
segundo plano, temos The Canterbury Tales, uma coletânea de con-
tos, escrita no século XIV por Geoffrey Chaucer, considerado o pai
da literatura inglesa, conhecido por ser o primeiro autor a legitimar a
escrita nativa do Inglês, fato que impulsionou o desenvolvimento da
literatura inglesa. Trabalhando, ainda, para a família real, ele tinha
acesso privilegiado à escrita, levando treze anos para finalizar sua obra.
Adiante, foi possível notar o desenvolvimento do romance moderno
do século XVIII, que passou a ser mais influente devido a mudança
de valores da sociedade inglesa.
Muitas das vezes quando se estuda Beowulf em aulas de literatu-
ra, pode-se notar certo estranhamento ao se ver o poema pela primeira

16 DOI: 10.52788/9786589932796.1-1
vez, por ter sua escrita diferente do inglês moderno. Porém, quando
se percebe a importância de Beowulf essa perspectiva muda. É essen-
cial ressaltar que este é um poema canônico, e que, por ser uma im-
portante parte da literatura inglesa, sobreviveu ao longo dos séculos.
Por mais que existam contrastes entre o Inglês Antigo e o Moderno,
notáveis, inclusive entre o poema e os contos de Chaucher escritos em
Inglês Médio, é possível perceber, ainda, que muitas palavras existen-
tes no poema são similares às do inglês atual. Beowulf não somente é
importante por tais pontos, mas também pela riqueza de sua narrati-
va, fazendo com que o leitor se conecte ao poema e sua profundidade
de sentidos por meio da grande gama de recursos literários. Beowulf
tem muito a dizer e conquista admiradores ao redor do mundo, sendo
uma das principais obras da literatura inglesa.
Com isso em mente, este capítulo objetiva analisar o poema épi-
co Beowulf. Inicialmente, iremos compreender algumas das diversas
características do Inglês Antigo, começando pelas suas origens e, pos-
teriormente, abrangendo para os padrões da sua poesia e partes de sua
estrutura. Posteriormente, iniciaremos a análise do próprio poema,
mencionando suas origens e fatores históricos, conhecendo mais so-
bre o enredo e o próprio protagonista, entendendo por quais motivos
fazem dele o herói do poema. Em seguida veremos alguns de seus sim-
bolismos, o contraste entre o bem e o mal e as figuras de linguagens
presentes no poema, finalizando com outras características da poesia
do Inglês Antigo.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 17


PADRÕES E VARIANTES DA POESIA DO INGLÊS ANTIGO

O Inglês Antigo, forma mais arcaica da língua que conhecemos


hoje, possui muitas características, a saber, o idioma é de origem in-
do-europeia, sendo resultado de dialetos da língua germânica. Uma
grande característica da língua inglesa enquanto um idioma indo-eu-
ropeu é a influência do Latim. Em sua gênese, antes da utilização da
escrita, a tradição oral predominava, e na poesia não era diferente.
Na poesia do Inglês Antigo, as referências heroicas e bíblicas
eram pautas dos autores da época e pesquisas foram feitas para me-
lhor compreender os aspectos desses poemas. Russom (2017) escreveu
sobre os padrões desses poemas e, atentando-se aos tipos de versos, à
métrica, ao pé e à linha das obras do Inglês Antigo, especificou os pa-
drões aliterativos da poesia, com base nas sílabas tônicas e átonas, nas
sílabas e rimas. Uma das obras em que isso foi observado é o clássico
anglo-saxão Beowulf.
Adiante, temos os tipos de versos do Inglês Antigo classifica-
dos por Eduard Syens, podendo ser divididos em ordem alfabética,
iniciando com a letra “A”, e seguindo posteriormente “B, C, D e E”,
os quais são considerados os níveis mais altos. Cada um desses níveis
possui em si subtipos, como por exemplo: “O tipo A, por exemplo, é
subdividido em tipo A1, tipo A2a, tipo A2b, tipo A2ab e tipo A3”
(RUSSOM, 2017, p. 54, tradução nossa) 1. A função desta divisão al-
fabética tem intuito de ordenar as rimas de um verso, observando a
última palavra da linha de um verso e principalmente seu som, poden-
do se repetir ao longo do verso, assim vai se classificando suas rimas.

1 No original: “Type A, for example, is subdivided into type A1, type A2a, type A2b, type A2ab,
and type A3”.

18 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


O padrão dos poetas do Inglês Antigo era imprevisível se compa-
rado com, por exemplo, o modo que Shakespeare escrevia. Ele usava
o pentâmetro iâmbico, uma escrita fixa, usando as sílabas átonas nas
posições fortes de suas peças, e as palavras que possuíam uma sílaba
tônica seguida de uma átona eram divididas quando se estabelecia um
limite do pé da obra, tudo isso de modo presumido. Já no Inglês An-
tigo, nada disso podia fazer sentido, visto que essas formas de uso de
sílabas tônicas e átonas não eram corretas e as palavras e o pé do poe-
ma tinham que estar alinhados igualmente, e, ao contrário do pentâ-
metro iâmbico, o padrão podia mudar repentinamente.
Ao analisar a métrica - conjunto das sílabas que formam as pa-
lavras de um verso - é possível determinar estruturas dentro do Inglês
Antigo. Primeiramente é necessário compreender que todas as pala-
vras padrões do inglês antigo são classificadas como “padrões de base”
(Cf. RUSSOM, 2017, p. 54, tradução nossa)2. Estas palavras base são
categorizadas da seguinte forma: “Existem base trocaicos Sx [...], bases
dactílicos Sxx [...] e bases S com o padrão monossílabo acentuados”
(RUSSOM, 2017, p. 54, tradução nossa) 3. As bases trocaicas são para
os versos essenciais que constituem uma sílaba longa ou breve. Os ver-
sos dactílicos são sílabas acentuadas que seguem de duas sílabas não
acentuadas e, por fim, a base ‘S’ são para palavras monossilábicas, ou
seja, uma sílaba da qual é acentuada.

2 No original: “foot patterns”.


3 No original: “There are trochaic Sx feet with the pattern of words like drýhten ‘lord,’ dactylic
Sxx feet with the pattern of words like béaldode ‘encouraged,’ and S feet with the pattern of
stressed monosyllables like gōd ‘good.’ “.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 19


Outra característica do Inglês Antigo é a anacruse, que aparece
explicitamente no poema Beowulf diversas vezes. De acordo com Rus-
som, a anacruse geralmente se mostra quando há prefixos e partícu-
las prefixais negativas de baixa elevação que estão diretamente ligadas
com palavras fortes e que não seguem a ordem métrica do verso. Isto
está tão presente no épico anglo-saxão, que é notada em “entre mais de
6,000 versos em Beowulf, não mais de 80 têm anacruse monossilábica
e apenas 9 têm anacruse dissilábica” (RUSSOM, 2017, p. 63, tradução
nossa) 4.
Em relação às anacruses no poema de Inglês Antigo, quando ela
é necessária, se torna tradicional. Em suma, os verbos que possuem
prefixos podem estar no começo das linhas de um verso do poema, fa-
zendo esses verbos prefixados — que podem ser perguntas, por exem-
plo — estar em uma posição ideal, fazendo com que a anacruse se
torne tradicional, por estar em lugar apropriado. No poema Beowulf,
quando há regras métricas nas ordens das palavras, o poeta não faz
uso deste elemento, pois isto prejudica a métrica do poema.
O Inglês Antigo possui diversas singularidades para além das
que foram aqui apresentadas. Por mais complexas que algumas carac-
terísticas da estrutura do Inglês Antigo possam ser, tais características
enriquecem o texto a ser lido e aprofundam a compreensão de cada
verso e de seu contexto histórico, valorizando o poema a ser lido.

4 No original: “Among more than 6,000 verses in Beowulf, no more than 80 have monosyllabic
anacrusis and only 9 have disyllabic anacrusis”.

20 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


BEOWULF: UM ÉPICO DO INGLÊS ANTIGO

O poema épico Beowulf é uma famosa obra inglesa escrita na épo-


ca anglo-saxônica (do século V ao XI). É considerado um texto ca-
nônico, muito estudado pela crítica literária e com várias adaptações
cinematográficas. Beowulf não tem registros de quando exatamente
foi escrito, embora Carole Hough e John Corbett (2007) relatem que
há argumentos de que ele foi composto entre os séculos VII e VIII.
Além disso, não se sabe acerca da autoria da obra. Existem várias tra-
duções para o inglês moderno, sendo a de Seamus Heaney uma das
mais importantes.
O enredo da obra tem um grande foco no heroísmo e nos feitos
de Beowulf, o personagem principal da história, um herói impressio-
nante que vai para as terras dinamarquesas com o objetivo de derrotar
o monstro descendente de Caim, Grendel, e, após conseguir essa faça-
nha, lidar com a perigosa mãe do demônio. Ao fim, o bravo guerreiro
consegue sair vitorioso novamente, mas precisa mostrar seu heroísmo
em mais um impasse.
Mesmo que Beowulf tenha saído vitorioso em dois perigosos em-
bates, depois de assumir o trono e ter que lidar com as obrigações de
ser um rei respeitado, ele encontra mais um desafio: a aparição de um
terrível e enorme dragão traz de volta a sensação de desespero e terror
à Heorot Hall. O grande herói e agora rei Beowulf vai adiante para
proteger seu povo da monstruosa fera, mais uma vez, provando que
ele ainda é um herói. Ao fim desse embate, o protagonista de fato der-
rota o dragão, entretanto, o melhor guerreiro que aquela população já
havia visto morre em batalha. Apesar de ser um fim comovente, traz

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 21


consigo uma reflexão. O guerreiro que morre em batalha defendendo
seu povo das ameaças do mal sempre será lembrado e respeitado por
todos. Assim, Beowulf torna-se uma lenda para as futuras gerações
dos daneses (danes) e gutas (geats), deixando seu legado como um he-
roico guerreiro e nobre rei.
Beowulf é a própria descrição de coragem e heroísmo, sendo co-
nhecido por seus feitos. No poema, o protagonista conta a Unferth,
retratado como um homem que inveja os feitos e a reputação do herói,
como ele derrotou monstros marinhos e diz que: “Light came from
the east, bright guarantee of God, and the waves went quiet; Howe-
ver it occurred, my sword had killed nine sea-monsters” (HEANEY,
2000, p. 39) 5. Esse verso, além de reforçar que Beowulf é um grande
herói, mostra que ele acredita ter sido um guerreiro de sucesso porque
Deus estava ao seu lado.
Deus tem uma grande importância na trama de Beowulf, sen-
do mencionado várias vezes e de maneiras diferentes, por exemplo:
“The Almighty Judge of good deeds and bad, the Lord God, Head of
the Heavens and High King of the World [...]” (HEANEY, 2000, p.
15). Essa passagem reforça a influência da crença cristã no texto, mas
também exalta a figura do próprio Deus, sendo retratado sequencial-
mente por diferentes nomeações. Isso mostra que Deus é uma figura
de respeito, poder e justiça. Deus é o todo poderoso, no qual estará
protegendo aquele que o seguir, um homem de coragem e honroso no
caso, fazendo referência ao protagonista Beowulf.

5 Todas as citações feitas neste artigo referente ao poema de Beowulf foram mantidas em sua
escrita original, ou seja, na Língua Inglesa. Devido ao fato de que a tradução feita por Seamus
Heaney ser muito premiada e respeitada e que também por não sermos oficialmente tradutoras,
resolvemos manter a integridade do texto original.

22 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Além disso, no épico é sempre necessário destacar claramente
a lealdade e a força do personagem principal, e isto ocorre quando
Beowulf vence seu primeiro confronto com o monstruoso Grendel.
Durante uma festividade, comemorando o grande feito de Beowulf,
um menestrel do rei Hrothgar começa um cântico sobre Sigemund,
um grande guerreiro que defendeu as terras de seu rei lutando contra
um dragão. No entanto, Sigemund, após vencer a batalha, trai seu rei.
Mesmo que o canto fale sobre a traição do monarca, esse elemento
contrasta com a jornada do herói de Beowulf, enfatizando, assim, sua
lealdade e grandeza na defesa do rei Hrothgar e seu palácio Heorot
Hall das ações malignas e sanguinárias do descendente de Caim.
Sobre esse aspecto do herói em Beowulf, Harold Bloom, impor-
tante crítico literário dos Estados Unidos, afirma que
[…] em Beowulf e nos poemas homéricos, há episódios estritamente
relevantes e consistentes, preenchendo o plano épico, abrindo a
perspectiva da história; também episódios que sem serem estritamente
relevantes são devidamente proporcionados e subordinados, como o
interlúdio de Finnesburh, decoração acrescentada à estrutura, mas
sem sobrecarregá-la, nem interferir no desenho; e, em terceiro lugar,
episódios que parecem irrelevantes, podendo eventualmente ser
interpolações. Todos esses tipos têm o efeito de aumentar a massa e
a variedade da obra, e dão a Beowulf o caráter de um poema que,
tratando de uma ação fora de um ciclo heróico, é capaz, aliás, de
sugerem e representam parcialmente um grande número de outras
histórias (BLOOM, 2009, p. 30, tradução nossa, grifo nosso).6

6 No original: “[…] in Beowulf and in the Homeric poems there are episodes that are strictly
relevant and consistent, filling up the epic plan, opening out the perspective of the story; also
episodes that without being strictly relevant are rightly proportioned and subordinated, like the
interlude of Finnesburh, decoration added to the structure, but not overloading it, nor interfering
with the design; and, thirdly, episodes that seem to be irrelevant, and may possibly be interpolations.
All these kinds have the effect of increasing the mass as well as the variety of the work, and they
give to Beowulf the character of a poem which, in dealing with one action out of an heroic cycle, is
able, by the way, to hint at and partially represent a great number of other stories”.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 23


O plano épico, isto é, aquele caracterizado pela jornada de um
herói que enfrenta diversas dificuldades ao longo da trama, é a forma
motriz para o poema, preenchendo a história e guiando os desenvol-
vimentos do texto. E, considerando o aspecto heroico abarcado pela
obra, Bloom (2009) o compara a outros clássicos da literatura oci-
dental, tais como a Ilíada e a Odisseia, de Homero. Para o autor, as
jornadas de alguns personagens acabam, inclusive, dialogando entre
si: “muitas das referências a outras lendas na Ilíada são ilustrativas
e comparativas, como as passagens sobre Heremod ou Thrytho em
Beowulf.” (BLOOM, 2009, p. 30, tradução nossa)7.
Além disso, a trama tem ênfase na dualidade do bem contra o
mal, com vários trechos em que isso pode ser observado, como por
exemplo em: “Under the cloud-murk he moved towards it until it sho-
ne above him, a sheer keep of fortified gold.” (HEANEY, 2000, p.
49). Nesse trecho, há um contraste entre “nuvem escura” e “ouro”,
pois um simboliza maldade e o outro pureza. Esses aspectos estão
sempre presentes em um poema épico. Os versos de Beowulf estão
sempre enaltecendo todas as características que um herói precisa ter,
como força, lealdade e coragem, além de trazerem simbolismos como
“ouro”, mencionado anteriormente, que reforçam a pureza do herói e
a força do bem.
A palavra “gold” (ouro) é um dos símbolos que mais se repete du-
rante o poema, trazendo um significado importante para a narrativa.
O ouro carrega em sua essência a perfeição, uma matéria-prima pre-
ciosa, aspecto da divindade, e também uma sensação de conhecimen-

7 No original: “Many of the references to other legends in the Iliad are illustrative and comparative,
like the passages about Heremod or Thrytho in Beowulf”.

24 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


to e imortalidade como em “They marched in step, hurrying on till
the timbered hall rose before them, radiant with gold” (HEANEY,
2000, p. 23, grifo nosso). Além disso, é possível observar que o ouro,
no contexto da narrativa de Beowulf, é considerado um material de di-
fícil acesso, ou seja, o ouro sempre aparece atrelado aos personagens de
maior poder dentro da narrativa como Deus, Beowulf, Rei Hrothgar
e sua esposa, além dos guerreiros que defenderam o reino da maldade
de Grendel receberam como recompensa anéis dados pelo monarca.
Outrossim, é notável a presença de outros símbolos, como o “cá-
lice”, que fortifica a influência do cristianismo. O poema foi escrito
durante um período histórico marcado pelo conflito religioso entre
povos pagãos e cristãos, e, por isso, o texto sofreu muitas influências
da religião cristã, que estão fortemente evidentes durante a narrativa.
Naturalmente, o símbolo do “cálice” está ligado a um ideal cristão
e sagrado. Esse objeto usado durante grandes banquetes, contendo
algum tipo de líquido, refere-se ao evento da santa ceia em que Je-
sus reparte o pão com seus fiéis, assim como durante os banquetes no
Heorot Hall, em que, numa das situações, a própria rainha diz: “En-
joy this drink, my most generous lord; raise up your goblet, entertain
the Geats duly and gently, discourse with them” (HEANEY, 2000,
p. 83, v. 1170). O contexto dessa passagem ocorre posteriormente à
derrota de Grendel, quando as pessoas junto ao rei e rainha se reúnem
no Heorot Hall para celebrar, com vinho, conversas, declamações de
canções, enfatizando a alusão à Santa Ceia. Isto traz um significado
sagrado a um encontro entre pessoas para celebrar eventos importan-
tes, como a vitória do guerreiro Beowulf.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 25


Outra característica importante do poema de Beowulf é a figura
de linguagem da aliteração, que se define por fonemas que se repetem
igual ou similarmente. A obra não tem rimas, de modo geral, caracte-
rístico da poesia do Inglês Antigo, como afirmam Hough e Corbett
(2007):

[...] não rima, e também não há um número fixo de sílabas por linha.
Em vez disso, o verso em inglês antigo é baseado em ritmo e aliteração
(o uso do mesmo som inicial para ligar palavras). Cada linha de poesia
tem quatro acentos principais, com um número variável de sílabas
átonas. Nas edições modernas, as linhas geralmente são impressas com
uma quebra no meio, de modo que haja duas tensões em cada meia
linha (HOUGH e CORBETT, 2007, p. 98)8.

Assim, esse padrão aliterativo pode ser observado no poema, em


versos como “but struck suddenly and started in” (HEANEY, 2000,
p. 51). Nessa passagem, é possível notar não somente a repetição do
som consonantal “s”, como também o da vogal “u”, uma vez que, de
acordo com Hough e Corbett (2007, p. 126), todas as vogais aliteram
também com outras vogais.
Além disso, a perífrase, outra figura de linguagem presente no
poema de Beowulf, visa apresentar alguma ideia substituindo-a por
outras palavras. Assim, uma forma não direta de expressar o que
se deseja, evitando repetições. Pode-se entender melhor o uso da
perífrase no seguinte verso: “Then the grey-haired treasure-giver was
glad” (HEANEY, 2000, p. 40). Nesse exemplo é observável que, em

8 “[...] does not rhyme, and neither is there a fixed number of syllables per line. Instead, Old
English verse is based on rhythm and alliteration (the use of the same initial sound to link words).
Each line of poetry has four main stresses, with a variable number of unstressed syllables. In
modern editions, the lines are usually printed with a break in the middle, so that there are two
stresses in each half-line”.

26 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


vez de se referir ao rei repetindo a palavra “King”, foi usado “The grey-
haired”, uma característica física do Rei Hrothgar, que é representado
no texto como um homem experiente, de idade avançada.
Além disso, temos o uso do eufemismo, figura de linguagem que
busca suavizar algo dito ou evento dentro da narrativa. Ainda no iní-
cio do poema de Beowulf, quando os ex-monarcas e suas linhagens são
apresentados ao leitor, é mencionado o seguinte: “He was well regar-
ded and ruled the Danes for a long time after his father took leave”
(HEANEY, 2000, p. 7). Nesse sentido, é mostrado que o patriarca da
família faleceu, porém ao invés de mencionar a morte de forma crua e
direta, houve uma suavização em “his father took leave”, significando
que o patriarca se despediu, deu seu último adeus para a família devi-
do ao seu falecimento.
Seguindo com o uso das figuras de linguagem, temos ainda a
presença de antítese e hipérbole. Em primeiro plano, a antítese tem o
efeito sobre a narrativa de mostrar o contraste entre dois elementos. O
modelo para exemplificar isso ocorre quando Beowulf junto com ou-
tros guerreiros do rei a caminho do covil da mãe de Grendel se depa-
ram com o seguinte cenário: “the water burns” (HEANEY, 2000, p.
95), mostrando a ideia oposta entre água e fogo, pois, de fato, não é da
natureza que o elemento da água queime. Isto mostra a ideia contrária
ao natural, uma vez que a mãe de Grendel é, também, um demônio.
Em adição, demonstra como é a atmosfera em que Beowulf encontra-
-se durante o trajeto ao covil. A idealização é de que o ambiente é tão
maligno e diabólico que a água queima, um ocorrido inimaginável.
Logo em seguida temos a hipérbole que, em suma, é o uso exa-
gerado de palavras para descrições, por exemplo: “I was the strongest

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 27


swimmer of all” (HEANEY, 2000, p. 37), anunciando que Beowulf
tem ciência de sua força, mas também proclama tal fato para que to-
dos ao seu redor tenham conhecimento dela e de sua coragem. Ou-
tra exemplificação desse aspecto seria: “But you have made yourself
immortal by your glorious action” HEANEY (2000, p. 63, v. 953).
Aqui, temos a declaração da grandiosidade de Beowulf, mais uma vez
enaltecendo suas ações ao defender o reino de Hrothgar, erradicando
as criaturas que atormentavam as pessoas. Tal feito foi tão majestoso
a ponto dele mesmo se tornar imortal. Ambos os exemplos realçam
exagero aos eventos ocorridos, reforçando, assim, o aspecto heróico da
jornada do protagonista.
Em relação à poesia do inglês antigo é interessante saber que,
usava-se uma palavra específica para chamar a atenção do leitor, indi-
cando que o poema estaria prestes a começar: “Hwæt”, uma palavra
sem uma tradução definitiva. Ela funciona como um sinal de que uma
narrativa poética, ou uma parte importante de tal narrativa, está pres-
tes a começar” (HOUGH e CORBETT, 2007, p. 118, tradução nos-
sa)9. Nota-se que este foi um texto feito para ser cantado e não lido, em
um contexto histórico no qual os poemas eram declamados, fazendo
uso da oralidade. Como canções, o poema possui ritmo aliterativo,
que é uma característica que auxilia na declamação do poema.

9 No original: “‘Hwæt’ in Old English functions as a signal that a poetic narrative, or a major
section of such a narrative, is about to begin”.

28 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


CONSIDERAÇÕES FINAIS

É notório que o poema épico de Beowulf — desde o enredo à sua


estrutura — continua influente no presente, sendo referência para ad-
miradores da obra e do mundo acadêmico. É interessante refletir que,
embora Beowulf seja um poema possivelmente escrito no século VIII,
tornou-se uma obra canônica que aborda temas de heroísmo e mascu-
linidade, levando o leitor a imergir na narrativa de modo a perceber o
lado bom e o lado ruim de ser o grande herói da história.

COMO CITAR ESTE TEXTO

CONSTANTINO, L. M.; SANTOS, L. S.; SOUZA, G. A. Beowulf e a poesia do inglês antigo.


In: SOARES, I. M.; LESZCZYNSKI, T. (Orgs.). Um percurso pelas literaturas de língua
inglesa. Tutóia/MA: Diálogos, 2023. p. 16-29. https://doi.org/10.52788/9786589932796.1-1

REFERÊNCIAS

BLOOM, Harold. The hero’s journey. Nova York: Infobase Publishing, 2009.
HEANEY, Seamus. Beowulf: a new verse translation. 1 ed. New York,
London.W. W Norton & Company, 2000. p. 3 - 129.
HOGG, Richard. Introduction to Old English. Edinburgh University Press,
2002. p. 129 - 130.
HOUGH, Carole. CORBETT, John. Beginning Old English. Macmillan
International Higher Education, 2007.
RUSSOM, Geoffrey. The evolution of verse structure in Old and Middle English
poetry. Cambridge University Press, 2017. p. 54 - 88.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 29


capítulo 2

A obscuridade da linguagem de
Shakespeare em Macbeth
Christiano Pereira do Amaral
Paulo Lúcio Scheffer Lima

INTRODUÇÃO

Ler Shakespeare é uma experiência fantástica. Existem muitos


estudos em diversas áreas, principalmente em Literatura, que abrem
horizontes em todos os níveis de conhecimento: do ser humano, do
mundo em que o circunda e do mundo que imagina ou que existe
além do seu conhecimento.
Para construir esse elo entre saberes e mundos, este capítulo parte
da tragédia de William Shakespeare, Macbeth, que descreve a trajetó-
ria de Macbeth, de heroi a traidor. O texto pertence ao primeiro Fólio
de 1623 e pelas características textuais e de acordo com estudiosos, o
texto foi copiado de um prompt-book, livro de contrarregra, preparado
como roteiro e ensaio em 1606.
Os conceitos e pressupostos teóricos que concernem este tra-
balho se baseiam no processo trágico e se inicia com a presença do

30 DOI: 10.52788/9786589932796.1-2
elemento sobrenatural interferindo de forma direta no ser humano.
Existe uma ligação forte entre a temática da peça com a perversidade
humana trazida nos filmes de terror com psicóticos e psicopatas dos
dias de hoje, de acordo com Heliodora (2010) e Martins (2004) e com
trabalhos que remontam a época elizabetana (RIEDINGER, 1982;
SILVA, 2005).
A partir dessa fundamentação teórica, será realizada a análise da
linguagem de horror Shakespeariana que transita entre o mundo real
e sobrenatural, partindo com a invocação das Weird Sisters, as três
bruxas, com suas previsões, invocações, encantamentos e fantasmas,
como aparição de Duncan a Macbeth.
Essa miscelânea entre esses mundos traz a desordem ao reino es-
cocês, descontrolando personagens e conturbando todo o universo
humano. O texto e o entretexto são permeados de forte carga dramá-
tica atingindo o ápice aterrorizante.
O ponto crucial é a dicotomia do bem e do mal a todo tempo –
conhecimento e ignorância, o cerne da peça. Essa dicotomia apresenta
a linguagem de horror e de violência em dois aspectos. Sabendo da
singularidade da obra do século XVI, questionam-se o encontro de
Macbeth com o pensamento contemporâneo e o texto da era Elisabe-
tana, a popularidade do escritor em uma cultura totalmente diferente
da época. Nas passagens em que aparecem as bruxas, a linguagem é
repleta de ambiguidade e duplo sentido.
Pretende-se, assim, compreender melhor a obra trágica de
Shakespeare que conseguiu atravessar quatro séculos e manter um
forte elo da Era Elisabetana com a contemporaneidade.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 31


O TEATRO INGLÊS

A influência da Igreja Católica começou no ano de 597, com o in-


tuito de catequizar os Saxões - um dos povos que invadiu a Inglaterra
(além dos Vikings e Normandos) - missionários eram os que a Igreja
Católica enviava para o trabalho pastoral, que estabeleceram mostei-
ros, centros de cultura e propagação da fé, mas foram destruídos pelos
Vikings, que também destruíram a cultura da civilização avançada da
época (CEVASCO e SIQUEIRA, 1993, p. 5).
A vida cultural inglesa da Idade Média girava em torno dos mos-
teiros e das casas dos grandes senhores. A produção cultural desses
mosteiros era o Antigo e o Novo Testamento, a vida dos mártires, san-
tos e manuscritos cristãos. A leitura era uma atividade gregária, feita
publicamente e em voz alta para divertir os ricos. Era recitado ou can-
tado para o povo. Nas casas dos grandes senhores, os interlúdios eram
peças curtas que eram apresentadas entre outras festas e celebrações.
(CEVASCO e SIQUEIRA, 1993, p. 9).
De acordo com Cevasco e Siqueira (1993), “... as histórias eram
propriedades comuns, e os escribas sentiam à vontade para modificar
os materiais que copiavam, como a versões manuscritas de uma mes-
ma obra” (CEVASCO; SIQUEIRA, 1993, p. 9-10). Quem preferir ler
algo que não fosse religioso poderia ler o manuscrito “Beowulf” do
século X de uma história escrita por volta do ano 700.
Com a invasão normanda da Inglaterra em 1066, a nobreza fran-
cesa ganhou poder e também sua língua, que era a língua do clero, en-
quanto os poetas, reconhecendo a necessidade de patrocínio, usavam a
língua dominante para escrever. Recitado por menestréis, o românico

32 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


era comum na corte. A produção no vernáculo foi usada pela Igreja para
educar o povo sobre a Bíblia e a vida cristã. As baladas, canções curtas
que contavam histórias de amor, aventuras e heróis, faziam parte da cor-
te romântica românica (CEVASCO e SIQUEIRA, 1993, p. 7-8).
Segundo Riedinger (1982) “O drama inglês teve seu início na
Igreja Medieval” (RIEDINGER, 1982, p. 19). No século XIV os pa-
dres tiveram a brilhante ideia de colocar a Bíblia, o livro sagrado, no
centro da vida de todos, principalmente dos analfabetos, fazendo com
que as pessoas realizassem versões dramáticas assistidas das histórias
e passagens bíblicas nas igrejas locais frequentadas por eles. Essas ver-
sões foram chamadas de Miracles Plays. Elas se tornaram tão popula-
res e ganharam proporções tão grandes que tiveram que ser encenadas
fora da igreja, sendo transferidas para as ruas, praças e espaços ao re-
dor das igrejas. Depois de algum tempo, as peças perderam seu signifi-
cado religioso e acabaram sendo abandonadas pela Igreja. Passaram a
usar carroças com cavalos que serviam de palco para o show nas ruas,
o que era chamado de Mystery Plays (RIEDINGER, 1982, p. 19).
Com o tempo, essas peças perderam o caráter clerical e passaram
a personificar características humanas como: mentira, retidão, ciúme,
amizade - vícios e virtudes, com o fim de lutar pela alma do homem
e adquirir uma formação moral -, recebendo o nome de Morality
Plays, criando uma ligação entre a Idade Média e o Drama Elizabe-
tano. Diante de um público polido, passaram a ser apresentados em
albergues, escolas e universidades. Os personagens das Morality Plays
evoluíram para os personagens mais complexos do drama como resul-
tado da filosofia renascentista, tanto na tragédia quanto na comédia
(RIEDINGER, 1982, p. 19-20).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 33


Durante a Era Elizabetana (1558-1603), o renascimento
desenvolveu formas de expressão artística profundas, e o humanismo
trouxe grande desenvolvimento intelectual. Foi a “idade de ouro” da
extrema criatividade e modernização cultural. Havia uma preferência
das classes dominantes por imitações de mestres clássicos e italianos. O
nacionalismo passa a moldar a língua inglesa e o latim se torna menos
utilizado como veículo de expressão. Mas com esse desenvolvimento,
a literatura, especialmente, sofreu uma desagradável censura política,
mantendo o pensamento oficial unânime, dado o poder absoluto do rei
que governava por “desejo especial e proteção de Deus” (CEVASCO e
SIQUEIRA, 1993, p. 14; 17).
Em 1599, Elizabeth I proibiu a apresentação de peças com temas
históricos ingleses, considerando que o teatro era o gênero maior. O
medo era o uso de comparações históricas que poderiam atingir o seu
reinado. Outro problema foi, segundo Cevasco e Siqueira (1993):
Para piorar a situação, os escritores dependiam, ainda em grande
medida, do velho sistema medieval do patronato. Embora já houvesse
atividade editorial, os editores pagavam pouco, e havia até um certo
preconceito de se escrever para a clientela potencial dos livreiros, ou
seja, a burguesia citânia, que dava preferência às obras de edificação,
ao romanesco, aos tratados religiosos e às baladas sensacionalistas. É
comum, então, que as obras sejam dedicadas a este ou àquele nobre,
na esperança, muitas vezes vã, de uma recompensa pecuniária ou de
ascensão social (CEVASCO e SIQUEIRA, 1993, p. 17-18).

Cevasco e Siqueira (1993) também mencionam as características


das tragédias da época, a saber, a “desobediência às três unidades
aristotélicas de tempo, espaço e ação; uso de versos em branco em
que não há necessariamente uso de rima; e capacidade de atenção”

34 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


(CEVASCO e SIQUEIRA, 1993, p. 20). As tragédias estão sob o
aspecto da linguagem retórica com tramas violentas e sangue.
Informações e descrições de locais de apresentação de espetá-
culos elizabetanos são muito poucas. O primeiro teatro profissional
construído em Londres foi inaugurado em 1576 e foi chamado de The
Theatre. Esse teatro e outros da época eram redondos ou hexagonais
com um palco que se projetava para dentro do poço onde as pessoas
comuns estavam de pé. A mais famosa foi, talvez, a sala de concertos
The Globe, onde a maioria das peças de Shakespeare foi encenada, mas
foi destruída por um incêndio em 1613, possivelmente motivado pe-
los puritanos. (CEVASCO e SIQUEIRA, 1993, p. 22).
As pessoas mais ricas se sentavam em galerias e poderiam até
comprar seus lugares no palco. Pouco ou nenhum cenário foi usado e
não havia cortinas frontais, havia poucos meios artificiais para os ato-
res criarem a ilusão. Este foi o teatro para o qual Shakespeare escreveu:

Na plateia, espaço ao redor do tablado que servia como palco, ficavam


de pé os mais pobres, a gente do povo, a quem cumpria manter quieta
e entretida pelos aspectos mais sensacionalistas das peças. Nos balcões
elevados e galerias sentavam-se os nobres de sangue e de dinheiro. Mais
refinados, a estes cabia agradar com os temas sutis e as imagens poéticas,
bem como às damas que, embora mascaradas, já que a presença feminina
nos teatros não era bem vista, esperavam um pouco de romantismo
(CEVASCO e SIQUEIRA, 1993, p. 22-23).

Todos os “atores” da época eram pessoas comuns, viajando,


talvez fugitivos presos por vadiagem. Trabalhando nas casas dos se-
nhores, acabaram atuando também. A companhia de Shakespeare
também recebeu proteção real, inicialmente sendo chamada de Lord

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 35


Chamberlin’s Men e depois King’s Men (CEVASCO e SIQUEIRA,
1993, p. 21-22).
A época de Shakespeare - Era Elizabetana - foi a “idade de ouro”
do desenvolvimento intelectual. Nunca na história da literatura ingle-
sa se viu um período de maior transformação e o surgimento de um
notável artista multifacetado na arte da escrita.

QUEM FOI SHAKESPEARE?

O que temos hoje são suposições sobre Shakespeare. Muitos his-


toriadores não sabem muito sobre o escritor. Todo mundo é crítico
sobre seu trabalho. Os dados que os estudiosos têm como fonte con-
fiável é que o escritor nasceu em Stratford-upon-Avon em 23 de abril
de 1564 e foi batizado em 26 de abril de 1564. Deixou família, esposa
e filhos. Ele foi para Londres, onde foi ator e autor de poemas e peças
e obteve um sucesso notável. Ele voltou para sua cidade natal muito
tempo depois, fez um testamento e morreu em 23 de abril de 1616.
Muito se estudou e pesquisou sobre a vida de Shakespeare, mas escas-
sos são os fatos, dados e detalhes comprovados. Quem se deparar com
as bibliografias do escritor, encontrará muitos termos como “pode”,
“provável”, “ao que parece”, “não tenho certeza”, entre outros. Muita
informação é baseada em especulações e outros documentos. Existem
biografias de William Shakespeare – centenas e centenas delas.
O pai de Shakespeare, John Shakespeare, fabricava luvas e arreios
e em 1568, foi nomeado juiz sênior. Como a cidade fazia parte do ro-
teiro dos artistas, um de seus trabalhos era aprovar o pagamento das

36 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


companhias de atores visitantes. Sua carreira estagnou em 1576. Além
do poeta, sua mãe, Mary Arden, teve oito filhos: quatro meninas e
quatro meninos. Ela era de uma família de fazendeiros e recebeu um
bom dote para John. Parece que Shakespeare deve ter feito seus pri-
meiros estudos na escola local, em uma sala ligada a uma igreja por-
que era alfabetizada por um padre e estudava latim. (HELIODORA,
2008, p. 581-582).
Aos 18 anos, casou-se com a filha de um fazendeiro, Anne Ha-
thaway, de 28 anos, em 1582. O casamento foi às pressas porque seis
meses depois nasceu a primeira filha, Susanna, e depois as gêmeas, Ju-
dith e Hamnet. O nome de Shakespeare aparece escrito como “Shags-
pere”. Provavelmente a grafia usada hoje nunca foi usada pelo escritor.
Ele era conhecido como “arrivista provincial” por nunca ter fre-
quentado uma faculdade e por escrever peças sangrentas. Começou a
trabalhar a partir de poemas - “Vênus e Adonis” e “O Rapto de Lucre-
ne” - com traços aristocráticos.
Entre 1585-1592, Shakespeare deixa sua cidade natal, e especula-
-se que ele foi professor no país, soldado na guerra contra a Espanha
em 1585 e teria viajado pela Itália. (HELIODORA, 2010, p. 582).
Em 1592, os “anos perdidos” de Shakespeare chegaram ao fim. O
nome de Shakespeare aparece em um panfleto sendo menosprezado.
Heliodora (2010) afirma claramente seu destaque e reconhecimento:

Sim, não confiem neles, pois há um corvo arrivista, embelezando com


nossas penas, que com seu coração de tigre envolvido na pele de um ator
supõe ser tão capaz compor bombásticos versos brancos como o melhor
de vocês: e sendo um absoluto Johannes factotum é, em seu próprio
conceito, o único Sacode-cenas do país (HELIODORA, 2010, p. 583).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 37


Mas sua carreira seria interrompida anos depois, quando os te-
atros foram fechados entre 1592-1594 por causa da Peste Negra. Sua
atividade se fortaleceu quando ingressou na importante companhia
de teatro country Lord Chamberlain’s Men, como ator durante toda
a viagem profissional, pois seu nome consta “na lista de atores docu-
mentais de 1592, 1598, 1603 e 1608.” O mundo da performance cul-
tural no meio e os shows itinerantes eram o mundo de Shakespeare.
Em 1596, seu filho, Hamnet, morreu. Shakespeare e seus herdei-
ros são reconhecidos como cavalheiros, pois viveram confortavelmen-
te: compraram um terreno, uma casa maior e um brasão. Em 1599,
comprou uma parte do The Globe, a famosa casa dos shows londrinos,
que pegou fogo em 1613. Ele investiu quase tudo o que ganhava, apli-
cando em sua cidade natal. No entanto, teve uma vida simples em
Londres, morando em albergues. O teatro era um fenômeno novo
para o país e por isso foi tentado a viver em Londres, o centro político
e cultural do país.
Talvez, o horror de uma nova sucessão de guerras, a instabilidade
política, a velhice de Elizabeth sem ter alguém para suceder e a mor-
te do conde de Essex (causada por um golpe de produtos) podem ter
ajudado Shakespeare a produzir tragédias em 1601 e 1608 com grande
pessimismo.
As tragédias destacam a genialidade de Shakespeare e aprofun-
dam os aspectos desconcertantes do ser humano. Eles são expressos
em discursos retóricos que são manipulados pelas circunstâncias e
ações do próprio homem, cheio de amor, paixão, horror, sangue, lou-
cura e luxúria, definindo sua personalidade. Eles estão na tradição re-
nascentista.

38 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


A partir de 1608, tenta retornar, em parte, ao seu otimismo, co-
locando em jogo seu humor, mas de maneira controlada, um pouco
melancólica, um ar de perdão com peças de tragicomédias, despedin-
do-se do palco como em suas últimas peças Péricles, Cymbeline, O
Conto de Inverno e A Tempestade (CEVASCO e SIQUEIRA, 1993,
p. 26-27).
Mas seus últimos dias foram em Stratford, em busca de paz para
continuar escrevendo, como alguns acreditam. Em 23 de abril de
1616, morre em sua terra natal, e é sepultado na Igreja da Santíssima
Trindade. Ben Johnson (1572), contemporâneo de Shakespeare, dedi-
cou um poema em memória do escritor:

...
Shine forth, thou Starre of Poets, and with rage,
Or influence, chide, or cheere the drooping Stage;
Which, since thy flight from hence, hath mourn’d like night,
And despaires day, but for thy Volumes light.
(JHONSON apud CEVASCO e SIQUEIRA, 1993, p. 28).

Sobre seu trabalho, há mais incertezas. Começou em 1590, mas


não se sabe qual teria sido sua primeira peça. Para compor suas obras,
Shakespeare dispunha de muito material, apropriando-se de partes e
personagens de outros autores. Macbeth é datado de 1606 e Shakes-
peare usou duas fontes: As Crônicas da Inglaterra, Escócia e Irlanda,
de Raphael Holinshed, para verificar vários detalhes históricos, e as
Crônicas da Irlanda, de John Bellenden. Heliodora (2010) aponta que
“Shakespeare poderia fazer com o material que já está funcionando

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 39


para outros, um trabalho não só absolutamente seu, mas também
bastante original” (HELIODORA, 2010, p. 589). Sua genialidade é
descrita de forma abrangente:

A resposta esteja na capacidade do dramaturgo de ‘investigar’e


compreender a fundo os processos do ser humano, tanto na sua
condição de indivíduo como de integrante de um grupo social. [...]
Com mais de oitocentos personagens, ele parece nos dizer que o homem
é sempre responsável por suas ações e que toda ação tem consequências
(HELIODORA, 2010, p. 579-580).

Suas obras foram escritas para serem encenadas, mas nunca pen-
sadas ou projetadas para que fossem apresentadas na literatura. Há
seis assinaturas, cada uma escrita de forma diferente em seis exemplos
de sua caligrafia. Seus primeiros trabalhos foram publicados após sua
morte em sua primeira coleção por seus amigos Heming e Condell.
Eles foram nomeados no testamento de Shakespeare.

MACBETH

Na obra Macbeth, o herói tem uma ambição de poder. Retornan-


do de uma batalha na qual saiu vitorioso, três bruxas fazem previsões e
dizem a Macbeth que ele será um rei, e seu amigo Banquo, pai de reis.
Macbeth arma um plano traiçoeiro para matar o rei da Escócia. Lady
Macbeth o convence para alcançar o poder de qualquer maneira. E sem
herdeiros no trono, Macbeth mata Banquo, mas o filho de Banquo
foge. Durante um banquete, o remorso pela morte do amigo é muito
forte e Macbeth lamenta fortemente e acaba vendo o fantasma dele. Os
nobres, com o apoio da Inglaterra, tramam uma guerra para derrubar o

40 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


novo rei da Escócia. É a chamada Revenge Play (Tragédia de Vingança)
que apesar de não fazer um recorte do tema de vingança, Macbeth apro-
xima-se desse gênero tradicional pelo “caráter violento da encenação,
que aborda temas malditos e venerados na virada do século XVII, tais
como bruxaria, maldade e delírio” (MARTINS, 2004, p. 186).
O pesadelo está cheio de assassinatos, planos, conspirações e
previsões. Kott (1988) diz que “O sangue, em Macbeth, não é apenas
uma alegoria. Deixa suas manchas nos rostos e nas mãos, nos punhais
e nas espadas” (KOTT, 1988, p. 594).
Heliodora (2010) diz:

... entre 1595 e 1608, Shakespeare escreve sete tragédias, nas quais o
tema é o mesmo: como o homem enfrenta o mal que sempre existe e
o que o mal faz dele... Esse mal pode existir como um inimigo externo
e concreto, no entanto, em todas as obras, ele está presente no interior
do próprio protagonista, em maior ou menor medida (HELIODORA,
2010, p. 587).

Macbeth é a última das chamadas “quatro grandes tragédias”,


publicada pela primeira vez no primeiro fólio de 1623, é a tragédia
mais curta. O texto provavelmente foi copiado de um livro-prompt.
Estudiosos acreditam que faltou uma ou duas cenas, embora se aceite
que foi finalizado às pressas para a promulgação do projeto de lei no
tribunal Jaime I.
Não há informações concretas sobre a data de 1606. Mas os sinais
são muitos, como a festa da corte por causa da visita do rei Cristiano
IV da Dinamarca, a peça estar sendo apresentada há algum tempo no
Globe Theatre e a referência ao agricultor que se enforcou na expec-
tativa de fartura, um ditado para baixar os preços do trigo em 1606.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 41


No último ato, aparecem alguns versos até simplórios, em com-
paração com outras partes. Uma das questões seria a interferência de
Tomas Middleton (1580) no texto recebido.
A cena de Hécate e suas admoestações são palavras e frases inter-
caladas, incluindo a música (Come Away, Come Away e Black Spirits)
que aparece na peça de Middleton, The Witch, um manuscrito origi-
nal raro na Biblioteca da Universidade de Bodlein, Oxford. Muitos
estudiosos acreditam que Middleton foi o responsável pelo ato V e
seus problemas, colaborando assim com Shakespeare.
O escritor envolvido na busca de explicações sobre a natureza do
mal e sua influência na vida do homem, utiliza os diversos recursos
como o uso das crônicas escocesas para encontrar um reino para dizer
o que queria, manipulando os fatos.
Para investigar a natureza do mal utiliza as Crônicas da Inglater-
ra, Escócia e Irlanda, de Raphael Holinshed e Crônicas da Escócia de
John Bellenden, para criar o reinado de Macbeth e Duncan Mars.
As três bruxas e suas profecias são criadas a partir de um desfile
cívico em Oxford em agosto de 1605. Heliodora (2010) afirma que
por “três jovens vestidas como ninfas ou sibilas”; James é saudado com
as palavras:

Salve, tu que governas a Escócia!


Salve, tu que governas a Inglaterra!
Salve, tu que governas a Irlanda! (HELIODORA, 2010, p. 435).

Shakespeare apresenta o jeito terrível de Macbeth, um homem


com muitas qualidades que reavalia suas ações, tendo como ponto de
partida seu primeiro assassinato na primeira cena do Ato II.

42 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Lady Macbeth tem um pequeno papel. Nunca viu uma morte
violenta, não sabe o que é crime, pois é só uma palavra. O escritor usa
o protagonista para lidar com os conflitos que traz dentro de si.
Atribuir decisões a Lady Macbeth, segundo Heliodora (2010, p.
436), “ignora pelo menos três dados fundamentais fornecidos pela
obra de Shakespeare”: o título da obra como Macbeth, a responsabi-
lidade dos atos que são inteiramente devidas ao herói trágico shakes-
peariano e a ideia de assassinato que sugere que Macbeth existia antes
mesmo da carta, do aparecimento de Lady Macbeth, e até dos pressá-
gios das bruxas e da notícia que tronaria Thane de Cawdor.
Tanto o público da época quanto Jaime I, especialista em feitiça-
ria, tinham conhecimento de bruxas e aparições que fazem parte do
universo, da vida e da experiência humana. Nesse contexto, as Weird
Sisters são utilizadas como suporte, assim como Lady Macbeth, es-
colha de Macbeth para o crime. A figura das bruxas é evidenciada, e,
segundo Heliodora (2010, p. 437), elas “tinham o poder para prever
o futuro, mas não para determina-lo”. Não há passagem de texto que
leve Macbeth a matar o rei para obter a coroa. Como dito antes, Ma-
cbeth tinha a intenção do crime, de cometer o assassinato de Duncan.
Heliodora (2010, p. 437) descreve que “envereda pelo caminho que
distingue essa de todas as outras tragédias, ou seja, o da observação
das consequências do crime para a experiência de vida do criminoso.”
Mesmo conquistando o trono a qualquer custo, o protagonista,
antes de chegar ao seu momento de reflexão, precisa reconhecer a lou-
cura de seus atos errôneos, buscando um suicídio moral repetindo o
crime, como se a consciência não o perturbasse.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 43


O final de Lady Macbeth é irônico, pois, aparentemente corajosa,
não vendo problemas em matar Duncan, fica louca ao ver os mortos e
se mata. “Quando o crime leva ao poder, e o poder é exercido por meio
do crime, as consequências abalam a comunidade, cujo bem-estar é o
objetivo legítimo do governo.” (HELIODORA, 2010, p. 438).
As mudanças e transformações foram encontradas no dia-a-dia,
atingindo todo o grupo social.
Outro momento famoso é quando as roupas não servem porque
são muito grandes, uma imagem forte que faz Macbeth entender que
o trono que quer ocupar não pertence a ele.
Segundo Heliodora (2010, p. 438) “Shakespeare identifica a luz
com a virtude e a vida, e a escuridão com o mal e a morte”. Mas em
Macbeth, essa escuridão é primordial para que aos poucos a peça vá
ficando mais sombria.
Texto e entretexto são permeados de forte carga dramática atin-
gindo um clímax aterrorizante. O ponto crucial é a dicotomia do bem
e do mal, que acontece o tempo todo – conhecimento e ignorância,
o cerne da peça. Essa dicotomia apresenta o horror da linguagem, a
violência em dois aspectos. O primeiro é a Linguagem de Iminência: a
desordem pelo poder da fala, o diálogo das bruxas, ou seja, o desastre
do anúncio na fala dos personagens. Martins (2004, p. 191) diz que é
“uma linguagem que trama no fio entre o racional e o irracional, claro
e obscuro, legítimo e usurpado, abstrato e concerto”. O segundo as-
pecto seria a Linguagem de Contágio: uma linguagem compartilhada
sem que os personagens estejam cientes disso. Há uma curiosidade a
despertar nos personagens. É um eco de ambição. As Weird Sisters o
despertam em sua fala. Martins (2004, p. 195) define como um “... ins-

44 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


trumento de violência no texto. [...] Elas vêm para desfazer os laços da
racionalidade superegóica, dando margem à realização do irrealizável.”
Conhecendo a singularidade da obra do século XVII, pode-se
questionar o encontro de Macbeth com o pensamento contemporâ-
neo e o texto da época elisabetana, a popularidade do escritor em uma
cultura totalmente diferente da época. Nas passagens em que apare-
cem três bruxas, a linguagem é cheia de ambiguidade e duplo sentido.
Além desses estudos e trabalhos, observamos o texto no idioma
original na língua inglesa, sem cortes ou adaptações para que as aná-
lises sejam as mais fiéis possíveis dentro das características e peculiari-
dades da língua. Tem-se como exemplo:

FRAGMENTOS DO ATO I - CENA III


Língua Fonte – Middle English Língua Alvo – Português
First Witch 1ªBruxa
All hail MacBeth, hail to thee, Thane of Gla- Salve, MacBeth; oh salve, Thane de
mis. Glamis!
Second Witch 2ª Bruxa
All hail Macbeth, hail to thee, Thane of Cow- Salve, Macbeth, oh salve, Thane de
dor. Cowdor!
Third Witch 3ª Bruxa
All hail Macbeth, that shalt be king hereafter. Salve, Macbeth; que um dia há de ser
[...] rei!
First Witch [...]
Lesser than Macbeth, and greater. 1ª Bruxa
Second Witch Menor, porém maior, do que Macbe-
Not so happy, yet much happier. th!
Third Witch 2ª Bruxa
Thou shalt get kings, though thou be none. Menos feliz, no entanto, mais feliz!
So all hail Macbeth and Banquo. 3ª Bruxa
Não será rei, mas será pai de reis!
Salve, então, Macbeth e Banquo.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 45


Segundo Martins (2004), a linguagem de iminência é forte, pois
Shakespeare nos apresenta um mundo em que não é controlado, bru-
xas que não habitam a terra, mas conhecem a língua, são seres “fan-
tásticos”, mas possuem materialidade. No viés da Linguagem de
Contágio, o diálogo marca uma linguagem compartilhada sem que as
personagens estejam cientes disso, despertando uma curiosidade que
já existe, um eco de ambição. “As bruxas são a própria corporificação
da presença deste outro lado, latente e invisível, em que se dão os pro-
cessos de construção e desconstrução de imagens. Elas são derivações
de um subterrâneo apavorante a olho nu.” (MARTINS, 2004, p. 191).
Levando em consideração todos os problemas na análise do
horror da linguagem, Shakespeare mostrou-se à frente de seu tempo,
conseguindo permear décadas e alcançar brilhantemente a pós-mo-
dernidade. O roteirista consegue atingir o imaginário do público da
época com um texto metafórico que se materializa no palco mesmo
com toda a falta de recursos, mantendo o sólido desejo obscuro que
permeia a peça. Heliodora (2010) e Silva (2005) descrevem detalha-
damente como o escritor realiza esses processos em seu tempo, mas
como eles podem estar tão presentes no tempo de hoje e qual é o con-
traponto que é levado em consideração.
O texto shakespeariano é repleto de metáforas e polissemia. Ma-
cbeth pensa entender a mensagem das bruxas de modo literal, mas
quando realmente entende, faz sentido, a informação já perdeu a uti-
lidade. Aplica a literalidade onde permeia a ambiguidade, De acordo
com Heliodora (2010, p. 579-580), talvez “a resposta seja capaz de ‘in-
vestigar’ e compreender o fundo dos processos do ser humano, tanto
na sua condição de indivíduo como individual de um grupo social”.

46 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Na época, o texto se encarregava de quase toda a eficácia dramá-
tica em um palco despojado e diante de um público heterogêneo, com
recursos do “como se” – imaginação imperativa. As palavras chegam
à imaginação para se materializar no palco.
Hoje, o conteúdo imaginário é mais realista, exibido por uma
lente - o que o diretor quer mostrar exatamente para o espectador. A
crença das pessoas daquele período das bruxas provoca um forte estra-
nhamento e choque nos períodos com o leitor/espectador da época.
Importante relembrar, por fim, que Macbeth tem o maior núme-
ro de adaptações, montagens, filmagens para espetáculos de ópera em
diferentes países e culturas.

CONCLUSÃO

Uma das fortes características da obra de Shakespeare é que, ape-


sar de ter sido escrita na passagem do século XVI para o XVIII, vai
ao encontro do contemporâneo, com roupagem nova a cada leitura
e representação, deixando o palco a céu aberto para salas fechadas e
para telas do cinema mundial.
Nas tragédias, destaca-se a genialidade de Shakespeare indo a
aspectos profundamente desconcertantes do ser humano de modo
atemporal. Eles são expressos em discursos retóricos que são manipu-
lados pelas circunstâncias e destino da miscelânea, e ações do próprio
homem, cheios de amor, paixão, horror, sangue, loucura e luxúria, de-
finindo sua personalidade.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 47


Concluindo, este artigo envolve múltiplos campos de conheci-
mento, mundos de consciência, a alma humana e o mundo ao seu
redor, um envolvimento com a literatura, que ultrapassa palavras, li-
nhas, texto e páginas. A ideia de Shakespeare inova a forma de pensar,
escrever, sentir e ler o mundo e a si mesmo com o uso da linguagem
figurativa com recursos dos campos da literatura, semântica e da escri-
ta criativa. O escritor, mesmo sendo do século XVI, chega ao século
XXI com a linguagem que o envolve e está no cotidiano atual em di-
versas culturas e épocas. Uma obra que impressiona por estar presente
apesar de seu tempo.

COMO CITAR ESTE TEXTO

AMARAL, C. P.; LIMA, P. L. S. A obscuridade da linguagem de Shakespeare em


Macbeth. In: SOARES, I. M.; LESZCZYNSKI, T. (Orgs.). Um percurso pelas
literaturas de língua inglesa. Tutóia/MA: Diálogos, 2023. p. 30-49. https://doi.
org/10.52788/9786589932796.1-2

REFERÊNCIAS

CAMBRIDGE. Macbeth. Cambridge School Shakespeare. New York/USA:


Cambridge University Press, 1993.
CEVASCO, Maria Elisa; SIQUEIRA, Valter Lellis. Rumos da literatura
inglesa. São Paulo: Ática, 1993.
KOTT, Ian, William Shakespeare: Macbeth. Buenos Aires: Revista do Teatro
Municipal General San Martin, 1988.
LAMB, Charles, Mary. Tales from Shakespeare. United Kigdom: Longman,
1995.

48 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


MARTINS, Marcia A.P., (org.). Visões e identidades brasileiras de Shakespeare.
Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.
OXFORD, Guide to british and american culture for learners of english. UK:
Oxford University Press, 2005.
RIEDINGER, Edward Anthony. A brief view of british literature. The Research
and Planning Department of the CCAA, São Paulo: Waldyr Lima, 1982.
SILVA, Alexander Meireles da. Literatura inglesa para brasileiros. Rio de
Janeiro: Ciência Moderna, 2005.
SHAKESPEARE, William; HELIODORA, Bárbara. Hamlet Rei Lear
Macbeth. São Paulo: Clássicos Abril Coleções, 2010.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 49


capítulo 3

Procedimentos técnicos da tradução


na linguagem de horror de Macbeth
Christiano Pereira do Amaral
Maria da Conceição Vinciprova Fonseca

INTRODUÇÃO

Quando se fala em tradução, o senso comum entende traduzir


como seguir religiosamente, palavra por palavra, para obter um texto
idêntico ao original em outra língua. Ora, a língua é a expressão de
uma cultura, é a identidade de um povo. Eco (2007) questiona: “O
que quer dizer traduzir? A primeira e consoladora resposta gostaria de
ser: dizer a mesma coisa em outra língua” (ECO, 2007, p. 9).
Contrariamente ao senso comum, entende-se que um texto é re-
pleto de diversos fatores culturais, sociais e históricos de uma determi-
nada comunidade linguística. Pode-se dizer então que cada tradução
é determinada cultural, social, temporal e historicamente, levando em
consideração o contexto linguístico e extralinguístico. Paul Ricoeur
apud Oustinoff (2011), diz que “traduzir é, ao mesmo tempo, habitar
a língua do estrangeiro e dar hospitalidade a esse estrangeiro no cora-
ção de sua própria língua” (OUSTINOFF, 2011, p. 126).

50 DOI: 10.52788/9786589932796.1-3
Eco (2007) afirma que:

Já foi dito, e trata-se hoje em dia de ideia aceita, que uma tradução não
diz respeito apenas a uma passagem entre as culturas, mas entre duas
culturas, ou duas enciclopédias. Um tradutor não deve levar em conta
somente as regras estritamente linguísticas, mas também os elementos
culturais, no sentido mais amplo do termo (ECO, 2007, p. 190. Grifo
nosso).

Existem diversas técnicas para se traduzir um texto, os procedi-


mentos técnicos da tradução, que fazem com que o texto traduzido
seja o mais próximo das normas da língua-alvo sem perda semântica,
ou minimizando a perda semântica, ou seja, apresentando um grau
alto ou médio de esvaziamento semântico em relação ao texto da
língua-fonte. De acordo com Oustinoff (2011) “não se trata mais de
passar de uma língua para outra, mas de um sistema de signos para
outro” (OUSTINOFF, 2011, p. 9).
Diante disso, o objetivo deste trabalho é analisar a tradução em
português do Brasil, feita por Bárbara Heliodora1, em cotejo ao origi-
nal em língua inglesa, Macbeth, de William Shakespeare, cenas I e III
do ato I e Cena I do ato IV, observando a linguagem de horror. Preten-
de-se apresentar as diferenças na forma traduzida e os procedimentos
técnicos utilizados para se chegar a um resultado satisfatório no que
diz respeito à língua e cultura.

1 Heliodora Carneiro de Mendonça ou Bárbara Heliodora (1923 – 2015) foi conhecedora


indiscutível em tudo que se refere ao grande escritor Shakespeare e à Tradução. Era bacharel
em Língua e Literatura Inglesas pelo Connecticut College (USA) e o doutora em Artes pela
Universidade de São Paulo (USP). Exerceu as atividades de professora, ensaísta, tradutora e crítica
de teatro.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 51


A escolha do corpus, retirado do cânone literário, justifica-se por
tratar-se de uma obra do século XVII que caracteriza a transição entre
o mundo real e o sobrenatural, partindo das Weird Sisters, as três bru-
xas, com suas previsões, invocações, encantamentos e fantasmas. O
ponto forte da obra do escritor é conseguir atravessar quatro séculos
e manter um forte elo da Era Elisabetana com a contemporaneidade.
Como esse texto consegue viajar no tempo e no espaço manten-
do tal qualidade? A ideia de tradução fiel é algo inquestionável ou
existem lacunas a serem explicadas quanto ao e no ato tradutório?
Considerando a expressão italiana, Traduttore, Traditori (ALVES,
MAGALHÃES, PAGANO, 2014, p. 14) – “Quem traduz, trai”, po-
der-se-ia desfazer esse conceito fossilizado pelo tempo e pelo conheci-
mento comum? Acredita-se aqui que toda tradução é um novo texto,
pois o original é modificado, sempre visando minimizar alterações de
sentido, semântica e a ideia do original.
Os procedimentos técnicos de tradução permitem investigar e es-
tabelecer ponderações teóricas a respeito das traduções e auxiliam na
interpretação de traços e características culturais distintas e inerentes
a um povo (BARBOSA, 2009).
Deste modo, este trabalho inicialmente baseia-se em um levan-
tamento bibliográfico para delinear-se em um estudo comparativo,
tendo em vista períodos, orações e termos a serem analisados, eviden-
ciando cada procedimento técnico da tradução do objeto em estudo,
ou seja, o fenômeno linguístico com o conceito técnico.
A expressão “como traduzir” remete à busca da tradução ideal
e perfeita, sem problemas de esvaziamento semântico, criando uma
tensão entre conteúdo e forma. Na verdade, o que é apresentado são

52 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


os procedimentos técnicos que norteiam as diversas possibilidades de
tradução, levando em consideração, de acordo com Barbosa (2009),
“as funções da linguagem que encontram o tipo de texto com que está
trabalhando e a finalidade da tradução” (BARBOSA, 2009, p. 32).
Vê-se então que o processo tradutório não é um trabalho mecâ-
nico. Toda a estrutura textual, semântica e lexical do texto deve ser
analisada, assim como os fatores culturais que definem uma nação.
Fonseca (2009) afirma que “A tradução consiste em linguagem, e tal
como essa, não é mera repetição do que já foi: enquanto paga tributo
ao passado, deixa sempre escapar algo de novo, de inédito, se recria no
seu significar” (FONSECA, 2009, p. 13). Eco (2005) diz que “Um tex-
to é um universo aberto em que o intérprete pode descobrir infinitas
interconexões” (ECO, 2005, p. 45).
De acordo com Oustinoff (2011) “A língua dá forma ao pensa-
mento. Não é um simples instrumento, uma operação intransitiva en-
tre o pensamento e sua expressão” (OUSTINOFF, 2011, p. 32). Sendo
assim, uma tradução literal não responde à questão de como traduzir.
A natureza do texto deve ser levada em consideração, assim como o
tempo e a linguagem utilizada. Barbosa (2009) reflete que a tarefa do
tradutor será facilitada, uma vez que este “terá à sua disposição uma
série de procedimentos que efetivamente recobrem o que acontece no
ato da tradução” (BARBOSA, 2009, p. 64).
A apresentação da proposta de reorganização dos procedimentos
tradutórios quebra o paradigma da tradução puramente literal e reco-
nhece a língua como parte da identidade sócio-histórica e cultural de
uma comunidade com suas próprias características.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 53


PROCEDIMENTOS TÉCNICOS DE TRADUÇÃO

O procedimento tradutório “palavra-por-palavra” vive no cons-


ciente de muitas pessoas quando imaginam como é feita uma tradu-
ção. Aubert (1987, p. 15) apud BARBOSA (1990) diz que essa é:
A tradução em que determinado segmento textual (palavra,
frase, oração) é expresso na LT (língua da tradução2) mantendo-
se as mesmas categorias numa mesma ordem sintática, utilizando
vocábulos cujo semanticismo seja (aproximadamente) idêntico ao
dos vocábulos correspondentes no TLO (texto na língua original).
(BARBOSA, 1990, p. 64-65).
Como exemplo, tem-se a seguinte sentença:

Sendo assim, fica claro que um texto extenso jamais poderá ser
traduzido palavra-por-palavra. Os tradutores automáticos fazem esse
tipo de trabalho, mas considerando as questões semânticas e sintáti-
cas, o texto fica disforme, visto que as organizações linguísticas va-
riam de acordo com suas peculiaridades normativas. Mas essas fer-
ramentas contemporâneas já evoluíram muito, utilizando mais um
procedimento tradutório: a tradução literal.

2 Nota: Explicação do autor do trabalho em itálico.

54 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Quando se fala em traduzir, a ideia do senso comum é a “tradu-
ção literal”, que é, como afirma Aubert (1987, p. 15) apud Barbosa
(1990), “aquela em que se mantém uma fidelidade semântica estrita,
adequando, porém a morfossintaxe às normas gramaticais da LT”

It is raining.
X Está chovendo.

Essas alterações morfossintáticas distinguem a tradução palavra-


-por-palavra da tradução literal. A tradução literal pode ser necessária
dependendo do tipo de tradução; há obrigatoriedade no caso de do-
cumentos e comparações bilíngues em edições, por exemplo. Aubert
(1987) apud Barbosa (1990) diz que “a tradução literal – ou mesmo
palavra-por-palavra – deixa de ser meramente um reflexo de uma coin-
cidência estrutural e cultural entre duas línguas, para tornar-se um
procedimento tradutório deliberado.”
A mudança de classe gramatical de termos em uma sentença é
conhecida como transposição, um procedimento não obrigatório ten-
do em vista a multiplicidade de possibilidades de tradução para cada
termo. Observa-se no segmento de BARBOSA (2009):

She said apologetically ____________ Advérbio

(Ela) disse desculpando-se ____________ Verbo reflexivo

(Ela) disse como justificativa ____________ Adjunto adverbial

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 55


Barbosa (2009, p. 66) apresenta ainda a possibilidade de manter a
classe gramatical na língua portuguesa, fazendo uma tradução literal:

She said reproachfully ____________ Advérbio


(Ela) disse repreensivamente ____________ Advérbio
(Ela) disse recriminadoramente ____________ Advérbio

A transposição pode ser obrigatória ou facultativa. Obrigatória


quando a tradução precisa atender as normas da língua-alvo, e facul-
tativa, quando é levado em consideração o estilo, assim evitando, por
exemplo, repetições na língua portuguesa.
A “modulação” é a reprodução da mensagem do texto na língua-
-fonte no texto na língua-alvo, levando em consideração as caracterís-
ticas linguísticas de cada comunidade e as diversidades de interpreta-
ção do real, sob um diferente ponto de vista.

Like the back of my hand __________ Como a palma da minha mão


keyhole __________ Buraco da fechadura

Barbosa (2009, p. 67) apresenta uma modulação facultativa:

It is easy to demonstrate
É fácil demonstrar _________ Tradução literal
Não é difícil demonstrar _________ Modulação

Sobre outro procedimento técnico conhecido como “equivalên-


cia”, BARBOSA (2009, p. 67) diz que “A equivalência consiste em

56 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


substituir um segmento de texto da língua original por um outro seg-
mento da LT que não o traduz literalmente, mas que lhe é funcional-
mente equivalente”. Aplica-se esse tipo de procedimento a elementos
cristalizados pela língua, como expressões idiomáticas e provérbios.

God bless you! _______ Saúde!/ Deus te abençoe.


Butterfly in the Stomach _______ Frio na barriga
My heart sank _______ Meu coração disparou
To push the envelop _______ Começar a fazer coisas complicadas

A “omissão” caracteriza-se por omitir elementos textuais do tex-


to-fonte no texto da língua-alvo considerados repetitivos ou redun-
dantes.

I bought a box with some books but we’ ll buy a big backpack.

0 Comprei uma caixa com alguns livros, mas 0 precisaremos


comprar uma mochila grande.

Em uma versão, o processo é inverso, chamado de “explicação”.


O procedimento chamado de “compensação” é caracterizado
pelo deslocamento de um recurso estilístico no texto de língua-alvo,
não reproduzido no mesmo ponto do texto da língua-fonte, sendo
possível ainda usar um efeito equivalente. Barbosa (2009) exemplifi-
ca a compensação no caso de trocadilhos e afirma que “quando não
podem ser efetuados com um mesmo grupo de palavras, podem ser
feitos em outro ponto do texto onde sejam possíveis, para equilibrar o
texto estilisticamente” (BARBOSA, 2009, p. 69).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 57


Todo texto traduzido sofre uma perda semântica, seja em maior
ou menor grau, pois esse empobrecimento é justamente devido a re-
cursos utilizados no texto de língua-fonte que não existem no texto
de língua-alvo. Deve-se considerar que essa perda, esse esvaziamento
semântico, é natural de todo processo tradutório.
Barbosa (2009) define a “reconstrução de períodos” como o pro-
cedimento que “consiste em redividir ou reagrupar os períodos e ora-
ções do original ao passá-los para a LT” (BARBOSA, 2009, p. 70).
Há muitas orações complexas em língua portuguesa que devem ser
redistribuídas em orações mais curtas em inglês, o que acontece in-
versamente em uma versão. Erros tipográficos são comuns e passam
despercebidos em textos em todas as línguas. Dessa forma, em uma
tradução é normal fazer ajustes no texto e não repetir os mesmos erros
do texto original. As “melhorias” em qualquer texto podem ser em
qualquer âmbito da língua, desde os ditos erros tipográficos até pro-
blemas morfossintáticos.
Barbosa (2009) diz que a “transferência” consiste em introduzir
material textual do texto original no texto traduzido (BARBOSA,
2009, p. 71). A transferência pode ser construída, conforme Barbo-
sa (2009), em formas de: estrangeirismo, estrangeirismo transliterado
(transliteração), estrangeirismo aclimatado (aclimatação) e estrangei-
rismo com explicação de seu significado, que pode ser em nota de ro-
dapé ou de diluição do texto.
O “estrangeirismo” é definido por Barbosa (2009) como o proces-
so técnico de “transferir (transcrever ou copiar) para o texto traduzido
vocábulos ou expressões da língua original que se refiram a um concei-
to, técnica ou objeto mencionado no texto original que seja desconhe-

58 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


cido para os falantes da língua traduzida.” (BARBOSA, 2009). Esse
vocábulo ou expressão aparecerá com uma marca gráfica, geralmente
itálico ou aspas, de acordo com as normas contextuais de editoração.
O procedimento que substitui uma convenção gráfica por outra
se chama “transliteração”. Nos casos de tradução entre a língua ingle-
sa e portuguesa ou em versões com essas línguas não haverá margem
para uso de transliteração, tendo em vista a utilização do alfabeto ro-
mano por ambas, não havendo divergências. O que pode acontecer
são as passagens com elementos já transliterados na língua original.
A “aclimatação” é um processo que vai além do estrangeirismo,
que é simplesmente copiar um termo estrangeiro. Neste processo, a
palavra estará sujeita a transformações necessárias, adaptações na lín-
gua-alvo. Barbosa (2009) apud Câmara Junior (1977) diz que “um
radical estrangeiro se adapta à fonologia e à estrutura morfológica da
língua que o importa” (BARBOSA, 2009, p. 73).
Para realizar uma “transferência com explicação”, o leitor neces-
sita entender seu significado por meio do contexto. Sendo assim, nem
sempre isso é feito de forma simples, e o tradutor é obrigado a buscar
formas adicionais de explicar termos que no texto na língua-fonte não
permitem essa compreensão clara. Essas formas adicionais são dividi-
das por Barbosa (2009) apud Nida (1964) e Newmark (1981, 1988)
em notas de rodapé e explicações diluídas no texto. Ainda Barbosa
(2009) apud Newmark (1988), enumera três formas de notas: “1) no-
tas de rodapé, 2) notas no final do capítulo e 3) notas ou glossário no
final do livro” (BARBOSA, 2009, p. 74).
Há possibilidade dessas notas serem de forma “equivalente cultu-
ral”, como indica Newmark (1988) apud BARBOSA(2009):

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 59


Night School, o supletivo americano, [...]
Ou ainda, o equivalente funcional, como
Wall Street, mercado financeiro de Nova Iorque”, [...]
(BARBOSA, 2009, op. cit. p.75).

Desse modo, no procedimento de explicação podem ser excluí-


dos estrangeirismos e incluídas explicações, principalmente em casos
de compreensão imediata. Temos o exemplo Wall Street, que pode ser
traduzido (explicado) no texto em língua-alvo usando-se “mercado fi-
nanceiro de Nova Iorque”, omitindo dessa forma, o termo estrangeiro.
O decalque é a tradução literal de sintagmas ou tipologias frasais.
Barbosa (2009), apud Newmark (1981, 1988) apresenta dois tipos de
decalque:

a) de tipos frasais:

Task force ___________ Grupo tarefa

textbook ___________ Livro texto

b) de tipos frasais ligados a nomes de instituições:

INPS National Institute for Social Welfare

The People’s Republic of China A República Popular da China

A “adaptação”, segundo Barbosa (2009),

[...] é o limite extremo da tradução: aplica-se em casos onde a situação


toda a que se refere o texto em língua original não existe na realidade

60 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


extralinguística dos falantes da língua de tradução. Essa situação pode
ser recriada por uma outra equivalente na realidade extralinguística da
língua de tradução. (BARBOSA, 2009, p. 76).

Podem-se citar como exemplos de adaptação editoras que exigem


que os nomes de personagens, instituições, e/ou lugares ou informa-
ções tipicamente exclusivas da cultura do texto da língua-fonte fos-
sem substituídos por nomes da língua-alvo, ou por nomes que já são
consagrados, criando uma forma de aproximar o texto da realidade do
leitor da língua-alvo, mas sem alterar a ideia do autor.
Segue a análise do corpus, retirado do livro de William Shakespe-
are, Macbeth, 1993 [1606], tradução de Bárbara Heliodora, cenas I e
III do ato I e Cena I do ato IV, observando a linguagem de horror, na
língua-fonte e na língua-alvo, visando identificar as diferentes formas
de tradução e os respectivos procedimentos técnicos.

ANÁLISE DO CORPUS

Foram retirados dos locais supracitados os fragmentos na obra


escrita na língua-fonte, inglês, e sua tradução na obra na língua-alvo,
português do Brasil. Os textos na língua-fonte estão grafados como
se encontram na obra, ou seja, itálicos ou fonte regular, seguindo as
normas de linguagem do teatro. O quadro comparativo, abaixo, pos-
sibilita visualizar ambos, o texto-fonte e o texto-alvo, e em uma ter-
ceira coluna ficam registrados os procedimentos técnicos utilizados,
conforme a revisão apresentada anteriormente.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 61


Texto em língua-fonte Texto em língua-alvo
Procedimentos Técnicos
Act I Ato I
de Tradução
Scene I Cena I

A desolate place. Uma planície aberta. Tradução literal


Thunder and lightning. Enter three (Trovões e relâmpagos. Entram as Tradução literal
WITCHES três bruxas.) Tradução literal
First Witch 1ª Bruxa Tradução pal. por pal.
When shall we three meet again? Quando iremos nos juntar? Tradução literal
In thunder, lightining, or in rain Com a chuva a trovoar? Tradução literal

Second Witch 2ª Bruxa Tradução pal. por pal.


When the hurly-hurly’s done, Só com a bulha arrefecida, Tradução literal
When the battle’s lost, and won. A luta ganha e perdida.

Third Witch 3ª Bruxa Tradução pal. por pal.


That will be ere the set of sun Antes da noite caída. Tradução literal

First Witch 1ª Bruxa Tradução pal. por pal.


Where the place? Onde? Omissão/Tradução literal

Second Witch 2ª Bruxa Tradução pal. por pal.


Upon the health. A charneca é o lugar. Adaptação
Third Witch 3ª Bruxa Tradução pal. por pal.
There to meet with Macbeth. Para Macbeth encontrar. Tradução literal

First Witch 1ª Bruxa Tradução pal. por pal.


I come, Graymalkin. Já vou bichano! Omissão/Adaptação

Second Witch 2ª Bruxa Tradução pal. por pal.


Paddock calls. O sapo chama. Equivalência

Third Witch 3ª Bruxa Tradução pal. por pal.


Anon. Eu já vou! Adaptação
All Todas Tradução pal. por pal.
Fair is foul, and foul is fair, Bom é mau e mau é bom; Tradução literal
Hover through the fog and filthy air. Voa no ar sujo e marrom. Omissão
Exeunt (saem) Tradução pal. por pal.

62 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Texto em língua-fonte Texto em língua-alvo
Act I Ato I Procedimentos Técnicos
Scene III Cena III de Tradução

Drum within (Rufar de Tambores) Tradução literal


Third Witch 3ª Bruxa Tradução pal. por pal.
A drum, a drum; O tambor está a rufar, Omissão
MacBeth doth come. É Macbeth que vai chegar. Tradução literal
[...] [...]

MacBeth MacBeth Tradução pal. por pal.


So foul and fair a day I have not seen. Dia tão lindo e feio eu nunca vi. Tradução literal
[...] [...]

Macbeth Macbeth Tradução pal. por pal.


Speak if you can: what are you? Se falam, digam-nos quem são. Tradução literal
First Witch 1ªBruxa Tradução pal. por pal.
All hail MacBeth, hail to thee, Salve, MacBeth; oh salve, Tradução literal
Thane of Glamis. Thane de Glamis! Trad. pal. por pal./Transp.

Second Witch 2ª Bruxa Tradução pal. por pal.


All hail Macbeth, hail to thee, Salve, Macbeth, oh salve, Tradução literal
Thane of Cowdor. Thane de Cowdor! Trad. pal. por pal./Transp.

Third Witch 3ª Bruxa Tradução pal. por pal.


All hail Macbeth, that shalt be Salve, Macbeth; que um dia Tradução literal
king hereafter. há de ser rei! Tradução literal
[...] [...]
First Witch 1ª Bruxa Tradução pal. por pal.
Hail. Salve! Tradução pal. por pal.

Second Witch 2ª Bruxa Tradução pal. por pal.


Hail. Salve! Tradução pal. por pal.
Third Witch 3ª Bruxa Tradução pal. por pal.
Hail. Salve! Tradução pal. por pal.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 63


First Witch 1ª Bruxa Tradução pal. por pal.
Lesser than Macbeth, and greater. Menor, porém maior, do que Tradução literal
Macbeth!
Second Witch 2ª Bruxa Tradução pal. por pal.
Not so happy, yet much happier. Menos feliz, no entanto, mais feliz! Tradução literal

Third Witch 3ª Bruxa Tradução pal. por pal.


Thou shalt get kings, though thou be none. Não será rei, mas será pai de reis! Tradução literal
So all hail Macbeth and Banquo. Salve, então, Macbeth e Banquo. Tradução literal

Texto em língua-fonte Texto em língua-alvo


Procedimentos Técnicos de
Act IV Ato IV Tradução
Scene I Cena I
Thunder. [Enter] First Aparition, naar- (Trovão. 1ª Aparição: uma cabeça Tradução literal
med Head armada.)
Macbeth Macbeth Tradução pal. por pal.
Tell me, thou unknow power – Diz-me, poder ignoto... Tradução literal
First Witch 1ª Bruxa Tradução pal. por pal.
Hear his speech, but say thou nought. Ele já sabe teu pensamento. Tradução literal/ reconstrução
Ouve e não diz nada. de períodos
First Apparition 1ª Aparição Tradução pal. por pal.
Macbeth, Macbeth, Macbeth: Macbeth! Macbeth! Tradução pal. por pal./ Omis-
beware Macduff, Cuidado com Macduff! são/reconstrução de períodos
Beware the thane of Fife. Dismiss me. Cuidado com o Thane de Fife. Tradução literal
Enough. Já basta. Tradução pal. por pal.
Descends. (Desce) Transferência
[...] [...] Tradução literal
Thunder. [Enter] Second Apparition, a (Trovão. 2ª Aparição: uma criança Tradução literal/omissão
blood Child ensanguentada.)
[...] [...] Tradução literal

64 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Second Apparition 2ª Aparição Tradução pal. por pal.

Be bloody, bold, and resolute; laugh to scorn Se ousado, sangrento e resoluto: Tradução literal
The power of man, for none of woman Ri dos homens,
born pois ninguém
Shall harm Macbeth. Parido por mulher fere Macbeth.
(Descends) (Desce.)
[...] [...]
Tradução literal

Thunder. [Enter] Third Apparition, a (Trovão. 3ª Aparição: uma Tradução literal/omissão


child crowded, with a tree in his hand criança coroada,
com uma árvore na mão.)
What is his,
That rises like the issue of king O que é isso Tradução literal/omissão
And wears upon his baby-brow the Que se levanta, um herdeiro real,
round Que se ostenta, em sua testa de
And top of sovereignty? criança,
[...] A glória do poder?
[...]
Third Apparition 3ª Aparição Tradução pal. por pal.

Be lion-mettled, proud, and take no care Com bravo orgulho de leão ignora Tradução literal
Who chafes, who frets, or where Quem chora, quem reclama,
conspirers are. quem
Macbeth shall never vanquished be until conspira:
Great Brinam Wood to high Dunsinane Macbeth jamais será vencido Reconstrução de períodos
hill enquanto Tradução literal/ transf.
Shall come against him. A floresta de Birnam não s’elevar
Contra ele em Dunsinane.
(Desce.)
Descends. Tradução literal

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 65


Macbeth Macbeth Tradução pal. por pal.

That will never be: Isso é impossível: Tradução literal


Who can impress the forest, bid the tree Recrutar matas? Mas quem
Unfix his earthbound root? Sweet bode- pede à árvore que desloque
ments, good. a raiz?
[...] Que bom augúrio!
[...]

Todas
All the Witches
Omissão
Mostra aos olhos, corta o
Show his eyes and grieve his heart,
coração!
like shadows, so depart. Tradução literal/ reconstrução
Como sombras, vêm o vão!
de períodos
(Um desfile de oito reis, o último
[Enter] a show of eight kings, and [the]
dos quais com um espelho na
last with a glass in his hand
mão;
[Banquo’s Ghost following] Tradução literal
Banquo os segue.)

Macbeth Tradução pal. por pal.


Macbeth

És por demais como o espectro Tradução literal


Thou art too like the spirit of Banquo.
De Banquo!
Down!
Queima-me a vista a tua coroa.
Thy crown does sear mine eyeballs.
Vai-te! Tradução literal

RESULTADOS

Segue o quadro quantitativo com o número de vezes que aparece


cada procedimento técnico com suas respectivas porcentagens de uso
para serem contabilizados.

66 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Procedimentos Técnicos Vezes que aparecem no Porcentagem
de Tradução texto
Trad. Palavra por Palavra 37 37%
Tradução Literal 41 42%
Transposição 02 02%
Modulação 00 00%
Equivalência 01 01%
Omissão vs. Explicação 09 09%
Compensação 00 00%
Reconstrução 04 04%
Melhorias 00 00%
Transferência 02 02%
Transf. c/ Explicação 00 00%
Explicação 00 00%
Decalque 00 00%
Adaptação 03 03%

Total 99 100%

Encontra-se no cerne do corpus, de acordo com a análise do qua-


dro quantitativo, uma convergência do sistema linguístico, do estilo e
da realidade extralinguística, marcas que são evidentes pelo uso cons-
tante dos procedimentos técnicos de tradução palavra-por-palavra e
a tradução literal. Esta constatação demonstra que o tradutor certa-
mente prefere e busca a maior aproximação possível do texto original.
Entretanto, isso nem sempre será possível, como explicado acima nes-
te trabalho, o que demonstra o uso de outros procedimentos.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 67


Vale dizer que a grande presença dos procedimentos de tradução
palavra-por-palavra e de tradução literal deve-se também ao fato de
o texto, sendo de teatro, repetir nomes de personagens e indicações
dos mesmos. Portanto, apresenta-se nova tabela em que os nomes dos
personagens não são contabilizados.

Procedimentos Técnicos Vezes que aparecem no Porcentagem


de Tradução texto
Trad. Palavra por Palavra 08 11%
Tradução Literal 41 59%
Transposição 02 03%
Modulação 00 00%
Equivalência 01 01%
Omissão vs. Explicação 09 13%
Compensação 00 00%
Reconstrução 04 06%
Melhorias 00 00%
Transferência 02 03%
Transf. c/ Explicação 00 00%
Explicação 00 00%
Decalque 00 00%
Adaptação 03 04%

Total 70 100%

Observa-se que na nova metodologia, ainda que tenha diminu-


ído a ocorrência de tradução palavra por palavra, mantêm-se a ocor-

68 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


rência maior dos procedimentos técnicos de tradução literal, confor-
me definida por Barbosa (2004).
Outros procedimentos utilizados, com menor ocorrência, trans-
posição, equivalência, omissão vs. explicação, reconstrução de perío-
dos, transferência e adaptação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa apresentou as crenças do senso comum


quanto à tradução, que desejaria, como leu-se em Eco (2007), acima
neste trabalho, uma transparência perfeita entre o sistema da língua-
-fonte e o da língua-alvo. Foi demonstrado que uma tradução literal
ou um texto traduzido palavra por palavra não funcionam em todos
os tempos e em todos os processos de tradução.
Legitima-se essa afirmativa, pois a linguagem é arbitrária, por-
tanto, devem ser levados em consideração todos os fatores histórico-
-culturais de uma comunidade linguística cujo texto será traduzido.
Os procedimentos técnicos poderão auxiliar na tradução, oferecendo
parâmetros ao fazer tradutório. Porém fica claro que a proficiência do
tradutor quanto aos sistemas fonte e alvo continua sendo o essencial,
e aquele fará suas escolhas à luz do seu conhecimento.
O esvaziamento semântico, seja em menor ou maior grau, acon-
tecerá, pois durante o processo tradutório, o tradutor não é autor,
mas cria um novo texto com uma estrutura sintática nova, buscando
manter o sentido da língua-fonte. É uma reconstrução do texto origi-
nal, disponibilizando-o em uma nova realidade linguística com suas

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 69


peculiaridades. Neste contexto, Oustinoff (2011) diz que “a tradução
não só se amplia, como se diversifica, para assumir novas formas.”
(OUSTINOFF, 2011, p. 1). É uma ciência, pois pertence ao campo da
linguística, e de natureza dinâmica, de movimento.

COMO CITAR ESTE TEXTO

AMARAL, C. P.; FONSECA, M. C. V. Procedimentos técnicos da tradução na


linguagem de horror de Macbeth. In: SOARES, I. M.; LESZCZYNSKI, T. (Orgs.). Um
percurso pelas literaturas de língua inglesa. Tutóia/MA: Diálogos, 2023. p. 50-71.
https://doi.org/10.52788/9786589932796.1-3

REFERÊNCIAS

ALVES, Fábio; MAGALHÃES, Célia, PAGANO, Adriana. Traduzir com


autonomia – estratégias para tradutor em formação. 4ed. São Paulo: Contexto,
2014.
ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução: a teoria na prática. 4ed. - São Paulo:
Ática 2003.
BARBOSA, Heloísa Gonçalves. Procedimentos técnicos de tradução - uma nova
proposta. 2 ed. Campinas: Pontes, 2004.
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
ECO, Umberto. Quase a mesma coisa: experiências de tradução. Rio de Janeiro:
Record, 2007.
FONSECA, Maria da Conceição Vinciprova. Um novo enquadramento para a
tradução literária: os valores segundo Ítalo Calvino. 2009. Tese (Doutorado) -
144f. Universidade Federal Fluminense. Niterói/ RJ, 2009. 144f.
OUSTINOFF, Michael. Tradução – história, teorias e métodos. São Paulo:
Parábola, 2011.

70 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


SHAKESPEARE, William. Macbeth. Cambridge School Shakespeare. New
York/USA: Cambridge University Press, 1993.
SHAKESPEARE, William. Macbeth. São Paulo: Clássicos Abril Coleções,
2010.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 71


capítulo 4

A criatura de Frankenstein:
estereótipo e conduta moral
Beatriz Cerqueira Biscarde
Anna Paola Costa Misi

INTRODUÇÃO

O célebre livro de Mary Shelley, que leva o sobrenome de Victor


Frankenstein, cientista sonhador, trata de inúmeros temas como o
que será focado no presente artigo: a conduta moral. No romance,
a ambição de Victor de ser venerado por um ato de bondade estava
prestes a virar realidade, por meio de uma criatura prevista para ser
bela e boa. Mas, após ela ganhar vida, seu criador ou qualquer outra
pessoa capaz de enxergá-la não suportava o horror da sua aparência,
tirando-lhe qualquer chance de demonstrar a generosidade que possuía
dentro de si. A criatura então teve que acostumar-se a ser maltratada
desde o início da sua vida até o momento em que ela passou a ganhar
conhecimento, raciocinar e compreender as misérias da humanidade.
Assim, com a capacidade de reflexão e fala, a perda da sua ingenuidade
foi tomada pela crueldade. Com isto, esta pesquisa analisará como o
bom pode tornar-se mau na criatura de Frankenstein.

72 DOI: 10.52788/9786589932796.1-4
A partir da percepção do quanto o estereótipo influencia na so-
ciedade, sempre notei o estranhamento vindo dos explícitos gestos fa-
ciais e comentários preconceituosos das pessoas dirigidos às minhas
vestimentas e maquiagens, tendo passado por inúmeras situações abo-
mináveis apenas por apresentar-me de um jeito fora do padrão consi-
derado adequado pela sociedade. Portanto, quando li Frankenstein,
recebi um grande impacto. A identificação ocorrida foi muito forte,
por conta da criatura de aparência grotesca em relação aos demais se-
res humanos, a repulsa sentida e relatada por ela fez com que eu fizesse
uma comparação no meu contexto de vida como sendo parte da sub-
cultura gótica.
Segundo Kipper (2008):

A subcultura Gótica inclui produção musical, literária, cinematográfica,


moda, comportamento, economia e trabalho (lojas, gravadoras, editoras
e clubes) e entretenimento, etc. E, claro, inclui também relações afetivas
com estes símbolos tão significativos e entre as demais pessoas ligadas a
esta subcultura (p. 14).

Nesse grupo, os indivíduos normalmente se inclinam a não acei-


tação das relações vazias em que vivemos, gostando de temas inevi-
táveis como a vida e a morte e habitualmente atraídos por elementos
mórbidos e melancólicos (pois são nesses momentos que conhecemos
as nossas tristezas as aceitando, fazendo profundas reflexões, em todas
as formas de arte que abarca esta rica subcultura). Existem também
variados estilos de se vestir dentro deste mundo, como o pós-punk,
vitoriano, medieval, entre outros, que podem causar uma sensação de
estranhamento, ainda mais quando misturados de acordo com o es-
tilo de cada um. Por isto, quis começar a contribuir neste mundo tão

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 73


fiel a mim. A estereotipização quanto à aparência grotesca será aqui
tratada e assim, buscarei diminuí-la, pretendendo suscitar ainda mais
forças aos pertencentes da subcultura Gótica.
Este estudo, então, possui o objetivo geral de descrever como
se dá o processo de transformação da conduta moral na criatura de
Frankenstein. Tendo como objetivos específicos, fazer uma relação
entre o bom e o mau na criatura de Frankenstein; analisar a estereoti-
pização do grotesco quanto ao mau; e entender o grotesco em Franke-
nstein. Para atingir os objetivos acima mencionados dialogarei com os
teóricos Aristóteles e Victor Hugo.
Em “Do Grotesco e do Sublime” (2017) de Victor Hugo, ele ex-
põe a sua teoria sobre o grotesco, que tem como conceito da palavra:
“todos os ridículos, todas as enfermidades, todas as feiuras. Nesta
partilha da humanidade e da criação, é a ele que caberão as paixões,
os vícios, os crimes” (HUGO, 2017, p. 36), o que se encaixa no caso
da criatura aqui analisada criada durante o século XIX e tão atual
que poderia ter sido escrito nos dias de hoje, pois podemos enxergar a
maneira como a aparência grotesca realizou o empecilho do real senti-
mento existido por trás dela, já que ela era inicialmente boa.
Victor Hugo (2017) cita ainda que “tudo na criação não é huma-
namente belo, que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do
gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a som-
bra com a luz” (HUGO, 2017, p. 26), mostrando a linha tênue entre
as duplicidades existentes. Na obra de Mary Shelley, esse dualismo é
bem expressado na relação entre criador e criatura, a ponto de nos
perguntarmos quem é o verdadeiro monstro da história.

74 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Aristóteles (2017) diz em “Ética a Nicômaco” que “o agir bem é
ao mesmo tempo uma coisa rara, digna de elogio e bela” (ARISTÓ-
TELES, 2017, p. 58), e na história de Victor Frankenstein, cientista
ambicioso, nos primórdios ansiava em ter seu nome eternamente ado-
rado após o término da sua bondosa criação. Ele conseguiu realizar
tal feito. No entanto, a aparência da criatura não havia saído como o
imaginado, e ao invés de agradáveis aos seus olhos, um horror o inva-
diu por dentro, fugindo, assim, das suas próprias responsabilidades.
Ele quis agir para o bem, mas isso foi devido à sua ambição e arro-
gância, enquanto o objetivo principal da sua criatura que era ser bom
havia realmente sido cumprido. Porém, ele não se preocupou com o
futuro do ser que havia dado a vida. Aristóteles (2017) mostra, ain-
da, que “tanto os prazeres quanto as dores, constituem o principal
objeto tanto da virtude quanto da política, pois se ela é usada bem,
o homem será bom, e se usada mal, o homem será mau” (ARISTÓ-
TELES, 2017, p. 46). E aqui a pobre criatura teve de deparar-se com
as mais horríveis situações perdendo a sua inocência e ingenuidade ao
decorrer do tempo até se transformar completamente, da bondade à
maldade, jurando vingança àquele que lhe dera a vida.
Sendo assim, esta pesquisa será de cunho descritivo quanto à
forma de estudo, com abordagem qualitativa, de objetivo teórico. Os
autores contribuintes para compreendermos as relações entre o estere-
ótipo relacionado ao grotesco e a conduta moral, focado na criatura de
Frankenstein serão analisados juntamente com os recortes principais
da construção da criatura na grande obra de Mary Shelley.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 75


A OBRA E A AUTORA: ALGUNS ASPECTOS

É no contexto do século XIX, do Romantismo da Inglaterra, que


surge Frankenstein; ou, o Prometeu Moderno (1818), a mais conhecida
obra de Mary Shelley (1797–1851), uma mulher que teve uma vida
rodeada de dor, óbitos e solidão. Ela foi criada pelo seu pai William
Godwin, já que a sua mãe Mary Wollstonecraft faleceu poucos dias
após ter dado à luz. Mary Shelley estava à frente do seu tempo, sua
genialidade é reconhecida sobretudo hoje, mais de duzentos anos após
a publicação do seu primeiro romance. Antes, acreditava-se com mais
intensidade na falta de capacidade das mulheres em serem escritoras,
até mesmo por causa da criação do gênero feminino, engendradas
para a ignorância em temas sócio-políticos e econômicos, e cobertas
de vulnerabilidade, além da submissão de um casamento.
Uma história como Frankenstein, então, trazendo tantos pensa-
mentos e vieses, logo veio a se transformar em um clássico. O romance
trouxe à tona grandes observações como: as dualidades do ser huma-
no, ambição, perda, isolamento, vingança e morte. Deste modo, gran-
de parte das pessoas pensou que, na verdade, a produção teria sido
escrita por Percy Shelley, marido de Mary. Esse pensamento foi consi-
derado a partir do fato de a primeira edição, publicada anonimamen-
te, ter sido prefaciada pelo Percy. Havia também uma dedicatória de
Mary para William Godwin. Todas as afirmações relatadas explicam
o comumente uso de pseudônimos naquela época, os nomes originais
das mulheres costumavam não ser revelados.
Se observarmos cuidadosamente a correspondência entre a vida de
Mary Shelley e a criatura de Frankenstein, podemos perceber algumas si-

76 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


milaridades, tal como o fato de os dois não terem tido uma mãe e ambos
os pais terem os abandonado. No livro, Victor afasta-se da sua criação
logo após animá-la; na vida da escritora, o seu pai lhe dá as costas quando
ela se envolve e foge com Percy Shelley. Posto isso, constatamos algumas
associações admissíveis para um possível relato autobiográfico.
Para a construção deste artigo, utilizamos uma tradução da pri-
meira versão da obra (1818), embora a versão definitiva de 1831, ampla-
mente revisada pela autora, seja a mais popularizada mundialmente. Há
diferenças sutis, mas também notórias entre as versões. Por exemplo,
na segunda versão, Victor torna-se mais vítima do destino e Elizabeth
deixa de ser prima para passar a ser irmã de criação de Victor. A escolha
do primeiro texto como base para o artigo vale-se das ideias primordiais
de uma Mary bem jovem e inexperiente, ainda que seja evidente o fato
de Percy Shelley ter feito algumas modificações de estilo. O período de
escrita da obra vai de meados de 1816 ao segundo semestre de 1817, fase
em que a autora vivenciava seus 18 aos 20 anos de idade.

VICTOR FRANKENSTEIN: O MOMENTO DA CRIAÇÃO

O pesadelo real do cientista Victor Frankenstein começou no


momento em que a sua ambição de criar uma espécie, da qual lhe fos-
se eternamente grata por ter dado a vida, foi finalmente realizada. Ele
estava obcecado por tal realização, assim receberia a glória desta nova
espécie, como o próprio Victor diz:
Ninguém pode conceber a variedade de sentimentos que me
impulsionaram como uma função, no primeiro entusiasmo do sucesso.
Vida e morte me apareceriam como limites ideais, que o primeiro devia

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 77


transpor, para lançar uma torrente de luz em nosso mundo de trevas.
Uma nova espécie me abençoaria como seu criador e sua origem; muitas
criaturas felizes e excelentes iriam dever a existência a mim. Nenhum
pai reivindicaria a gratidão de um filho tão completamente quanto eu
mereceria a delas. Prosseguindo nas reflexões, pensei que, se pudesse
dar vida à matéria inanimada, com o tempo poderia (embora julgue
isso impossível) restituir a vida onde a morte aparentemente tivesse
destinado o corpo à deterioração (SHELLEY, 2016, p. 77).

No entanto, da matéria inanimada surgia uma criatura de aparên-


cia horrenda, capaz de amedrontar qualquer ser humano, mesmo ten-
do sido criada para ser bela. Victor havia criado um ser de feiura quase
indescritível e, com todo o seu despreparo ao se deparar com o que não
estava esperando, foge para fora da sala onde se encontrava a sua cria-
ção, tentando escapar do horror que aquela imagem o acometia:

Como descrever minhas emoções diante da catástrofe, ou como esboçar


o infeliz que eu, com dores e cuidados infinitos, havia me empenhado
em formar? Seus membros eram proporcionais, e havia escolhido suas
feições para que fossem belas. Belas! Santo Deus! Sua pele amarela
mal cobria a atividade dos músculos e artérias abaixo; seu cabelo era
escorrido, de um negro lustroso; os dentes, de uma brancura perolada.
Estas exuberâncias, no entanto, só formavam um contraste ainda mais
horrendo com seus olhos serosos, que pareciam quase da mesma cor
das órbitas de um branco pardo onde se fixavam, e com a pele enrugada
e os lábios finos e negros. Os diferentes incidentes da vida não são tão
mutáveis quanto os sentimentos humanos. Eu tinha trabalhado duro
por quase dois anos, com o único objetivo de infundir vida num corpo
inanimado. Para tanto tinha me privado do repouso e da saúde. Desejara
isso com um ardor que excedia em muito a moderação, mas agora que
eu havia terminado, a beleza do sonho desaparecera. E meu coração se
enchia de indizível horror e asco. Incapaz de suportar o aspecto do ser
que eu havia criado, corri para fora da sala e continuei por muito tempo
a andar em meu quarto, incapaz de acalmar minha mente para poder
dormir (SHELLEY, 2016, p. 83).

78 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


De tal maneira, Victor ficou tão assombrado que mal conseguiu
relatar sobre os seus sentimentos quando esteve em frente à sua cria-
tura de aparência grotesca. Tudo havia sido preparado para ser belo,
porém toda a ânsia em ver a criação pronta se transformava em um
desespero amedrontador. Sobre o belo e o feio, disse Victor Hugo:

O belo tem somente um tipo; o feio tem mil. É que o belo, para falar
humanamente não é senão a forma considerada na sua mais simples
relação, na sua mais absoluta simetria, na sua mais íntima harmonia
com nossa organização. Portanto, oferece-nos um conjunto completo,
mas restrito como nós. O que chamamos o feio, ao contrário, é um
pormenor de um grande conjunto que nos escapa, e que se harmoniza,
não com homem, mas com toda a criação. É por isso que ele nos
apresenta, sem cessar aspectos novos, mas incompletos (HUGO, 2017,
p. 36).

Percebe-se a partir da citação acima que o belo é limitado, um


modelo a ser seguido. É o que estamos acostumados a lidar, sem o
novo. Já o feio, há variadas formas. Ele ultrapassa os limites, e assusta
com o seu desconcerto, portanto é necessário olhá-lo sob uma nova
perspectiva. O feio é o que há em todos nós, o que está sempre sujei-
to a mostrar algo. A criatura de Frankenstein surge nos mostrando o
quanto é mais humana que o ser humano, o qual ainda tem muito a
aprender, pois está carregado de imperfeição moral, com preconceitos
que falam mais alto. O que se segue a partir da sua criação é a miséria
enfrentada para a mal-aventurada criatura, aprendendo a lidar desa-
fortunadamente por todos os cantos onde percorreu até o criador e a
criatura passarem a se encontrar.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 79


ENCONTROS ENTRE CRIADOR E CRIATURA

Algum tempo depois de ter dado vida à figura de aparência gro-


tesca e natureza boa, Victor tomou conhecimento da morte do seu pe-
queno irmão William por meio de uma carta do seu pai, então saiu de
Ingolstadt para retornar à Genebra, sua cidade natal. Ao encontrar os
portões da cidade já fechados teve de passar a noite numa aldeia, mas
encontrando dificuldades com o sono, resolveu ir ao local do assassi-
nato, e lá viu a sua criação aparecer e sumir diante dele, como num pis-
car de olhos. Foi nessa hora que teve a certeza absoluta de que nenhum
outro ser no mundo além da criatura a qual deu a vida seria capaz de
algo tão bárbaro. Após mais alguns dias, sempre em angústia desde a
noite em que começou o seu tormento, em um passeio, Victor se vê
outra vez de frente com a sua criação. Sendo levados por uma sede de
vingança e revolta, eles finalmente partem para o primeiro diálogo.
Victor inicia sua fala cobrindo o “demônio” com muitos insultos. A
criatura já esperava tal recepção e no auge da discussão, esta desabafa:

Ó Frankenstein, não sejas justo com todos os outros enquanto maltratas


apenas a mim, que mais do que ninguém devo merecer a tua justiça, e
até mesmo a tua clemência e afeto. Lembra-te que sou tua criatura: eu
deveria ser o teu Adão, mas sou antes o anjo caído, de quem tiraste a
alegria por crime nenhum. Por toda parte vejo a felicidade, da qual só
eu estou irremediavelmente excluído. Eu era generoso e bom; a desgraça
fez de mim um demônio. Faze-me feliz, e serei outra vez virtuoso
(SHELLEY, 2016, p. 145).

A criatura alega ter sido criada boa. No entanto, a sua aparência


grotesca fez com que o seu próprio criador fugisse no momento da
consumação da sua obra. Fora de casa, a criatura descobriu e com-

80 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


preendeu a maldade e o preconceito das pessoas. Dessa forma, ela se
transformou radicalmente, pois como disse Aristóteles (2017), “é im-
possível, ou não é fácil, realizar coisas boas estando sem condições” (p.
31) e ainda: “toda disposição da alma tem sua natureza em relação e
em conformidade com o gênero das coisas que podem torná-la natu-
ralmente melhor ou pior. Ora, é por causa dos prazeres e das dores que
os homens se tornam maus” (p. 45).
Segundo a criatura de Frankenstein, esta foi a retribuição após
efetuar um ato de bondade:

Salvara um ser humano da morte e, como recompensa, padecia agora


com a dor miserável de uma ferida que me rompera a carne dos ossos. Os
sentimentos da bondade e gentileza que, há apenas alguns momentos,
ou havia nutrido, deram lugar a uma raiva infernal e ao ranger de dentes.
Irritado com a dor, jurei vingança e ódio eternos a toda a humanidade
(SHELLEY, 2016, p. 201).

A criatura, assim, tornou-se impiedosa já que, logo no momento


inicial de sua vida, começou recebendo o primeiro dos seus traumas, a
negação do que seria o próprio pai. E devido ao mal que foi realizado
injustamente para ela por aparentemente considerarem-na má tantas
vezes por onde andou, ela acabou se tornando realmente aquilo. Em
outra fala, esta diz que:

Depois de algumas semanas, meu ferimento sarou, e continuei minha


viagem. As fadigas que suportei não mais seriam aliviadas pelo sol
luminoso ou a brisa suave da primavera. Toda alegria não era senão
um escárnio, que insultava minha desolada condição e me fazia sentir
mais dolorosamente que eu não fora feito para desfrutar do prazer
(SHELLEY, 2016, p. 203).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 81


Isto é, a dor do desprazer a transformou agudamente. Foram-lhe
tirados prazeres básicos. A própria falta de contato com os seres hu-
manos, a solidão, poderíamos dizer ser a de maior incômodo, uma vez
que impossibilitava qualquer tipo de relação com o outro. Ela foi en-
tão se modificando, a cada má experiência, se para Aristóteles (2017)
“aquele que se priva de todos os prazeres, como um homem rústico,
torna-se um homem insensível” (p. 44). Porém, ainda segundo Aris-
tóteles (2017), “realizar ações boas e vergonhosas depende de nós, do
mesmo modo também depende o não realizá-las e se isso significa ser
bons ou maus, então depende de nós sermos virtuosos ou viciosos” (p.
72). Nessa visão, a disposição de caráter depende de cada um, mesmo
que tenhamos condições diferentes, demonstrando que, mesmo com
todo o penar, somos responsáveis pelas nossas próprias ações. No en-
tanto, não seria estranho que o contexto sociocultural de um para o
outro, com circunstâncias diversas, não interferisse no modo de ser?
Não apenas o que vem de dentro interferindo fora, mas o de fora que
interfere no interior, como acontece na criatura de Frankenstein dian-
te das interações sociais colocadas. Se ela não tivesse sido rejeitada por
Victor logo de início, poderia ter a viabilidade de ter se privado de
tantos maus-tratos, ou até mesmo se ela não fosse tão incompreendida
por todos, possivelmente não haveria motivos para ter se transforma-
do moralmente. Contudo, ela passou a dar o que recebia.
Sobre a felicidade, cada um deve escolher o que é melhor para si
e saber fazer escolhas; assim será virtuoso, pois para Aristóteles (2017)
“A virtude é uma disposição de caráter relacionada a uma escolha de-
liberada e ocupa uma posição central em relação a nós qual é determi-
nada pela razão e determinaria o homem dotado de sabedoria prática”

82 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


(p. 51). A criatura acreditava no poder de Victor em fazê-la feliz, ou
seja, na felicidade que viria de fora, no entanto nesse ponto de vista,
Victor não poderia fazer sua criação feliz para esta voltar a ser virtuo-
sa, uma nova mudança caberia novamente apenas a ela, agora já capaz
de realizar escolhas racionais.
Durante o longo relato da pobre criatura, todas as vezes que o tão
solitário ser esteve próximo de ter contato com algum ser humano, foi
oprimido, sempre por causa da sua aparência, sem qualquer chance de
se expressar. A única exceção desse fato foi apenas no caso do senhor
cego De Lacey, pai de Agatha e Felix, família com a qual a criatura
teve contato, ainda que ninguém pudesse perceber a sua presença físi-
ca, pois ela tinha acabado de encontrar uma choupana nos fundos do
chalé onde pai e filhos moravam. Ali, a criatura foi capaz de aprender
diversos ensinamentos como o idioma falado por eles. Isso propor-
cionou a leitura de variados livros, portanto, o conhecimento sobre
história; desenvolvimento e obtenção de conhecimentos nos jovens;
relações que unem os seres humanos em laços recíprocos, possibilitan-
do a chegada de novos sentimentos, como a reflexão e, ainda, lidando
com a tristeza do estranhamento em estar adquirindo tantos saberes e
não poder mais se desfazer deles:

Essas narrativas maravilhosas inspiraram-me estranhos sentimentos.


Seria o homem, de fato, tão poderoso, tão virtuoso e magnífico, e ao
mesmo tempo tão vil e cruel? Ora ele parecia ser um mero descendente
do princípio do mal, ora tudo que se poderia conceber de nobre e
divino. Ser um grande homem, um homem virtuoso, parecia a mais alta
honra que poderia acontecer a um ser sensível; ser vil e cruel, mais abjeta
do que a toupeira cega ou do verme inofensivo. Por um longo tempo,
eu não pude conceber como o homem podia matar seu semelhante,
ou mesmo por que havia leis e governos; mas quando soube detalhes

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 83


de crueldades e matanças, meu espanto cessou e afastei-me com asco
e desgosto [...] compreendi o estranho sistema da sociedade humana.
Soube da divisão de propriedade, da imensa riqueza da sociedade
humana. Soube da divisão de propriedade, da imensa riqueza e
sórdida pobreza, de posição, descendência e sangue nobre. As palavras
me induziram a olhar para mim mesmo. Aprendi que os bens mais
estimados pelos seus semelhantes eram uma alta e imaculada linhagem,
unida à riqueza. Um homem poderia ser respeitado com apenas uma
dessas condições, mas sem nenhuma seria considerado exceto em casos
raríssimos, um escravo, destinado a desperdiçar suas forças em proveito
dos poucos privilegiados. E o que era eu? Ignorava absolutamente
tudo sobre minha criação e meu criador, mas sabia que não possuía
dinheiro, nem amigos, nem qualquer tipo de propriedade [...] Que
coisa estranha é o conhecimento! Uma vez que chegou até a mente,
agarra-se a ela como o líquen numa rocha. Às vezes, queria livrar-me de
todo pensamento ou sentimento; mas aprendi que só havia um meio de
vencer a sensação de dor – a morte – um estado que eu temia embora
ainda não compreendesse. Eu admirava a virtude e os bons sentimentos,
e amava os modos gentis e as qualidades agradáveis dos meus aldeões,
mas estava excluído de qualquer relacionamento com eles, exceto
por meios que eu obtivera em segredo, quando não era visto e nem
conhecido (SHELLEY, 2016, p.171-173).

No primeiro contato com humanos, em sua ingenuidade, a cria-


tura de Frankenstein não consegue entender tamanha perversidade
por parte da sociedade, passando da inocência ao que ela mais possuía
aversão, a perversidade. Somente quando percebeu o tremendo horror
que aparentava ao ver o seu reflexo, entendeu o motivo de ser despre-
zada. Ciente da situação, quando se aproximou dos que considerava
seus protetores, durante muito tempo se preparou para o contato com
o velho pai em algum momento em que ele estivesse sozinho, na ten-
tativa de deixá-lo ao seu favor para convencer o restante da família em
relação à sua bondade, apesar de não ter uma aparência agradável, aos
que podiam enxergar aspectos físicos. No entanto, quando a criatura

84 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


conseguiu finalmente aproximar-se, ela foi surpreendida pelo restante
da família que voltava para o local durante o momento em que pedia
ajuda ao senhor cego. E mais uma vez, foi maltratada. Para ela, “Gra-
ças às lições de Félix, e às leis sanguinárias dos homens, eu aprendera
a fazer o mal” (SHELLEY, 2016, p. 205), ou seja, naquele momento a
criatura passava a se afundar completamente na maldade.
Segundo Aristóteles (2017), “devemos, às vezes, inclinar-nos tan-
to em direção do excesso, quanto em direção da deficiência, já que
é desse modo que atingiremos com mais facilidade o meio-termo e
o bem” (p. 59). No caso do ser criado por Frankenstein, que passa
por diversos inconvenientes até se transformar num ser desumano, ele
tenta deixar a sua relação com o seu criador em paz, prometendo vol-
tar a ser bondoso com a condição de Victor criar uma fêmea tão horrí-
vel quanto ele para fazer-lhe companhia, assim alguém da sua própria
espécie não o temeria: “Você tem que criar uma fêmea para mim, com
quem eu possa viver numa harmonia compatível com as necessidades
do meu ser. Isso só você pode fazer. Eu o exijo como um direito que
você não pode recusar” (SHELLEY, 2016, p. 207). Caso o desejo fosse
concedido, ambas as partes supostamente entrariam em conciliação.
Inicialmente, a resposta de Victor foi um sim. Ele criaria esta nova
criatura apesar da desconfiança que ainda constava em si. Reuniu for-
ças para passar mais um período trabalhando na construção de outro
ser. Todavia, atormentava-lhe a ideia de não haver um cumprimento
da promessa por parte da sua primeira criação e que esta juntamente
com a segunda criatura dominassem o mundo de forma nefasta e as
gerações futuras o amaldiçoassem como uma peste. Mais uma vez, a
ambição falava mais alto. Victor apenas pensava em si mesmo, na for-

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 85


ma como ele seria lembrado posteriormente. Havia ainda o fato de sua
desconfiança de uma transformação moral tão rápida da criatura para
o bem, já que para Aristóteles (2017) “nem um homem feliz nem a fe-
licidade se fazem em um único dia e em pouco tempo” (p. 28). Então,
no auge da sua execução, num súbito de loucura, Victor destruiu tudo
o que tinha feito após ser acometido pelo semblante de maldade da
sua criatura que o observava pela janela durante o processo de quase
consumação do seu pedido.
Aristóteles (2017) disse ainda que “é pelas ações que praticamos
nas relações com os homens que nos tornamos justos ou injustos; e é
pelas ações que praticamos em situações de perigo, e pelo hábito de
temer ou ter coragem, que nos tornamos uns, corajosos, outros covar-
des” (p. 42). Na criatura analisada, percebemos a dualidade existente
em cada um de nós, a capacidade de transformação que podemos ex-
perimentar diante das eventualidades. Ela passou a ser injusta a partir
dos primeiros contatos com os ditos seres racionais, os humanos. Sen-
tiu a maldade por parte dos outros, por todas as situações suportadas,
sendo sempre julgada instantaneamente, temendo novas decepções,
até chegar ao ponto em que a dor já era sem tamanho. Victor, o grande
culpado, pagaria caro e nada mais temeria a criatura, pois para Aris-
tóteles (2017) “os homens, assim como os animais, sofrem quando se
encolerizam, e experimentam o prazer quando se vingam” (p. 83). Foi
dessa forma, que aos poucos acabou com a família do seu criador, des-
de o seu irmão mais novo à sua esposa. Em um dos momentos finais
da obra, a criatura diz ao seu criador “Prepare-se! Seus trabalhos mal
começaram. Envolva-se em peles e providencie comida, pois logo ini-
ciaremos uma viagem na qual seus sofrimentos irão satisfazer o meu

86 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


ódio eterno” (SHELLEY, 2016, p. 295). A criatura pretendia fazer
Victor sofrer amargamente por todos os seus atos contra ela. Com
tantas desavenças, quis provocar nele uma dor estonteante, sem tama-
nho. Ela se vingaria vendo a agonia do arrependimento pela ambição
e a sede de vingança mútua. No caso de Victor, porém, era impossível
se igualar à sua própria criatura, havia criado-a mais poderosa que si.
No entanto, ele não se importava com mais nada além de acabar com
ela. Agora, ele estava sozinho no mundo, livre para a sua perseguição
recíproca, colhendo a responsabilidade das suas ações. Num dos pon-
tos mais altos de seu tormento, Victor diz:

Um dia quando eu aos poucos me recuperava, sentara-me numa cadeira,


com os olhos semicerrados e as faces lívidas como as de um morto. Estava
dominado pela tristeza e a infelicidade, e com frequência pensava que
seria melhor buscar a morte do que permanecer num mundo repleto de
desgraças [...] eu me tornei, por uma sequência de estranhos eventos, o
mais desgraçado dos mortais. Perseguido e torturado como tenho sido,
e ainda sou, que mal pode a morte representar para mim? (SHELLEY,
2016, p. 257)

Apesar de todos os infortúnios, o ódio continuava resistente en-


tre os desventurados personagens, o criador e a criatura. Victor, pouco
antes de morrer, havia colocado todo o resto das suas forças para ten-
cionar o pior dos padecimentos, pois:

Muitas vezes estendi meus membros exaustos numa planície arenosa e


implorei pela morte. Mas a vingança me manteve vivo. Eu não ousava
morrer e deixar meu inimigo vivo [...] que o maldito e diabólico monstro
beba da taça da agonia e sinta o desespero que agora me atormenta
(SHELLEY, 2016, p. 289-291).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 87


Em suma, verificamos o quanto os anseios de Victor Frankens-
tein acerca da criação de um novo ser desde o princípio ocasionaram
uma série de imprudências, levando-o a decair nas profundezas de seu
âmago. Ele cobiçou e abnegou a sua criação e agora penava perante as
consequências dos seus atos. A sua criatura havia aprendido a malda-
de e a vingança com a espécie humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pretendeu-se, neste artigo, trazer reflexões acerca do modo como


a moral da criatura de Frankenstein foi modificada ao longo dos da-
nos ocorridos à sua dura existência por intermédio de perspectivas de
Victor Hugo e Aristóteles. Com o primeiro deles, colocando o gro-
tesco ao lado do sublime. O grotesco trazendo à tona as obscuridades
humanas, aquelas as quais não conhecemos profundamente e em nós
reside, mas não nos cabe por completo; e o sublime, contendo a regu-
laridade entre as coisas, o comum. Já com Aristóteles, verificou-se a
dificuldade de alguém ser bom em frente à falta de condições e, não
obstante, possuir o dever da bondade quanto virtude. Virtude esta,
que é digna de elogio quando realizada; e, enfim, não se deixando le-
var pelo prazer da vingança por conta da dor podendo causar a mal-
dade, pois é dotado de sabedoria prática, isto é, todo o conhecimento
adquirido colocado em prática.
O foco aqui foi mostrar o quanto os julgamentos precipitados po-
dem afetar intensamente a moral de alguém, independente de cada caso,
podendo criar marcas emocionalmente profundas. Encontramos por aí

88 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


comentários maldosos, de jeito tão sutilmente construídos, desconside-
rando o poder das palavras ou mesmo reações. Como, por exemplo, al-
guém ao avistar algo fora do comum, soltar falas dizendo que o Dia das
Bruxas já passou, ou ir logo taxando de drogado/ louco, e até mesmo
olhando torto por conta de suas religiões. A empatia é de muita impor-
tância para a convivência em sociedade. Tratar bem, para ser tratado da
mesma forma. É controverso apoiar a discórdia esperando a harmonia.
Este trabalho foi conduzido na qualidade de análise e não existe
nenhuma conclusão em torno disso, mas, pelo contrário, pode dar
margem a outros trabalhos surgirem. A leitura de uma obra é aberta,
sujeita a várias interpretações. Os motivos que levam alguém a querer
escrever sobre determinado aspecto variam muito do seu contexto,
cada percepção é muito individual.
Na criatura de Frankenstein, as manchas emocionais jamais se
apagaram, já que ela não conseguiu chegar ao acordo com o seu cria-
dor de formar outra criatura para que, segundo ela, voltasse a ser boa
estando ao lado de alguém tão horrível quanto ela mesma para ser
sua companhia. Ela acreditava que, se uma vez conhecesse a felicida-
de, retornaria à virtude. Porém, afundou em um caminho sem volta
quando o seu desejo não foi concebido, causando a desgraça do seu
criador tal como ela também passou pelos primórdios da sua vida.
Consequentemente, a vingança ao seu criador foi cumprida, levando-
-o a uma morte demorada e sofrida.
Quanto às adaptações costumeiramente realizadas da obra anali-
sada, nota-se que elas são muito simplórias. Desde as primeiras adap-
tações teatrais aos filmes e desenhos animados, enfim, a cultura pop,
no geral, as pessoas terminam estereotipando o romance original. Um

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 89


dos entendimentos inadequados mais comuns é a visão tida em rela-
ção ao nome Frankenstein, cuja imagem costuma ser a de um monstro
verde, horrível e pérfido (e não a do cientista Victor, que não deixa de
ser tão monstro quanto sua criatura). Outro pensamento corriqueiro é
a respeito de o tal monstro se mostrar besta, sem qualquer capacidade
de raciocínio, sendo que na obra de Mary Shelley, na verdade, ele era
dotado de sagacidade e extrema velocidade física. Em suma, a narrativa
da criatura contada no livro é, geralmente, ignorada. Dessa maneira,
valiosas mensagens da obra, como a qual foi ressaltada aqui, são deixa-
das para trás, e com elas, a sua pretensão em trazer tantos temas à tona.

COMO CITAR ESTE TEXTO

BISCARDE, B. C; MISI, A. P. C. A criatura de Frankenstein: estereótipo e conduta


moral. In: SOARES, I. M.; LESZCZYNSKI, T. (Orgs.). Um percurso pelas
literaturas de língua inglesa. Tutóia/MA: Diálogos, 2023. p. 72-90. https://doi.
org/10.52788/9786589932796.1-4

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução e Notas: Luciano Ferreira. 5ª


reimpressão. São Paulo: Martin Claret, 2015.
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. Prefácio de Cromwell. Tradução e
Notas de Célia Berrettini. 3ª edição – 2ª reimpressão. São Paulo: Perspectiva,
2017.
KIPPER, Henrique. A happy house in a black planet: Introdução à subcultura
gótica. 1ª edição. São Paulo. Edição do autor, 2008.
SHELLEY, Mary. Frankenstein: o Moderno Prometeu. Tradução e Notas:
Doris Goettems. São Paulo: Landmark, 2016.

90 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


capítulo 5

Consubstanciação em Wuthering Heights:


Heathcliff, a casa e a charneca
Gisele Gemmi Chiari

Parece então que é por sua imensidão que os dois espaços:


o espaço da intimidade e o espaço do mundo se tornam
consoantes. Quando se aprofunda a grande solidão do ho-
mem, as duas imensidões se tocam, se confundem.
(Gaston Bachelard)

O enredo de Wuthering Heights1 tem como base o triângulo


amoroso formado por Heathcliff, Catherine e Edgar Linton, mas essa
definição reducionista não dá conta da abrangência que a obra com-
preende, de tal maneira que o romance tem sido objeto de diferentes
perspectivas de análise. Heathcliff, dito de origem cigana, é adotado
pelo senhor Earnshaw, que o encontra perambulando pelas ruas de
Londres. A chegada do garoto desestrutura a família. O pai passará a
privilegiar o garoto perfilhado em detrimento do primogênito, Hin-
dley, o que causará ciúmes e desejo de vingança do filho legítimo. Já
Catherine, a filha mais nova, se tornará a companheira do irmão ado-
tado. Com o passar do tempo, a cumplicidade da infância se trans-

1 No presente capítulo, o título original da obra Wuthering Heights será citado em itálico, mas
quando mencionarmos a propriedade que é homônima, grafaremos sem itálico.

DOI: 10.52788/9786589932796.1-5 91
formará em paixão. Com a morte do sr. Earnshaw, Hindley assume
a administração da propriedade, relegando Heathcliff à categoria de
servo, que passa a ser maltratado e humilhado. Catherine, devido à si-
tuação a que o irmão adotivo é rebaixado, decide se casar com Linton,
vizinho proprietário da rica Thrushcross Grange. Sentindo-se traído,
o cigano abandona Wuthering Heights. Ele desaparece por três anos,
e quando retorna, apresenta-se bastante mudado e com posses. Vol-
ta resoluto para vingar-se de Hindley e da família Linton. Catherine,
grávida e confusa, se dá conta que é impossível conciliar paixão e ca-
samento. Ela adoece e morre. A segunda geração — Hareton, filho
de Hindley; Linton, filho de Isabella e Heathcliff; e Cathy, filha de
Linton e Catherine —, dá continuidade à relação de amor e desagravo
dos pais. Heathcliff, atormentado pela morte de Catherine, por fim,
abre mão da vingança e morre para se juntar à amada.
O romance aborda uma série de temas, tais como as desigualda-
des econômico-sociais, o poder patriarcal, a sociedade vitoriana, as re-
lações de família, a infância, o (auto)exílio, a dissonância entre natu-
reza e sociedade, o amor impossível e o triângulo amoroso. Destarte,
Wuthering Heights (1847), de Emily Brontë (1818-1848), tem sido um
objeto profícuo para a crítica literária. Com um enredo complexo, o
romance compreende interpretações marxistas, psicanalíticas, forma-
listas, pós-colonialistas, feministas, além das análises que enfatizam
os elementos góticos e românticos.
Neste estudo nos deteremos na questão do espaço em O morro
dos ventos uivantes, especificamente pensando a herdade de Wuthering
Heights como uma casa assombrada. É importante notar que proprie-
dade e obra são homônimas, ademais o título remete à charneca e ao

92 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


“tumulto atmosférico a que este local está sujeito em época de tempes-
tades” (BRONTË, 2010, p. 9). Dito de outra maneira, a morada dos
Earnshaws e de Heathcliff transcende o elemento arquitetônico e se
expande. Há uma dissolução dos limites da casa com a natureza, o que
remete à própria questão estética que envolve a literatura gótica em
sua temática e estrutura de excessos, limiares e transgressões (o horror,
o sonho, a loucura, a noite, o sobrenatural e a morte). A exploração do
espaço sobrenatural se reverbera nos acontecimentos dramáticos e no
ritmo acelerado sugerido pela sucessão de episódios atemorizantes e
emocionantes.

No Romantismo, porém, o elemento característico se confunde


não raro com o desequilíbrio correspondente, graças a uma estética
baseada no movimento, no deslocar incessante dos planos. Por isso o
desequilíbrio representa autenticamente o ideal romântico, que não
teme a desmedida e se inclina, no limite, para a subversão do discurso
(CANDIDO, 1964, p. 15).

Pensando o sentido de consubstanciação como a ideia de unir-se


numa só substância, unir-se intimamente, identificar-se, sugerimos
que, no romance, a casa e os protagonistas comungam a ânsia de se
confundir com a natureza, se autodiluindo uns nos outros. No entan-
to, esse desejo é causado pela inserção de uma personagem no enredo,
pois é a figura de Heathcliff que modifica a relação das personagens
com o espaço, incluindo tanto Wuthering Heights como Thrushcross
Grange. A sua presença transforma o heimlich em unheimlich, ou seja,
com base nas discussões de Freud (2010, p. 331) a respeito das situa-
ções, vivências e sentidos que causam o sentimento do inquietante,
os espaços de (con)vivência que eram familiares e seguros passam a

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 93


ser estranhos e amedrontadores2: “O meu sonho era que aconteces-
se alguma coisa capaz de libertar Wuthering Heights e Thrushcross
Grange da presença do sr. Heathcliff, deixando-nos viver como antes
da sua vinda. Aquelas visitas eram para mim um pesadelo contínuo”
(BRONTË, 2010, p. 17).
Vale lembrar que nos escritos de Hoffman e Poe esse motivo do
contraste entre a segurança do interior do lar e o medo da invasão por
um forasteiro ou um desconhecido é bastante explorado. Outrossim,
há em seus contos, uma equivalência entre a inquietação espacial e
mental; dito de outro modo, o elemento arquitetônico reflete os des-
vios e labirintos dos pensamentos e sentimentos das personagens.
No romance em questão, a mudança não se dá na estrutura física
das casas, mas na relação delas com os caracteres e com o espaço exte-
rior. Heathcliff traz o tumulto atmosférico do exterior para o interior
das casas: “E assim, desde o começo, trouxe ele a discórdia para dentro
de casa” (BRONTË, 2010, p. 51).
Essa dinâmica de a casa refletir ou se unir à alma da personagem
é precisamente o que Edgar Allan Poe aplica no conto “The fall of the
house of Usher.” Porém, diferentemente do conto de Poe, em Wuthe-
ring Heights, o espelhamento entre espaço e personagem não resulta
no desaparecimento da construção, mas em sua supernaturalização. A
casa de O morro dos ventos uivantes, antes no limiar entre natureza e ci-
vilização, ao final do romance, ao ser esvaziada e supostamente assom-
brada pelos espectros de Catherine e Heathcliff, torna-se sobrenatural:

2 “The house provided an especially favored site for uncanny disturbances its apparent
domesticity, its residue of family history and nostalgia its role as he last and most intimate shelter
of private comfort sharpened by contrast the terror of invasion by alien spirits ” (VIDLER, 1992,
p. 17).

94 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


“one thought one saw a sepulcher with windows allowing the specters
to look out” (HUGO apud VIDLER, 1992, p. 20). Outro aspecto
equivalente entre os dois escritos está na ideia de integração entre a
casa e os protagonistas. No conto do escritor americano, quando os
dois protagonistas fenecem, a casa desaparece com eles. Em O morro
dos ventos uivantes, eles permanecem nela, apesar de seu esvaziamento
e da morte de ambos. Nos dois casos, entretanto, há o apagamento
dos contornos entre o que é orgânico e inorgânico, personagens e casa
se (con)fundem.
Como a casa abandonada de Guernsey, que fascinou Victor
Hugo, situada num lugar deserto com suas janelas e inscrições enig-
máticas, a morada dos ventos borrascosos tem um aspecto pitoresco e
traços de antropomorfização. A gótica inscrição no seu pórtico, “1500
- Hareton Earnshaw”, nos arroja para o passado, e, ao mesmo tempo,
de forma insólita, evoca o presente, esmaecendo as marcas temporais.
Outrossim, na cena em que o fantasma de Catherine pede para entrar
na casa, a fronteira entre o passado e presente se dilui, assim como
entre o natural e o sobrenatural, entre o real e o onírico.
Nesse sentido, O morro dos ventos uivantes narra a fantasmago-
rização da casa e da charneca: “The house, like man, can become a
skeleton. A superstition is enough to kill it” (HUGO apud VIDLER,
1992, p. 20). A narrativa nos faz conhecer o mistério que arrastou Wu-
thering Heights ao esvaziamento de vida e a ocupação por espectros,
supernaturalizando o natural, e, ao mesmo tempo, naturalizando o
sobrenatural: “‘Natural Supernaturalism’ — for the general tendency
was, in diverse degrees and ways, to naturalize the supernatural and
to humanize the divine” (ABRAMS, 1973, p. 122). O romance de

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 95


Emily Brönte responde, de alguma maneira, às questões formuladas
por Victor Hugo ao se deter em frente à casa mal-assombrada de Guer-
nsey, citada anteriormente: “Quem foram os habitantes originais? Por
que ocorreu o seu abandono? Por que não tem donos?” (VIDLER,
1992, p. 20).
A charneca e a propriedade de Wuthering Heights, após o seu
esvaziamento, se constituiriam como contraespaços, lugares que se
opõem aos outros e os contestam, refletindo as rupturas da vida, do
amor e da morte. A charneca é como a cama dos pais mencionada por
Foucault quando trata das heterotopias. Explorada pelas crianças, tor-
na-se lugar da imaginação e do deleite, prazer que durará até o retorno
dos pais, quando serão punidas. Os moors são esse lugar da utopia lo-
calizada em que Heathcliff e Catherine vivem sua infância, lugar que
se contrapõe tanto a casa dos Earnshaws como a dos Lintons. Como
sujeitos desviantes da norma e da moral vitoriana, a charneca se torna
o espaço e o tempo propício a eles. Somente quando Heathcliff sub-
verte a opressão sofrida e abdica da vingança, Wuthering Heights é
consubstanciada pela charneca, tornando-se parte dela e, portanto,
heterotopia. É a negação, ausência da linearidade temporal: tempo da
infância, do sonho, da morte.

Há os [lugares] que são absolutamente diferentes: lugares que se opõem


a todos os outros, destinados, de certo modo, a apagá-los, neutralizá-
los ou purificá-los. São como que contraespaços. As crianças conhecem
perfeitamente esses contraespaços, essas utopias localizadas. É o fundo
do jardim, com certeza, é com certeza o celeiro, ou melhor ainda, a tenda
de índios erguida no meio do celeiro, ou é então – na quinta-feira à
tarde – a grande cama dos pais. É nessa grande cama que se descobre o
oceano, pois nela se pode nadar entre as cobertas; depois, essa grande
cama é também o céu, pois se pode saltar sobre as molas; é a floresta,

96 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


pois pode-se nela esconder-se; é a noite, pois ali se pode virar fantasma
entre os lençóis, é, enfim, o prazer, pois no retorno dos pais, se será
punido (FOUCAULT, 2013, p. 20).

De qualquer maneira é preciso atentar para o fato de que tanto o


espaço em Wuthering Heights, incluindo a casa e a charneca com seus
ventos tumultuosos, assim como Heathcliff incitam uma sensação de
perigo, medo e dor. Esse efeito, segundo a teoria de Edmund Burke,
constitui uma fonte do sublime porque produz as emoções mais for-
tes que o espírito pode alcançar. A vastidão dos moors, o poder das
intempéries e de Heathcliff, bem como a obscuridade da casa e de seu
senhorio, misterioso em sua origem e ascensão, produzem esse efeito
de terror e admiração.
É nesse sentido que, Brontë, ao contrário do que a fortuna crítica
coeva à publicação do romance aventou, constrói meticulosamente a
ambiência da narrativa que se coaduna às personagens e ao sentido da
obra. As descrições da casa em questão, seja por meios dos narradores
ou da fala dos caracteres, se configura como um lugar antigo, afasta-
do, de difícil acesso, cercada por uma natureza inóspita, mas forte o
suficiente para aguentar as intempéries. Sinistra, escura e fria, a mo-
rada dos Earnshaws é antropomorfizada ao longo do romance e, num
jogo de espelhos, Heathcliff recebe os mesmos predicativos destinados
à casa e à charneca. Logo no início da narrativa, quando Lockwood
visita seu senhorio, a casa e seu dono se mostram igualmente hostis:
“O ‘pode entrar’ era dito entre dentes e na realidade significava: ‘Dia-
bos o levem!’ Até mesmo o portão sobre o qual se reclinava não se
moveu em concordância com as palavras” (BRONTË, 2010, p. 9).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 97


É interessante observar que apenas Heathcliff e sua casa recebem
nomes interligados a elementos da natureza. Embora ao longo do ro-
mance as outras personagens também sejam comparadas a elementos
naturais. A autora aplica um arsenal de metáforas e analogias da natu-
reza para destacar e aprofundar o delineamento dos caracteres e suas
emoções, evidenciando o lado obscuro da natureza humana.

To exalt the power of human feeling, Emily Brontë roots her analogies
in the fierce life of animals and in the relentless life of the elements –
fire, wind, water. (...) The application of this landscape to the characters
is made explicit in the second half of the novel when Heathcliff says,
‘Now, my bonny lad, you are mine! And we’ll see if one tree won’t
grow as crooked as another, with the same wind to twist it! This
analogy provides at least half of the metaphorical base of the novel’
(SCHORER, 1992, p. 134-135).

Wuthering, lembramos, descreve a condição atmosférica tumul-


tuosa deste local em época de tempestades (BRONTË, 2010, p. 10), e
Heathcliff é um nome composto por dois termos que compreendem
duas ideias, a de terreno improdutivo e inculto (heath), e de abismo
(cliff ). Conforme observamos anteriormente, o herói vilão reflete as
características do espaço e, assim como a charneca, mostra-se árido,
áspero, e, em alguns aspectos, incivilizado. Vale lembrar que abismo
designa o mundo das profundidades ou das alturas indefinidas. Se
associa a ideia do caos originário e do fim dos tempos. No plano psico-
lógico corresponde a indeterminação da infância e do final da vida, a
decomposição da pessoa. Implica a ideia de união mística, da profun-
didade e elevação às alturas (CHEVALIER, 1986, p. 42).

98 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


O complexo protagonista de Emily Brontë compreende esse as-
pecto ambíguo que o sentido de abismo abarca, figurando entre a
vingança e a consubstanciação com a charneca, entre o tempo da in-
fância e o desejo de morte. Herói injustiçado ou vilão demoníaco? A
“pitiless, wolfish man” (BRONTË, 1996, p.75) or a “uncomplaining
lamb?” (BRONTË, 1996, p. 27). Para Frederick R. Karl (2004, p. 147-
148), a misantropia byroniana, a brutalidade, e a aparência de cigano
colocam o protagonista à margem da sociedade; rebelde, ele se nutre
das forças de baixo, e torna-se uma personificação da energia dos mo-
ors, antagonista da civilização e herói romântico. Injustiçado, o garoto
clama por vingança.

Mas embora corresponda ao movimento próprio da estética romântica,


é sobretudo às concepções românticas de homem e de sociedade
que a vingança se presta como tema. O personagem romântico –
dramático, desmedido, sangrento encontrava nela a atmosfera da
contradição e da surpresa em que banha a sua psicologia! Ele serve
não raro de amplificador, o gesto se torna imenso, as energias, titânicas
(CANDIDO, 1964, p. 20).

A dubiedade intrínseca à figura de Heathcliff se condensa na fala de


Mr. Earnshaw quando apresenta o menino à família: “Aceite, entretan-
to, minha carga como um presente de Deus, embora seja ele tão triguei-
ro como se viesse das mãos do diabo” (BRONTË, 2010, p. 49). Assim,
podemos conjecturar o vilão em seu aspecto intersticial, impuro, mons-
truoso. Para falar com Candido (1964, passim), aos iniciados no satanis-
mo, o demônio confere uma natureza dupla, ao mesmo tempo, divina e
infernal. O herói romântico condensa, dessa maneira, atributos como o
egoísmo, o demonismo, a vontade (desmesurada) de poder e a solidão. A
sua maldade baseia-se na capacidade de negar a sociedade e a vida.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 99


Essa complexidade reflete-se inclusive em seu próprio nome, que já o
identifica como manifestação selvagem e sublime da natureza: heath (que
significa ‘charneca’) remete à passagem destacada pela solitária vastidão
constantemente açoitada por fortes ventos que ameaçam destruir tudo
à sua volta; cliff (penhasco) leva-nos a pensar na localização íngreme e de
difícil acesso, podendo assim provocar reações de espanto, medo e até
mesmo admiração em quem o contempla (ALEGRETTE, 2016, n.p).

Herói romântico por excelência, coaduna aspectos contraditó-


rios, é inteligente, elegante e belo, mas ao mesmo tempo bruto, excên-
trico e melancólico. Apaixonado, sabe ser extremamente perspicaz e
indefectível em seu plano de vingança. Heathcliff é sempre compara-
do a criaturas sobrenaturais e malévolas: vampiro, ghoul ou demônio.
Vale lembrar com Bakhtin que o diabo no grotesco romântico, dife-
rentemente do da cultura medieval, não promove o riso alegre, mas
irônico e sombrio. Deleita-se com o sofrimento de seus inimigos, ou
melhor, com o sucesso das suas ações, contemplando, de forma sádica,
suas infalíveis e audazes intervenções.

[...] o diabo, por sua vez, não é mais o ‘espantalho alegre’da cultura
medieval, mas a figuração sombria do desespero do homem moderno ante
um mundo cada vez mais hostil, em acelerado processo de transformação,
rumo a um futuro, - mais do que nunca, desconhecido: ‘no grotesco
romântico, o diabo encarna o espanto, a melancolia, a tragédia. O riso
infernal torna-se sombrio e maligno (BAKHTIN, 2010, p. 38).

A personagem do cigano trigueiro encontrado nas ruas de Lon-


dres foi um dos elementos do livro que a crítica do século XIX conde-
nou. Heathcliff, apesar de suas maldades e comportamento reprovável
não recebe uma punição adequada no desfecho da obra. É certo que
o vilão morre ao final deixando a oportunidade para Cathy e Hareton
mudarem-se para Thrushcross Grange e se casarem. No entanto, o

100 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


desejo de se unir a Catherine é realizado e ele cumpre sua vingança
contra Hindley e os Lintons.

The first reviewers of 1847 and 1848 convey, in their perplexity at its
apparent moral unorthodoxy and in the urgency of their distress at
its violence, the strong impresssion made upon them by this unusual
addition to the output of the novels. They were certainly upset by its
deserting the acccepted convention which required the author to provide
clear moral signposts for the reader’s guidance (ALLOT, 1992, p. 17).

Para Alegrette, Brontë propõe uma maneira ousada de explorar


o tema do vampirismo, que se configura na relação parasitária entre
Catherine e Heathcliff em que um se alimenta da energia do outro. A
ausência ou distanciamento entre eles provoca o enfraquecimento de
ambos e até mesmo a morte. Não creio que haja um enfraquecimento
de Heathcliff quando Catherine se ausenta, pois ele apenas sucumbe
quando se dá conta que deve abrir mão de sua vingança e de outras
preocupações terrenas para poder se juntar a Catherine. Ademais, o
aspecto vampiresco do herói vilão pode ser entrevisto de forma sim-
bólica em sua sede de vingança (CANDIDO, 1964, p. 27).
Vale observar que, na esteira de Locke e Rousseau, as literaturas
gótica e romântica se interessaram pelo desenvolvimento de excentri-
cidades e anormalidades que se iniciam na infância, como no caso de
monomanias e compulsões, basta lembrarmos de alguns célebres per-
sonagens: Ahab, o monstro de Frankenstein e Drácula,

Reflecting a rise of interest in eccentrics and abnormal states of mind,


the gothic expands on the stories in the margins Locke’s texts focus
on children who do not grow up, or who become eccentrics, whose
development is not teleological but caught in a repetition compulsion
like that of Dracula[...] (KILGOUR, 1995, p. 36).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 101


Kilgour aponta a ausência de um desenvolvimento teleológico nes-
sas personagens, e, embora não possamos concordar com uma inexis-
tência de telos em Wuthering Heights, a ideia de excentricidade e de uma
espécie de monomania ligada a infância, tão cara aos escritos góticos, é
empregada na construção do protagonista. Seria mais apropriado pen-
sarmos numa espécie de trajetória, mas não no sentido burguês do pa-
drão do Bildungsroman. Em similitude, Abrams (1986, p. 179) observa
na teodiceia (ou biodiceia) de Wordsworth, uma espécie de romance de
formação: a tradução de um doloroso processo de conversão e reden-
ção cristãos num processo, igualmente dorido, de autoformação, crise,
autorreconhecimento, que culmina num estágio se autocoerência e au-
toconsciência assumindo essas conquistas como a própria recompensa.
A partir do momento em que Cathy and Hareton rebelam-se,
opera-se uma mudança e um processo de autoconsciência em Hea-
thcliff, que, no entanto, não se confunde com o ideal de moralização
cristã. Ao ver que o jovem casal, como ele, esforça-se por confrontar as
regras sociais, ele rememora seus próprios esforços. (KETTLE, 1971,
passim). A morte de Heathcliff espelha essa culminância do reconhe-
cimento: a continuação da vingança e da vida não lhe trariam o seu
paraíso particular, seu céu, o amor de Catherine. Nesse sentido é que
Emily Brontë nos convence de que Heathcliff representa algo moral-
mente superior a Linton. Mesmo depois de conhecermos as atitudes
brutais realizadas pelo protagonista, nós continuamos a simpatizar
com ele, porque acreditamos que a sua vingança é justa. Nós não con-
cordamos com os seus atos, mas os compreendemos. Há certa equi-
libração ou justiça, quando Heathccliff se utiliza das mesmas armas
do patriarcado que o condena, para condenar os seus representantes.

102 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Marginalizado pela sociedade devido a sua origem e situação financei-
ra, em outros aspectos, o herói-vilão mostra-se muito superior, conduz
toda a conjuntura familiar entre Earnshaws e Lintons a seu favor sem
nunca trair seus princípios. Seus atos e sentimentos são desmedidos
e incontroláveis, ou seja, são monstruosos e supernaturais, assim, ao
mesmo tempo que atemorizam, também causam admiração.

Com Byron o rebelde se torna o ‘estrangeiro’, o homem impenetrável


que transcende a maneira ordinária de sentir, que transcende os seus
próprios crimes. É o além-do-homem que está mais acima e ao mesmo
tempo mais abaixo dos outros homens. É o infeliz que se alimenta
de ressentimento para com um deus cruel do qual imita a crueldade
(BORGHESI, 2011, p. 62).

Em seu estudo sobre Emily Brontë, Bataille (1989) aproxima o ro-


mance Wuthering Heights da tragédia grega, afirmando que o objeto
de ambos é fundamentalmente a transgressão trágica da lei3. No enre-
do, Heathcliff e Catherine fracassam na tentativa de eternizar a infân-
cia. Eles se recusam a abdicar da liberdade vivida enquanto crianças,
quando as normas sociais ainda não ordenavam o afastamento dos
protagonistas. A transgressão é trágica porque se configura contra o
“Bem”, que se confunde com a ideia de razão baseada num sistema de
cálculo que visa o interesse comum convencionado socialmente. Hea-
thcliff não pode tolerar esse sistema que o rejeita. Estereotipado como
cigano, ele é considerado um inculto e está fadado à marginalidade,

3 Outros críticos apontaram aspectos da tragédia em Wuthering Heights, como E.S. Dallas em
“Approaching the ‘Pitiless Fatality... of Greek Tragedy” (1857): “The whole gloomy tale is in
its idea the nearest approach that has been made in our time to the pitiless fatality which is the
dominant idea of Greek tragedy...”. Para Karl Frederick (2004, p. 154): “Like a Greek tragic
figure, Heathcliff is what he is the elements of his greatness (his will to power) contain as well his
flaw (his overwhelming passion), and he is unable to scape himself.”

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 103


por isso o herói-vilão de Wuthering heights se volta para o “Mal”. O
“Bem-razão” indica, de forma calculada, o bem-estar da sociedade e o
asseguramento do futuro. Apesar de os protagonistas de Emily Brontë
serem obrigados a tomar parte das convenções estabelecidas (Catheri-
ne casa-se com Edgard Linton e Heathcliff torna-se um homem rico e
‘civilizado’), a transgressão lhes é imanente e reverbera-se na morte da
protagonista e na violência do vilão-herói. A ruptura necessária para
aderir a um estado de enlevo é a morte. O êxtase da paixão se confun-
de com o arrebatamento da morte, ambas seriam formas de se alcan-
çar a totalidade que a realidade fragmentada nega. A visualização dos
fantasmas dos protagonistas, para além da expressão do sobrenatural,
compreende a questão da consubstanciação com o meio. A morte de
Heathcliff permite a consumação de um amor que em vida não pode
ser usufruído, bem como a união de Hareton e Cathy, que decidem
viver em Trushcross Grange.
Outrossim, a maldição da casa se insinua a partir da paixão dos
protagonistas, no mal que amalgama essas duas almas que se arreme-
tem para o amor e para a morte. Para falar com Rougemont, vislum-
bra-se na relação entre os protagonistas, no triângulo amoroso entre
Heathcliff, Catherine e Linton, um tipo de relacionamento caracterís-
tico da sociedade cortês dos séculos XII e XIII, eivada pelo ideário da
cavalaria. O mito do amor que perpassou essa sociedade que configu-
ra o mito de Tristão e Isolda e permanece presente nos nossos sonhos
e literatura, ou seja, continua a existir em nosso imaginário, embora
tenha sido banido dos códigos oficiais (ROUGEMONT, 2003, p. 29-
30). Umberto Eco, assim como Rougemont, relaciona o gnoticismo
cátaro ao amor cortês, ou seja, liga a ideia de libertação da vida e des-

104 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


se mundo imperfeito por meio da renúncia e da espiritualização do
amor. Vale lembrar que na relação entre Catherine e Heathcliff não há
envolvimento sexual.

É difícil evitar a tentação de enxergar a herança gnóstica em muitos


aspectos da cultura moderna e contemporânea. Uma origem cátara,
gnóstica por conseguinte, foi observada na relação do amor cortês (e
portanto romântico), visto como renúncia, como perda do ser amado
e, em todo caso, como uma relação puramente espiritual excluindo
qualquer ligação sexual. A celebração estética do mal como uma
experiência reveladora é certamente gnóstica...
Algumas pessoas viram uma raiz gnóstica nos princípios dominantes do
idealismo romântico, em que o tempo e a história são reafirmados, mas
apenas para fazer do homem o protagonista da reintegração no Espírito
(ECO, 2005, p. 43).

Esse mito se nutre daqueles que acreditam no amor como destino


e abrem mão da moral, das coerções sociais, e da vida para se lançar de
corpo e alma numa espécie de ascese religiosa, aliás, “o grande misté-
rio dessa religião de que os poetas do século XIX foram os sacerdotes
e os inspirados” (ROUGEMONT, 2003, p. 34-35). Para Heathcliff e
Catherine o céu é uma mistura de amor e liberdade na charneca, um
retorno impossível à felicidade da infância, que não tem mais lugar na
vida adulta.
Vale recordar que, no amor cortês, a fidelidade ao casamento não
se identifica à fidelidade ao amor. Aliás, a paixão não se confunde com
a instituição social do matrimônio e é considerada superior a ela. Por
outro lado, esse amor não se consuma no plano da realidade, aliás,
ele se nutre do impedimento da consumação. Porque, na verdade, o
desígnio do amor romântico é a totalidade, a consubstanciação no
Absoluto:

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 105


[...] enquanto paixão que deseja a noite e triunfa numa morte
transfiguradora, ela representa uma ameaça violentamente intolerável
para qualquer sociedade. É preciso, portanto, que os grupos constituídos
sejam capazes de contrapor uma estrutura solidamente articulada para
que ele tenha a oportunidade de se exteriorizar sem causar maiores
danos (ROUGEMONT, 2003, p. 32).

Apesar de haver um espelhamento da charneca em Heathcliff,


a ideia de renúncia e consubstanciação, obviamente também envolve
Catherine. Aliás, as falas da personagem são as mais explícitas nesse
sentido, basta lembrar o célebre trecho em que afirma ser, ela própria,
Heathcliff. Quando adoece, pede a Nelly que abra as janelas para que
possa sentir os ventos dos heights. Deseja estar livre para se aventurar
na charneca como quando criança. Por fim, deseja ser enterrada fora
da igreja, nos moors.

Com Heathcliff, ela é, como se fosse, completamente una; fazem das suas
duas identidades um monstro híbrido, com dois sexos e duas almas...
Catherine vê nele as suas próprias energias... não perturbadas pela
contenção que o seu sexo impõe; ela vê as suas próprias perversidades
escondidas florescerem nele como flores poéticas envenenadas. A cena
em que ela confessa o segredo do seu amor por Heathcliff é boa e
terrível. ‘Ele é tanto eu’, diz ela, ‘que ele é mais eu do que eu; ele é o raio
do qual eu nada mais sou do que o lampejo’ (MONTÉGUT, 1992, p.
75. Tradução nossa).4

Assim, o que Catherine e Heathcliff desejam é a morte para alcan-


çarem/eternizarem, de alguma forma, o idílio que viveram na infân-

4 No original: “With Heathcliff she is, as it were, completely at one; they make from their two
identities a hybrid monster, with two sexes and two souls... Catherine sees in him her own
energies... uncurbed by the restraint which her sex imposes; she sees her own hidden perversities
blossoming forth in him like poisoned poetic flowers. The scene in which she confesses the secret
of her love for Heathcliff is fine and terrible. ‘He is so much myself’, she says, ‘that he is more
myself than I am; he is the thunderbolt of which I am nothing more than the lightning flash’”
((MONTÉGUT, 1992, p. 75).

106 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


cia. Para falar com Bataille, esse é o mal; e o que causaria desconforto
nos leitores. Por outro lado, a perversidade advinda das ações do herói
vilão só cessa quando ele abre mão da vingança, daquilo que o liga,
de alguma forma à vida, percebendo o casal Cathy e Hareton como
duplos de sua relação com Catherine: “Ainda não escrevi testamento
e nem sei como hei de dispor do que é meu. Gostaria de aniquilar da
face da terra tudo o que tenho” (BRONTË, 2010, p. 415).
Vale lembrar que o fenômeno da duplicidade logra a razão e a
finitude, e, ao mesmo tempo, a impossibilidade da plenitude. Dito de
outra maneira, na relação de espelhamento entre as duas gerações pa-
rece haver um embaralhamento das identidades. Sentimentos, como
o amor e a vingança, parecem ser mais fortes do que a singularidade/
identidade de cada personagem. Há um estranhamento na ideia de
continuidade e espelhamentos que os filhos dos protagonistas assu-
mem ao perpetuarem sentimentos de amor e ódio que seus pais ha-
viam experimentado.
A observação de Lookwood, ao final do romance, colocando
em evidência os três túmulos em contraposição à igreja abandonada
aponta justamente para a sacralização do amor em detrimento à insti-
tuição religiosa. Afinal, o romance é um triunfo da vida ou da morte?
Sugeriríamos, ser ele o triunfo do amor na vida e na morte, pois o
amor é o ápice da vida e também uma justificativa, para renunciar à
vida e, assim, consubstanciar-se à natureza, à totalidade. A presença
de Heathcliff traz à tona o mito da paixão, o herói satânico que se
deleita com a sua vindita e, ao mesmo tempo, morre por amor. Entre
o desejo de vingança e de amor, o cigano se confunde com os elemen-
tos do espaço que o cercam, pois os possui e os reflete. A confluên-

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 107


cia com o espaço é atingida apenas quando todas as personagens do
triângulo amoroso morrem e se misturam à charneca, enterrados aos
pés da igreja abandonada. A fronteira entre o orgânico e o inorgânico
torna-se mais tênue, e a casa perde o seu valor intrínseco, ou melhor,
deixa de abrigar os vivos para ser morada dos espíritos subvertendo a
função pragmática e social da casa. E é desse tumultuoso processo de
consubstanciação dos protagonistas com os moors que advém o esva-
ziamento e o assombramento de Wuthering Heights.

COMO CITAR ESTE TEXTO

CHIARI, G. G. Consubstanciação em Wuthering Heights: Heathcliff, a casa e a


charneca. In: SOARES, I. M.; LESZCZYNSKI, T. (Orgs.). Um percurso pelas
literaturas de língua inglesa. Tutóia/MA: Diálogos, 2023. p. 91-109. https://doi.
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UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 109


capítulo 6

Pesado como um Bildungsroman,


leve como uma novela folhetinesca:
o caso Jane Eyre
Lídia Maria Guimarães de Miranda
Dirlenvalder do Nascimento Loyolla

INTRODUÇÃO

Neste capítulo, será realizado um estudo sobre o clássico da lite-


ratura inglesa Jane Eyre, de Charlotte Brontë (1816-1855), a fim de se
refletir sobre o seu enredo, personagens, espaço-tempo, contexto his-
tórico e panorama crítico. O objetivo é organizar uma abordagem do
romance enquanto um livro que flutua entre a novela folhetinesca e o
Bildungsroman feminino. Para isso, utilizamos como base teórica os
autores: Bennet (1934), Soares (2007), Hauser (1982), Moisés (1987),
para refletirmos sobre a noção de novela; Silveira, Sangaletti e Wagner
(2018), Silva (2015), Moisés (1985) e Hauser (1982), para discorrermos
sobre o folhetim; e Maas (2000), Carvalho (2010) e Aguiar e Silva
(1991), para a abordagem sobre o Bildungsroman.
Jane Eyre foi o segundo romance escrito por Charlotte Brontë e
teve sua publicação no ano de 1847. Brontë ainda escreveu mais três

110 DOI: 10.52788/9786589932796.1-6


romances: The Professor (1847); Villete (1853) e Shirley (1849). A au-
tora exerce lugar de destaque no cânone da Literatura Inglesa, mas
dentre os seus quatros romances, a narrativa aqui analisada foi a mais
consagrada. Charlotte e suas irmãs Emily e Anne Brontë eram ro-
mancistas. As obras das irmãs Brontë são sempre reconhecidas pelos
seus elementos autobiográficos presentes nas narrativas. Com efeito,
segundo Carmelinda Carvalho e Silva (2021, p. 40), Jane Eyre pode
ser visto como um romance autobiográfico “no qual a narradora con-
ta sua trajetória formativa, desde os 10 anos de idade até os seus, em
média, 28 anos de idade”.
A obra foi inicialmente publicada em três volumes, sob o pseu-
dônimo de Currer Bell. No livro, Brontë narra com propriedade o
contexto histórico, social e cultural pelos quais a Inglaterra passava,
a chamada Era Vitoriana – um período marcado pelo destaque da In-
glaterra como potência industrial, em que as descobertas científicas,
tecnológicas e a economia próspera estavam em ascensão. Diante do
novo cenário, a Inglaterra ficou dividida em duas classes: a trabalha-
dora e a burguesa.
De acordo com Elis Alves (2020, p. 301), a obra de Brontë reve-
la uma protagonista como uma mulher “que luta para consolidar-se
como pessoa atuante em uma sociedade onde o principal papel da
mulher era de ser esposa e mãe”. A narrativa conta a história da prota-
gonista Jane Eyre, uma órfã que tem seu crescimento emocional/mo-
ral desenvolvido em fases da sua vida. Cada fase faz parte de um lugar
por onde a personagem narradora passou: a infância em Gateshead
com a tia e os primos; em Lowood School, onde estudou e, poste-
riormente, trabalhou como professora; em Thornfield, onde foi pre-

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 111


ceptora da menina Adele e onde conheceu o Sr. Rochester; em Moor
House, com a família Rivers – posteriormente descobre que são seus
primos – e, por último, retorno a Thornfield somado ao casamento
em Ferndean com o Sr. Rochester. A narrativa também conta a his-
tória de amor entre uma funcionária (Jane) e seu patrão (Rochester),
na qual, apesar das convenções sociais e das barreiras econômicas, o
amor vence no final.
Charlotte Brontë cria uma personagem que faz questionamentos
sobre as situações que lhe eram impostas, atitude incomum exercida
pelas mulheres daquela época, ainda mais sendo Jane sendo tão jovem.
Brontë dá vida a uma heroína que sempre quis exercer seu direito de
ser uma mulher livre, que estabeleceu suas próprias escolhas e não se
deixou ser usada como um mero objeto de manipulação pela socieda-
de patriarcal. O romance foi alvo de muitos comentários, tanto bons
quanto ruins, na época em que foi publicado, por relatar a história de
uma mulher que foge dos padrões e estereótipos da sociedade em que
estava inserida. A obra desafiou os costumes e convenções sociais de
sua época. Para Sandra Gilbert e Susan Gubar (2000), Jane Eyre é:

[...] uma história de confinamento e fuga, um romance de formação


feminino, em que os problemas encontrados pela protagonista,
enquanto ela luta desde o aprisionamento de sua infância em direção
a um objetivo quase impensável de liberdade madura, são sintomas das
dificuldades que todas as mulheres em uma sociedade patriarcal devem
enfrentar e superar: opressão (em Gateshead), fome (em Lowood),
loucura (em Thornfield) e frieza (em Marsh End) (GILBERT; GUBAR,
2000, p. 339, tradução nossa).1

1 “(...) a story of enclosure and escape, a distinctively female Bildungsroman in which the problems
encountered by the protagonist as she struggles from the imprisonment of her childhood toward
an almost unthinkable goal of mature freedom are symptomatic of difficulties Everywoman in a

112 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


O romance apresentou algo nunca visto antes – a jornada de uma
protagonista feminina em uma narrativa escrita por uma mulher.
Brontë levou ao público a história de uma pobre jovem órfã, excluída
e desprezada, e aproveitou para inserir em sua narrativa a exposição
da sociedade patriarcal através de críticas veladas. De acordo com Re-
becca Fraser (2008): “Muitos vitorianos viram Jane Eyre como expres-
são do descontentamento de Brontë com a estrutura da classe social”
(FRASER, 2008, p. 56, tradução nossa).2
O romance apresenta relevantes questionamentos a respeito do
papel da mulher e sua função na sociedade em que estava inserida.
Trata-se de uma obra que trouxe para o público a ideia de liberda-
de feminina frente ao sistema patriarcal. Dentro dessa perspectiva,
o trabalho de Charlotte Brontë foi visto por muitos como influência
negativa sob o aspecto moral e social. Nas palavras de Karina Kurtz
(2020, p. 29), a personagem principal da obra é uma “heroína que vem
representar a maioria das insatisfações de seu período e da classe mé-
dia. Assim como ela também reflete toda a cultura feminina da qual
ela faz parte, suas insatisfações, temores e desejos”.
A narrativa também foi considerada dramática por alguns pes-
quisadores, como Danielle Lima (2008), para quem:

(...) Jane Eyre é um romance dramático e trágico. Isto é ainda mais


evidente se pensarmos nos elementos definidores de um romance
dramático, de acordo com a proposta de Muir. O cenário, constituído
por algumas poucas localidades, porém bem definidas (GATESHEAD

patriarchal society must meet and overcome: oppression (at Gateshead), starvation (at Lowood),
madness (at Thornfield), and coldness (at Marsh End)” (GILBERT; GUBAR, 2000, p. 339).
2 “Many Victorians saw Jane Eyre as an expression of Brontë’s discontent with the social class
structure” (FRASER, 2008, p. 56).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 113


HALL, Lowood School, Thornfield Hall, Moor House, Ferndean),
é estratégico para a atuação de paixões humanas universais – amor,
raiva, amizade, honra, vergonha, culpa, orgulho, ambição, entre outras
(LIMA, 2008, p. 201-202).

Jane Eyre também traz em sua narrativa polêmicas que envolvem


religião e os papeis sociais de um contexto histórico, na qual o papel
da mulher está sempre sendo questionado pela autora, mas de forma
implícita. Kurtz (2020, p. 43), por exemplo, entende que é importante
frisar “que Jane representa o descontentamento feminino com o pe-
ríodo, o desejo de liberdade total, não em migalhas, o poder de trans-
formar e explorar suas identidades com direito a respeito, dignidade,
integridade e reconhecimento social”.
A obra foi um verdadeiro sucesso na época em que foi publicada,
e com o passar dos anos ganhou ainda mais destaques e chamou aten-
ção das mais diversas correntes críticas. No ensaio “Charlotte Bron-
të”, publicado no The Commom Reader I, em 1916, a escritora Virgi-
nia Woolf teceu importantes considerações em relação ao trabalho de
Brontë; dentre tais afirmações, Woolf “acrescenta que Charlotte tem
o poder de prender o leitor em Jane Eyre, embora sua própria voz não
deixe de ser ouvida em nenhum momento nas falas das personagens”
(CAMARGO, 2001, p. 68). Virginia Woolf, portanto, descreve Char-
lotte Brontë como a própria heroína do seu romance.
A estudiosa literária inglesa Miriam Allott, no seu livro The
Brontës: The Critical Heritage (2001), reúne as críticas, tanto positivas
como negativas, dos livros das irmãs Brontë. De acordo com Allott
(2001), a obra foi bem recepcionada por uma figura ilustre, a Rainha
Vitoria da Inglaterra: “Terminei Jane Eyre, que é realmente um livro

114 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


maravilhoso, bastante excêntrico em partes, mas escrito de forma tão
poderosa e admirável, um tom tão requintado, um sentimento religio-
so tão fino e tão belos escritos”3 (ALLOTT, 2011, p. 389-390, tradu-
ção nossa).
A obra chamou atenção até da imprensa religiosa, pois, segundo
Allott (2001, p. 22, tradução nossa), por causa dessa obra de Brontë,
o periódico Church of England Quarterly teria quebrado a “sua regra
de nunca resenhar romances”4, já que o livro era “tão cativante” e
criador de “uma impressão tão poderosa nos seis meses desde seu apa-
recimento” que o periódico abriu uma exceção.
O livro também foi bem recebido pelas revistas, jornais e peri-
ódicos da época como o Era, onde foi publicada a seguinte crítica
“Jane Eyre é também um extraordinário livro e não é um mero ro-
mance”5 (ALLOTT, 2001, p. 78, tradução nossa). O People’s Journal
fez o seguinte comentário: “uma produção boa e impressionante”6
(ALLOTT, 2001, p. 80, tradução nossa). Para o Westminster Review,
a obra foi considerada “cheia de originalidade e frescor”7 (ALLOTT,
2001, p. 87, tradução nossa). O Atlas publicou o seu comentário di-
zendo que tratava-se de um romance “cheio de vigor juvenil, de frescor
e originalidade”8 (ALLOTT, 2001, p. 68, tradução nossa). Segundo o

3 “Finished Jane Eyre, which is really a wonderful book, very peculiar in parts, but so
powerfully and admirably written, such a fine tone in it, such fine religious feeling, and
such beautiful writings” (ALLOTT, 2001, p. 389-390).
4 “broke its rule never to review novels” (ALLOTT, 2001, p. 22).
5 “extraordinary book” “no mere novel” (ALLOTT, 2001, p. 78).
6 “good and striking production” (ALLOTT, 2001, p. 80).
7 “originality and freshness” (ALLOTT, 2001, p. 87).
8 “full of youthful vigour, of freshness and originality” (ALLOTT, 2001, p. 68).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 115


Examiner, Jane Eyre seria “um livro de inegável poder”9 (ALLOTT,
2001, p. 76, tradução nossa).
Em um outro momento, o People’s Journal comentaria que tal
livro era: “corajoso, lúcido e pungente”10 (ALLOTT, 2001, p. 80,
tradução nossa). O outro meio de comunicação da época chamado
Critic afirmou que “Charlotte possui invenção fértil, grande poder de
descrição, e uma faculdade favorável para conceber e desenhar per-
sonalidades”11 (ALLOTT, 2001, p. 73, tradução nossa). O resenhis-
ta do Examiner escreveu: “É um conto sóbrio e sério, interessado em
trazer à vida a situação pobre e de dependência de uma classe muito
interessante de pessoas e uma que é muito numerosa entre as mulhe-
res na Inglaterra”12 (ALLOTT, 2001, p. 102, tradução nossa). Aqui o
resenhista se refere à classe das preceptoras, ou seja, das mulheres que
ensinavam às crianças ricas em suas casas; além de ensinarem, tam-
bém cuidavam dessas crianças. A personagem Jane foi preceptora da
menina Adele, assim como a escritora Charlotte fora preceptora na
casa de duas famílias antes de publicar seus livros.
Segundo G. H. Lewes, filósofo e crítico de literatura e teatro in-
glês, para a Fraser’s Magazine, “nenhuma bondade ou esperteza ex-
traordinárias incitam sua admiração; mas você admira, você a ama
[Jane], a ama por sua vontade forte, mente honesta, coração amoroso

9 “a book of decided power” (ALLOTT, 2001, p. 76).


10 “bold, lucid, pungent” (ALLOTT, 2001, p. 80).
11 “fertile invention, great power of description, and a happy faculty for conceiving and sketching
character” (ALLOTT, 2001, p. 73).
12 “It is a sober and serious tale concerned to bring to life the poor and dependente
situation of a highly interesting class of persons ando ne that is very numerous among
women in England” (ALLOTT, 2001, p. 102).

116 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


e pessoa peculiar, porém fascinante”13 (ALLOTT, 2001, p. 85, tra-
dução nossa). A romancista responsável pela biografia de Charlotte
Brontë, Elizabeth Gaskell, conta que recebeu uma carta de um clérigo
na América e ele escreveu informando o seguinte:

Temos em nosso lugar mais sagrado uma prateleira especial, bastante


adornada, como um lugar que gostamos de homenagear, com romances
que reconhecemos como tendo uma boa influência sobre o caráter, o
nosso caráter. O principal é Jane Eyre14 (DUNN, 2001, p. 458, tradução
nossa).

Através dessa carta recebida por Gaskell, principalmente no que


tange à expressão “nosso caráter” informada pelo religioso, podemos
entender que o caráter bom, honesto, amoroso e fiel da Igreja, condiz
com o da personagem Jane Eyre. É importante informar que Char-
lotte Brontë tinha um pai que era reverendo, ou seja, um religioso.
Consequentemente, a autora foi criada com os valores pregados pela
Igreja e isso possivelmente serviu de base para criar o caráter e perso-
nalidade de Jane.
Apesar de o romance ter tido uma boa recepção crítica, ele tam-
bém foi muito atacado. A resenha feita por Lady Elizabeth Eastlake
(autora, crítica e historiadora de arte britânica) em dezembro de 1848
para a Quarterly Review dizia sobre a obra Jane Eyre “tom da men-
te e do pensamento que derrubou a autoridade e violou todo códi-
go humano e divino no exterior, e promoveu o cartismo e a rebelião

13 “no extraordinary goodness or cleveness appeals to your admiration; but you admire, you love
her [Jane], - love her for the strong will, honest mind, loving heart, and peculiar but fascinating
person” (ALLOTT, 2001, p. 8).
14 “We have in our sacred of sacreds a special shelf, highly adorned, as a place we delight to
honour, of novels which we recognise as having had a good influence on character, our character.
Foremost is Jane Eyre” (DUNN, 2001, p. 458).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 117


em casa”15 (GLEN, 2002, p. 162, tradução nossa). O Cartismo, que a
autora citou no comentário, foi o primeiro movimento de massa das
classes operárias da Inglaterra. Os trabalhadores das fábricas exigiam
melhores condições de trabalho e salários. Percebemos que Lady Eas-
tlake entendeu que a obra de Brontë trazia elementos que não condi-
ziam com época, como, por exemplo, o fato de haver uma personagem
forte e obstinada a conseguir o seu lugar no mundo; ademais, sendo
alguém que luta pela própria sobrevivência através do trabalho como
preceptora, estabelecendo tratamento igual com os outros persona-
gens e tendo opinião formada acerca dos assuntos que chegam ao seu
conhecimento.
Em seu livro Life of Charlotte Brontë, a biógrafa Elizabeth
Gaskell conta um episódio no qual o famoso escritor e crítico literário
britânico William Makepeace Thackeray teria dito à autora de Jane
Eyre: “Você sabe, eu e você, Srta. Brontë, ambos escrevemos livros
malcriados!”16 (DUNN, 2001, p. 458, tradução nossa). Thackeray ha-
via feito várias acusações ao famoso romance de Brontë nos veículos
de comunicação da época, de tal forma que Charlotte, na segunda
edição de Jane Eyre, que saiu no ano de 1847, dedica o prefácio a ele.
Nesse prefácio ela responde respeitosamente às ofensas dirigidas a ela
e à sua obra.
O resenhista do Atlas considerou a personagem Helen Burns,
criada por Brontë, “Muito bela, mas muito falsa17” (ALLOTT, 2001,

15 “tone of mind and thought which has overthrown authority and violated every code human
and divine abroad, and fostered Chartism and rebellion at home” (GLEN, 2002, p. 162).
16 “You know, you and I, Miss Brontë, have both written naughty books!” (DUNN, 2001, p.
458).
17 “very beautiful, but very untrue” (ALLOTT, 2001, p. 68).

118 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


p. 68, tradução nossa) e acrescentou: “Desse ponto em diante, no en-
tanto, pensamos que a heroína passa por necessidades demasiado ab-
surdas e ela é muito romanticamente auxiliada em suas dificuldades”18
(ALLOTT, 2001, p. 72, tradução nossa). O periódico Spectator, por
sua vez, viu no romance “artifício em demasia”19, no qual a autora
teria recorrido a “truques para contar sua história”20; sendo que o final
da obra teria sido a parte “melhor arquitetada do livro” (ALLOTT,
2001, p. 74, tradução nossa). Enquanto que em um trecho da resenha
do Critic afirma que:

É uma história de extraordinário interesse [...] sustentando [o interesse


do leitor] por uma variedade de incidentes rara em nossa escola inglesa
moderna de romancistas, os quais parecem fazer da difusão do menor
número possível de incidentes sobre o maior número possível de
páginas seu esforço. Currer Bell foi mesmo ao extremo oposto, e os
incidentes de sua história são, se alguma coisa, demasiado abarrotados’21
(ALLOTT, 2001, p. 73, tradução nossa).

Percebemos, ao ler essas opiniões sobre Jane Eyre, que os críticos


da época nunca tinham se deparado com algo parecido ao romance
de Brontë. A autora trouxe uma novidade ao narrar a história de uma
personagem feminina tão determinada a seguir seus princípios, en-
quanto que os críticos estavam acostumados a se deparar com obras
que seguiam o mesmo padrão patriarcal.

18 “From that point forward, however, we think the heroine too outrageously tried, and too
romantically assisted in her difficulties” (ALLOTT, 2001, p. 21).
19 “too much artífice” (ALLOTT, 2001, p. 74).
20 “trick to tell their story” (ALLOTT, 2001, p. 74).
21 “It is a story of surpassing interest [...] sustaining it [the reader’s interest] by a copiousness
of incident rare indeed in our modern English school of novelists, who seem to make it their
endeavour to diffuse the smallest possible number of incidentes over the largest possible number
of pages. Currer Bell has even gone rather into the opposite extreme, and the incidents of his
story are, if anything, too much crowded” (ALLOTT, 2001, p. 73).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 119


Em outro documento da época no Athenaeum encontramos:
“Há tanto poder neste romance a ponto de nos fazer esquecer certas
excentricidades na invenção, as quais beiram em um ou dois lugares
o que é improvável, quando não desagradável”22 (ALLOTT, 2001, p.
71, tradução nossa). O crítico literário Terry Eagleton, por sua vez,
afirmou que “Jane não é a heroína mais agradável com quem alguém
poderia esperar compartilhar uma corrida de táxi”23 (DUNN, 2001,
p. 451, tradução nossa). Lady Eastlake parece concordar com tal opi-
nião quando diz que: “o herói e a heroína são ambos tão singularmen-
te desinteressantes”24 (DUNN, 2001, p. 451, tradução nossa). Volta-
mos a dizer que a obra trouxe novas inquietações, questionamentos
e representação feminina na Inglaterra vitoriana. Por essa razão, o
romance sofreu muita reprimenda, pois as obras que estavam sendo
publicadas não tinham essa visão realista.
De acordo com Caldas (2017), na obra de Allott (2001) há uma
resenha sem assinatura publicada em outubro de 1848, na Blackwood
Magazine, por um crítico que descreveu o romance como “um conto
muito patético”. Também, na Forçade Revue afirma-se que “Jane Eyre
carrega o tom de uma confissão pessoal [...] o autor baseou-se exclusi-
vamente na eloquência das emoções retratadas”25 (ALLOTT, 2001, p.
101, tradução nossa).

22 “There is so much power in this novel as to make us overlook certain eccentricities in the
invention, which trench in one or two places on what is improbable, if not unpleasant”
(ALLOTT, 2001, p. 71).
23 “Jane is hardly the most agreeable heroine could hope to share a taxi with” (DUNN, 2001,
p. 451).
24 “The hero and the heroine are both so singularly unattractive” (DUNN, 2001, p. 451).
25 “Jane Eyre bears the accent of a personal confession [...] the author has relied solely on the
eloquence of the emotions depicted” (ALLOTT, 2001, p. 101).

120 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Para Caldas (2017, p. 31), o crítico da Spectator parece desgostar
no romance especialmente daquilo que escapa ao decoro da moral
burguesa vitoriana: “Há um tom vulgar de comportamento (em vez
de moralidade) no livro; e, o que é o pior de tudo, nem a heroína nem
o herói atraem simpatia”. O leitor, dessa forma, não seria capaz de ver
nada de cativante no Sr. Rochester, nem porque ele deveria ser tão
profundamente apaixonado por Jane. Dessa forma, temos emoção in-
tensa sem uma causa apropriada.
Entendemos que, independente da recepção crítica que a obra
teve nos seus primeiros anos no mercado, não podemos deixar de afir-
mar que a narrativa ainda hoje divide opiniões entre os críticos. Sem
dúvida, o romance de Brontë é um verdadeiro sucesso, conquistando
a cada nova edição novos leitores.
Charlotte Brontë questionou e retratou o cenário da Inglaterra
da Era Vitoriana, um período muito importante para o país naque-
le momento. Por essa razão, percebemos o quanto a obra dividiu a
opinião do público e dos críticos. Se o romance agradou ao retratar a
figura de uma mulher independente, com caráter digno e boa índole,
que busca seu lugar ao mundo, enfrentando várias situações difíceis
ao longo da vida, por outro lado, desagradou e passou a ser visto como
imoral, fora dos padrões adequados para a época, apresentando per-
sonagens fracos e destituídos de graça, promoção ao Cartismo, dentre
outras coisas.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 121


JANE EYRE, UMA NOVELA FOLHETINESCA?

São múltiplos os desdobramentos narrativos possibilitados pela


obra. Dessa forma, podemos entender que a narrativa Jane Eyre con-
tém elementos próprios de uma novela folhetinesca. Segundo Bennet
(1934), a novela é “definida como uma narrativa em prosa, sobre uma
única situação, conflito, evento ou aspecto de uma personalidade;
narra algo não usual ou absurdo e tem apenas um centro de interesse”
(BENNET, 1934, p. 18). No caso do romance de Brontë, a narrativa
gira em torno do desenvolvimento da personagem principal, Jane, que
apresenta ao leitor as diversas situações pelas quais passou até o alcan-
ce do seu objetivo final, o desejo de se tornar uma mulher independen-
te financeiramente e de ser amada.
Nas palavras de Angélica Soares (2007, p. 54), no gênero novela
percebemos a construção de um enredo unilinear, onde predomina
“a ação sobre as análises e as descrições e são selecionados os momen-
tos de crise, aqueles que impulsionam rapidamente a diegese26 para o
final”. Percebemos na obra de Charlotte Brontë que Jane é a própria
narradora da sua história; é ela a responsável por relatar os aconteci-
mentos da sua jornada.
Já o escritor e historiador de arte Arnold Hauser entende que a
novela “permite ao herói bater-se contra a trivial realidade para sair vi-
torioso mesmo na derrota” (HAUSER, 1982, p. 886). Ao contrário do

26 De acordo com o Dicionário Online de Português a palavra Diegese significa ação de narrar,
de escrever uma história; narração. Extensão da ficção dentro de uma narrativa; refere-se à
parte que, dentro da narrativa, é fruto da imaginação ou da invenção do autor, não possuindo
correspondência com a realidade do mundo, compondo a realidade da própria narrativa.

122 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


romance, em que o herói se mostra interiormente derrotado, mas ainda
assim consegue alcançar seu objetivo, segundo Hauser. Para este autor,
os personagens e enredo da novela são “estereotipados e construídos de
acordo com um padrão pré-estabelecido” (HAUSER, 1982, p. 895).
Massaud Moisés (1987), no livro A criação literária: prosa, faz um
estudo acerca do gênero novela. Para ele:

A novela, histórica e essencialmente, ocupa situação de relevo menor que


o do conto e o romance. Identificada com as manifestações populares de
cultura, sempre correspondeu a um desejo de aventura e fuga realizado
com o mínimo de profundidade e o máximo de anestésico (MOISÉS,
1987, p. 61).

O autor entende que a novela “ilude e mistifica por obrigar todas


as situações a se enquadrarem num andamento acelerado, cheio de
pitoresco, que não pode ser o da vida diária” (MOISÉS, 1987, p. 61).
Dessa forma, a obra Jane Eyre nos apresenta as diversas fases que a
protagonista vivencia, de modo envolvente e fascinante. Para Moisés
(1987), a novela trabalha com ritmo bastante rápido, com uma expo-
sição sucessiva, linear, dos acontecimentos, “intervenção constante e
direta do subjetivismo do autor, quer em frases líricas, em divagações
morais e no tom de conversa com o leitor, quer na eloquência ornada
da própria linguagem” (MOISÉS, 1987, p. 66-67). Na obra Jane Eyre,
a protagonista conversa constantemente com o leitor, o que pode ser
identificado no seguinte trecho: “É verdade, leitor. Eu sabia e sentia
isso. E embora eu fosse um ser imperfeito, com muitas falhas e poucas
coisas para me redimir, ainda assim nunca me cansei de Helen Burns”
(BRONTË, 2016, p. 101). Neste trecho da narrativa, Jane se refere à
sua amiga da escola Lowood, Helen Burns.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 123


Segundo Moisés, o primeiro ingrediente estrutural de uma novela
é a ação. Nas palavras dele, “a novela é essencialmente multívoca, poliva-
lente” (MOISÉS, 1987, p. 62), ou seja, é uma narrativa que relata muitas
coisas, que oferece um leque de possibilidades de interpretação e com
muita aventura acontecendo de forma intermitente, uma após a outra.
O crítico literário ainda reforça o predomínio da ação quando afirma
que a novela “caracteriza-se por desenrolar-se numa geografia fictícia,
apenas a servir de cenário para a ação física ou dramática das persona-
gens. E é a ação que importa na novela” (MOISÉS, 1987, p. 65).
Talvez a ação, um dos ingredientes fundamentais da novela, fez
com que ela se tornasse um sucesso entre o público leitor nos oitocen-
tos. Pelo seu formato cheio de entretenimento, aventuras e fantasias,
a novela passou a ser publicada em partes, ou seja, a cada dia/semana
um novo capítulo era apresentado aos leitores, e isto deu origem ao
chamado romance/novela em folhetim. De acordo com Silveira, San-
galetti e Wagner (2018):

[...] a palavra folhetim vem do francês feuilleton, que deriva de feuillet,


que significa pequena folha. Originário da França, o termo originalmente
designava a parte inferior das primeiras páginas dos jornais, destinadas
aos textos de entretenimento. A partir de 1836, o termo passou a
designar o ‘romance-folhetim’, ou seja, romances publicados de forma
fragmentada em jornais e marcados por uma estratégia de interrupção
da narrativa (SILVEIRA; SANGALETTI; WAGNER, 2018).

Dessa forma, a interrupção é um recurso frequente na narrati-


va folhetinesca. O alternar de episódios faz com que a narrativa nos
apresente personagens, cenários e situações diferentes. A intenção é
despertar a curiosidade do leitor para as “cenas” do próximo capítulo.
Nas palavras de Moisés (1985), o folhetim:

124 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


[...] se caracterizava pelo desfiar quilométrico de episódios
emaranhadamente convencionais e por um sentimentalismo piegas.
Com tais novelas bucólicas e sentimentais da Renascença e o fim da
Idade Média, alimentava a imaginação de leitores menos exigentes,
assim, cumprindo uma função que hoje é desempenhada pelas novelas
de televisão e filmes de cow-boy (MOISÉS, 1985, p. 232).

De fato, podemos constatar que a obra Jane Eyre é marcada por


muita ação por parte de Jane, pois ao longo da sua história ela transita
por vários lugares, como Lowood e Thornfield Hall, convivendo com
vários personagens, como as amigas Helen Burns e a professora Tem-
ple em Lowood, bem como com os moradores de Thornfield Hall,
Sra. Fairfax e Sr. Rochester. Em outras palavras, as fases da vida de
Jane acabam por prender o leitor que se interessa em saber o desfecho
final da história. De acordo com Mirella Silva (2015), o folhetim pode
ser visto como um:

[...] gênero que difere sensivelmente na estrutura – variações de tempo,


construção de personagens, modulação de pausas, capítulos, descrições
– mas que se alinha à tradição do romance em sua essência na origem
e nos pontos de repetições fundamentais. Os primeiros registros acerca
do folhetim dizem respeito à cidade de Paris, na França, no ano de 1836
quando o diretor de jornais Émile de Girardin dividiu a novela espanhola
Lazarillo de Tormes em partes separadas e publicadas diariamente no
feuilleton, correspondente ao rodapé das folhas de jornal, geralmente na
primeira página (SILVA, 2015, p. 19-20).

Ainda de acordo com a autora, o folhetim “obedece a uma ordem


redundante de fixação das personagens, no conjunto de embaraços
e resolução de ações, na retomada de enredos entrecruzados e sobre-
postos” (SILVA, 2015, p. 23). Ou seja, são situações na narrativa que
precisam ser resolvidas, ou que foram interrompidas por algum per-

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 125


sonagem, e isto faz com que cenários/situações/personagens voltem
a aparecer novamente na história. Dessa maneira, o leitor consegue
“refrescar a memória” e depois seguir com a narrativa. Moisés (1987),
dentro dessa perspectiva, entende que:

Nos séculos XIX, proliferaram as infindáveis novelas de folhetins,


estampadas nos jornais e depois reunidas em volume. Algumas vezes, a
garantia de acolhimento por parte do público, notadamente o feminino,
fazia que os editores lançassem as novelas em livro, em vez de fragmentá-
las em capítulos semanais ou quinzenais (MOISÉS, 1987, p. 48).

As narrativas folhetinescas ganharam vida de acordo com o cres-


cimento do público leitor. Com isso, surgiram romances/novelas de
folhetim para todo tipo de leitor (mulheres, homens, crianças e jo-
vens) e sobre os mais diversos temas, como por exemplo: narrativas
sentimentais, de viagens, históricas policiais, modos e costumes. Sil-
veira et al. (2018) entendem que os folhetins:

[...] tentaram ilustrar com realismo a emoção e a miséria da condição


humana. Tinham várias opções de enredo, que iam das frivolidades
a assuntos sérios, de temas particulares a acontecimentos políticos.
Quando tratavam de amenidades e da vida da classe média, aproximavam-
se do realismo literário. Também faziam um registro da vida cotidiana,
algo típico do jornalismo, mas sem a pretensão de perpetuar a verdade,
apenas sendo-lhe verossímil (SILVEIRA; SANGALETTI; WAGNER,
2018, p. 49).

Nas palavras de Hauser (1982), “O folhetim dirige-se a um pú-


blico tão multiforme e recentemente constituído como o melodrama
ou o vaudeville; rege-se pelos mesmos princípios formais e critérios
estéticos que o teatro popular”, que é seu contemporâneo (HAUSER,
1982, p. 895). O vaudeville mencionado pelo autor, de acordo com

126 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


o Dicionário Cambridge, era um tipo de entretenimento teatral nos
anos 1800 e início dos anos 1900 que incluía música, dança e piadas.
Ainda de acordo com este autor, a “significação do romance em
folhetim é a de ser uma democratização sem precedentes da literatu-
ra e uma redução completa do público que lê, a um mesmo nível”
(HAUSER, 1982, p. 896). Ness e ponto, entendemos que uma clas-
se social estava em ascensão no momento do surgimento do folhetim,
a burguesa. Dessa forma, a burguesia precisa se ver representada nas
obras publicadas, já que era ela a responsável pelo grande lucro da im-
prensa no século XIX. Com a classe burguesa surgiu também um ou-
tro estilo/gênero literário, o Bildungsroman.

JANE EYRE: UM ROMANCE DE FORMAÇÃO?

O termo Bildungsroman é morfologicamente resultado da justa-


posição das palavras Bildung (formação) e Roman (romance), que se
traduz comumente na área dos estudos literários como “romance de
formação”. Assimilado pela crítica como um acontecimento alemão,
o termo Bildungsroman, segundo Wilma Maas (2000), representa o
“espírito alemão” em seu mais alto grau, firmando-se como um con-
ceito produtivo não só na Alemanha, mas também nas literaturas
nacionais de origem europeia e nas mais jovens, como as americanas.
Para Jorge Carvalho (2010), o termo Bildungsroman começou a ser
aplicado a um conjunto de narrativas escritas na Alemanha, a partir
de 1750, onde tais narrativas exprimem e confirmam os valores emer-
gentes da burguesia em ascensão.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 127


O Bildungsroman foi fundamental para a construção da nação
alemã, visto que trazia na sua estrutura elementos auto reflexivos da
classe burguesa que queria se ver representada. Nas palavras de Car-
valho (2010):

O Bildungsroman ou romance de formação caracteriza-se, do ponto


de vista temático, pela narrativa linear (histórico-diacrónica) do
tempo específico e efémero da vida de um protagonista masculino,
habitualmente da classe média, que é o da juventude inupta, em
irrequietude, instabilidade e insatisfação [...] representado no conjunto
de acontecimentos e de experiências marcantes através dos quais se
desenvolve a sua autoformação, como indivíduo e como membro do
coletivo social (CARVALHO, 2010, p. 132).

Jane Eyre é considerado por alguns teóricos como o primeiro Bil-


dungsroman feminino, de fato, já que a narrativa de Brontë se encaixa
nas definições desse gênero por retratar as fases de vida da sua prota-
gonista. Jane, apesar de ser órfã de pai e mãe, não era desprovida de
recursos, pois a família de sua mãe era rica. Os Reeds, família do seu
tio, irmão de sua mãe, com quem morou antes de frequentar a escola
Lowood, pertencia à classe média. Jane, quando pequena, relata seu
temor ao se imaginar morando com os parentes pobres, como mostra
o seguinte trecho do livro:

Balancei a cabeça. Não podia imaginar gente pobre sendo gentil. Depois,
já me via aprendendo a falar como eles, adotando seus modos, sendo
mal-educada, ficando igual as mulheres que às vezes via lavando roupa
ou embalando crianças nas portas de casebres do vilarejo de Gateshead.
Não, não era heroica o suficiente para comprar minha liberdade por um
preço tão alto (BRONTË, 2016, p. 36).

128 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


O surgimento do Bildungsroman está atrelado aos acontecimen-
tos da Alemanha no final do século XVIII, através da consolidação
da classe burguesa que passava por uma transição econômica, social
e política. Por essa razão o Bildungsroman pode ser considerado um
gênero da burguesia emergente, já que o termo aborda os conflitos
entre o indivíduo e o mundo. Seguindo essa linha de pensamento,
percebemos que, em Jane Eyre, a protagonista é bem-sucedida em sua
jornada apesar dos obstáculos e das injustiças que sofreu durante a sua
vida até atingir o seu objetivo.
Do ponto de vista teórico, o termo Bildungsroman foi criado em
1810 e usado pela primeira vez numa conferência na Universidade
de Dorpat pelo professor de Filologia Clássica Karl Morgenstem. De
acordo com Maas (2000):

A definição inaugural do Bildungsroman por Morgenstern entende


sob o termo aquela forma de romance que ‘representa a formação do
protagonista em seu início e trajetória até alcançar um determinado grau
de perfectibilidade’. Uma tal representação deverá promover também ‘a
formação do leitor, de uma maneira mais ampla do que qualquer outro
tipo de romance’ (MAAS, 2000, p. 20).

Por se tratar de uma representação, o jovem leitor da classe média


burguesa se deparará com personagens no Bildungsroman que se asse-
melham a ele. Além disso, o Bildungsroman trouxe a beleza estética da
arte, que impulsionava nos jovens a sua ascensão moral, juntamente
com o enriquecimento cultural e especialização das faculdades espi-
rituais e intelectuais. Em Jane Eyre, nos deparamos com o retrato da
Inglaterra no período vitoriano e o comportamento da sociedade da-
quela época. Nas palavras de Maas (2000):

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 129


A palavra Bildungsroman conjuga, portanto, dois termos de alta
historicidade no contexto alemão e mesmo europeu. Por um lado, a
incipiente classe média alemã movimenta-se em direção à sua emancipação
política, processo que se reflete na busca pelo auto aperfeiçoamento e pela
educação universal. A par disso, cristaliza- se o reconhecimento público
de um gênero literário voltado para a representação do próprio ideário
burguês, gênero esse que o século XIX irá conhecer como a grande forma
do romance realista (MAAS, 2000, p. 23-24).

Ou seja, o Bildungsroman vem falar sobre o homem comum e a


busca pelo seu lugar no mundo através do seu auto aperfeiçoamento,
e, com isso, o termo torna-se expressão direta das atitudes da burgue-
sia. A personagem Jane, desde o início de sua história, mostra-se in-
satisfeita, incompreendida e deslocada. Primeiro na casa dos Reeds,
pelos maus-tratos que sofria pela tia e pelos primos, em seguida em
Lowood, escola com um regime severo e autoritário sob o comando
do clérig o Brocklehurst e depois na mansão de Rochester após a
descoberta de seu segredo. Dessa forma, Jane sempre foi em busca de
vencer por todos os percalços que foram aparecendo durante a sua
vida. Carvalho (2010) expõe a definição feita por Dilthey sobre o Bil-
dungsroman:

[...] é a narrativa da modelagem de carácter de um jovem num


desenvolvimento regular e harmonioso da sua personagem, no qual
cada fase tem, sucessivamente, um valor específico, até alcançar o grau
último onde se conjugam o material e o espiritual na totalidade do ser
(CARVALHO, 2010, p. 95).

Ou seja, a história finaliza com os princípios e os valores do herói


sendo exaltados, o que faz com que o protagonista ocupe uma nova
posição na sociedade. Fazendo um paralelo com a história de Jane

130 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Eyre, a jovem termina o livro casada com o Sr. Rochester e alcança um
desejo pelo qual lutou a maior parte de sua vida, que foi tornar-se uma
mulher financeiramente independente e casada por escolha própria.
Outro autor que apresentou uma definição para o Bildungsroman,
colocando como foco o processo gradual de conhecimento e aperfei-
çoamento do personagem, foi Aguiar e Silva (1991), para quem:

O romance que narra e analisa o desenvolvimento espiritual, o


desabrochamento sentimental, a aprendizagem humana e social de um
herói. Este é um adolescente ou um jovem adulto que, confrontando-se
com o seu meio, vai aprendendo a conhecer- se a si mesmo e aos outros,
vai gradualmente penetrando nos segredos e problemas da existência,
haurindo nas suas experiências vitais a conformação do seu espírito e do
seu carácter (AGUIAR E SILVA, 1991, p. 730).

Voltando a fazer ligação com a obra de Brontë, entendemos que


apesar das agruras pelas quais enfrentou, Jane revela-se uma persona-
gem extremamente fiel a suas convicções, deixando muitas vezes o que
sente de lado, optando guiar-se pela razão, não agindo, assim, contra
os seus princípios. Exemplo disso foi no momento em que Jane desco-
bre que Rochester tinha uma esposa e mesmo sabendo que ele tinha
sentimentos por Jane, pela circunstância, a jovem optou por abando-
ná-lo por acreditar que agia de forma correta, uma vez que ela não
queria ser vista como uma amante.
Dessa forma, entende-se que o Bildungsroman conta a história
de vida de um herói que sofre as dores do mundo, vítima de injustiças
humanas ou do próprio destino, mas que, insatisfeito com a ordem
das coisas, parte em busca de novas perspectivas. O protagonista de
um romance de formação nunca é o mesmo ao longo de sua narrativa,

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 131


pois ele sempre tende a crescer (humana e intelectualmente) ao longo
de sua jornada. Todas as lições, dilemas e conflitos tornam-se peças
necessárias para que o personagem se transforme em alguém mais rico
em experiências e reflexões.
O Bildungsroman também serviu como um meio para educação
do jovem alemão do século XVIII. Com a ascensão da burguesia, a
estrutura da narrativa do Bildungsroman foi usada para a exposição
dos ideais da sociedade alemã no seu processo de formação social, cuja
intenção era a criação de um novo cidadão. Através da narrativa, que
tinha como personagem principal um jovem do sexo masculino em
pleno aprendizado, o Bildungsroman foi cada vez mais consumido pela
população com vistas a se “educar” o jovem alemão. Para Maas (2000):

A educação do indivíduo encontra-se, portanto, associada à formação do


Estado burguês estamental. O romance de Goethe Os anos de aprendizado
de Wilhelm Meister é um documento contemporâneo desse processo de
constituição do mundo burguês (MAAS, 2000, p. 34).

O Bildungsroman trabalha com percurso pessoal que o protago-


nista tem que enfrentar, para adquirir posteriormente o seu aperfeiço-
amento individual. Esse era o tipo de narrativa que a burguesia alme-
java para servir de exemplo para os jovens daquela época. Portanto, de
acordo com Maas (2000), várias enciclopédias literárias entendem o
Bildungsroman como um gênero atrelado à figura do romance Os anos
de aprendizado de Wilhelm Meister, do autor alemão Johann Wolf-
gang von Goethe. O romance de Goethe representa o Bildungsroman
por excelência por retratar o espírito da época, onde a formação do
personagem é mostrada através de vários graus, formas e fases da vida.

132 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em Jane Eyre, percebemos ao longo da narrativa a construção da


personagem, desde a sua infância, passando pela adolescência até atin-
gir sua maturidade. Por Jane ser a própria narradora da sua história,
conhecemos a sua personalidade, sua fisionomia, modo de pensar e
agir e a sua crença e princípios. Durante a narrativa, o leitor consegue
acompanhar a evolução e o desenvolvimento dessa heroína até o seu
desfecho final.
Dessa forma, entendemos que o romance de Charlotte Brontë se
mostra leve ao conter em seu enredo: uma narrativa unilinear (ou seja,
clara, direta e simples), onde o elemento ação se faz presente nas diver-
sas fases que a personagem vivencia; Jane também é levada a encarar
a realidade cruel que lhe é submetida nos primeiros anos de sua vida
para ao final da história sair vitoriosa; o romance contém elementos
culturais da época da Inglaterra Vitoriana, todos esses pontos são ca-
racterísticas do gênero novela que aliado ao gênero folhetim indicam
que a obra também não era complexa, portanto, os episódios/fases
da vida Jane transcorrem de modo fluido, sem exigir muito do leitor,
e retratam de modo realista a condição da mulher da classe média do
século XIX.
Apesar de expor leveza em sua narrativa, a obra também se apre-
senta pesada, ao enquadrar o Bildungsroman como parte de uma das
características do romance. Compreendemos que o romance tem um
tom mais forte ao retratar o conflito interno/externo do indivíduo
com o mundo e com si próprio, através das escolhas que são tomadas
e desafios impostos ao longo da jornada. A narrativa, considerada um

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 133


Bildungsroman feminino, serve de exemplo (para o leitor) ao mostrar a
boa índole da personagem principal e sua crença em Deus e nos prin-
cípios da Igreja; o seu enriquecimento cultural, espiritual e intelectual
se desenvolvendo durante a narrativa. Jane se mantém firme nos seus
propósitos e naquilo que acredita ser o certo a fazer, e com isso finaliza
sua história tendo êxito e conquistando um novo lugar na sociedade.
É através desses meios que compreendemos que a narrativa muda de
algo simples, direto e claro (leve) para se tornar em alguns momentos
forte, intenso e profundo (pesado).

COMO CITAR ESTE TEXTO

MIRANDA, L. M. G.; LOYOLLA, D. N. Pesado como um Bildungsroman, leve como


uma novela folhetinesca: o caso Jane Eyre. In: SOARES, I. M.; LESZCZYNSKI, T.
(Orgs.). Um percurso pelas literaturas de língua inglesa. Tutóia/MA: Diálogos,
2023. p. 110-136. https://doi.org/10.52788/9786589932796.1-6

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136 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


capítulo 7

O Diabo travestido em
O retrato de Dorian Gray (1890):
Deus, o Diabo e a serpente 1

Dante Luiz de Lima


Luiz Antônio Pereira Lima Neto

“O Diabo, de aspecto bestial, é o doloroso símbolo


das nossas próprias fraquezas e imperfeições”.
(João Ribeiro Júnior)

INTRODUÇÃO

O Diabo2 é uma personagem que só existe no domínio da palavra,


isto é, não temos provas da sua existência física, assim como a maioria
das pessoas e seres que são retratados no texto bíblico. Somente através
da fé é que satanás se torna real e temido. Segundo a teologia cristã, ele
e sua falange de demônios são responsáveis por levar os seres humanos
ao pecado e também têm a incumbência de punir os pecadores.
Uma parcial compreensão do caráter desse ser nos foi dada pelos

1 Texto derivado do Trabalho de Conclusão de Curso de Luiz Antônio Pereira Lima Neto
orientado pelo Prof. Dr. Dante Luiz de Lima.
2 Apesar de seus vários nomes, o Príncipe das Trevas é mais conhecido como Satã, Diabo,
Demônio ou Lúcifer (RIBEIRO JÚNIOR, 1997, p.62). Neste artigo usaremos esses nomes.

DOI: 10.52788/9786589932796.1-7 137


exegetas e estudiosos das Bíblia, já a sua horrenda aparência física,
pelo qual o conhecemos, não é descrita no livro sagrado dos cristãos.
Sendo assim, sua anatomia sofreu transformações com o passar dos
séculos, no entanto, a ideia de como ele deveria ser foi sedimentada na
mente do mundo ocidental através de textos religiosos e mundanos,
como também em obras de artistas famosos como: Albrecht Dürer,
Michelangelo Buonarroti, Gustave Doré, Michael Pacher, Joseph
Geefs e vários outros. Lúcifer, por ser uma personagem camaleônica,
com nomes variados e com características bastante peculiares, se
tornou uma grande inspiração para escritores de ficção em geral.
Este artigo tem o intuito de investigar o Diabo como persona-
gem literária e não como dogma de fé, pois através da literatura somos
livres para explorar as várias facetas da criatura. Para esta análise nos
valeremos do romance/novela O Retrato de Dorian Gray (1890), do
escritor irlandês Oscar Fingall O´Flahertie Wills Wilde, conhecido
mundialmente como Oscar Wilde. A obra em questão não apresenta
o Diabo de uma forma explícita, mas sua presença permeia os aconte-
cimentos e seu caráter supostamente inclemente parece estar impreg-
nado nas ações de algumas das principais personagens, como Lorde
Henry Wotton e Dorian Gray, o protagonista da trama.
O romance/novela em questão narra a história do inglês Dorian
Gray, um jovem de família abastada, cuja mãe fugiu com um homem
pobre para viver um grande amor, sendo posteriormente privada de
tal relação amorosa por seu pai, porém, gerando um filho bastardo,
a nossa personagem principal. Sendo assim, tal fato provavelmente
tenha influenciado a vida de Dorian de uma forma negativa, tornan-
do-o mimado e narcisista. No entanto, a característica mais marcante

138 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


de Dorian é o frescor de sua perturbadora beleza que encanta e seduz
todos a sua volta.
Como nosso intuito é discutir a presença do Diabo no enredo do
romance/novela, iniciaremos nossa discussão analisando como os se-
res humanos geralmente enxergam a característica mais inolvidável do
protagonista da trama, a beleza avassaladora. Particularidade essa que
também é marcante em Lúcifer, o príncipe das trevas, como veremos
no corpo deste trabalho. Para conceituarmos o belo utilizaremos uma
citação de Umberto Eco, retirada do livro História da beleza (2014):

‘Belo’ – junto com ‘gracioso’, ‘bonito’ ou sublime’, ‘maravilhoso’,


‘soberbo’ e expressões similares – é um adjetivo que usamos
frequentemente para indicar algo que nos agrada. Parece que nesse
sentido, aquilo que é belo é igual àquilo que é bom e, de fato, em
diversas épocas históricas criou-se um laço estreito entre o Belo e o Bom
(ECO, 2014, p. 9).

De acordo com a definição dada por Eco, belo pode ser usado
para relacionar ao que nos encanta e também a algo bom. Comumen-
te ao elogiarmos a personalidade de alguma pessoa dizemos que ela
é linda. Neste caso, usamos um adjetivo geralmente relacionado ao
físico para algo não concreto, para descrever a índole. Desta forma,
comparamos sentimentos que nos agradam à beleza.

A BELEZA DESTRUIDORA

Dorian Gray pode ser visto como uma Helena de Tróia


do sexo masculino, não que suas histórias sejam as mes-

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 139


mas, mas suas belezas causaram morte e destruição. O belo
Dorian, já no início da trama, fascina dois grandes amigos: Lorde
Henry Wotton, um aristocrata hedonista possuidor de ideias amo-
rais, e Basil Hallward, personagem de índole mais amena. Dorian, ao
servir de modelo para o retrato que Basil pintou, desenvolve no artista
um encantamento pelo muso inspirador. No começo da trama de O
Retrato de Dorian Gray (1890), Lorde Henry e Basil conversam sobre
o jovem modelo e podemos perceber que há uma fascinação de Basil
por Dorian Gray, uma atração que vai além de uma simples amizade e
mexe com os sentimentos do pintor. Como nos explica Daniel Barbo:

[...] dominado pelo semblante de um jovem, a rondar a sua volta,


completamente extasiado pela atração inescapável provocada pela
beleza física do amado, Basil perde a sua independência e torna-se um
escravo de Dorian Gray. O ideal de beleza física do mundo clássico, a
harmonia entre corpo e alma inerente à pederastia grega, bem como a
inspiração artística e intelectual advinda desta prática imprimem-se na
mente de Wilde para explicar o efeito causado pelo jovem na alma do
pintor (BARBO, 2010, p. 38).

De acordo com o autor, Basil se sente escravizado pela figura de


Dorian Gray, que exerce um domínio paradoxal sobre o pintor, tor-
nando-o submisso e inebriado pela figura do rapaz, o que nos remete
às relações homoeróticas comumente praticadas na Grécia Antiga.
Embora o homoerotismo seja uma constante no decorrer do enredo,
o narrador deixa o leitor a imaginar o que pode ter acontecido nas
entrelinhas.
Quando Lorde Henry conhece Dorian Gray, percebe nele as
qualidades que seduziram Basil e também se sente também deslum-
brado pela formosura do jovem:

140 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Lorde Henry examinava–o. Ele era decerto, extraordinariamente belo,
com os lábios escarlates finamente talhados, os claros olhos azuis, a
cabeleira de cachos de ouro. Tudo na sua face atraia a confiança, desde
que nela não se descobria essa candura de mocidade aliada à pureza
ardente da adolescência. Sentia-se que o mundo ainda não o havia
poluído. Como surpreender que Basil Hallward o estimasse de tal forma?
— O senhor é realmente bem sedutor[...] bem sedutor (WILDE, 2014,
p. 28).

Percebemos nesse momento que também Lorde Henry se sente


magnetizado por Dorian Gray, se formando a partir desse momento
uma espécie de triângulo amoroso de grande rivalidade. Alcione Gon-
çalves (2012) nos fala dessa relação conturbada dos personagens:

Hallward, buscando uma fusão entre o seu eu e Gray, cria um retrato


do jovem que na verdade não deixa de ser um autorretrato da alma do
pintor. Em meio a este enamoramento singular, surge uma terceira
personagem: Lorde Henry Wotton. Este busca uma perfeita harmonia
entre seu brilho intelectual e a magnitude estética de Gray. Tanto o
pintor quanto o nobre buscam apossar-se do rapaz que é para ambos
um objeto de suas projeções. De um lado temos a mãe que lhe dá forma
(Basil Hallward), e de outro o pai que lhe dá a linguagem (Lorde Henry)
(GONÇALVES, 2012, p. 211-212).

A autora nos remete aos dois como se fossem ambos conceptores


de Dorian Gray, seu pai e sua mãe, cada um moldando um pouco da
criatura. Provavelmente ao tecer tal comentário Gonçalves tenha em
mente o romance Frankenstein (1823) de Mary Shelly, no qual um
monstro disforme é criado a partir da junção de vários cadáveres. No
caso de Dorian o oposto foi feito, dois homens fascinados por uma
pessoa do mesmo sexo o recriam mais belo ainda, um eterniza sua
beleza em um quadro, o outro, lhe dá o dom da palavra através dos
seus ensinamentos.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 141


A beleza é uma característica bastante aprazível para uma gran-
de parte dos seres humanos, pois a mesma seduz e é almejada, por
estar ligada à sedução e aos prazeres carnais. No romance/novela, Lor-
de Henry, ao descrever o belo Dorian Gray, diz que ele lembra uma
combinação de marfim e folhas de rosas (WILDE, 2014, p.14). Vale
lembrar que marfim é branco e sem imperfeições, as folhas de rosa são
suaves e aveludadas, portanto, Dorian torna-se o arquétipo da beleza
almejada por muitos. Lorde Henry também o compara aos persona-
gens mitológicos Adônis e Narciso, ideais de beleza masculina.
Continuando a desenvolver a relação da valorização da beleza e
da juventude, voltaremos à mitologia Greco romana, que conta a his-
tória de Narciso, um jovem cuja incrível beleza atraía homens e mu-
lheres, porém ele apenas gostava de si mesmo, Paulo Martins de Jesus
(2010) explica sobre tal mito:

Conta o mito, que Narciso era um jovem muito bonito e sedutor e que
todas as mulheres, ninfas ou mortais, sentiam certo fascínio por ele.
O jovem admirara tanto a si mesmo que jamais teve tempo para sentir
algo por outra pessoa, nem para perceber o que as demais sentiam por
ele[...] Eco era uma jovem extremamente apaixonada por Narciso e que,
por não ser correspondida, resolveu um dia isolar-se num vale. Com o
coração dilacerado de amor, foi morrendo aos poucos (JESUS, 2010,
p. 2-3).

Dorian Gray e Narciso, descritos acima, têm algumas caracterís-


ticas em comum, pois são extremamente belos, jovens, têm fascinação
por suas próprias imagens e várias pessoas que se apaixonam por eles
acabam tendo finais trágicos, como se a beleza fosse algo maldito. Eco
decepcionada por Narciso definhou até a morte, quem se envolve com
Dorian também acaba tendo um fim fatídico. Um exemplo disso, é

142 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Sibyl Vane, uma jovem atriz, que se enamora por Dorian, mas quan-
do deixada, por desencanto do amado, perde o sentido de sua vida e
acaba se suicidando.

O RETRATO

Dorian, tornou-se diabólico, após ter seu retrato pintado por Ba-
sil Hallward, mas em alguns momentos reflete sobre sua alma e o mal
que causou para algumas pessoas:

Melhor valera não cogitar o passado! Nada conseguiria modificá-lo


[...]. James Vane jazia estirado em um túmulo sem nome, no cemitério
de Selby; Alan Campbell havia se suicidado uma noite, no próprio
laboratório, sem revelar o segredo que ele o forçara a conhecer [...]. Em
verdade, não era a morte de Basil Hallward que oprimia; era a morte
viva de sua própria alma (WILDE, 2014, p. 248-249).

As pessoas citadas acima por Dorian são: James Vane, irmão


de Sibyl, que foi morto por acaso ao tentar se vingar pela morte da
irmã. Também seu amigo e pintor Basil Hallward teve fim trágico,
pois foi assassinado por Dorian após este ter revelado ao pintor o se-
gredo macabro do quadro. Já Alan Campbell suicida-se com peso na
consciência, pois ajudou Dorian a destruir o corpo de Basil. Sendo
assim, Dorian parece sentir uma certa responsabilidade pelas mortes,
no entanto, no final do excerto acima podemos notar que o mesmo só
se preocupa com a própria alma e não sente um total arrependimento.
Poderíamos especular que Dorian, Basil e Henry formam uma
trindade maldita: Basil (Deus), pois pintou o retrato e criou um ser
perfeito que jamais envelheceria, no entanto, não consegue contro-

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 143


lá-lo. Dorian, assim como Lúcifer fez com Deus, acaba se rebelando
contra ele. Dorian (Lúcifer), assim como o vilão bíblico, nasceu belo e
puro, mas foi corrompido por sua vaidade e beleza e acaba caindo para
o mundo das trevas. Lorde Henry (Serpente do jardim do Éden), tal-
vez, funcione dentro da trama como o grande vilão da história, pois é
a criatura maligna que influencia Dorian a se apegar aos valores fúteis
de adoração da beleza, idolatria da juventude e dos prazeres da vida.
Com referência à serpente do paraíso, não se pode afirmar que a mes-
ma era o Diabo, pois não há comprovação para tal, acreditamos que
ela era um demônio que fez Adão e Eva se desviarem dos desígnios
de Deus. Provavelmente, Oscar Wilde, sendo anglicano e conhecedor
das Sagradas Escrituras teve como inspiração o Diabo bíblico ao criar
os personagens perversos do seu romance/novela. Na nossa análise
Deus, Lúcifer e a Serpente se encaixam na personalidade e atitudes
das três personagens que acabamos de descrever.
Corroborando nosso raciocínio de que Lorde Henry possa ser
um arremedo da Serpente do Jardim do Éden, e de que Basil, nessa
mesma perspectiva seja Deus, notamos que há um embate entre os
dois. Basil conhece a índole de seu amigo e com medo de que ele in-
fluencie Dorian Gray e o perca, implora para que ele não o estrague,
por isso pede que Lorde Henry não o macule e não o influencie com
suas ideias:

[...] Não mo estragues; não o impressiones; a tua influência seria


perniciosa. O mundo é grande de gente interessante. Não me subtraias a
única pessoa que empresta à minha arte o encanto que ela pode possuir;
minha vida de artista depende dele. Presta atenção Harry, eu te peço
(WILDE, 2014, p. 26).

144 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Basil, apaixonado pela figura do jovem Dorian, fica obcecado por
ele, assim como Deus deve ter ficado ao criar Lúcifer, pois o concebeu
como o mais perfeito dos anjos. O pintor acha que sua vida e até sua
arte depende agora do rapaz, sendo assim, tenta alertar seu objeto de
adoração sobre a perniciosa influência do amigo: “[...] Dorian, sobe
ao estrado; não te mexas muito e não prestes atenção ao que te dizer
Lorde Henry. Sua influência é má para todo mundo salvo para ele”
(WILDE, 2014, p. 29). No entanto, Dorian se sente atraído pelas
ideias de Lorde Henry, e, assim como Eva e Adão no Jardim do Éden,
aos poucos, se deixa seduzir pelas ideias nefastas do aristocrata:

—É verdade que sua influência chega a prejudicar tanto quer Basil?


— Ignoro o que os homens entendem por uma boa influência, Mr Gray.
Toda Influência é imoral... imoral, sob o ponto de vista científico...
— E por quê?
— Porque considero que influir sobre uma pessoa é transmitir-lhe um
pouco de sua própria alma; esta pessoa deixa de pensar por si mesma,
deixa de sentir suas paixões naturais. Suas virtudes não são mais suas.
Seus pecados, se houver qualquer coisa semelhante a pecados, serão
emprestados (WILDE, 2014, p. 29).

Lorde Henry explica que quando uma pessoa influencia a outra


ela a está dominando, como se a pessoa fosse uma marionete nas mãos
de um ventríloquo. Ele acredita que as pessoas devem seguir seus pró-
prios instintos e também faz uma alusão a pecados, o grande trunfo
das igrejas para aprisionar seus seguidores.
A partir de então, Lorde Henry, mesmo contrariando o pedido
de Basil de não macular Dorian, começa a expor seus ideais de vida,
proferindo discursos como: “O terror da sociedade, que é a base de

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 145


toda moral, o terror de Deus, que é o segredo da religião, eis as duas
coisas que nos governam” (WILDE, 2014, p. 30). Inferimos aqui que
os homens em sociedade vivem com medo do que os outros pensarão,
de que Deus os condenará por seus atos e também temem os castigos
pregados pela religião, por isso, os mesmos ficam com medo de viver
plenamente e não realizam suas vontades. Lorde Henry continua seu
discurso:

— Creio que se um homem quisesse viver plenamente, completamente,


quisesse dar uma forma a cada sentimento, uma expressão a cada
pensamento, uma realidade a cada sonho, creio que o mundo
experimentaria tal impulso de alegria nova que nos esqueceríamos de
todos os males medievais para voltarmos ao ideal grego, talvez mesmo
a qualquer coisa mais linda e rica que esse ideal! O mais bravo, porém,
entre nós tem medo de si próprio [...]. Cada impulso que tentamos
sufocar persevera em nosso íntimo e nos intoxica. O corpo peca a
princípio e satisfaz-se com o pecado, por que a ação é um modo de
purificação [...]. Só quando cedemos a tentação nos desembaraçamos
dela (WILDE, 2014, p. 30).

Lorde Henry acredita que é necessário ceder aos próprios dese-


jos, que se fizéssemos tudo que temos vontade conseguiríamos nos li-
bertar de todo mal e viveríamos plenamente. Mas muitas pessoas têm
medo de si próprias, de seus sentimentos, e esse medo de colocar tudo
em prática, nos faz mal, porque a realização de nossas vontades, na
verdade, nos purificaria, segundo Henry.
Continuando a falar sobre as características de Dorian, Lorde
Henry começa a elogiar o rapaz e diz acreditar que a juventude é mui-
to importante, assim como a beleza:

146 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


[...] não sorrirá tão facilmente, quando a houver perdido. Tem-se dito
que a beleza é apenas superficial; talvez seja, mas, em todo caso, é sempre
menos superficial que o pensamento. Para mim, a Beleza é a maravilha
das maravilhas. Só os sujeitos acanhados não julgam pela aparência
(WILDE, 2014, p. 34).

Com esses pensamentos, o ardiloso aristocrata vai mostrando


sua verdadeira face de Serpente, seduzindo e fazendo com que Dorian
questione seus princípios. Ele o instiga a buscar novas experiências:
“Busque novas sensações! Nada receie... Um novo Hedonismo, eis o
que pede este século” (WILDE, 2014, p. 34). Para Henry, o hedonis-
mo, ou seja, a satisfação pessoal e a busca pelas sensações prazerosas,
são muito importantes e essenciais para se ter uma vida plena. O dis-
curso da Serpente causa um grande impacto em Dorian Gray.
Lorde Henry o lembra que a juventude não é eterna e que o peso
dos dias também chegará para Gray:

Sim, chegaria o dia em que sua face se encheria de pregas e rugas,


seus olhos se encovariam sem cor e ir-se-ia a graça de toda sua pessoa,
alquebrada e deformada. Passaria o escarlate de seus lábios como
desapareceria o ouro de sua cabeleira. A vida, que lhe devera aperfeiçoar
a alma, abater-lhe-ia o corpo. Seria horrível, desfigurado, disforme
(WILDE, 2014, p. 37).

Henry ressalta que a beleza, assim como para todos nós, também
passará para Dorian Gray. O jovem se sente triste ao admirar o quadro
que seu amigo Basil havia pintado, pois o retrato permaneceria para
sempre daquela maneira:

— Que coisa profundamente triste – murmurava Dorian, os olhos fixos


no retrato. – Sim, profundamente triste!... Eu ficarei velho, aniquilado,

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 147


hediondo!... Esta pintura continuará sempre fresca. Nunca será vista
mais velha do que hoje, nesse dia de junho. Ah! Se fosse possível mudar
os destinos; se fosse eu quem devesse conservar-me novo e se essa pintura
pudesse envelhecer! Por isso eu daria tudo!... Nada há no mundo que eu
não desse... Até minha Alma! (WILDE, 2014, p. 38).

Como podemos observar no trecho acima, Dorian se sente de-


solado por sua beleza ser efêmera, tudo que ele quer é o contrário,
permanecer para sempre jovem e bonito. Motivado por essa grande
vontade e vaidade, mesmo sem o seu conhecimento, um espécie de
pacto com forças ocultas parece ser feito, em que o desejo de perma-
necer sempre jovem e belo é atendido. Será o seu quadro que sentirá o
peso do tempo e das maldades que Dorian Gray começará a praticar.

O PACTO “DIABÓLICO”

O tema do pacto com forças ocultas, principalmente com o Dia-


bo, para receber algo em troca, é um mote recorrente na literatura. O
mais famoso é a lenda do Dr. Fausto de Goethe e também de Chris-
topher Marlowe (1592), como Steven Kera (1988) nos explica:

O texto que temos da peça Dr. Fausto é bastante mutilado, sobretudo


a parte central, devido a cortes e adições efetuados através dos anos.
Quando Goethe declarou: ‘Como foi tudo tão bem planejado!’
certamente devia estar-se referindo mais à concepção que à estrutura
da peça. O grande escritor alemão inspirou-se nela para escrever sua
própria obra-prima Fausto, contribuindo assim para tornar a lenda
ainda mais famosa. Sempre existiram várias lendas, desde a mais remota
antiguidade, a respeito de pessoas que entregam sua alma ao demônio
em troca de benefícios neste mundo. Dr. Fausto, porém, foi uma
personagem histórica que viveu na Alemanha na primeira metade do

148 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


século XVI e que ficou conhecida como mágico, astrólogo, quiromante
e até como ‘Filósofo dos Filósofos’. Foi tema de obras em latim, e em
alemão, traduzidas posteriormente para o inglês. Tendo lido a versão
inglesa, Marlowe dela se aproveitou para escrever A Trágica História
do Dr. Fausto. Assim, um tema tipicamente medieval tornou-se
inspiração para uma tragédia renascentista. [...] O Fausto de Marlowe,
descontente com as limitações do saber humano, deseja entregar sua
alma ao demônio, não em troca de meros benefícios materiais, mas com
o objetivo mais elevado de poder assimilar toda a sabedoria do mundo
(KERA, 1988, p. 80).

Mas diferentemente de Fausto que queria a sabedoria do mundo,


por ser um intelectual e almejar um conhecimento infinito, o que leva
a personagem de Wilde a fazer um suposto pacto com forças diabó-
licas é apenas o interesse fútil de permanecer intocado pelo impacto
dos anos.
No artigo Uma das formas do pacto com demônio: entre a oralida-
de e a escrita (2014), a autora Francieli Santos Rossi nos fala sobre as
intenções de um pacto com o Diabo:

Por mais que o Diabo, nestas narrativas, seja vencido pelos humanos
a partir de conhecimentos e crenças populares e religiosas, a estrutura
original do pacto é conservada nelas. Pois, nota-se que este acordo
é firmado entre humanos e o demônio, porque os pactários almejam
a troca de favores diabólicos, estes que podem incluir: juventude,
conhecimento, riqueza, poder, coragem, dom para tocar perfeitamente
um instrumento musical ou simplesmente para ter o corpo fechado
na intenção de derrotar, em campo de batalha, um inimigo, também
pactário (ROSSI, 2014, p. 20).

Como mostrado acima, podem haver variados anseios e inten-


ções em quem deseja fazer um pacto com o Diabo. O interessante é
que o Diabo quase nunca aparece pessoalmente para fazer a barganha,

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 149


quase sempre há um intermediador para que isso ocorra. No caso de
Fausto de Marlowe, ele faz um pacto de sangue com uma criatura
sobrenatural, Mefistófeles, que é enviada pelo Diabo. Em O Retrato
de Dorian Gray (1890), acreditamos que, Lorde Henry seja o media-
dor de uma força maligna maior, como dito anteriormente, pois é ele
quem desperta os desejos obscuros no jovem mancebo e também se
deleita em saber que pode manipulá-lo, como mostra o trecho abaixo:

É que esse adolescente, casualmente encontrado no atelier do Basil, era


um maravilhoso espécime da humanidade: não se poderia criar mais
absoluto tipo de beleza [...]. Desse modelo era possível tirar tudo. Dele
se poderia formar um titã ou um brinquedo. Que desgraça estar tal
beleza destinada a fanar-se[...]! Sim, ele procuraria ser junto a Dorian
Gray o que, sem o saber, o adolescente era para o pintor, que lhe havia
traçado esplêndido retrato. Ele tentaria dominá-lo, como aliás, já havia
feito. Faria seu esse ser maravilhoso. Havia qualquer coisa de fascinante
nesse filho de Amor e de Morte (WILDE, 2014, p. 48).

Como podemos observar, Lorde Henry fica fascinado com a be-


leza de Dorian e, sendo assim, decide que vai tê-lo ao seu dispor, para
poder transformá-lo em um deus ou apenas uma marionete. No final
da citação, menciona-se o amor e a morte, como se essas duas caracte-
rísticas fizessem parte da beleza perturbadora com a qual Dorian foi
agraciado pelos desígnios da existência ou forças sobrenaturais.
A dominação de Lorde Henry sobre Dorian é bastante fácil pois
ele tem medo da velhice e de perder sua beleza e seu charme. Em uma
de suas reflexões o jovem pondera: “Agora sei que quando perdemos os
encantos, quaisquer que sejam, perdemos tudo. Tua obra revelou-me
isso. Lorde Henry Wotton tem toda a razão. A mocidade é a única coisa
de valor. Quando perceber que envelheço, hei de matar-me” (WILDE,

150 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


2014, p. 38). Tamanha é a vaidade de Dorian e seu apreço à sua beleza e
jovialidade que o jovem pensa em até pôr fim à sua vida, caso as perca.
Por conseguinte, a influência de Henry aliada à vontade de Do-
rian torna-se o estopim para a concretização do pacto maligno com o
quadro, mesmo Dorian Gray não tendo consciência do acontecido.
Patrícia Tenório nos explica sobre essa luta entre os pensamentos into-
cados de Dorian, sua parte boa e as novas influências, o mal:

Diante do quadro, Dorian se entrega, entrega a própria alma, despertada


há pouco do paraíso na Terra para submergir, para mergulhar nas
profundezas do Mal. O Mal e o Bem que habitam em si lutam, se
contorcem, um e outro querem prevalecer e quebrar o equilíbrio. Ao
fazer o pacto, Dorian não tinha consciência de que seus atos iriam ser
‘impressos’ sobre a tela, que o que o equilibrava era conter dentro de seu
mesmo eu os dois opostos de forças que se contradiziam, mas no qual o
Bem prevalecia. Ao escolher o caminho do Mal sucessivas vezes, este foi
se cristalizando, este foi prevalecendo sobre a superfície do quadro [...]
(TENORIO, 2013, p. 185).

Ao longo do romance/novela, o mal vai se avultando dentro de


Dorian Gray e suas atitudes perversas serão impressas no quadro,
como nos explica a autora. Porém o jovem parecia não ter consciência
do pacto que fez em um primeiro momento, sendo assim, foi envol-
vido em uma trama diabólica, na qual a conservação de sua beleza e
juventude teriam que ser pagas com outras vidas. Entretanto, acredi-
tamos que mesmo se soubesse que venderia sua alma, Dorian conti-
nuaria a negociação infame pois, Lorde Henry, a Serpente do jardim
do Éden, aos poucos foi envenenando seus pensamentos para que o
jovem se sentisse vulnerável e propenso a aceitar a permuta para não
perder seus atributos físicos.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 151


O primeiro sinal de que algo sobrenatural acontece se dá após
Dorian Gray terminar o seu breve relacionamento com a jovem atriz
Sibyl Vane. Passada a sua breve paixão, ele diz com a voz clara e calma
que não quer ser mais cruel com ela, mas que não poderia mais tornar
a vê-la, que acabara com todas as suas ilusões (WILDE, 2014). Desta
forma, deixando-a devastada, ela acaba com a sua própria vida, como
mencionado anteriormente.
A descoberta de que o quadro inicia a sua transformação vem
logo em seguida. Após dispensar Sybil, Dorian passa a noite vagando
pela cidade, ao chegar em sua casa vislumbra seu retrato que repousa
na parede de sua sala como objeto decorativo, certamente, mais im-
portante que os outros, no entanto, algo surpreendente acontece:

Como ele abrisse o trinco da porta, seus olhares recaíram sobre o retrato
pintado por Basil Hallward – o que o fez estremecer de surpresa [...]
A expressão revelava-se diferente [...]. A luz palpitante realçava linhas
de crueldade em torno daquela boca, como se ele próprio, após haver
praticado qualquer coisa horrível, as descobrisse em sua face, num
espelho (WILDE, 2014, p.106).

Como podemos notar, a figura retratada no quadro muda de


semblante, adquirindo uma expressão cruel. Começa, então, a aconte-
cer o inesperado. A partir daquele momento, toda maldade praticada
por Dorian e seu envelhecimento serão perpetuadas no retrato.
Muitos anos se passam, e Dorian vai se tornando cada vez mais
egoísta e mesquinho, sem pensar nas consequências das maldades que
ele pratica contra as outras pessoas, pois sabe que mesmo agindo dessa
forma, o tempo não o punirá. Dorian vai deixando para trás o ingênuo
jovem pintado por Basil e se transformando cada vez mais na maligna
criatura influenciada por Lorde Henry, como nos explica Tenório:

152 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Dorian Gray de tal maneira cristalizou-se em uma só porção de si, de tal
maneira paralisou no seu lado obscuro, ele que foi a princípio formado
de cor e luz pelas mãos de Basil Hallward preferiu as sombras e o prazer
sem limites e medida de Lorde Henry (TENORIO, 2013, p. 288).

Dorian assume assim seu lado mal, e vive uma vida em busca de
prazeres e sem pensar nas consequências. No desenrolar da trama, em
um momento de confissão, Dorian resolve revelar seu segredo para
Basil Hallward. O pintor se apavora ao ver que sua bela obra se trans-
formou em algo monstruoso, um reflexo da obscura alma do belo
Adônis que ele havia criado. Assustado com a reação de Basil e com
medo que seu segredo fosse divulgado, Dorian decide matar seu ami-
go da seguinte forma:

Avançou docemente passando perto de Hallward, chegando atrás deste,


apanhou a faca e voltou-se... Hallward fez um movimento, como para
levantar-se da poltrona... Dorian saltou sobre ele, enfiou-lhe a faca atrás
da orelha, cortando-lhe a carótida, rachando-lhe a cabeça contra a mesa
e desferindo-lhe golpes furiosos (WILDE, 2014, p. 181).

No trecho acima, vemos que Dorian assassina friamente seu


amigo Basil, tal atrocidade é imediatamente refletida no quadro.
Dorian percebe que a mão usada para assassinar o pintor, mostra-se no
quadro, agora suja de sangue: “Que era essa odiosa nódoa rubra, úmida
e brilhante, que ele via em uma de suas mãos, como se ela tivesse sido
salpicada de sangue?” (WILDE, 2014, p. 196). No entanto, o jovem
não se deixa perturbar, o único intuito naquele momento é achar uma
maneira de se livrar do corpo, que como citado anteriormente, é feito
com a ajuda do futuro suicida Alan Campbell.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 153


Depois do assassinato, a vida de Dorian segue seu curso normal-
mente, mas o seu não envelhecimento é notado por todos que o cer-
cam. Lorde Henry, assim como Basil fazia antes de sua morte, torna-
-se cada vez mais intrigado com as imutáveis características físicas de
Dorian, sendo assim, o questiona:

[...] conta-me baixinho como pudeste conservar a mocidade. Deves


guardar qualquer segredo, pois sou mais velho do que tu apenas dez
anos, e estou enrugado, gasto, amarelado. Tu és realmente estupendo,
Dorian! Nunca estiveste tão belo como esta noite; lembras-te o primeiro
dia em que te vi? Eras um pouco cheio e tímido, mas extraordinário.
Mudaste, certamente, não na aparência. Bem quisera que me contasses
o segredo! Para reaver a juventude, tudo eu faria no mundo (WILDE,
2014, p. 243).

Dorian não reponde diretamente aos questionamentos de Hen-


ry, mas demonstra que mesmo possuindo a eterna juventude não se
sente feliz e realizado. A partir de tal conversa, Dorian vislumbra uma
possível redenção:

Seria certo que ninguém jamais poderia transformar-se? Então sentiu


um ardente desejo de reaver a imaculada pureza de sua adolescência
rósea e branca, como uma vez Lorde Henry a definira. Agora se
convencia de haver desluzido a alma, corrompido o espírito e criado
infernais remorsos; capacitava-se de que tivera sobre os outros uma
desastrosa influência e que nisso encontrava um perverso prazer;
persuadia-se enfim de que, entre todas as vidas que haviam atravessado
a sua e ele havia contaminado, a sua era ainda a mais bela e a mais cheia
de promessas (WILDE, 2014, p. 247).

Dorian Gray percebe que fez mal a muitas pessoas, mas também
a si próprio. Nesse excerto é possível se fazer novas especulações sobre
nossa teoria que Wilde pode ter se inspirado em Lúcifer para criar sua

154 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


personagem, pois Dorian relembra que um dia foi puro e inocente, as-
sim como Lúcifer um dia também o fora, ambos se corromperam pelo
orgulho e pela soberba. Essas reminiscências levam-no à melancolia e
a questionar também o papel do pacto em sua vida:

Tudo seria irreparável? Não haveria mais esperanças para ele?... Ah! Que
tremendo momento de orgulho e de paixão, aquele em que pedira que o
retrato assumisse o peso de seus dias, enquanto ele próprio conservasse
o esplendor impoluto da eterna mocidade! Toda a sua desgraça vinha
daí! Não seria melhor que cada pecado de sua vida já tivesse vindo
acompanhado de rápida e segura punição? Há uma purificação no
castigo. A prece do homem a um Deus justo, longe de se ser: perdoai
os nossos pecados! — Deveria ser: castigai-nos pelas nossas iniquidades!
(WILDE, 2014, p. 248).

Dorian Gray sente arrependimento por seus pecados e acredita


que deveria ter sido punido por seus atos, que Deus deveria penalizar
as pessoas, pois se as mesmas pagassem pelo mal cometessem haveria
uma libertação. Acreditamos que essa provocação do escritor da obra
foi bastante perspicaz, pois nos levam a questionar um dos maiores
enigmas da fé cristã: Poderá o Diabo um dia ser perdoado por Deus?
No caso do nosso anti-herói perguntamos: A redenção de Dorian me-
rece perdão?
Dorian fica cada vez mais perturbado e acredita que sua beleza e
juventude foram as causadoras de todos infortúnios, como fica claro
na citação abaixo:

Subitamente, sentiu aversão pela sua beleza e, atirando o espelho ao


chão, esmagou os estilhaços sob os pés...! Era a sua beleza que o havia
perdido, essa beleza unida a essa mocidade, pelas quais ele tanto havia
rogado. Sim porque, sem essas duas coisas, sua vida poderia ter sido
sem mácula. A beleza só lhe fora uma máscara e a mocidade uma burla.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 155


Que era esta afinal? Um instante viridente e prematuro, uma frase de
humores fúteis, de ideias doentias... Por que a seguira?...A mocidade o
perdera (WILDE, 2014, p. 248).

Dorian sente que sem a sua juventude eterna e sua beleza tudo
poderia ter sido diferente, pois as mesmas o levaram a perdição e ao
desiquilíbrio moral e psicológico, e foram as mesmas também que o
levaram a fazer o pacto com forças malignas. Então decide mudar de
vida e se tornar uma pessoa melhor, esperando que tais atitudes se re-
fletissem no seu quadro. No entanto, tal estratagema não funcionou,
o quadro parecia ficar ainda mais tenebroso, como se o mal jamais
pudesse ser apagado e que forças ocultas, com quais ele fez o pacto,
soubessem que seu arrependimento não era sincero.
Por não ter revertido a transformação em seu retrato, Dorian se
questiona se essa vida nova que resolvera levar era um ímpeto verda-
deiro ou só mais um desejo de novas sensações. Deste modo, Dorian
reflete sobre o assassinato de Basil Hallward, fato que fez o quadro
ficar ainda mais repleto de sangue:

Confessar seu crime? Sabia ele o que isto queria dizer — confessar-se?
Era entregar-se por si mesmo à morte! Dorian pôs-se de novo a rir...
A ideia era inconcebível... Demais, se ele se confessasse, quem nele
acreditaria? Não existia o mínimo vestígio do homem assassinado;
tudo quanto lhe pertencera estava destruído; ele próprio queimara...
Os homens diriam simplesmente que ele enlouquecia... Metê-lo-iam
entre grades, se persistisse na sua história... Entretanto, era seu dever
confessar-se, sofrer a vergonha diante de todos e fazer uma expiação
pública... Havia um Deus que forçava os homens a contar seus pecados,
tanto nessa terra, como no céu. Como quer que fosse, nada poderia
purificá-lo antes dele confessar o crime... O crime!... (WILDE, 2014,
p. 250).

156 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Dorian se sente culpado e pensa em declarar seu crime. Ele reflete
que Deus faz os homens se confessarem, pois, só assim, conseguiriam
a absolvição eterna, e acredita que somente fazendo isso ele consegui-
ria se redimir de seu ato. Mas, mesmo com seu suposto arrependi-
mento Dorian permanece indiferente à morte do pintor, mostrando
novamente sua índole egoísta resolve não mais confessar o assassinato
de Basil:

Esse assassínio, porém, o perseguiria durante a sua vida inteira? Seria


ele sempre subjugado pelo passado? Deveria confessar-se?... Nunca!...
Só havia uma prova a erguer-se contra ele. Este era o seu retrato!... Ele o
destruiria! Por que o havia guardado tantos anos? Ele próprio se dará ao
prazer de ver a sua transformação e a sua velhice. Desde muito tempo,
porém abandonara esse prazer [...] Esse retrato fora-lhe como uma
consciência. Sim, havia sido a Consciência... Ele o destruiria! (WILDE,
2014, p. 250).

O breve lampejo de humanidade, e seu repentino arrependimen-


to se desfazem e seu lado perverso prevalece, o levando a destruir seu
retrato, a única testemunha de seu assassinato e também de toda a sua
perversidade:

Dorian olhou ao redor de si e percebeu o punhal com que havia ferido


Basil Hallward. Já o havia polido várias vezes, de modo que não existia a
menor nódoa. O punhal brilhava... Como havia exterminado o pintor,
assim exterminaria sua obra e tudo o que ela significava... Exterminaria
o passado, e quando esse passado estivesse morto, ele estaria livre!...
Aniquilaria o monstruoso retrato de sua alma e, livre de suas medonhas
advertências, recobraria a paz. Apunhalou o quadro! (WILDE, 2014,
p. 251).

O quadro era o reflexo de sua soturna existência, nele, além de


sua juventude, estavam marcados os seus pecados, tudo que ele fez

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 157


de ruim ou mal a ele ou a alguém foi desfigurando a sua bela figura
retratada na pintura. Deste modo, Dorian resolve destruir essa eterna
lembrança de seus erros, apunhalando o quadro, mas algo de inespe-
rado acontece:

Sentiu-se um enorme grito, acompanhado de uma queda!


Esse grito de agonia foi tão lancinante que os criados, espavoridos,
acordaram em sobressalto e saíram de seus quartos! [...] Quando os
três entraram, descobriram, suspenso na parede, um esplêndido retrato
do patrão, representando-o tal como eles sempre o haviam conhecido,
em todo o haviam conhecido, em todo o esplendor de sua estranha
juventude e de sua beleza. No assoalho, jazia um homem morto, trajado
a rigor, com um punhal no coração! ... Seu semblante estava macerado,
enrugado, repulsivo!... Somente pelos anéis conseguiram reconhecer
quem era... (WILDE, 2014, p. 251-252).

Dessa forma, o pacto maligno, que fez Dorian aproveitar sua


vida, eternamente belo e jovem é revertido. Toda a sua podridão, pe-
cados, crimes e envelhecimento finalmente recaem sobre ele, o trans-
formando em um reflexo da sua repulsiva índole. Tenório explica que:

Dorian Gray realiza o paradoxo de tentar destruir sua consciência,


de tentar destruir seu próprio retrato, imagem e semelhança de seu
espírito, imagem que se ‘arrepende’ e o convida ao arrependimento,
ao qual o personagem já não consegue mais. E matando o seu lado
feio/bom, mata também seu lado belo/mal, deixando então de existir
(TENORIO, 2013, p. 288-289).

Vemos, que, desta forma, o romance/novela do escritor Oscar


Wilde chega ao seu desfecho. Tudo que Dorian Gray sempre desejou e
o diabólico pacto o trouxe, como a beleza e a juventude eterna, se vão
no momento em que o duplo de Narciso resolve destruir as provas de

158 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


seus crimes. Ao esfaquear o seu místico quadro, o jovem não comete
um assassínio e sim um suicídio, pois todo o mal que ele fez para si e
para todos ao seu redor se voltam para o agora, não mais belo e jovem,
mas repugnante e sucumbido Dorian Gray.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando falamos do travestimento do Diabo em O Retrato de


Dorian Gray (1890), inferimos que sua presença é implícita no enredo
do romance/novela através da figura e do comportamento de Dorian
Gray e de Lorde Henry, pois são eles que evocam uma força maligna
arrebatadora que impulsiona o desenrolar trágico dos acontecimen-
tos, são os mesmos também que se tornam fontes da dor e sofrimento
para outros personagens da trama. Acreditamos assim, que esta rela-
ção entre o bem o mal, entre Deus (Basil), o Diabo (Dorian) e a Ser-
pente (Henry) resulta em trágicas consequências para os envolvidos,
pois Deus é exterminado por sua criatura, o Diabo, mas esta, ao tentar
se livrar do peso de suas ações também acaba sucumbido. A Serpente,
por sua vez, é condenada à solidão, privada da presença dos “amigos”,
fadada a envelhecer, algo que tanto temia, até que seus dias se acabem
na terra.
Consideramos, finalmente, que Dorian Gray por, exageradamen-
te, buscar a beleza e a juventude causou mal aos seus próximos, pois
ele não soube lidar com sua parte má, fazendo-a prevalecer sobre seu
lado bom. Deste modo, Dorian perde seu equilíbrio humano e se tor-
na nocivo, se comparando, desta forma, ao próprio Diabo que perde

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 159


o paraíso por buscar sempre mais poder. Por consequência, ambos
caem em desgraça, tendo, assim, que pagar por seus atos e pecados.
Entretanto, em Dorian Gray, podemos ainda ver traços de humanida-
de e bondade, pois nele pode existir arrependimento e humildade, já
para Lúcifer poderá não haver redenção.

COMO CITAR ESTE TEXTO

LIMA, D. L.; LIMA NETO, L. A. P. O Diabo travestido em O retrato de Dorian Gray


(1890): Deus, o Diabo e a serpente. In: SOARES, I. M.; LESZCZYNSKI, T. (Orgs.).
Um percurso pelas literaturas de língua inglesa. Tutóia/MA: Diálogos, 2023. p. 137-
161. https://doi.org/10.52788/9786589932796.1-7

REFERÊNCIAS

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homoeróticas no século XIX. Temporalidades - Revista Discente do Programa
de Pós-graduação em História da UFMG, Belo Horizonte, v. 2, n. 1, 2010.
ECO, U. (Org.). História da beleza. Tradução de Eliana Aguiar, 4. ed. Rio de
Janeiro: Editora Record, 2014.
GONÇALVES, A. O fenômeno do duplo em o Retrato de Dorian Gray, de
Oscar Wilde. Revista Virtual de Letras, v. 4, n. 1, 2012.
JESUS, P. de. Narciso acha feio o que não é espelho: selfie e narcisismo, uma
busca pelo eu. Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Rio de Janeiro,
Intercom, 2010.
KERA, S.; MUTRAN, M. O Teatro Inglês da idade média até Shakespeare.
São Paulo: Global Editora, 1988.
RIBEIRO, J. J. A face Humana do Diabo. São Paulo: Master Book, 1997.

160 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


ROSSI, F. S. Uma das formas do pacto com o demônio: entre a oralidade e a
escrita. Revista Athena, v. 6, n. 1, 2014.
TENORIO, P. O Retrato de Dorian Gray: a luta entre o Bem e o Mal no romance
de Oscar Wilde e na pintura de Ivan Le Lorraine Albright. Intersemiose| Revista
Digital, ano 2, n. 3, 2013.

WILDE, O. O retrato de Dorian Gray. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2014.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 161


capítulo 8

Protagonismo aroace na literatura


inglesa: uma análise queer do conto
“Regret” de Kate Chopin
Damares Suelen Ferreira do Nascimento
Lara Ferreira Silva Dias

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Vinda dos contos de fadas, “Eles viveram felizes para sempre” é,


provavelmente, uma das frases mais famosas que aprendemos quando
estamos crescendo, uma vez que é uma linda iniciação aos nossos ide-
ais românticos. Em decorrência de estarmos sempre expostos a cenas
românticas nas histórias, como em “Branca de Neve” em que a moci-
nha é salva pelo “beijo de amor verdadeiro”, entendemos que este deve
ser o curso natural da vida humana: conhecer alguém, apaixonar-se,
casar, ter uma família e viver feliz para sempre.
Esse pensamento é, de certa forma, reconfortante e certamente
é uma parte importante dos projetos de vida de muitas pessoas que
foram infectadas pelo “vírus” do romance. Entretanto, essa idealiza-
ção de uma perfeita vida heterossexualmente romântica, perpetuada
pelo imaginário social e influenciada pelas instituições de poder como

162 DOI: 10.52788/9786589932796.1-8


família e igreja, é demasiado problemática e induz nos que não encon-
tram seus “felizes para sempre” uma frustração inevitável.
Ao pensarmos sobre pessoas que não se encontram em um re-
lacionamento romântico por vontade própria, indo assim de contra
ao comportamento padrão esperado socialmente, estamos falando de
um grupo em específico que é fortemente afetado por essa cobrança
de uma vida romântica e, por consequência, sexual: as pessoas asse-
xuais.
Conhecida como comunidade Aroace1, que é ainda um campo
bem recente dentro dos estudos Queer, esse grupo é composto por
pessoas que não necessitam de relacionamentos românticos e/ou se-
xuais, e por ir contra os ideais românticos-sexuais da sociedade, so-
frem violências em vários âmbitos de suas vidas.
Ao contrário do que se pensa, as pessoas assexuais não estão co-
meçando a existir só agora. Assim como qualquer outra sexualidade,
elas sempre estiveram presente na história da humanidade. De acordo
com Coletto (2022, p. 5), estudos sobre assexualidade são feitos desde,
“no mínimo, a década de 40” e podem ser encontrados nos relatórios
Kinsey e nas pesquisas de Storms (1980), embora o termo assexualida-
de não tenha sido empregado no segundo (COLETTO, 2022).
Desse modo, atualmente estão sendo encontradas mais pessoas
assexuais devido ao avanço dos estudos Queer, além de uma crescente
popularização de comunidades online voltada para este público, pois
uma vez que tendo as nomenclaturas necessárias para identificá-las, as

1 Utilizaremos ao longo deste capítulo a abreviação em inglês Aroace, popularmente utilizada


para se referir às pessoas que são Assexuais Arromânticas, de modo a familiarizar os leitores com
os termos comumente utilizados online para se referir a esta comunidade.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 163


pessoas podem pesquisar, conhecer mais sobre sua própria sexualida-
de e encontrar grupos que as acolhem (OLIVEIRA, 2013).
Partindo do pressuposto de que pessoas Aroace sempre existiram,
esta pesquisa bibliográfica-qualitativa visa analisar o conto “Regret”
da renomada escritora estadunidense Kate Chopin de modo a investi-
gar se há a presença da assexualidade, mais especificamente, a presen-
ça da arromanticidade, nos escritos da autora, como forma de buscar
representatividade para a comunidade Aroace dentro de importantes
obras da literatura inglesa.
Para isto, baseados no questionamento “há a aparição da arro-
manticidade no conto ‘Regret’ de Kate Chopin?”, atribuímos como
objetivo geral identificar indícios de arromanticidade expostos pela
personagem Mamzelle Aurélie e de que formas eles influenciam suas
ações e sentimentos. Como objetivos específicos, pretendemos con-
textualizar alguns termos sobre sexualidade, pois são imprescindíveis
para o entendimento da análise da personagem; analisar comporta-
mentos e falas da personagem principal que sugerem sua sexualidade
e refletir acerca da solidão sofrida pela comunidade Aroace visando
compreender os sentimentos experienciados pela protagonista no fi-
nal do conto causados pela Amatonormatividade.
Este capítulo tem como aporte teórico autores como: Lang (2018),
Coletto (2022), Francis (2018), Granger (2020), Oliveira (2013) e Stu-
cki (2018), e foi dividido em duas seções principais. Na primeira, serão
contextualizados os termos sexualidade, assexualidade e amatonorma-
tividade, que são essenciais para o entendimento da análise proposta.
Na segunda seção, será feita a análise sob uma perspectiva arromântica
da personagem Mamzelle Aurélie, protagonista do conto “Regret” de

164 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Kate Chopin. Por fim, serão apresentadas considerações acerca da im-
portância deste trabalho para os estudos Queer brasileiros.

SEXUALIDADES, ASSEXUALIDADE E AMATONORMATIVIDADE

A noção de complexidade emocional tem implicações de longo


alcance para a compreensão das emoções e do nosso bem-estar. Desta
forma, trazemos o termo sexualidade, que compreende as maneiras
em que humanos sentem atração sexual. A sexualidade mais habitu-
al é a heterossexual, que diz respeito a pessoas de gêneros opostos se
atraindo sexualmente. Existe também a homossexualidade, que con-
diz sobre pessoas do mesmo gênero se atraindo (homens amam ho-
mens, mulheres amam mulheres).
Embora as sexualidades mencionadas acima sejam as mais comu-
mente encontradas e faladas, existe uma infinidade de outras, pois a
sexualidade humana é fluida. Elas são representadas pelo acrônimo
LGBTQIA+, que engloba tanto sexualidade (homosexual/pansexu-
al) quanto gênero (cisgênero/transgênero).
Quando se trata de orientação sexual, precisamos rememorar
que ela “define apenas por quem as pessoas são atraídas, e apenas isto;
não descreve nenhum outro aspecto da sexualidade” (LANG, 2018,
p. 8, tradução nossa).2 Dessa forma, orientação sexual sozinha não é
suficiente para a análise deste trabalho, pois pretendemos observar de
que formas a personagem sente ou não atração romântica, não sobre

2 “defines who folks are attracted to, and that is it; they don’t describe any other aspects of
sexuality” (LANG, 2018, p. 8).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 165


quem ela sente. Por isso, restringimos nossa análise nos estudos da co-
munidade Assexual.
Na generalidade, quando pesquisamos sobre Assexualidade, en-
contramos que se trata da “falta absoluta de atração sexual” (LANG,
2018, p. 9, tradução nossa)3. Essa é uma concepção antiquada e muito
problemática, uma vez que essa sexualidade é fluida e tem muitas dife-
rentes formas de aparição no seu espectro.
Por este motivo, atualmente consideramos que a Assexualidade
se trata da pouca, condicionada ou inexistente atração sexual. Isso im-
plica que uma pessoa assexual pode não ter o mínimo interesse em
sexo, mas pode estar interessada se tiver alguma condição específica,
o que as separa em subgrupos. Consideramos assim a assexualidade
como um termo guarda-chuva para expressar as formas em que as pes-
soas sentem atração sexual (LONG, 2018; COLETTO, 2022).
Um dos subgrupos dentro da Assexualidade é a Demissexuali-
dade. Essas pessoas sentem atração (ou atração mais intensa) apenas
se sentirem sentimentos românticos pela outra pessoa (OLIVEIRA,
2013). Outro subgrupo é a Arromanticidade. Pessoas neste espectro
da Assexualidade não sentem atração romântica, o que não os impede
de ter uma vida sexual ativa se desejarem.
É importante ressaltar que gênero não é relevante para nossa
análise da Assexualidade, uma vez que o foco é direcionado para os
sentimentos da atração sexual, e não o objeto da atração. Além disso,
a Demissexualidade e a Arromanticidade (é um termo cunhado pela
professora de filosofia Elizabeth Brake, da Universidade do Estado do

3 “the absolute lack of sexual attraction” (LANG, 2018, p. 9).

166 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Arizona, para capturar suposições sociais e normalizações sobre o ro-
mance e a romanticidade) são uma característica dentro da identidade
Assexual, e não uma sexualidade em si. Por este motivo, é possível
ser uma pessoa gay e demissexual (demi-homossexual), lésbica e aro-
mântica (aro-lésbica), assim como outras variações dos subgrupos da
assexualidade que não serão analisados neste trabalho por não serem
importantes para a análise proposta.
Falando especificamente sobre a comunidade Aroace, que é o
foco principal deste trabalho, assim como tudo que destoa da norma
padrão é rejeitado pela sociedade, com a comunidade Arromântica
Assexual (Aroace) não seria diferente. Isso acontece devido aos ideais
românticos perpetuados pela Amatonormatividade, que de acordo
com Granger (2020, p. 3, tradução nossa):

É similar ao termo heteronormatividade, mas enquanto heteronorma-


tividade assume a heterosexualidade como norma, a amatonormativi-
dade assume o acoplamento romântico como norma. Os dois intimam
pessoas que saiam da norma a se explicarem. Ao invés de aceitar que
alguém é gay ou não interessado em relações românticas, esses ideais
normativos fazem com que os que não se enquadram neles se sintam
estranhos e precisando se encaixar de alguma forma. Atos simples que
violam a amatonormatividade podem incluir jantar sozinho por esco-
lha, morar com um amigo, ou não procurar por romance.4

Destarte, a Amatonormatividade remete-se ao fato de que a ideia


do amor romântico seja superestimada ao ponto de inferiorizar outras

4 The term is similar to heteronormativity, but where heteronormativity assumes heterosexuality


to be the norm, amatonormativity assumes romantic coupling to be the norm. Both require
people who fall outside the projected ideal to explain themselves. Instead of accepting some
people are gay or not into romantic relationships, these normative ideals make people who do
not fit them seem strange and needing to fit the ideal in some way. Simple acts that would be a
violation of amatonormativity could include dining alone by choice, cohabitating with a friend,
or not searching for romance (GRANGER, 2020, p. 3).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 167


formas de expressão de amor. Como mencionado anteriormente, pes-
soas Aroace não precisam de amor romântico para se sentirem felizes
e realizadas.
Isso não deveria ser um problema, mas devido a imposição da
amatonormatividade de que relacionamentos românticos devem ser
uma prioridade, as pessoas Aroace são muitas vezes classificadas como
frias e incapazes de amar, o que gera problemas psicológicos pelo fato
de os demais relacionamentos deste grupo não serem validados como
significativos (GRANGER, 2020).
Pessoas Aroace chegam até mesmo a sofrer violência de membros
da própria comunidade LGBTQIA+, por não compactuarem com o
desejo coletivo de se relacionar romanticamente. A principal alegação
é de que sexualidade é baseada em gênero, e o fato de alguém querer
ou não se relacionar sexualmente ou romanticamente não merece o
título de sexualidade.
Essa invalidação acontece não só com a comunidade Assexual,
mas com muitas outras pelo fato de serem diferentes da maioria acei-
tável dentro das minorias. Por exemplo, mulheres bissexuais por mui-
to tempo vêm sofrendo violência ao terem a sexualidade questionada
e atacada por mulheres lésbicas que não aceitam “dividir” o corpo das
mulheres bissexuais com outros homens (STUCKI, 2018).
Stucki (2018), em sua tese de mestrado, aborda como essa inva-
lidação da Assexualidade, não só pela sociedade, mas também pela
própria comunidade LGBTQIA+, que deveriam ser os maiores alia-
dos devido ao fato de serem em suma minoria sociais, afetam a vida
de estudantes ao se sentirem isolados de todos, causando problemas
psicológicos, violência simbólica e muitos outros:

168 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Pelo fato de espaços queer usarem vocabulário baseados em identidade,
eles podem criar limites com a linguagem que acabam excluindo outros.
As mulheres bissexuais tem sentido um limite identitário similar vindo
da comunidade lésbica. Isso gerou um debate para avaliar se as pessoas
bissexuais são ‘suficientemente queer’ para serem incluídas nos espaços
queer (Canning, 2015). Frequentemente as identidades assexuais
e arromânticas não são incluídas no acrônimo LGBTQIA+. Para
estudantes como eu e meus amigos que sentem fortemente que não são
parte da comunidade LGBTQIA+, ver o ‘A’ excluído do acrônimo ou
definido como A de ‘aliados’ envia uma mensagem que não somos bem
vindos (STUCKI, 2018, p. 37, tradução nossa, grifos do autor).5

Como visto anteriormente nesta seção, a comunidade Assexual


sofre ainda muitos ataques em relação a seu status como sexualidade
por não entrar em consenso com o comportamento da maioria dentro
da comunidade LGBTQIA+ (FARIAS, 2018), sendo necessário assim
que mais pesquisas sobre esta comunidade sejam feitas de modo a con-
tribuir para a desconstrução do imaginário social negativo sobre ela.
Portanto, na seção seguinte será apresentada a análise da prota-
gonista do conto de Kate Chopin sob as lentes da Arromanticidade,
visando expor como a glorificação do romance leva ao errôneo e peri-
goso entendimento de que outras formas de amor como o de amiza-
des, pets, plantas, família de nada valem. Mas mais do que isso, objeti-
vamos demonstrar que a Assexualidade sempre existiu e é válida ao ser
encontrada em produções literárias em épocas nas quais ainda não era

5 As queer spaces use identity-based vocabularies, they can create these boundaries with our
language that can exclude others. There have been similar identity boundaries felt by bisexual
women within the lesbian community. This created a debate on whether bisexual people are
“queer enough” to be included in queer spaces (Canning, 2015). Oftentimes, asexual and
aromantic identities are not included within the LGBTQIA+ acronym. For students like me
and my friends who feel so strongly that they are a part of the LGBTQIA+ community, to see ‘A’
excluded from the acronym, or defined as ‘allies’ sends a message to us that we are not welcome
(STUCKI, 2018, p. 37, grifos do autor).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 169


possível ser identificada corretamente devido ao fato de não termos
conhecimento sobre o termo correto.

PROTAGONISMO AROACE EM “REGRET” DE KATE CHOPIN

De acordo com os editores do website “The Kate Chopin Inter-


national Society”, Kate Chopin foi uma autora estadunidense que pu-
blicou dois romances e inúmeros contos com protagonismo feminino
que, muitas vezes, foram motivos de escândalo entre a sociedade. Por
este motivo seu trabalho não foi bem aceito pelos críticos na sua épo-
ca, entretanto, atualmente Chopin é muito respeitada e pesquisada
para análises feministas em sua maioria.
Em “Regret”, um conto escrito por Kate Chopin em 1894 e pu-
blicado pela primeira vez em 1895, a autora narra a história de Mam-
zelle Aurélie, uma senhora de 50 anos que nunca se casou ou cons-
truiu família e viveu a por muitos anos tendo a companhia de seu
cachorro, rotina e religião.
Vários estilos são empregados por Kate Chopin para realizar um
interesse sustentado de seus leitores na história. Para começar, a auto-
ra emprega um título muito cativante e revelador. De certa forma, o
título, “Regret”, ou “arrependimento” em português, é inicialmente
recebido com estranheza, uma vez que as seções iniciais da história
retratam uma mulher que parece ser indiferente ao conceito de casa-
mento e vida familiar. No entanto, nada sugere que sua vida é triste
ou conturbada para justificar a escolha do título, como veremos pos-
teriormente neste trabalho.

170 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


A história se inicia em um dia inesperado em que uma nova vizinha
que morava um tanto distante chega à casa de Mamzelle Aurélie com
suas quatro crianças. A mulher foi solicitada a ir cuidar de sua mãe que
estava profundamente doente e seu marido não estava em casa. Logo,
sem outra alternativa aparente, Mamzelle Aurélie recebeu as crianças
em sua casa durante o período que a mãe precisou ficar ausente.
A velha senhora não tinha filhos e estava morando sozinha por
muito tempo, o que implica que ela não seria capaz de cuidar das
crianças de forma satisfatória, pois além dela própria, a mulher só sa-
bia cuidar de seus animais, como pode ser observado na cena a seguir:

Se as responsabilidades de Mamzelle Aurélie tivessem começado e


acabado ali, elas poderiam ter sido facilmente dispensadas, visto que
sua despensa estava fortemente desprovida para uma emergência desse
patamar. Mas as crianças não são porquinhos; elas precisam e demandam
certa atenção que eram demasiado inesperadas por Mamzelle Aurélie, e
pelas quais ela era muito despreparada para dar (CHOPIN, 1895, p. 2,
tradução nossa).6

Como consequência de suas habilidades precárias como “mãe”,


depois de muito rirem dela, as crianças lentamente ajudaram e ensina-
ram à velha senhora as coisas que gostavam e a forma que preferiam
ser tratadas, o que ela prontamente se dispôs a aprender, e às quais
grande parte aprendeu observando os comportamentos das crianças
em resposta às suas ações.

6 If Mamzelle Aurélie’s responsibilities might have begun and ended there, they could easily
have been dismissed; for her larder was amply provided against an emergency of this nature.
But little children are not little pigs; they require and demand attentions which were wholly
unexpected by Mamzelle Aurélie, and which she was ill prepared to give (CHOPIN, 1895, p. 2).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 171


Com o passar do tempo, o relacionamento que inicialmente fora
indesejado, gradualmente se transformou em uma recíproca e linda
relação de amor, cuidado e carinho. Mamzelle Aurélie, que por mui-
tos anos não teve pessoas próximas a ela, estava enfim aprendendo
como a afeição humana pode fazer bem para o coração, e apesar do
trabalho que as crianças lhe davam, ela estava feliz em tê-las por perto.
Infelizmente para ela, depois de duas semanas, a mãe das crianças
retornou e, como esperado, levou as crianças para casa. Nos primeiros
momentos, Mamzelle Aurélie não demonstrou sua tristeza, talvez por
não ter compreendido o que de fato estava sentindo. Contrastando
com sua confusão, aos poucos seu corpo e mente a levaram a um co-
lapso causado pela profunda tristeza e sentimento de perda que a as-
solou, mostrado na cena a seguir:

Ela entrou em casa. Tinha muito trabalho a aguardando, já que as


crianças deixaram uma triste desordem para trás; mas ela não tinha em
momento algum instruído-as para organizar. Mamzelle Aurélie sentou-
se ao lado da mesa. Ela deu uma lenta olhada pelo cômodo, o qual as
sombras da noite estavam rastejando e se aprofundando em torno de
sua figura solitária. Ela deixou sua cabeça cair sobre seu braço dobrado,
e começou a chorar. Oh, mas como chorou! Não suavemente, como as
mulheres geralmente fazem. Ela chorou como um homem, com soluços
que pareciam rasgar em pedaços sua própria alma (CHOPIN, 1895, p.
3, tradução nossa).7

7 She turned into the house. There was much work awaiting her, for the children had left a
sad disorder behind them; but she did not at once set about the task of righting it. Mamzelle
Aurélie seated herself beside the table. She gave one slow glance through the room, into which
the evening shadows were creeping and deepening around her solitary figure. She let her head fall
down upon her bended arm, and began to cry. Oh, but she cried! Not softly, as women often do.
She cried like a man, with sobs that seemed to tear her very soul (CHOPIN, 1895, p. 3).

172 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Essa reação devastadora da personagem foi precisamente a razão
pela qual escolhemos este conto para analisar. O desespero da mulher
perante uma grande perda deixa uma forte impressão no leitor, mas
não só isso. Com esta reação, juntamente com a contextualização teó-
rica feita ao longo deste trabalho, podemos inferir duas coisas: a possí-
vel sexualidade de Mamzelle Aurélie e os impactos dessa sexualidade
na vida da personagem.
Em relação à sexualidade de Mamzelle Aurélie ao longo da nar-
rativa, sugerimos que ela é uma pessoa Aroace, tendo em vista que ela
nunca sentiu amor romântico e, por isso, recusou propostas de casa-
mento quando mais nova, como pode ser observado na seguinte cena:
“Mamzelle Aurélie nunca pensou em se casar. Ela nunca se apaixo-
nou. Quando tinha vinte anos ela recebeu uma proposta de casamen-
to, a qual ela prontamente recusou, e quando tinha cinquenta anos,
ela ainda não tinha se arrependido dessa decisão” (CHOPIN, 1895, p.
1, tradução nossa).8
Pelo fato de estarmos analisando prioritariamente a assexualida-
de da personagem, o fato de ela ser heterossexual, homossexual, bisse-
xual ou pansexual não tem relevância, uma vez que concluímos que a
personagem não precisa e até se recusa a ter qualquer relacionamento
que envolva amor romântico, o que vai contra os ideais da amatonor-
matividade presentes na sociedade em que vive - século XIX.
Em relação aos impactos dessa sexualidade na vida da persona-
gem, a protagonista está experienciando uma devastadora epifania:

8 “Mamzelle Aurélie had never thought of marrying. She had never been in love. At the age of
twenty she had received a proposal, which she had promptly declined, and at the age of fifty she
had not yet lived to regret it” (CHOPIN, 1895, p. 1).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 173


embora ela nunca tenha precisado de amor romântico, ela precisava
fortemente do amor de uma família, mais especificamente, do amor
de seus próprios filhos, o que já não será possível, uma vez que as pos-
sibilidades de um casamento e passar por uma gestação aos cinquenta
anos são muito reduzidas.
Ademais, após ter vivido por longos anos sozinha, é esperado que
Mamzelle Aurélie voltasse à sua rotina de quando as crianças não a
conheciam sem grandes dificuldades. No entanto, podemos observar
que após a partida das crianças, a senhora se encontra em um mo-
mento de letargia, em que não consegue focar em nada que não seja o
quanto a ausência dos pequeninos é perceptível e assustadora.

A excitação tinha acabado, e eles tinham partido. Quão quieto foi


quando eles partiram! [...] Ela já não podia ouvir o chiado e rangido das
rodas. Mas ela podia fracamente ouvir as vozes estridentes e alegres das
crianças. (CHOPIN, 1895, p. 3 tradução nossa).9

Esse sentimento de solidão, de que algo está faltando, que não


será possível ser feliz novamente, é um sentimento familiar entre a co-
munidade Aroace, uma vez que por não sentir atração romântica, é
comum que se vejam impossibilitados de formar uma família. Logo,
pensam não poder ter filhos.
Long (2018, p. 29, tradução nossa), aponta um dos motivos pelos
quais essa comunidade sofre com essa angústia: a Amatonormativida-

9 The excitement was all over, and they were gone. How still it was when they were gone! [...]
She could no longer see the cart; the red sunset and the blue-gray twilight had together flung a
purple mist across the fields and road that hid it from her view. She could no longer hear the
wheezing and creaking of its wheels. But she could still faintly hear the shrill, glad voices of the
children (CHOPIN, 1895, p. 3).

174 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


de. Este conceito está relacionado à introdução deste trabalho em que
mencionamos as influências dos contos de fadas na criação dos ideais
românticos. Ele explica a crença humana de que seres humanos serão
felizes (ou mais felizes) apenas quando estão em uma relação român-
tica, como as que crescemos observando em contos de fadas, filmes,
livres, entre outros.

Amatonormatividade atribui um valor exclusivo, intrínseco às relações


românticas, implicando que outros relacionamentos não são tão
importantes por não serem românticos. Isso trivializa as amizades,
relações familiares, e a solidão, e nos leva a sacrificar essas relações em
detrimento das românticas. Em adição, a amatonormatividade nos
encoraja a seguir a monotonia e o roteiro diático que promove a crença
que parceiros românticos são nossas outras metades, que eles nos
completam, e que eles sozinhos tornarão nossas vidas melhores. Esse
sistema de normatividade torna difícil imaginar uma vida feliz sem a
presença do romance, e cria uma pressão esmagadora para acharmos um
par romântico.10

Levando a explicação de Long (2018) em consideração, podemos


inferir que, devido aos ideais românticos perpetuados pela sociedade
por meio das influências da amatonormatividade, uma das razões pelas
quais Mamzelle Aurélie se sentiu tão desesperada, sentiu tamanha ago-
nia no âmago de seu ser após a experiência com as crianças, foi porque
na juventude, ela pensou que só poderia ser mãe se casasse com um ho-
mem, o que a levou a se arrepender profundamente de não ter casado.

10 Amatonormativity assigns an exclusive, intrinsic value to romantic relationships, implying


that other relationships are not as important because they are not romantic. This trivializes
friendships, family relationships, and solitude, and pushes us to sacrifice these relationships for
romantic relationships. Additionally, amatonormativity encourages us to follow a monogamous
and dyadic script that fosters the belief that romantic partners are our other halves, that they
complete us, and that they alone will make our lives better. This system of normativity makes it
difficult to imagine a happy life without romance, and creates an enormous amount of pressure
to find a romantic partner.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 175


Agora, Mamzelle Aurélie viverá o resto de seus dias de luto por
todos os anos que ela poderia ter passado criando e cuidando de seus
próprios filhos, mesmo que significasse se sentir enojada ao ser amada
romanticamente pelo marido. Este final inesperado causa forte im-
pacto no leitor, pois ao longo do conto a atmosfera se apresenta de
forma leve, divertida e amável, porém nas últimas linhas do final, a
personagem sofre indescritivelmente por algo que nunca terá.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto anteriormente, a Amatonormatividade ou amato-


-normatividade é uma força poderosa que nos força a acreditar que
relações românticas são uma grande e necessária realização da nossa
vivência como seres humanos. Portanto, pessoas que não sentem esse
desejo de se relacionar romanticamente são tratadas como frias, solitá-
rias e de coração fechado, o que não é necessariamente verdade.
Com as discussões propostas neste trabalho, foi possível concluir
que há sim um ideal romântico em “Regret”. No entanto, ele foi tra-
balhado como algo nocivo, uma vez que por causa dele, a personagem
principal sofre uma dor interminável ao final do conto que poderia
ser pensado como um processo de luto. Não por alguém que morreu,
mas por toda uma vida que ela perdeu como mãe devido às influências
fortes e impositoras da amatonormatividade.
Observa-se ainda na obra que Kate Chopin consegue persuadir
os leitores a entender a natureza das lutas emocionais de uma mulher
que opta por não se casar em pleno século XIX. Uma das maneiras

176 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


pelas quais a autora atinge seus objetivos é empregando uma série de
estilos literários e dispositivos estilísticos que discutimos brevemente
em nosso trabalho.
É notável que a autora consegue capturar a mente e as emoções
dos leitores. Isso é possível ao passo que o enredo da história vai se
estruturando em torno de Mamzelle Aurélie como base da narrativa.
Ao escrever logicamente, observamos que Chopin expressa suas refle-
xões femininas a partir dos diversos estilos de linguagem do texto, a
começar pelo título que a princípio não soa coerente com a narrativa.
A partir daí, o leitor é imediatamente compelido a ler mais sobre
a mulher solitária e suas experiências cotidianas com os quatro filhos
de sua vizinha enquanto eles passam duas semanas juntos, mesmo
quando Mamzelle Aurélie afirma odiar e não saber como se portar
com crianças do início até o meio do tempo em que passa com elas.
Em relação à sexualidade da personagem, pela falta de demons-
trações de sentimentos românticos ao decorrer do conto, podemos in-
ferir que Mamzelle Aurélie é uma pessoa arromântica. Sua sexualida-
de, pelo fato de a personagem não ter conhecimento da existência da
arromanticidade, nem ter contato com pessoas iguais a ela, a causa um
grande sofrimento e arrependimento em decorrência das influências
da amatonormatividade que a acompanharão pelo resto de seus dias.
Nas últimas linhas do conto, o leitor consegue enfim compre-
ender a razão da escolha do título “Regret” (arrependimento), uma
vez que embora sua vida parecesse boa e cômoda, ao final, Mamzelle
Aurélie percebe que na verdade se trata de uma vida vazia e solitária
na qual nunca mais será capaz de recuperar o tempo perdido em que
poderia ter se tornado mãe. Logo, o tipo de amor que a personagem

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 177


busca desesperadamente nunca foi o amor romântico, mas sim o amor
parental.
Considerando o poder que a literatura tem como agente ideoló-
gica, decidimos analisar este conto da Kate Chopin para expor como
temáticas importantes e modernas como sexualidade, amatonorma-
tividade e muitas outras podem sim ser encontrados em obras literá-
rias “antigas”, e que devem ser estudados de forma a entender como
a sexualidade humana é fluida e que essas questões estão presentes na
existência humana mesmo antes de termos os rótulos corretos para
entendê-las.
Por fim, esperamos com este trabalho despertar o interesse em
pesquisadores brasileiros em procurar novas possibilidades de inter-
pretação sobre a Assexualidade e os grupos que a compõem nos con-
tos canônicos de língua inglesa, pois as pesquisas Queer com enfoque
nesta sexualidade ainda são muito recentes, tendo assim muito a ser
explorado entre as pesquisas brasileiras. Ademais, com mais pesquisas
sendo feitas acerca das sexualidades que são pouco conhecidas pela
sociedade e a popularização dessas discussões, será possível evitar que
tragédias como a de Mamzelle Aurélie continuem a acontecer.

COMO CITAR ESTE TEXTO

NASCIMENTO, D. S. F.; DIAS, L. F. Protagonismo aroace na literatura inglesa: uma


análise queer do conto “Regret” de Kate Chopin. In: SOARES, I. M.; LESZCZYNSKI,
T. (Orgs.). Um percurso pelas literaturas de língua inglesa. Tutóia/MA: Diálogos,
2023. p. 162-179. https://doi.org/10.52788/9786589932796.1-8

178 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


REFERÊNCIAS

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FARIAS, Igor Sammy da Costa Jurema. Identidades G ­ ênero, Sexual e
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Internacional Fazendo Gênero 10, 2013, Florianópolis. Anais eletrônicos do
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10. Florianópolis, 2013. p. 1-10.
STUCKI, Elijah G. Compulsory Sexuality and Amatonormativity in Higher
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Science Thesis, Oregon State University, 2018. https://ir.library.oregonstate.
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THE Kate Chopin International Society. Biography. 2022. Disponível em:
https://www.katechopin.org/biography/. Acesso em 25 set 2022.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 179


capítulo 9

O espaço da mulher na literatura


policial: uma reflexão sobre a
personagem Josephine,
de A casa torta, de Agatha Christie
Taynara Leszczynski
Isabelle Maria Soares

REFLEXÕES INICIAIS

Ao pensarmos na estrutura de uma narrativa policial, seja de um


conto ou de um romance, logo nos vêm à mente crimes minuciosa-
mente elaborados por vilões perversos, que atacam vítimas inocentes
e frágeis, mas que são capturados e desmascarados por um detetive
eficiente no fim da trama. É possível afirmar que esse modelo tem o
seu marco inicial no ano de 1841, com a publicação do conto “Os
assassinatos da Rua Morgue”1, do escritor norte-americano Edgar
Allan Poe (1809-1849).

1 “The Murders in the Rue Morgue”, também traduzido para o português por algumas editoras
como “Os crimes da Rua Morgue”.

180 DOI: 10.52788/9786589932796.1-9


Nesse contexto, entende-se que há três posições fundamentais
na literatura policial: a de criminoso e de detetive, tradicionalmente
ocupadas por personagens homens, e a de vítima, em grande número,
protagonizada por mulheres. Assim, desde a inauguração desse gêne-
ro literário a partir do conto de Poe, temos nele um reflexo da visão es-
tereotipada que a sociedade patriarcal, em sua maioria, tinha do sexo
feminino como frágil e submisso.
Além do mais, mesmo que o acontecimento principal do conto
de Poe tenha sido o assassinato de duas mulheres, o foco não é direcio-
nado a elas, mas sim ao detetive Auguste Dupin2 e às suas qualidades,
em especial, à capacidade de análise “inigualável” dele. Em outras pa-
lavras, na história, destaca-se uma suposta superioridade dessa figura.
Dupin é altamente idealizado, tratado como um gênio que tem habi-
lidades muito elevadas, enquanto a mãe e a filha, mortas brutalmente,
ficam em um segundo plano.
Outra escritora de suma importância para a literatura policial é
Agatha Mary Clarissa Christie (1890-1976), popularmente conhecida
como Agatha Christie ou ainda como a “dama do crime”. Diferente-
mente de Poe, ela traz a personagem mulher em diferentes posições,
demonstrando assim que ela não é uma vítima em todas as histórias de
crime, como também pode ser a criminosa ou a detetive. Desse modo,
a escritora britânica diversifica o papel da mulher em suas narrativas,
como podemos ver, por exemplo, a partir da personagem Josephine,

2 Auguste Dupin é considerado o primeiro detetive da literatura. Ele aparece na famosa trilogia
de Poe, composta pelos contos: Os assassinatos da Rua Morgue (1841), O mistério de Marie
Rogêt (1842) e A carta roubada (1844). Ele foi uma referência para outros detetives literários,
como por exemplo, Sherlock Holmes, de Conan Doyle e Hercule Poirot, de Agatha Christie.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 181


de A casa é torta3, livro publicado primeiramente em 1949, que será
o foco de análise neste capítulo, a fim de trazer uma reflexão sobre os
espaços ocupados pelas personagens mulheres na literatura policial.
A casa torta é um dos livros mais consagrados da autora, tanto
que, em inúmeras entrevistas e conversas, ela o destacou como a sua
produção favorita. Christie tem uma obra bastante vasta, dividida
entre contos, romances e peças teatrais, nos quais reafirma o papel
multifacetado da mulher. Nesse contexto, a autora desmistifica os pa-
radigmas e desconstrói estereótipos, colocando a mulher em um es-
paço que histórica e tradicionalmente não era visto como dela. E essa
ascendência de uma minoria a uma posição de destaque pode ser lida
como uma ruptura.

AS FACES DE JOSEPHINE

Agatha Christie constrói a personagem Josephine acoplando


nela as três esferas do romance policial, tendo em vista que a jovem,
aparentemente, está tentando desvendar a morte de seu avô (face de-
tetive), até que é encontrada desmaiada com marcas de golpe na ca-
beça (face vítima). No fim da história, descobrimos que, na verdade,
Josephine era a assassina (face criminosa) e que ela havia ferido a si
mesma em prol de forjar uma álibi e manipulado todos.
Vê-se que a personagem de Agatha Christie é construída de
forma bastante complexa, haja vista que ela assume diversos papéis
dentro do romance. Observa-se, nesse contexto, que a obra funciona

3 Crooked house.

182 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


como uma “metaficção” ou “metaliteratura”, entendendo esse concei-
to como adjetivo de um texto literário que revela e expõe o seu próprio
funcionamento. A metaficção em A casa torta é construída a partir
dos gestos de Josephine. Enquanto uma personagem fictícia envol-
ta em uma história de crime, ela faz parte da narrativa policial, e, ao
mesmo tempo, percorre toda a trama acompanhando a investigação e
explicando em seu diário como é que se constrói uma história policial,
como se estivesse do lado de fora. Com isso, Agatha Christie cria certo
efeito ilusório sobre essa personagem, fazendo com que ela transite
pela história, mas também, por fora dela, ao lado do leitor.
Josephine interpreta o papel de detetive, mesmo sendo a assassina
e tendo plena consciência disso. No momento em que se posiciona
como investigadora, ela parece esquecer de todos os seus outros atos e
lugares. Além disso, ela também finge ser a vítima, a fim de despistar
suspeitas. Com isso, destaca-se não somente a múltipla representação
da mulher nessa personagem, mas, principalmente, o poder que ela
administra através de seus truques e encenações. Por meio dela, vemos
transitar a ideia de controle. Ela escreve em seu diário como quer que a
história seja feita e ela realmente a faz. Há aqui uma inversão de papéis
em contraste com o já mencionado conto de Poe, por exemplo, pois
o foco dessa história está na mulher, em todas as esferas. Inclusive,
quando ela está exercendo as atividades de detetive, a sua inteligência
também é exaltada, tal qual era a de Auguste Dupin.
O livro A casa é torta é narrado por Charles, um jovem que tem
como intenção se casar com Sophia, irmã de Josephine. Contudo, sua
amada está bastante abalada com a morte de seu avô e relata a Charles
que só irá se casar quando tudo ficar esclarecido, pois crê que o que

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 183


houve foi um assassinato e o pior: cometido por uma familiar, provavel-
mente, um dos que vivem com ela na mansão conhecida como Crooked
house (traduzido como: A casa torta). Não por acaso, Charles decide
investigar o caso a fim de poder ficar com Sophia logo. No entanto, de-
para-se com um cenário no qual todos são suspeitos e muitas mentiras
e mistérios parecem estar debaixo do tapete. A família da esposa que
tanto almeja é bastante peculiar, com ênfase em sua futura cunhada,
Josephine, uma criança de aproximadamente doze anos que é apaixo-
nada por histórias de detetive e decide “ajudar” Charles, investigando e
escrevendo tudo no diário que ela carrega para todos os cantos.
O que ninguém esperava é que ela era a grande assassina. A ga-
rota envenenou o seu avô porque ele não a deixava ir às aulas de balé,
afirmando que ela era muito “desajeitada” para um arte tão sensível.
O crime cometido por ela só é descoberto porque ela o descreve em
seu diário, do contrário, é muito provável que jamais fosse revelado.
Quando, por acaso, Charles encontra o caderno de Josephine, uma
surpresa vem à tona:

Hesitei por um segundo, depois entreguei a carta a Sophia. Juntos,


nós abrimos novamente o pequeno livro preto de Josephine – Hoje
eu matei vovô – Viramos as páginas. Era uma composição espantosa.
Interessante, eu imaginei, para um psicólogo. Exibia, com terrível
lucidez, a fúria de um egoísmo frustrado. O motivo do crime estava
escrito ali, lamentavelmente infantil e inadequado – Vovô não me quer
deixar estudar balé então eu resolvi que eu vou matar ele. Então nós
iremos para Londres e mamãe não vai importar-se que eu faça balé
(CHRISTIE, 1983, p. 208, grifo nosso).

Nota-se que nessa história quem ocupa o papel de vítima prin-


cipal é o homem. Ele representa o corpo dominado. Essa troca de

184 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


posições pode ser vista como um gesto de reação e de contestação.
Essa escrita pode causar até certo estranhamento e essa sensação de
desconforto ou de surpresa pode ser vista como um eco de uma des-
continuidade. Dessa maneira, observamos que o papel de Josephine
rompe e provoca. O espaço de vítima, dado a mulher, só é contestado,
portanto, a partir do momento que surge uma escrita “de dentro”, ou
seja, quando uma mulher, no caso Agatha Christie, escreve e inscreve
suas personagens mulheres na literatura policial.
Nesse sentido, a pesquisadora brasileira, Regina Dalcastagne, em
seu artigo “O lugar da fala” (2012), destaca que o silêncio dos margina-
lizados é constantemente coberto por vozes que buscam falar em seu
lugar. Considerando a mulher como uma personagem à margem da
investigação, especialmente pelo estereótipo tradicionalmente embu-
tido no romance de que a mocinha é salvada pelo herói, observa-se que
a sua voz é, quase sempre, calada. Com isso, quando Agatha Christie
coloca Josephine no centro do romance policial, podendo representar
todos os papéis do círculo investigativo, ela não só promove uma de-
mocratização literária como também uma transição do controle do
discurso pautado na legitimidade da intelectualidade da personagem.
Segundo a pesquisadora Josefina Ludmer (2002, p. 332), “as
[mulheres] que matam formam parte de uma constelação de novas re-
presentações femininas, mas se diferenciam nitidamente das demais.
São o reverso ou o contraste das vítimas”. Nesse contexto, considera-
-se que Josephine cabe muito bem dentro dessa postulação. Ela revela
mais do que a sua capacidade intelectual elevada, como também a sua
frieza e perversidade para lidar com o assassinato.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 185


Nas poucas narrativas policiais em que a mulher aparece enquan-
to assassina, vê-se que, em grande parte delas, ela é representada como
alguém que cometeu o crime sem calcular antes, isto é, não foi preme-
ditado, mas sim fruto de uma situação ao acaso em que agiu por im-
pulso. Assim, ela é descoberta por não saber como lidar com a situação
e por suas atitudes suspeitas. Porém, Josephine foge desse padrão, ela
sabe exatamente como agir, fingir e enganar. Em nenhum momento
apresenta arrependimento e muito menos medo de ser descoberta.
Muitas das vezes, no campo ficcional, quando a mulher mata,
dificilmente trata-se de um crime vazio, mas sim de uma vingança ou
um castigo que responde a um crime anterior. Portanto, um crime
é castigado com outro crime. Dessa maneira, Ludmer (2002) apon-
ta que o delito feminino é, quase sempre, justificado. No caso de Jo-
sephine, a motivação do assassinato foi o seu avô não ter permitido ela
estudar balé, pois ele a achava estranha e por isso preferia que ela per-
manecesse em casa, para não causar problemas na sociedade. Porém,
ela causou problemas e, justamente, a ele.
O modo escolhido para matá-lo foi o veneno colocado no frasco
do remédio do idoso, de forma que o dia e horário da morte foi extre-
mamente calculado, bem como em quem a culpa recairia. Percebe-se
que o crime cometido detalhadamente constrói uma história mais
rica e capaz de entreter o leitor. Nesse sentido Mcnab enfatiza que:

As mulheres que matam são mais excitantes e têm muito mais espaço
na mídia. Não se trata de crimes óbvios e brutais, são mais sutis, como
venenos numa comida cuidadosamente preparada, a dose incorreta de
algum remédio receitado, todos no campo doméstico (MCNAB apud
LUDMER, 2002, p. 372).

186 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Portanto, ao referir às grande assassinas, o autor evidencia que os
seus crimes são os mais interessantes pelo fato de serem bem pensados
e sublinha o veneno como um elemento comum a essa esfera. A escri-
tora norte-americana Tori Telfer (2019) também comenta sobre a te-
mática do envenenamento apontando que, apesar de muitos dizerem
que esse é um método covarde de matar, ele requer muita coragem,
maldade e paciência.

Envenenadores não causam tanto medo nas pessoas quanto, digamos,


estripadores. Mas isso é injusto, pois o envenenamento requer
planejamento prévio e estômago para uma morte lenta. É preciso olhar
nos olhos de sua vítima dia após dia enquanto você acaba lentamente
com a vida dela. Você tem de fazer o papel de enfermeira , parente ou
amante enquanto convém suas intenções homicidas em um nível que
seria insuportável para muitos dos que já dispararam uma espada [...]
arma dos covardes? Nem tanto. O veneno é a amar dos insensíveis, dos
sociopatas, dos realmente cruéis (TELFER, 2019, p. 163).

Sendo assim, Telfer (2019) considera o veneno como um símbo-


lo de frieza e de crimes premeditados. Ou seja, não é uma arma para
iniciantes e inocentes, mas sim para pessoas perversas e assassinas em
série, calculistas, as quais não agem “pelo acaso” ou “por acaso”, mas
que vêm planejando há algum tempo, têm objetivos e atuam cada
cena e dão cada passo de acordo com suas metas bem estipuladas.
Nesse cenário, nota-se que o ponto de vista trazido pela autora vai de
embate ao tradicionalmente estabelecido de que os crimes femininos
são crimes passionais, visto que Telfer (2019) busca mostrar mais do
que o lado assassino da mulher, mas a sua capacidade de também ser
altamente cruel.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 187


Assim, a personagem Josephine, de Agatha Christie, encaixa-se
bem na categoria de assassinas de Telfer, pois, como visto, age minu-
ciosamente de forma pensada previamente, sem demonstrar nenhuma
emoção, ainda que mate um membro da própria família, que nunca
lhe fez mal e que a amava. O amor, que motivou tantos crimes femi-
ninos, nessa história não tem a menor importância. Ainda, Josephi-
ne assassinou até mesmo sua própria babá, colocando veneno em seu
achocolatado.
Da mesma forma, lê-se o romance Menina má4 (1954), de
William March, o qual traz a história de uma menina, jovem como
Josephine, de apenas oito anos de idade, a qual também apresentava
grande indiferença perante a morte, despertando certo estranhamen-
to. “Uma história ousada e incomum para a época, que questionou a
origem da maldade e inspirou muitas obras, sendo uma das precurso-
ras do subgênero de ‘crianças psicopatas’” (TELFER, 2019, p. 326).
Georges Bataille (1989) ao discorrer sobre a origem da maldade,
sublinha que ela já poder ser vista no “reino da infância”, apontando
como exemplo o mesmo mal que estaria presente em Heathcliff, pro-
tagonista do romance O morro dos ventos uivantes (1847), de Emily
Brontë, ainda quando era apenas uma criança. O autor enfatiza que o
mal é essência, e, portanto, não aparece em um determinado momen-
to da vida do assassino, mas nasce com ele, podendo ser observado
desde cedo. Na mesma direção, o teórico enfatiza que a literatura é
a infância encontrada, a única capaz de adentrar e denunciar o mal
verdadeiro, a destruição e a ruína.

4 The Bad Seed.

188 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


O que aconteceu, por muito tempo, foi que a sociedade tornou
nula a possibilidade do mal existir na mulher. Devido ao machismo
enraizado no imaginário popular, essa figura é vista como dócil. Con-
tudo, o que podemos ver a partir da literatura policial produzida em
meio à globalização é que essa ideia pré-concebida não se sustenta e,
aos poucos, os crimes cometidos por mulheres vão sendo trazidos à
tona.
Ademais, vê-se que as histórias policiais clássicas, como as de
Edgar Allan Poe, tomam um espaço notório na literatura. O próprio
Poe, que além de poeta e contista também era ensaísta, explica em “A
filosofia da composição”, ensaio de 1846, esse significativo interesse
da humanidade por narrativas de morte. Segundo ele, ela surge através
de uma inata sede humana de autotortura.

‘De todos os temas melancólicos, qual, segundo a compreensão


universal da humanidade, é o mais melancólico?’ A morte – foi a
resposta evidente. ‘E quando’, insisti, ‘esse mais melancólico dos temas se
torna o mais poético?’ Pelo que já explanei, um tanto prolongadamente,
a resposta também aí é evidente: ‘Quando ele se alia, mais de perto, à
Beleza; a morte, pois, de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o
tema mais poético do mundo [...] (POE, 2009, p. 107).

Por conseguinte, o autor possui vários poemas em que mulhe-


res acabam morrendo misteriosamente no final, como Annabel Lee,
Elizabeth, Lenore, Berenice, entre outras. Contudo, o que mais nos
interessa aqui é o já citado conto “Os assassinatos da Rua Morgue”
que, embora seja bastante inovador, sobretudo ao que condiz ao gê-
nero policial, traz uma ideia recorrente desde as narrativas medievais:
um homem, colocando-se na posição de super-herói, tentando salvar

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 189


ou vingar os atentados cometidos contra a mocinha, geralmente, uma
bela mulher.
Por outro lado, não localizamos esse funcionamento nos romances
de Agatha Christie. Embora a autora siga a estrutura narrativa policial
inaugurada por Poe (um enigma, alguém disposto a desvendá-lo, uma
investigação com coleta de pistas e a revelação do culpado (a) em um
final fechado), ela não coloca a mulher exclusivamente na posição de
vítima. Contudo, em ambos os romances encontramos uma reação ao
crime da mulher diferente da reação aos crimes cometidos por homens.
Em geral, tanto na ficção quanto na realidade, observamos inú-
meras reações, mas, percebemos que destacam-se no mínimo dois
grupos. O primeiro, formado por pessoas que alegam que uma mu-
lher não deveria ser julgada da mesma forma que um homem pelo
tribunal, visto que, durante o seu crime, provavelmente, agiu na im-
prudência do momento, irracionalmente e por isso deveria ter sua
pena suavizada. De outro lado, temos um grupo que enfatiza que ela
deveria sofrer consequências muito maiores, justamente por ser uma
mulher que foge às regras patriarcais. Telfer (2019) aponta que muitas
mulheres foram mais condenadas pela população por serem mulheres
fora do padrão social do que por serem assassinas. Nesse contexto,
é notório apontar que os preceitos de uma época refletem direta ou
indiretamente na sua literatura.
Outra personagem bastante importante para refletirmos sobre o
espaço da mulher na literatura policial é Jane Marple, uma criação de
Agatha Christie que aparece em alguns romances e contos da autora.
Popularmente conhecida pelos moradores de seu vilarejo como Miss
Marple, ela é vista por seus conhecidos como uma senhora bastante

190 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


inteligente, pois resolve ou auxilia na resolução de vários mistérios lo-
cais. Dessa maneira, ela coloca-se em uma posição de detetive, ainda
que não exerça profissionalmente esse cargo. Assim, vemos aqui mais
uma ruptura das configurações tradicionais do romance policial, uma
vez que Miss Marple adentra um campo antes reservado ao homem,
exercendo uma função de poder. Ou seja, vai contra à ideia de mulher
enquanto um ser submisso.
Essa quebra não se limita apenas ao campo literário policial, mas
abrange a literatura de forma geral por mostrar a possibilidade de ou-
tros espaços relegados à mulher. Ludmer (2002, p. 339) sublinha que
“Os contos estão unidos por elos: uma massa cultural de correlações
múltiplas, feita de processos políticos, tecnológicos, culturais, de no-
mes, e de imagens”. Isto é, a literatura está em consonância com o con-
texto social em que se localiza, especialmente, para questioná-lo.
Nesse âmbito, outro livro de interesse é Lady Killers: assassinas
em série5 , de Tori Telfer, que teve a sua primeira edição em 2017 nos
Estados Unidos, e em 2019 no Brasil, pela editora DarkSide Books.
Nesse livro, há uma seleção de quatorze histórias de mulheres que
cometeram crimes extremamente cruéis ao redor do mundo, em di-
ferentes épocas. Assim como Ludmer (2002), Telfer (2019) também
destaca que a mulher que mata não é uma novidade no mundo, mas
que a partir da globalização começa a aparecer mais devido à difusão
de notícias pela mídia.
Em Lady Killers: assassinas em série, nos deparamos com contos
sobre grande assassinas da história mundial, mas que não são famo-

5 Lady Killers: Deadly Women Throughout History.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 191


sas. Por meio de um livro que se aproxima do true crime, subgênero
da literatura policial que se ocupa de casos criminais reais, a autora
sublinha que essas mulheres agem há muito tempo. Como é o caso de
Darya Nikolayevna Saltykova, personagem de um de seus contos, que
realmente existiu em meados de 1700 na Rússia e é, inclusive, citada
no clássico Guerra e Paz (1867), de Liev Tolstói. Essas assassinas não
eram temidas e, em grande parte, não receberam o devido julgamento
da justiça e da população por serem mulheres. Logo foram esqueci-
das, apagadas. Poucos são os nomes femininos que ficam na história,
em suas duas linhas: a ficcional e a real.
Com a globalização, como Ludmer (2002) e Telfer (2019) enfati-
zam, a mulher assassina começa a se destacar e, com isso, os vestígios
de seus crimes do passado também começam a ser investigados. Ten-
do em vista esse “aparecimento” do delito feminino apenas no fim do
século XX, o que Tori Telfer (2019) pretende é retomar os crimes que
não tiveram a notoriedade devida no passado. Essa é uma das razões
pelas quais a autora se baseia em assassinatos do século XIII até o XX.
Conforme apontado por Ludmer (2002), os estereótipos cercam
o sexo feminino dentro e fora da literatura e, por isso, é interessan-
te pensar a figura feminina além desses enquadramentos sociais que
lhes foram impostos no decorrer do tempo. Telfer (2019) enfatiza que
muitas pessoas não conseguem enxergar o sexo feminino dessa forma
e então optam por procurar outras explicações, que muitas vezes não
têm sentido. “As pessoas têm infinitos truques nas mangas para mini-
mizar a violência feminina: desumanizam assassinas em série compa-
rando-as com monstros, vampiros, feiticeiras e animais; erotizam-nas
até que parecem mais inofensivas [...].” (TELFER, 2019, p. 18).

192 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Essas saídas que a população encontra como meio de tentar evi-
tar o fato de que existem assassinas em série mulheres reforçam a ideia
do senso comum de que elas são incapazes de realizar os mesmos cri-
mes que os homens, seja por uma suposta falta de inteligência ou de
força para isso. Entretanto, Telfer (2019, p. 19) sublinha: “Mas elas
não eram lobos. Não eram vampiros. Não eram homens. Mais uma
vez, a ficha mostra: elas eram horrivelmente, essencialmente, inescapa-
velmente humanas”. Isto é, as assassinas são pessoas como as outras,
não há nada de divino ou sobrenatural nelas, o que seria uma máscara
para não encará-las como são.
Telfer (2019), ao trazer essa parte apagada da história para a litera-
tura, enfatiza que ambas as áreas estão interligadas, e, portanto, uma in-
fluencia a outra. Sobre esse elo, Ludmer (2002) chama a atenção diversas
vezes para o contexto social, ou seja, o que estava acontecendo na época
em que determinado conto ou romance que tinha como personagens
principais as mulheres que matam foi escrito. Dessa forma, ela relaciona
esse fenômeno na ficção como um eco da sequências de rupturas que a
sociedade vêm passando. Por isso, a figura da mulher na ficção policial
se transforma juntamente com o pensamento social de cada época.

RESSIGNIFICAÇÕES DO(S) LUGAR(ES) DA MULHER NA


NARRATIVA POLICIAL

Muitas vezes, as minorias são rotuladas de forma coletiva, ou seja,


são uniformizadas de maneira que as suas identidades individuais são
apagadas. Em nosso estudo, observamos que esse fenômeno ocorre na
literatura policial quando a figura feminina é associada ao papel de

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 193


vítima. Nesse sentido, todas as vozes isoladas que compõem os gru-
pos à margem, ao olhar “estrangeiro”, passam a ser ouvidas como se
dissessem a mesma coisa, como se representassem apenas um grupo.
A diversidade é ignorada.
À vista disso, é possível compreender a importância de questio-
nar a literatura pela própria literatura. O questionamento propor-
ciona uma construção e uma desconstrução de saberes e ideologias.
Portanto, a disseminação de indagações, a fim de proporcionar olha-
res mais críticos acerca do “natural” é de extrema relevância, já que,
partindo da reflexão sobre o que está embutido na sociedade à luz do
comum, ideologias opressoras mascaradas com a face da “naturalida-
de” podem ser identificadas e reformuladas.
De acordo com Ludmer (2002, p. 343), as mulheres que ma-
tam na ficção parecem estar inteiramente ligadas com “conjunturas
de ruptura do poder doméstico, com certas irrupções femininas na
cultura argentina: as primeiras primeiras universitárias, as primeiras
operárias, atrizes guerrilheiras e outras pioneiras”. Em geral, a auto-
ra evidencia que as mulheres que matam, na ficção, dificilmente vão
para a cadeia, já que o seu “delito” é uma justiça legitimada. Em troca
de seu crime, conquistam a sua liberdade, são premiadas com os seus
futuros.
Por conseguinte, acerca da inteligência da mulher, Virginia Wo-
olf (1996) escreve o ensaio “O status intelectual da mulher”, como
forma de resposta ao romancista Arnold Bennet, o qual havia escrito
que a mulher é inferior ao homem no que condiz à intelectualidade.
A escritora destaca que isso não é comprovado cientificamente, mas
tem uma explicação muito plausível enquanto uma construção social.

194 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Woolf (1996) sublinha alguns nomes masculinos consagrados na
arte e na literatura, evidenciando a falta de mulheres nas respectivas
áreas que sejam tão boas e conhecidas quanto eles e em seguida reve-
la o porquê: “Bem, intelecto significa, no fim das contas, e no geral,
dominação.” (WOOLF, p.23, 1996). Ela justifica sua afirmação, escla-
recendo que é mais fácil para o lado dominador conquistar bons re-
sultados do que para o lado dominado, sendo o primeiro o masculino
e o segundo o feminino. A mulher foi inferior em questões de poder,
jamais, em questões de intelecto.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Com base no que foi apresentado, entende-se que há uma forte


possibilidade de a mulher ser constantemente colocada nas narrativas
detetivescas enquanto vítima e não como criminosa ou detetive de-
vido a uma influência da crença social patriarcal que afirma que ela
é intelectualmente inferior ao homem para exercer tal papel. Assim,
vemos na literatura policial um jogo de relações de poder, uma vez que
matar implica ter um poder de dominação sobre o outro.
Woolf (1996), a qual também é um símbolo da luta feminista,
mostra que o domínio masculino faz com que a mulher tenha a sua
identidade imposta. Nas histórias policialescas, podemos considerar
que, muitas vezes, não importa o quão perversa seja a assassina, como
a mulher de uma forma geral é vista como frágil e dócil, a criminosa
será rotulada dessa maneira também.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 195


Desse modo, as mulheres assassinas não recebem o mesmo tra-
tamento que os homens assassinos, mesmo se o crime for semelhan-
te. Em geral, quando o assassinato é cometido pelo sexo masculino,
independentemente da motivação do delito, ele é julgado, tanto por
juízes quanto pela multidão, como alguém de má índole, perverso,
indigno de perdão e de liberdade, é banido da sociedade, porque causa
a ela medo, repúdio e indignação. Entretanto, não vemos esse mesmo
funcionamento quando se trata do sexo feminino. Ainda que o assas-
sinato seja bárbaro, as assassinas não são temidas como os homens,
tampouco levadas a sério.
Ludmer (2002, p. 348) sublinha que o surgimento da mulher que
mata se deve a uma tentativa de “[...] eliminar o poder em sua raiz e
marcar um avanço na independência feminina fazem-na especialmen-
te apta para criminalização para a fundação e ao mesmo tempo para a
alegoria da justiça”. A mulher que mata, enquanto uma ruptura, tem,
portanto, um papel inverso à mulher vítima: ela é a que permanece
viva. Assim, a literatura policial que traz a mulher criminosa parece se
diferenciar bastante daquela que a trazia como vítima e invoca, como
já apontado, uma quebra, pois enquanto o tradicional parecia verossí-
mil aos relatos policiais, o que traz a mulher assassina causa espanto,
desconforto e desconfiança.
Entende-se, dessa maneira, que muitas mulheres criminosas vive-
ram, mataram e transgrediram a lei de diversas formas sob o manto do
estereótipo. Por isso, esta pesquisa buscou demonstrar a importância
de romper com esse ideal insustentável de docilidade feminina. Dessa
maneira, a presente análise teve como foco as narrativas policiais, po-
rém, acredita-se que esse estudo pode servir para pensarmos em outras

196 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


estruturas também. Com isso, não temos como intuito encerrar as
discussões acerca do papel da mulher na literatura policial aqui, mas
de contribuir com o fortalecimento desse debate tão pertinente.

COMO CITAR ESTE TEXTO

LESZCZYNSKI, T.; SOARES, I. M. O espaço da mulher na literatura policial: uma


reflexão sobre a personagem Josephine, de A casa torta, de Agatha Christie. In: SOARES,
I. M.; LESZCZYNSKI, T. (Orgs.). Um percurso pelas literaturas de língua inglesa.
Tutóia/MA: Diálogos, 2023. p. 180-198. https://doi.org/10.52788/9786589932796.1-9

REFERÊNCIAS

BATAILLE, G. A literatura e o mal. Tradução de Soely Bastos. Porto Alegre:


L&PM, 1989.
CHRISTIE, A. A casa torta. Tradução de Carmen Ballot. São Paulo: Círculo
do livro, 1948.
CHRISTIE, A. Assassinato na casa do pastor. Tradução de Henrique Guerra.
Porto Alegre: LP&M Pocket, 2010.
DALCASTAGNE, R. O lugar de fala. In: Literatura Brasileira Contemporânea:
um território contestado. Vinhedo: Editora Horizonte, 2012.
LUDMER, J. Mulheres que matam. In: O corpo do delito um manual. Tradução
de Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
POE, E. A. Contos de imaginação e mistério. Tradução de Cássio de Arantes
Leite. São Paulo: Tordesilhas, 2015.
POE, E. A. Poemas e ensaios. Tradução de Oscar Mendes e Milton Amado. São
Paulo: Globo, 1999.
TELFER, T. Lady Killers: assassinas em série. Tradução de Daniel Alves da
Cruz; Marcus Santana. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2019.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 197


WOOF, V. Kew Gardens, O status intelectual da mulher, Um toque feminino na
ficção, Profissões para mulheres. Tradução de Patrícia de Freitas Camargo; José
Arlindo de Castro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

198 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


capítulo 10

Arthur Miller,
um teatrólogo machista?
Antonius Gerardus Maria Poppelaars

INTRODUÇÃO

O teatrólogo estadunidense Arthur Miller (1915-2005) e algu-


mas de suas peças foram uma fonte de controvérsia. Por exemplo, na
peça A Morte de um Caixeiro-Viajante (1949), traduzida para o por-
tuguês como A Morte de um Caixeiro-Viajante (1949), o protagonista
Willy Loman é um simples vendedor da classe média baixa. Essa posi-
ção social do protagonista resultou em que a peça não foi considerada
por vários críticos literários como uma verdadeira tragédia, porque
Loman, não é um nobre, não tem um caráter elevado, “daqueles que
gozam de grande reputação e fortuna, como Édipo”, como Aristóteles
(1991, p. 260) descreve em A Poética. Assim, Hynes (1967, p. 286, tra-
dução nossa) articula que “se alguém quiser chamar a peça do Sr. Mil-
ler de uma tragédia, deve-se atribuir um novo nome para Hamlet1”.

1 “If one wish to call Mr. Miller’s play a tragedy, one must assign a new name to Hamlet.”

DOI: 10.52788/9786589932796.1-10 199


Mas, Miller (1994, p. 3, tradução nossa) defende que “[...] o ho-
mem comum é um sujeito adequado para a tragédia em seu sentido
mais elevado, tais os reis eram2”. Por isso, Bloom (2007, p. 147, tradu-
ção nossa) afirma que: “se houver um drama trágico legítimo por um
autor americano, então deve ser A Morte de um Caixeiro-Viajante3”.
A peça A Morte de um Caixeiro-Viajante causou discordância.
Bigsby (2005, p. 136, tradução nossa) relata que a peça era “[...] vista
como ideologicamente suspeita4”, principalmente a partir da versão
fílmica de 1950. Nos cinemas havia manifestantes da Legião Ameri-
cana5, que “suspeitavam que A Morte de um Caixeiro-Viajante fosse
uma obra anticapitalista e, portanto, antiamericana6” (BARTON-
-PALMER, 2010, p. 215, tradução nossa). O estúdio, Columbia Pic-
tures, reagiu com um curta-metragem para ser exibido antes do filme,
explicando que o filme não seria antiamericano.
Pouco tempo depois, Miller foi outra vez vítima de perseguição
política. A década de 1950 foi um período de perseguição ao
comunismo nos Estados Unidos. Atores, autores, diretores e artistas
foram intimados a comparecer diante do Comitê de Atividades
Antiamericanas7 para assumir e/ou acusar outros de simpatias
comunistas. Os acusados eram colocados numa lista negra, The
Hollywood Blacklist, e boicotados ou demitidos. Os que se recusavam

2 “[...] the common man is as apt a subject for tragedy in its highest sense as kings were”.
3 “if there is a legitimate tragic drama by an American author, then it must be Death of a Salesman”.
4 “Death of a Salesman was [...]...seen as ideologically suspect”.
5 A Legião Americana (American Legion) é uma organização de militares veteranos
conservadores, defendendo os “verdadeiros valores norte-americanos”.
6 “Death of a Salesman was an anti-capitalist and hence anti-American work”.
7 House of Un-American Activities Committee (HUAC).

200 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


a colaborar eram condenados por desacato. Outros “confessaram”
ser comunistas e deram nomes de outros supostos comunistas para
escapar à lista negra (FITZGERALD, 2007).
Em 1956, Arthur Miller foi interrogado pelo Comitê por ter so-
licitado um passaporte para assistir à estreia de sua peça As Bruxas de
Salém (The Crucible) na Bélgica. O Comitê suspeitou que Miller tinha
simpatias comunistas e antiamericanas e que pretendia fazer propagan-
da comunista e antiamericana no exterior. Miller foi interrogado pelo
Comitê sobre se ele ou outras pessoas tinham supostas simpatias comu-
nistas e antiamericanas, mas, o dramaturgo recusou-se a delatar. Como
resultado, o passaporte lhe foi negado e ainda foi condenado por desa-
cato. A sentença foi pouco mais tarde anulada (ABBOTSON, 2007).
Ironicamente, Miller escreveu As Bruxas de Salém três anos antes
(1953) como reação à caça ao comunismo e às práticas do Comitê.
A peça é baseada nos julgamentos históricos de pessoas acusadas de
bruxaria na cidade de Salém, uma comunidade de Puritanos, em 1692
e 1693. Pessoas suspeitas de bruxaria eram condenadas e estimuladas
para delatar outros na esperança de salvar suas próprias vidas.
Assim, Murphy (2006, p. 419, tradução nossa) nota que As Bru-
xas de Salém é uma “[...] dramatização dos julgamentos das bruxas de
Salém que serviram como uma analogia histórica para [...] as investi-
gações do congresso sobre as crenças políticas de cidadãos individuais,
incluindo Miller, o que resultou em uma lista negra e outras formas de
perseguição política8”. Nessa maneira, o próprio Miller viveu a perse-
guição contra o qual escreveu.

8 “[...] dramatization of the Salem witch trials that served as a historical analogy for [...] the
Congressional investigations into the political beliefs of individual citizens, including Miller,
which had resulted in blacklisting and other forms of political persecution”.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 201


Já foi discutido nessa Introdução que Willy Loman é um ven-
dedor fracassado; ele é demitido, sofre de delírios é egoista, arrogante,
teimoso e ingênuo. Ademais, Willy traiu Linda, sua esposa. Seus fi-
lhos também falharam. Happy é preguiçoso, mulherengo e um fun-
cionário medíocre. Seu filho mais velho, Biff, é um cleptomaníaco,
que já cumpriu pena na prisão e trabalha em empregos braçais de bai-
xa remuneração. Desiludido, Willy se suicida para que a esposa possa
receber o dinheiro do seguro e assim saldar as dívidas.
Assim, o enredo da peça baseia-se nas frustrações de Willy, nos
conflitos com os filhos e nas oportunidades perdidas para fazer fortu-
na. Mas qual seria o papel de Linda Loman, a esposa de Willy? Otten
(2008, p. 11, tradução nossa) nota que “para muitos críticos feminis-
tas e outros críticos baseados em gênero, Miller é culpado por criar
textos sexistas, que desprezam ou reduzem personagens femininas9”,
como Linda em A Morte de um Caixeiro-Viajante, o que traz outra
controvérsia à luz em respeita à Miller.
Seria Arthur Miller um teatrólogo machista que deixou as mu-
lheres em segundo plano, sendo donas de casa estereotipadas, como
Linda? Seria Linda uma dona de casa estereotipada mesmo? Portanto,
o objetivo deste estudo é descrever o papel e comportamento de Linda
Loman em A Morte de um Caixeiro-Viajante.
Especificamente, pretende-se analisar Linda Loman, como agen-
te da ação, e o enredo para discutir o machismo de Miller, visto que,
como Bailey-McDaniel (2008, p. 28, tradução nossa) indica, “Linda
é importante para o desenvolvimento do enredo, porque ela [...] tem

9 “For many feminist and other genderbased critics, Miller is guilty of creating sexist texts,
which demean or reduce female characters”.

202 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


um significativo ‘trabalho’ narrativo na peça de Miller10”. A discussão
sobre o machismo de Miller é elaborada a partir de uma compara-
ção entre as peças A Morte de um Caixeiro-Viajante (1949) e The Ride
Down Mt. Morgan11 (1991).
Essa última peça é igualmente considerada uma peça machista,
justificando assim uma comparação do suposto machismo de Miller
ao longo do tempo. Adicionalmente, The Ride Down Mt. Morgan
ainda não foi traduzido para o português, assim este estudo seria uma
contribuição para os estudos dramatúrgicos brasileiros sobre Arthur
Miller e um estímulo para sua tradução em português.
Este estudo abrange uma perspectiva literária e descritiva. Uma
pesquisa descritiva se destina a distinguir informações e a descrição
de vários exemplos para estimular a compreensão dos leitores (KEY,
2007). Além desta Introdução, esta pesquisa incorpora as seções: “O
drama social e a posição das mulheres”; “O papel de Linda Loman
em A Morte de um Caixeiro-Viajante”; “Linda Loman, agente da ação
e o enredo”; “Miller, teatrólogo machista?” Por último, seguem-se as
Considerações finais.

O DRAMA SOCIAL E A POSIÇÃO DAS MULHERES

A obra de Arthur Miller faz parte do drama social, o que Moss


(1968, p. 9, tradução nossa) confirma: “quase todos acreditam que Ar-
thur Miller merece claramente o título de teatrólogo social”. Williams

10 “Linda is important to the plot’s development because she [...] does have a significant narrative
“job” in Miller’s play”.
11 Literalmente, “A Descida do Monte Morgan”.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 203


(1967, p. 314, tradução nossa) acrescenta que o foco central do drama
social “[...] encontra-se em uma concepção particular da relação do
indivíduo com a sociedade, em que [...] ambos são vistos como per-
tencentes a um contínuo e em termos reais inseparável processo12”, ou
seja, a sociedade influencia o indivíduo e vice-versa.
No fim do século XIX, o triunfo da classe média em respeito à
liberdade pessoal e política iniciou um desinteresse da burguesia nas
vidas dos reis e uma vontade de assistir às representações do cotidiano
burguês. Por essas vias, importante, no contexto deste estudo, o am-
biente familiar da burguesia entrou no drama social (LUNA, 2012).
Um teatrólogo marcante do drama social da época foi Henrik
Ibsen. Esse dramaturgo norueguês influenciou Miller, que foi consi-
derado por Szondi (2007, p. 7, tradução nossa) um imitador de Ibsen,
porque Miller “[...] tentou preservar a abordagem analítica de Ibsen
para a dramaturgia social, transferindo-a para o presente america-
no13”.
Lawson (1960, p. 63, tradução nossa) adiciona que “a sombra
de Ibsen encontra-se em todo teatro moderno. Sua análise do dilema
da classe média é tão decisiva que é impossível ir além dos limites de
seu pensamento [...]14”. Além disso, o ambiente familiar, no mundo
dramático de Ibsen, é poluído pelas ações dos homens, enquanto as
mulheres tentam proteger os valores da vida familiar (LUNA, 2012).

12 “[…] lies in a particular conception of the relationship of the individual to society, in which
[…] both are seen as belonging to a continuous and in real terms inseparable process”.
13 “[...] tried to preserve Ibsen’s analytical approach to social dramaturgy by transferring it into
the American present”.
14 “Ibsen’s shadow lies across the modern theatre. His analysis of the middle-class dilemma is so
final that it has been impossible to go beyond the limits of his thought [...]”.

204 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Uma peça importante para o drama social foi A Casa de Bonecas
(1897) de Ibsen. Esta importância é dada pelo fato de que esta peça
relata uma notável instância de emancipação das mulheres e por se-
guinte teve muita influência no surgimento dos movimentos emanci-
patórios. A peça trata do casamento de Nora e Torvald Helmer. Nora
é uma dona de casa que toma dinheiro emprestado de um agiota e
falsifica a assinatura do pai, como se este fosse o fiador do empréstimo.
Chantageada pela agiota, Nora tenta esconder a situação do ma-
rido. Quando Torvald descobre tudo, fica furioso e ordena que Nora
fique em casa para cuidar dos filhos. Mas, Nora deixa a família e o
casamento. Assim, “ouve-se o som de uma porta que bate lá embaixo
e cai o pano” (IBSEN, 1976, p. 172). Foi este som que provocou um
choque na Europa do fim do século XIX. Este fim da peça, com uma
mulher deixando o marido e os filhos, iniciou a atenção pelos direitos
das mulheres no drama social.

O PAPEL DE LINDA LOMAN EM “A MORTE DE UM CAIXEIRO-


VIAJANTE”

Porém, a respeito da emancipação feminina, esta influência de


Ibsen não fica muito visível na obra de Miller. Otten (2008, p. 12-13,
tradução nossa), acrescenta que “Linda continua a ser uma figura con-
troversa. [...]. Na melhor das hipóteses, [...] Linda Loman representa
o fracasso de Miller para criar personagens femininos progressistas e
úteis; na pior das hipóteses, ela reflete a atitude sexista do dramatur-

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 205


go [...]15”. Os estereótipos sexistas usados por Miller na Morte de um
Caixeiro-Viajante são, “[...] a boa dona de casa, a garota de programa, a
secretária tímida [...]16” (ABBOTSON, 2007, p. 139, tradução nossa).
A “boa dona da casa” é representada por Linda.
Por exemplo, algumas falas estereotipadas de dona de casa de Lin-
da são: “vou fazer um sanduíche para você” (MILLER, 2009, p. 173)
e “tome uma aspirina. Quer que eu pegue uma aspirina?” (MILLER,
2009, p. 173). As falas de Linda são quase todas curtas e interrompi-
das por Willy. “Willy (por cima da fala dela): [...] Estou tão cansado.
Não fala mais nada” (MILLER, 2009, p. 213-214).
Um símbolo sexista são as meias, visto que, “[...] enquanto elas
erotizam a amante, as meias se tornam o emblema do aprisionamento
da mãe na vida doméstica17” (GILLEMAN, 2008, 157, tradução nos-
sa). Por exemplo, da citação “Linda entra na cozinha e começa a cerzir
meias” (MILLER, 2009, p. 190), pode-se perceber que ela faz seu de-
ver doméstico para poupar dinheiro por cerzir suas meias, enquanto
Willy dá meias novas à sua amante. Sendo assim, “as meias associam
a mulher com a mãe e, ao mesmo tempo, a sexualidade do pai com a
humilhação da mãe18” (GILLEMAN, 2008, p. 157, tradução nossa).
Por isso, Willy não aguenta ver Linda cerzindo meias: “não quero
você consertando meias nesta casa” (MILLER, 2009, p. 192), porque

15 “Linda remains a controversial figure. [...] At best, [...] Linda Loman represents Miller’s
failure to create progressive and helpful female characters; at worst, she reflects the dramatist’s
sexist atitude [...]”.
16 “[…] the good housewife, the call girl, the mousy secretary […]”
17 “[...] while they eroticize the mistress, the stockings become the emblem of the mother’s
entrapment in domesticity”.
18 “The stockings associate the woman with the mother and thus the father’s sexuality with the
mother’s humiliation”.

206 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


as meias lembram a Willy de sua infidelidade. Mas também, porque as
meias representam a discussão com o filho em um hotel em Boston,
onde Biff encontra seu pai com a amante, que demanda meias novas
de Willy: “você me prometeu duas caixas de meias […]” (MILLER,
2009, p. 251).
Willy dá as meias a amante, o que provoca uma reação de revolta
de Biff: “o senhor deu para ela as meias da mamãe!” (MILLER, 2009,
p. 252). Desta maneira, “para Willy, e [...] para Biff, a visão de Linda
cerzindo meias é um lembrete visível do preço que ela está pagando
[...]19” (GILLEMAN, 2008, p. 157, tradução nossa). Um preço que
consiste em Linda ficar presa em uma vida doméstica e cuidar de um
marido egoísta.
Linda aparece várias vezes na peça com um cesto de roupas:
“Linda entra […], uma fita no cabelo, leva um cesto de roupa lavada”
(MILLER, 2009, p. 188). Mas, “enquanto lavar roupas era um de-
ver habitual de uma mulher nesta época, isso também mostra Linda
como uma pessoa que “lava as manchas”, metaforicamente, a mancha
das derrotas de Willy20” (BATTEN, 2008, p. 169, tradução nossa).
Linda sempre fica ao lado do marido, quando Willy quer desistir. Por
exemplo, Willy não está seguro da sua aparência física. Linda, tenta
estimular o ego de Willy, mostrando seu lado doce e fiel:

WILLY. Eu sou gordo. Eu pareço, pareço meio bobo.


LINDA. Willy meu bem, você é o homem mais bonito do mundo.

19 “To Willy, and [...] to Biff as well, the sight of Linda mending stockings is a visible reminder
of the price she is paying [...]”.
20 “While laundry was a customary duty of a wife in this time period, it also shows Linda as a
person who “washes out stains,” metaphorically, the stain of Willy’s defeats”.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 207


WILLY. Ah, não Linda.
LINDA. Para mim, você é. (ligeira pausa). O mais bonito (MILLER,
2009, p. 190).

Mas, durante essa conversa entre Willy e Linda, “ouve-se música,


atrás de um painel, à esquerda da casa, a Mulher, semivisível, está se
vestindo e do escuro se ouve uma risada de mulher [...] o riso continua
entre as falas de Linda” (MILLER, 2009, p. 190). Essa mulher, rindo
e semivisível, é a mulher com quem Loman traiu Linda. Ela volta nes-
ta cena para mostrar a falsidade de Willy.
Os filhos, por causa do mal-exemplo do pai, são também machis-
tas e sexistas. Biff e Happy são mulherengos e traidores sem escrúpu-
los, o que é ilustrado no seguinte conversa entre os dois irmãos:

HAPPY. Tem umas quinhentas mulheres que iam gostar de saber o que
a gente conversou neste quarto (os dois juntos riam manso).
BIFF. Lembra daquela grande Betsy não sei o que, como era o nome
dela? Lá da Avenida Bushwick?
HAPPY. É. Foi minha primeira vez, acho. Rapaz, que mulherão! (os dois
riem, quase cruelmente) (MILLER, 2009, p. 178).

Entretanto, “Linda não é estúpida ou fraca [...]. Ela é a princi-


pal razão pela qual a família consegue ficar unida, daí sua represen-
tação como alguém que tenta consertar tudo, de meias até pessoas21”
(ABBOTSON, 2007, p. 139, tradução nossa). Linda faz e paga as
contas da casa, ela toma dinheiro emprestado para completar a renda.

21 “Linda is not stupid or weak […]. She is the main reason why this family has managed to
stay together, hence her depiction as a mender who tries to mend everything from stockings to
people”.

208 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Nesse contexto, o discurso de Linda é marcante: “bom, tem nove e
sessenta da máquina de lavar. E o aspirador é três e cinqüenta e vence
no dia quinze. Depois tem o telhado, que faltam ainda vinte e um
dólares” (MILLER, 2009, p. 189).
Outro exemplo da força de Linda ocorre quando ela tenta defen-
der o marido e reconciliá-lo com os filhos. Enquanto Happy e Biff cri-
ticam o pai, Linda o defende: “Biff, meu bem, se você não tem amor
por ele, então não pode ter amor por mim” (MILLER, 2009, p. 204).
Biff recebe outra crítica forte da mãe: “e você! O que aconteceu com
o amor que você tinha por ele? Vocês eram tão companheiros! Como
você e ele conversavam no telefone toda noite!” (MILLER, 2009, p.
206). Linda também coloca Happy no seu lugar: “um homem que
não trabalhou um dia que não fosse por vocês? [...] Essa é a compen-
sação dele, completar sessenta e três anos e descobrir que os filhos,
que ele amou mais que a própria vida, um é vagabundo, mulherengo”
(MILLER, 2009, p. 206).
Linda também apela aos filhos para ajudar o pai: “Biff, a vida
dele está nas suas mãos!” (MILLER, 2009, p. 208). Do mesmo modo,
Linda quer estimular o marido para se reconciliar com os filhos. Willy
briga com Biff que voltou após anos para casa. A reação de Linda é:
“você não deveria ter feito aquelas críticas, Willy, principalmente na
hora que ele acabou de descer do trem. Não devia ficar tão bravo com
ele” (MILLER, 2009, p. 174). Desta maneira, Linda sempre “[...] sur-
ge [...] para ajudar ou apoiar [...] o protagonista da peça, seu marido22”
(ABBOTSON, 2007, p. 139, tradução nossa). Percebe-se aqui Linda

22 “[...] emerges [...] to aid or support [...] the play’s protagonist, her husband”.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 209


como uma mulher determinada e forte e “[...] isso pode ser visto como
oposto ao estereótipo fraca figura materna23 (ABBOTSON, 2007, p.
139, tradução nossa)”.
Sem dúvida, é justamente Willy Loman que mostra sua fraqueza
na peça: é grosseiro com Linda e os filhos, ele a traiu e é egoísta. A
pior falha de Willy é que ele “[...] sacrifica a integridade pessoal e qual-
quer [...] dignidade humana [...] para atingir o sempre esquivo sonho
americano de sucesso material24” (CENTOLA, 2008, p. 43, tradução
nossa).
O termo sonho americano foi popularizado por J. T. Adams
(1931), que o descreve como uma ordem social em que todos podem
obter sucesso, através de iniciativa, trabalho duro e autossuficiência.
O sonho americano se origina da época colonial e dos tempos da De-
claração da Independência (1776), composta por Thomas Jefferson,
que “[...] resume o sonho americano na Declaração da Independência
como o direito de toda pessoa à vida, liberdade e à busca da felicida-
de25” (URANGA, 2008, p. 83, tradução nossa).
Mas, o sonho americano tornou-se um pesadelo para Willy Lo-
man, revelando que nem sempre qualquer pessoa pode melhorar sua
vida. Sendo assim, Centola (2008, p. 44, tradução nossa) observa que
A Morte de um Caixeiro-Viajante, “[...] aborda criticamente a falência
moral escondida sob a fachada do sucesso material americano [...]26”.

23 “[…] can be seen as against the stereotype of the weak, maternal figure”.
24 “[...] sacrifices personal integrity and any [...] human dignity [...] to achieve the forever-elusive
American Dream of material success”.
25 “[...] summarizes the American Dream in the Declaration of Independence as the right of
every person to life, liberty, and the pursuit of happiness.
26 “[...] as well as the rest of Miller’s drama, critically addresses the moral bankruptcy concealed
beneath the façade of American material success [...]”.

210 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Por conseguinte, o enganoso sonho americano ocupa um lugar cen-
tral em A Morte de um Caixeiro-Viajante.
A fraqueza de Willy é de quem acredita nos slogans da propagan-
da de creme dental, na qual um sorriso lindo traz milhões de dólares.
O erro de Willy, de acordo com Bigsby (2005, p. 103, tradução nossa)
é que ele “[...] quer, acima de tudo, ser bem quisto, uma condição que
ele confunde com sucesso27”.
Essa fraqueza de Willy, de acreditar em superficialidades, é pro-
vocada justamente pelos homens na vida dele que “[...] moldaram sua
imaginação, que trouxeram o sonho americano à vida; o pai, vendedor
de flautas; Dave Singleman, o velho vendedor; e Ben, irmão financei-
ramente bem sucedido28”, como Mann (2008, p. 38, tradução nossa)
destaca. O pai de Willy foi um exemplo, pois, “com uma maquineta
ganhava numa semana mais do que qualquer um ganhava na vida”
(MILLER, 2009, p. 199).
O vendedor Dave Singleman, foi um grande exemplo, porque
trabalhava de maneira bem confortavél, por telefone e do quarto do
seu hotel de “chinelo de veludo” (MILLER, 2009, p. 222). O irmão
Ben fez sua fortuna na selva da África e “para Willy, Ben exemplifica
o sonho americano, a história do sucesso capitalista29”, como indica
Uranga (2008, p. 88, tradução nossa).
O problema é que “[...] Willy adora-os, recusando-se a entender
que cada um é um modelo falho30” (MANN, 2008, p. 38, tradução

27 “[...] wants, above all, to be well liked, a condition he confuses with success”.
28 “[...] shaped his imagination, that brings the American dream alive; Willy’s flute-selling father;
Dave Singleman, the old salesman; and Ben, Willy’s financially succesful brother”.
29 “For Willy, Ben exemplifies the American Dream, the capitalistic success story”.
30 “[...] Willy worships them, refusing to see that each is a flawed model”.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 211


nossa). A saber, “seu pai, abandonou a família; Dave Singleman era
único, como seu nome indica31, e a crueldade de Ben sugere a sua falta
de humanidade32” (MANN, 2008, p. 38, tradução nossa). Assim, to-
dos os exemplos masculinos na vida de Willy contribuíram para que
ele tenha uma imagem distorcida do sonho americano.
Logo, o sonho americano de Willy, de vender sendo well-liked
(bem-quisto), caiu aos pedaços, já que: “a ingenuidade de Willy faz
dele um alvo fácil [...] do sonho americano. Ele prontamente acredi-
ta na retórica popular que todos possam alcançar o sucesso material
através de personalidade e popularidade33” (URANGA, 2008, p. 81,
tradução nossa).
Da mesma forma, os filhos Happy e Biff mostram igualmente
suas fraquezas masculinas na peça. O filho Happy sai do trabalho sem
o chefe saber e gosta de seduzir mulheres no trabalho, entre elas, a es-
posa do seu chefe. Mas, é Biff que segue o pai mais ainda na fraqueza
masculina. Ele rouba bolas de basquete, madeira de prédios em cons-
trução e um terno no Kansas. Quando Biff rouba a madeira, ele é até
encorajado por Willy: “não tem nada de errado. Qual é o problema?”
(MILLER, 2009, p. 201). A consequência do roubo do terno é que
Biff foi para a prisão.
No entanto, Biff entende porque falhou; foi a educação errada
do pai. Por isso, Biff acusa Willy: “eu nunca cheguei a lugar nenhum
porque o senhor sempre me elogiou tanto que eu não consegui nunca

31 Singleman significa homem singular ou único.


32 “His father abandoned the Family; Dave Singleman was one of a kind, as his name implies, and
Ben’s ruthlessness suggests his lack of humanity”.
33 “Willy’s naïveté makes him an easy target [...] of the American Dream. He readily believes the
popular rhetoric that everyone can achieve material success through personality and popularity”.

212 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


aceitar ordens de ninguém! É aí que está a culpa!” (MILLER, 2009,
p. 261). Biff reconhece a influência nefasta do pai, cuja fraqueza é “[...]
ser preso em [...] aquele sonho tentador, o sonho americano [...]34” (BI-
GSBY, 2005, p. 132, tradução nossa).
Embora os homens sejam fracos, Linda fica entusiástica e estimu-
lante com os planos dos filhos e Willy. Quando Happy tem a ideia de
vender artigos esportivos, as reações positivas de Linda são: “maravi-
lhoso!” e “parece que as coisas estão começando” (MILLER, 2009, p.
210-211). É Linda quem arranja um encontro em um restaurante para
celebrar o esperado sucesso dos homens: “você tem que encontrar os
dois para o jantar [...] na churrascaria de Frank” (MILLER, 2009, 217),
ela diz a Willy. Dessa maneira, Linda incentiva Willy, Happy e Biff.

LINDA LOMAN, AGENTE DA AÇÃO E DO ENREDO EM “A MORTE


DE UM CAIXEIRO-VIAJANTE”

Ironicamente, por esse encorajamento, Linda “[...] permite a seu


marido e filhos manterem a falsa bravata, levando-os à destruição35”
(BATTEN, 2008, p. 169, tradução nossa). Otten (2007, p. 102, tradu-
ção nossa) confirma que Linda provoca a ação com seus comentários
que “[...] impulsionam Willy e Biff em direção a seu destino trágico36”.
Assim, a peça mostra um lado negativo de Linda, que é motivado pelo
desejo e boa intenção de ver sua família sair dos problemas.

34 “[...] to be trapped in [...] that tantalising dream, the American dream [...]”.
35 “[...] enables her husband and sons to maintain the false bravado, leading to their destruction”.
36 “[...] propel Willy and Biff toward their tragic destiny [...]”.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 213


O resultado é que Biff vai ao escritório do seu ex-chefe para to-
mar dinheiro emprestado, a fim de financiar o plano de Happy, mas
fracassa. Simultaneamente, o pai, cheio de esperança, vai até seu chefe
para pedir outro emprego, mas é demitido. Mais tarde, o pai e os filhos
se encontram em um restaurante e a situação explode; os filhos bri-
gam com Willy e deixam o pai sozinho e se divertem com duas moças,
enquanto Willy, decepcionado, vai para casa para planejar o suicídio.
Dessa maneira, “Linda contribui [...] para o fim trágico de
Willy37” (OTTEN, 2008, p. 16, tradução nossa), porque Willy e seus
filhos são estimulados por Linda a tentar mais uma vez. Sendo assim,
“talvez mais do que qualquer outro personagem [...], é Linda que aju-
da [...] a confirmar as mentiras e ilusões no centro da peça [...]38”, como
descreve Bailey-McDaniel (2008, p. 28, tradução nossa), que Linda
possui um papel decisivo nas vidas dos homens Loman.
Outro exemplo de Linda como agente da ação ocorre quando
Ben, irmão mais velho de Willy, visita a família Loman. Ben fez uma
fortuna na Àfrica e ocupa, em A Morte de um Caixeiro-Viajante, o
papel do vendedor do sonho americano. O lema recorrente de Ben
na peça é: “quando eu entrei na selva, tinha dezessete anos. Quando
saí tinha vinte e um. E, minha nossa, como estava rico!” (MILLER,
2009, p. 201-202).
Willy lamenta não ter aceitado a oportunidade de acompanhar
o irmão nas viagens lucrativas: “se eu tivesse ido para o Alasca com
ele daquela vez, tudo teria sido completamente diferente” (MILLER,
2009, p. 196). Mas, Willy fica em casa na esperança de fazer carreira na

37 “Linda contributes [...] to Willy’s tragic end”.


38 “Perhaps more than any other character [...], it is Linda who helps [...] confirm, the lies and
delusions at the center of the play [...]”.

214 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


companhia na qual trabalha, sendo encorajado por Linda que aponta
a Ben que Willy poderia tornar-se sócio da companhia: “[...] o velho
Wagner falou para ele outro dia que se ele continuar assim vai acabar
sócio da empresa, não falou, Willy?” (MILLER, 2009, p. 226).
Linda entende que “[...] Ben e sua história representam a disso-
lução da família, o sucesso ao custo da humanidade39” (BARKER,
2007, p. 47, tradução nossa). Por isso, Linda quer que Willy fique com
a família para não destruir sua carreira promissora e a família: “você
está ganhando o suficiente, Willy! O suficiente para ser feliz aqui! Por
que todo mundo tem que conquistar o mundo? [...] Você tem muito
prestígio e os meninos adoram você [...]” (MILLER, 2009, p. 226).
Dessa maneira, “Willy encontra outro aspecto do sonho ameri-
cano em sua esposa Linda, para quem a segurança é o objetivo mais
importante na vida40” (DILLINGHAM, 1967, p. 344, tradução nos-
sa). A presença continuada de Linda na peça, “além de transmitir as
primeiras e as últimas palavras que o público ouve [...]41” (BAILEY-
-McDANIEL, 2008, p. 28, tradução nossa), faz que ela seja a respon-
sável pela continuação da ação em A Morte de um Caixeiro-Viajante.

ARTHUR MILLER, UM TEATRÓLOGO MACHISTA?

Arthur Miller poderia ter sido um teatrólogo machista? Para res-


ponder a essa questão é importante comparar A Morte de um Caixei-

39 “[...] Ben and his story represent the breakup of the family, success at the price of humanness”.
40 “Willy encounters another aspect of the American dream in his wife Linda, for whom security
is the most important goal in life”.
41 “In addition to delivering the first and final words that the audience hears [...]”.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 215


ro-Viajante com outra peça de Miller, The Ride Down Mt. Morgan. O
protagonista de Ride Down Mt. Morgan, Lyman Felt, um agente de
seguros, é bígamo, fato que se torna conhecido quando Lyman Felt
está hospitalizado após um acidente de carro em uma estrada de mon-
tanha. As duas esposas, Theo, com quem ele se casou há mais de trinta
anos, e Leah, com quem se casou há nove anos, aparecem no hospital.
Quando confrontado com as duas esposas, Lyman justifica suas
ações para ambas mulheres. Há dúvidas se o acidente realmente fora
um acidente ou uma tentativa de suicídio, motivada pelo crescente
desconforto de Felt sobre seu arranjo familiar incomum. Felt tenta re-
construir sua vida em conversas com seu melhor amigo, a enfermeira
e a filha, Bessie.
Abbotson (2007, p. 305, tradução nossa) sugere que, “o nome de
Lyman oferece [...] possibilidades de engano escandaloso (mentiras)
[...]42”. É possível entender o nome Lyman, como Lie Man, ou seja,
Homem Mentiroso, ou Mentiroso. Lyman Felt mente para as duas es-
posas, igual Willy Loman faz com sua esposa. Entretanto, “há muitas
semelhanças entre Willy Loman e Lyman Felt além do eco em seus
nomes43” (ABBOTSON, 2007, p. 300, tradução nossa).
De fato, Lyman e Loman têm mais em comum do que a brin-
cadeira com os nomes. Primeiramente, há o suicídio de Loman e o
possível tentativa de suicídio de Lyman. Em ambos os casos, foi usado
um carro. Mas, Willy usa seu carro para que os filhos e Linda possam
pagar as contas. Por outro lado, Lyman Felt tenta tirar a própria vida,

42 “Lyman’s name […] possibilities of outrageous deceit (lies) […]”.


43 “There are many similarities between Willy Loman and Lyman Felt beyond the echo in their
names”.

216 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


porque quer escapar da vergonha de ser bigamista e da confrontação
com as duas esposas.
Então, o machismo e a falta de respeito por mulheres, estão pre-
sentes nos dois protagonistas. Por exemplo, Lyman diz: “[...] o único
que sofreu nos últimos nove anos fui eu!44” (MILLER, 1999, p. 79,
tradução nossa), achando que foi ele que sofreu sendo casado com
duas mulheres. A reação vem nas rubricas: “um enorme rugido eco-
ando enche o teatro [...] luz sobe em Bessie [...]45” (MILLER, 1999,
p. 79, tradução nossa). O rugido representa a indignação das mulheres
por serem traídas e a luz em Bessie mostra que ela, filha negligenciada,
é a maior sofredora. O comportamento machista de Willy já foi dis-
cutido anteriormente, mas, pelo menos, tirou sua própria vida para
ajudar sua família com o dinheiro do seguro.
Parcialmente, pode-se considerar Miller um machista. As duas
peças, The Ride Down Mt. Morgan (1991) e A Morte de um Caixei-
ro-Viajante (1949) indicam que Miller não perdeu suas tendências de
descrever personagens femininas de forma sexista ao longo do tempo,
já que as duas peças foram escritas com um intervalo de mais de qua-
renta anos. Porém, Abbotson (2007, p. 139, tradução nossa) defende
Miller, estipulando que “é fácil ser perturbado pelos estereótipos fe-
mininos [...] que encontramos em A Morte de um Caixeiro-Viajante,
[...] mas, Miller queria que sua peça fosse realista, e na sociedade nor-
te-americana do final dos anos de 1940, era assim que muitas mulhe-
res eram vistas46”.

44 “[…] the only one who suffered these past nine years was me!”
45 “An enormous echoing roar fills the theatre […] light rises on Bessie […]”.
46 “it is easy to be disturbed by the […] female stereotypes that we find in Death of a Salesman,

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 217


Quanto The Ride down Mt. Morgan, Abbotson (2007, p. 303,
tradução nossa) nota que a peça “[...] ocorre em tempos conturbados
e aborda as dificuldades de se viver em uma sociedade pós-moderna
caótica e amoral47”. Nas duas peças, a amoralidade é provocada pela
vida moderna de auto(engano) para atingir o sucesso individualista e
machista da sociedade capitalista.
Lyman e Loman são ambos vendedores ambulantes. Lyman é
vendedor de seguros e, quanto a Loman, não fica claro o que ele ven-
de e o que há dentro de sua mala. Ele “[...] quer vender a si mesmo,
[...] um ponto sublinhado pela omissão óbvia na peça de qualquer
referência aos produtos específicos que Willy leva nas suas malas48”
(CENTOLA, 2007, p. 28, tradução nossa). O próprio Miller (1994, p.
141, tradução nossa) acrescenta que: “[...] quando perguntado o que
Willy estava vendendo, o que estava em suas malas, eu só poderia res-
ponder: ele mesmo49”.
Então, nas duas peças há dois vendedores, sob pressão de vender
a qualquer custo, no caso de Willy, até vender a si mesmo e sua vida:
“engraçado, sabe? Depois de tanta estrada, trens, reuniões, os anos to-
dos, você acaba valendo mais morto do que vivo” (MILLER, 2009,
p. 235). Essa reação de Loman abatido mostra o cinismo do mundo
capitalista em que não existe piedade por ninguém; nem pelos tra-
balhadores, nem pelas mulheres. Um mundo capitalista no qual os

[…] but Miller wanted his play to be realistic, and in U.S. society of the late 1940s, this is how
many women were viewed”.
47“[…] takes place in troubled times and addresses the difficulties of living in an amoral, chaotic,
postmodern society”.
48“[...] he wants to sell himself, [...] a point underscored by the obvious omission in the play of
any reference to the specific products that Willy carries around in his valises”.
49“[...] when asked what Willy was selling, what was in his bags, I could only reply, Himself”.

218 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


vendedores Lyman e Loman são induzidos a ir além dos limites, em
busca do sucesso materialista, embora isso não justifique o sexismo.
Talvez, mais importante do que determinar se Miller foi um ma-
chista ou não, seja enfatizar que as duas peças impedem justamen-
te o esquecimento ou o silenciamento do machismo, assim servindo
como uma lição, porque as peças de Miller entram na memória cole-
tiva como exemplo, que pode ser retomada, citada e parafraseada em
outros casos de sexismo e machismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nota-se que o papel da mulher mudou nas últimas décadas no


drama social, impulsionado por mais atenção para o indivíduo. Des-
sa atenção cresceu a importância da mulher no drama social. Infeliz-
mente, há ainda casos de mulheres no drama social sendo retratadas
exclusivamente como donas de casa estereotipadas. Um exemplo é
Linda Loman em A Morte de um Caixeiro-Viajante, de Arthur Miller,
que foi acusado de machismo.
No entanto, nas seções sobre o papel de Linda como agente da
ação em A Morte de um Caixeiro-Viajante, foi esclarecido que Linda
não é apenas uma dona de casa oprimida. Ela é o motor da ação na
peça com seus comentários que estimulam Willy e os filhos a ir atrás
dos seus sonhos. Tanto é, que os sonhos dos homens na peça vão além
das suas próprias capacidades e os levam a serem iludidos pelo sonho
americano, o que não é culpa de Linda. A culpa é da ingenuidade e má
interpretação do sonho americano pelos homens.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 219


A única que realmente entendeu o perigo em que Willy se encon-
trava foi Linda, quando diz que Willy “é um ser humano e uma coisa
terrível está acontecendo com ele. Então a gente tem que dar atenção”
(MILLER, 2009, p. 205). Essa atenção, como Linda declara no enter-
ro de Willy, consistiria em uma existência sem grandes e falsos sonhos.
Por essa razão, Biff diz no enterro do pai que: “os sonhos dele eram
todos errados” (MILLER, 2009, p. 266).
Linda é o colo que mantém a família junta, pois cuida do marido
e dos filhos fracassados e da situação financeira da família. Ela é ob-
viamente a mais forte da família e não apenas uma dona de casa. Além
disso, Linda Loman não é malvada, nem um anjo. Ela é uma perso-
nagem realista e não uma caricatura. Sendo assim, seria justo definir
Arthur Miller como um machista? Linda é dona de casa, oprimida e
mal-tratada pelos homens, mas também, é a agente da ação e do enre-
do. Portanto, à vista disso, ela se torna a personagem mais importante
da peça.
Até o personagem mais machista da peça, Willy, mostra que
aprecia Linda quando ele diz a ela: “(Com grande sentimento) Você é
a melhor mulher do mundo, Linda, uma grande companheira, sabia
disso?” (MILLER, 2009, p. 191). Adicionalmente, Willy reconhece o
sofrimento da esposa: “[...] tch, tch. Incrível, incrível. Porque ela so-
freu, bem o que essa mulher sofreu” (MILLER, 2009, p. 256). No
final da peça, Willy se suicida para que os filhos e Linda possam des-
frutar do dinheiro do seguro e assim pagar as contas e recomeçar suas
vidas. Desse modo, Willy faz um grande sacrifício, demonstrando seu
amor por Linda.

220 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


No final das contas, as peças de Arthur Miller contém uma lição,
ensinando que a sociedade no drama social é capaz de destruir e des-
respeitar os indivíduos. Paradoxalmente, é preciso levar em conta que a
sociedade é feita por esses indivíduos desrespeitados, assim somos todos
responsáveis por nossa sociedade. Isto posto, entender e estudar o dra-
ma social de Miller nos alerta para excessos, como machismo e sexismo,
e portanto, o drama social pode ajudar a melhorar a sociedade.

COMO CITAR ESTE TEXTO

POPPELAARS, A. G. M. Arthur Miller, um teatrólogo machista? In: SOARES, I.


M.; LESZCZYNSKI, T. (Orgs.). Um percurso pelas literaturas de língua inglesa.
Tutóia/MA: Diálogos, 2023. p. 199-225. https://doi.org/10.52788/9786589932796.1-10

REFERÊNCIAS

ABBOTSON, S. Critical Companion to Arthur Miller: a literary reference to


his life and work. New York: Facts On File, 2007.
ADAMS, J. T. The Epic of America. Boston: Little, Brown and Company, 1933.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, a Poética. 4ª edição. Trad. Eudoro de
Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
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224 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


capítulo 11

Contrapontos em “The Laughing man”,


de J. D. Salinger
Isabelle Maria Soares
Taynara Leszczynski

INTRODUÇÃO: UM CONTRAPONTO

Publicado pela primeira vez em 1953, Nine Stories1 (Em língua


portuguesa: Nove Histórias) é um livro de contos escrito pelo esta-
dunidense J. D. Salinger. Dentre as nove histórias que o compõem,
encontra-se o conto “The Laughing Man”, no qual identificamos
pontos contrastantes, que não funcionam simplesmente como opos-
tos ou meras contradições na narrativa: são interfaces, contrapontos.
De acordo com o Dicionário Online de Português2 , o significado fi-
gurativo do termo contraponto é “aquilo que, embora apresente con-
traste ou oposição, complementa um assunto ou texto”. Além disso,
importa pontuar que contraponto é um conceito que aparece muito
na música:

1 A edição que utilizamos neste capítulo, no entanto, foi publicada em 1991.


2 Disponível em: https://www.dicio.com.br/contraponto/ Acesso em: 03 mar. 2022

DOI: 10.52788/9786589932796.1-11 225


Em música, essa técnica consiste em combinar, simultaneamente, duas
ou mais vozes melódicas, sendo que cada uma delas é independente
uma da outra, mantendo-se uma relação de contraste entre elas, que por
sua vez cria uma harmonia. Dessa forma, o contraponto se dá através
da harmonização dessas diferentes vozes melódicas, ou seja, através da
harmonização da polifonia (SANTOS, 2015, p. 28).

Ao ser exportada para a literatura, a técnica do contraponto cons-


trói uma narrativa fragmentada e descentralizada, constituída por di-
ferentes eventos e personagens paralelos, de modo a formar “um todo
harmonioso através do contraste polifônico das diversas vozes consti-
tuintes” (SANTOS, 2015, p. 28). Um bom exemplo do uso dessa téc-
nica na literatura é o romance Caminhos Cruzados, do brasileiro Érico
Veríssimo (CAMPOS, 2014; SANTOS, 2015; MARQUES, 2021),
no qual há “ocorrências linguísticas, descritivas, alegóricas e narrati-
vas tecendo constantes e contrastes, que se debatem ou se conciliam”
(MARQUES, 2021, p. 93). Nessa mesma linha, identificamos con-
trastes ressonantes, mas que se complementam no conto de Salinger.
“The Laughing Man” (traduzido por Caetano Galindo para o
português como “O Gargalhada”) trabalha com vários aspectos dis-
sonantes que viabilizam uma leitura harmônica, apesar de polifônica.
Em um texto que se utiliza da técnica do contraponto literário, a es-
fera narrativa apresenta personagens “em núcleos autônomos que, em
algum momento, se encontram no tecer da trama” (MARQUES, p.
2021, 94). No conto de Salinger, temos o narrador, que se encontra
no núcleo de um tempo presente; temos os personagens John Ged-
sudski, o Chief, e Mary Hudson, que se localizam dentro da memória
de eventos vividos pelo narrador na sua infância; e, por fim, temos o

226 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Laughing Man, que faz parte do “conto dentro do conto”. Esses três
núcleos autônomos se entrelaçam em busca da harmonia do conto.
O conto é, portanto, estruturado em três camadas, as quais An-
dré Carvalho (2013, p. 74) entende por “três tempos narrativos distin-
tos”: a do narrador, que rememora uma parte de sua infância, quando
tinha nove anos e era membro de um grupo chamado Comanches, lide-
rado por um jovem universitário, o qual chamavam de Chief; a histó-
ria pessoal, mesmo que de forma bem indireta, de John Gedsudski, o
Chief, que toma conta dos meninos; e a narrativa The Laughing Man,
contada aos meninos pelo Chief, e que acontece ao mesmo tempo das
outras camadas. Encontramos nesse conto um diálogo entre duas fic-
ções: uma realista e uma fantástica, ambas materializadas pela memó-
ria de infância do narrador. Dessa forma, o Chief, que narra a história
do Laughing Man para os meninos, funciona como uma ponte entre
esses dois mundos fictícios.
É interessante observar como a estrutura narrativa funciona em
torno dessas duas interfaces, que se “revezam” ao decorrer do conto.
As parcelas da história fictícia do “Laughing Man” são contadas pelo
Chief no momento em que os meninos encontram-se no ônibus, vol-
tando para casa:

Every afternoon, when it got dark enough for a losing team to have
an excuse for missing a number of infield popups or end-zone passes,
we Comanches relied heavily and selfishly on the Chief’s talent for
storytelling. By that hour, we were usually an overheated, irritable
bunch, and we fought each other - either with our fists or our shrill
voices - for the seats in the bus nearest the Chief. (The bus had two
parallel rows of straw seats. The left row had three extra seats - the best in
the bus - that extended as far forward as the driver’s profile.) The Chief
climbed into the bus only after we had settled down. Then he straddled

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 227


his driver’s seat backward and, in his reedy but modulated tenor voice,
gave us the new installment of ‘The Laughing Man.’ (SALINGER,
1991, p. 58, grifos nossos).3

O narrador esclarece que o Chief levou meses para finalizar essa


história. Nesse trecho, é possível observar certa musicalidade contra-
pontística nas vozes dos personagens: as crianças, com suas vozes agu-
das e estridentes (shrill voices) e o adulto, que apesar de possuir uma
voz um tanto aguda (reedy), modulou sua entonação para uma voz
tenor, como um cantor que se prepara para cantar determinadas notas
musicais.
Há uma interpolação entre a história do “Laughing Man” conta-
da pelo Chief e a ficção “realista” materializada pela memória infantil
do narrador. Em consonância com o fato da história ser contada no
ônibus, esses revezamentos de ficções indicam a ideia de movimento,
que remete às alternâncias de vozes melódicas que ocorrem na músi-
ca. Uma música se caracteriza pela movimentação da combinação de
sons e do silêncio. Temos acesso à ficção do “Laughing Man”, como
também da memória de infância do narrador, por meio de parcelas, as
quais podemos chamar de linhas melódicas: ou seja, há pausas entre
as duas histórias no decorrer do conto. Em uma música, a pausa, que

3 Toda tarde, quando ficava escuro o suficiente para que o time que estivesse perdendo pudesse
ter uma desculpa para os erros em várias bolas altas no beisebol ou passes longos no futebol
americano, os Comanches confiavam sólida e egoisticamente no talento de narrador do Cacique.
Àquela hora nós normalmente éramos um grupinho agitado e irritadiço, e brigávamos uns com
os outros — com os punhos cerrados ou com nossas vozes agudas — pelos assentos do ônibus
mais próximos do Cacique. (O ônibus tinha duas fileiras paralelas de assentos de palha. A da
esquerda tinha três assentos a mais — os melhores de todos — que se estendiam até a altura do
perfil do motorista.) O Cacique subia no ônibus apenas quando estivéssemos acomodados. Aí
ele sentava ao contrário no banco do motorista e, com sua voz de tenor fanhosa mas modulada,
nos fornecia o novo capítulo de “O Gargalhada” (SALINGER, 2019, p. 48).

228 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


representa um seguimento de silêncio, é tão importante quanto o som
materializado pelas notas musicais.
As pausas são essenciais para esse movimento que intercala e
contrapõe as diferentes vozes melódicas, o que ocorre, de forma se-
melhante, na narrativa contrapontística de Salinger que analisamos,
como podemos observar no seguinte trecho: “’All right, let’s cut out
the noise, or no story.’ In an instant, an unconditional silence filled the
bus, cutting off from the Chief any alternative but to take up his nar-
rating position” (SALINGER, 1991, p. 71, grifos nossos)4. Interes-
sante observar como o narrador se preocupa em demarcar o silêncio
ao mencionar o momento em que a última parcela de Laughing Man
seria contada. Esse silêncio é importante para construir a tensão final
da história.
Beatriz Badim de Campos (2014) também nos oferece uma defi-
nição interessante acerca da técnica do “contraponto” na Literatura.
Apesar da pesquisadora focar no contraponto dentro do romance,
acreditamos que sua definição se enquadra para qualquer texto lite-
rário que manifeste a técnica do contraponto, como as narrativas cur-
tas, os contos.

O contraponto musical define-se por colocar nota contra nota, ponto


contra ponto. Para a composição de um romance contrapontístico é
necessário que haja uma voz em contraposição direta à outra, ou seja,
é preciso que exista um embate entre vozes diretamente opostas para
que se cumpra o objetivo básico da técnica que é colocar ponto contra
ponto, voz contra voz (CAMPOS, 2014, p. 29).

4 “Tudo bem, vamos parar com o barulho, senão não tem história”. Num instante, um silêncio
incondicional tomou o ônibus, privando o Cacique de qualquer alternativa a não ser a de assumir
sua posição narrativa (SALINGER, 2019, p. 58).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 229


Campos entende essas vozes em relação direta com os discursos
dos personagens. As diferentes vozes melódicas que perfazem a técni-
ca do contraponto não precisam ser, necessariamente, vozes humanas.
Podem ser também sons provenientes de instrumentos musicais. Nes-
se sentido, entendemos que as contraposições de vozes que ocorrem
em “The Laughing Man” não se manifestam apenas nos discursos
dos personagens, mas em outros aspectos contrastantes que estrutu-
ram o conto, como a dualidade do conto que incorpora uma “ficção
realista” e uma “ficção fantasiosa”, bem como outros aspectos que
apontaremos a seguir.

UM CONTO QUE CONTA DUAS HISTÓRIAS

Ricardo Piglia defende que “um conto sempre conta duas his-
tórias” (2004, p. 89). Isso significa que um conto aborda dois planos
em sua narrativa, uma história visível e uma história secreta, cada uma
contada de forma distinta, de modo que “os mesmos acontecimentos
entram simultaneamente em duas lógicas narrativas antagônicas” (PI-
GLIA, 2004, p. 90). Os pontos de intersecção são a essência da cons-
trução narrativa, complementa Piglia.
“The Laughing Man” trabalha com a tese de Piglia, não porque
podemos afirmar que há, explicitamente, duas histórias, mas porque
a ideia da “ficção dentro da outra” é o que compõe a história visível
do conto escrito por Salinger. Essas duas ficções acontecem em con-
traponto, pois apesar de distintas, complementam-se na tentativa de
revelar uma história secreta. A história secreta seria, portanto, a har-

230 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


monia construída por esse contraponto literário. Nessa linha, concor-
damos com a interpretação de Carvalho:

Os dois planos da história, portanto, estão em harmonia. O primeiro


plano nomeia a si mesmo como ficção: trata-se da narração em primeira
pessoa, que engloba tudo o que é dito pelo narrador, e da história
dentro da história, a lenda do Laughing Man. O segundo plano é aquilo
que de fato, acontece, mas que nunca é tratado diretamente, pois parece
escapar ao controle tanto do narrador quando do Chefe: a sexualidade
que desabrochava no menino e o relacionamento amoroso do Chefe
que, ao final da história, fracassa (CARVALHO, 2013, p. 82).

De acordo com Carvalho (2013), as mediações do narrador bus-


cariam abafar conflitos internos “que ainda não encontravam meios
de serem representados de forma direta” (p. 74). Carvalho sugere, nes-
se sentido, que há dois planos no conto, que se identifica aqui como
o “dito”, que seria a “narração em primeira pessoa, que engloba tudo
que é dito pelo narrador [...]”, e o “não dito”, que é o que acontece de
fato, “mas nunca é tratado diretamente, pois parece escapar do con-
trole tanto do narrador quanto do Chefe” (CARVALHO, 2013, p.
82).
Nesse sentido, os aspectos contrastantes do conto delineiam o
incompreensível da narrativa. O conto faz com que o leitor saia de um
ponto para o outro, até chegar a um (ou mais) ponto de chegada: uma
interpretação possível, ou o que Piglia chama de “história secreta”. As-
sim, pode-se dizer que a história secreta é construída pelo contrapon-
to entre “o dito” e o “não dito” no conto de Salinger.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 231


CONTRAPONTOS NA MEMÓRIA DO NARRADOR

“The Laughing Man” inicia contrastando, de forma sutil, o pre-


sente e o passado: “In 1928, when I was nine, I belonged, with ma-
ximum esprit de corps, to an organization known as the Comanche
Club” (SALINGER, 1991, p. 56)5. Temos um narrador que, mesmo
sem contextualizar seu tempo presente, narra uma memória de seu
passado, de sua infância. Esse contraste dialoga com as interfaces en-
tre infância e vida adulta, as quais são representadas, também, pela
contraposição entre as crianças do conto (o narrador e as outras crian-
ças do grupo) e os demais adultos (o Chief e Mary Hudson).
O olhar infantil desenvolvido pelo narrador sobre a memória que
narra contribui para a formação dos vários contrapontos que aparecem
no decorrer do conto. Um deles, que chama bastante a atenção, é a for-
ma contraditória da caracterização do personagem John Gedsudski.
Conhecido por Chief pelas crianças, ele é descrito da seguinte forma
pelo narrador: “If wishes were inches, all of us Comanches would have
had him a giant in no time. The way things go, though, he was a stocky
five three or four - no more than that” (SALINGER, 1991, p. 57)6.
As crianças o viam como alguém grande e virtuoso, o que contrasta, ao
mesmo tempo, com sua aparência física, de baixa estatura.
Até certo ponto, o conto de Salinger parece ser protagonizado
apenas pelo mundo masculino. Quando uma figura feminina apare-

5 “Em 1928, quando tinha nove anos de idade, eu pertenci, com o máximo esprit de corps, a
uma organização conhecida como Clube Comanche” (SALINGER, 2019, p. 47).
6 “Se a vontade conferisse estatura, todos os Comanches diriam de pronto que se tratava de um
gigante. Mas como a vida real é diferente, ele era troncudo, com um e sessenta ou um e sessenta e
dois — nada mais” (SALINGER, 2019, p. 48).

232 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


ce, o próprio narrador, em sua versão infantil, expressa a sua indigna-
ção ao detectar a presença feminina no contexto dos Comanches:

Above the rear-view mirror over the windshield, there was a small,
framed photograph of a girl dressed in academic cap and gown. It
seemed to me that a girl’s picture clashed with me general men-only
décor of the bus, and I bluntly asked the Chief who she was. He hedged
at first, but finally admitted that she was a girl. I asked him what her
name was. He answered unforthrightly, ‘Mary Hudson’ (SALINGER,
1991, p. 62).7

Mary Hudson aparece na história como uma figura feminina


fundamental que interfere na sequência de amizade e companheiris-
mo relatada até então, para introduzir uma pitada de relacionamento
amoroso e, como alguns críticos interpretam, do florescimento sexual
do narrador. Além disso, a personagem de Mary Hudson tem a fun-
ção de remeter “à vida fora do grupo, lembrando inclusive que o Che-
fe, o jovem protetor dos garotos, tem uma vida pessoal além da sua
função ali” (CARVALHO, 2013, p. 80). Identificamos aqui outro
contraponto entre trabalho e vida social.
É possível identificar, ainda, referências indígenas no conto, pelos
nomes do grupo Comanches, e seu líder, Chief. Como descrito por Car-
valho (2013), os comanches foram um grupo étnico de nativos america-
nos que resistiram à tomada de seus territórios durante o século XIX.
Entretanto, Carvalho reitera que a forma como o grupo funciona no

7 Sobre o espelho retrovisor do para-brisa, havia uma pequena fotografia emoldurada de uma
garota com uma beca e um capelo acadêmicos. Eu sentia que a foto de uma garota não combinava
com aquele tom apenas-para-homens do ônibus, e acabei perguntando sem meias palavras ao
Cacique quem era ela. Ele primeiro tergiversou, mas acabou admitindo que se tratava de uma
garota. Eu lhe perguntei o nome dela. Ele respondeu sem muita boa vontade, “Mary Hudson”
(SALINGER, 2019, p. 51-52).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 233


conto relembra, até certo ponto, a organizações militares8: a rotina
de se reunir todos os dias com horário marcado, a prática de esportes
e exercícios físicos, e o fato de haver um líder responsável pelo grupo,
como se fosse um oficial que comanda sua tropa. Esse contraste parece
funcionar como uma metáfora para oprimidos versus opressores.

CONTRAPONTOS NA FICÇÃO DENTRO DA FICÇÃO: O LAUGHING


MAN

O Laughing Man, protagonista do “conto dentro do conto” nar-


rado pelo Chief, era filho biológico de um casal de missionários muito
ricos, o Laughing Man foi sequestrado quando criança por “bandidos
chineses”. Como os pais recusaram pagar pelo resgate, os bandidos o
torturaram até deformá-lo, e o menino passa a ter, ao invés de uma
boca, “an enormous oval cavity below the nose [...]”, e o nariz “[...]
consisted of two flesh-sealed nostrils” (SALINGER, 1991, p. 59)9.
A deformação física do Laughing Man faz com que ele seja descri-
to de forma monstruosa: “[...] when the Laughing Man breathed, the
hideous, mirthless gap below his nose dilated and contracted like (as I
see it) some sort of monstrous vacuole” (SALINGER, 1991, p. 59)10.
Por outro lado, a monstruosidade física do personagem que o afastava
dos humanos, o aproxima do mundo não-humano, da natureza:

8 Interessante a referência militar, haja vista que Salinger foi convocado a lutar na Segunda
Guerra Mundial, experiência que influenciou diretamente na sua produção literária.
9 “[...] em vez de uma boca, uma imensa cavidade oral abaixo do nariz. O nariz, por sua vez,
consistia em duas narinas fechadas pela carne” (SALINGER, 2019, p. 49).
10 “[...] quando o Gargalhada respirava, o hediondo buraco desprovido de alegria que ficava
sob seu nariz se dilatava e se contraía como (na minha imaginação) alguma espécie monstruosa
de vacúolo (SALINGER, 2019, p. 49).

234 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Every morning, in his extreme loneliness, the Laughing Man stole off
(he was a graceful on his feet as a cat) to the dense forest surrounding
the bandits’hideout. There he befriended any number and species
of animals: dogs, white mice, eagles, lions, boa constrictors, wolves.
Moreover, he removed his mask and spoke to them, softly, melodiously,
in their own tongues. They did not think him ugly (SALINGER, 1991,
p. 59).11

Nesse sentido, o personagem Laughing Man faz uma ponte en-


tre o ambiente urbano, vivenciado pelo Chief, o narrador e as outras
crianças no espaço nova-iorquino, com o mundo não-humano, a na-
tureza. A sua monstruosidade física não aflige às diversas espécies de
animais que convivem na floresta: ali é um espaço de diversidade. Com
o passar do tempo, Laughing Man, provavelmente por influência dos
“pais adotivos”, os bandidos chineses, torna-se um grande criminoso.
É interessante como a vítima torna-se um vilão, um anti-herói - termo
que em si é contrapontístico. Antes sozinho, agora o Laughing Man
constitui a sua própria gangue:

Four blindly loyal confederates lived with him: a glib timber wolf
named Black Wing, a lovable dwarf named Omba, a giant Mongolian
named Hong, whose tongue had been burned out by white men, and
a gorgeous Eurasian girl, who, out of unrequited love for the Laughing
Man and deep concern for his personal safety, sometimes had a pretty
sticky attitude toward crime (SALINGER, 1991, p. 61).12

11 Toda manhã, em sua extrema solidão, o Gargalhada se esgueirava (ele tinha o passo leve de um
gato) até a densa floresta que cercava o esconderijo dos bandidos. Ali fez amizade com todo tipo e
toda espécie de animais: cães, camundongos brancos, águias, leões, jiboias, lobos. Mais ainda, ele
tirava a máscara e conversava com eles, baixinho, melodiosamente, na língua dos bichos. Eles não
o achavam feio (SALINGER, 2019, p. 49).
12 Quatro comparsas cegamente leais moravam com ele: um volúvel lobo cinzento chamado
Asa Negra, um anão adorável chamado Omba, um mongol gigante chamado Hong, que tivera
a língua queimada pelos brancos, e uma lindíssima moça eurasiana, que, movida pelo amor
nãocorrespondido que sentia pelo Gargalhada e por uma profunda preocupação com a segurança
dele, por vezes tinha uma atitude desagradável quanto à vida de crimes (SALINGER, 2019, 50-51).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 235


A diversidade do grupo do Laughing Man é também polifônica:
temos um gigante e um anão, um animal - o lobo, e uma menina eu-
rasiana - representando a fronteira entre ocidente e oriente. Aliás, uma
contraposição interessante pode ser observada na falta de verossimi-
lhança da história do Laughing Man contada pelo Chief, que dialoga
com a ideia de fronteira entre Ocidente e Oriente: “Soon the Laughing
Man was regularly crossing the Chinese border into Paris, France [...]”
(SALINGER, 1991, p. 60)13. Em um primeiro momento, a fronteira
entre a China e a França pode ser entendida como uma escolha banal
feita pelo contador da história, tendo em vista que no mundo da fic-
ção, ainda mais aos olhos das crianças, tudo é possível. Contudo, um
olhar mais atento é capaz de identificar uma alegoria para a fronteira
entre mundo ocidental e mundo oriental.
Adolfo Frota (2008) disserta que parte da literatura de J. D. Sa-
linger foi influenciada por algumas premissas da filosofia oriental, es-
pecialmente pelo Zen Budismo, filosofia caracterizada pela busca da
iluminação e do autoconhecimento. Nesse sentido, a fronteira entre
França e China pode representar a inclinação de Salinger, um autor
ocidental, para o pensamento do oriente (ODA, 2015). Entretanto,
como Richard Davidson (1981 apud ODA, 2015) coloca, essa fron-
teira França-China indicaria uma “aproximação distante”. Enquanto
essa aproximação é metaforizada em “The Laughing Man”, a distân-
cia está atrelada à nossa realidade, na qual há uma distância política-i-
deológica, histórica e cultural entre mundo ocidental e oriental.

13 “Logo o Gargalhada já atravessava o tempo todo a fronteira chinesa para ir a Paris [...]”
(SALINGER, 2019, p. 50).

236 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


O conto culmina com a frustração amorosa entre o Chief e Mary
Hudson. A memória infantil do narrador não é capaz de clarificar a
causa e nem a razão de tal frustração de forma direta, mas é possível
interpretar que havia diferenças entre as classes sociais dos namora-
dos. O fato do Chief ser um tipo de “babá” das crianças enquanto
está na faculdade, e, como pontua Carvalho (2013), o seu sobrenome
polonês, Gedsudski, indicariam uma origem humilde e “que Mary
Hudson deveria pertencer a uma aristocracia nova-iorquina, já que ela
frequentava uma faculdade particular cara, morava em Long Island,
não sabia pegar transportes coletivos e se vestia com um casaco de
pele” (2013, p. 83).
O afastamento de Mary Hudson do grupo e a forma como o
Chief se comporta em relação a isso indicam que sua relação fracas-
sou. A maneira como o Chief finaliza a história do Laughing Man,
que coincide com esse momento da realidade ficcional, busca mostrar
aos meninos que “relacionamentos entre pessoas de classes diferentes
estariam fadados ao fracasso” (CARVALHO, 2013, p. 83). De modo
mais intenso, o Chief ensina aos meninos que “a fantasia deve dar lu-
gar à realidade, mesmo que a realidade possa lhes provocar sofrimento
[...]” (CARVALHO, 2013, p. 85). Ao lado dessa interpretação, “está
o aprendizado de que, tal como as coisas estão ordenadas, não se pode
esperar outra coisa da realidade, a não ser sofrimento” (CARVALHO,
2013, p. 85).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 237


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na epígrafe do livro Nine Stories, do qual o conto “The Lau-


ghing Man” faz parte, Salinger cita o seguinte pensamento Zen bu-
dista: “We know the sound of two hands clapping, / But what is the
sound of one hand clapping?” (Conhecemos o som de duas mãos que
aplaudem. Mas qual é o som de uma mão que aplaude?) Frota explica
que a metáfora faz com que “o discípulo Zen, a princípio, chegue à
conclusão de que não sabe absolutamente nada, tudo se torna incom-
preensível assim como o som de uma mão” (2008, p. 328). Entretanto,
o exercício de tentar ouvir o som do aplauso de uma única mão pode
levar o praticante a “ultrapassar todo o conhecimento, deixar o mun-
do das distinções para trás [...] e vencer a escuridão da ignorância”
(FROTA, 2008, p. 328), até alcançar a iluminação que o conduzirá a
uma liberdade ilimitada.
Esse pensamento também conversa, de certa forma, com a im-
portância da combinação entre som e silêncio na técnica do con-
traponto musical. Provavelmente, os contrapontos – algumas vezes
contraditórios, como a fronteira entre China e França –, trabalhados
por Salinger em “The Laughing Man”, são amparados por esse ques-
tionamento budista: qual o som de apenas uma mão? “Ouvimos” o
que é dito no conto, mas qual o som do “não dito”? Assim como o es-
forço para ouvir o som de apenas uma mão ao aplaudir, o exercício de
compreender o “não dito” da narrativa trabalha com a concentração
do leitor que busca ouvir e sentir a harmonia da escrita de Salinger, e
assim, “deixar o mundo das distinções para trás”.

238 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Além disso, interessa pontuarmos que esse trabalho contra-
pontístico não é uma característica que pode ser observada apenas
de “The Laughing Man”. Ruth Prigozy (1987) observa que no livro
Nine Stories há diversas interfaces entre os contos, de forma que o rela-
cionamento diferencial entre as narrativas produz significados suple-
mentares para o livro como um todo. A autora detalha algumas dessas
conexões:

[...] as duas primeiras histórias estão conectadas por referências de lugar


e por semelhança de personagens. As duas últimas estão ligadas por uma
linguagem repetitiva, e pode-se dizer que ‘For Esmé’ e ‘Pretty Mouth’
encontram sua complementaridade no contraste entre redenção e traição
no amor. A terceira história, ‘Just Before the War’, oferece ainda uma
terceira alternativa às duas que a precedem ao oferecer a possibilidade
de abertura emocional e compaixão. E as questões levantadas por ‘The
Laughing Man’ estão ligadas às levantadas por ‘Down at the Dinghy’ e
‘For Esmé’ (PRIGOZY, 1987, p. 91-92, tradução nossa).14

Assim como os contos de Nine Stories dialogam e constroem sig-


nificados para o livro, compreende-se que os aspectos contrapontísti-
cos de “The Laughing Man” se conectam para dar novos sentidos para
o conto. Os contrapontos, que no conto são apresentadas de forma
binária, mostram que há diferentes existências e possibilidades: ficção
realista / fantástica, dito / não dito, presente / passado, infância / vida
adulta, feminino / masculino, amizade / amor, trabalho / vida social,

14 Thus, the first two stories are linked by references to place and by similarity of character.
The last two are connected by repetitive language, and “For Esmé” and “Pretty Mouth” may
be said to find their complementarity in the contrast between redemption and betrayal in love.
The third story, “Just Before the War,” offers yet a third alternative to the two that precede it in
its offering the possibility of emotional openness and compassion. And the questions raised by
“The Laughing Man” are linked with those raised by “Down at the Dinghy” and “For Esmé.”
(PRIGOZY, 1987, p. 91-92).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 239


indígenas (oprimidos) / militares (opressores), ambiente urbano / na-
tureza, gigante / anão, mundo oriental / mundo ocidental, classe bai-
xa / classe média-alta. Esses paralelos, que evidenciam a polifonia da
narrativa, harmonizam, além de tudo, uma ideia de aceitação das dife-
renças ou, conforme o pensamento Zen budista aplicado por Salinger,
entender e aceitar as coisas e os acontecimentos da vida como são.

COMO CITAR ESTE TEXTO

SOARES, I. M.; LESZCZYNSKI, T. Contrapontos em “The Laughing man”, de


J. D. Salinger. In: SOARES, I. M.; LESZCZYNSKI, T. (Orgs.). Um percurso pelas
literaturas de língua inglesa. Tutóia/MA: Diálogos, 2023. p. 225-241. https://doi.
org/10.52788/9786589932796.1-11

REFERÊNCIAS

CAMPOS, Beatriz Badim de. Caminhos Cruzados de Erico Verissimo:


Literatura e Música em Contraponto. Revista de Literatura, História e
Memória, vol. 10, n. 16, 2014. Disponível em: https://e-revista.unioeste.br/
index.php/rlhm/article/view/10571 Acesso em: 11 mar. 2022
CARVALHO, André Ferreira Gomes. Sensibilidade e observação social em
Nine Stories de J. D. Salinger. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos e
Literários em Inglês) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. Disponível
em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8147/tde-02082013-124345/pt-
br.php Acesso em: 03 mar. 2022
MARQUES, Pedro. Contraponto literário: Caminhos Cruzados do Érico
Veríssimo. Revista Brasileira, fase IX, ano IV, n. 106, 2021.
ODA, Tomoko. Orientalism in J. D. Salinger’s “The Laughing Man”.
Departamental Bullet in Paper, Kobe University Repository, vol. 8,
2015. Disponível em: http://www.lib.kobe-u.ac.jp/infolib/meta_pub/
G0000003kernel_81009415 Acesso em: 03 mar. 2022.

240 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


FROTA, Adolfo J. de S. A influência das filosofias alternativas na vida e na
literatura de J. D. Salinger. In: Publicatio UEPG, v. 16, n. 2, 2008. Disponível
em: https://revistas2.uepg.br/index.php/humanas/article/view/647 Acesso
em: 03 mar. 2022
PIGLIA, Ricardo. Formas breves. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004.
PRIGOZY, Ruth. Nine Stories: J. D. Salinger’s Linked Mysteries. In: BLOOM,
Harold. (org.). J. D. Salinger. Nova York, New Haven, Filadélfia: Chelsea
House Publishers, 1987.
SALINGER, J. D. The Laughing Man. In: Nine Stories. New York: First Little,
Brown and Company, 1991. pp. 56-73
SALINGER, J. D. O gargalhada. In: Nove Histórias. Trad. Caetano Galindo.
Todavia, 2019.
SANTOS, Donizeth. A técnica narrativa do contraponto no romance Caminhos
Cruzados, de Erico Verissimo. Revista de Literatura, História e Memória, vol.
11, n. 17, 2015. Disponível em: https://e-revista.unioeste.br/index.php/rlhm/
article/view/12090 Acesso em: 03 mar. 2022

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 241


capítulo 12

Bíblia e Literatura: Uma Análise dos


Intertextos Bíblicos em As Crônicas de
Nárnia, de C. S Lewis
Juarez José Pinheiro Neto

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As crônicas de Nárnia (no original The Chronicles of Narnia) é


uma coletânea de livros do autor C. S Lewis direcionada ao públi-
co infanto-juvenil, publicada entre os anos de 1950 e 1956. Através
da análise de alguns desses livros percebemos uma semelhança com
algumas narrativas da Bíblia, o livro “sagrado” dos cristãos. Assim,
supõe-se que o autor se utiliza da intertextualidade para a construção
de seus textos.
Os escritos bíblicos exercem uma fértil influência na produção
literária, principalmente quando falamos de literatura inglesa, na qual
muitos escritores recontam as estórias do livro “sagrado” através do
uso de citações, paródias e de outras mais variadas formas em que a
intertextualidade se apresenta. Se todo texto é o resultado das trans-
formações de outros textos (KRISTEVA, 1974). Esta pesquisa sugere
que as obras de C. S. Lewis parodiaram as estórias bíblicas, transfor-

242 DOI: 10.52788/9786589932796.1-12


mando-as em novas tramas. A análise dos livros por meio do olhar de
um leitor fundamenta-se em Barthes (1984), que afirmou que é na
interação entre o leitor e o texto que as transformações textuais são
percebidas.
A coletânea é composta por sete livros, que foram escritos pelo Ir-
landês Clive Staples Lewis, em Londres entre os anos de 1949 e 1954.
O primeiro a ser publicado foi O leão, a feiticeira e o guarda-roupa ( no
original The Lion, the Witch and the Wardrobe) em 1950; logo depois
veio Príncipe Caspian (no original Prince Caspian) em 1951; A viagem
do peregrino da alvorada (no original The Voyage of the Dawn Trea-
der) veio em seguida, no ano de 1952; A cadeira de prata (no original
The Silver Chair) foi publicado em 1953; O cavalo e seu menino (no
original The Horse and his Boy) é do ano de 1954; O sobrinho do mago
(no original The Magician’s Nephew) foi o penúltimo a ser publicado
em 1955; e por fim A Última batalha (no original The Last Battle) em
1956.
A primeira estória escrita foi O Leão, a Feiticeira e o Guarda-rou-
pa, depois vieram outros textos. Devido a boa recepção do público, o
autor resolveu contar os acontecimentos anteriores ao primeiro livro e
continuar a estória já iniciada. Foram cerca de quatro anos escrevendo
sobre a terra mágica de Nárnia, na tentativa de apresentar novos per-
sonagens e preencher lacunas deixadas pelo primeiro livro. Por esta
razão os livros foram reunidos em um volume único, em ordem cro-
nológica e não de publicação.
Três livros ganharam adaptação cinematográfica: O leão, a fei-
ticeira e o guarda-roupa (The Lion, the Witch and the Wardrobe) em
2005; Príncipe Caspian (Prince Caspian), no ano de 2008; e A viagem

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 243


do peregrino da alvorada (The Voyage of the Dawn Treader) em 2010.
Os dois primeiros foram adaptados pelo diretor Andrew Adamson, e
o último por Michael Apted.
A pesquisa se justifica pela grande aceitação do público pelas
estórias de Nárnia e pelo fato de a Bíblia como influência literária
ser um tema de extrema relevância para os estudiosos de literatura.
Utilizamos As crônicas de Nárnia (no original The Chronicles of Nar-
nia) como exemplificação da influência literária da Bíblia. Propomos
a análise de três livros da coletânea de C. S. Lewis, sob o ponto de
vista da intertextualidade bíblica presente na narrativa. Os livros são:
O sobrinho do mago (The Magician’s Nephew), O leão, a feiticeira e o
guarda-roupa (The Lion, the Witch and the Wardrobe) e A última ba-
talha (The Last Battle). Antes da análise dos textos literários é preciso
justificar o estudo da Bíblia enquanto literatura.

BÍBLIA E LITERATURA

A Bíblia é um conjunto de livros divididos em duas partes: o


antigo e o novo testamento. Existem diferentes versões da Bíblia, po-
rém esta pesquisa baseia-se nos textos da Bíblia protestante, sendo que
algumas outras versões incluem mais livros que outras. Sobre a diver-
sidade de Bíblias, Rogerson (1999) explica:

[...] existem Bíblias protestante, católicas e uma, pelo menos, que se diz
representar as igrejas ortodoxas orientais. Mais são diferentes apenas
porque algumas igrejas incluem mais livros em seus cânones do que
outras? Não. Existem outras diferenças: umas são textuais, outras
linguísticas e há ainda as doutrinas (ROGERSON, 1999, p. 21).

244 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Segundo o autor, os textos bíblicos mudaram de acordo com o
tempo, dando origem a diferentes cópias do texto, na qual se basea-
ram diferentes culturas e religiões. As diferentes versões da Bíblia re-
fletem a diversidade de povos que se apropriaram da narrativa cristã
para se organizar socialmente. De acordo com cada sociedade, o texto
“sagrado” precisou ser adaptado para satisfazer interesses de domina-
ção.
A Bíblia é um dos escritos mais antigos da humanidade, seus
textos possuem uma grande diversidade de gêneros textuais. Seu es-
tudo enquanto obra literária é legítimo. De acordo com Frye (2004),
nenhum livro poderia exercer uma influência literária tão pertinaz se
ele próprio não possuísse características de uma obra literária. Entre-
tanto, durante muito tempo o estudo da Bíblia enquanto literatura
foi considerado uma blasfêmia:

[..] até no século XX a literatura é vista frequentemente como


intromissão injuriosa na esfera religiosa, talvez até mesmo como
blasfêmia contra a qual a religião institucionalizada precisa defender-se:
não muito raramente, teólogos, cristãos referiram-se a textos literários
como ‘insolências piedosas’ (KUSCHEL, 1999, p. 23).

A literatura era vista como algo que se opunha à religião. Desta


forma, estudar a Bíblia como um texto apenas literário era ir contra o
que a religião institucionalizada permitia. Ou seja, era uma tentativa
de desassociar o livro do conceito de “sagrado”. Apesar da resistência
dos cristãos, ao longo dos séculos, o cristianismo tornou-se grande in-
fluência para a literatura. “Muito mais do que uma teologia voltada
para a explicação dos dogmas da igreja, o poder do cristianismo resi-
diu no fato de que seus personagens e narrativas foram transmitidos,

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 245


contados com novas cores e disseminados dentro de novas tramas”
(MAGALHÃES, 2000, p. 15).
A Bíblia não deve ser vista apenas como um livro religioso, mas
também como uma obra que exerceu e exerce fértil influência na lite-
ratura universal. Assim, o seu estudo é necessário para a compreensão
da produção literária de diferentes épocas. Todavia, Frye (2004) afir-
ma que existem dois caminhos no que diz respeito ao estudo da Bíblia
enquanto literatura:

Sempre houve duas direções na erudição bíblica: a crítica e a tradicional,


embora muitas vezes tenham se confundido. A abordagem crítica
estabelece o texto e estuda o pano de fundo histórico e cultural; a
tradicional o interpreta dentro do consenso de autoridades teológicas e
eclesiástica sobre seu significado (FRYE, 2004, p. 16).

A abordagem tradicional limita o pesquisador a estudar a Bíblia


dentro do que as autoridades teológicas permitem, ou seja, o estudo
da Bíblia deve ser feito através do ponto de vista religioso. Apesar des-
ta abordagem no aspecto teológico ser mais comum, o estudo da Bí-
blia através de um olhar crítico, enquanto obra literária, não é inédito,
visto que vários estudiosos já escreveram sobre o assunto. Frye (2004)
escreve, em seu livro O código dos códigos (2001), sobre a grande influ-
ência que o texto “sagrado” exerce sobre a nossa sociedade. “A Bíblia
certamente é um elemento da maior grandeza em nossa tradição ima-
ginativa, seja lá o que pensemos acreditar a seu respeito. Todo o tempo
ela nos lança a pergunta: por que esse livro enorme, extenso, desajei-
tado, fica no meio do nosso legado cultural [...]” (FRYE, 2004, p. 17).
Os textos bíblicos têm influenciado muitas obras literárias, e sua
importância é tão grande que, como afirma Frye (2004), é indispen-

246 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


sável o conhecimento bíblico para a compreensão da literatura ingle-
sa. Portanto, a Bíblia em sua formação possui características literárias
que justificam o seu estudo enquanto literatura, e sua aceitação pelo
público torna o livro uma das mais fortes influências no meio literário.
Em As crônicas de Nárnia (The Chronicles of Narnia) a influência
literária da Bíblia é percebida pelas semelhanças entre o texto de C.
S. Lewis e o texto bíblico. É perceptível que o autor utilizou de seu
conhecimento sobre as “sagradas” escrituras para construir algumas
de suas narrativas sobre a terra mágica de Nárnia, por meio da inter-
textualidade.

O QUE É INTERTEXTUALIDADE?

A produção literária se apresenta em uma diversidade de textos e


estilos que aumentam a cada dia com a publicação de novas obras. Al-
gumas estão à disposição de leitores do mundo todo e muitas apresen-
tam semelhanças entre si. Esta relação é chamada de intertextualidade.
Uma das mais importantes estudiosas sobre intertextualidade é
Julia Kristeva, que em seus estudos teoriza que um escritor ao cons-
truir suas narrativas tende a se basear em informações adquiridas an-
teriormente, afirmando que: “[...] todo texto se constrói como um
mosaico de citações e são absorção e transformação de outros textos”
(KRISTEVA, 1974, p. 64). Para a estudiosa, um texto é produzido de-
pois da leitura prévia de outros escritos. Um texto não se cria do nada,
o autor coloca em seus escritos conhecimentos anteriores de outras
leituras. Essas transformações são percebidas na relação entre o texto

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 247


e o leitor, e cabe ao autor a habilidade de transformar textos e ao leitor
perceber estas transformações. Sobre a relação entre o leitor e o texto,
Roland Barthes escreve que:

[...] todas as citações que constituem a escritura: a unidade do texto não


reside em sua origem, mas em seu destino, e este destino não pode ser
pessoal: o leitor é alguém sem história, sem biografia, sem psicologia; ele
é, simplesmente um qualquer que articula, em um único campo, todos os
traços a partir dos quais se constituem a escritura (BARTHES, 1984, p. 69).

Para Barthes, o leitor é o canal que perceberá todas as multipli-


cidades de relações existentes em um texto. O leitor apenas percebe a
intertextualidade no texto se ele possuir o conhecimento prévio sobre
o texto citado. Por exemplo, se um leitor que desconhece a Bíblia, ao
ler um dos contos de As crônicas de Nárnia não perceberá os intertex-
tos presentes na obra.

O SOBRINHO DO MAGO

Em O sobrinho do mago (no original The Magician’s Nephew) o


autor narra a origem da terra de Nárnia. O livro foi o penúltimo da
saga a ser publicado e é considerado o primeiro por ordem cronológica
dos acontecimentos. O autor conta sobre os primeiros visitantes em
Nárnia. A estória começa quando duas crianças de Londres: Digory e
Polly, encontram anéis mágicos de um bruxo, e através deles são leva-
dos a outros mundos. Em um desses mundos, Digory desperta uma
feiticeira e a leva para Londres. Depois de muitas confusões, Digory e
Polly conseguem colocar os anéis e tirar a feiticeira de nosso mundo,

248 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


mas eles acabam indo parar em um lugar onde nada existe, há apenas
um leão cantando e a partir da sua voz um mundo estava sendo cria-
do. Este lugar é Nárnia
As semelhanças com o texto bíblico acontecem quando o autor
narra o processo de criação de Nárnia. No relato da gênese, o nosso
mundo é criado do nada, a partir da voz de um ser superior, assim
como acontece na criação de Nárnia. As coisas surgem de acordo com
a canção do leão, considerado o “Deus” dos narnianos:

O leão andava de um lado para o outro na terra nua, cantando uma


nova canção. Era mais suave e ritmada do que a canção com a qual
convocara as estrelas e o sol; uma canção doce, sussurrante. A medida
que caminhava e cantava, o vale ia ficando verde de capim. [...] E surgiam
outras coisas além da relva [...]. (LEWIS, 2009, p. 59).

No relato da Bíblia a terra é criada do vazio: “E a terra era sem for-


ma e vazia e havia trevas sobre a face do abismo; e o espírito de Deus se
movia sobre a face das águas. E disse Deus: Haja luz. E houve luz” (Bí-
blia Sagrada, Gênesis 1: 2-3.). Nárnia também surgiu do nada: “- Aqui
não é Charn. - Era a voz da feiticeira. - Aqui é um mundo vazio. Aqui
é nada. E, de fato, parecia mesmo nada. Não havia uma única estrela.
Era tão escuro que não se enxergavam [...]” (LEWIS, 2009 p. 59).
Percebemos que existem semelhanças entre as duas narrativas,
visto que antes da criação de ambos os mundos, havia apenas a escuri-
dão, nada além disso, e os dois deuses criaram os seus mundos verbal-
mente. Em Nárnia o mundo surge através do poder da voz de uma di-
vindade que tinha forma de um leão, chamado por Aslam. Podemos
encontrar na Bíblia trechos que descrevem Jesus, usando a simbologia
do leão: “E disse-me um dos anciões: Não chores, eis aqui o Leão da

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 249


tribo de Judá, a Raiz de Davi, que venceu para abrir o livro e desatar
os seus sete selos” (Bíblia Sagrada, Apocalipse 5: 5). Segundo o que
está escrito na Bíblia, a descrição de Jesus como Leão de Judá é uma
metáfora que faz referência a um dos doze filhos de Jacó, Judá recebeu
uma bênção especial, e de seus descendentes nasceria o filho de Deus.
Os primeiros visitantes de Nárnia foram Digory, Polly, André -
o tio de Digory -, a feiticeira, um cocheiro e sua mulher, que foram
trazidos do nosso mundo durante as confusões nas ruas de Londres.
O leão ordenou que o cocheiro e sua mulher fossem os primeiros ha-
bitantes humanos de Nárnia, eles seriam os primeiros reis, ficariam
responsáveis por proteger e cuidar dos animais, semelhantemente ao
relato bíblico. Depois de ter criado o nosso mundo, o Deus da Bíblia
cria dois seres humanos, um homem e uma mulher, e dá a eles os no-
mes de Adão e Eva, eles seriam os primeiros habitantes, responsáveis
por cuidar do novo mundo. “E tomou o Senhor Deus o homem e o
pôs no jardim do Éden para o lavrar e o cuidar” (Bíblia Sagrada, Gê-
nesis 2: 15).
Digory, por ter trazido a feiticeira para Nárnia, foi o responsável
por introduzir o mal em terras narnianas. Por esta razão, o leão pede
que o menino vá buscar um fruto; para que possa plantar uma árvore
com a semente. Esta árvore seria a responsável pela proteção de Nárnia
durante anos, ela afastaria a feiticeira, mas Digory não deveria comer
do fruto. No momento em que o menino encontra a árvore com o
fruto, que ficava fora das terras de Nárnia, ele também encontra a fei-
ticeira, que tenta convence-lo a comer o fruto, oferecendo eternidade
e poder em troca.

250 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Sei a missão que o trouxe aqui - continuou a feiticeira. Era eu quem estava
perto de vocês na noite passada, ouvindo tudo. Você colheu o fruto do
jardim. Está no seu bolso. E vai levá-lo, sem provar dele, para o leão: para
que ele coma o fruto; para que ele use o fruto. Simplório! Sabe que fruto
é este? É a maçã da eterna juventude. Sei por ter provado, e também já sei
que jamais ficarei velha ou morrerei. Coma a maçã , rapaz, coma a maçã
e viveremos os dois eternamente e seremos reis deste mundo ou do seu
próprio mundo, se resolver voltar para lá (LEWIS, 2009, p. 86).

No relato bíblico, depois de Deus ter criado o homem e a mulher,


avisa que eles não poderiam comer do fruto de uma árvore, que ficava
no meio do jardim do Éden, pois se comessem, morreriam. A serpen-
te, que na Bíblia representa a figura do mal, utiliza de argumentos
para fazer com que a mulher coma do fruto. O relato dessa passagem
bíblica se assemelha com a história de C. S. Lewis:

Ora, a serpente era mais astuta que todas as alimárias do campo que o
senhor Deus tinha feito. E esta disse à mulher: É assim que Deus disse:
Não comereis de toda árvore do jardim?
E disse a mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim comeremos,
mas, do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não
comereis dele, nem nele tocareis, para que não morras.
Então a serpente disse à mulher: Certamente não morrereis.
Porque Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, se abrirão os
vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal (Bíblia Sagrada,
Gênesis 3: 1-5).

Digory e Eva foram os responsáveis por introduzir o mal em seus


mundos e são semelhantemente tentados por uma figura que repre-
senta o mal. No entanto, Lewis mudou o final em sua narrativa. Di-
gory não cede à feiticeira e resolve não comer o fruto, obedecendo à
ordem do leão.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 251


A serpente representava o mal no jardim do Éden. Se o Leão re-
presenta Deus, na literatura de C. S. Lewis, podemos afirmar que a
feiticeira é o lado oposto do sagrado, ou seja, o diabo. Ela representa
o mal na forma do belo do atrativo, sendo descrita nos textos como
uma mulher extremamente bonita: “Apesar disso, era bela. Muitos
anos depois, já velho, Digory chegou a dizer que nunca vira mulher
mais bela em toda a sua vida” (LEWIS, 2009, p. 32). A Bíblia relata
que o diabo pode se transformar em um anjo de luz: “E não é mara-
vilha, porque o próprio satanás se transfigura em anjo de luz” (Bíblia
Sagrada, 2 Coríntios 11: 14). Ou seja, ele também tem sua forma de
belo e atraente. Como já citamos anteriormente, a feiticeira trouxe o
mal para Nárnia, assim como o diabo em forma de serpente trouxe o
mal para nosso mundo, de acordo com a perspectiva cristã. Mas assim
como a Bíblia descreve que Deus exerce poder sobre satanás, Aslam
exerce poder sobre a feiticeira.
No final da história, Digory leva o fruto para o leão, sem provar
dele. O leão pede que Digory enterre o fruto para que cresça uma ár-
vore, como Nárnia era uma terra mágica, a árvore cresceu e deu seus
frutos logo depois que foi plantada. Contudo, o menino ainda queria
que o leão entregasse a ele alguma coisa para curar sua mãe, que estava
muito doente. O leão entrega a ele um fruto da árvore recém plantada.
Digory, Polly e o Tio André são mandados de volta para o nosso mun-
do, pelo leão. Em Londres, Digory entrega o fruto para a sua mãe,
que, ao comê-lo, fica milagrosamente curada. A feiticeira foge para o
norte, onde se tornará mais forte, mas não poderá entrar em Nárnia
enquanto a árvore plantada por Digory estiver de pé.

252 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


O LEÃO, A FEITICEIRA E O GUARDA-ROUPA

O livro O leão, a feiticeira e o guarda-roupa (no original The Lion,


the Witch and the Wardrobe) é o segundo em ordem cronológica da
estória. Lewis conta sobre quatro irmãos: Susana, Lúcia, Pedro e Ed-
mundo. As crianças são levadas para a casa de campo de um velho
professor, por causa dos ataques aéreos durante a segunda guerra
mundial. A história se passa em Londres. A aventura começa quando
Lúcia, a irmã menor, descobre um antigo guarda-roupa, e ao entrar
nele viaja para a terra encantada de Nárnia. Em Nárnia, a menina en-
contra um fauno que conta a ela sobre o governo cruel da feiticeira
branca, e fala sobre uma profecia que dizia que dois filhos de Adão
e duas filhas de Eva libertariam Nárnia da feiticeira. Lúcia fala para
seus irmãos sobre o portal, mas eles não acreditam, porém, Edmundo
também descobre a passagem, mas, quando chega em Nárnia, é enga-
nado pela feiticeira, que pede que ele entregue seus irmãos em troca
de riquezas.
Depois de Edmundo e Lúcia, Susana e Pedro também encontram
o guarda-roupa e entram em Nárnia. Os quatro irmãos lutam juntos
para derrotar a feiticeira branca. A história de Edmundo e seus irmãos
se assemelha com o relato bíblico de Gênesis, sobre José do Egito, que
foi vendido pelos seus irmãos em troca de riquezas: “Passando, pois,
os mercadores midianitas, tiraram, e alçaram José da cova, e venderam
José por vinte moedas de prata aos ismaelitas, os quais levaram José
ao Egito” (Bíblia Sagrada, Gênesis 39: 28). Tanto os irmãos de José
quanto Edmundo se arrependeram de seus feitos, mas sofreram suas
consequências.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 253


No entanto, os intertextos são mais perceptíveis se compararmos a
história dos quatro irmãos, com a história de Jesus Cristo contada nos
evangelhos. O ambiente político em Nárnia era semelhante ao de Is-
rael na época de Jesus. Os dois reinos estavam sendo governados por
estrangeiros e sofriam com a crueldade desses governos. Os dois povos
acreditavam que surgiria um libertador. Para os israelitas, seria o filho
de Deus em forma de homem que desceria dos céus para socorrê-los.
Para os narnianos, seria Aslam que ressurgiria e, com a ajuda de dois
filhos de Adão e de duas filhas de Eva, traria a paz de volta para Nárnia.
Em Israel, os hebreus viviam sobre a regência dos romanos. Os
hebreus acreditavam que Deus enviaria o seu filho em forma humana
para libertá-los. Isto porque em uma época anterior ao nascimento
de Jesus, existiram vários profetas que falavam sobre o surgimento de
um messias. O povo acreditava que os profetas eram os mensageiros
de Deus. Uma dessas profecias está no livro de Jeremias:

Eis que vêm dias, diz o SENHOR, em que levantarei a Davi um renovo
justo; sendo rei, reinará, e prosperará, e praticará o juízo e a justiça na
terra.
Nos seus dias, Judá será salvo, e Israel habitará seguro; e este será o nome
com que o nomearão: O SENHOR, Justiça Nossa (Bíblia Sagrada,
Jeremias 23: 5-6, p. 957).

Na época em que a feiticeira governava Nárnia, não havia rela-


tos da aparição de Aslam, muitos estavam começando a desacreditar
da sua existência. Entretanto, os narnianos acreditavam em profecias,
uma delas era sobre o retorno de Aslam, “O mal será bem quando
Aslam chegar, ao seu rugido a dor fugirá, nos seus dentes, o inverno

254 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


morrerá, na sua juba, a flor há de voltar” (LEWIS, 2009, p. 137). Ou-
tra profecia se refere aos filhos de Adão, como os humanos eram co-
nhecidos em Nárnia. A profecia dizia que, “Quando a carne de Adão,
quando o osso de Adão, em Cair Paravel, no trono sentar, então há de
chegar ao fim a aflição [...]”. (LEWIS, 2009, p. 138).
Os irmãos chegam a Nárnia e são avisados sobre o perigo da fei-
ticeira, mas Edmundo ignora, foge, e vai até o palácio da rainha para
entregar seus irmãos. A feiticeira engana e captura o menino, e depois
vai atrás dos seus irmãos. Neste momento a profecia se cumpre e As-
lam ressurge para proteger Nárnia e as crianças. O leão faz um acordo
com a feiticeira e entrega a sua vida em troca de Edmundo. Aslam é
morto de forma cruel pela feiticeira e seus aliados em uma mesa de pe-
dra. Apenas Lúcia e Susana acompanham a cena. No entanto, depois
de um tempo a mesa se quebra ao meio e o Leão ressuscita:

[...] a feiticeira pode conhecer a magia profunda, mas não sabe que
há outra magia ainda mais profunda. O que ela sabe não vai além da
aurora do tempo. Mas, se tivesse sido capaz de ver um pouco mais longe,
de penetrar na escuridão e no silêncio que reinam antes da aurora do
tempo teria aprendido outro sortilégio. Saberia que, se uma vítima
voluntária, inocente de traição, fosse executada no lugar de um traidor,
a mesa estalaria e a própria morte começaria a andar para trás (LEWIS,
2009, p. 174-175).

Aslam se entregou sabendo que existia uma magia que o ressusci-


taria, assim como Jesus que, mesmo antes de morrer, já anunciava que
ressurgiria depois de três dias. “[...]. É necessário que o filho do ho-
mem padeça muitas coisas, e seja rejeitado dos anciões e dos escribas, e
seja morto, e ressuscite ao terceiro dia.” (Bíblia Sagrada, Lucas 9: 22).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 255


Cumprindo as profecias, Jesus vem à terra para libertar os israeli-
tas. Ele é vítima de traição, e é condenado à morte pelo próprio povo
que queria salvar. Ele morre de forma cruel em uma cruz, e depois de
três dias ressuscita. Segundo a Bíblia, Jesus morre para salvar um povo
que praticava a maldade. Os dois personagens são torturados, e apesar
de possuírem poder sobre seus inimigos, aceitaram tudo calado. No
seu texto Lewis, relata a superioridade de Aslam, “Claro que, se o leão
quisesse, uma patada seria a morte para eles. Mas ficou quieto, mesmo
quando os inimigos rasgaram a sua carne de tanto esticarem as cor-
das. Depois, começaram a arrastá-lo para o centro da mesa” (LEWIS,
2009, p. 170). Agora vejamos o relato bíblico:

Ele foi oprimido, mas não abriu a boca; como um cordeiro, foi levado
ao matadouro e, como a ovelha muda perante os seus tosquiadores, ele
não abriu a boca.
Da opressão e do juízo foi tirado; e quem contará o tempo da sua vida?
Porquanto foi cortado da terra dos viventes e pela transgressão do meu
povo foi ele atingido. (Bíblia Sagrada, Isaias 53: 7-8 p. 912-913).

Percebe-se a semelhança entre a morte de Jesus na cruz e a de As-


lam em uma mesa de pedra. Além disso, há uma analogia associada
à mesa de pedra como uma simbologia presente na Bíblia. Os israeli-
tas ofereciam ao senhor sacrifícios de animais em um altar de pedra,
como forma de demonstrar gratidão ou de se redimir de seus pecados:

‘E chamou o Senhor a Moisés e falou com ele da tenda da congregação,


dizendo:
Fala aos filhos de Israel e dize-lhes: Quando algum de vós oferecer oferta
ao Senhor, oferecereis as vossas ofertas de gado, de vacas e de ovelhas.

256 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Se a sua oferta for holocausto de gado, oferecerá, de sua própria vontade,
perante o Senhor.
E porá a sua mão sobre a cabeça do holocausto para que seja aceito por
ele, para a sua expiação.
Depois, degolará o bezerro perante o Senhor; e os filhos de Arão, os
sacerdotes, oferecerão o sangue e espargirão o sangue a roda sobre o
altar que está diante da porta da tenda da congregação’ (Bíblia Sagrada,
Levítico 1: 1-5).

Esse sacrifício de animais é contado apenas no velho testamen-


to, pois a Bíblia relata que Jesus Cristo morreu como sacrifício único,
para redimir todos os “pecadores”. Muitos textos bíblicos fazem refe-
rência a Jesus como um cordeiro. Assim, a morte de Aslam em uma
mesa de pedra para salvar um pecador é uma analogia ao sacrifício de
Jesus Cristo.
Depois de Aslam ter ressuscitado, ele vai de encontro com os
quatro irmãos, que juntos conseguem libertar Nárnia da opressão da
feiticeira branca. Os irmãos se tornam os reis e rainhas de Nárnia, e
Aslam desaparece novamente. As crianças crescem e se tornam adul-
tos, até que um dia encontram o caminho de volta para casa de cam-
po, e quando retornam voltam a ser crianças, no exato momento em
que tinham entrado no guarda-roupa.

A ÚLTIMA BATALHA

Em A última batalha (no original The Last Battle) o autor conta


como aconteceu o fim de Nárnia. A estória começa quando um ma-
caco, chamado Manhoso, e seu amigo, um jumento, que tinha por

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 257


nome confuso, encontram uma pele de leão no rio e decidem enganar
o povo, fazendo o jumento se passar por Aslam. O macaco começa
a escravizar os narnianos, dizendo que são ordens de Aslam. Tirian,
o último rei de Nárnia, fica sabendo da tirania do macaco e tenta re-
solver o caos, mas é capturado pelos calormanos, povo inimigo, com
quem o macaco fez aliança para explorar os recursos de Nárnia. O rei
então clama por socorro e duas crianças do nosso mundo são enviadas
pelo verdadeiro Aslam para socorre-lo.
A narrativa tem semelhanças com algumas profecias bíblicas so-
bre o fim do mundo, escritas no livro de Apocalipse. Segundo o texto
“sagrado”, nos últimos dias surgirão muitos falsos profetas, afirman-
do serem o próprio Deus. As pessoas perderiam o amor ao próximo e
enganariam uns aos outros:

Nesse tempo, muitos serão escandalizados, e trair-se-ão uns aos outros,


e uns aos outros se aborrecerão.
E surgirão muitos falsos profetas e enganarão a muitos
E, por se multiplicar a iniquidade o amor de muitos esfriará (Bíblia
Sagrada, Mateus 24: 10-12).

Aslam se aborrece com a iniquidade dos habitantes de Nárnia e


resolve destruí-la. O leão pune o macaco e todos os outros que pra-
ticavam a maldade. As pessoas boas são levadas para uma nova Nár-
nia, onde não existe maldade e a felicidade é constante. Aslam chama
para viver nessa nova Nárnia todos os que ajudaram anteriormente os
narnianos em outras histórias, e, nessa terra, eles viverão por toda a
eternidade:

258 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


[...] para nós, este é o fim de todas as histórias, e podemos dizer, com
absoluta certeza, que todos viveram felizes para sempre. Para eles, porém,
este foi apenas o começo da verdadeira história. Toda a vida deles neste
mundo e todas as suas aventuras em Nárnia haviam sido apenas a capa
e a primeira página do livro. Agora, finalmente, estavam começando o
Capítulo Um da Grande História que ninguém na terra jamais leu: que
continua eternamente e na qual cada capítulo é muito melhor que o do
anterior (LEWIS, 2009 p. 737).

Na Bíblia, podemos ler sobre um novo céu e uma nova terra, para
onde as pessoas que foram boas serão levadas, quando as profecias do
fim do mundo se cumprirem:

E vi um novo céu e uma nova terra. Porque já o primeiro céu e a primeira


terra passaram, e o mar já não existe.
E eu, João Vi a Santa Cidade, a nova Jerusalém, que Deus descia do céu,
adereçada como uma esposa ataviada para o seu marido.
Quem vencer herdará todas as coisas, e eu serei seu Deus, ele será meu
filho. (Bíblia Sagrada, Apocalipse 21: 1-2 e 7).

Outra semelhança entre os textos, diz respeito ao julgamento


final. Em Nárnia, Aslam separa as criaturas de acordo com as suas
ações. Os que praticaram o bem seguirão para uma nova Nárnia, e os
que praticaram maldade foram levados para um lugar desconhecido,
acompanhados por uma sombra negra:

E todas as criaturas que olhavam para Aslam daquele jeito desviavam-


se para a direita (isto é, à esquerda dele), desaparecendo no meio da
sua imensa sombra negra, que (como já lhes disse) se espraiava para a
esquerda, do lado de fora do portal. As crianças nunca mais viram essas
criaturas. Não sei o que se passou com elas. Outras, porém, olhavam
para a face de Aslam e o amavam, embora algumas ficassem ao mesmo
tempo muito assustadas (LEWIS, 2009 p. 720).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 259


Na Bíblia, lemos o relato de um julgamento, que separará os seres
humanos por suas obras. Os que fazem o bem herdarão o novo céu e a
nova terra, e os que praticam a maldade terão como destino o inferno:

[...] E o mortos foram julgados pelas coisas que estavam escritas nos
livros, segundo as suas obras.
E deu o mar os mortos que nele havia; e a morte e o inferno deram os
mortos que nele havia; e foram julgados cada um segundo as suas obras
(Bíblia Sagrada, Apocalipse 20: 12-13).

Neste último livro analisado, percebemos que o autor utilizou-


-se de alguns textos bíblicos que relatam a destruição do mundo para
construir a narrativa sobre os últimos dias de Nárnia. Assim como
o fim da terra narrado na Bíblia, o fim de Nárnia foi motivado pela
maldade de seus habitantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Depois de analisar as teorias de alguns estudiosos no que diz res-


peito a Bíblia enquanto literatura, pudemos observar que, apesar do
conceito de “sagrado” para os religiosos, seu estudo enquanto obra
literária é indispensável, já que exerce uma grande influência em nos-
sa sociedade. Também analisamos como esta influência se materializa
na produção literária em geral, e nos baseamos na intertextualidade
para explicar a relação entre textos. No tópico destinado ao estudo da
intertextualidade, destacamos que ela é percebida na relação entre o
leitor e o texto.

260 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Na análise das obras, abordamos os intertextos bíblicos que são
perceptíveis nos livros de C. S Lewis: O sobrinho do mago e o livro de
Gênesis possuem semelhanças, pois ambos relatam a criação de um
mundo, e a tentação do homem. Em O leão, a feiticeira e o guarda-rou-
pa, é perceptível uma semelhança entre o contexto social vivido por
Israel na época de Jesus e o vivido por Nárnia na época da feiticeira,
as duas histórias relatam a morte e a ressurreição de um ser divino,
que dá a vida pelos pecadores. Em A última batalha, percebemos uma
aproximação com o livro de Apocalipse, visto que os dois textos rela-
tam o fim de um mundo, o julgamento de seres, e o destino final deles.
Conclui-se, portanto, que a construção das histórias de alguns livros
da coletânea As Crônicas de Nárnia foram escritas pelo autor com o
intuito de reescrever os textos bíblicos em um novo contexto.

COMO CITAR ESTE TEXTO

PINHEIRO NETO, J. J. Bíblia e Literatura: Uma Análise dos Intertextos Bíblicos em As


Crônicas de Nárnia, de C. S Lewis . In: SOARES, I. M.; LESZCZYNSKI, T. (Orgs.). Um
percurso pelas literaturas de língua inglesa. Tutóia/MA: Diálogos, 2023. p. 242-262.
https://doi.org/10.52788/9786589932796.1-12

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. O Rumor da Língua. Lisboa: Edições 70, 1984.


BÍBLIA SAGRADA. Harpa Cristã. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil
Rio de Janeiro: CPAD, 2004.
FRYE, Northrop. O Código dos Códigos: A Bíblia e a Literatura. São Paulo:
Boitempo, 2004.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 261


KRISTEVA, Júlia. Introdução à Semanálise. Tradução de Lúcia Helena Ferraz.
São Paulo: Perspectiva, 2014.
KUSCHEL, Karl-Josef. Os Escritores e as Escrituras. Trad. Paulo Astor Soethe.
São Paulo: Loyola, 1999.
LEONEL, João; ZABATIERO, Júlio Paulo Tavares. Bíblia, Literatura e
Linguagem. São Paulo: Paulus, 2011.
LEWIS, C. S. As Crônicas de Nárnia. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2009.
MAGALHÃES, Antonio. Deus no espelho das palavras: Teologia e Literatura
em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000.
ROGERSON, J. W. (John William). O Livro de ouro da Bíblia. Rio de Janeiro:
PocketOuro, 2010.
RUSHDIE, Salman. Haroun e o Mar de Histórias/ Salman Rushdie; tradução
Isa Mara Lando. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

262 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


capítulo 13

Os modelos científicos e os textos


ficcionais de Thomas R. Pynchon
1

Saulo Cunha de Serpa Brandão

INTRODUÇÃO

Venho ao longo de minha carreira pelejando com um modo de


representação que denominei no começo dessa caminhada como Mo-
delismo. Este nome vem porque, grosso modo, para este início, os fic-
cionistas que adotam esse modo, buscam no mundo subatômico os
maneirismos de seus personagens e nas tecnologias aspectos de seus
espaços. A consequência é que os textos desses autores parecem ser
caóticos, nonsense, ao leitor comum. Mas essa aparência esquisita de-
saparece quando a obra é vista sob o prisma do Modelismo.
A dificuldade que se apresenta na leitura das peças ficcionais por
parte da maioria dos leitores é que, geralmente, quem lê romances e

1 Uma versão simplificada deste capítulo foi publicada na Revista do GELNE em 2002. O texto
atual recebeu acréscimo teórico para tratar de possiblidades actanciais que reforça o tratamento
de personagens no modo de representação criado pelo autor que o denomina de Modelismo. A
Revista do GELNE é signatária da Licença Creative Commons, com atribuição CC BY-NC-SA
4.0, que permite ao público a remixar, adaptar, acrescentar ao trabalho desde que seja concedido
o crédito para o autor e publicado sob outra licença com os mesmos direitos. Como este livro
está sendo publicado para livre distribuição pela rede internacional, nada impede a republicação
editada e acrescida pelo próprio autor.

DOI: 10.52788/9786589932796.1-13 263


poesias de forma crítica, não tem conhecimento das regras do mun-
do subatômico e da feição de objetos tecnológicos. E depois, o modo
de representação que defendo não está declaradamente sendo utiliza-
da. É claro que os ficcionistas dão pistas sobre os caminhos que estão
trilhando em suas criações e cabe ao leitor entender as relações. Por
exemplo, meu exemplo: eu sou leitor assíduo e constante do novelista
estadunidense Thomas R. Pynchon e por outro lado dediquei minha
carreira de professor a entender e ensinar as Teorias da Literatura. Tam-
bém estive envolvido quando aluno de graduação com Biofísica. Essas
experiências juntas me levaram a perceber que Pynchon indicava um
caminho para leitura de seus livros em que as situações ficcionais fica-
vam menos caóticas. Eu comecei a seguir essa trilha quando, ainda na
graduação de Letras, deparei-me com um conto do autor que se chama
Entropy. A essa altura, eu já estava iniciado nas questões da Termodinâ-
mica por ter sido monitor de Biofísica por três anos em minha primeira
graduação. Com esse achado eu passei a buscar um entendimento das
obras daquele autor sempre pelo prisma da Termodinâmica.
Concluí a graduação e adentrei no mestrado em Teoria da Litera-
tura com um projeto chamado Vetor de caos na literatura: Entropia e
defendi a dissertação como o mesmo nome. No doutorado, eu me de-
diquei a desenvolver o Modelismo como uma teoria. O resultado foi
muito gratificante e o objetivo foi alcançado, eu mesmo acredito nisso
e a banca que avaliou o trabalho também confirmou minha crença. O
título da tese é Aprendendo a ler o mundo com Thomas R. Pynchon:
Uma aproximação entre as Ciências e a Literatura.
Durante os anos seguintes, eu assumi a missão de dar mais visi-
bilidade às possibilidades de crítica literária a partir de premissas das

264 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


ciências. A estratégia era a comum ao mundo acadêmico: apresentar
trabalhos em congressos, fazer palestras, mesas redondas e publicar
artigos fazendo uso do Modelismo para ler diversas obras de ficção.
Por conta disso, considero o Modelismo como uma pesquisa sempre
em andamento (work-in-progress). Estou sempre atualizando, reescre-
vendo e buscando novas noções teóricas para serem incorporadas,
bem como novas peças ficcionais que se prestem para a leitura confor-
me esse modo de representação.
A inovação que trago neste momento, para este paper, é a incor-
poração de um termo da Semiótica Greimassina que vai arredondar a
percepção dos personagens no Modelismo. O termo é: Actante. Por-
que no Modelismo é muito comum forças físicas terem papel muito
importantes no desenvolvimento da narrativa. Por exemplo, no conto
Entropy, citado acima, tempo, temperatura e pressão são muito mais
importantes do que a maioria dos personagens antropomorfizados. E
sempre me causou desconforto tratar essas forças como sendo perso-
nagens. A adoção do termo actante resolve, de forma permanente essa
situação. Porque um actante, como quer Greimas, pode ser qualquer
agente que movimente a ação no texto.
Então, para facilitar a compreensão das análises de obras ficcio-
nais a partir do Modelismo, introduzimos, a partir deste capítulo, o
termo actante para nos referirmos a forças ou objetos que atuam na
movimentação na fabulação e continuaremos a chamar de persona-
gens aquelas representações de seres humanos que habitam os labirin-
tos das ficções.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 265


ACTANTES

Por força da complexidade com a qual Greimas trata o termo em


tela, porque ele é central para sua teoria semiótica para a qual ele de-
dica um longo ensaio, adotaremos o termo a partir de leitores qualifi-
cados da obra de Greimas. Então vejamos o que nos ensina o teórico
lituano quer com o temo actante

O primeiro aspecto importante que deve ser enfatizado seria a


identificação errônea do actante com personagens concretos, agora
chamados de ‘atores’. Valles explica por entender o ator como um
personagem ‘de ordem semântica’, e o actante como ‘um ser ou coisa
que, por qualquer motivo, participa do processo’2 (Valles, 1994,
p.194).(Tradução livre nossa)

Com esse breve trecho espero ter clareado a real significação do


termo aactante como quer Greimas. Para reforçar de forma prática
como funciona os actantes convidamos os autores Tapia-Gabriel e
Argüelles que em seu artigo A chorona: Análise litero-simbólica3
(tradução livre nossa) onde eles analisam lenda mexicana A chorona e
identificam valores com a beleza da personagem, o sistema falocêntri-
co, a morte, a comunidade subalterna (indígenas) como actantes e em
outras passagens eles chamam de personagens os seres antropomofi-
sados como Hécata, Lamia e Alcibíades.

2 No original: El primer aspecto importante que convendría subrayar sería la errónea


identificación del actante con personajes concretos, ahora llamados de “actores”. Valles lo explica
entendiendo al actor como personaje “de ordem semántico”, y al actante como “un ser o cosa
que, por cualquier razón participa en el processo”. (Valles, 1994, 129)
3 Título no original La llorona: Análisis literario-simbólico

266 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Com essa explicação, considero introduzido no modo de repre-
sentação que chamo de Modelismo, o termo greimassiano actante.

DANDO A CONHECER

Como afirmei acima, tenho trabalhado insistentemente na di-


vulgação do Modelismo participando de congressos, palestrando e
debatendo, além dessas ações muito de minha produção bibliográfi-
ca foi dedicada ao detalhamento do modelo de representação, quer
incrementando aspectos teóricos ou analisando obras de ficcionistas
estadunidenses que ganham clareza sob o prisma que defendo. Tenho
dedicado muita energia às análises das obras de Thomas Pynchon,
mas outros autores, como John Barth, Herman Melville, William Gi-
bson também tiveram minha atenção.
Defendo que autores, especialmente os contemporâneos, vivem
em um tempo em que o cientificismo é lugar comum e eles, como habi-
tantes desse panorama, não podem se esquivar da influência. Não que-
ro dizer que esses autores sejam adeptos da crença que todas as mazelas
de nossa sociedade podem ser resolvidas pelas ciências, muito pelo con-
trário. Pynchon é um exemplo de como escritores podem desconstruir
e subverter a pretensa autoridade do discurso científico. Mas, na con-
tramão, um autor como Herman Melville, em pleno século XIX, escre-
ve uma peça como Bartleby, the scrivener: A story of Wall Street. Um
conto completamente dominado pela força inescapável da entropia.
Autores modelistas se apropriam de conceitos e modelos científi-
cos para fazer que suas ficçõe, de alguma forma, funcione seguindo os

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 267


padrões ditados pelos modelos científicos: em Pynchon, encontramos
a consequência de uma sociedade se portando tal qual o mundo ato-
místico que quer a física. O resultado é uma sociedade caricaturada
que em muito pouco coincide com o que podemos chamar de Reali-
dade Observada. John Barth se apropria do modelo biológico do ato
fecundação em nível de gametas feminino e masculino ao escrever o
seu Lost in the funhouse. Para citar alguns.
A partir da próxima fase deste escrito, detalharei alguns aspectos
teóricos do Modelismo.

TRÊS CONCEITOS: MIMESIS E DUAS REALIDADES

Uma vez escolhido o caminho a trilhar, faz-se necessário esclare-


cer alguns termos que usaremos no desenvolvimento de nossa tarefa,
para que ela apresente a transparência esperada em um trabalho aca-
dêmico. Dois conceitos são fundamentais e devem ser explicados de
pronto, são eles: Mimesis e Realidade. Nos parece uma tarefa impos-
sível, embora desejável, tratar desses dois conceitos isoladamente. Mas
eles vêm entrelaçados e falar de um, é falar do outro, graças ao caráter
completivo que eles apresentam e o dialogismo que eles exigem.
Primeiramente, vejamos como podemos definir mimesis de for-
ma que fique claro para o leitor a que estamos nos referindo, quando
mencionamos essa palavra. Mas, como dito, necessitamos de um con-
ceito de realidade - que será provisório - até que definamos a realida-
de da qual trataremos neste trabalho. Para tanto, serve uma realidade
dualista presa aos moldes dos filósofos realistas do século XVII, para

268 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


quem o mundo existe, em parte, pelas faculdades existentes no objeto
observado e, por outro lado, pela nossa capacidade de interagir com
essas faculdades – aos moldes do que quer Descartes. Talvez este seja
o conceito mais simples para o termo, mas que serve ao nosso objetivo
na definição de mimesis.

MIMESIS

O conceito de mimesis é alvo de tamanha atenção por parte de


filósofos e artistas que, para utilizá-lo como um dos termos centrais
deste trabalho, somos obrigados a tecer uma breve consideração sobre
como o termo vem sendo definido ao longo da história, para então
determinarmos como o aplicaremos neste escrito.
Desde muito cedo na história da civilização ocidental, a ideia de
mimesis vem sendo trabalhada, expandida e modificada. O que se tem
como denominador comum, dentre as várias possibilidades deixadas
por Platão para o termo mimesis nos Diálogos, é a ideia de que mime-
sis é a imitação da realidade, e que o artista pode tomar dois caminhos
para retratá-la: o primeiro seria a partir da perspectiva de um narra-
dor da diegese; e, o segundo, na visão de um narrador mimético. Para
Platão, o primeiro era o bom artista, uma vez que a arte dele procura
manter um alto padrão de moralidade, enquanto o segundo privile-
gia o estilo, que pode vir junto com uma moral censurável (posição
aristotélica). Estas críticas são feitas a partir de trechos de a Ilíada, que
findam por classificar Homero como um mau poeta por fazer uso,
com tanta frequência, do segundo estilo.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 269


Está nas críticas a Homero a gênese da grande fissura existente
entre o pensamento platônico e aristotélico quanto aos conceitos de:
mimesis, realidade e produção artística. Para Aristóteles também, mi-
mesis é a imitação da realidade, mas ele expande mais o conceito, co-
locando em foco outros aspectos, como por exemplo, a dinâmica que
impulsiona o enredo em relação aos motivos encontrados na realidade
e usa com frequência o termo “criação”. Implicando, assim, a obra de
arte não só como imitação, mas também como concepção de um novo
mundo. Ao final da Poética aristotélica, existe uma passagem onde há
um tributo a Homero (XVIV, §155), justamente pela capacidade deste
de fazer um texto artístico sem utilizar sistematicamente sua própria
voz, ou seja, faz arte a partir da narração mimética, que fora criticada
por Platão.
Essa polêmica situa o começo de um grande debate sobre mi-
mesis. Sendo que as ideias de Platão predominaram durante todo o
medievo e começo da Idade Moderna no mundo ocidental – mesmo
porque a Poética de Aristóteles só viria a ser descoberta no século XV
– guardando poucas exceções. No mundo anglicano, a partir de Hen-
ry James, começo do século XIX, teóricos aglutinaram-se em torno
das ideias aristotélicas a favor de uma narração dramatizada, em detri-
mento da proposta de Platão por uma “diegese pura”.
A introdução do conceito de tempo histórico no sistema de pen-
samento ocidental, inicialmente por Santo Agostinho e depois reto-
mado por Descartes e Rousseau, terá papel fundamental na prática
mimética de escritores da época moderna. Mimesis, para estes auto-
res, ganha uma nova e frutífera conotação de “repetição”. O teórico
Ame Melberg (1995) em sua Theories of mimesis acusa essa mudança

270 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


e explica a nova mecânica a partir de análise de textos de Cervantes,
Rousseau, Kierkegaard. Nos exemplos citados no livro de Melberg,
os personagens partem em jornadas na esperança de que possam revi-
ver momentos felizes, mas sempre fracassam. Não interessando o grau
de semelhança alcançada em comparação com a experiência primei-
ra. Com isso, o autor inglês deseja mostrar que o intervalo temporal
entre duas ações, embora a topografia, personagens e actantes sejam
aparentemente os mesmos, não permite que um fato se repita, tal qual
o original. Para concluir que a mimesis moderna acontece dentro de
uma igualdade que traz internamente uma diferença.
É essa mimesis que queremos para este trabalho. Não a mimesis
como imitação pura, ou imitação de uma imagem internalizada, ou
imitação por imitação, mas um processo mimético que apresente um
aspecto multifacetado, que privilegie tanto a semelhança quanto a di-
ferença, ou até melhor, que aponte a diferença dentro da semelhança.
Este tipo de raciocínio é concordante com as teorias mais ousa-
das de nossa história recente, senão relembremos o embate Derrida-
-saussuriano, onde o primeiro critica o segundo por ter se satisfeito
com a ideia de o signo linguístico primário ser a fonte para toda a ca-
deia de referentes em torno daquele signo; para Derrida (1993), o que
deveria estar no centro da cadeia, seria o próprio objeto inspirador do
signo e, a partir daí, dar-se-ia o passo fundamental para a descoberta
do elo perdido da linguística. Buscar uma solução para a questão de
como o objeto em um processo tradutório (Mimético? Metonímico?
Onomatopeico?) transformou-se no signo, que posteriormente criou
uma rede de referentes que o valida. Em um sistema onde o centro de
rede de referentes é um significante e não o próprio objeto, o centro

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 271


não é centro. No pensamento ocidental que funciona de forma cen-
trípeta, onde todo privilégio discursivo cabe ao centro, vai gloriar-se,
pois, uma latitude que não existe, pois o centro não é o centro, mas
sim, o que nossa avara linguagem designou como centro, estando o
verdadeiro centro em outro lugar qualquer, menos no centro. Todas
as práticas desconstrutivas, derridianas ou não, das mais refinadas,
como a do próprio Derrida ou Spivak, às mais mecânicas, como as da
escola americana com Miller, Hartman, Fish, apontam para uma dife-
rença que existe dentro de uma similitude ou pseudo-similitude. En-
tão, partindo da proposta de Melberg de uma mimesis que contemple
semelhança e diferença, mas que privilegia a diferença. Propomos um
conceito de mimesis, que, como a de Melberg, admite a diferença den-
tro do semelhante. A diferença é que a nossa proposta não se preocupa
com a distância temporal entre uma experiência e outra vivida pelos
personagens, mas a uma distância nivelar. Pensamos em uma mimesis
que, de forma bem-comportada, retrata a sociedade tal qual podemos
observar. As pessoas, os lugares, o tempo, personagens e actantes, apa-
recem como nos é dado a conhecer pelos nossos órgãos sensoriais. O
inquietante é a maneira de se comportar dos personagens. Elas não
agem conforme o esperado. O comportamento dos personagens não
é autorizado pela realidade observável. Para o narrador não existe an-
tinomia entre aparência e comportamento. O narrador segue seu tra-
balho inexoravelmente.
O resultado dessa experiência é uma clara estupefação por parte
do leitor. Ele reconhece os personagens como sendo figuras criadas a
partir do próprio homem. Mas eles se comportam de uma forma tão
bizarra que confundem o leitor. Ele tenta diversas leituras: como peça

272 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


cômica, irônica, satírica, moralista. Nada encontrando que suporte as
tentativas. Os textos de Pynchon são ficcionais demais para serem cô-
micos; realistas demais para serem satíricos; sérios demais para serem
irônicos e viciosos demais para serem moralistas. Mas não deixam de
ser nada disso, neles existe um certo coeficiente de cada um dos mo-
dos: suficiente para ser reconhecido, mas ineptos para virar regra.
Intrínseco a esta mimesis que admite a dicotomia similitude/di-
ferença, existe ainda um caráter subversivo. Ela contempla uma face
ideológica. Estamos lidando, portanto, com um único conceito que
tem um papel fundamental na estratégia textual, que tem uma função
estética e mexe com as crenças e entendimentos que temos do mundo.
A exemplo das teorias feministas de Cixous (1976) e Irigaray
(1974), que propõem que a mulher escreva como se fosse um “ele” que
é “ela”, e que a escritura traga em seu bojo ideias que subvertam o pen-
samento (fa)logocêntrico, ou seja, o texto seguirá as normas e padrões
ditados pelo mundo masculino, mesmo as ideias perfilarão de acordo
com os paradigmas reinantes. O texto terá uma aparência inofensiva,
mas seu conteúdo mais profundo mina os alicerces da ideologia do-
minante. Sendo que forças actanciais jogam um papel fundamental
para contradizer a lógica dominante e que ficam escondidas em níveis
profundos da narrativa e com isso dificultando a percepção total do
leitor menos habilidoso. Assim, um leitor pode errar na interpretação
de, por exemplo, The scarlet letter, de Hawthorne, se não percebe o
actante feroz que é a lógica protestante dos peregrinos estadunidenses.
O texto pynchoniano, em sua face de estranheza, questiona ac-
tantes como crenças pragmatistas e utilitaristas que se encontram en-
tranhadas no inconsciente coletivo do povo norte-americano. A utili-

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 273


dade está tão arraigada àquela cultura que questioná-la, é questionar a
fisionomia mais medular daquela sociedade. O texto pynchoniano, de
uma forma divertida, expõe o fracasso do Positivismo Lógico de Ayer
e o Atomismo Lógico de Russel, correntes filosóficas que encontra-
ram um solo muito fecundo nos Estados Unidos, justamente por seus
semblantes cartesianos e utilitários.

REALIDADES

O outro termo que precisa ser explicado quanto ao seu signifi-


cado neste texto é: realidade. Até o momento, havíamos solicitado
ao leitor que aceitasse a realidade como compreendida pelos filósofos
dualistas do século XVII. O conceito que propomos não foge a essa
apresentação simples. No entanto, acrescentaremos algumas exigên-
cias para que ele seja mais palatável.
O homem tem 5 sentidos básicos, cada sentido com suas do-
enças ou anomalias próprias. Portanto, não podemos esperar que a
percepção do mundo seja a mesma para todas as pessoas. Acrescente
aos distúrbios sensoriais, os desvios de conduta: considere os neuróti-
cos, esquizofrênicos, paranoicos. Fish (1980) faz o mesmo raciocínio
quanto a recepção do texto literário. Ele buscava solução para deter-
minar quais interpretações eram válidas e quais não eram. Cunhou
o termo “comunidade interpretativa”: as leituras que desviassem das
interpretações propostas pela comunidade, deveriam ser descartadas
como inaceitáveis. A comunidade seria formada por “leitores infor-
mados” (literatos) além disso: competentes linguisticamente e pos-

274 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


suidores dos mesmos propósitos. Sugiro que, além das características
propostas pelo criador do termo, incluam-se mais algumas exigências:
1. Serem todos procedentes da mesma região geográfica; e, 2. Viverem
todos dentro do mesmo intervalo histórico temporal.
Propomos que o termo Realidade Realista Filtrada (RRF) seja
aplicado para definir a visão de mundo desenhada por membros de
uma comunidade interpretativa ampliada – tal qual descrevo no pa-
rágrafo acima – e, que outras visões possíveis sejam descartadas por
privilegiar aquisições psico-sensoriais subjetivas e afastadas do con-
ceito coletivo de realidade. O trato com o termo realidade complica
um pouco mais, pois temos de trabalhar com dois conceitos diversos
de realidade: O primeiro, já elaborado chamaremos de RRF; o outro
trataremos por Realidade Actualista - RA. Ele se refere a uma realida-
de tão “não-estática” em que as posições das partículas não podem ser
determinadas. O máximo que se consegue neste sentido é determinar
a probabilidade de uma dada partícula estar em um certo lugar em
um momento preciso.
O panorama fica complicado quando, às realidades quânticas,
juntam-se algumas leis inabaláveis da Termodinâmica, Cosmologia,
Ótica, Eletromagnetismo. Destarte, a realidade que ainda não é co-
nhecida está regida por leis, algumas irremovíveis, como as da Termo-
dinâmica.
A linha central de nosso raciocínio passa por um jogo mimético,
onde o autor de ficção busca delinear uma realidade que, de alguma
forma, encontra-se a partir da RRF, e uma das possibilidades de RA,
após sua ruminação por uma das leis das ciências naturais. O autor
procura aproximar os dois mundos que, embora comportando-se de

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 275


forma diferente, são um mesmo todo. Não temos como apartar partí-
culas como os elétrons e pósitrons do todo que elas constituem, nem
elas do todo que as hospeda. Uma semelhança que traz dentro dela
uma diferença paradoxal que subverte crenças binárias de nossa so-
ciedade.
Foi a partir dessa constatação que começou a se delinear a estru-
tura representativa utilizada por Thomas Pynchon. É notória a influ-
ência das ciências puras e aplicadas na obra ficcional do autor. Com
especialidade, a Segunda Lei da Termodinâmica,

A METÁFORA BASILAR DE THOMAS PYNCHON

Estabelecer a intenção do autor quando da produção de um texto


ficcional, em prosa ou verso, é um desígnio complicado. As dificulda-
des intrínsecas ao trabalho são muitas e a validade do resultado seria
fatalmente comprometida por ser um estudo “fora de moda”. Não é,
absolutamente, nosso propósito, discutir aspectos ligados à vida pri-
vada do autor, mas consideramos importante especular um pouco
sobre os motivos que impulsionam os contos e romances de Thomas
Pynchon. Para tanto nos concedemos a flexibilidade de citar um dos
raros dados biográficos do autor e um dado sobre a historiografia de
suas obras: Pynchon foi aluno de Física Pura em Cornell; e, um dos
seus primeiros contos publicado chamava-se Entropy. A partir desses
dados históricos e lendo atentamente seus contos e romances pode-
mos observar que a metáfora da entropia está presente em todos os
seus textos. O que observamos, além disso, é que a metáfora não está

276 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


presente da mesma forma de texto para texto. Um exemplo desta afir-
mação é o distanciamento da superfície do texto em que encontrare-
mos os índices: em Entropy eles aparecem literalmente, já em Vine-
land os traços não aparecem na tona, mas mais profundos. Há críticos
que insistem que neste romance Pynchon conseguiu desvencilhar-se
completamente de sua metáfora predileta. Mostraremos o contrário.
Nossa proposta passa pela crença de que cada autor tem um mo-
delo subjacente operando o pensamento desse sujeito - em larga escala
cada pessoa teria seu modelo guia - enquanto na elaboração do tex-
to que está para produzir. Este conceito aproxima-se do que Pepper
(1942) cunhou como root metaphor. Nesta proposta, o sujeito investi-
gador apega-se à parte mais bem compreendida do novo que se apre-
senta e, a partir dessa pequena área mais familiar, elabora analogias
para melhor entender o todo. Obviamente esse processo pode ser a
própria concepção do mundo a partir do modelo que formemos do
ambiente mais imediato. Pensando dessa maneira, falaremos da con-
cepção de uma ontologia. Abrams (1953) trata do assunto sem fazer
menção a qualquer estrutura subjacente ao pensamento do sujeito,
mas como um método em que o investigador se apega a um fato co-
mum e conhecido que tenha alguma semelhança com o novo, e a par-
tir do mais conhecido tenta entender o menos conhecido.
Nossa ideia é mais radical que a de Abrams, mas de igual enver-
gadura que a de Pepper se tomarmos a teoria como mecanismo para
construção do mundo. Mas, irremediavelmente, na mesma linha das
duas propostas. Nos inclinamos para o caminho mais inflexível da
proposta de Pepper. O conceito mais próximo de nossa perspectiva
encontramos em Black (1962), ele chama de conceptual archetypes e o

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 277


descreve como sendo um repertório sistemático de ideias das quais
lançamos mão para desvendarmos o mundo.

OS MODELOS CIENTÍFICOS

Black e Hesse (1966), os dois maiores teóricos da exploração da


realidade a partir dos modelos científicos, reconhecem que a lógica
reinante no processo de utilização dos modelos científicos é aquela da
descoberta, da invenção. Black define os modelos como a ferramen-
ta linguística própria dos laboratórios. Teoriza sobre quatro tipos de
modelos, eles são: scale model, analogue model, mathematical model e
theoretical model.

O MODELO TEÓRICO

Os modelos teóricos não precisam ser construídos, eles são, ape-


nas, descritos. O modelo imaginado terá apenas as características da-
das a ele por seu criador, mas este fica privado do controle do modelo
quando da tentativa de construção do objeto. As condições para o uso
do modelo teórico são: 1. Termos um campo de investigação original;
2. Existência da necessidade de explicações para se entender termos
básicos aplicados ao domínio original; 3. Descrevemos uma entidade
que pertença a um campo mais conhecido ou menos problemático;
4. Existam regras correlatas que traduzam características do segundo
domínio sobre o domínio original; e, 5. Interferências provindas da
assunção de regras aplicáveis ao domínio secundário devem ser che-

278 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


cadas contra o domínio primário. Crer em um modelo teórico parece
um procedimento errático e artificial. Uma das questões é se o atalho
não será mais complicado e tortuoso do que enfrentar o fenômeno
por meios mais eficazes. Existe quem pense, que o uso de modelos
na ciência, é paralelo ao uso de metáforas e fabulas na literatura e, a
questão que se impõe é: será que a ciência pode se valer de métodos
tão pouco controláveis para buscar a verdade? A resposta está, com
certeza, na larga utilização de modelos na ciência.

EXEMPLO DE UM MODELO CIENTÍFICO

Em meados do século XIX, com a plena utilização de máquinas


a vapor, cientistas começaram a se preocupar com o uso de energia.
Foi nesta época que se estabeleceram os axiomas da Termodinâmica.
Eles são três, mas o que nos interessa agora é a Segunda Lei - Entro-
pia, que reza que o universo tem uma quantidade limitada de energia.
Portanto a cada trabalho realizado um pouco dessa energia é dissipa-
da. Os cientistas falam do fim da energia como heat death. Óbvio que
não se pode provar em larga escala essa teoria, mas ninguém consegue
desmenti-la.
Maxwell, pensando sobre o assunto, propôs um modelo teórico
em que uma caixa hermeticamente fechada é dividida em duas partes,
com apenas uma pequena porta interligando-as, preenchida com um
gás de propriedades conhecidas. Junto à porta residiria uma entidade
(depois chamada de demônio) capaz de ver as moléculas mais quentes
e colocá-las para um lado da caixa, e as frias para o outro lado. Agindo

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 279


dessa forma, ele estaria criando um diferencial térmico, que, em prin-
cípio, restaura a capacidade dos gases em realizar trabalho. Ou seja, um
moto contínuo. É lógico que a saída de Maxwell para o problema do
heat death é teorética, mas não deixa de ser uma possibilidade que se
presta à especulação científica – um modelo holístico. Os críticos do fí-
sico já desmontaram e fizeram uso de seu modelo em todos os campos
do conhecimento, mas o modelo é um dínamo de imagens e recursos.

O MODELISMO

Conhecedor profundo de Física Aplicada, Pynchon, na pers-


pectiva do Modelismo, lançou mão do modelo do “Demônio de Ma-
xwell” na construção de seus personagens mais famosos. Lembrem-se
de Oedipa Maas, em O leilão do lote 49, permanente voltada para a
organização de um inventário que não tem fim.
A cidade San Narciso, cidade ficcional onde se desenvolve o en-
redo do romance, parece ter um único dono Pierce Inverarity. Ele já
começa o enredo morto e deixando Oedipa encarregada de executar
seu inventário. Ocorre que ele era um milionário do remo de imóveis
completamente desorganizado. Com esse cenário caótico, Oedipa
começa a missão de colocar no devido lugar cada um dos imóveis e
negócios de Inverarity. E em tratando desses assuntos desenvolve-se
uma trama que envolve infidelidade, negócios com a máfia, voyeris-
mo, conspiração, drogas. Em clima às vezes tenso e às vezes cômico o
sentimento que percorre a trama também é fluído indo feições esqui-
zoides à paranoia.

280 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Nessa teia de intrigas, dentro da perspectiva do Modelismo, San
Narciso funciona como a caixa onde vive o Demônio de Maxwell, no
caso Oedipa, que tenta separar o joio do trigo dentre os diversos negó-
cios de Inverarity. De um lado colocando negócios legítimos e viáveis
e do outro os que são de natureza duvidosas e talvez criminosa. No
término, vemos uma Oedipa completamente inerte e desenergizada,
em estagnação, apenas esperando o leilão de um selo que poderá tra-
zer respostas para as inúmeras perguntas não respondidas.
Finalizando, o modelo ficcional de Thomas Pynchon termina
por denunciar sua falência e também o inexecutável modelo científico
do físico James Clerk Maxwell (1831-1879).
Outro personagem que se presta para o mesmo papel é Darryl
Louise (DL) que em Vineland – outro romance de Pynchon – é capaz
de acelerar a morte de uma pessoa com um toque (ou seja, dinami-
zar a falência energética do corpo), bem como é capaz de reduzir a
velocidade do desgaste energético e, ainda, como o demônio ela está
constantemente organizando espacialmente a posição de personagens
importantes, como: Praire e Frenesi.
DL quando não está envolvida nos emaranhados profundos do
enredo, se diverte organizando outros personagens que divergentes
provocam arruaças ao longo da rodovia 101. Ou seja, outro persona-
gem que assume o papel de Demônio de Maxwell. Mas sem dúvida,
os seus modelos científicos mais inusitados são a do dínamo, que con-
segue energizar pessoas, ou de aterramento, servindo para diminuir a
energia vital de outros personagens.
Mais do mesmo modelo do demônio, encontramos os dois apar-
tamentos (representando a caixa fechada) no conto Entropy. O espaço

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 281


ficcional em constante inflação é uma representação do universo pro-
posto por Stephen Hawking.

CONCLUSÃO

A utilização de modelos científicos para melhor entendimento de


ficções é um caminho que vem sendo utilizado largamente desde os
anos finais do século XX e vem ganhando força com pesquisadores se
arvorando para novos campos de conhecimento tendo aparecidos tra-
balhos muito criativos sobre o meta verso, realidades computacionais,
cosmologia e astronomia. A ficção científica deixa seu viés de aventura
pura para tratar de modelos da antropologia e vem criando aventuras
estelares que tratam de temas muito caros aos seres humanos como
questões de raça e gênero. Exemplo dessas criações observamos nos
diversos trabalhos de Ursula Le Guin.
Para dar conta dessa gama de criações que fogem muito do que a
crítica literária costuma tratar, precisamos de um instrumental mais
contemporâneo e mais adequado para poder entender a discussão que
temos pela frente. Visando essa nova fronteira, a comunidade de crí-
ticos literários e das artes tem criado também meios para dar vasão às
novas abordagens. Com isso, vimos aparecer revistas científicas como
a Configurations, criada pela American Society for Literature, Arts and
Science e o International Journal of Arts and Science Research e Litera-
ture and Medicine.

282 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


COMO CITAR ESTE TEXTO

BRANDÃO, S. C. S.. Os modelos científicos e os textos ficcionais de Thomas R.


Pynchon. In: SOARES, I. M.; LESZCZYNSKI, T. (Orgs.). Um percurso pelas
literaturas de língua inglesa. Tutóia/MA: Diálogos, 2023. p. 263-284. https://doi.
org/10.52788/9786589932796.1-13

REFERÊNCIAS

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ADAMS, Henry. The education of Henry Adams. New York, Modern Library,
1946.
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CIXOUS, Hélène. The laugh of the Medusa, Signs, Vol I, No 4, 1976.
DERRIDA, Jacques. Structure, sign and play in the discourse of human
sciences. In NATOLI, Joseph e Linda Hutcheon (eds.). A postmodern reader.
Albany: State Univ. of New York Press, 1993.
ECO, Umberto. Os limites da interpretação. São Paulo: Perspectiva, 1995.
FISH, Stanley. Is there a text in this classroom? Cambridge: Harvard Univ. Press,
1980.
HESSE, M. B. Models and Analogies in Science, Notre Dame: Univ. of Notre
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feminine. In KEARNY, R. (org.). The continental phylosophy reader. London:
Routledge, 1974.
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1995. PEPPER, Stephen. World hypothesis. Berkley: Univ. of California Press,
1942.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 283


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PYNCHON, Thomas. Vineland. São Paulo: Cia das Letras, 1991.
RICOEUR, Paul. The rule of metaphor. London: Routledge, 1986.
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simbólico. In TAPIA-GABRIEL S. M. R. e ARGÜELLES I. V. Ensayos sobre
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Universidad Carlos III, 2008.
VALLES, José Calatrava. Indroduccion histórica a las teorías de la narrativa.
Almería: Universidad de Almería, 1994.

284 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


capítulo 14

Mulheres e a literatura sul-africana


de língua inglesa: a construção de
uma história
Hislla S. M. Ramalho

INTRODUÇÃO À LITERATURA AFRICANA

Em seu livro African Literature (1995), Eileen Julien afirma que


não é possível falar sobre literatura africana como algo homogêneo,
porque a África é um continente vasto e que consiste em mais de
cinquenta países e centenas de línguas e grupos étnicos. Apesar das
similaridades culturais e da história de imperialismo e neocolonialis-
mo, existem muitas experiências e expressões verbais dessa literatura.
Segundo ela:

Ver o que estamos chamando de literatura africana na perspectiva


adequada é reconhecer do começo tanto que a literatura africana é um
conjunto da obra de gênero quanto que ela representa apenas uma
fração das artes orais em África. Existe uma vasta produção de literatura
em língua africana e em tradições orais que é amplamente desconhecida
e ignorada por aqueles que estão fora do continente. Aliás, tradições
artísticas verbais, literárias assim como orais são antigas na África.
Séculos antes do colonialismo europeu e da introdução das línguas

DOI: 10.52788/9786589932796.1-14 285


europeias, havia bardos e contadores de histórias, escribas, poetas e
escritores em línguas como suaíli e amárico. Muitas dessas tradições se
adaptaram e perduram em muitas formas hoje1 (JULIEN, 1995, p. 295,
tradução minha).

Ainda segundo a autora, existem formas de dividir o terreno da


literatura escrita por africanos, e essas abordagens refletem o fato de
o continente possuir diversidade linguística, étnica, cultural, políti-
ca e geográfica. Pode-se dividir a literatura africana escrita por região
(África Ocidental, Oriental, Norte, Central e Meridional/do Sul), por
etnia (Igbo, Mande, etc.), por nacionalidade (legado da divisão colo-
nial) e por língua em que a obra é expressada (anglófona, francófona,
haussá, suaíli etc.) ou também por gênero literário (poesia, provérbio,
narrativa, drama, ensaios etc.). Essas abordagens permitem enxergar
a diversidade e a complexidade do continente africano e também a
base do que a literatura é feita: língua, estética e tradições literárias,
cultura, história e realidade sociopolítica.
De acordo com Eagleton (2003), pode-se definir a literatura como
“imaginativa” no sentido de ficção – não escrever o que não é literal-
mente verdadeiro. Todavia, também pode-se ter outra abordagem na
qual ela utiliza a linguagem de forma peculiar em um discurso co-
mum. Em outras palavras, a literatura diverge do discurso cotiniano.2

1 […] Moreover, to see what we are calling African literature in proper perspective is to
recognize from the outset both that it is a gendered body of work and that it represents but a
fraction of the verbal arts in Africa. There is a vast production of African-language literature and
oral traditions, which is largely unknown and ignored by those outside the continent. Indeed,
verbal artistic traditions, literary as well as oral, are ancient in Africa. Centuries before European
colonialism and the introduction of European languages, there were bards and storytellers,
scribes, poets, and writers in languages such as Kiswahili and Amharic. Many of those traditions
adapt and live on in various guises today (JULIEN, 1995 p. 295).
2 ...You can define it, for example, as ‘imaginative’ writing in the sense of fiction - writing

286 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Já para Candido (1977) a literatura é:

[...] todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em


todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde
o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e
difíceis da produção escrita das grandes civilizações. Vista deste modo,
a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos
os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que
possa viver sem ela. isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com
alguma espécie de fabulação (CANDIDO, 1977, p. 174).

Sendo assim, considera-se aqui a literatura como parte da cons-


tituição cultural e social dos povos, mas também uma forma de se
recriar na própria língua, tornando-a dinâmica. Ao se utilizar da lin-
guagem, que, segundo Ferreira (2010), cria mundos, a literatura tam-
bém faz com que mundos reais, fictícios e imaginários sejam criados,
além do que, ela reinventa a realidade através da escrita.
Em seu artigo A crítica literária africana e a teoria pós-colonial:
um modismo ou uma exigência?, Mata (2006, p. 2) afirma que:

[...] o texto literário, como representação artística do imaginário


cultural, é um desses documentos do imaginário e, como tal, um objeto
simbólico muito importante na construção da imagem da sociedade,
sobretudo em espaços políticos emergentes, que vivem de forma por
vezes ambígua e tensa a sua pós-colonialidade. O estudo desse objeto
simbólico é também um dos veículos para que se chegue à História
– como o são outras fontes menos convencionais do discurso da

which is not literally true. But even the briefest reflection on what people commonly include
under the heading of literature suggests that this will not do (2003. p.1).
...Perhaps one needs a different kind of approach altogether. Perhaps literature is definable not
according to whether it is fictional or ‘imaginative’, but because it uses language in peculiar
ways. On this theory, literature is a kind of writing which, in the words of the Russian critic
Roman Jakobson, represents an ‘organized violence committed on ordinary speech’. Literature
transforms and intensifies ordinary language, deviates systematically from everyday speech...
(2003, p.2).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 287


ciência histórica –, pois é grande a probabilidade de ele se construir
pela incorporação das contingências da história e das informações do
contexto espaço-temporal, que a análise textual não deverá ignorar.

Essa construção literária que ficcionaliza, relata, resgata e cons-


trói a história por meio da memória africana passa por importantente
nomes, como Mia Couto, Pepetela, Wole Soyinka, Nadine Gordimer,
Paulina Chiziane, Chinua Achebe, Chimamanda Adichie, Sindiwe
Magona, Ondjaki, Sony Labou Tansi e muitos outros.

O MOVIMENTO DA NEGRITUDE

A saber, antes da colonização, alguns povos africanos baseavam


a sua cultura e história em tradições orais, como cantos, provérbios,
encenações, rituais etc. Quando o período colonial estava findando e
a ocorrência dos movimentos pela independência estava a todo vapor,
houve a tentativa de uma retomada da raiz dos povos negros com o
Movimento da Negritude, termo utilizado primeiramente por Aime
Cesaire no poema intitulado Cahier d´un Retour au Pays Natal, em
1939.
O Movimento da Negritude tinha um caráter cultural de enalte-
cer as produções artísticas e literárias de autores negros, e sua proposta
era, de acordo com Domingues (2009), não assimilar a cultura eu-
rocêntrica e colonial e isso incluía as crenças, os comportamentos, as
tradições e todas as possíveis influências brancas. O primeiro congres-
so desse movimento aconteceu em 1956, com a idealização de Aimé
Césaire e Léopold Sédar Senghor (que lançou seu livro Ethiopiques

288 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


naquele mesmo ano) e se inpirou em renomados autores, tais como
Bernard Dadié, Ferdinand Oyono, Ahmadou Korouma e Sembene
Ousmane.
A literatura africana, em geral, não emerge apenas com o intuito
de protestar e denunciar o colonialismo, ela vem para contar a história
do lado de dentro e como maneira de expressão das vozes não ouvidas.
Para além disso, ela vem para mostrar a força dos povos tradicionais e
a beleza de suas línguas, de suas culturas e de sua arte.
Obras como: Disgrace (1999), de Jonh. M. Coetzee, que trata
da temática pós- Apartheid; Taduno’s song (2000), de Odafe Atogan,
que reconta o mito de Orfeu; A grain of wheat (1967), de Ngugi wa
Thiong’o, que retrata o estado de emergência no Quênia durante a
guerra da independência (1952); Kintu (2014), de Jennifer Nansubuga
Makumbi, que conta sua identidade ugandense através da política, da
história e dos mitos; Things Fall Apart (1958), de Chinua Achebe, que
trata do processo de colonização africano; e Living Loving and Lying
Awake at Night (1991), de Sindiwe Magona, que trata da realidade
das mulheres e negros durante o período Apartheid, são exemplos da
construção e da ficcionalização literária como memória de um pas-
sado, não apenas colonial, mas também antes de todo esse processo
opressor.
Na segunda metade do século XX, o Movimento da Negritude
(que foi muito criticado) perdeu a sua força, uma vez que a África
independente e pós-colonial não era a mesma. Nesse ínterim, houve
misturas de línguas, povos, crenças e tradições e seria impossível man-
ter o conceito de negritude como um que abarca todas as minorias
desse enorme continente. Dessa maneira, a África já é a mistura e o

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 289


resultado, necessitando-se, então, entender as complexidades linguís-
ticas, históricas, sociais e geopolíticas desse continente.

MULTILINGUISMO

Depois de um choque colonial, certamente complexidades his-


tóricas, linguísticas e literárias emergiriam na superfície de um texto
híbrido. E é dessa maneira que a maioria dos autores africanos fazem
literatura, com toda uma tradição oral implicando no ritmo das nar-
rativas escritas, toda uma poética singular, e um mundo multilíngue
que se abre às línguas tradicionais e oficiais e as enriquece.
Quanto à questão do multilinguismo presentes na escrita literá-
ria e pós-colonial da grande parte das autoras africanas, a modernida-
de coloca um movimento antropofágico no que, antes, era instrumen-
to de opressão e, agora, torna-se símbolo de resistência. Então, pode-se
afirmar que:

[...] as literaturas africanas são legítimas, mesmo essas sendo expressas


em línguas ocidentais; o idioma antes imposto agora é parte própria e
autônoma dos africanos e por esta razão uma grande parte dos escritores
negro-africanos não se consideram, de forma alguma, ‘ladrões’ de
línguas3 (BYDYOGO, 2013, p. 1).

As línguas utilizadas na escrita da literatura são vivificadas e enri-


quecidas, servindo como instrumentos de comunicação, informação,
de resgate histórico, e cultura, uma vez que carregam as emoções, as

3 Disponível em: https://www.almendron.com/tribuna/literatura-como-subversion/. Acesso


em: 2 fev. 2020.

290 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


histórias, as culturas e as línguas africanas. A mistura da línguas faz
com que a maioria dos autores escreva em dois ou mais idiomas, uti-
lizando-se de um multilinguismo enriquecedor, como, por exemplo:
Chimamanda Adihie, em The Thing Around your Neck (2009), mis-
tura o inglês com o igbo; Chinua Achebe, em Things Fall Apart, assim
também o faz; Sindiwe Magona, em Kubantwana Babantwana Bam
Xhosa (1995) e Living Loving and Lying Awake at Night (1991), escreve
em inglês, xhosa, africâner, zulu etc.
Isso mostra que o processo de descolonização não acontece, esse
choque muda para sempre o rumo de todo um povo. É importan-
te pensar que, agora, tanto linguisticamente quanto literariamente e
culturalmente, há uma escrita literária na África que é resultado de
amálgamas e é tão rica e complexa que não se pode traduzi-la comple-
tamente e tampouco entendê-la verdadeiramente em sua totalidade e
em sua essência.
A literatura é a expressão dos mais íntimos aos mais superficiais
sentimentos, sensações, pensamentos, memórias, realidades, retratos,
histórias, estórias etc. E, tratando-se da literatura sul-africana de au-
toria de mulheres, pode-se afirmar que essas e sua escrita narram lutas
e histórias de maneira fictícia ou real durante momentos gloriosos e
terríveis da história.
É importante mencionar, aqui, as autoras que ajudaram a cons-
truir a África do Sul através da literatura, manifestada por meio de
contos, novelas, romances, poesias etc., não são tão reconhecidas
mundialmente quanto os homens. É por essa razão que se faz neces-
sário conhecer e reconhecer as suas obras, suas lutas, suas resistências.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 291


LITERATURA SUL-AFRICANA DE LÍNGUA INGLESA:
ESCRITORAS, VIDAS, OBRAS E HISTÓRIA

Conte sua história

Deixe nutrir você


Sustentar você
Afirmar você
Conte sua história
Deixe alimentar você
Curar você
E libertar você
Conte sua história
Deixe torcer e remendar seu coração destroçado
Conte sua história
Até que seu passado pare de despedaçar o seu presente
(Lebogang Mashile [s.d.], tradução minha)

“A nossa escrevivência não pode ser lida como história de


ninar os da casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos
injustos”.
(Conceição Evaristo, 2017)

Na África do Sul do século XIX e XX, em uma pirâmide social


em relação ao recorte racial, os homens e as mulheres brancas estariam
no topo e os homens e as mulheres negras, na base dessa. Em relação
ao gênero, todas as mulheres estariam na base e, mais ainda, a mulher
negra, que, como apontou Kilomba, é considerada o outro do outro e,
por isso, seria mais invisibilizada e negligenciada em suas necessidades
sociais, psicológicas, mentais, emocionais etc.

292 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Dessa maneira, as mulheres brancas acompanhavam seus com-
panheiros brancos nos privilégios sociais, mas não podiam exercer
funções de liderança ou econômicas fora do ambiente doméstico. Já
as mulheres negras, que ficavam sem seus companheiros por causa das
disputas de emprego nas minas de Kimberley e Witwaterand, tinham
que prover em seus lares, situação que forçava o exercício econômico,
o que, mais uma vez, mostra como as mulheres negras transgridem e
são estereotipadas pela sociedade sul-africana.
Na antologia contemporânea intitulada African Women Wri-
ting Resistance (Mulheres Africanas Escrevendo Resistência, tradução
minha) de 2010, a escritora queniana Ann Kithaka afirma que:

[...] resistência significa dizer ‘não’ ao sistema patriarcal e aos valores


que continuam a desempoderar, subjugar e abalar minha dignidade
pessoal. Em todos os estágios da minha vida, nesses pensamentos e ações
que têm sido sujeitos a ditados em que a ‘sociedade’ denota a figura
masculina – meu pai, marido, chefe, meus irmãos, meu pastor etc.4
(KITHAKA, 2010, p.6, tradução minha).

Felizmente, é nesse ponto que é constituída a resistência, entre os


quais estão a transgressão de sistemas opressores como o colonialis-
mo, o machismo, o racismo e a misoginia. As mulheres – e principal-
mente as negras – não aguentaram as opressões coloniais e do Apar-
theid caladas e silenciadas. Em suas situações de pobreza, de liderança
clandestina, de vulnerabilidade, de choques emocionais e mentais, de
protestos e reuniões sindicais, de violações de seus corpos e muitas

4 Kenyan Ann Kithaka agrees, saying that “resistance means saying ‘no’ to the patriarchal system
and values that continue to disempower, subjugate, and undermine my personal dignity. In all stages
of my life, my thoughts and actions have been subject to societal dictates, where ‘society’ denotes the
male figure—my father, my husband, my boss, my brothers, my pastor.” Disponível em: https://
www.pambazuka.org/gender-minorities/african-women-writing-resistance. Acesso em: 2 fev. 2020.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 293


outras condições extremas ou não, essas mulheres escrevem, recitam,
cantam e contam as suas culturas, as suas histórias e os seus medos
através da literatura e da arte.
Esse fato da construção literária e histórica através das mulheres
resgata um conceito relevante de Conceição Evaristo (2008) de escre-
vivências; em outras palavras, resgata a escrita que nasce do cotidiano,
das lembranças, da experiência de vida das autoras e dos seus povos.
Na literatura sul-africana escrita por mulheres, há esse amálgama da
escrita literária e histórica e das experiências pessoais dessas autoras. É
por essa razão que Evaristo afirma:

[...] navegar nas águas da História é navegar nas águas da certeza (pelo
menos é o que dizem os historiadores tradicionais). Navegar nas águas
da memória é enfrentar as correntezas do mistério, do não provável,
do impreciso. Entretanto, História e memória se confundem como
elementos constitutivos de vários textos da literatura afro-brasileira.
Como fenômenos distintos se entrecruzam, se confrontam, se
complementam, ou mesmo, substituem um ao outro. Vários são os
textos em que a memória, recriando um passado, ocupa um espaço
vazio, deixado pela ausência de informações históricas mais precisas. E
esse passado recriado passa ser a constantemente amalgamado ao tempo
e à história presentes. Nesse sentido, o passado surge como esforço
de uma memória que está a construí-lo no presente. Tanto o passado
remoto, como o passado recente, assim como o quotidiano, a matéria
do hoje e do agora, tudo tentará preencher as ausências premeditadas e
apagar as falas distorcidas de uma narrativa oficial, que poucas vezes se
apresenta sob a ótica dos dominados (EVARISTO, 2008, p. 1-2).

Nesse caso, a memória e a história não são elementos constituti-


vos apenas da literatura afro-brasileira, mas também da literatura afri-
cana e sul africana em questão. A história constituída pela memória e
uma escrita literária falam dos discursos de dentro, do que acontecia
dentro de sistemas como o Apartheid; são visões e perspectivas que a

294 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


história oficial não conta porque é a história dos que sofreram e trans-
grediram para transformar África do Sul em um país diverso e pluri-
versal. Para a escritora zambiana Ellen Banda-Aaku (2010):

[...] escrever expõe os muitos desafios que as mulheres africanas estão


resistindo nos dias de hoje, e falar traz as questões à tona e, assim, somos
forçadas a questioná-las e endereçá-las. Ao escrever, tornamo-nos mais
conscientes dos valores e das crenças que nos reprimem, assim como
aqueles que podem nos mover para frente. Apenas ao escrever nós
podemos contar a história da mulher africana; se não contarmos a história,
quem contará?5 (BANDA-AAKU, 2011, p. 7, tradução minha).

Como aponta Chimamanda Adichie, o escrever faz com que se


fuja dos perigos de uma história única, o que possibilita uma visão
histórica contada por ângulos e diferentes sujeitos. Ainda segundo a
poeta Ann Kithaka, na antologia já mencionada:

[...] escrever a resistência é um processo de descoberta, emancipação


e reivindicação. É sobre reivindicar minha dignidade, privacidade e
liberdade como mulher africana e ser humano. É sobre me emancipar do
abuso histórico, estrutural e sistemático, da opressão e discriminação e,
finalmente, é sobre descobrir minha força interior, minha singularidade
e minha interdependência nas outras pessoas. Escrever resistência é
um redespertar da minha consciência através do diálogo intercultural e
intergeracional com outras mulheres escritoras sobre África e diáspora,
para que possamos inflamar as moribundas brasas do feminismo para o
benefício de futuras gerações6 (KITHAKA, 2010, p. 7, tradução minha).

5 “Writing exposes the many challenges African women are resisting in the world today, and
speaking out brings issues to the forefront so we are forced to question or address them,” says
Ellen Banda-Aaku. “By writing we become more aware of the values and beliefs holding us back,
as well as those that can move us forward. Only by writing can we tell the story of the African
woman. If we don’t tell our story, who will?”. Disponível em: https://www.pambazuka.org/
gender-minorities/african-women-writing-resistance. Acesso em: 10 jan. 2020.
6 For poet Ann Kithaka, “Writing resistance is a process of discovery, emancipation, and
reclaiming. It is about reclaiming my dignity, privacy, and freedom as an African woman and
human being. It is about emancipating myself from historical, structural, and systematic abuse,
oppression, and discrimination. And finally, it is about discovering my inner strength, my

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 295


Sendo assim, são mulheres como Bessie Head, Nadine Gordi-
mer, Ellen Kuzwayo, Lauretta Ngcobo, Miriam Tlali, Nokugcina El-
sie Mhlophe e Sindiwe Magona que construíram história não apenas
na escrita, mas na organização de movimentos sindicalistas contra os
regimes do Apartheid e da colonização.7

BESSIE HEAD

Filha de pai negro e mãe branca, Bessie Head era o fruto proibi-
do, era considerada o erro de seus pais, em meados de 1937. Com o
regime do Apartheid, ela estudou em um orfanato e, mais tarde, tor-
nou-se jornalista, escrevendo contos para o Johannesburg’s Golden City
Post da revista Drum. Procurando formas de expressar seu ativismo,
Bessie trabalhou para a revista The New African, em meados de 1962,
onde escreveu sua primeira novela, The Cardinals (Os Cardeais, tra-
dução minha).
Sendo rejeitada por suas políticas ativistas, ela foge para o Bot-
swana e escreve When Rain Clouds Gather (1968) e Maru (1971), no-
velas que relatam a opressão britânica contra o povo Masarwa. Escre-
ve ainda A Question of Power (1973), em que conta suas experiências
e a crise de pânico que teve por viver com medo, na pobreza e como

uniqueness, and my interdependence on other people.” She continues, “Writing resistance is


a reawakening of my consciousness through intercultural and intergenerational dialogue with
other women writers around Africa and the diaspora, so that we can stoke the dying embers of
feminism for the benefit of future generations.” Disponível em: https://www.pambazuka.org/
gender-minorities/african-women-writing-resistance. Acesso em: 10 jan. 2020.
7 Disponível em: https://www.gov.za/about-sa/history; https://www.britannica.com/topic/
history-of-South-Africa; https://www.sahistory.org.za/. Acesso em: 10 jan. 2020.

296 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


refugiada. Mais tarde, em 1977, ela publicou uma coleção de contos
intitulada The Collector of Treasures, uma ficção na qual Bessie conta
a história de Dikeledi, uma mulher que mata o marido por castração
após ser abandonada e sofrer vários abusos. Dikeledi é a colecionadora
de tesouros porque possui várias habilidades; e Bessie ressalta isso em
sua narrativa, além de contar o sofrimento de outras mulheres.
Em 2003, Bessie recebeu o prêmio da Order of Ikhamanga em
ouro, um título de honra ao país oferecido pelo presidente pelas con-
quistas excepcionais nas áreas da arte, da cultura, da literatura, da mú-
sica, do jornalismo e dos esportes. Além de Bessie, Lauretta Ngcobo
(2008) e Sindiwe Magona (2011) receberam essa premiação: a primei-
ra por promover a igualdade de gênero na literatura, e a segunda por
disseminar a cultura xhosa em seus trabalhos além do recorte racial e
de gênero.

LAURETTA NGCOBO

Nascida em 1931, cresceu em Ixopo, KwaZulu-Natal, e foi a


primeira mulher de sua área a entrar na University of Fort Hare; tor-
nou-se professora e entrou para o Conselho de Pesquisa Científica e
Econômica em Pretória. Ela era ativista contra o Apartheid e esteve na
Macha contra o Passe, em 1956; casou-se com um dos fundadores e
membros do Congresso Pan Africanista Abednego Ngcobo.
Suas participações nos protestos fizeram com que fugisse com
seus filhos. Ela ficou exilada de 1963 a 1994 morando na Suazilândia,
Zâmbia e Inglaterra. Suas obras principais como autora e editora fo-

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 297


ram: Cross of Gold (1981); And They Didn’t Die (1990); Let It Be Told:
Essays by Black Women Writers in Britain Prodigal Daughters (1987);
Stories of South African Women in Exile (2012); e Fikile Learns to Like
Other People (1994).
Sua obra mais aclamada e conhecida é And They Didn’t Die
(1990), na qual conta a resistência e o sofrimento das mulheres en-
quanto seus maridos iam trabalhar nas minas, além do relato histó-
rico do Apartheid na África do Sul e as repressões violentas contra
a independência no Quênia. Lauretta recebeu outras premiações im-
portantes, como o Lifetime Achievement Literary Award dos Prêmios
Literários da África do Sul, em 2006, e, em 2014, recebeu Doutorado
Honorário de Tecnologia em Artes e Design da Universidade de Tec-
nologia de Durban.

SINDIWE MAGONA

Sem as memórias do exílio por estar presente em todo o obscuro


período separatista na África do Sul, Sindiwe Magona também rela-
tou a história por meio de contos, novelas e peças, nos quais se utiliza
da mistura da memória e da ficcionalização em sua escrita. Nascida
em 1943, na região de Transkei, Sindiwe terminou o seu ensino médio
por correspondência e trabalhou como doméstica até conseguir entrar
na Universidade de Columbia.
Suas obras tratam da mulher abandonada pelo marido e suas con-
dições de vida, da invisibilização da mulher negra, do HIV na África
e da saúde oferecida pelo Estado, bem como dos homens negros e do

298 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


desemprego. Além disso, Sindiwe retrata a cultura xhosa nas novelas
e nos contos para crianças e ressalta a força da mulher e o poder de
superação e escrita da própria. Seus trabalhos principais foram: To My
Children’s Children (1990); Living, Loving and Lying Awake at Night
(1991); Forced to Grow (1992); Push, Push (1996), Beauty’s Gift (2008);
Please, Take Photographs (2009); e Clicking with Xhosa: A Xhosa Phra-
sebook (2016).
Sindiwe Magona, que encontrou um caminho para a resistência
através da aprendizagem de leitura e escrita mesmo em tempos difí-
ceis, também recebeu prêmios, como o Lifetime Achievement Literary
Award e o Molteno Gold Medal, ambos em 2007, por contribuir com
a literatura sul-africana e por promover a língua e a cultura xhosa.
Ainda recebeu, em 2012, o Prêmio Imbokodo juntamente com Nadine
Gordimer, outra autora excepcional da África do Sul.

NADINE GORDIMER

Escritora de uma série de obras com diversificados temas, como


exílio, alienação social e machismo, Nadine Gordimer é uma das au-
toras mais excepcionais para a África do Sul. Nascida no fim de 1943,
em Gauteng, branca e de família de classe média, teve seus privilégios,
mas se opôs ferrenhamente ao Apartheid. Frequentou a Universidade
de Witwatersrand por pouco tempo e deu aulas nos Estados Unidos
nas décadas de 1960 e 1970.
Ela ainda escreveu contos e novelas, como Face to Face (1949),
The Lying Days, (1953) Burger’s Daughter (1979), July’s People (1981),

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 299


A Sport of Nature (1987), My Son’s Story (1990), The House Gun (1998)
e The Pickup (2001). Todos os livros relatam, ficcionalizam e contam a
história da África do Sul de diferentes ângulos, sendo eles o da justiça
social, o da fuga, o do escape e a da resistência à continuação de um
regime colonial e opressor como o Apartheid.
Nadine Gordimer escreveu sobre o momento do Apartheid e re-
latou sobre a violência e a aceitação social pós esse regime. Ela editou
o texto de Nelson Mandela, em 1963, quando estava preso – I am pre-
pared to die -. Ela sofreu críticas por seus privilégios enquanto mulher
branca e classe média, porém não se deixou calar, usando sua escrita
para denunciar.
Com a sua obra The Conservationist (1974), ela ganhou o Prêmio
Booker. Suas outras obras, como A Soldier’s Embrace (1980), Crimes of
Conscience (1991), Loot, and Other Stories (2003) e Living in Hope and
History: Notes from Our Century (1999), a fizeram receber o Nobel
de Literatura, em 1991, e a Legião da Honra. Além dessas imensas
construções literárias e históricas, Nadine foi membro fundador do
Congresso dos Escritores da África do Sul (COSAW) e entrou para a
Congresso Nacional Africano (ANC), em 1990, sendo uma das com-
batentes e negociadoras com o Estado contra o Apartheid.
Como já dito, as mulheres construíram a história da África den-
tro de seu domínio e também transgrediram contra um sistema racis-
ta e sexista. A maioria das mulheres escritoras da África do Sul eram
ativistas e sindicalistas, consideradas comunistas, naquele período das
guerras pela independência e da Guerra Fria.

300 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


ELLEN KUZWAYO

Presidente do Congresso Nacional Africano em 1960 (ANC),


professora, primeira mulher negra a ser eleita no parlamento pós-
-Apartheid e primeira a receber o CNA Literary Award (um dos prê-
mios mais importantes da África do Sul por sua obra Call me Woman
(1985), que é uma autobiografia, um relato do ativismo e da resistência
durante períodos terríveis na África do Sul), Ellen Kuzwayo é um sím-
bolo para o direito das mulheres e das mulheres negras.
Nasceu em meados de 1914 e cresceu na fazenda de seus avós em
Thaba Nchu, que perdeu depois do Apartheid por ser terra de “bran-
cos”. Depois da morte de sua mãe, Ellen (aos 16) se dedicou aos estu-
dos, graduando-se no Lovedale College, em 1936. Se casou, mas fugiu
para Joanesburgo por causa dos abusos de seu marido, deixando as-
sim os seus dois filhos para trás. Depois do divórcio, Ellen se graduou
em serviço social pela Universidade de Witwatesrand e entrou para o
Conselho da cidade de Joanesburgo.
Ellen já fazia parte de clubes como Associação de Clubes da Ju-
ventude da África do Sul (South African Association of Youth Clubs) e
do YWCA-Dube Center, um centro de empoderamento das mulheres.
Depois do massacre de Soweto em 1976, ela entrou para um grupo
seleto chamado Comissão dos Dez para investigar a participação de
membros dos Conselhos que estariam a favor do Apartheid. Todavia,
Ellen foi presa sem acusação ou condenação por cinco meses.
Sua luta, suas escrevivências contidas nos livros Call me woman
(1985) e Sit Down and Listen:Stories from South Africa (1990) a fize-
ram receber Doutorados Honorários pelas universidades de Natal,

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 301


Port Elizabeth e Witwatersrand. Mas antes, em 1979, pela sua força,
determinação e importância, a revista Star a considerou a mulher do
ano.

MIRIAM TLALI

Outra mulher inspiradora que recebeu prêmios como South Afri-


can Lifetime Achievement Literary Award, em 2007, e Order of Ikha-
manga, em 2008, foi Miriam Tlali, que nasceu em Joanesburgo, em
1933, e cresceu em Sophiatown. Miriam tentou estudar na Universi-
dade de Witwatersrand, mas não foi aceita por sua cor. Mais tarde foi
admitida na atual Universidade do Lesotho8, mas não pode comple-
tar os estudos devido às dificuldades financeiras.
Trabalhando como guarda-livros em uma loja de móveis, ela
escreveu seu livro Muriel at Metropolitan (1969), que foi publicado
em 1975, sendo a primeira novela escrita por uma mulher negra a ser
publicada na África do Sul. Mais tarde, em 1979, a obra foi proibi-
da no país e, para ser publicada internacionalmente, recebeu o título
de Between Two Worlds. Em 1980, Tlali publica sua segunda obra,
Amandla, inspirada nos protestos e nas mortes de Soweto. Mais tarde
ela publicou Mihloti (1984) e Soweto Stories (1989), o que a fez ser reco-
nhecida e ganhar premiações por contribuir e enriquecer a literatura
sul-africana.

8 Lesotho é outro país dentro da África do Sul.

302 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


NOKUGCINA ELSIE MHLOPHE

Sabe-se que a mistura das línguas na África do Sul resultantes de


um processo colonial formam hoje a grande diversidade linguística,
literária e cultural presentes no país, diversidade essa que é engrande-
cida nos trabalhos de Nokugcina Elsie Mhlophe, uma ativista, atriz,
contadora de histórias, poeta, diretora, autora e dramaturga.
Nascida em 1958 em KwaZulu-Natal, Nokugcina Elsie traba-
lhou primeiramente como empregada doméstica e depois conseguiu
em emprego como locutora, na Press Trust na BBC Radio, e como
escritora, na Learn and Teach, uma revista de cunho literário. Gcina
(assim chamada) não pensava que tinha a vontade de ser contadora
de histórias, mas começou a contar informalmente, e o seu público
aumentou.
Ela conta histórias fazendo performances em inglês, africâner,
zulu, xhosa, entre outras línguas, o que ajuda na manutenção da me-
mória das histórias orais e das línguas que sofreram apagamento du-
rante o período colonial. Entre seus principais trabalhos estão o filme
Place of Weeping (1984), a peça autobiográfica Have You Seen Zandile?
(1986), a performance no Festival de Contação de Histórias em 1989,
a gravação de voz e vídeo no The Gift of the Tortoise (1994), a apresen-
tação do poema Poetry Africa, o espetáculo televisionado Fudukazi’s
Magic (2002) no Festival de Filme da União Africana em Durban, a
performance de The Bones of Memory (2002) e muitos outros.
Suas obras são multilíngues e possuem várias temáticas, entre
elas a vida cotidiana, a história antes e pós-Apartheid, a sociedade sul-
-africana e sua cultura. Por seus trabalhos, Gcina recebeu muitas pre-

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 303


miações, como a Fringe First Award, em Edimburgo, pela obra Have
you seen Zandile? e o Joseph Jefferson Award como melhor atriz nessa
mesma obra, em Chicago.9

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em uma palestra no Ted Talks, Chimamanda fala sobre o Perigo


de uma história única (2009); em outras palavras, fala sobre o risco
de se acreditar em histórias universais contadas pelo lado considerado
“modelo” e detentor do conhecimento universal, que, em sua maioria,
é europeu, homem e branco. É hora de ouvir as histórias que são con-
tadas de dentro, por quem está no meio do turbilhão, sendo arrastado
entre estruturas sociais, culturais e institucionais racistas e sexistas. É
cada vez mais necessário se ler, estudar, falar e escrever sobre África,
sobre mulheres, sobre negras e negros e suas epistemologias, não como
um conhecimento que os torna objeto, mas como sujeitos.
Como afirma Davis (2016), as mulheres negras, desde e antes dos
tempos de escravização colonial trabalham. Além de toda a explora-
ção sofrida e os abusos sexuais, essas mulheres tinham, muitas vezes,
seus lares, filhos para cuidar e muitas outras coisas que eram obrigadas
a fazer. E, mesmo assim, permaneciam (e ainda permanecem) invisibi-
lizadas. Contudo, elas escrevem a história, se utilizam de ferramentas
fora e dentro do seu domínio para alcançar objetivos pessoais e sociais,
participando tanto em lutas e protestos físicos quanto participações

9 Disponível: https://www.sahistory.org.za/ ; https://www.britannica.com/biography/


Nadine-Gordimer ; e http://www.kwela.com/Authors . Acesso em: 17 jul. 2019.

304 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


escritas, através da arte, da literatura anglófona elas escrevem, tecem,
cantam e contam a história não para perpetuar padrões já estabeleci-
dos, pelo contrário, para transformá-los.

COMO CITAR ESTE TEXTO

RAMANHO, H. S. M. Mulheres e a literatura sul-africana de língua inglesa: a


construção de uma história . In: SOARES, I. M.; LESZCZYNSKI, T. (Orgs.). Um
percurso pelas literaturas de língua inglesa. Tutóia/MA: Diálogos, 2023. p. 285-307.
https://doi.org/10.52788/9786589932796.1-14

REFERÊNCIAS

ACHCROFT, Bill; GRIFFITHS, Gareth; TIFFIN, Helen. The Post-Colonial


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UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 307


capítulo 15

O romance histórico inglês


de Bernard Cornwell e o Brasil:
considerações sobre a tradução
Alexandre José da Silva Conceição

INTRODUÇÃO

O britânico Bernard Cornwell figura entre os principais autores


da língua inglesa nos dias atuais. Escritor prolífico, suas obras de ficção
histórica, baseadas na história das Ilhas Britânicas e ocasionalmente
dos Estados Unidos, foram traduzidas para mais de dezesseis idiomas,
entre eles o português, sendo que duas séries de livros, Sharpe e Saxon
Stories (conhecida no Brasil pelo nome de Crônicas Saxônicas), foram
adaptadas para a televisão e para o serviço de streaming Netflix, res-
pectivamente.
Este trabalho visa analisar a posição da obra de Cornwell na li-
teratura inglesa e mais especificamente no gênero da ficção históri-
ca, que trata de narrativas criadas com base em eventos históricos, e
também analisar a tradução e recepção de seus livros para o mercado
brasileiro.

308 DOI: 10.52788/9786589932796.1-15


A pesquisa é descritiva de cunho bibliográfico feita a partir do le-
vantamento de referências teóricas já analisadas, como livros e artigos
científicos publicados por meios escritos e eletrônicos. Os principais
autores que embasam cientificamente este trabalho são Weinhardt
(1995), Soares (2019; 2020), Lukacs (2011) e (1991).
Este trabalho está estruturado da seguinte maneira: introdução;
um capítulo em que introduzimos o gênero da ficção histórica no
contexto da literatura inglesa; outro com uma biografia resumida de
Bernard Cornwell e um estudo de sua obra do ponto de vista inglês;
um capítulo sobre a tradução e recepção de alguns de seus livros na
literatura brasileira; e. por fim, um capítulo apresentando nossas con-
siderações finais, seguidas pelas referências utilizadas.

O ROMANCE HISTÓRICO: CARACTERÍSTICAS E HISTÓRIA DO


GÊNERO

Em um artigo sobre as características e a história do romance


histórico, Weinhardt (1994) cita que, de acordo com as considerações
de Bakhtin em Questões de literatura e estética, o romance histórico
diferiria das epopeias (epos) e épicos, tais quais a Ilíada de Homero ou
os Ciclos Arturianos, por duas características principais: o momento
histórico no que a narrativa é situada e as características dos persona-
gens.
Temporalmente, epopeias seriam ambientadas em um “(...) ‘pas-
sado absoluto’, fechado e inquestionável, a ser reverenciado sem críti-
ca, com uma hierarquia estratificada e heróis que sumarizam em si o

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 309


passado heroico nacional (...)” (1995, p. 50). Por sua vez, os romances
históricos seriam ambientados em um passado histórico ao invés de
um mítico, um tempo que pode ser estudado, analisado e revisto.
Quanto aos personagens, os personagens de um epos seriam ide-
alizados, pertencem a arquétipos, “heróis sem fissura entre o aspec-
to interno e o externo, direito e avesso perfeitamente idêntico, ação
e modo de ser sem conflito”, enquanto os que povoam o romance
histórico seriam mais “humanos”, dotados de dúvidas, virtudes e de-
feitos em proporções realistas, ao invés das proporções homéricas da
indignação de Aquiles após uma de suas escravas ser confiscada por
Agammenon.
Por fim, a dimensão da ambientação ser em um período histórico
e o foco em personagens humanizados se juntam no que Weinhardt
aponta como o principal atrativo dos romances históricos: permitir
que o leitor tenha uma janela para tempos, lugares, costumes e even-
tos que realmente existiram. É raro que os “grandes homens” sejam
os narradores, embora em muitos casos eles sejam personagens e até
parte do elenco central. O foco está em ver um evento ou período
importante do ponto de vista de um participante menor. Alguns
exemplos são o livro Potop, do polonês Henryk Siekiewicz, que conta
a história de como a invasão sueca conhecida como Dilúvio devastou
a Comunidade Polaco-Lituânia entre 1655 e 1660 por meio dos olhos
do fictício nobre e oficial polonês Andrzej Kmicic; a invasão viking e
a unificação da Inglaterra durante o século IX são contadas nas Saxon
Stories de Bernard Cornwell pelo fictício Uthred, que na narrativa foi
um importante subordinado de Alfredo, um rei anglo-saxão que real-
mente existiu; ou ainda o relato da história do sul do Brasil na série O

310 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, narrada por uma série de perso-
nagens da famílias Terra e Cambara.
Georg Lukacs, em O Romance Histórico (2011), livro considerado
a pedra fundamental dos estudos da ficção histórica, apontava que as
raízes do romance histórico estariam no século XIX, com as obras de
Sir Walter Scott, tais quais Waverly1 (1814) e Ivanhoé2 (1820). Esses
trabalhos seminais viriam a influenciar diversos autores, como Balzac,
Tolstói etc. Sobre o período em que os romances históricos começam
a ser publicados, Weinhardt coloca que

Aos textos antecendentes [SIC] que situam a ação em épocas pretéritas


feita justamente o que o crítico marxista considera a condição
fundamental para o histórico: a especificidade histórica do tempo
da ação condicionando o modo de ser e de agir das personagens. As
grandes transformações que marcaram os povos europeus entre 1789 e
1814 reforçou-lhes a consciência histórica. A guerra, não mais restrita
aos militares, atingindo os cidadãos, produz um alargamento de
horizonte e a difusão do sentimento de nacionalidade entre a massa.
(WEINHARDT, 1994, p. 51).

Soares (2018) clarifica que Lukacs posiciona a ascensão da ficção


histórica como contemporâneo ao Romantismo e às consequências
da Revolução Francesa – as datas mencionadas por Weinhardt no ex-
certo acima, 1789 e 1814, são o início da Revolução Francesa e a pri-
meira abdicação de Napoleão.
De acordo com a apresentação de Arlenice Almeida da Silva para
O Romance Histórico, Lukacs considerava “o romance histórico não é

1 Ambientada durante a Segunda Rebelião Jacobita em 1745 (a revolta buscava restaurar a casa
de Stuart ao trono da Grã-Bretanha)
2 ambientada durante o reinado de Ricardo I, o Coração de Leão (1189-1199). Considera-se
que esse livro foi uma das principais contribuições para as imagens modernas de Ricardo I, seu
irmão João Sem Terra e Robin Hood e personagens associados a ele.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 311


episódico ou um gênero particular, mas a formalização que o roman-
ce assume ao figurar o passado como a pré-história do presente” (SIL-
VA, 2011, p. 17), e associava a ascensão e o declínio da popularidade
dos romances históricos tradicionais. A data que é indicada como a
derrocada do período clássico da ficção histórica é 1848, ano em que
ocorreram as revoluções conhecidas como Primavera dos Povos.
Mingo apud SOARES (2019) sintetiza as características que
Lukacs atribuiu aos romances históricos da seguinte maneira:

1. A história e os personagens se localizam em um momento


histórico.
2. A história busca transmitir uma sensação de realismo.
3. Análise e crítica de eventos atuais são possibilitadas pela
comparação com os eventos históricos.

Por fim, como aponta Weinhardt, o romance histórico não pos-


sui um elemento de saudosismo ou uma idealização do passado como
utópico, nem qualquer outra forma de estabelecer um juízo moral en-
tre passado e presente.
Um contraponto à visão de Lukacs é o de Linda Hutcheon. Traba-
lhando com um ponto de vista pós-moderno e destacando que história
e ficção seriam ambos discursos construídos ao invés da história ser
objetiva e verdadeira, Hutcheon repensou o romance histórico como
“metaficção historiográfica”, com as principais divergências sendo:

• Para Lucaks, os personagens de uma ficção histórica seriam “tí-


picos”, “normais”, enquanto Hutcheon coloca que os personagens

312 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


“podem ser tudo, menos tipos propriamente ditos: são os ex-cêntri-
cos, os marginalizados, as figuras periféricas da história ficcional”
(2011, p. 151), e até mesmo os personagens históricos assumem ca-
racterística que podem ser descritas até como “ex-cêntricas”;
• Relacionado com o ponto anterior, Hutcheon discorda de Lu-
caks sobre até que ponto personagens históricos podem ser cen-
trais em ficções historiográficas. Na análise tradicional de Lucaks
eles ficariam confinados a papeis secundários, enquanto para a
metaficção histórica eles podem ser mais centrais.
• Por fim, para Soares, a característica principal da metaficção
historiográfica “é seu caráter de autoconsciência, de autorrefle-
xão, que faz com que o próprio romance reflita acerca do processo
de criação discursiva da ficção e da história, ou seja, a capacidade
de questionar as verdades (ou “impressões de verdade”) históri-
cas embasadas na narrativa ficcional (...)” (SOARES, 2018, p. 94)

Mingo apud SOARES (2018) também destaca que o romance


histórico difere do romance tradicional por que este está delimitado
na estrutura usual da comunicação, isto é, há uma figura que produz
a mensagem (o escritor e o livro, respectivamente) e alguém que rece-
be a mensagem (o leitor), enquanto no romance histórico o escritor
também é um recipiente de uma mensagem, pois a escritura da obra
literária se baseia na leitura e interpretação de fontes e análises históri-
cas feitas por terceiros.
Assim, se normalmente a leitura de uma ficção obedece a seguin-
te estrutura comunicacional:

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 313


Produtor (autor) ⇢ mensagem (estória) ⇢ destinatário (leitor)

O processo de comunicação que ocorre no romance histórico


pode ser, em sua forma mais resumida, descrito assim:

Mensagem anterior (fontes históricas)



leitor-autor

nova mensagem (romance histórico)

leitor final

No contexto deste trabalho, usaremos elementos das diversas


perspectivas sobre o romance ou ficção histórica para construir nossa
opinião sobre as características do romance histórico.
Em primeiro lugar, discordamos de Lucaks em sua consideração
de que os romances históricos não são um gênero e sim uma variante
do romance. Para nós, assim como SOARES (2019, p. 88), a ficção
histórica é um gênero. Concordamos, porém com a avaliação dele so-
bre quais são as principais características da ficção histórica de acordo
com as sínteses de Mingo. Também aceitamos a análise do próprio
Mingo sobre a natureza da comunicação que ocorre em um romance
histórico – é um caso clássico de intertextualidade e de referenciação,
do mesmo modo que as traduções.
Por outro lado, partilhamos da opinião de Hutcheon de que tan-
to história e ficção são discursos construídos, e tomamos parte na re-
futação proposta pela metaficção histórica dos “métodos naturais ou
de senso comum, para distinguir entre o fato histórico e a ficção” e da

314 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


noção “de que apenas a história tem uma pretensão à verdade”, pelo
mesmo caminho que a autora propõe:

(...) por meio do questionamento da base dessa pretensão à verdade,


por meio do questionamento da base dessa pretensão na historiografia
e por meio da afirmação de que tanto a história como a ficção são
discursos, construtos humanos, sistemas de significação, e é a partir
dessa identidade que as duas obtém sua principal pretensão à verdade
(HUTCHEON, 1991, p. 127)

Por fim, nos colocamos em um ponto entre o de Hutcheon e o


de Lucaks quanto à natureza dos tipos de personagens que costumam
protagonizar ficções históricas: os exemplos que colocamos ao tratar
da visão de Weinhardt sobre o tema (Andrzej Kmicic de Potop, Uthred
de Saxon Stories e as famílias Terra e Cambara de O Tempo e o Vento)
incluem tanto personagens “ex-cêntricos”, como Uthred (um anglo-
-saxão que passou por um processo de “dinamarquezação” e, portan-
to, é um pagão enquanto a maioria de seu povo é católica), enquanto
Andrzej é, até onde sabemos, um nobre polonês “típico” de sua épo-
ca, e os Cambara e Terra incluem uma variedade de personagens que
variam entre conformados com a sociedade e os valores históricos de
suas épocas e outros que desviam das normas.

UMA BIOGRAFIA DE BERNARD CORNWELL E UM ESTUDO DE


SUA OBRA

Bernard Cornwell nasceu em Londres, Reino Unido, em 1944,


de um breve relacionamento entre um aviador canadense e uma auxi-
liar da Força Aérea Britânica. Ele foi adotado por uma família de cris-

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 315


tãos protestantes pertencentes à (hoje extinta) seita fundamentalista
Peculiar People, uma experiência que o levou a se tornar um ateísta e a
desenvolver interesse pela história militar, entre outros tópicos que os
adeptos da seita proibiam. Após a morte de seu pai adotivo, Bernard
mudou seu sobrenome para Cornwell, que era o nome de solteira de
sua mãe e que ele já usava como pseudônimo.
Cornwell estudou história na Universidade de Londres, e por
um tempo lecionou naquela universidade. Posteriormente ele traba-
lhou nas redes de televisão BBC e Thames Television. Em 1979, ele
se mudou para os Estados Unidos com sua segunda esposa, que era
americana, e começou a escrever livros como consequência de não ter
obtido o visto de residência permanente (green card) e, portanto, não
ter permissão para trabalhar nos Estado Unidos. Escrever e publicar
livros, uma propriedade intelectual, era uma das possibilidades de ge-
rar renda sem um visto de residência ou trabalho.
Quando iniciou sua carreira de escritor, Bernard Cornwell já tinha
planos de escrever romances históricos, visto que histórias do gênero,
tais como a série Horatio Hornblower, que narra as aventuras de um
oficial da marinha britânica durante as Guerras Napoleônicas, eram
algumas de suas favoritas desde a infância. Surpreso que as campanhas
de Arthur Wellesley, 1º Duque de Wellington e general que coman-
dou os exércitos britânicos durante a Guerra Peninsular que encerrou
o controle francês sobre a Espanha e Portugal (abrindo caminho para
o retorno de Dom João VI e, portanto, para a independência do Brasil)
e durante a Batalha de Waterloo, que pôs fim ao segundo reinado de
Napoleão como imperador da França. Essa foi a gênese da série Sharpe,
traduzida no Brasil com o nome As Aventuras de um Soldado nas Guer-

316 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


ras Napoleônicas, que acompanha a carreira do fictício Richard Sharpe
de recruta a tenente-coronel. Esta série foi adaptada para televisão pela
emissora britânica ITV, estrelando o ator Sean Bean.
Outras séries de autoria de Cornwell incluem as Saxon Stories
(traduzidas sob o título de Crônicas Saxônicas), que enfocam na for-
mação da Inglaterra como país unificado; as Warlord Chronicles (As
Crônicas de Artur), uma “versão histórica” da lenda do rei Artur; The
Grail Quest (A Busca do Graal), em que uma busca pelo mítico Santo
Graal acontece em meio a vários momentos históricos da Guerra dos
Cem Anos entre Inglaterra e França; as Starbuck Chronicles (As Crôni-
cas de Starbuck), sobre a Guerra Civil Americana; romances históricos
que não fazem parte de uma série, tais quais Azincourt e Stonehenge,
livros de suspense e um de não ficção intitulado Waterloo: The History
of Four Days, Three Armies and Three Battles.
Uma lista de autores mais vendidos de 2000 a 2009 elaborada
pelo jornal The Telegraph com base em informações coletadas pela
agência de dados de publicações literárias Nielsen BookScan afirmava
que Bernard Cornwell teria sido o décimo nono autor mais vendido
do período pesquisado, tendo vendido mais de seis milhões de livros
por uma valor estimado em cerca de quarenta e cinco milhões e meio
de libras esterlinas, uma prova de sua popularidade no mercado pes-
quisado – presumivelmente, o britânico, visto que o Telegraph deci-
diu publicar a lista e vários dos mais vendidos são autores britânicos.
Há pouca discussão sobre se Cornwell é um escritor de ficções
históricas ou não. Soares (2019) comentou que

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 317


Quando se trata de gênero literário, afirma-se que Bernard Cornwell é
um escritor de ficção-histórica, atingindo a um público interessado por
história. Nesse sentido, o autor britânico é um investigador da história
juntamente com seus leitores, como argumenta Carlos Sanz Mingo,
em seu livro The Arthurian World in Bernard Cornwell’s The Warlord
Chronicles (2017), ao introduzir a ideia de que Bernard Cornwell escreve
romances históricos. Mingo difere o romance tradicional do romance
histórico, destacando o papel do escritor enquanto leitor da história.
(SOARES, 2019, p. 240).

Um detalhe interessante da obra de Cornwell é sua atenção ao


realismo. Como diz Soares,

A verossimilhança da narrativa de Cornwell com a ‘realidade histórica’


é bem característica, além de, no final do volume, o autor deixar uma
‘Historical Note’, em que justifica os limites do que é ficção e do que é
baseado em fatos reais em sua obra (p. 241).

Até onde podemos averiguar, essas “Historical Notes”/Notas


Históricas” estão presentes em todos os livros. As traduções das per-
tencentes à trilogia The Warlord Chronicles/As Crônicas de Artur, por
exemplo, repetidas vezes destacam que qualquer tentativa de fazer uma
“versão historicamente realista” dos fatos que inspiraram a lenda artu-
riana são baseadas em conjunturas e seleção daqueles fatos comprova-
dos sobre o período para dar algum embasamento à narrativa. A de
Azincourt menciona vários livros e estudiosos que pesquisaram a bata-
lha que dá nome ao livro, além de brevemente explicar como as percep-
ções dos historiadores sobre ela mudaram conforme os anos passavam.
Por conta da popularidade e ampla quantidade de livros vendi-
dos, Soares considera que Cornwell é um autor de bestsellers, ou seja,
pode ser considerado um autor de literatura de massa ou de merca-
do. Existe discussão sobre se o termo “literatura de massa” deveria ser

318 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


tratado como sinônimo de obras de fora da “literatura culta”, isto é,
aquelas obras que são considerados por instituições sociais, tais como
escolas e academias de letras, como exemplos das melhores qualidades
que aquela cultura espera de sua literatura, visto que várias obras com
amplas tiragens e apreciação popular são parte dos “clássicos” da lite-
ratura culta. Entretanto, estas questões não são o foco deste trabalho.
Das quatro características que a literatura de massa teria – um
“caráter mítico” (os personagens pertencem a certos arquétipos, sen-
do que protagonistas frequentemente teriam uma proporção épica),
atualidade informativo-jornalística (a obra busca, por meio de uma
linguagem acessível, informar o leitor sobre algo, como fatos, ideias,
perfis de pessoas relevantes etc), pedagogismo (visivelmente busca
transmitir algum ensinamento) e retórica culta ou consagrada (a lin-
guagem utilizada tem similaridades com aquela encontrada em obras
da “literatura culta”) –, Soares (2019) considera que apenas a atua-
lidade informativo-jornalística e a retórica culta ou consagrada esta-
riam presentes, pois além das próprias narrativas servirem para contar
sobre eventos históricos da Inglaterra existem as notas históricas para
um ponto de vista mais técnico, e nunca é destacado que a linguagem
utilizada transgride os padrões da literatura inglesa. Quanto ao peda-
gogismo e ao caráter mítico, o primeiro é descartado por que faltaria
uma mensagem prática e facilmente identificável, enquanto os perso-
nagens protagonistas variam entre relativamente típicos, como Derfel
de Warlord Chronicles a “ex-cêntricos” como Thomas Hook de Azin-
court e Uthred de Saxon Stories, mas raramente eles estariam imunes
às leis das sociedades em que vivem e sempre têm vícios de caráter,
limitações em suas capacidades etc.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 319


No contexto dos estudos da língua inglesa, o estudo da obra
cornwelliana está se expandindo aos poucos, geralmente nas áreas de
“Letras e Literatura, especialmente do campo dos Estudos Ingleses”
(SOARES, 2019, p. 26), explorando temas como os diferenciais que
a narrativa arturiana tradicional e a versão de Cornwell em Warlord
Chronicles/As Crônicas de Arthur possuem entre si em relação à im-
portância e funções de personagens femininas, as relações entre di-
ferentes grupos religiosos em diversas partes da obra, e a evolução de
personagens conforme as narrativas progridem.
Em síntese, a obra de Cornwell foi bastante influenciada por
suas experiências de vida embora raramente interseccione diretamen-
te com ela. Embora possua várias características associadas às formas
mais usuais da literatura de massa, também tem várias divergências,
que podem ser relacionadas às referidas influências biográficas (por
exemplo, é possível associar o elemento informativo-jornalístico ao
período em que o autor trabalhou na BBC), à natureza da obra como
ficção histórica (que exige pesquisa e uma estrutura diferente da co-
municação), entre outros. A obra também apresenta características
tanto das análises de Bakhtin (de acordo com Weinhardt), Lucaks e
Hutcheon sobre o gênero ficção histórica.

A TRADUÇÃO E RECEPÇÃO DA OBRA CORNWELLIANA NO


BRASIL

Dividimos nosso estudo da obra de Bernard Cornwell em algu-


mas áreas: a proporção de obras traduzidas e o que se sabe do processo
de tradução e publicação; e a recepção dos acadêmicos brasileiros.

320 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Praticamente, toda a seção de romance histórico da obra de Cor-
nwell foi traduzida para o português brasileiro pela editora Record,
aparentemente por um único tradutor: Alves Calado. A lista abaixo
indica os livros, trilogias e séries traduzidos pela Record até 2019. Não
há informação sobre se os livros de suspense ou o de não-ficção foram
traduzidos.

▸ Azincourt
▸ O Condenado
▸ Stonehenge
▸ O forte
▸ Tolos e mortais
▸ Trilogia As Crônicas de Artur
▹ O rei do inverno,
▹ O inimigo de Deus,
▹ Excalibur
▸ Trilogia A Busca do Graal
▹ O arqueiro,
▹ O andarilho,
▹ O herege
▸ Série As Aventuras de um Soldado nas Guerras Napoleônicas
▹ O tigre de Sharpe,
▹ O triunfo de Sharpe,
▹ A fortaleza de Sharpe,
▹ Sharpe em Trafalgar,
▹ A presa de Sharpe,
▹ Os fuzileiros de Sharpe,
▹ A devastação de Sharpe,
▹ A águia de Sharpe,

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 321


▹ O ouro de Sharpe,
▹ A fuga de Sharpe,
▹ A fúria de Sharpe,
▹ A batalha de Sharpe,
▹ A companhia de Sharpe
▸ Série Crônicas Saxônicas
▹ O último reino,
▹ O cavaleiro da morte,
▹ Os senhores do norte,
▹ A canção da espada,
▹ Terra em chamas,
▹ A morte de reis,
▹ O guerreiro pagão,
▹ O trono vazio,
▹ Guerreiros da tempestade,
▹ O portador do fogo,
▹ A guerra do lobo
▸ Série As Crônicas de Starbuck
▹ Rebelde,
▹ Traidor,
▹ Inimigo

De maneira similar ao que ocorre na língua inglesa, os estudos


científicos brasileiros da obra cornwelliana estão em seus primeiros
passos. Em contraste com o contexto anglófono, os estudos são geral-
mente do campo da História ao invés da Literatura. Do mesmo modo,
até o presente momento, aparentemente não existem estudos nacio-
nais significativos sobre as características da tradução de Cornwell.
Soares (2019) resumiu a situação da seguinte maneira:

322 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


No Brasil, os trabalhos acadêmicos acerca da literatura de Cornwell
encontrados em nossas buscas são excepcionalmente produções
resultantes da área da História, com exceção do artigo ‘Guinevere
ontem e hoje: Representação feminina na literatura’ (2007), de autoria
de Pricila dos Reis Franz, da área das Letras. Esse artigo, contudo, não
tem como foco a obra de Cornwell em si, (...) (SOARES, 2019, p. 28)

Se, assim como Soares e outros estudiosos, considerarmos que


a obra de Cornwell leva a refletir sobre a história da Inglaterra, pode-
mos dizer que as traduções brasileiras permitem que o público brasi-
leiro possa acompanhar as reflexões do autor. Um artigo de Venancio
(2020) destaca Cornwell como um dos melhores autores que execu-
tam o que ele chama de “processo estoricizante”, a conversão de mate-
rial histórico em ficções, apontando este processo como uma boa ma-
neira de transmitir conhecimento histórico, e lamenta que essa prática
não seja difundida no Brasil, sendo que a “popularização da história”
geralmente é deixada a cargo de jornalistas como Laurentino Gomes e
Eduardo Bueno, restando ao leitor brasileiro a “pior” alternativa, que
é recorrer a autores traduzidos como Cornwell.
Em comparação com a literatura científica relativa à obra de Cor-
nwell, é difícil encontrar estudos de mercado relacionados à quantidade
de livros vendidos que pudéssemos comparar com a lista publicada no
Telegraph. A maior parte das matérias jornalísticas neste sentido nor-
malmente se resumem aos dez livros mais vendidos em um espaço de
tempo geralmente menor que uma década – geralmente os mais vendi-
dos do ano ou do mês. As menções dos estudos de Soares e Venâncio e
o fato de que a editora Record achou rentável traduzir tantos livros da
ficção histórica cornwelliana são as evidências mais sólidas de que há
um mercado bastante prolífico para a obra de Bernard Cornwell.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 323


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo buscou fazer uma breve análise de como a obra do


autor britânico Bernard Cornwell, particularmente a parte perten-
cente ao gênero da ficção histórica ou romance histórico, se insere no
contexto do estudo do gênero referido, no meio acadêmico da língua
inglesa e no contexto da academia e público brasileiro.
Averiguamos que, apesar de gozar de ampla popularidade tanto
no contexto da língua inglesa quanto da variante brasileira da língua
portuguesa, o estudo da literatura cornwelliana ainda está ganhando
espaço na academia, e esse progresso ocorre de maneiras distintas nos
dois contextos – maneiras que poderiam se complementar.
Apesar de a existência recente, os estudos atuais cobrem uma va-
riedade de assuntos, como feminismo, comparação das narrativas cor-
nwellianas com aquelas que a precederam em tópicos como a história
da Inglaterra, desenvolvimento de personagens ao longo da narrativa,
recepção dos leitores, etc.
Entre as possibilidades que levantamos sobre o desenvolvimento
deste estudo, consideramos algumas opções: primeiro, tomar referên-
cia em alguns estudos internacionais para fazer análises detalhadas
sobre séries ou livros específicos. Outra possibilidade se baseia na pro-
dução nacional dos Estudos da Tradução: até o presente momento,
aparentemente, não há um estudo sobre as características da tradução
de Cornwell, e cremos que estudos nessa direção podem se basear nos
de Lia Wyler, tradutora de Harry Potter.

324 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


COMO CITAR ESTE TEXTO

CONCEIÇÃO, A. J. S. O romance histórico inglês de Bernard Cornwell e o Brasil:


considerações sobre a tradução. In: SOARES, I. M.; LESZCZYNSKI, T. (Orgs.). Um
percurso pelas literaturas de língua inglesa. Tutóia/MA: Diálogos, 2023. p. 308-325.
https://doi.org/10.52788/9786589932796.1-15

REFERÊNCIAS

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção.


Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
LUKÁCS, György. O Romance Histórico. Trad. Rubens Enderle. São Paulo:
Boitempo, 2011.
SOARES, Isabelle Maria; SILVA, Edson Santos. Entre o real e a ficção: a história
da Inglaterra do século IX pela ótica do medievo e do contemporâneo. Revista
Letras Raras. Campina Grande, v. 9, n. 2, p. 228-251, jun. 2020. Disponível
em: http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php/RLR/article/view/1627, acesso
em 14 maio 2022
SOARES, Isabelle Maria. Entre Anglo-Saxões e Escandinavos: História e
Memória em Saxon Stories, de Bernard Cornwell. 2019. 151 f. Dissertação
(Programa de Pós-Graduação em Letras - Mestrado) - Universidade Estadual
do Centro-Oeste, Guarapuava-PR.
VENANCIO, Rafael Duarte Oliveira. Contando história através de estória:
processo estoricizante e o storytelling como forma alternativa de transmissão
de fatos históricos. Revista Alterjor. Grupo de Estudos Alterjor: Jornalismo
Popular e Alternativo (ECA-USP). Ano 10 – Volume 02 Edição 22 – Julho-
Dezembro de 2020. São Paulo. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/
alterjor/article/view/171040, acesso em 24 abr. 2022.
WEINHARDT, Marilene. Considerações sobre o romance histórico. Revista
Letras, n. 43, p. 49-59, 1994. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/letras/
article/view/19095/12396, acesso em 03 maio 2022.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 325


capítulo 16

O desaparecer de si na Adolescência:
Os Efeitos da Depressão e Suicídio em
As vantagens de ser invisível
Juarez José Pinheiro Neto

INTRODUÇÃO

Segundo a Pan-American Health Organization (PAHO, 2016) a


depressão, é a doença mental mais comum entre jovens, e o suicídio
a terceira principal causa de morte entre pessoas de 15 a 19 anos. A
adolescência é uma fase fundamental para o sujeito adquirir hábitos
saudáveis para uma saúde psicológica estável. O aumento da ocorrên-
cia de depressão entre adolescentes preocupa, surgindo assim a neces-
sidade de um entendimento sobre como a depressão acontece nestes
indivíduos.
Diante disto, buscamos entender o jovem depressivo através da li-
teratura contemporânea. Sendo a literatura um instrumento de inter-
rogar a vida, através dela obtemos repostas e perguntas sobre a nossa
existência (CASTELLO, 2012). Propomos neste trabalho uma análi-
se da representação do adolescente depressivo em uma obra literária,
alegando a importância da literatura para a crítica social.

326 DOI: 10.52788/9786589932796.1-16


O trabalho traz uma discussão sobre depressão e suicídio em
adolescentes a partir do livro As vantagens de ser invisível (1999), de
Stephen Chbosky. O personagem Charlie, retratado no obra, torna-se
interessante para a pesquisa, pois em sua narrativa apresenta alguns
dos fatores determinantes para o surgimento de doenças mentais en-
tre adolescentes.
Antes de analisar o livro, é importante entender a faixa etária
denominada de adolescência, e o desejo de desaparecer, sentimento
recorrente em pessoas neste momento da vida. A depressão é um dos
principais meios pelo qual o sujeito se isola do resto da sociedade, por
isto torna-se necessário a compreensão deste fenômeno. Através de te-
óricos como Dunker (2021) e Peres (2010) buscamos entender as dife-
renças entre depressão e melancolia.
O capítulo dialogará com os estudos de David Le Breton sobre o
desaparecimento de si na contemporaneidade, e de que forma pesso-
as depressivas são vistas no meio social. Trataremos também sobre a
problemática do suicídio, entretanto, abordaremos como uma forma
ilusória de desaparecer e, para isto, sugeriremos algumas abordagens
da filosofia de Schopenhauer.
Objetiva-se também discutir as consequências do ato suicida; o
papel da relações sociais na vida de pessoas depressiva; a função da es-
crita nos momentos de adversidade; além de contribuir para a compre-
ensão a respeito da depressão na adolescência, a fim de que os conheci-
mentos obtidos auxiliem no relacionamento dos agentes educacionais
com estes sujeitos.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 327


O DESAPARECIMENTO DE SI NA ADOLESCÊNCIA

A adolescência é, geralmente, tratada como uma fase interme-


diária entre a criança e o adulto, segundo o conhecimento popular,
começa aos 12 e termina aos 18. No entanto, Le Breton (2017) define
esta faixa etária como “uma questão que atravessa o tempo e o espaço
das sociedades humanas” (LE BRETON, 2017 p. 19). O autor desta-
ca que a adolescência marca a passagem da criança para a maturidade
social, demarcada pela faixa etária ou por responsabilidades com a co-
munidade, porém, não é possível precisar a idade ou as responsabili-
dades, pois elas variam de acordo com a sociedade e a época em que o
indivíduo está inserido.
Hoje em dia existe uma certa dificuldade em definir o começo
e o fim da adolescência, pois não há rituais de iniciação em nossa so-
ciedade que demarquem a passagem da infância para a vida adulta.
Assim, a adolescência é definida como uma sensação, uma questão
social. Portanto, uma definição mais precisa a seu respeito se torna
difícil (LE BRETON, 2017).
A sociedade costuma tratar os problemas e sentimentos da ado-
lescência como transitórios, assim tudo se resolverá com o passar do
tempo, porém de forma contrária ao pensamento popular. Le Breton
(2017) afirma que:

A adolescência é o tempo progressivo do amadurecimento, da construção


dos alicerces de um sentimento de identidade mais elaborado. Esse período
às vezes prolonga-se tanto que é difícil falar de período intermediário, pois
implica simultaneamente referências culturais próprias e uma sociedade
especifica. É um tempo pleno da existência e não uma simples represa
entre duas épocas da vida (LE BRETON, 2017 p. 87).

328 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


A pressão por um padrão comportamental; o medo de crescer;
e de aparecer no meio social, são alguns dos problemas que podem
surgir e fazer com que o adolescente queira se esconder do mundo,
no exato instante da vida em que ele é convidado a sair e explorar.
Le Breton (2018) chama a vontade de desaparecer do meio social de
“branco”.

O branco é essa vontade de desacelerar ou de deter o fluxo do


pensamento, de finalmente acabar com a necessidade social de sempre
compor um personagem de acordo com os interlocutores presente. O
branco é uma busca de impessoalidade, uma vontade de tão somente ser
considerado de forma neutra. Às vezes ele se transforma em um mundo
habitual de viver (LE BRETON, 2018 p. 23).

Ao desaparecer a pessoa está tentando se desfazer de uma identi-


dade que já não lhe agrada mais, trata-se de um desgaste social. É uma
forma de anular sua existência e todas as obrigações que lhe impli-
cam. Segundo Le Breton (2018) “Ele não quer mais ser alguém para
o vínculo social ou para sua família e se desincumbe de sua existência
vivendo por uma espécie de força da gravidade” (LE BRETON, 2018
p. 21).
Nesses sentimentos de não pertencimento, a depressão encontra
um ambiente ideal para manifestar-se. Le Breton (2018) situa a de-
pressão como uma forma de se deixar de lado. O autor escreve que “o
indivíduo se encontra diante da dolorosa estranheza de sua existência,
lançado para fora de si mesmo. Embora permanecendo a mesma pes-
soa, sente-se esvaziado de sua substância.” (LE BRETON, 2018 p. 73).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 329


DEPRESSÃO E MELANCOLIA

Dunker (2021) apresenta a depressão como a herdeira da melan-


colia, destacando os filósofos e os poetas, como seus percursores. Se-
gundo o autor, a depressão só ganha este nome e autonomia clínica
no fim do século XIX. A depressão moderna nasce na tentativa de
se criar um debate mais real sobre esse abatimento da alma. Sendo
assim, a melancolia seria um estado de espírito caracterizado pelo so-
frimento, estaria presente principalmente nas artes, literatura, poesia,
pinturas e filosofia. Já depressão seria esse sofrimento visto como um
quadro clínico.
A depressão para Dunker (2021) é uma reação a perda, trata-se de
um luto mal realizado. O fim da infância; a morte de alguém; o aban-
dono de casa; decepções amorosas, são alguns dos fatores que podem
originar um estado depressivo. O indivíduo deixa de perceber o que
acontece no mundo a sua volta, sua capacidade de planejar e construir
o seu futuro é perdida, seu presente torna-se uma prisão no passado.
O melancólico para Dunker (2021) transforma a sua dor em
arte, em discurso, revela uma atitude diante do seu sofrimento; sente
desejo de compartilhar o seu estado e através disto encontrar no outro
o que o seu ser perdeu. Na depressão ocorre um empobrecimento do
psíquico, o indivíduo perde a capacidade de criar, imaginar, se perde
no seu sofrimento e se sente incapaz de ser e fazer qualquer coisa.
Kehl (2009) associa a depressão a um desajuste mental prolon-
gado, causado pela não aceitação dos imprevistos, traumas e lutos da
vida. Enquanto a melancolia seria o sofrimento esporádico, que apa-
rece de tempos em tempos, decorrente de alguma perda traumática.

330 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Estar só é condição recorrente aos depressivos, o abandono de si
em um momento em que tudo o que se tem é a própria companhia
torna-o incapaz de criar laços consigo mesmo. Se olhar no espelho e
não reconhecer a pessoa que olha de volta mergulha o depressivo em
um mundo escuro, onde tudo o que se tem é um vazio, que apesar de
imenso, não lhe cabe.

A ILUSÃO DO DESAPARECIMENTO ATRAVÉS DO SUICÍDIO

A depressão torna o viver delicado demais, qualquer intromissão


no mundo do depressivo precisa ser feita de forma cuidadosa. Enquan-
to que a maioria da sociedade torna o estar no mundo complicado
para estes sujeitos, ainda existem aqueles que querem estender a mão,
estes precisam saber que cada pessoa possui sentimentos distintos, o
que requer abordagens diferentes, pois ao menor sopro contrário, o
mundo de quem tem depressão pode desmoronar. O que se deve evi-
tar a todo custo é o suicídio do depressivo, sendo assim ao abordamos
esta questão iremos tratá-lo como uma ilusão.
Durkheim (2000) postula que “Chama-se suicídio toda morte
que resulta mediata ou imediatamente de um ato positivo ou negati-
vo, realizado pela vítima.” (DURKHEIM, 2000 p. 11). No entanto, o
autor destaca que embora a atitude que ocasione a morte seja realiza-
da conscientemente pelo indivíduo, precisa-se levar em consideração
o contexto em que este fato ocorreu. Existem diversas maneiras de
cometer atos que podem ocasionar a morte. Pessoas em campos de
guerra; em prisões; mães tentando proteger os filhos, são alguns dos

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 331


casos em que a morte voluntária não foi ocasionada por sentimentos
depressivos.
Durkheim (2000) vai então afirmar que o suicida é aquela pessoa
que já não encontra prazer em continuar a viver, por isso em um mo-
mento de desespero comete o suicídio, perdendo assim seu bem mais
precioso. Segundo o autor:

Para ele, consequentemente, a vida corre o risco de não ser muito suave.
Sem dúvida, quando pode retira-se dela, criar para si um meio especial
em que o barulho de fora lhe chegue apenas abafado, ele consegue
viver sem sofrer demais; por isso, às vezes o vemos fugir do mundo
que o machuca e buscar a solidão. Mas, quando é obrigado a entrar
na confusão, se não tem como abrigar cuidadosamente sua delicadeza
doentia contra os choques externos, tem grandes possibilidades de
sentir mais dores do que prazeres. Tais organismos, portanto, são um
terreno predileto para a ideia do suicídio (DURKHEIM, 2000 p. 48).

Enquanto o indivíduo estiver em uma bolha, que proteja seus


sentimentos delicados das perturbadoras questões do mundo lá fora,
a ideia de morrer pode parecer distante, porém quando se tem o co-
nhecimento da confusão que se tornou a realidade; que existe uma so-
ciedade lhe impondo responsabilidades, há chances de a pessoa achar
na morte um lugar onde o sofrimento não exista, onde não há deveres
para cumprir, onde tudo se resolve. Porém, só a vida pode proporcio-
nar consolo para aqueles que sofrem por estarem vivos.
Pode-se constatar que o suicídio é uma ilusão analisando alguns
trechos da filosofia de Schopenhauer. Para este autor a finitude da vida
torna os sentimentos provisórios, nada é permanente, assim como a
tristeza, ou alegria. O existir pode parecer banal nestas palavras, mas
através dessa teoria pode-se também demonstrar aos depressivos que

332 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


os anos vão passar e depois de um tempo tudo será história; que a vida
continua apesar da gente, apesar dos problemas, apesar das tristezas,
apesar da depressão. Nada é permanente, portanto, até o sofrimento
que parece sem fim há de cessar um dia. Sendo assim Schopenhauer
(2019) escreve que:

Não há nada fixo na vida fugitiva: nem dor infinita, nem alegria
eterna, nem impressão permanente, nem entusiasmo duradouro,
nem resolução elevada que possa durar toda a vida! Tudo se resolve na
torrente dos anos. Os minutos, os inumeráveis átomos de pequenas
coisas, fragmentos de cada uma das nossas ações, são os vermes roedores
que devastam o que é grande e ousado.... Nada se toma a sério na vida
humana: o pó não vale esse trabalho (SCHOPENHAUER, 2019 p.
37).

Schopenhauer (2001) em outro trecho descreve que a morte não


traria a liberdade esperada pelo suicida. O sofrimento iria continuar,
mesmo sem ele. É como se o ator principal de uma peça se ausentasse
do palco, sua história continuaria, mas através de outras pessoas, a
dor não deixaria de existir. Independente da situação que ocasionou
o suicídio, suas respostas, cura e carências só serão saciadas no viver.

[...] aquele a quem o fardo da vida pesa, que amaria sem dúvida a vida
e que nela se mantém, mas maldizendo as dores, e que está cansado
de aquentar a triste sorte que lhe coube em herança, não pode esperar
da morte a sua libertação, não pode libertar-se pelo suicídio: é graças
a uma ilusão que o sombrio e frio. [...]. A Terra gira, passa da luz às
trevas; o indivíduo morre; mas o Sol, esse, brilha como um esplendor
ininterrupto, num eterno meio dia. A vontade de viver está ligada à
vida: e a forma vida é o presente sem fim; no entanto, os indivíduos,
manifestações da ideia, na região do tempo, aparecem e desaparecem,
semelhantes a sonhos instáveis. – O suicídio aparece-nos, pois, como
um ato inútil, insensato[...] (SCHOPENHAUER, 2001, p. 295-296).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 333


Não é possível saber o que vem depois do suicídio, o depois é in-
certeza. Entretanto o suicida encontra nesse desconhecido uma fuga
do sofrimento que vive. O suicídio é relacionado ao ato de apagar a
si próprio da existência, uma forma de se desobrigar a viver, é sair de
cena e deixar apenas a dor no seu lugar.
Embora reflexões filosóficas façam sentido, a realidade em que
vive o depressivo é cruel, apenas quem tem a vivência sabe das do-
res. Essas pessoas costumam afirmar que viver com depressão é como
morrer e continuar vivo, mas a morte em vida possibilita formas de
melhorar, de restabelecer o sentido de viver, enquanto que a morte por
suicídio tiraria todas as oportunidades do sujeito.
Julia Kristeva (1989) questiona a melancolia do sentimento de
não saber a causa do sofrer, que lhe retira as alegrias do viver e con-
sequentemente lhe impulsiona para a morte. Para ela as desgraças da
vida são tantas que não é possível ter clareza sobre a natureza e origem
dessa sensação, portanto a autora argumenta:

Uma traição, uma doença fatal, um acidente ou uma desvantagem que,


de forma brusca, me arrancam dessa categoria que me parecia normal, das
pessoas normais, ou que se abatem com o mesmo efeito radical sobre um
ser querido, ou ainda... quem sabe? A lista das desgraças que nos oprimem
todos os dias é infinita.... Tudo isto, bruscamente, me dá uma outra vida.
Uma vida impossível de ser vivida, carregada de aflições cotidianas, de
lágrimas contidas ou derramadas, de desespero sem partilha, às vezes
abrasador, às vezes incolor e vazio (KRISTEVA, 1989 p. 11).

Não é possível ter uma vida sem tristezas, sem momentos de de-
sespero. No entanto, a pessoa em estado depressivo perde a capacida-
de de acreditar que as desgraças da vida são temporárias, deixa de ad-
mirar as belezas que tornam o existir algo desejável, perde-se a vontade
de querer mais.

334 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Por mais que não seja perceptível, existe um esforço grandioso
por parte do depressivo para manter-se vivo. Julia Kristeva (1989) diz
que o esforço para viver uma vida que lhe é carregada de aflições, é o
que lhe mobiliza para continuar viva. Para a autora o único momento
em que a vida é suportável, é quando ela se dispõe a enfrentar o de-
sastre.
Enfrentar o desastre da vida pode ser mais difícil quando se é
adolescente, pois Le Breton (2018) afirma que o jovem “não dispõe
ainda de uma história para relativizar sua confusão. Atingido em
cheio pela adversidade, ele convive com o sentimento de que a situ-
ação não pode permanecer como está.” (LE BRETON, 2018 p. 82).
Assim, com poucas experiências de vida o adolescente acredita que
aquele momento de desespero é permanente, não existe na sua memó-
ria exemplos de superação que mostrem uma vida depois da crise, por
isto o suicídio é visto com mais frequência entre essas pessoas.

ANÁLISE DA DEPRESSÃO E SUICÍDIO EM AS VANTAGENS


DE SER INVISÍVEL (NO ORIGINAL THE PERKS OF BEING A
WALLFLOWER)

O livro As vantagens de ser invisível (1999) foi escrito pelo autor


estadunidense Stephen Chbosky. A história ganhou grande repercus-
são em 2012, quando o filme homônimo foi lançado. A partir de en-
tão, a obra passou a ter destaques nas livrarias e, consequentemente,
fez com que a discussão sobre depressão na adolescência aumentasse.
O livro aborda as relações adolescentes através das cartas de
Charlie, um adolescente introvertido, descobrindo novas sensações,

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 335


enquanto convive com traumas do passado. Charlie não conversava
muito com a sua família, ele tinha uma relação próxima apenas com
a tia Helen e seu melhor amigo Michael, que se suicidou. Quando a
sua tia também falece, Charlie se sente sozinho e acaba apresentando
sintomas depressivos. Por ser uma pessoa introvertida, não consegue
interagir, mas, quando entra no ensino médio, Charlie conhece Sam e
Patrick e eles fazem com que ele participe mais da vida social.
Charlie possui características que podem ser representativas para
muitos adolescentes, e, portanto, este pode ser um dos motivos do
sucesso da narrativa. Os escritos de Charlie ajudam a mostrar para
a sociedade os sentimentos da adolescência que muitas vezes podem
passar despercebidos.

CHARLIE, A ESCRITA E A TENTATIVA DE DESAPARECER

Charlie inicia o livro explicando a razão de estar escrevendo cartas


para um desconhecido. O motivo é porque alguém disse que o anôni-
mo o ouviria e entenderia, e era disto que ele precisava, ser escutado e
entendido. No entanto, Charlie não quer se identificar nas cartas:

Chamarei as pessoas por nomes diferentes ou darei um nome qualquer


porque não quero que descubram quem sou eu. Não estou mandando
um endereço para resposta pela mesma razão. E não há nada de ruim
nisso. É sério (CHBOSKY, 2020 p.13).

Não se identificar pode representar uma renúncia de sua identi-


dade, ele coloca as suas dores em um outro alguém, dessa forma foge
de si e busca na escrita um lugar de escuta e compressão. Para Le Bre-

336 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


ton (2018) a renúncia de si “já não se trata de deslizar para um ‘eu sou
o outro’, mas para um que ‘está em outro lugar’ que me é indiferente.”
(LE BRETON, 2017 p. 34).
Ao escrever seus sentimentos, o adolescente tenta exercer um do-
mínio sobre suas angústias. A narrativa de si proporciona ao sujeito
um caminho para entender e dominar a sua dor. Kristeva (1989) pos-
tula que “[...] a escrita é o estranho meio de dominar este infortúnio,
instalando-se nela um “eu” que domina os dois lados da privação: tan-
to as trevas do desconhecido quanto o “beijo da que reina.” (KRIS-
TEVA, 1989 p. 137).
Com a escrita pretende conhecer o que está lhe causando o senti-
mento de tristeza. É uma forma encontrada de transformar um senti-
mento abstrato em físico. A tentativa de registrar o seu sentir, demons-
tra uma atitude diante das adversidades. Charlie quer compreender
as causas da sua tristeza, ele quer encontrar no outro alguma atenção
para poder legitimar o que sente. Através das cartas ele encontrou um
destinatário para confessar seus anseios, medos e tristezas e desta for-
ma entender o seu viver.
Le Breton (2018) destaca que a narrativa de si pode significar um
esforço de tentar reconstruir a sua existência, não com uma clareza
desproposital, mas uma busca de ressignificação, que não exclua a
sua própria visão dos acontecimentos. Assim, o sujeito se torna co-
nhecedor da sua própria história. Ele narra para si mesmo situações
que vivenciou na tentativa de se situar dentro dos acontecimentos que
norteiam a sua vida.
A identidade que toma para si, permite que o indivíduo trans-
forme a sua realidade em ficção e até mesmo se torne outra pessoa.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 337


Essa ficção traduz o que o sujeito está sentido, e assim o aproxima de
si mesmo. Então, quando os devaneio internos impedem que a pessoa
prossiga na sua existência é preciso que outros intervenham para que
a história continue sendo contada, mesmo que o outro seja alguém
ficcional.
Desde quando Charlie passou a ter consciência da sua existência,
e das suas responsabilidades, o medo de não ser capaz de lidar com a
vida aumentou, ele sente receio de não conseguir enfrentar tudo o que
viver pode significar. Charlie sabe que existe e que isso significa que
vai ter que lidar com problemas e sentimentos.

Não sei se você já se sentiu assim, querendo sumir por mil anos. Ou se
sentiu que não existe. Ou que não tem consciência de que existe. Ou
algo parecido. Acho que querer isso é muito mórbido, mas eu quero
quando me sinto assim. É por isso que estou tentando não pensar. Só
quero que tudo pare de rodar. Se ficar pior, eu terei de ir ao médico. E
teria aquela coisa ruim novamente (CHBOSKY, 2020 p. 126-127).

Por se sentir incapaz de lidar com as responsabilidades e senti-


mentos da sua vida o indivíduo tenta desparecer e se eximir das obri-
gações da existência. Le Breton (2018) reflete sobre o desaparecimento
na adolescência e associa este fenômeno as novas descobertas, próprias
dessa faixa etária e a falta de orientação durante esta travessia:

A edificação de sua existência a partir de seus próprios recursos de


sentido é uma empresa difícil ao percebe-se carente de matéria-prima
para construir-se. Confrontado com uma multiplicidade de escolhas
possíveis, mas sem orientação, o jovem se vê diante de uma longa busca
de reconhecimento pelos outros e de sentido para a própria vida. Para
assumir as própria identidade, convém que ele se reconheça na trama
social e se sinta existente aos olhos dos que nele apostam (LE BRETON,
2018 p. 82-83).

338 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Quando a pessoa se percebe um participante da sociedade com
responsabilidades, mas sem os recursos para habitar no meio social,
ele escolhe se esconder do mundo. Entretanto algumas pessoas encon-
tram meios de continuar se comunicando/existindo, mesmo que não
estejam participando. Charlie encontra na escrita um lugar seguro
para existir, para poder externar todos os seus sentimentos. Esta atitu-
de revela uma tentativa de desaparecer enquanto resiste.

CHARLIE E O SUICÍDIO DO SEU AMIGO

Charlie está tendo muitos questionamentos sobre os seus senti-


mentos, principalmente, depois que um amigo seu, Michael Dobson,
se suicida. Charlie revela que não entende o motivo do ato de Mi-
chael “acho que o que me aborrece é não entender o que aconteceu”.
(CHBOSKY, 2020 p. 15).
Ao questionar o suicídio, Charlie demonstra não ter conhecido a
dor do seu amigo, ele queria ter sido capaz de ajudar. A perda causa nele
um sentimento de culpa, se sente traído por não ter sido capaz de en-
tender alguém tão próximo. Para Dunker (2021) “Quando alguém se
vai, é sempre uma perda da nossa capacidade de mantê-lo entre nós e, ao
mesmo tempo, uma traição.” (DUNKER, 2021 p.236). Charlie queria
ter conhecido os motivos de Michael, pois dessa forma saberia como
ajudar e a morte dele teria uma razão “Assim eu sentiria a falta dele com
mais clareza. A dor poderia fazer sentido.” (CHBOSKY, 2020 p. 16).
Schopenhauer (2019) sugere que quem se mata, não quer acabar
com a sua vida, só não suporta mais a forma como ela se apresenta.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 339


Porém, o suicídio nem sempre representa o fim do sofrimento, pois
ele continua nas outras pessoas. Mesmo o sujeito deixando de viver,
sua história permanece na vida das pessoas que se relacionaram com
ele. Para os que ficam, o que continua é o sentimento de insuficiência,
pois o amor que sentiam não foi o suficiente para manter a pessoa
amada consigo.
Ao analisar o suicídio de Michael, percebemos que ele não cos-
tumava demonstrar muito sobre seus sentimentos. O afastamento so-
cial é manifestação recorrente em suicidas, Dunker (2021) relaciona
os sentimento de solidão e tédio a estas pessoas. O autor ainda postula
que o suicídio é uma questão sobre palavras não ditas:

Palavras por dizer. Palavras que não encontraram destinatários ou


alguém que as compartilhasse, mas também palavras apressadas, feitas
para manter o silêncio. Até hoje, as principais estratégias para prevenir
o suicídio baseiam-se em disponibilidade imediata para a escuta e
indisponibilidade de meios para a execução (DUNKER, 2021 p. 238).

Talvez seja este o motivo, que levou Charlie a transformar em pa-


lavras as suas dores, através da escrita. Existiam boatos de que Michael
tinha problemas em casa, isto fez com que Charlie também questio-
nasse a sua relação com seus familiares. Desta forma, percebe-se que
ele temia um dia cometer o mesmo ato do seu amigo.

AS RELAÇÕES DE CHARLIE

As aulas no ensino médio estão começando para Charlie, e por


isto ele está apreensivo. No início, sente dificuldades em fazer amizades,

340 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


mas um dia conhece Patrick e Sam, e a forma como eles se importaram
com os gostos e as opiniões dele, faz com que se tornem grandes ami-
gos. Desde a morte de Michael, Charlie não tinha muita companhia.
Traumas ocasionam sentimentos de angústia, e a tendência é o
isolamento, pois “o trauma é justamente o momento em que o sujei-
to que fala não dá conta de dizer.” (ALBERTI, 2009 p. 191). Neste
sentido a pessoa fica mais propícia a ter sintomas depressivos. Charlie
vivenciou mortes de pessoas que amava, isto pode ter sido a causa dele
ter se tornado um adolescente introvertido e com sintomas depressivos.
Segundo o conselho federal de psicologia, para algumas pessoas
a ligação com o seu objeto amado se torna tão vital que a perda desse
elo expõe o sujeito diante da sua incompletude e vulnerabilidade. Tal
fato, por consequência, pode tornar a pessoa suscetível para o surgi-
mento de uma depressão. (BRASILIA, 2013).
Kehl (2009) afirma que a falta de empatia com adolescentes de-
pressivos pode ocasionar efeitos desastrosos. Às vezes uma crise ado-
lescente que poderia ser passageira se prolonga devido ao preconceito e
à falta de acolhimento. O medo da rejeição torna o sofrimento maior,
pois nessa faixa etária o sujeito costuma medir seu valor, no seu grupo.
Por isso que Charlie se encantou quando encontrou pessoas que se
importaram com ele, e não o julgaram “um estranho”. Ele encontrou
pessoas que o enxergarem além da depressão, que fizeram ele se sentir
acolhido. É o que destaca o trecho a seguir:

Não sei o que as outras pessoas estavam achando de mim. Não sei o
que elas pensavam. Eu estava sentado no chão de um porão, na minha
primeira festa de verdade, entre Sam e Patrick, e lembro que Sam me
apresentou como amigo a Bob. E lembro que Patrick fez a mesma coisa
com Brad. E comecei a chorar. E ninguém naquele porão me achava

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 341


estranho por estar fazendo isso. E depois eu comecei a chorar pra valer
(CHBOSKY, 2020 p.57).

Charlie decide enfrentar seus problemas, e não relativizar a im-


portância deles para a sua estabilidade emocional. Ele decide que vai
respeitar mais os seus sentimentos e nunca os colocar em perspectiva
com os problemas dos outros, pois cada indivíduo é singular no seu
sentir, e, portanto, qualquer adversidade que desequilibre a existência,
por menor que for aos olhos dos outros, mas se retira a vontade de exis-
tir é um problema muito sério. Charlie exemplifica isto neste trecho:

Acho que, se um dia eu tiver filhos e eles ficarem perturbados, não


vou dizer a eles que as pessoas passam fome na china nem nada assim,
porque isso não mudaria o fato de que eles estão transtornados. E
mesmo que alguém esteja muito pior, isso não muda em nada o fato
de que você tem o que você tem. [...] Talvez seja bom colocar as coisas
em perspectiva, mas às vezes acho que a única perspectiva é estar aqui.
Como disse a Sam. Porque não há problema em sentir as coisas. E ser
quem você é (CHBOSKY, 2020 p. 227).

A reflexão de Charlie refuta um discurso muito popular utiliza-


do para tratar pessoas depressivas. Existem aqueles que diminuem o
sofrimento do outro comparando com outros problemas, alegando
que estes parecem ser mais graves. Diminuir a dor do outro não vai
fazer com que ela passe, apenas faz com que o sujeito se sinta menos
importante e sofra ainda mais por saber que está sofrendo por algo
insignificante.
Escrever é lembrar, e isto permitiu que durante seus dias tristes
e deprimidos as lembranças de momentos felizes tornassem sua vida
uma experiência bonita. Por fim, ele compreende que cada ser huma-

342 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


no é um mundo único, e cada mínimo problema pode ser grande de-
mais se rouba a vontade de viver.

CONCLUSÃO

A pesquisa pretendeu discutir e analisar a depressão e o suicídio


em adolescentes tendo como base uma estória ficcional e, através da
análise do texto literário, compreender como estes sujeitos se compor-
tam. Objetivou-se nesse trabalho entender o comportamento adoles-
cente e de que forma a depressão afeta o bem-estar destes indivíduos.
Os dados demonstram que o público adolescente está mais sus-
cetível aos sofrimentos depressivos e suas consequências, assim este
trabalho foi relevante por tentar investigar esta temática e entender de
que forma estes indivíduos lidam com a problemática da depressão. A
literatura nos fornece através de personagens fictícios material huma-
no que possibilita entendermos as mais distintas emoções.
Após realizar a análise, constatou-se que a depressão durante a
adolescência pode ocasionar uma vontade de desaparecer, ao sentir
que precisa edificar a sua existência com os seus próprios recursos, es-
colhe se ausentar, deixando sua existência de lado. A falta de amparo
durante o processo depressivo pode deixar o viver desconfortável e im-
possibilita o sujeito de criar laços que ajudam no amadurecimento e
na elaboração dos traumas.
O ato suicida é tratado neste trabalho como um ato ilusório, vis-
to que o depressivo não consegue acabar com a dor, pois ela permane-
ce, mesmo depois da morte, manifestada nas pessoas que o amavam.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 343


Portanto, é uma solução permanente para um problema passageiro,
pois tudo o que vive é transitório, e assim não é na morte que os ques-
tionamentos do viver serão respondidos.
A narrativa de si oferece uma alternativa para que o desapare-
cimento de si não signifique o fim de uma história, mas apenas um
descanso para que mais tarde o sujeito possa retornar ao viver com
mais apresso pela vida. Ser um outro alguém possibilita que a pes-
soa continue a contar a sua estória, sendo um outro, que carrega seus
sentimentos, e dessa forma oferece também uma oportunidade de se
situar dentro da sua própria narrativa.
Assim, através de trechos do livro analisado é possível entender
o comportamento de adolescentes depressivos. O entendimento aju-
da aqueles que pretendem entender como funciona o viver destes in-
divíduos. No entanto, não é possível estigmatizar o comportamento
depressivo, pois cada pessoa possui sentimentos e vivências singulares,
além de que existem diferentes motivos para o surgimento deste mal.
O mais importante é entender que o acolhimento é sempre importan-
te. Existe uma multiplicidade de cuidados e tratamentos para a de-
pressão, o primeiro passo sempre é fazer o sujeito saber que não está
sozinho nessa travessia.

COMO CITAR ESTE TEXTO

PINHEIRO NETO, J. J. O desaparecer de si na Adolescência: os efeitos da depressão


e suicídio em “As vantagens de ser invisível”. In: SOARES, I. M.; LESZCZYNSKI,
T. (Orgs.). Um percurso pelas literaturas de língua inglesa. Tutóia/MA: Diálogos,
2023. p. 326-345. https://doi.org/10.52788/9786589932796.1-16

344 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


REFERÊNCIAS

BRASÍLIA. Conselho Federal de Psicologia. O Suicídio e os Desafios para a


Psicologia. Brasília: CFP, 2013.
CASTELLO, José. A literatura na poltrona. O Globo, 2012. Disponível em:
https://glo.bo/2N5mXkk . Acesso em: 02 de jan. 2022.
CHBOSKY, Stephen. As vantagens de ser invisível. 1ª ed. Rio de Janeiro: Rocco.
2020.
DUNKER, Christian. Uma biografia da depressão [livro eletrônico]. São
Paulo: Planeta, 2021.
DURKHEIM, Emile. O Suicídio: estudo de sociologia. Tradução: Monica
Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo:
Boitempo, 2009.
KRISTEVA, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. Tradução: Carlota Gomes.
Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
LE BRETON, David. Desaparecer de si: uma tentação contemporânea.
Tradução: Francisco Morás. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.
LE BRETON, David.Uma breve história da adolescência. Tradutores: Andréa
Máris Campos Guerra... [et al.]. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2017.
PAHO. Saúde mental dos adolescentes. Disponível em: https://www.paho.org/
pt/topicos/saude-mental-dos-adolescentes/. Acesso em: 02 de jan. 2022.
SCHOPENHAUER, Arthur. As dores do mundo. [Livro eletrônico].
Tradução: José Souza de Oliveira. São Paulo: Edipro, 2019.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2001.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 345


capítulo 17

(Des)localizando narrativas nacionais:


modernidades negras e a cartografia
diaspórica de Dionne Brand
Fabio Coura de Faria

INTRODUÇÃO

Um século se passou desde a Semana de Arte Moderna de 1922,


marco do modernismo brasileiro. Naquele evento, ocorrido em São
Paulo entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922, não foi publicado
qualquer manifesto, mas hoje percebemos que a Semana foi continu-
amente deslocada de seu período social: ela ecoou pelo espaço-tempo,
ressonando e ressignificando encarnações plurais. No contexto das
décadas de 1920 e 1930, o modernismo brasileiro carregava consigo o
potencial catalizador do sonho de uma identidade cultural nacional e
moderna, um sonho narrado nos textos e pintado também nos qua-
dros da antropofagia—sonho de renovação cultural e da linguagem
artística, de reformulação das narrativas nacionais até então voltadas
para a primazia da forma e da tradição. Mas os discursos moderni-
zadores, mesmo firmados em moldes nacionalistas, iam além da ide-
ologia nacional. A busca por e absorção de elementos externos (em

346 DOI: 10.52788/9786589932796.1-17


exercícios de hibridismos culturais e linguísticos) estava formulada na
proposição de Oswald de Andrade: “Tupi, or not tupi that is the ques-
tion. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me
interessa o que não é meu” (ANDRADE, 1928, p. 13. Grifo meu),
narrando, por um lado, o fazer artístico moderno em contraposição à
identidade confinada no nacionalismo, no aparelhamento religioso e
no ocidente hegemonizado, e por outro, a absorção e a tradução de um
símbolo canônico ocidental (Shakespeare). No mesmo ano de 1928
também surgia Macunaíma, de Mário de Andrade, texto híbrido em
sua forma e conteúdo, e representativo de perspectivas culturais rein-
ventativas e opostas aos parâmetros estéticos, ao conservadorismo e
ao nativismo das tradições eruditas. Entre os ideais de renovação de
Oswald de Andrade e Mário de Andrade estava o enraizamento da
identidade artística (e até mesmo nacional) a elementos da cultura po-
pular, principalmente em referência às culturas dos povos originários
e à cultura negra, que seriam mesclados à cultura erudita através da
absorção antropofágica—do hibridismo e recombinação de elemen-
tos estético-culturais internos e externos. O vanguardismo moderno
esteve simultaneamente calcado na internacionalização da cultural
nacional e na volta idealizada às raízes populares, tecendo críticas ao
imaginário nacionalista das décadas de 1920 e 1930.
É importante salientar que havia diversos pontos de convergência
entre o modernismo enquanto movimento e a modernidade enquan-
to período de tempo marcado por transformações sociais, econômicas
e culturais. A obra Macunaíma ilustra um destes pontos de conver-
gência. Seu mosaico antropofágico se dá de maneira estrutural (na in-
tertextualidade satírica, na experimentação linguística e estilística, no

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 347


gênero metamórfico) e conteudística (na abordagem não-tradicional
de tradições católicas, indígenas e africanas). Em Macunaíma há, po-
rém, como discutido por Deivison Campos, a construção de um

[...] mito fundador para as três raças formadoras—o banho mágico


que Macunaíma e os irmãos tomam na pegada de Sumé, deixando um
branco, outro da cor de bronze novo e o outro preto. A ideia de que
somos todos irmãos, somos todos iguais. No entanto, a relação com a
modernidade não se dá de forma pacífica. Pelo contrário. Macunaíma
precisa morrer para atingir seu objetivo. Apesar de acionar suas
referências tradicionais afro-indígenas para explicar todo o novo a que
é submetido, há uma permanente tensão e desafios a serem enfrentados
(CAMPOS, 2022, p. 48).

Campos não livra Macunaíma do revisionismo pós-moderno que


compõe, ainda hoje, um arcabouço crítico em relação ao movimento
modernista como um todo, e mais especificamente em relação ao seu
atrelamento a ideologias nacionalistas cujos preceitos político-culturais
parecem ressoar no Brasil atual. Por um lado, as produções culturais da
vertente antropofágica modernista voltavam-se aos referenciais popu-
lares do selvagem e do primitivo como contrapontos ao vanguardismo
europeu e, potencialmente, válvulas de escape do racismo impregnado
em moldes nacionalistas e da mentalidade colonialista. Mas por outro
lado, submetia tais referenciais a um tratamento simbólico e homoge-
neizador da miscigenação brasileira em prol do sonho de identidade
cultural nacional: o passado do Brasil moderno dissolvia-se na terra na-
tiva mística dos povos originários e na África distante e invisível.
Como sabemos, o mito das três raças tomou novas proporções
ao longo da modernidade nacional. O escritor e sociólogo Gilberto
Freyre, em Casa-grande & senzala (1933), passou a representar a idea-
lização nacional de mestiçagem calcada na incorporação das culturas

348 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


étnicas à esfera popular sob uma visão sociocultural harmoniosa, que
ignora o desequilíbrio estrutural do racismo, aproximando-se assim
da idealização que conhecemos como democracia racial no Brasil.
Para não ser conflituosa, como propõe Sérgio Guimarães, a noção de
mestiçagem ligava-se à formação de uma identidade brasileira antes
de tudo—antes de raça, etnia, classe, gênero—, ou seja, a um “projeto
nacional de mestiçagem, superando a visão pessimista e racista do sé-
culo XIX” (GUIMARÃES, 2003, p. 11). Tratava-se de um ideal de
identidade brasileira baseado na mestiçagem harmoniosa que conver-
gia para o branqueamento. Ao propor a noção de Modernidade Ne-
gra, Guimarães parte de um entendimento dos esforços, em diferentes
regiões ao longo da primeira metade do século XX, de intelectuais
negros em busca da inclusão sociopolítica e cultural das populações
negras à sociedade ocidental. O autor discute as diferentes manifesta-
ções de tal modernidade em espaços e momentos distintos: os projetos
da Modernidade Negra se deram a partir de um movimento inicial
de representações mais inclusivas desenvolvidas por vanguardistas e
intelectuais europeus (durante o Romantismo) a respeito de um na-
tivismo bárbaro e selvagem—uma tentativa de solucionar anseios da
modernidade ocidental. Tal guinada romântica foi seguida por um
novo momento em que intelectuais negros passaram a articular suas
próprias representações, expondo violências físicas e epistemológicas
da modernidade colonial europeia. Guimarães traça algumas demar-
cações espaciotemporais, com enfoque nas Modernidades Negras nos
Estados Unidos, nas Antilhas francesas, e na América Latina, pontu-
ando as críticas anti-coloniais articuladas por figuras como, respec-
tivamente, W.E.B Du Bois, Frantz Fanon, e Abdias do Nascimento.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 349


Considerar estas modernidades plurais (que possuem suas pró-
prias especificidades, mas também suas rotas de confluência e zonas
de contato) é parte de qualquer entendimento das complexas trajetó-
rias diaspóricas nestes continentes (as Américas e a Europa). Estas mo-
dernidades expõem o centro da modernidade ocidental e nos levam a
repensá-la; nos oferecem um meio para fazer o que o sociólogo inglês
Paul Gilroy chama de “subir a bordo”, ou “um meio para reconceituar
a relação ortodoxa entre a modernidade e o que é tomado como sua
pré-história. [Um] sentido diferente de onde se poderia pensar o início
da modernidade em si mesma nas relações constitutivas com estrangei-
ros” (GILROY, 2001, p. 61). Subir a bordo para entender que o centro
da modernidade não é a Revolução Francesa, mas sim o Atlântico Ne-
gro, a meia-passagem (“middle passage”); entender, de forma similar,
que os movimentos modernistas (nas Américas e na Europa) e seus
diversos experimentos de tradução cultural devem menos às renascen-
ças europeias e mais à história de resistência e criatividade da diáspora
africana, à tensão entre “raízes e rotas” (GILROY, 2001, p. 260).
Similarmente, percorrendo raízes e rotas diaspóricas, a escritora
caribenho-canadense Dionne Brand traça um mapeamento dos na-
cionalismos (distintos, mas igualmente “virulentos”) manifestados ao
longo das modernidades Americanas.1 Em sua obra literária A map
to the door of no return: notes to belonging (2001), Brand narra e teoriza
a estrutura da diáspora africana ao longo da América do Norte, do
Brasil e do Caribe como partindo de uma “Porta Sem Retorno”:

1 Não se confunde aqui a América (ou o continente americano) com os Estados Unidos da
América.

350 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Conheço muitos nacionalistas ao longo desta jornada. Cada metro
quadrado das Américas contém seu nacionalismo. E provavelmente o
mais poderoso desses nacionalismos pode ser experienciado nos Estados
Unidos. Mas a Jamaica, o Brasil, a Antígua, e até mesmo a vulcânica
Monserrate não são menos virulentos. Há bandeiras e hinos, até mesmo
um amor verdadeiro por cada lugar—os caminhos, objetos e eventos
que se acumulam em nações. Mas a Porta Sem Retorno expõe todos
os nacionalismos ao seu vazio imaginativo. [...] Uma pessoa na esquina
de Ocho Rios ou num mercado em Montevidéu ou numa banca de
jornal em Chicago ou Sofia, fica ali e imagina outro território, outra
história, e nesse momento os falsos emblemas caem (BRAND, 2001, p.
46, tradução minha2).3

Voltando brevemente a Macunaíma, seu hibridismo estrutural


é revelado através de uma multiplicidade de gêneros literários dentro
de uma só obra, além das diversas liberdades textuais opostas à língua
culta, atreladas a regionalismos. Já o hibridismo conteudístico parece
calcado em uma idealização nacional de mestiçagem na qual a diver-
sidade cultural brasileira incorpora um mito das três raças para narra-
tivizar um sonho nacional moderno. Na modernidade brasileira, en-
quanto período social, tal sonho ignorava as disparidades e violências
estruturais do racismo. Trata-se justamente de um vazio imaginativo
nacionalista, como Brand propõe.

2 Todas as traduções de passagens da obra de Brand citadas neste capítulo são livremente feitas
por mim, já que até o presente momento não há publicação de uma tradução do texto completo
no Brasil. Os métodos de tradução utilizados não são abordados aqui devido às restrições de
espaço e objetivo geral da discussão.
3 “I know many nationalists along this journey. Each square foot of the Americas has its
nationalism. And probably the most powerful of these nationalisms can be experienced in the
U.S. But Jamaica, Brazil, Antigua, even the volcanic Montserrat are no less virulent. There are
flags and anthems, even a real love for each place—the ways and objects and events which collect
into nations. But the Door of No Return opens all nationalisms to their imaginative void. [...]
One stands on a street corner in Ocho Rios or in a marketplace in Montevideo or at a newspaper
kiosk in Chicago or Soɹa, one stands there and imagines another territory, another history, and in
that moment the fake emblems fall away” (BRAND, 2001, p. 46).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 351


O texto de Brand percorre um trajeto oposto: vai em busca de
um lugar onde se encontra tudo aquilo que é deixado para fora do
vazio imaginativo nacionalista, um lugar em que esquecimento, me-
mória e trauma coexistem. A obra é estruturalmente híbrida: poesia
e prosa ora intercalam-se, ora misturam-se, revelando uma sensibili-
dade prosódica/musical peculiar da autora. Um Mapa para a Porta
Sem Retorno é um texto simultaneamente ficcional e autobiográfico,
atributo que, como discutido posteriormente, encontra confluência
com a própria “Porta Sem Retorno” da maneira que é descrita por
Brand. Além disso, a autora tece uma extensa montagem de fontes
externas (literárias, históricas e cartográficas) ao longo da obra, am-
pliando suas dimensões híbridas, interculturais e intertextuais. Bus-
ca-se discutir aqui a (contra)narrativa articulada por Brand: narrativa
na qual identidades, raízes e rotas diaspóricas regem o próprio fazer
estético da autora, sendo tematizadas de forma tal que as fronteiras da
cartografia colonial são continuamente questionadas. Por fim, uma
breve discussão se atenta ao exercício sintático-poético de Brand, em
diálogo com o texto supracitado, revelando que a própria superfície
linguística pode operar como um locus de libertação e resistência às
narrativas coloniais dominantes.

ESQUECIMENTO E MEMÓRIA NA TRAJETÓRIA DIASPÓRICA

Como apresentado na capa do livro Um Mapa para a Porta Sem


Retorno, o jornal The Ottawa Citizen sugere diretamente a nós: “abra-
-o em qualquer lugar e comece a ler e tudo fará sentido... o lar verda-

352 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


deiro dela não é a África, o Caribe ou o Canadá, mas sim a poesia”.4
A proposição é ilustrativa dos (re)encaminhamentos narrativizados
por Dionne Brand acerca das trajetórias de diferentes comunidades
diaspóricas. É ilustrativa também da natureza simultaneamente ma-
terial e imaterial da Porta Sem Retorno, da fragilidade de qualquer
origem idealizada. Brand narra parte de sua infância na vila de Guaya-
guayare, no sul de Trindade e Tobago, e suas recorrentes perguntas ao
avô acerca de seu povo de origem: “Toda semana que vinha e eu lhe
perguntava se ele se lembrava. Toda semana ele me dizia que não. En-
tão parei de perguntar. Ele ficou desapontado. Eu fiquei desapontada.
Vivemos, então, nessa decepção mútua. Havia uma fenda entre nós”
(BRAND, 2001, p. 4).5 Posteriormente, Brand sugere uma expan-
são desta fenda identitária do esquecimento, que se torna uma rup-
tura territorial e histórica—a identidade esquecida ao longo de dife-
rentes gerações marcadas pelo deslocamento diaspórico é ilustrada de
forma análoga a uma ruptura territorial: “a ruptura que as conversas
com meu avô revelaram foi maior que a necessidade de vínculos fami-
liares. Foi uma ruptura na história, uma ruptura na qualidade do ser.
Foi também uma ruptura física, uma ruptura geográfica” (BRAND,
2001, p. 5).6 Ao longo do texto, Brand narra o que pode ser enten-
dido como uma série de transfigurações deste mesmo momento de
ruptura, momento que ecoa ao longo de sua vida enquanto percorre

4 “Open it anywhere and start reading and it makes sense... her true home is not Africa, the
Caribbean or Canada, but poetry” (BRAND, 2001).
5 “Each week he came I asked him had he remembered. Each week he told me no. Then I
stopped asking. He was disappointed. I was disappointed. We lived after that in this mutual
disappointment. It was a rift between us” (BRAND, 2001, p. 4).
6 “the rupture this exchange with my grandfather revealed was greater than the need for
familial bonds. It was a rupture in history, a rupture in the quality of being. It was also a physical
rupture, a rupture of geography” (BRAND, 2001, p. 5).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 353


trajetórias diaspóricas, encaminhadas à África, mas (re)encaminhadas
às Américas e à Europa.
Sem saber se o nome daquele povo seria Yoruba, Ibo, Ashanti,
Mandingo, dentre outros possíveis, Brand se volta justamente para a
fissura ao mesmo tempo geográfica e temporal, real e irreal, “represen-
tada na Porta Sem Retorno: aquele lugar onde nossos ancestrais parti-
ram de um mundo para outro; do Velho Mundo para o Novo. O lugar
onde todos os nomes foram esquecidos e todos os começos reformu-
lados” (BRAND, 2001, p. 5).7 Optei por traduzir o título “The Door
of No Return” como “A Porta Sem Retorno” a partir da referência,
mencionada pela própria Dionne Brand, ao castelo localizado em El-
mina,8 Gana, na costa oeste da África, através do qual escravos eram
retirados de sua terra para nunca mais voltar; e partindo também do
entendimento da relação com a expressão point of no return, ou seja,
um estágio ou local a partir do qual não é mais possível tomar a de-
cisão de retornar a um estágio ou local percorrido anteriormente—o
termo tem sua origem na aviação. Analogamente, em uma passagem
do livro, Brand narra sua experiência sobrevoando o continente afri-
cano: “É meu primeiro voo para o continente. Vou sobrevoar a Porta
sem Retorno” (BRAND, 2001, p. 88).9

7 “represented in the Door of No Return: that place where our ancestors departed one world
for another; the Old World for the New. The place where all names were forgotten and all
beginnings recast” (BRAND, 2001, p. 5).
8 “Já vi aquele castelo em fotos, aquele em Elimna. [...] Sei que se eu for àquele lugar serei
destruída. As fotos tiram meu fôlego. Lugares como este espalham-se pela costa da África. Estes
lugares ficaram conhecidos como o Portão Sem Retorno, a Porta Sem Retorno. Será que todo
horror torna-se literário?” (“I’ve seen that castle in photographs, the one at Elmina. [...] I know
that if I go to that place I will be destroyed. Its photographs take my breath away. Places like this
are dotted along the west coast of Africa. These places became known as the Gate of No Return,
the Door of No Return. Does all terror become literary?”) (BRAND, 2001, p. 224).
9 “It is my first flight to the continente. I will fly over the Door of No Return” (BRAND,
2001, p. 88).

354 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


A narrativa de Brand se torna uma cartografia do emaranhamen-
to diaspórico entre raízes e rotas, entre origens e deslocamentos—um
emaranhamento que é simultaneamente pessoal, histórico-cultural e
geográfico. Ela passa a ilustrar, versar e mapear as maneiras pelas quais
a perda da memória, narrada no início do livro, está intrinsicamente
ligada à perda da humanidade sofrida pelos povos ancestrais que par-
tiram através do Atlântico Negro (perda que condiciona e assombra a
“experiência negra em qualquer cidade ou vila moderna nas Américas
[...] Entra-se numa sala e a história segue; entra-se numa sala e a histó-
ria precede” (BRAND, 2001, p. 25).10 Partiram, no entanto, não é
a palavra adequada. A autora salienta que partir implica um sentido
de chegada almejado. De forma similar, migrar carrega um sentido de
retorno, continuidade e lares lembrados. Migrações, por assim dizer,
são nostálgicas. “Mas o sentido de retorno na Porta Sem Retorno é o
de perdas irrecuperáveis daquelas mesmas coisas que tornam o retorno
possível” (BRAND, 2001, p. 24).11 A linguagem, como problematiza
Brand, pode ser enganosa. Partir ou migrar são verbos que sucedem a
meia-passagem, o tráfico negreiro—este de horrores inarticuláveis. Afi-
nal, “que linguagem descreveria a desorientação ou a súbita e terrível
subjugação do próprio corpo? [...] o ferimento envolvido, a condição
epidêmica da vida que se tornaria hereditária? E a antipatia que obs-
cureceria todos os eventos subsequentes” (BRAND, 2001, p. 34).12

10 “Black experience in any modern city or town in the Americas [...]. One enters a room and
history follows; one enters a room and history precedes” (BRAND, 2001, p. 25).
11 “But the sense of return in the Door of No Return is one of irrecoverable losses of those very
things which make returning possible” (BRAND, 2001, p. 24).
12 “What language would describe that loss of bearings or the sudden awful liability of one’s own
body? [...] the bruising it involved, the epidemic sickness with life which would become hereditary?
And the antipathy which would shadow all subsequent events” (BRAND, 2001, p. 24).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 355


Partir ou migrar são verbos que fazem parte apenas destes eventos sub-
sequentes, obscurecidos, diaspóricos.
São verbos que permeiam fronteiras geográficas, culturais e
enunciativas. Não se trata simplesmente de entre-lugares (o que pres-
supõe um binarismo real), mas sim de zonas de contato, de multipli-
cidade em contínua proliferação: uma recombinação que nunca é ple-
namente resolvida e definida. Zonas de contato não são apenas locais
de tensão, como discutido posteriormente, mas locais catalizadores de
coalizão translocal e intercultural — de criação e resistência coletiva
entre vozes e histórias silenciadas. Similarmente, o ato de partir ou
migrar permeia, nas palavras do teórico indiano Homi Bhabha,

[...] a história da migração pós-colonial, as narrativas da diáspora


cultural e política, os grandes deslocamentos sociais de comunidades
camponesas e aborígenes, as poéticas de exílio, a prosa austera dos
refugiados políticos e econômicos. É nesse sentido que a fronteira se
torna o lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente em um
movimento não dissimilar ao da articulação ambulante, ambivalente,
do além que venho traçando. [...] Os próprios conceitos de culturas
nacionais homogêneas, a transmissão consensual ou contígua de
tradições históricas, ou comunidades étnicas ‘orgânicas’—enquanto
base de comparativismo cultural—, estão em profundo processo de
redefinição (BHABHA, 1998, p. 24).

A Porta Sem Retorno, teorizada por Brand como um lugar es-


vaziado de começos, um lugar de, simultaneamente, pertencimento e
não-pertencimento (BRAND, 2001, p. 6), pode ser entendida então
como o local da queda de todos os nacionalismos; local em que a cons-
ciência diaspórica sente, pensa, vivencia e se volta para fora si própria,
dissolvendo, assim, a imaginação dos caminhos, objetos, bandeiras e
hinos que acumulados formam a ideia purista de nação. Ao dizer que

356 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


a Porta Sem Retorno expõe os nacionalismos (quando cita a América
do Norte, o Brasil, a Jamaica, dentre outros) ao seu próprio “vazio
imaginativo”, a autora sugere que estes nacionalismos permanecem
enraizados a mitos, sonhos e ordenamentos de teor político-cultural e
social, ou seja, demarcando quem e o que pode ser aceito como parte
da identidade nacional. No Brasil, por exemplo, o ideal de progresso
estampado na bandeira e os discursos de igualdade racial e meritocra-
cia descrevem e imaginam uma nação dentro da qual a espoliação e o
apagamento das existências originárias e advindas da diáspora negra
são apenas um capítulo obscurecido, mera parte do processo de de-
senvolvimento moderno — ideia de nação que transcende os horrores
do colonialismo e suas reiterações na colonialidade.13
No entanto, Brand descreve seu encontro, durante a infância,
com algumas páginas deste capítulo obscurecido em outra trajetória
diaspórica. Ela conta que o primeiro livro que leu tratava da revolução
haitiana: The Black Napoleon. O livro era mantido na mesma gaveta
em que sua avó guardava arroz e açúcar, e estava “mapeado por traças.
[...] Não tinha lombada, mas tinha contracapa. Não tinha capa frontal.
Tinha sido costurado, embora a costura estivesse solta em alguns luga-
res, o fio quase apodreceu” (BRAND, 2001, p. 184).14 O vocabulário
utilizado pela autora parece se aproximar de suas várias descrições, re-
ais e metafóricas, do mapa rumo à Porta Sem Retorno, marcado pelo

13 Aníbal Quijano conceitualiza a colonialidade como a forma mais geral de dominação no


mundo de hoje, uma vez que o colonialismo como uma ordem política explícita foi destruído.
Não esgota, obviamente, as condições nem os modos de exploração e dominação entre os povos.
Mas não deixou de ser, há 500 anos, sua principal estrutura (QUIJANO, 2007, p. 170).
14 “It was mapped by silverfish.[...] It had no spine, though it had a back. It had no front cover.
It had been sewn together, though the sewing was loose in some places, the thread almost rotted”
(BRAND, 2001, p. 184).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 357


esquecimento e pela falta de uma origem rastreável (uma capa), pela
sobrevivência de poucas narrativas pessoais, familiares, ou históricas—
frágeis costuras temporais. Não há ruínas das casas de escravos na ilha
onde ela nasceu, mas apenas poeira e cinzas. O resultado do apagamen-
to é metaforicamente tratado: “Havia sempre um pó fino no fundo da
gaveta, o trabalho de colônias de insetos movendo seu mundo invisível
pra lá e pra cá. O livro também se movia de canto a canto. Não me lem-
bro se começava no primeiro capítulo. Suspeito que não” (BRAND,
2001, p. 204, grifo meu). Brand conjura, em uma narrativa aparente-
mente casual, imagens da própria cartografia moderna/colonial, tra-
çada em nacionalismos imaginativos, regida pelas movimentações e
intervenções imperialistas—as quais definem, ainda hoje, fronteiras de
pertencimento e não-pertencimento ao longo das Américas.
Estas movimentações são permutações da operação e da mentali-
dade colonial, e na contemporaneidade se infiltram no discurso públi-
co, no imaginário popular, e no senso comum. Elas configuram a pró-
pria cultura nacional, e como nos lembra Homi Bhabha, partem de
um “discurso natural(izado), unificador, da ‘nação’, dos ‘povos’ ou da
tradição ‘popular’ autêntica, esses mitos incrustados da particularida-
de da cultura, [que] não pode ter referências imediatas” (BHABHA,
1998, p. 241). Nacionalismos operam fazendo passar por imediatas
estas referências que são sempre imaginativas. Mas na consciência
das comunidades advindas da diáspora, estas referências não se sus-
tentam: não há mapas para a Porta sem Retorno. Esta posição é in-
variavelmente desestabilizadora, porém, como salienta Bhabha, ela é
também vantajosa em seu potencial de nos tornar cada vez mais cons-
cientes da construção discursiva da cultura, da invenção da tradição.

358 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


AS NARRATIVAS CARTOGRÁFICAS DO EXISTIR E DO INEXISTIR

Você ouve que está morando em outro lugar. O locutor da BBC está
te chamando. Dando-lhe as notícias. Outro lugar não é um lugar
ruim. É simplesmente outro lugar. Você já o viu descrito como uma
ilha. Você já leu sobre ilhas, como na Tempestade, descrita como
desabitadas exceto por monstros e espíritos, como na Ilha do Tesouro,
descrita como desabitada exceto por monstros e espíritos; você já leu
sobre piratas e bucaneiros nas ilhas; você já leu sobre pessoas banidas
para ilhas, prisioneiros. Você já viu nas fronteiras dos mapas de ilhas,
nativas, núbeis, ferozes. Você está morando em uma ilha, banida ou
desabitada, pelo menos segundo a voz da BBC. Você, portanto, já é
mítico (BRAND, 2001, p. 13).15

A passagem acima é ilustrativa das cartografias coloniais citadas


anteriormente, ou seja, do mapeamento imperialista que traçou fron-
teiras no intuito de fragmentar as comunidades diaspóricas. Brand
narrativiza a voz da rádio BBC como uma encarnação da ideologia
eurocêntrica, e seu direcionamento (transmissão) à ilha caribenha é
descrito como catalizador de uma ruptura na consciência de perten-
cimento e não-pertencimento da própria população: “Pelas transmis-
sões da BBC fomos habitados pela consciência britânica. Também
éramos habitados por um eu desconhecido. O africano. Essa dualida-
de era combatida todos os dias do acordar ao adormecer” (BRAND,
2001, p. 17).16 A autora articula a relação entre as narrativas e as car-

15 “You hear that you are living elsewhere. The BBC announcer is calling you. Telling you
the news. Elsewhere is not a bad place at all. It is simply elsewhere. You have heard it described
as an island. You have read of islands, such as in the Tempest described as uninhabited except
for monsters and spirits, as in Treasure Island described as uninhabited except for monsters and
spirits; you have read of pirates and buccaneers on islands; you have read of people banished to
islands, prisoners. You have seen on the borders of maps of islands, natives, nubile and ɹerce. You
are living on an island, banished or uninhabited, or so it seems through the voice of the BBC. You
are therefore already mythic” (BRAND, 2001, p. 13).
16 “Through the BBC broadcasts we were inhabited by British consciousness. We were also

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 359


tografias coloniais que posicionam essas comunidades como literal-
mente ilhadas—fechadas umas às outras. A invocação da Tempestade
de Shakespeare é igualmente significativa, e sugere um paralelo entre
a invasão colonial (e suas manutenções na colonialidade) e a chegada
do personagem Próspero à ilha fictícia, na qual o habitante nativo (o
monstro Caliban) torna-se prisioneiro, é escravizado e banido para as
regiões designadas pelo invasor. Não cabe aqui tecer mais uma dentre
inúmeras discussões da sintaxe colonial presente na obra de Shakes-
peare, mas apenas destacar que as origens da cartografia colonial de-
nunciada por Brand são vistas, ao longo de A Map to the Door of No
Return, também por ângulos narrativos e literários.
Assim, a autora chama atenção para a qualidade imaginativa das
cartografias coloniais: “Exploradores, navegando ao longo da costa,
chamavam o que não viam ou não podiam ver de profundo e escuro,
movendo-se pouco a pouco para o interior em direção aos seus pró-
prios medos”.17 Ela explica, por exemplo, que o alemão Hiob Ludolf,
fundador dos estudos da Etiópia, nunca visitou a Abissínia, mas mes-
mo assim cartografou a região em 1683 contando apenas com relatos
de missionários portugueses. Isso provou, para Brand, algo que era
antes uma suspeita incômoda: “que lugares e aqueles que os habitam
são de fato ficções. Esta revelação cimentou a ideia de que para de-
senhar um mapa, a habilidade de ouvir pode bastar. E o mistério da
interpretação” (BRAND, 2001, p. 17).18 Este entendimento aponta

inhabited by an unknown self. The African. This duality was fought every day from the time one
woke up to the time one fell asleep” (BRAND, 2001, p. 17).
17 “Explorers, sailing along the coast, called what they did not or could not see deep and dark,
moving inland little by little toward their own fears” (BRAND, 2001, p. 17).
18 “that places and those who inhabit them are indeed fictions. This news has cemented the

360 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


para a condição (também, mas não somente) metafórica da própria
Porta Sem Retorno.
Brand lembra que “os romanos faziam mapas baseados apenas
em itinerários, não atestando ciência ou estudo geográfico. Apenas
mapas de onde eles estavam indo. Assim, um mapa parecia um gráfi-
co de linhas horizontais de rotas em direção a um destino” (BRAND,
2001, p. 142).19 A passagem sugere não apenas a condição narrativa
e arbitrária da antiga cartografia romana, mas também uma particu-
laridade. Da mesma forma que Brand notou, com fascínio, as linhas
horizontais, as rotas de percurso seguidas pelo império, assim carto-
grafadas em detrimento de tudo aquilo que existia fora desta rota, a
autora notou também manifestações análogas a estas rotas em super-
fícies textuais, nas formações e (re)combinações dos elementos que
compõe as mais diversas narrativas.
Assim, em Um Mapa para a Porta Sem Retorno, são justamente
estas linhas horizontais, estas rotas imperiais, que antecipam a aber-
tura de fendas na continuação espaciotemporal da diáspora africana;
como a fenda do esquecimento, ilustrada por Brand no início do livro,
sobre a infância na vila e as perguntas ao avô sobre seu povo de ori-
gem—carecidas de resposta; novamente: “a ruptura que as conversas
com meu avô revelaram foi maior que a necessidade de vínculos fami-
liares. Foi uma ruptura na história, uma ruptura na qualidade do ser.
Foi também uma ruptura física, uma ruptura geográfica” (BRAND,

idea that in order to draw a map only the skill of listening may be necessary. And the mystery of
interpretation” (BRAND, 2001, p. 17).
19 “Romans drew maps based solely on itineraries, not attesting to science or geographic study.
Simply maps of where they were going. So that a map looked like a graph of horizontal lines of
roads heading to a destination” (BRAND, 2001, p. 142).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 361


2001, p. 5). O fazer literário de Brand busca também identificar as
fendas na linguagem textual, os traços da invasão colonial que vão
além da natureza conteudística das narrativas, mas que permeia a pró-
pria sintaxe, a própria gramática, para mapear os locais do pertenci-
mento e do não-pertencimento, do existir e do inexistir diaspórico.
Ela propõe “uma gramática em que a existência negra pudesse ser o
pensamento e não o impensado; pudesse ser [...] uma ars poetica, um
discurso sobre a arte e a prática da poesia, que realiza os atos de leitura
e escrita [...] das narrativas do não/ser na diáspora”.20
Um Mapa para a Porta Sem Retorno carrega, em sua superfície
narrativa, na prosa poética, a busca pela apreensão dos sinais e das
rotas deste (in)existir diaspórico. Brand afirma que viver na Diáspora
negra é

Ser uma ficção em busca de sua metáfora mais ressonante [...]. Assim,
estou vasculhando mapas de todos os tipos, do jeito que algumas ficções
fazem, discursivamente, elipticamente, tentando localizar seus próprios
eus transferidos. Até agora coletei esses fragmentos, como Ludolf—
díspares e às vezes relacionados apenas por som ou intuição, visão ou
estética. Não visitei a Porta Sem Retorno, mas contando com cacos
aleatórios da história e memórias não escritas de descendentes daqueles
que por ela passaram, inclusive eu, estou construindo um mapa da
região, prestando atenção nos rostos, no incognoscível, nos atos não
intencionais de retorno, nas impressões de portas. Qualquer ato de
recordação é importante, mesmo olhares de desânimo e desconforto.
Qualquer fio de sonho é evidência (BRAND, 2001, p. 19).21

20 “a grammar in which Black existence might be the thought and not the unthought; might
be. [...] an ars poetica, a discourse on the art and practice of poetry, that performs the acts of
reading and writing [...] of the narratives of non/being in the diaspora. I am trying to think my
own way through to these possibilities” (BRAND, 2017, p. 59).
21 “To be a fiction in search of its most resonant metaphor [...]. So I am scouring maps of
all kinds, the way that some fictions do, discursively, elliptically, trying to locate their own
transferred selves. So far I’ve collected these fragments, like Ludolf—disparate and sometimes
only related by sound or intuition, vision or aesthetic. I have not visited the Door of No Return,

362 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Esta busca por identidades transferidas através da atenção ao
som ou à intuição, à visão ou estética, torna a prosa poética de Brand
uma espécie de laboratório, de reescrita e releitura de sua própria tra-
jetória diaspórica—laboratório no qual ela trabalha para (re)articular
o mundo para além das cartografias coloniais e amplifica-lo através
da linguagem, escutando e monitorando as mudanças de ressonância,
teor, e cadência das linguagens do poder para, possivelmente, recupe-
rar aquilo que é obscurecido e esmagado sob essa linguagem.
Trata-se da articulação de uma contra-narrativa, que se posicio-
na em contínua oposição às invasões coloniais/modernas que buscam
delimitar o mundo social através de ‘ilhas’ e comunidades impermeá-
veis, homogêneas, e fechadas em si próprias enquanto ocupadas pelos
fantasmas dos nacionalismos. Ao narrativizar a qualidade simultane-
amente material e imaterial da Porta Sem Retorno como um locus de
dimensão transnacional, de fronteiras nunca resolvidas, Brand ressal-
ta a permeabilidade entre os territórios (de)marcados pela diáspora
africana—permeabilidade fundamental para a organização de coali-
zões translocais. Sua narrativa parece refletir tal permeabilidade, en-
carnando anseios espirituais e epistemológicos enquanto se reformula
em gêneros diversos e transita entre ficção e autobiografia, entre prosa
e poesia.

but by relying on random shards of history and unwritten memoir of descendants of those who
passed through it, including me, I am constructing a map of the region, paying attention to faces,
to the unknowable, to unintended acts of returning, to impressions of doorways. Any act of
recollection is important, even looks of dismay and discomfort. Any wisp of a dream is evidence”
(BRAND, 2001, p. 19).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 363


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dionne Brand traz em Um Mapa para a Porta Sem Retorno uma


estratégia narrativa para a emancipação das comunidades diaspóricas
em oposição às imposições de não-ser e não-pertencer cartografadas,
narrativizadas e brutalmente praticadas em opressões múltiplas dos
poderes modernos/coloniais. O apagamento exercido através daquilo
que ela chama de “o vazio imaginativo” dos nacionalismos tem raízes
claramente rastreáveis nas modernidades de países como o Canadá, os
Estados Unidos e o próprio Brasil. Homi Bhaba propõe que as “geo-
grafias imaginativas que abarcaram países e impérios estão mudando;
aquelas comunidades imaginadas que atuavam nos limites uníssonos
da nação estão cantando com vozes diferentes” (BHABHA, 1998, p.
237). Começamos, aqui, pela modernidade brasileira e por seus ema-
ranhamentos no movimento modernista e então rastreamos suas ori-
gens para fora dos pressupostos eurocêntricos (que são voltados para
a Revolução Francesa e para as renascenças europeias). Experimen-
tos híbridos modernistas de tradução e absorção artística e cultural,
como o Movimento Antropofágico, foram mencionados. Em um
exercício não dissimilar ao método oswaldiano, Macunaíma, de Má-
rio de Andrade, articula referências culturais voltadas às raízes popu-
lares negras e indígenas como contraponto ao vanguardismo europeu
e tentativa de superação do racismo,22 mas o faz dentro dos preceitos
homogeneizadores de miscigenação brasileira, cujo horizonte ideoló-

22 Segundo Campos, Mário de Andrade “preferiu ler o racismo não como uma relação de poder
que estrutura as relações sociais e se reflete nas relações pessoais, mas como uma superstição do
branco com a cor preta” (CAMPOS, 2022, p. 47).

364 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


gico muitas vezes constituía-se em uma identidade cultural nacional
e moderna. Esta articulação ambivalente de um Brasil moderno era
uma forma de se pensar a modernidade como desatrelada da história
de violência e resistência do Atlântico Negro, da diáspora africana,
da dominação colonial, e de seus efeitos na realidade social de popu-
lações sistematicamente marginalizadas. Inscrevia-se indigenismos e
africanismos em uma identidade nacional não-resolvida, refletida no
hibridismo—amálgama cultural, estilístico e estrutural—das produ-
ções modernistas antropofágicas. Era um retorno a mitos incrustados
da terra nativa e pura, do terreno selvagem descoberto. Mas a intrín-
seca relação entre o processo de exploração e dizimação das Américas
e da África e a modernidade era ignorada, juntamente com a história
compartilhada de resistência entre diversas populações nestes territó-
rios marcados pela diáspora.
O hibridismo em Dionne Brand segue rumo contrário: seu deslo-
camento entre gêneros é condição do fazer estético que narra a disjun-
ção espaço-temporal da diáspora, articula a permeabilidade de suas
fronteiras, e percorre a existência de uma identidade irresolvível em
busca da Porta Sem Retorno. Ao cartografar as dimensões transna-
cionais da diáspora, manifestada através de transformações culturais
em territórios distintos, mas igualmente configurados pela migração
e o deslocamento, Brand expõe o pressuposto ‘unificador’ (mas que
isola e fragmenta comunidades diversas ao longo do continente ame-
ricano) dos nacionalismos ao seu próprio vazio imaginativo, ou seja,
àquilo que Bhaba considera um “discurso natural(izado), unificador,
da ‘nação’, dos ‘povos’ ou da tradição ‘popular’ autêntica, esses mitos

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 365


incrustados da particularidade da cultura [na] invenção da tradição”
(BHABA, 1998, p. 241).
São estes os preceitos de grandes narrativas. Brand descreve que
estas narrativas informaram, durante toda a infância, seu próprio
senso de identidade e pertencimento—partiam da lógica de que um
modo de ser e pertencer precisava ser apagado para que outro pudesse
ser cultivado. Até que se deparou com o livro The Black Napoleon:

O livro era sobre a revolta liderada por Toussaint L’Ouverture contra


os franceses em São Domingos. Nele conheci uma história que nunca
me ensinaram. A história que me ensinaram começava: ‘Em 1492,
Cristóvão Colombo descobriu [...] o Novo Mundo.’ O primeiro
avistamento de terra por Cristóvão Colombo havia sido dado a mim
como minhas origens. Seus olhos, sua visão, seu ponto de vista, sua
defesa, sua prova, seu terreno descoberto. Estes deveriam ser meus.
Toda a agitação e mágoa procedentes de sua visão eram para o bem, algo
evolucionário, uma causa justa e correta da modernidade. Tudo estava
faltando no meio dessa história. O Império vinha no final (BRAND,
2001, p. 186).23

A cartografia diaspórica de Brand busca amplificar aquilo que


estava faltando no meio, em busca de uma história do possível, de
modos múltiplos de ser e pertencer—história na qual vozes diferentes
contam e cantam que o Império não vem no final.

23 “The book was about the uprising led by Toussaint L’Ouverture against the French on St.
Domingue. In it I met a history I was never taught. The history I had been taught began, ‘In 1492
Christopher Columbus discovered [...] the New World.’ I had I had been given the first sighting
of land by Cristobal Colon as my beginnings. His eyes, his sight, his view, his vindication, his
proof, his discovered terrain. These were to be mine. All the moil and hurt proceeding from
his view were to the good, evolutionary, a right and just casualty of modernity. Everything was
missing from the middle of that story. Empire was at the end” (BRAND, 2001, p. 186).

366 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


COMO CITAR ESTE TEXTO

FARIA, F. C. (Des)localizando narrativas nacionais: modernidades negras e a


cartografia diaspórica de Dionne Brand. In: SOARES, I. M.; LESZCZYNSKI, T.
(Orgs.). Um percurso pelas literaturas de língua inglesa. Tutóia/MA: Diálogos,
2023. p. 346-367. https://doi.org/10.52788/9786589932796.1-17

REFERÊNCIAS

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Martin Claret, 2016.
ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropofágico. In: Obras completas: do
pau-brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978.
BHABHA, Homi K. Introdução Locais da cultura. In: O Local da cultura.
Belo Horizonte: UFMG, 1998, p. 19-42.
BRAND, Dionne. A map to the door of no return – notes to belonging. Canada:
Vintage, 2001.
BRAND, Dionne. An Ars Poetica from the Blue Clerk. The Black Scholar, v.
47, n. 1, 2017, p. 58-77.
CAMPOS, Deivison. A questão racial no modernismo brasileiro antes e depois
da Semana de Arte Moderna. [Entrevista concedida a] Ricardo Machado. In:
Ihu On-Line, n. 55, 2022.
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Tradução
de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Editora 34, 2001.
GUIMARÃES, Antônio Sérgio. A modernidade negra. Teoria & Pesquisa, São
Carlos, n. 42-43, 2003.
QUIJANO, Aníbal. Coloniality and modernity/rationality. Cultural studies,
[s.l.], v. 21, n. 2-3, 2007.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 367


capítulo 18

Breve análise de algumas


personagens femininas em Harry
Potter e as Relíquias da Morte,
de J. K. Rowling
Hélia da Silva Alves Cardoso
Nilson Macêdo Mendes Junior

INTRODUÇÃO

A igualdade de gênero na obra Harry Potter e as Relíquias da


Morte, de J. K. Rowling, é bem clara. Por exemplo, a Escola de Ma-
gia e Bruxaria de Hogwarts foi criada por quatro grandes bruxos e
bruxas, sendo dois homens, Godrico Gryffindor e Salazar Slytherin,
e duas mulheres, Helga Hufflepuff e Rowena Ravenclaw. As quatro
casas existentes para dividir os alunos durante o período em que estu-
dam na escola são em homenagem a esses bruxos e bruxas. Cada casa
possui características próprias, Grifinória: ousadia, coragem e nobre-
za; Lufa-lufa: justiça, lealdade, paciência e sinceridade; Corvinal: sa-
bedoria e espiritualidade e, Sonserina: astúcia e amizade.
Outra igualdade de gênero bem definida refere-se à direção das
casas, também por dois bruxos e duas bruxas: Grifinória, pela profes-

368 DOI: 10.52788/9786589932796.1-18


sora Minerva McGonagall, Lufa-Lufa, por Pomona Sprout, Sonseri-
na, por Severo Snape, que devido a alguns acontecimentos é substitu-
ído pelo professor Horácio Slughorn, e Corvinal, por Filius Flitwick.
Ou ainda, a igualdade de gênero pode ser encontrada no esporte, o
Quadribol, modalidade esportiva encontrada apenas no mundo bru-
xo e que podem jogar meninos e meninas juntos, formando um time
misto e sem preconceitos de gênero.
É no universo mágico de Harry Potter que J. K. Rowling traz deba-
tes sobre assuntos sérios que devem ser discutidos frequentemente, como
o feminismo, tão ascendente no momento. O protagonista Harry, por
exemplo, só realiza os seus objetivos quando primeiramente é instruído
por uma mulher, seja sua mãe ou sua melhor amiga, Hermione Granger.
O modo como a escritora descreve tais acontecimentos é fundamental
para a obra ser reconhecida através de uma perspectiva feminista. As
personagens mulheres criadas pela escritora não seguem um padrão de
beleza como aquele ditado pela sociedade. E em Hogwarts, estudam e
trabalham os mais variados indivíduos femininos, e a escola funciona
como um grande conglomerado de tipos: há as baixas, altas, gordas, ma-
gras, negras, brancas, asiáticas, indianas, ocidentais, dentre outras.
Zolin (1999, p. 27), ao falar sobre o feminismo, menciona que
“Não é preciso tomar como referência o movimento feminista das dé-
cadas de 60 e 70 ou questões relativas ao feminismo (alvo de ataques
e discussões), para se perceber o quanto a mulher vem se tornando
objeto de estudo em diversas áreas de conhecimento”. Foram as lutas
dessas mulheres que fizeram com que o movimento feminista se tor-
nasse o fenômeno que é nos dias atuais, buscando cada vez mais a tão
requisitada igualdade de gênero.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 369


O papel de patriarca do homem foi se diluindo pouco a pouco.
A mulher passou a não mais abaixar a cabeça, uma vez que entendeu
que deveria possuir direitos e deveres iguais aos dos homens. O grito
da mulher passou a ser ouvido, mas ela ainda continua em um pro-
cesso de luta contra o patriarcalismo e o machismo. A mulher passou
a entender que possui o poder do seu corpo e mente, e luta para que
toda a sociedade entenda que não existe um gênero superior ao outro.
O fato de nomear o ser humano como “homem”, incluindo ho-
mens e mulheres nesta denominação, é um exemplo de dominação
masculina invisível defendida por Bourdieu (2012). Outro exemplo
é quando há homens e mulheres em um contexto, mas o substantivo
ou artigo usado deve estar no masculino. São fatos tão normais que
passam despercebidos pela maioria, mas que devem ser repensados e
descontruídos. Vivemos no século XXI e, portanto, meninos e me-
ninas devem brincar as mesmas brincadeiras. Não deve ser o sexo a
definir o que ambos podem ou não fazer, menino joga bola, menina
também, menina veste cor-de-rosa, menino também. A teoria femi-
nista parte do princípio de que a mulher deve ter livre arbítrio e que
não ser superior ao homem.

A ESCRITORA POR TRÁS DA OBRA

Joanne Kathleen Rowling, ou J. K. Rowling, como é mais co-


nhecida, nasceu em 31 de julho de 1965 em Yate, Reino Unido. Em
junho de 1997, ao publicar Harry Potter e a Pedra Filosofal (Harry
Potter and the Philosopher’s Stone), já mostrava como conquistaria
milhões de fãs em todo o mundo. A história do menino bruxo mais

370 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


famoso de todos os tempos tem mexido com a imaginação de muitos
jovens, afinal, a escritora soube conduzir sua trama de maneira tão
singular e mágica, não sem antes passar por alguns obstáculos pelo
simples fato de ser mulher em uma sociedade conservadora como a
que vive. Ter abreviado seu nome para então poder publicar o livro foi
um pedido da editora à escritora, pois sugeriria um nome masculino,
sendo melhor para atrair o público-alvo de meninos.
A escritora teve uma adolescência infeliz, haja vista que sua mãe
tinha problemas de saúde – esclerose múltipla, vindo a falecer em 1990,
e o convívio com o pai não era dos melhores. Em entrevista, chegou a
mencionar que a personagem de Hermione Granger é inspirada nela
aos seus 11 anos. Bacharel em Artes, em Francês e Estudos Clássicos
na Universidade de Exeter, a ideia de escrever sobre um menino bruxo
órfão e um mundo fantástico e sobrenatural surgiu quando ela ia de
trem de Manchester para Londres King’s Cross. Escrevendo a mão,
surgiam os rabiscos dos sete livros.
“Sete anos após ter se formado na faculdade, Rowling passava
por uma fase de depressão, pois seu casamento havia fracassado e es-
tava desempregada com uma criança para sustentar” (ROSA, 2017,
p. 54). É casada desde 2001 com o médico anestesista Neil Murray,
com quem têm mais dois filhos. Segundo Rosa (2017), J. K. Rowling
possui uma abalada relação com a imprensa, já que, de acordo com a
própria escritora, a imprensa tem uma “natureza volátil da reporta-
gem”, referindo-se à imprensa sensacionalista que explora as figuras
públicas. A escritora também apoia projetos sociais contra a pobreza
e em auxilio à crianças carentes, além de apoiar financeiramente pes-
quisas e tratamentos de esclerose múltipla.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 371


De acordo com Lignani (2007), a escrita de J. K. Rowling mis-
tura vários elementos das tradições de todas as partes da Europa, par-
tindo do grego até incluir elementos atuais das lendas inglesas, além
do conhecimento de latim, atraindo, portanto, o seu leitor a conhecer
mais sobre expressões ou contos descritos em sua obra. “[...] O proces-
so de apropriações para ela é parte integrante do que considera labor
literário e parte de seu cotidiano de criação, sem merecer sua reflexão
mais detalhada. [...] Sua produção literária, [...] torna-se um produto
de criação diferenciado em relação a outros” (LIGNANI, 2007, p.199-
200). É possível perceber que há uma predominância de relação entre
história e leitor, sendo esta trabalhada detalhadamente, fazendo o lei-
tor despertar curiosidade a respeito dos demais elementos presentes.

O UNIVERSO FANTÁSTICO DE HARRY POTTER

A aventura de Harry Potter começou no Reino Unido, em 26 de


junho de 1997, quando foi publicado pela editora londrina Blooms-
bury, o primeiro livro, Harry Potter e a pedra filosofal. No Brasil, em
1999, a editora Rocco comprou os direitos e só no ano seguinte foi
publicado o primeiro de uma coletânea de sete livros que mudaria a
vida de milhares de fãs no mundo todo e a vida da própria autora, J.
K. Rowling.
Em 21 de julho de 2007, foi lançado no Reino Unido e em outros
países anglófonos o sétimo e último livro da saga, Harry Potter e as Re-
líquias da Morte, e no Brasil, somente em 8 de novembro do mesmo
ano. Todos os acontecimentos chegam ao ápice, sendo resolvidos, e, é

372 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


nesta resolução que se vê o quanto o destino do menino bruxo que so-
breviveu a uma maldição imperdoável está ligado à vida de mulheres
que nascem e crescem durante a narrativa da série.
É no universo de criaturas fantásticas que J. K. Rowling expõe
preconceitos e desigualdades sociais, raciais e de gênero. Mostra que,
mesmo em um mundo fantástico, nem tudo é perfeito como se pensa
que deveria ser. A escritora mostra que igualdade de gênero é perfeita-
mente possível, o homem deve enxergar na mulher uma parceira que
se diferencia apenas por questões biológicas, que a mulher é capaz de
fazer o que ela quiser. Por isso há personagens tão únicas e decisivas
para a trama. J. K. Rowling também traz a personagem que representa
a mulher submissa aos preceitos históricos e sociais, a tia Petúnia, por
exemplo, é esse sujeito.
Nesse mundo de fantasia, tornar sujeitos femininos poderosos
no sentido de dar-lhes poderes sobrenaturais, a tal ponto de serem tan-
to quanto ou mais poderosos que os sujeitos masculinos, é mostrar
que a igualdade de gênero é questão de respeito e de olhar para esta
que há muito tempo foi submissa, por meio de uma nova ótica. Beau-
voir (2009, p. 689) afirma que “O certo é que até aqui as possibilidades
da mulher foram sufocadas e perdidas para a humanidade e que já é
tempo, em seu interesse e no de todos, de deixá-la enfim correr todos
os riscos, tentar a sorte”. Ela deve lançar-se e como águia conquistar o
impossível, é hora de romper as barreiras do machismo e provar o que
é ser mulher.
Em Harry Potter e as Relíquias da Morte, vemos Harry, Rony e
Hermione em busca das Horcruxes para destruir Voldemort, objetos
criados a partir de magia das trevas. Nessa última aventura da saga,

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 373


eles enfrentarão grandes obstáculos, sendo testados de inúmeras ma-
neiras em uma missão que levará Harry a se sentir tão sozinho como
nunca.

AS PERSONAGENS FEMININAS CRIADAS POR J. K. ROWLING

Ribeiro (2017, p. 18) define que “De modo geral, diz-se que a mu-
lher não é pensada a partir de si, mas em comparação ao homem. É
como se ela se pusesse se opondo, fosse o outro do homem, aquela que
não é homem”. J. K. Rowling, em sua escrita não transparece esse efei-
to, pelo contrário, cada personagem possui características próprias,
sejam homens ou mulheres. É preciso pensar na mulher como ela mes-
ma e não a partir de uma ótica masculina, ou seja, esta não é o oposto
do homem, é ela mesma, com defeitos, opiniões próprias, emoções, ela
em sua forma pura e original. Esse é o fator essencial na obra de J. K.
Rowling, pois a trama carrega o nome de um protagonista masculino,
como já foi mencionado, mas dentro da narrativa, o destaque pode
mudar de ótica facilmente, ou seja, deixando os acontecimentos serem
comandados por mulheres.
Esse protagonismo masculino é entendido a partir da própria
sociedade em que a escritora está inserida: uma sociedade, muito
conservadora. Em seu web site1 quando disponibiliza sua biografia,
Rowling menciona que para publicar o primeiro livro teve que acres-
centar o nome de sua avó paterna, Kathleen, e abreviar J. K., já que,
para a editora, o nome de uma mulher poderia não atrair o público-al-

1 Disponível em: https://www.jkrowling.com/

374 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


vo de meninos. Provavelmente, entende-se que, se a saga tivesse como
protagonista uma mulher, a obra teria demorado mais tempo até ser
publicada.
Percebemos que a vida do jovem Harry Potter está rodeada por
mulheres fortes, guerreiras e destemidas. A primeira delas é sua mãe,
(Lilian Potter) que com sua proteção, lançou o maior feitiço de todos:
o amor, visto que se sacrifica salvando Harry ainda bebê do Lorde
das Trevas. “– Conte-lhe que na noite em que Lorde Voldemort ten-
tou matá-lo, quando Lílian pôs a própria vida entre os dois como um
escudo, a Maldição da Morte ricocheteou em Lorde Voldemort...”
(ROWLING, 2007, p. 376). Harry cresce com todos o reconhecen-
do fisicamente como muito parecido com o pai, mas com os olhos
da mãe. Não são apenas os olhos, sua personalidade é igual a da doce
Lilian.
Lilian Potter é uma nascida trouxa – pessoa que não é filha de
bruxos, em portanto, não tem sangue puro, e descobre ser bruxa
quando recebe a carta para entrar para a Escola de Magia e Bruxaria
de Hogwarts. Tinha cabelos vermelho escuro, olhos de um verde-vi-
vo, e era uma bruxa poderosa, membro da Ordem da Fênix. Sofreu
preconceito por não ser bruxa puro sangue e seu sacrifício representa
a primeira mulher a salvar a vida de Harry. A personagem é uma mu-
lher ruiva, dona de si, capaz de decidir seu próprio destino, responsá-
vel pelas escolhas que faz.
Adichie (2015, p. 54) afirma que a aparência de uma mulher sem-
pre é um paradigma, pois esta é constantemente comparada à do ho-
mem, ou seja quanto menos feminina for, maior serão as chances de a
mulher ser ouvida. Lilian como mãe, esposa e, acima de tudo, mulher,

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 375


não se deixa ser reconhecida como a esposa de Tiago Potter, confinada
em seu lar, sendo apenas a doméstica. Ela e Tiago são parceiros, iguais
nas divisões de atividades. Quando precisa, ela vai à luta, tornando-se
a heroína, sem ficar à espera do homem para defendê-la, pois ela por si
só pode cumprir este papel.
Outra personagem significativa é Hermione Granger, a melhor
amiga de Harry, que como a mãe dele, era uma nascida trouxa, de pais
ditos normais. A menina logo mostrou que mesmo não tendo pais
bruxos, como a maioria dos alunos da Escola de Magia e Bruxaria de
Hogwarts, seria uma bruxa poderosa, de uma inteligência brilhante.
J. K. Rowling aqui apresenta uma personagem feminina com carac-
terísticas marcantes, um sujeito feminino com grande intelecto e que
não quer permanecer oculta:

– Por que não verifiquei se tinha trazido comigo a Capa da Invisibilidade?


– perguntou Harry, xingando mentalmente a própria burrice. –
Carreguei-a durante todo o ano passado e...
– Tudo bem, eu trouxe a capa, trouxe roupas para vocês dois – disse
Hermione. – Tentem apenas agir com naturalidade até... aqui vai dar.
Ela os levou a uma rua lateral, e dali ao refúgio de uma travessa escura.
– Quando você diz que trouxe a capa e as roupas... – Harry começou
a dizer, franzindo a testa para a amiga, que não levava nada nas mãos,
exceto a bolsinha de contas, em cujo interior ela agora remexia.
– Isso mesmo, estão aqui – respondeu ela e, para espanto dos dois
garotos, tirou da bolsa um jeans, uma camiseta, meias marrons e,
finalmente, a Capa da Invisibilidade prateada.
– Caraca, como foi...?
– Feitiço Indetectável de Extensão – respondeu Hermione. – Complicado,
mas acho que o executei corretamente; enfim, consegui enfiar aqui dentro
tudo que precisamos. (ROWLING, 2007, p. 99-100).

376 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Adichie (2017, p. 10), ao aconselhar uma amiga sobre como ensi-
nar a filha a ser uma feminista, diz “Ensine a ela que ‘papéis de gênero’
são totalmente absurdos. Nunca lhe diga para fazer ou deixar de fazer
alguma coisa ‘porque você é menina’. ‘Porque você é menina’ nunca
é razão para nada. Jamais”. Hermione representa esse espírito de ma-
neira exemplar, tendo em vista que não é o fato de ela ser menina que
a faz deixarde se aventurar ou abandonar uma tarefa.
A mulher-selvagem, definida por Estés (2018, p. 86), é uma ques-
tionadora de uma cultura enraizada em que a põe em segundo plano,
e esses questionamentos constantes faz dela uma lutadora, visto que
“Uma vez examinadas essas questões, a mulher será capacitada para
agir de acordo com sua própria competência, com seu próprio talento.
Tomar o mundo nas mãos e agir com ele de um modo inspirado e for-
talecedor da alma é um poderoso ato de espírito selvagem”. A autora
afirma que por isso a natureza selvagem da mulher deve ser preserva-
da. Sem essa natureza questionadora, ela não compreenderia seu papel
como sujeito igual e não secundário. A natureza selvagem provoca a
mulher silenciada a por seu lugar de fala.
Hermione é uma mulher-selvagem em busca constante pelo co-
nhecimento. Se não fosse por ela, grande parte das ações não se de-
senvolveriam, haja vista a inteligência brilhante da personagem em
resolver os mais variados assuntos através da lógica e de seus conhe-
cimentos de feitiços. A autora deixa claro que a igualdade de gênero é
questão de enxergar o sujeito feminino em sua totalidade.
“ – Harry apanhou o peixe e eu fiz o melhor que pude! Estou no-
tando que sempre sou eu que acabo resolvendo o problema da comi-
da; porque sou uma menina, suponho!” (ROWLING, 2007, p. 218).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 377


Hermione, por ser mulher pertencente a uma sociedade machista e
patriarcal, precisa se esforçar para se destacar em tudo. Por isso ela
sabe tudo por meio do seu envolvimento com a leitura. O fato de ela
ser mulher, por exemplo, não significa que ela deve ser uma excelen-
te cozinheira. Hermione sofre preconceito no mundo trouxa por ser
mulher e no mundo bruxo por ser uma bruxa “sangue-ruim”, que não
descende diretamente de outros bruxos. Assim, tem-se uma persona-
gem que carece de autoconfiança, mesmo com uma personalidade
forte, ao ser destemida, inteligente, astuta e estrategista. J. K. Rowling
constrói essas características para Hermione Granger, fazendo com
que seja uma das personagens femininas mais marcantes na obra. Ela
é a cabeça do trio (ela, Harry e Ronny), pois tudo que ela planeja sai
como se espera. Quando Hermione não planeja e organiza as missões,
estas são quase que suicidas.
Em Harry Potter e as Relíquias da Morte (2007) quando Harry
acessa as lembranças de Snape através da Penseira, vemos que Petúnia
Dursley, odiava a irmã Lilian por ser bruxa, anormal e esquisita. Mas,
ela era a única parenta de sangue viva que Harry tinha. E, portanto,
a que deveria escondê-lo até completar dezessete anos, a maioridade
na comunidade bruxa. O sacrifício de Lilian (morrer para salvar o fi-
lho) lançou em Harry um feitiço poderoso e como sua irmã dividia o
mesmo traço sanguíneo, o garoto estaria seguro com a família. A tia
foi essencial na proteção de Harry, que só saiu do seu lado quando o
garoto retribuiu o gesto de proteção, enviando-a junto com Duda e o
marido para um lugar protegido pela Ordem da Fênix, tirando-os da
mira de Voldemort.

378 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


“– Não venha com ironias... – começou tia Petúnia com a voz es-
ganiçada, mas o marido fez sinal para que ela se calasse” (ROWLING,
2007, p. 29). A escritora apresenta uma personagem feminina diferen-
te das demais, já que é submissa ao marido, vive para o lar e para cui-
dar do filho. O sistema patriarcal e machista tem beneficiado somente
os homens. Hooks (2018) explica que a supremacia masculina, inten-
sificada ao longo dos séculos, deixou a mulher em pé de desigualdade
e de inferioridade. A personagem de Petúnia Dursley, por exemplo,
representa esta mulher submissa.
Petúnia Dursley é, portanto, a mulher subalterna passiva, aque-
la que aceita de bom grado o seu papel de inferioridade. Para Spivak
(2010, p. 17), “a mulher como subalterna, não pode falar e quando
tenta fazê-lo não encontra os meios para se fazer ouvir”. Percebemos
que a escritora descreve não apenas mulheres destemidas e com per-
sonalidade forte em sua obra, mas também mulheres submissas e de-
pendentes da figura masculina.Outras duas personagens femininas
importantes são Molly Weasley e sua filha Gina Weasley, que vivem
rodeadas por sete homens. A primeira mulher Weasley é a matriarca,
representa a mulher não muito tradicional, que cuida da casa e, dos
filhos, mas que tem autonomia para agir em qualquer assunto, tendo
autoridade na tomada de decisões tanto quanto o patriarca da famí-
lia. Com apenas um olhar, todos os homens d’A Toca2 a temem, em
outras palavras, ela “manda” neles.

2 Como é chamada à casa dos Weasley. “Quatro ou cinco chaminés estavam encarrapitadas
no alto do telhado vermelho. Em um letreiro torto enfiado no chão, próximo à entrada, lia-se A
TOCA.” Capítulo três: A Toca do livro Harry Potter e a câmara secreta.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 379


– Então, Rony, já limpou o seu quarto?
– Por quê?! – exclamou Rony, batendo a colher no prato e olhando feio
para a mãe. – Por que o meu quarto tem que ser limpo? Harry e eu
estamos muito bem no quarto do jeito que está.
– Vamos festejar o casamento do seu irmão dentro de alguns dias,
jovem...
– E eles vão casar no meu quarto? – indagou Rony furioso. – Não!
Então por que em nome das plicas de Merlim...
– Não responda assim a sua mãe – interpôs o Sr. Weasley com firmeza.
– E faça o que ela está mandando. (ROWLING, 2007, p. 73).

Observamos que o Sr. Weasley respeita sua esposa e sua autori-


dade, há uma igualdade de gênero n’A Toca. Homens e mulheres são
iguais em valores e atividades, e o que os diferem são apenas os fatores
biológicos.
Wolf (2020, p. 42) assegura que “As mulheres trabalham muito
– duas vezes mais do que os homens. Essa afirmação vale para o mun-
do inteiro e remonta a tempos anteriores aos primeiros registros sobre
o assunto”. Para tal afirmação, Wolf (2020) se baseia nos relatos da
historiadora Rosalind Miles, que ressaltava que, desde as sociedades
pré-históricas, a mulher chegava a realizar cinco tarefas, enquanto o
homem somente uma. Ela ficava em casa tendo que fazer multi-tare-
fas, enquanto ele apenas trabalhava fora, chegava, exigia alimentação
no prato e ia dormir, enquanto ela ainda continuava a terminar algu-
ma tarefa e deixar alguma outra encaminhada para o dia seguinte.
É interessante observarmos que às mulheres são impostas desde
muito cedo ordens de como se portarem em sociedade, ordens im-
perativas de como devem se sentar, andar, posicionar a coluna. Já ao
homem são ensinados assuntos sobre ética e moral, a andarem de ca-

380 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


beça erguida. São esses tipos de atitudes machistas que fizeram com
que a mulher silenciada impusesse a sua voz que foi oprimida durante
muito tempo.
Para Beauvoir (2009, p. 173) “O ideal da beleza feminina é variá-
vel; mas certas exigências permanecem constantes”. O corpo femini-
no passa por mudanças, seja pela puberdade, seja pela maternidade. O
corpo não permanece igual, assim, aceitá-lo é aceitar o mais belo que
a natureza pode proporcionar.
Para Wolf (2020, p. 29), “A ‘beleza’ é um sistema monetário
semelhante ao padrão-ouro. Como qualquer sistema, ele é determi-
nado pela política e, na era moderna no mundo ocidental, consiste
no último e melhor conjunto de crenças a manter intacto o domínio
masculino”. Buscar o padrão de beleza ditado pela sociedade é buscar
o artificial, é aceitar e continuar refém da dominação masculina. O
fato de a personagem Molly Weasley não se encaixar em um padrão
de beleza não justifica motivo nenhum para não se sentir uma mulher
forte, mãe e amada.
A segunda mulher Weasley, a princípio, parece frágil e delicada
demais. Tinha a voz fina de menininha e cabelos ruivos como todos
os Weasley. Gina vai crescendo e evoluindo dentro da obra de J. K.
Rowling, ajudando Harry em diversos momentos, entrando para o
time de quadribol, realizando feitiços com perfeição, lutando ao lado
de Harry na Batalha de Hogwarts, e, no final, tornando-se o grande
amor do protagonista.
Gina é artilheira no time de quadribol da Grifinória, e, quando
Harry se machuca, assume a posição de apanhadora, posições impor-
tantes no esporte. Ela mostra que ser mulher nesse esporte nada inter-

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 381


fere nos resultados, já que, como artilheira, marcou vários pontos e,
quando o pomo de ouro foi capturado, venceram a partida. Do mes-
mo modo, o time venceu a taça das Casas quando Gina atuou como
apanhadora.
“Ele experimentou olhá-la. Gina não estava chorosa; essa era uma
das suas qualidades: raramente chorava. Por vezes ocorria a Harry que
o fato de ela ter seis irmãos a tornara forte”. (ROWLING, 2007, p.
90). Única irmã menina no meio de seis irmãos e o pai Gina deveria
ser a típica mocinha mimada e frágil, estereótipo que costumamos en-
contrar nas histórias de ficção. Porém, a personagem não segue esse
estereótipo. A “menininha de voz fininha” cresce e se transforma em
uma mulher destemida, que usa vestido decotado sem se importar
com a opinião ou julgamentos dos outros, capaz de enfrentar a todos
pela sua liberdade, forte o bastante para lutar na Batalha de Hogwarts
na defesa de um mundo melhor: “No momento em que olhou, Gina
lançou um feitiço certeiro contra um grupo de combatentes embaixo”
(ROWLING, 2007, p. 344).
“Quando uma mulher é forte em sua natureza instintiva, ela
reconhece por instinto o predador inato pelo cheiro, pela aparência,
pelos ruídos... ela prevê sua presença, ouve sua aproximação e toma
medidas para afastá-lo” (ESTÉS, 2018, p. 89). Gina não se encaixa no
termo de ser ou ter que ser boazinha por ser menina. Ela não se deixa
ser dominada pelos homens de seu convívio, pois analisa o terreno em
que anda, identifica seus problemas e busca por soluções para se de-
fender, não deixando ser danificada pelo fato de ser mulher e ter que
obedecer a regras ditadas pela sociedade machista e patriarcal.
“A cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma

382 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


humanidade inteira de mulheres não faz parte da nossa cultura, en-
tão temos que mudar nossa cultura.” (ADICHIE, 2015, p. 65). J. K.
Rowling constrói em Gina uma personagem instigante, que quer pro-
var que pode tudo, que não é de porcelana. Assim, é possível ver que a
“menininha de voz fininha” transformou-se em mulher, mãe e esposa
com autonomia de ser quem ela quiser ser.

[...] a atenção de Harry foi desviada quando uma Maldição da Morte


passou tão perto de Gina que por menos de três centímetros não a
matou...
Ele mudou de rumo, avançando para Belatriz em lugar de Voldemort,
mas dera apenas alguns passos quando foi empurrado para o lado.
– A MINHA FILHA NÃO, SUA VACA!
[...] Belatriz girou nos calcanhares, às gargalhadas, ao ver quem era sua
nova desafiante.
– SAIAM DO MEU CAMINHO! – gritou a sra. Weasley às três
garotas, e, fazendo um gesto largo com a varinha, começou a duelar. [...]
as duas mulheres travavam uma luta mortal.
– Não! – gritou a sra. Weasley quando alguns estudantes correram, em
seu auxílio. – Para trás! Para trás! Ela é minha! (ROWLING, 2007, p.
403).

O sistema machista e patriarcal que se instalou na sociedade é


fruto de uma situação que foi repassada de geração em geração, onde
pôs o homem como o ser dominante, o chefe de família, o encarrega-
do do título de o mais forte, o dominador. Tais ideais se enraizaram
na mente do homem, provocando a submissão da mulher, a transfor-
mando na figura mais fraca da relação, naquela que não tem lugar no
seio da família, a não ser o papel de parir e cuidados da casa. Essa ideia
de homem superior, no entanto, não funciona na casa dos Weasley,

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 383


visto que J. K. Rowling cria duas personagens mulheres que convi-
vem com sete homens, mas que têm autonomia para todos os assun-
tos, mostrando que a igualdade é questão de respeito.
E por fim, temos a professora de Transfiguração, diretora subs-
tituta e diretora da Casa Grifinória, Minerva McGonagall. Além de
muito inteligente, a professora Minerva é a fiel amiga de Alvo Dumb-
ledore, diretor da escola, e, portanto, seu braço-direito nos assuntos de
Hogwarts. Ela, inclusive, estava ao lado dele quando foi deixar Harry
ainda bebê aos cuidados dos Dursley. Ela também se torna membro
da Ordem da Fênix, enfrentando Voldemort na Batalha de Hogwarts.
Quando Severo Snape foge e vem a morrer, a professora é nomeada
pelo Ministério da Magia diretora da escola.
Enquanto estudante de Hogwarts, Minerva jogou quadribol
pela sua Casa, Grifinória, atuando como apanhadora. Para proteger
os alunos durante a ascensão de Voldemort, Minerva permanece na
escola. Quando Harry retorna à escola em busca do Diadema perdi-
do de Rowena Ravenclaw, Minerva se rebela, enfrentando Snape e
os Comensais da morte, expulsando, protegendo os alunos e a escola.

Quando Harry tornou a erguer os olhos, Snape fugia embalado,


McGonagall, Flitwick e Sprout perseguiam-no em tropel: Snape se
precipitou pela porta de uma sala de aula e, momentos depois, Harry
ouviu McGonagall gritar:
– Covarde! COVARDE! (ROWLING, 2007, p. 330).

Ela é uma mulher que já passou por muitos momentos ruins e


bons ao longo de sua vida, não tolerando injustiças. Ser mulher em
um sistema patriarcal e machista é se impor para não ser devorada pelo

384 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


sistema. Rowling, por meio de uma personagem mulher como Miner-
va, instiga em sua leitura que outras mulheres não se deixem oprimir,
que levantem-se e lutem-se.
A professora Minerva é um animago, um bruxo que se trans-
forma em animal sem usar a varinha e que consegue, controlar essa
transformação. O de Minerva é um gato. Acreditamos que esse ani-
mal foi muito bem pensado, uma vez que os gatos são velozes, fortes,
possuidores de grandes reflexos – o que faz com que sempre caiam em
pé, por exemplo –, instinto de caça, sentidos muito bem desenvolvi-
dos, personalidade acentuada e individualista. Tais características se
aplicam perfeitamente à professora de Transfiguração de Hogwarts.
Para Estés (2018), a mulher-selvagem se move pela sombra, agindo
suavemente. Possui um passo tão leve que sua movimentação pela flo-
resta é quase imperceptível. Torna-se observadora ao invés de ser obser-
vada, espremida pelo sistema patriarcal. A mulher observou e quando
agiu o seu opressor ficou surpreso, pois não esperava este despertar, esta
coragem de enfrentá-lo, não percebeu que seu massacre, seja violento
seja psicológico, deu força à prisioneira para manifestar-se contra ele.
Beauvoir (2009, p. 234) certifica que “Ninguém nasce mulher:
torna-se mulher”. Com apenas essa declaração a escritora deixa claro
que ser mulher vai além de fatores físicos: “Nenhum destino biológico,
psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no
seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto
intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam de feminino”
(BEAUVOIR, 2009, p. 234). A autora referencia a mulher como um
ser “castrado”, tendo em vista sua condição de inferioridade em relação
ao homem. O sujeito macho é descrito como superior pela sociedade,

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 385


ou foi, até que a fêmea resolveu contestar seu papel na sociedade.
Tentar erradicar ou bater de frente com um sistema patriarcal e
machista que predomina há milênios não é fácil, a luta é árdua e pe-
sada. Bourdieu (2012) aponta que a ordem social compõe uma das
maiores simbologias de distinção entre os gêneros, impondo o mas-
culino superior ao feminino, daí a “dispensa de justificação” para o
homem ser considerado dominador enquanto a mulher é dominada.
Para viver em um mundo predominantemente masculino é preciso
ser como uma gata, astuta, inteligente, rápida, forte, individualista,
observadora, e por isso J. K. Rowling define tais atributos à persona-
gem de Minerva McGonagall e cria as outras personagens femininas
com particularidades próprias e individuais, mostrando que homens
e mulheres podem e devem ter direitos iguais.
Para Pinto (2010, p. 16) “O feminismo aparece como um movi-
mento libertário, que não quer só espaço para a mulher – no trabalho,
na vida pública, na educação –, mas que luta, sim, por uma nova for-
ma de relacionamento entre homens e mulheres”. A mulher não luta
pela superioridade do gênero feminino, já que isso implicaria uma
troca de poder, ela busca por igualdade. Percebemos, portanto, que
a importância da obra analisada neste trabalho com foco na figura
feminina é essencial para entender, refletir e propor uma reconstrução
do atual quadro em que vive a mulher.
Não há como escapar do feminismo vigente e que está em ascen-
são. A mudança, como afirma Estés (2018) deve vir de dentro de cada
mulher, pois somente ela sabe do seu sofrimento e da opressão que
vive. A mulher tem os seus próprios meios de se ajudar e de lutar pela
igualdade de gênero.

386 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ficção fantástica desenvolvida por J. K. Rowling dá destaque


a personagens femininas que fogem do padrão das histórias clássicas
de contos fantásticos, uma vez que a escritora desenvolve uma história
em que o jovem herói masculino não precisa salva a mocinha, como
tradicionalmente é apresentado nos contos de fadas e outras histórias
de fantasia. O protagonista que precisa da ajuda de mulheres para so-
breviver e desvendar os segredos, e até mesmo salvá-lo da morte.
As personagens são mulheres práticas, céticas, inteligentes, for-
tes, velozes, que não acreditam em contos de fadas e príncipes encan-
tados, e não as mocinhas que aparecem em histórias clássicas, como
um ser frágil e dependente do homem. Identificamos nas histórias de
Harry Potter mulheres dotadas de grande intelecto e que lutam de
igual para igual com os personagens masculinos.
As personagens femininas da série de livros Harry Potter ganham
espaço tanto quanto o próprio protagonista. J. K. Rowling demonstra
em sua obra que a igualdade de gênero é possível.

COMO CITAR ESTE TEXTO

CARDOSO, H. S. A.; MENDES JUNIOR, N. M. Breve análise de algumas personagens


femininas em Harry Potter e as Relíquias da Morte, de J. K. Rowling. In: SOARES, I. M.;
LESZCZYNSKI, T. (Orgs.). Um percurso pelas literaturas de língua inglesa. Tutóia/
MA: Diálogos, 2023. p. 368-389. https://doi.org/10.52788/9786589932796.1-18

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 387


REFERÊNCIAS

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BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução: Sérgio Milliet. – 2ª ed. –
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UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 389


capítulo 19

O papel do narrador e seus


movimentos em Direction of the Road,
de Ursula Le Guin
Vanessa de Paula Hey

INTRODUÇÃO

Se tivéssemos de eleger os elementos da narrativa que com maior


intensidade conferem à obra literária seu caráter fictício ou imaginá-
rio, nomearíamos muito possivelmente o enredo e as personagens. O
primeiro, como acreditavam vários autores, entre eles Aristóteles, é o
princípio fundamental da ficção, aquilo que move e faz mover todos
os outros elementos, como o tempo, o espaço, e certamente as per-
sonagens (2017, p. 83). Anatol Rosenfeld, por sua vez, e partindo do
problema epistemológico1, acredita ser a personagem o componente

1 Em seu ensaio Literatura e personagem, Rosenfeld discute o caráter ficcional do texto


literário a partir de três problemas: i) o ontológico: no qual defende que a obra literária surge
de “contextos objectuais” e que cria, “através destes, seres e mundos puramente intencionais,
que não se referem, a não ser de modo indireto, a seres também intencionais, ou seja, a objetos
determinados que independem do texto”; ii) o lógico: que busca diferenciar obras literárias
de não literárias a partir das noções de verdade e de realidade possível – “graças ao vigor dos
detalhes, à ‘veracidade’ de dados insignificantes, à coerência interna, à lógica das motivações, à
causalidade dos eventos etc. tende a constituir-se a verossimilhança do mundo imaginário. [...] o

390 DOI: 10.52788/9786589932796.1-19


determinante da ficcionalidade – para ele, é ela quem dá ao texto o seu
aspecto de ficção, mundo imaginário que ultrapassa a realidade obje-
tiva. Através da personagem, afirma o crítico, a “camada imaginária se
adensa e se cristaliza” dando à narrativa a aparência de real, inserindo,
desta forma, o leitor num mundo intencionalmente criado pelo autor
(2014, p. 21).
Em consonância com a perspectiva de Rosenfeld, dirá Roland
Barthes que: “não existe no mundo uma única narrativa sem ‘perso-
nagens’, ou pelo menos sem ‘agentes’” (2001, p. 131). São eles, afinal,
que movimentam uma história, que sofrem e realizam ações, que par-
ticipam ativa ou passivamente dos acontecimentos engendrados pela
narrativa; são eles, assim, fundamentais a sua existência.
De forma apenas aproximada, e na tentativa de, em um primeiro
momento, apaziguar a questão, poderíamos argumentar que há entre
esses dois elementos uma relação de mútua dependência: de um lado,
as personagens, que precisam do enredo do qual participam para exis-
tir; de outro, o enredo, que igualmente necessita de personagens, que
realizam ações e por sua vez levam o leitor a vivenciar suas experiên-
cias. Como afirma Henry James, em The art of fiction (1884),

Que é uma personagem senão um determinante da ação? Que é a ação


senão a ilustração da personagem? Que é um quadro ou romance que não
seja uma descrição de caracteres? Que outra coisa neles procuramos, neles
encontramos? (JAMES apud ODOROV, 2008, p. 119, grifo do autor)

leitor, parceiro da empresa lúdica, entra no jogo e participa da ‘não-seriedade’ dos quase-juízos
e do ‘fazer de conta’” (idem, p. 20-21); e iii) o epistemológico: em que afirma que “é geralmente
com o surgir de um ser humano [através da menção e descrição de suas características e ações]
que se declara o caráter fictício (ou não-fictício) do texto, por resultar daí uma totalidade de uma
situação concreta em que o acréscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaboração imaginária”
(idem, p. 23, grifo do autor).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 391


Segundo declara Todorov, em As estruturas narrativas, duas
ideias gerais podem ser extraídas do trecho acima. A primeira delas
diz respeito à existência de uma ligação consistente entre os diferentes
constituintes da narrativa, a saber, enredo e personagens – “não há
personagens fora da ação, nem ação independente de personagens”
(2013, p. 119). A segunda ideia geral, impressa nas últimas linhas,
afirma que mesmo indissociavelmente ligados, um é todavia mais im-
portante que o outro: as personagens (“os caracteres”). Para Henry
James, toda a narrativa é “uma descrição de caracteres”, estando toda
narrativa, portanto, submetida à psicologia das personagens.
Todorov, porém, afirma ser a avaliação de James um caso de
“puro egocentrismo”, considerando difícil a tarefa de ignorar outras
tendências da teoria literária, para as quais “as ações não existem para
servir [apenas] de ‘ilustração’ à personagem, mas onde, pelo contrário,
as personagens estão submetidas à ação” (TODOROV, 2013, p. 120).
Ainda que submetidas às ações da narrativa – se concordarmos
com as premissas de Todorov –, as personagens não deixam de ser
agentes fundamentais de uma obra literária. Elas são responsáveis por
vivificar os demais elementos narrativos, atuando dinamicamente
com eles de maneira a garantir a coerência interna da obra, podendo
ainda, em alguns casos e, em desacordo com a tese de Todorov, exce-
der em importância e, com isso, ofuscar os demais constituintes do
texto literário. Tal hipótese, como veremos a seguir, será ilustrada por
meio da análise do conto Direction of the Road, da escritora norte-a-
mericana Ursula Le Guin (1929–2018).

392 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


O PERSONAGEM-NARRADOR DE DIRECTION OF THE ROAD

O conto Direction of the Road, de Ursula Le Guin, foi publicado


pela primeira vez em 2007 na obra A Wind’s Twelve Quarters Story, e
por último, em 2012, no volume 1 de The Unreal and the Real, cole-
tânea que reúne os contos de Le Guin mais apreciados pelo público e
pela crítica.
Nesse conto temos, como em outras obras, a figura de um nar-
rador em 1ª pessoa, que é também a personagem central da narra-
tiva, responsável por transmitir a nós leitores, a partir de seu ponto
de vista, as histórias por ela vivenciadas. Em sua tipologia, Norman
Friedman (1967) descreve o narrador-protagonista como aquele que
narra de “um centro fixo, limitado quase que exclusivamente às suas
percepções, pensamentos e sentimentos”, não tendo acesso, portanto,
“ao estado mental das demais personagens” (LEITE, 2006, p. 43). Até
aqui, nada que destoe dos muitos contos e romances a que estamos
habituados ao falarmos de Literatura. A novidade repousa, a nosso
ver, na adoção da perspectiva de uma árvore, isto é, o foco narrativo de
Direction of the road é uma oak tree habitante de uma das margens da
estrada de Oregon. É ela, ao assumir os papéis de narrador e persona-
gem protagonista, que nos conduzirá através de sua jornada.
Porém, dirá o leitor atento, não é incomum que personagens li-
terárias sejam, para além de seres humanos (o cenário mais habitual),
animais, plantas, entidades místicas, criaturas mitológicas ou mesmo
fenômenos da natureza, para citar alguns. É o que acontece, por exem-
plo, em A Revolução dos Bichos (1945), de George Orwell, em Alice no
país das maravilhas (1865), de Lewis Caroll, em Reinações de Nari-

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 393


zinho (1931), de Monteiro Lobato, e na trilogia de Senhor dos Anéis
(1954-1955), de J. R. R. Tolkien.
Nada disso, certamente, configura-se como um problema, não
prejudica a coerência interna de uma narrativa ou mesmo afeta o pac-
to ficcional2 acordado entre o leitor e a obra. Em seu ensaio A perso-
nagem do romance, Antonio Candido afirma que a personagem de fic-
ção, para ser considerada como tal, independente da forma que venha
a assumir, deve obedecer a “uma lei própria”, estabelecida pelo mundo
fictício em que está inserida (2014, p. 67). Se ela assim o faz, não im-
porta muito se as personagens sejam seres fantásticos ou naturais (ao
invés apenas de seres humanos), o que se impõe como relevante é que
elas se apresentem como verossímeis dentro da organização interna
da obra literária. Dirá ainda Candido que as personagens de ficção,
em contraposição aos seres do mundo não ficcional, “são mais nítidas,
mais conscientes, têm um contorno definido, — ao contrário do caos
da vida — pois há nelas uma lógica pré-estabelecida pelo autor, que as
torna paradigmas e eficazes” (idem, p. 67).
Se a opção por contar uma história através da perspectiva de uma
árvore não se caracteriza como contravenção suficiente da prosa de fic-
ção, a adoção de um ponto de vista ecocêntrico – isto é, comprometi-
do com a apresentação de um sistema de valores centrado na natureza,
em direção diversa à adotada pelo antropocentrismo – certamente o
faz. Evidencia-se, por meio dessa atitude estética, um extravasamento

2 Em Seis passeios pelos bosques da ficção, Umberto Eco diz ser “a norma básica para se lidar
com uma obra de ficção a seguinte: o leitor precisa aceitar tacitamente um acordo ficcional, que
Coleridge chamou de ‘suspensão da descrença’. O leitor tem que saber que o que está sendo
narrado é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o escritor está contanto
mentiras. De acordo com John Searle, o autor simplesmente finge dizer a verdade. Aceitamos o
acordo ficcional e fingimos que o que é narrado de fato aconteceu” (2010, p. 81).

394 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


das fronteiras tradicionalmente firmadas por esse elemento narrativo,
a saber, a personagem, que mesmo quando não representada por seres
humanos, adota, em grande parte, as suas visões de mundo. Nesse
conto, o movimento realizado por Le Guin nos mostra, entre outros
aspectos, que a Literatura, se tem divisas ou limites, é só para que se-
jam transpostos.
Ao eleger um representante da natureza não-humano para narrar
a sua história, e ao adotar o seu conjecturado ponto de vista, Le Guin
parece querer nos lembrar que a conexão entre os seres vivos, humanos
ou não, deve ser entendida para além da concepção unilateral daque-
les, como uma espécie de associação cooperativa, considerando estes –
os seres naturais, plantas e animais – como elementos dessa equação,
cujos sentidos e percepções devem igualmente ser levados em conta.
Além disso, ela parece nos dizer que a incompreensão dessa realidade,
a interdependência entre os seres do mundo natural, é uma das princi-
pais causas de destruição ecológica e mesmo de angústia existencial. À
medida que nos isolamos do mundo natural, nos distanciamos tam-
bém da responsabilidade e das consequências de nossas ações perante
esses ambientes, dos quais somos extremamente dependentes.
A história, que explora a memória social e natural de uma planta
de família “ordinária” (comum, não rara), revela como a natureza tem
moldado os valores dos seres humanos, ao mesmo tempo em que eles
a transformam para atender às suas próprias necessidades – por vezes,
mesquinhas, em sua maioria, materiais. Contada da perspectiva de
um grande carvalho situado em uma das margens da estrada de Ore-

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 395


gon3, a narrativa discorre sobre o tipo de relação desenvolvida entre
essa árvore e aqueles que por ela passam: animais, seres humanos e
suas maquinarias.
O contato entre eles, de acordo com o relato do carvalho, acon-
tece através dos movimentos executados pela árvore, de aumentar e
diminuir de tamanho, sempre em relação aos outros corpos, vivos e
não-vivos, que se realiza no momento em que eles se deslocam pela
estrada, tanto para perto quanto para longe, atravessando o seu hori-
zonte de leste a oeste e vice-e-versa. A ação empreendida diligentemen-
te pelo carvalho assegura, segundo a sua própria interpretação, aquilo
a que chama de ‘Relatividade’4, responsável, a seu ver, por sustentar
‘a Ordem das Coisas’.5
A Relatividade funciona na narrativa da seguinte forma: a árvore
cresce à medida que o homem se aproxima, isso porque ela percebe o
movimento do outro como sendo o próprio movimento, e não apenas,
já que o homem, próximo ao carvalho, também o verá ampliado. Por
outro lado, se o homem se distancia, o carvalho se contrai, reduzindo
de tamanho, sentindo-se metaforicamente apequenado pelo aumento
de espaço que passa a existir entre eles, ou mesmo pela perda de con-
tato entre os dois – de longe, por sua vez, o homem também verá uma
árvore diminuta e estática.
A figura do sol aparece na narrativa de forma a esclarecer o tipo
de ‘ordem’ seguida pelo carvalho. Tomando como parâmetro a pers-

3 A ‘oak tree’, de Direction of the Road foi inspirada em uma árvore real que está situada na
beira da rodovia 18 perto de McMinnville, em Oregon (LE GUIN, 2012).
4 “Relativity” no original.
5 “Order of Things” no original.

396 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


pectiva da árvore, localizada num corpo celeste em constante movi-
mento – a Terra –, o sol, ponto externo de referência, se encontra para-
do, enquanto ela, entidade natural e viva, se movimenta: “é necessário
apenas olhar para o sol para entender o quão rápido é possível se mo-
vimentar”6 (LE GUIN, 2012, p. 107).
Para o carvalho, os homens, animais e máquinas que trafegam
pela estrada e seus arredores, encontram-se, assim como ele, em movi-
mento; seu deslocamento está, portanto, associado ao deslocamento
das demais criaturas e artefatos. Juntos e de forma síncrona, eles são
responsáveis por conservar a “Ordem das Coisas”, que diz respeito,
entre outros aspectos, à sensibilidade de se colocar no lugar do outro,
de aprender com suas sensações e experiências – ação implicada nos
movimentos cada vez mais velozes do carvalho, que acompanham,
por sua vez, as transformações dos meios de transportes utilizados
pelo ser humano.
A ideia de relatividade sugerida pelo conto demonstra, ao menos
do ponto de vista da árvore, um grande exercício de alteridade, o mes-
mo que é solicitado aos leitores ao entrarem em contato com o mundo
interior desse ser orgânico, tendo acesso, pela narração em primeira
pessoa, às suas percepções, pensamentos, sentimentos e motivações,
que permitem que aprendam, como seres humanos, mais sobre esse
ser e o seu universo, e, em algum nível, sobre a forma como estão to-
dos relacionados.
Vejamos então como esse movimento do carvalho é descrito pelo
conto:

6 Original: “one needs only to look at the sun to realize how fast one is going”.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 397


[...] e eu me aproximava dele de forma constante, mas bem devagar,
crescendo com o passar do tempo, sincronizando perfeitamente a taxa
de aproximação com a taxa de crescimento, de modo que no exato
momento em que terminei de aumentar de um minúsculo ponto para
o meu tamanho real – sessenta pés naqueles dias – eu estava ao lado
dele, pendurado acima dele, assomando, elevando-se, ofuscando-o. No
entanto, ele não demonstrava medo. Nem mesmo as crianças tinham
medo de mim, embora muitas vezes mantivessem os olhos em mim
enquanto eu passava e começava a diminuir7 (LE GUIN, 2012, p. 107).

O carvalho tem a impressão de estar sempre em movimento, é ele


quem se desloca a partir do deslocamento dos outros; é ele, por fim,
junto aos outros seres e mecanismos, que contraria a “ordem das coi-
sas” tal qual formulada pelos seres humanos. Esse feito reforça que o
ponto de vista privilegiado pela narração não é mais o do ser humano,
o antropomórfico ou antropocêntrico, mas, sim, o da natureza.

OS MOVIMENTOS

Os movimentos realizados pelo carvalho, de aumentar e dimi-


nuir de tamanho seguindo o deslocamento dos outros seres, são re-
latados pela narrativa em três etapas distintas. Na primeira delas, os
homens viajam pela estrada de terra a pé, o ritmo de vida é descrito
como calmo e sereno. Nesse contexto, o carvalho consegue acompa-
nhar sem muito esforço o passar dos seres humanos. Há entre eles e a

7 Original: “[…] and I’d approach him steadily but quite slowly, growing larger alI the time,
synchronizing the rate of approach and the rate of growth perfectly, so that at the very moment
that I’d finished enlarging from a tiny speck to my full size-sixty feet in those days – l was abreast
of him and hung above him, loomed, towered, overshadowed him. Yet he would show no fear.
Not even the children were afraid of me, though often they kept their eyes on me as I passed by
and started to diminish”.

398 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


árvore uma relação harmônica, como se estivessem em perfeita sinto-
nia: “quando um deles estava a pé, era um verdadeiro prazer me apro-
ximar. Havia tempo para realizar o ato [de diminuir e aumentar] com
estilo8” (LE GUIN, 2012, p. 107).
Na segunda etapa, o deslocamento ocorre pelo uso de cavalos e car-
roças. Anuncia-se a preferência pelo trote leve e largo em comparação ao
galope mais forte e enérgico. Já nessa fase, percebe-se um pequeno dis-
tanciamento entre o carvalho e os passantes a cavalo. Nesse momento, o
ritmo de vida se impõe de forma mais apressada, com pouco tempo para
contemplação do ambiente ao redor. Essa situação, porém, configura-se
ainda como uma exceção: “mas naquela época, isso não acontecia com
frequência. Afinal, um cavalo é um ser mortal e, como todas as criaturas,
cansa-se facilmente; então, eles não cansavam os seus cavalos, a menos
que houvesse uma situação urgente. E eles pareciam não ter tantas dessas
situações naqueles tempos9” (LE GUIN, 2012, p. 108).
A última etapa é figurada na narrativa pelos automóveis, de seus
modelos mais antigos aos novos e mais velozes. E o movimento reali-
zado pelo carvalho, antes tranquilo e pacato, torna-se intenso:

Pois minha estrada se tornou movimentada; funcionou o dia todo sob


tráfego quase contínuo. Ela trabalhou, e eu trabalhei. Já não pulava
e saltava tanto, mas tinha que correr cada vez mais rápido: crescer
enormemente, levantar-me em uma fração de segundo, encolher em
outra, tudo com pressa10 (LE GUIN, 2012, p. 110).

8 Original: “When one of them was on his own feet, it was a real pleasure to approach him.
There was time to accomplish the entire act with style”.
9 Original: “but then, it didn’t happen often. A horse is mortal, after all, and like all the loose
creatures grows tired easily; so they didn’t tire their horses unless there was urgent need. And they
seemed not to have so many urgent needs, in those days”.
10 Original: “For my road become a busy one; it worked all day long under almost continual

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 399


O progresso, simbolizado na narrativa pela transformação das
vias e máquinas automotivas, é retratado com certo grau de insatisfa-
ção, com notas de melancolia que acentuam seus aspectos negativos.
Os animais que transitavam pelos arredores, somem com a ampliação
da estrada; o silêncio e a paz antes reinantes, desaparecem com a inten-
sificação do tráfego; o movimento antes descrito como satisfatório (de
aumentar e encolher), passa a ser realizado de forma automática, sem
regozijo algum.
A narração das mudanças na paisagem, atrelada aos novos movi-
mentos e impressões do carvalho (cada vez mais violentos e lastimo-
sos, respectivamente), conduz o leitor ao clímax do conto, o relato do
acidente envolvendo a árvore e um dos carros da autoestrada:

Um dos motoristas de um dos carros evidentemente sentiu que sua


necessidade de ‘ir a algum lugar’ era excepcionalmente urgente, e assim
tentou colocar seu carro na frente do carro da frente […]. Outro carro,
porém, estava bem perto do apressado, e de frente para ele, enquanto
mudava de lado; e a estrada não podia fazer nada a respeito, pois
já estava superlotada. Para evitar o impacto com o carro da frente, o
carro apressado violou totalmente o ‘Sentido da Estrada’, girando o seu
veículo de Norte a Sul, e em seus próprios termos, e assim me forçando
a saltar diretamente sobre ele. Eu não tive escolha. Eu tinha que me
mover, e me mover rápido – 130 quilômetros por hora. Eu pulei: eu
aumentei de tamanho, fiquei maior do que nunca antes. E então bati no
carro11 (LE GUIN, 2012, p. 112).

traffic. It worked, and I worked. I did not jounce and bounce so much anymore, but I had to
run faster and faster: to grow enormously, to loom in a split second, to shrink to nothing, all in a
hurry, without time to enjoy the action, and without rest: over and over and over”.
11 Original: “One of the drivers of one of the cars evidently felt his need to ‘go somewhere’
was exceptionally urgent, and so attempted to place his car in front of the car in front of it […].
Another car, however, happened to be quite near the urgent one, and facing it, as it changed
sides; and the road could not do anything about it, being already overcrowded. To avoid impact
with the facing car, the urgent car totally violated the Direction of the Road, swinging it round
to North-South in its own terms, and so forcing me to leap directly at it. I had no choice. I had to

400 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Embora lamente a batida e a morte do condutor, sem, contudo,
se arrepender do ocorrido, o carvalho se sente ofendido de ter sido
visto por este, em seus segundos finais de vida, através do semblante
da morte, ou como relata o narrador, através do aspecto da eternidade.
A descrição do acidente é, pois, seguida de um protesto: “Pois eu não
sou a morte. Eu sou a vida: eu sou mortal. Se eles desejam ver a morte
visivelmente no mundo, isso é problema deles, não meu. Eu não vou
agir pelo semblante da Eternidade por eles. Que eles não se voltem
para as árvores para a morte. Se é isso que eles querem ver, deixe-os
olhar nos olhos um dos outros12” (LE GUIN, 2012, p. 113).
Durante quase toda a narrativa, o carvalho se apresenta de forma
resiliente. Apesar de amargar com as mudanças do progresso, se mos-
tra capaz de se adaptar às intempéries. O que ele não consegue supor-
tar, contudo, é ser associado à imagem da morte, passando a ilusão de
eternidade. Como as demais criaturas, o carvalho é um ser mortal e,
portanto, a representação de uma forma de vida. Relacioná-lo à morte,
segundo afirma, é não entender o conceito de Relativity, figurado atra-
vés dos movimentos – de aumentar e diminuir de tamanho – realiza-
dos ao longo da narrativa. Movimentos intimamente ligados às noções
de alteridade e empatia, que implicam, respectivamente, no reconheci-
mento do outro como um ser diferente, distinto de si, e na capacidade
de se colocar no lugar deste outro, aceitando sua individualidade.

move, and move fast – eighty-five miles an hour. I leapt: I loomed enormously, larger than I have
ever loomed before. And then I hit the car”.
12 Original: “For I am not death. I am life: I am mortal. If they wish to see death visibly in the
world, that is their business, not mine. I will not act Eternity for them. Let them not turn to the
trees for death. If that is what they want to see, let them look into one another’s eyes and see it
there”.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 401


Se os seres humanos não conseguem se colocar na posição do ou-
tro – a relatividade proposta no conto pela estratégia narrativa que ado-
ta como foco um ponto de vista nada comum, o de um carvalho – que,
ao menos, entendam o conceito de Relatedness. Pede-se, portanto, que
os humanos compreendam a forma como os seres estão conectados no
e ao universo – a Order of Things anunciada pelo texto –, a maneira
como os fatos estão encadeados e os organismos vivos associados.
A fatalidade – morte do motorista – desencadeia, no conto, uma
reflexão sobre o quanto a conexão entre os seres se constitui como
uma relação cooperativa. Ignorar esse vínculo culmina no distancia-
mento entre os organismos vivos (humanos e não humanos), impli-
ca em separar um mundo que não se sustenta de forma separada (ao
menos não para os seres humanos que dependem da natureza para
sobreviver), conduz, pois, a massiva degradação ambiental que viven-
ciamos desde o último século, que por sua vez, levará à autodestruição
da espécie humana.
Enxergar o mundo de uma perspectiva não humana, como pro-
põe o conto, incentiva a empatia, a apreciação a outras formas de vida
e o pensamento crítico sobre o lugar que ocupamos, como seres hu-
manos, nesse universo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Seguindo o princípio da relatividade, o carvalho interage com


os seres humanos que viajam pela estrada onde está localizado, ora
se aproximando ora se afastando deles. Dotado de subjetividade, o

402 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


personagem narrador de Direction of the Road se orgulha da maestria
com a qual consegue replicar os movimentos e velocidades particula-
res daqueles que viajam a pé, a cavalo, carroça e carro – assim como,
ressente-se da pressa dos tempos modernos e de ser associado à morte
no episódio da colisão e do subsequente óbito do condutor. A direção
da estrada, anunciada pelo título e transgredida pelo ser humano ao
final do conto, implica um desvio, uma espécie de quebra na Ordem
das Coisas, da qual essa árvore participa ativamente. Seus movimen-
tos (de aumentar e diminuir de tamanho) atestam, então, para a sua
inserção nos mecanismos que regem o universo, em outras palavras, a
sua inserção na dinâmica da vida, que ultrapassa, como o texto enfati-
camente destaca, o âmbito humano.
Para além, a adoção de uma perspectiva ecocêntrica, pouco usual
na história da literatura, faz com que nos coloquemos na posição des-
se outro não humano, que realiza movimentos os quais nós, enquanto
leitores, também somos convidados a desempenhar: aumentamos e
diminuímos de tamanho, nos aproximamos e nos afastamos dos obje-
tos por ele observados. Não somos, como em muitas outras histórias,
protagonistas, mas objetos da narração de um outro, havendo, por-
tanto, uma inversão de ponto de vista, que não mais privilegia a visão
antropocêntrica do mundo.
É por essa razão que defendemos aqui ser o personagem de ficção,
em relação ao enredo, o aspecto central dessa história. Por ser narrado
em primeira pessoa e de um ponto de vista ecocêntrico, o relato, para
além de condicionado às impressões do narrador, ganha doses críticas
e reflexivas, responsáveis por vivificar os fatos representados pelo en-
redo. Sem essa subjetividade, teríamos uma história muito diferente,

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 403


que se resumiria a um passar de anos e décadas de mudanças de con-
dições estruturais de uma estrada e daqueles que a utilizam. A adoção
desse foco narrativo nada convencional subverte, portanto, a “Ordem
das Coisas” como as conhecemos, suspende momentaneamente as
nossas crenças, fazendo-nos refletir sobre o lugar que ocupamos nesse
mundo.

COMO CITAR ESTE TEXTO

HEY, V. P. O papel do narrador e seus movimentos em Direction of the Road, de Ursula


Le Guin. Um percurso pelas literaturas de língua inglesa. Tutóia/MA: Diálogos,
2023. p. 390-404. https://doi.org/10.52788/9786589932796.1-19

REFERÊNCIAS

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Pinheiro. São Paulo: Editora 34, p. 83 (capítulo 6, 1450b), 2017.
BARTHES, Roland. A aventura semiológica. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol; GOMES, Paulo Emílio Salles;
PRADO, Décio de Almeida. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva,
2014.
ECO, Humberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução: Hildegard
Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
LE GUIN, Ursula K. The Unreal and the Real. Volume I: Where on Earth.
Massachusetts: Small Beer Press, 2012.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 2006.
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução: Leyla Perrone-
Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2013.

404 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


capítulo 20

Uma leitura da poesia “Everything


You Need to Know in Life You’ll
Learn in Boarding School” à luz da
corrente literária pós-colonial 1

João Victor Pereira dos Santos


Renata Cristina da Cunha

INTRODUÇÃO

As produções culturais de uma sociedade em um determinado


recorte temporal dialogam diretamente com as condições vivenciadas
por ela. Desse modo, a criação de uma obra artística, seja ela peça,
pintura, cinema ou música, está sempre provida de intencionalidade
e, sem dúvidas, carregada de parcialidade por parte de seu/sua cria-
dor/a. Para entendermos as intenções e provocações de uma obra é,
portanto, de extrema importância lançarmos mão da mera apreciação
cotidiana e partirmos em busca de uma análise interpretativista críti-
ca. Nesse cenário, a Crítica Literária, enquanto área de conhecimen-
to, ganha um importante papel, dado que colabora significativamente
para a formação do senso crítico no mundo que nos rodeia.

1 Este artigo foi produzido como trabalho de conclusão da disciplina de Crítica Literária (2021.1),
ministrada no curso de Letras-Inglês da Universidade Estadual do Piauí, campus Parnaíba.

DOI: 10.52788/9786589932796.1-20 405


Para além dos deleites proporcionados pela arte e literatura, essa
área do conhecimento tem se tornado um mecanismo profícuo de
denúncia social desde o século XIX. Na sociedade hodierna, com a
ascensão dos veículos de comunicação, as produções culturais se con-
figuram como uma das mais importantes formas de resistência às ma-
zelas sociais que assolam a população.
Este artigo foi idealizado a fim de investigar as relações coloniais
que cercam a Língua Inglesa no contexto pós-colonial, tendo como
corpus de análise a poesia “Everything You Need to Know in Life You’ ll
Learn in Boarding School” da autora Linda Legarde Grover.
No que tange aos aspectos metodológicos, este trabalho trata-se
uma pesquisa bibliográfica, com abordagem qualitativa, de cunho ex-
ploratório, embasada em pesquisadores como Tyson (2006), Jenkins
(2003), Bonnici (2005), dentre outros que se dedicam aos estudos acer-
ca da crítica pós-colonial no âmbito da sociolinguística, bem como à
Crítica Literária em uma perspectiva macro.
No que diz respeito à estrutura, este artigo está organizado em
seis seções. Na primeira seção, as considerações iniciais, apresentamos
a relevância da pesquisa, bem como os objetivos e o embasamento
teórico. Nas seções seguintes dois e três, discutimos, brevemente, a
Crítica Literária, bem como os pressupostos teóricos da crítica pós-
-colonial. Adiante, na seção, tratamos da Língua Inglesa, com ênfase
em seu legado colonial. Na seção cinco, analisamos o corpus da pes-
quisa – a poesia “Everything You Need to Know in Life You’ ll Learn in
Boarding School” – na perspectiva da crítica pós-colonial. Por fim, nas
considerações finais, listamos os achados do estudo e refletimos sobre
o papel da pesquisa para o meio acadêmico

406 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


CONSIDERAÇÕES SOBRE A CRÍTICA LITERÁRIA

De acordo com Eagleton (2006), a literatura pode ser entendida


como o que as pessoas fazem com a escrita ou o que a escrita faz com
as pessoas. Desse modo, a literatura pode ser compreendida por meio
de dois processos: a escrita e a leitura. Isso porque, nessa perspectiva,
a literatura não é somente a imanência do texto literário, ou seja, o
texto por ele mesmo, mas também a sua recepção, em outras palavras,
como o texto influencia na vida dos leitores e como esses recebem a
literatura. Eagleton (2006) acrescenta que para a literatura acontecer,
o leitor tem uma função tão vital quanto o autor. Ou seja, o leitor ga-
nha um papel notório na produção e perpetuação das obras em geral,
visto que a interpretação dos leitores pode ir além da ideia original do
autor, emancipando assim a obra literária quando lançada ao mundo.
Zappoe e Wielewick (2009) explicam que é natural a associação
da palavra literatura ao rol específico de textos. Todavia, é fato que a
sociedade não é estática e está em constante movimento. Nessa esteira,
Durão (2016, p. 112) escreve que:

Isso está intimamente relacionado à crise do próprio objeto, pois se a


literatura perdeu muito do prestígio e impacto de que antes gozava, isso
se deve, em grande medida, a profundas transformações no âmbito da
cultura em seu sentido mais amplo. A cultura está se tornando cada
vez mais visual e pondo-se cada vez mais em movimento: o cinema, a
televisão, a internet e os videogames têm em comum um funcionamento
oposto à fixidez da palavra na página, uma superfície branca sobre a
qual se imprimem letras normalmente sem um design ostensivo.

Por esse ângulo, dado que houve uma descentralização da repre-


sentação cultural, a literatura vem disputando terreno com as inúme-

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 407


ras mídias como as produções emergentes, as séries, filmes, novelas,
músicas entre outros, que têm se configurado como um terreno pro-
fícuo para a análise e crítica sob os mesmos vieses que antes se restrin-
giam às obras literárias impressas.
A Crítica Literária nos permite enxergar além do planto super-
ficial do que está sendo apresentado pelas produções culturais de um
determinado tempo, nos tornando cidadãos críticos, pois, ao investi-
garmos os aspectos históricos que se apresentam em uma obra literá-
ria, filme, série ou música, nos tornamos pessoas sensíveis às realida-
des e problemáticas presentes em nossa sociedade.
A Crítica Literária guia nossos olhos por meio de lentes que nos
possibilitam visualizar os aspectos de uma produção em perspectivas
distintas, como pontos de vista sociais e históricos, introduzidos pelas
mais diversas correntes literárias. Nessa esteira, Culler (2000) defende
que os estudos referentes à Crítica Literária se dividem em correntes
que auxiliam o leitor/apreciador a entender e criticar as produções
literárias e culturais, destacando as correntes Feminista, Queer, Pós-
-Estruturalista, Psicanalítica, Marxista, Pós-Colonial, dentre outras,
sendo a última as lentes escolhidas para guiar este estudo.

LITERATURA E POESIA

Produzir também é sinônimo de resistir, pois as produções ar-


tísticas de uma sociedade podem ir além da apreciação por fruição,
tornando-se uma tentativa de resposta para as chagas e mazelas sociais
hodiernas. Zatta (2018, p. 6) explica que “é praticamente impossível
desassociar os sentimentos humanos da arte e da expressão”. Des-

408 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


se modo, no âmbito da poesia, de acordo com Cortez e Rodrigues
(2009), o texto é indissociável do autor, pois a poesia diz respeito ao
estado emocional do autor, seus sentimentos e emoções que são tra-
duzidas pela obra. Os autores acrescentam que, por ser dedicada à ex-
pressão de sentimentos, a poesia não estaria interessada, em primeira
análise, na representação da realidade e de seus contextos históricos.
Todavia, eles prosseguem afirmando que esse sentimento advém de
uma realidade que seria a fonte de inspiração do autor. Assim, embora
a poesia não se preocupe em descrever um contexto real, o conteúdo
da poesia bebe da vida e experiências do poeta, pois esse é sua princi-
pal fonte de inspiração.
Em virtude disso, ao analisarmos uma poesia, é possível identifi-
carmos nela uma crítica, uma menção ou uma denúncia acerca das ad-
versidades sociais. Por conta disso, a poesia, bem com as outras formas
de fazer artístico, funciona também como uma ferramenta resistência
que dá voz às vozes minoritárias.

A CRÍTICA PÓS-COLONIAL COMO UMA FORMA DE


RESISTÊNCIA

A literatura é um campo fértil para a expressão de grupos social-


mente marginalizados. As produções Queer e Feministas protagoni-
zam corpos tradicionalmente colocados a margem da sociedade por
meio de uma normatividade vigente. Por sua vez, os estudos e pro-
duções Afros e Pós-Coloniais dão voz às comunidades que são his-
toricamente inferiorizadas pela cosmovisão do Outro2. Sendo essa

2 Bonnici (2005, p. 54) explica que “o outro é aquele cuja referência se encontra fora do

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 409


última as lentes que guiaram esta pesquisa, Tyson (2006) afirma que
a Crítica Pós-Colonial é definida por pessoas de qualquer população
que foram sujeitas à dominação política de outro povo. A autora segue
explicando que podemos ver essa crítica sendo traduzida em obras li-
terárias Afro-Americanas, Australianas e Indianas, por exemplo.
Deste modo, considerando o papel da literatura para a expressão
social de uma cultura, as diversas produções artísticas de um povo co-
lonizado referenciam as problemáticas enfrentadas por eles no passado
e no presente por meio de um legado colonial que se mantém por meio
da ideologia da classe dominante - os colonizadores - até os dias de hoje.
Young (2016) argumenta que a Crítica Pós-colonial é o produto
da resistência contra o colonialismo e o imperialismo. Desde modo, é
oportuno questionar a razão pela qual essa crítica segue resistindo a
despeito da emancipação política das ex-colônias. A colonização está
presente em várias instâncias da sociedade colonizada, na língua, nos
costumes, nas leis, entre outros. Embora esteja fortemente presente,
ainda passa despercebido devido à ideologia imposta pelo colonizador.
É válido ressaltar que antes das investidas imperialistas já havia
uma civilização que habitava as terras invadidas pelas potências eu-
ropeias, a exemplo da Inglaterra, Portugal, Espanha, dentre outras.
Nas Américas do Norte e do Sul habitavam as populações indígenas,
bem como as sociedades Maias e Astecas. Esses povos já tinham sua
cultura, sua tradição e sua língua consolidadas de acordo com as suas
demandas sociais. Com a chegada dos espanhóis e portugueses na
América do Sul e, posteriormente, os Ingleses na América do Norte,

ambiente daquele que fala”.

410 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


houve conflitos que resultam no genocídio, epstemicidio e linguigicí-
dio3 dos povos nativos das terras invadidas.
Como resultado das mazelas sociais que ocorreram e ocorrem
nessas terras, as produções literárias que evidenciam esses conflitos são
vistas como uma forma de denunciar e se revoltar contra as diversas
formas de colonizações físicas e mentais que permanecem até os dias
de hoje, como, por exemplo, a língua do colonizador, que é a heran-
ça mais difundida e mostra seus reflexos na atualidade. (BONNICI,
2005). Desse modo, visto a importância da língua para a reafirmação
da cultura de um povo, na próxima seção tratamos do legado deixado
pela Língua Inglesa no contexto pós-colonial em terras outrora colo-
nizadas pelos britânicos.

“SPEAK ENGLISH”: O LEGADO COLONIAL DA LÍNGUA INGLESA

Um idioma está diretamente conectado com a sociedade, história


e indivíduos que a usam. Por consequência, visto que a língua é social,
ela representa um povo, uma cultura e uma civilização. Deste modo,
um idioma não é somente um mecanismo de comunicação, mas tam-
bém uma ferramenta identitária e de reafirmação de uma cultura que
denota o sentimento de patriotismo. Em virtude disso, na sociedade
hodierna, as línguas se configuram como um instrumento de perpe-
tuação de poder e opressão das camadas minoritária, sendo um dos
principais veículos ideológicos. Pennycook (2002), por sua vez, explica

3 Termo empregado no livro “O Racismo Linguístico” de Gabriel Nascimento que


diz respeito à morte de línguas nativas de uma região pela chegada e imposição da língua
do colonizador.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 411


que os problemas referentes a uma sociedade são também os proble-
mas da língua predominante nessa sociedade. Ou seja, as relações so-
ciais implicam de maneira direta nas relações linguísticas, visto que as
línguas têm funções que vão além da necessidade de comunicação; as
línguas são poder e política, e, desse modo, são inerentes à sociedade.
Nessa esteira, Jenkins (2003) denuncia que um dos resultados
do colonialismo foi a situação de perigo imposta às línguas indíge-
nas. Desse modo, a língua é uma temática inevitável ao discutirmos a
crítica pós-colonial, pois é praticamente impossível falarmos em deco-
lonialidade sem falar do papel da linguagem e da língua na sociedade
contemporânea (NASCIMENTO, 2019).
No que diz respeito às discussões pós-coloniais voltadas para a
língua, o inglês certamente é um de seus protagonistas. A Inglaterra
foi uma notória potência colonizadora durante os séculos XIX e XX,
ampliando seus domínios em vários continentes ao redor do globo. Por
consequência, a Língua Inglesa, falada pelos britânicos, chegou às suas
colônias, e, refletindo sobre a influência ideológica e política que as me-
trópoles tinham sob os territórios colonizados, o inglês foi colocado
em um patamar de prestígio social em relação às línguas nativas faladas
nas regiões colonizadas. Sobre isso, Tyson (2006, p. 419) explica que:

Os colonizadores acreditavam que apenas sua cultura anglo-europeia


era civilizada, sofisticada, ou, como a crítica pós-colonial, metropolitana.
Deste modo, os nativos eram definidos como selvagens, atrasados e
subdesenvolvidos. Por causa de sua tecnologia muito mais avançada,
os colonizadores acreditavam que toda sua cultura era mais avançada e
ignoravam as religiões, costumes e comportamentos dos povos que eles
subjugavam.4

4 The colonizers believed that only their own Anglo-European culture was civilized,
sophisticated, or, as postcolonial critics put it, metropolitan. Therefore, native peoples were

412 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Em consonância com as ideais de Tyson (2006), mesmo após a
emancipação política das colônias britânicas, permaneceram nas co-
lônias exploradas os aspectos coloniais de seus colonizadores, dentre
eles a Língua Inglesa é a mais explícita, visto que atualmente nas ex-
-colônias britânicas o inglês ainda permanece não somente na comu-
nicação de forma geral, mas também como língua oficial do governo,
escolas e universidades, como, por exemplo na Índia.

O LINGUIGICÍDIO E SUA HERANÇA COLONIAL

O temo “linguigicídio” é amplamente usado por Nascimento


(2019) no seu livro “Racismo linguístico: os subterrâneos da lingua-
gem e do racismo” em que explica que o linguigicídio se constitui
como a morte ou marginalização de língua em detrimento da língua
da classe que detém o poder.
Esse conceito está diretamente relacionado com o advento do co-
lonialismo, pois a Língua Inglesa, nesse contexto, metaforicamente,
mataria e marginalizaria tanto as línguas nativas das regiões coloni-
zadas pelos ingleses, quanto as variações advindas das classes de baixo
prestígio social. Ademais, a língua se configura como um fator de per-
petuação de poder e exclusão social quando se trata das populações
nativas e grupos minoritários, tendo em vista que, do plano linguísti-
co ao plano sociolinguístico, a língua é idealizada pela herança do co-

defined as savage, backward, and undeveloped. Because their technology was more highly
advanced, the colonizers believed that their whole culture was more highly advanced, and
they ignored or swept aside the religions, customs, and codes of behavior of the peoples they
subjugated. (tradução nossa)

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 413


lonizador. Nessa esteira, Ngugi (2003, p. 287) ressalta que “the bullet
was the means of the physical subjugation. Language was the means
of the spiritual subjugation”5. Ou seja, a língua perpassa o plano da
comunicação, pois se configura como um instrumento de domina-
ção e subjugação do espírito do colonizado, privado do uso da sua
língua-mãe, para adotar a língua do colonizador branco europeu e,
por conta disso, dificilmente a ensinará aos seus filhos, caracterizando
assim um epistemicídio das línguas nativas, alinhado ao que Gabriel
Nascimento conceituou como linguicídio.

“ESQUEÇA A LÍNGUA DOS SEUS AVÓS”: UM REFLEXO DA


COLONIZAÇÃO

A sentença “Esqueça a língua do seus avós” compõe a poesia


“Everything You Need to Know in Life You’ ll Learn in Boarding School”
da autora Linda Legarde Grover como parte do livro “when the light
of the world was subdued, our songs came through: a norton anthology of
native nations poetry.” Esse livro traz um compilado de poesias da cul-
tura nativa de terras colonizadas que protagonizam a existência de um
povo marginalizado pela história que contam sua versão da história.
Nessa esteira, Bonnici (2005, p. 11) ressalta que “a literatura pós-
-colonial narra ficcionalmente eventos de povos colonizados e cria
uma estética a partir do excluído”, ou seja, dá voz aos povos nativos
e marginalizados pela cultura do Outro, como almeja as produções

5 A bala foi um meio de subjugação física. A língua foi um meio de subjugação espiritual
(tradução nossa)

414 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


pós-coloniais. Harjo (2020), o editor e organizador da obra supraci-
tada, explica que a maioria das pessoas não tem ideia da existência da
poesia indígena e que o compêndio tem o propósito de passar adiante
os sentimentos que emergiram de uma rica cultura indígena presente
nos Estados Unidos não há centenas, mas sim há milhares de anos,
uma vez que a presença nos indígenas naquela terra remonta a perío-
dos anteriores à invasão europeia.
Dentre as produções do compêndio que cumprem o papel de
mostrar que há produção literária fora dos moldes eurocêntricos, es-
colhemos a poesia “Everything You Need to Know in Life You’ ll Learn
in Boarding School” de autoria de Linda Legarde Grover, sobretudo
porque ela traz as discussões que mais nos são caras na perspectiva da
Crítica Pós-Colonial – a língua. Nas palavras de Fanon (2008), falar é
existir para o outro, por conta disso essa intersecção é imperativa para
compreendermos as relações coloniais linguisticas.
A poesia supracitada é apresentada pela autora em forma de texto
corrido, ou seja, Grover expões suas ideias em um único paragrafo
sem tópicos ou parágrafos. Em soma, a poesia não segue um modelo
de rimas, é escrito através de versos irregulares que se caracterizam por
não possuir um padrão não definido, em muitos casos o objetivos dos
autores com o uso de versos livres é romper com os padrões tradicio-
nais. (PETRIN, 2022)
Vale ressaltar que as obras literárias consideradas pós-coloniais
são aquelas produzidas em países como Nigéria, Índia, Filipinas, Bra-
sil, Estados Unidos, dentre outros, sendo o último o contexto da po-
esia de Linda Legarde Grover cujo itinerário literário é dedicado aos
estudos e aos conflitos das relações pós-coloniais em terras vitimiza-

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 415


das pela colonização europeia. Como ressaltamos anteriormente, as
produções literárias são uma forma de denúncia de um povo margina-
lizado, sendo assim importante conhecermos o lugar de fala da autora
da poesia analisada.
Linda Legarde Grover pertence ao grupo Anishinaabe que, se-
gundo Hele (2020), é um grupo linguístico e cultural relacionado
às primeiras nações que vivem no Canadá e Estados Unidos. Essa
população ainda mantém sua cultura e língua e, por consequência,
trava uma batalha pós-colonial constante com a cultura e dominação
europeia, pois, de acordo com Ashcroft et al. (1995, p. 2), “all post-
-colonial societies are still subject in one way or another to overt or
subtle forms of neo-colonial domination, and independence has not
solved this problem”6. Deste modo, o lugar de fala de Grover retrata,
com propriedade, opressão colonial europeia vivenciada pelos povos
colonizados.

A ABJEÇÃO DO OUTRO

Em seguida será apresentado um exceto onde Grover critica cla-


ramente o sistema colonial no que concerne ao uso da língua em so-
ciedade, bem como as implicações sociais disto.

Speak English. Forget the language of your


grandparents. It is dead. Forget their teachings.

6 Todas as sociedades pós-coloniais, de uma maneira ou de outra, ainda estão sujeitas sutil ou
explicitamente a forma de dominação pós-colonial, e a independência não resolveu o problema.
(tradução nossa).

416 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


They are unGodly and ignorant. Cleanliness is
next to Godliness. Indians are not clean. Your
parents did not teach you proper hygiene. Stay
in line. This is a toothbrush. Hang it on the hook
next to the others. Do not allow the bristles to
touch. This spreads the disease that you bring
to school from your families. Make your bed with
mitered corners. A bed not properly made will be
torn apart. Start over. Remember and be grateful
that boarding school feeds and clothes you.
(GROVER, 2020, p. 86).

Os primeiros versos da poesia: “Speak English. Forget the lan-


guage of your grandparents. It is dead7” estão diretamente ligados
ao papel das línguas em um cenário pós-colonial onde o idioma do
colonizador – o inglês – elimina e deslegitima as línguas nativas das
regiões ou, como registra a autora – a língua de seus avós – em função
do seu uso majoritário de forma ditatorial e obrigatória. Ademais, en-
contramos um exemplo do conceito “linguicídio” (NASCIMENTO,
2019) no excerto “está morta”. A morte, nesse sentido, se materializa
pela prática do epistemicídio e da deslegitimação da identidade do ou-
tro pela marginalização de sua língua, uma das principais manifesta-
ções de sua cultura.
É possível também estabelecer um diálogo com a perspectiva te-
órica de Tyson (2006) quando a autora enfatiza que os colonizadores
acreditavam que somente sua cultura era civilizada e empurravam a
cultura da terra colonizada para a margem da sociedade, caracteri-
zando-as como retrógrada e selvagem. Esse discurso está alinhado aos

7 Fale inglês. Esqueça a língua dos seus avós. Está morta (tradução nossa)

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 417


estudos de Bonnici (2005) ao explicar a “Outremização”, ou seja, o
processo de criação do outro por meio da narrativa imperial. O pes-
quisador prossegue explicando que uma das formas de “outremiza-
ção” está relacionada à denigrição do nativo, adjetivado de “preguiço-
so, ameaçador, depravado, mentiroso, pérfido, bruto, selvagem”, como
revelam os seguintes versos de Grover: “Forget their teachings. They
are unGodly and ignorant. Cleanliness is next to Godliness. Indians
are not clean”8. Isso porque essa passagem mostra com clareza a ideia
que se tinha/tem dos povos nativos das terras então colonizadas que,
aos olhos da cosmovisão do colonizador branco e europeu, era vista
como inferior, bruta e carente de intervenção da metrópole europeia.

“RESPONDA EM INGLÊS”

Em seguida vemos a autora usar o mecanismo de repetição, algo


muito comum no gênero poesia para enfatizar de forma notória um
sentimento, encontrada na frase “ in English”9, aparentemente disfar-
çada de conselho por um poder maior.

Say grace before meals. In English. Don’t cry. Crying


never solved anything. Write home once every
month. In English. Tell your parents that you are
doing very well. You’ll never amount to anything.
Make the most of your opportunities. You’ll never
amount to anything. Answer when the teacher

8 Esqueça os ensinamentos dos seus avós, eles são imorais e ignorantes, a limpeza está
próxima da , moralidade, índios não são limpos (tradução nossa).
9 Em inglês (tradução nossa)

418 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


addresses you. In English. If your family insists on and can
provide transportation for you to visit home in the
summer, report to the matron’s office immediately upon
your return. You will be allowed into the
dormitory after you have been sanitized and de-loused.
Busy hands are happy hands. Keep yourself occupied.
You’ll never amount to anything. Books are our friends.
(GROVER, 2020, p. 86, grifos nossos)

Visto que a poesia trata da adaptação de um nativo em um am-


biente escolar do colonizador, podemos refletir sobre o uso da língua
no meio educacional pós-colonial. A escola, no contexto colonial, é
um ambiente repleto de ideologias que perpetuam uma violência sim-
bólica e não simbólica a uma classe minoritária.

O sistema escolar cumpre uma função de legitimação cada vez mais


necessária à perpetuação da ‘ordem social’ uma vez que a evolução
de forças entre as classes tende a excluir de modo mais completo a
imposição de uma hierarquia fundada na afirmação bruta e brutal das
relações de força (BOURDIEU, 2007, p. 311).

No contexto específico dos países que foram colônia da Inglater-


ra, o inglês nas escolas é imposto de forma compulsória na vida dos
nativos e, consequentemente, suas línguas nativas e sua identidade são
oprimidas e marginalizadas em prol da língua do colonizador. Se, por
um lado, em determinados países, após a sua independência e saída
dos britânicos, a Língua Inglesa já havia criado bases sólidas que refor-
çaram seu uso de forma majoritária como, por exemplo, na Austrália,
Estados Unidos, Canadá e Nova Zelândia, por outro lado, em outras
nações que, de acordo com o modelo de Kachru10, se localizam em

10 Jenkins (2003) explica que o teórico Kachru criou um sistema de categorização dos falantes de

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 419


um grupo chamado “the outer circle” como a Índia, Nigéria, Singa-
pura, dentre outros, a Língua Inglesa ainda disputa espaço com as
línguas nativas dessas regiões. Todavia, a exemplo da Índia, o inglês
ainda é usado de forma obrigatória no ambiente escolar. Este excerto
do poesia de Grover é um exemplo da situação que ocorreu no passa-
do e que acontece explicitamente nos dias de hoje em países que foram
colônias da Inglaterra.

VIOLÊNCIA NÃO/SIMBÓLICA

Os excertos a serem destacados na estrofe a seguir explicitam as


formas de violência e subjugação de um grupo social, neste caso espe-
cífico, os estudantes que não têm o inglês como sua língua nativa ou
aqueles cujos pais não têm o inglês como língua-mãe.

Reading is your key to the world. Forget the language of


your grandparents. It is dead. If you are heard speaking it
you will kneel on a navy bean for one hour. We will ask if
you have learned your lesson. You will answer. In English.
Spare the rod and spoil the child. We will not spare the rod.
We will cut your hair. We will shame you. We will lock you
in the basement. Learn from that. Improve yourself.
You’ll never amount to anything. Speak English.
(GROVER, 2020, p. 86, grifos nossos)

A violência pode ser simbólica ou não. A violência simbólica é


definida por Bourdieu (2012) como uma forma de coesão e imposição

língua inglês baseadas em círculos. O Inner Circle, Outer Circe e Expanding Circle. O Outer Circle
caracteriza-se principalmente pelo uso do inglês como segunda língua, ou seja, a língua inglesa
ainda divide espaço com as línguas nativas.

420 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


dos valores da classe dominante para a classe dominada. Desse modo,
a violência simbólica se configura como natural para o grupo que é
violentado.
Na perspectiva da Crítica Pós-Colonial, a imposição da Língua
Inglesa pode se configurar como uma forma de violência simbólica,
pois a comunidade colonizadora é aquela detém o capital simbólico,
ou seja, o prestígio e a legitimação frente ao outro. Carneiro (2005)
pontua que a violência é inerente ao processo colonial e, desse modo,
após a invasão das terras e o genocídio dos povos, o que resta é a vio-
lência simbólica, em determinados casos, a não simbólica. Nesse con-
texto, as línguas dos nativos são ignoradas, marginalizadas e repudia-
das em virtude do capital simbólico atrelado à Língua Inglesa trazida
pelos europeus.
Nos versos seguintes, “If you are heard speaking it you will kneel
on a navy bean for one hour”11, visualizamos a abjeção da língua do
outro, vista como algo proibido ou imoral perante a Língua Inglesa,
perpetuando assim uma violência ao proibir o uso da língua nativa
por meio de punições físicas, em prol do uso do idioma pertencente à
classe detentora do poder.
Nos versos finais da poesia, “you’ll never amount to anything.
Speak English”12 Grover ilustra uma situação recorrente em socieda-
de sujeitas à dominação colonial. Quando a Língua Inglesa é colo-
cada em um patamar de superioridade em relação às línguas locais,
ela se torna um pré-requisito para a obtenção do capital simbólico,

11 “Se você for pegue falando-a, você ficará de joelhos em um feijão por uma hora” (tradução
nossa)
12 “Você nunca vai alcançar nada. Fale inglês”. (tradução nossa)

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 421


ou seja, um veículo de ascensão social. Nessa perspectiva, esse excer-
to da poesia nos leva a inferir que caso a pessoa não fale inglês, ela
não conseguirá nada socialmente, continuará sendo dominada, brita,
bárbara e mal-educada diante daqueles que falam inglês. Sobre isso,
Franz Fanon (2008) explica que o colonizado que aprende a língua do
colonizador é visto, por muitas vezes, com maior prestígio social em
comparação àqueles que não a falam13.

CONCLUSÃO

As produções artísticas contemporâneas vêm para divertir, inco-


modar, denunciar e resistir. Desse modo, a análise dessas produções
nos permite enxergar o mundo de maneira mais indagadora, nos fazen-
do questionar sim, mas também produzir novas obras inspiradas em
nossas insatisfações e indignações. Nessa esteira, a disciplina de Crítica
Literária é uma área do conhecimento basilar para refletirmos mais cri-
ticamente sobre o mundo em que estamos inseridos e, em última ins-
tância, sobre nós mesmos. Assim, dentro do universo da Crítica Literá-
ria, a Crítica Pós-Colonial configura-se como uma forma de denúncia
de uma realidade que incomoda, que inquieta, que angustia. Provavel-
mente foram também esses sentimentos que motivaram e inspiraram a
poesia de Linda Legarde Grover, “Everything You Need to Know in Life
You’ll Learn in Boarding School”, no qual ela externa suas insatisfações a
respeito de uma ideia remanescente do colonialismo no âmbito escolar.

13 É válido ressaltar que esta colocação de Fanon refere-se ao estudo do fenômeno social e
linguístico que aconteceu nas Antilhas Francesas onde o antilhano que fala a língua francesa era
colocado em outro patamar diferente daquele que não falava.

422 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Na perspectiva da Crítica Pós-colonial, observamos que a língua,
neste caso o inglês, tem um papel notório na violência simbólica sofri-
da pelas nações, vítimas da colonização imposta pela coroa britânica,
configurando-se como um solo fértil para o “linguicídio” e “epistemi-
cídio” da cultura e conhecimento do outro.
Somado a isso, a poesia confirma que a escola ainda é um veículo
de propagação da ideologia da classe que detém o poder e para exem-
plificar isso, a autora retratou como o inglês é imposto de forma com-
pulsória nas escolas, sempre a empurrar para as margens da sociedade
as línguas nativas que não gozam do prestígio social do inglês.
Por fim, constatamos que nos territórios que outrora foram do-
mínio dos britânicos, a Língua Inglesa é o legado colonial que per-
manece mesmo após a emancipação política dessas terras. Se por um
lado, em consequência disso, restaram nações que usam exclusiva-
mente o inglês em suas comunicações, marcando a morte efetiva das
línguas nativas, por outro lado, onde o inglês não tem pleno domínio,
estão ganhando espaço as línguas indígenas por conta das situações
descritas na poesai analisado.
Por fim, com a realização do estudo, esperamos nos tornar mais
críticos a respeito das múltiplas formas de dominação que sofremos
e que tenhamos consciência de classe a respeito das mais diversas
formas de violência simbólica que sofremos não somente no campo
linguístico, mas também no campo social e político. Almejamos tam-
bém que essa pesquisa possa ser expandida aos mais diversos objetos
literários, pois são recorrentes produções literárias hodiernas que ex-
ternam indignações e denunciam as mais diversas formas de violência,
confirmando o protagonismo da literatura no que tange ao seu papel

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 423


social que nos é mais caro: as denúncias sociais, porque ela permite
que “possamos sair da banalidade do ato de existir” (SANTOS, 2018,
p. 27).

COMO CITAR ESTE TEXTO

SANTOS, J. V. P.; CUNHA, R. C. Uma leitura da poesia “Everything You Need to


Know in Life You’ll Learn in Boarding School” à luz da corrente literária pós-colonial.
Um percurso pelas literaturas de língua inglesa. Tutóia/MA: Diálogos, 2023. p. 405-
426. https://doi.org/10.52788/9786589932796.1-20

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426 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


capítulo 21

De Johannes a Jojo - a construção


do protagonista na adaptação fílmica
de O Céu que nos Oprime
Ingrid Caroline Benatto

INTRODUÇÃO

O romance Céu que Nos Oprime (Caging Skies), escrito pela ne-
ozelandesa Christine Leunens, foi publicado pela primeira vez em
2004 e traduzido para o português em 2020. A narrativa se inicia com
um capítulo no qual o narrador tece reflexões filosóficas sobre a men-
tira, e então declara que irá contar sua história. No capítulo seguinte,
o narrador-personagem nos conta seu nome, a cidade em que nasceu,
e comenta sobre sua família. Johannes Ewald Detlef Betzler, nascido
no ano de 1927, é um menino austríaco, que mora com seu pai, mãe
e avó. Johannes teve também uma irmã mais velha, que faleceu antes
dos acontecimentos narrados. O romance nos apresenta um retrato
da anexação da Áustria ao Reich Alemão pelas lentes de Johannes,
que rapidamente se deslumbra pelo regime nazista. O fluxo de cons-
ciência nos permite ver acontecimentos históricos como discursos de
Hitler, a ascensão do nazismo, a “Noite dos Cristais”, a anexação da

DOI: 10.52788/9786589932796.1-21 427


Áustria ao império alemão e a Segunda Guerra Mundial pelos olhos
de uma criança, que logo se torna um jovem. A partir do momento
que Johannes descobre que seus pais escondem a judia Elsa Kor (ami-
ga de sua irmã já falecida) em sua casa, rapidamente se torna obcecado
com a menina. A partir dessa descoberta, acontecimentos históricos
ficam em segundo plano, e a narrativa passa a girar em torno de Elsa e
do relacionamento que se desenvolve entre os dois.
Este romance foi adaptado para o cinema pelo diretor neozelan-
dês Taika Waititi, em 2019. Ao adaptar O Céu que nos Oprime, Waititi
optou por transfigurar o tom dramático que perpassa o romance e fa-
zer da comédia um elemento central, adicionando comicidade a cenas
de tensão. A mudança de título de O céu que nos oprime/Caging Skies
para Jojo Rabbit é uma indicação de que a história que o telespectador
irá encontrar no filme é distinta da história do romance. Waititi optou
também por alterar grande parte da personalidade do protagonista,
conferindo a ele um caráter que em muito difere do personagem no
romance.
Para realizar este estudo comparatista, recorremos às considera-
ções teóricas de Hutcheon (2011) e Stam (2006), cujo trabalho nos
provoca a analisar as adaptações cinematográficas sem pretensões
de fidelidade ao texto-fonte. Após uma breve síntese dessas teorias,
as seções seguintes apresentam um panorama geral dos personagens
Johannes Betzler (livro) e Jojo Betzler (filme), observando a forma
como os personagens são construídos em suas respectivas mídias. Em
seguida, serão apontadas as principais divergências entre o persona-
gem romântico e o fílmico.

428 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


ADAPTAÇÃO COMO ADAPTAÇÃO

Em Uma Teoria da Adaptação, Hutcheon (2011) afirma que,


historicamente, a adaptação é considerada como uma obra inferior
em relação ao texto-fonte. Nessa vertente, a literatura ocuparia um
nível superior em relação à adaptação, por ser uma forma de arte mais
antiga. Hutcheon (2011) discorda dessa premissa, pontuando que as
adaptações estão ganhando cada vez mais espaço no mundo cinema-
tográfico, e defende que observemos as adaptações cinematográficas
como adaptações, e não como uma arte parasitária da arte escrita.
Para Hutcheon (2011), um estudo das adaptações deve interpre-
tá-las como obras palimpsestuosas, visão esta que interpreta as obras
como intertextos de outras obras. A autora cita Roland Barthes, e,
nessa linha, ressalta que precisamos pensar a adaptação como adapta-
ção, pois o texto adaptado é uma obra plural de ecos, citações e refe-
rências, ou seja, um palimpsesto.
Na perspectiva da autora, a adaptação pode ser vista como uma
transposição anunciada e extensiva de uma ou mais obras, como um ato
criativo e interpretativo de apropriação/recuperação, ou ainda como um
engajamento intertextual extensivo com a obra que está sendo adapta-
da (HUTCHEON, 2011). De forma resumida, essas três perspectivas
buscam compreender a adaptação como um processo e como um pro-
duto. Na adaptação como um produto, a adaptação é uma transposi-
ção anunciada, uma “transcodificação”, enquanto a adaptação como
processo envolve uma (re)criação, uma (re)interpretação de um texto
(HUTCHEON, 2011). A adaptação como um processo, em alguns
casos, pode ser chamada também de apropriação ou recuperação. É o

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 429


caso da adaptação Jojo Rabbit, na qual Waititi se apropriou do texto
O Céu que nos Oprime e conferiu à história sua própria marca criativa.
Hutcheon (2011) questiona: o que está sendo adaptado? Como
está sendo adaptado? A maior parte das teorias da adaptação assume
que o denominador comum das adaptações é a história, transposta
para diferentes modos de engajamento, nos quais é possível contar
uma história, mostrar uma história ou, ainda, interagir com uma his-
tória. Alguns dos elementos adaptados são temas e personagens.
Para Hutcheon (2011), o cinema é geralmente considerado a mais
inclusiva das formas performativas. Possui suas próprias convenções,
em virtude dos seus diferentes modos de expressão, como a fotografia
sequencial, música, ruído e som fonético. A mudança mais conhecida
é a do modo contar para o mostrar, mais especificamente, a mudança
de um romance longo e complexo para uma forma de performance.
Essa mudança no engajamento pode acarretar também em mudan-
ças no texto fonte, e, com isso, levantar questionamentos por parte
dos leitores/espectadores. No que tange aos objetos deste estudo, há
uma mudança de engajamento do modo contar (livro O Céu que nos
Oprime) para o modo mostrar (filme Jojo Rabbit), e nesta mudança
no modo de engajamento podemos observar também modificações
significativas no texto fonte.
As adaptações cinematográficas inevitavelmente incluem certo
nível de redução textual, o que pode levar a uma visão negativa da
adaptação, se essas reduções forem consideradas como “perdas” em
relação ao texto escrito. Algumas dessas “perdas” seriam relaciona-
das à sutilezas linguísticas, narrativas, às formas de representação do
psicológico. Por outro lado, nas adaptações cinematográficas, há tam-

430 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


bém um ganho com a presença dos corpos, das vozes, sons, músicas,
arquitetura, entre outros fatores. Visto que o romance é introspectivo,
permeado de fluxos de consciência do narrador-personagem, a inte-
rioridade é um aspecto marcante, algo que o cinema não pode trans-
por em sua totalidade. Por outro lado, a presença de atores talentosos,
como Roman Griffin Davis (Jojo Betzler), Scarlett Johansson (Rosie
Betzler) e o próprio diretor Taika Waititi (no papel de Adolf Hitler), o
uso de uma trilha sonora marcante e uma belíssima fotografia são um
ganho que apenas a mídia audiovisual pode oferecer ao espectador.
Hutcheon (2011) pontua que adaptações performativas como o
cinema devem dramatizar a descrição e a narração, pensamentos re-
presentados devem ser transcodificados para a fala, ações, sons e ima-
gens visuais. Conflitos e diferenças ideológicas entre os personagens
precisam ser visíveis e audíveis, e há certa reenfatização e refocalização
de temas, personagens e enredo. A adaptação Jojo Rabbit permitiu ex-
plorar outros pontos do enredo, de outros personagens, enquanto o
romance apresenta apenas a perspectiva de Johannes. O filme tam-
bém dá enfoque maior em questões como o nazismo, antissemitismo
e resistência alemã, ao passo em que o romance tem como foco o re-
lacionamento entre Johannes e Elsa. A estudiosa afirma também que
na adaptação do impresso para mídias performativas, como os filmes,
o teatro, ópera e videogames, e adaptações de romances para o rádio,
tanto o visual quanto o auditivo são de grande importância, pois atu-
am diretamente nas emoções do público, afirmação válida para o fil-
me em análise.
De acordo com Stam (2006), a adaptação de um romance para
o cinema “cria uma nova situação áudio-visual-verbal, mais do que

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 431


meramente imitar o velho estado de coisas como representado pelo
romance original” (STAM, 2006, p. 26). Dessa forma, para o teórico,
não é possível analisar uma adaptação cinematográfica procurando
avaliar questões de fidelidade ao romance. O autor retoma o conceito
de “transtextualidade” proposto por Genette para “referir-se a tudo
aquilo que coloca um texto em relação a outros textos” (STAM, 2006,
p. 29). Segundo Genette (1982), há cinco tipos de relação transtextu-
al: intertextualidade, paratextualidade, metatextualidade, arquitextu-
alidade e hipertextualidade, sendo este o mais relevante para a análise
proposta. A hipertextualidade diz respeito à relação entre o “hiper-
texto” com o “hipotexto” (um texto anterior), na qual o “hipertexto”
elabora, estende, modifica ou transforma o “hipotexto”. O filme/hi-
pertexto Jojo Rabbit modificou o romance O Céu que nos Oprime em
diversos aspectos, conferindo ao filme um tom cômico e dramático.

JOHANNES BETZLER - O CÉU QUE NOS OPRIME

De acordo com Candido (2014), é através do personagem que


existe o enredo. O personagem é responsável por tornar vivos os acon-
tecimentos e ideias de um romance. O céu que nos oprime é uma histó-
ria cujo personagem principal é também o narrador. De acordo com
D’onofrio (2007), o narrador-protagonista

[...] nos conta uma história por ele vivida, a história de uma parcela de
sua existência. É por intermédio de seus olhos e de seus sentimentos que
são apresentados os elementos constitutivos da narrativa: os fatos, as
outras personagens, os temas e os motivos, as categorias do tempo e do
espaço’ (D’ONOFRIO, 2007, p. 53).

432 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Em alguns casos, o personagem central nos leva para seu mundo
interior, nos dando um vislumbre de sua consciência. Assim, conhece-
mos Johannes Betzler não apenas pelos fatos e interações narrados por
ele, mas também pelo fluxo de consciência que nos permite acessar
seu mundo interior, seus medos, pensamentos e sensações. De acor-
do com a terminologia proposta por Genette (apud D’ONOFRIO,
2007), esse tipo de narrador é chamado de intradiegético, numa ca-
tegoria mais específica, autodiegético. Nessa tipologia, o personagem-
-narrador é o próprio protagonista da história.
Contrariando seus pais, membros da resistência, Johannes Bet-
zler é uma criança aficionada pelo nazismo. Narra, com orgulho,
como as crianças alemãs têm a missão de purificar a nação, e como é
feliz por pertencer a uma raça superior, conforme podemos observar
no trecho seguinte:

Ele, o Führer, Adolf Hitler, tinha uma grande missão a confiar a nós,
crianças. Só nós, que éramos crianças, poderíamos salvar o futuro da
nossa raça. Não nos dávamos conta de que nossa raça era a mais rara
e a mais pura. Não só éramos inteligentes, brancos, louros, de olhos
azuis, altos e esbeltos, mas até nossa cabeça mostrava um traço de
superioridade em relação aos demais (...). Não via a hora de voltar para
casa para mostrar a minha mãe: como ela ficaria orgulhosa de mim!
Minha cabeça era algo que nunca merecera minha atenção, ou pelo
menos não o seu formato, e pensar que eu tinha um tesouro tão raro
sobre meus ombros! (LEUNENS, 2020, p. 19-20)

Contrariando suas expectativas, seus pais não se orgulham do


formato de sua cabeça, ou de seus traços superiores. Johannes leva
para casa os discursos de pureza racial ouvidos na escola, e se frustra
imensamente quando percebe que sua família não compartilha dos

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 433


seus ideais. Através dos diálogos, e de algumas percepções do persona-
gem, o leitor passa a suspeitar que a família Betzler é parte da resistên-
cia. Essa suposição é confirmada em capítulos posteriores.
Durante a guerra, passados alguns anos das suas reflexões infan-
tis, Johannes é atingido num bombardeio, e sofre ferimentos terríveis
que culminaram em cicatrizes grosseiras e a perda de uma mão. Ao
passar mais tempo em casa, descobre que sua família esconde Elsa
Kor, uma garota judia por quem se torna obcecado. Inicialmente, seu
lado nazista prevalece:

Não posso negar que cogitei denunciar meus pais, não pela glória do
meu ato, mas porque se opunham ao correto indo contra o nosso Führer.
Senti que tinha de protegê-lo de seus inimigos. Mas, na verdade, eu
temia demais por minha própria vida se algum imprevisto acontecesse.
A melhor solução seria eu matar a menina (LEUNENS, 2020, p. 57).

Apesar de estar determinado a matá-la e apontar um canivete


para o pescoço da menina, não é capaz de concluir o ato. Quando vi-
sita Elsa novamente, a garota repara em seus ferimentos, e trata Johan-
nes com gentileza: “Baixei o olhar para a mão que ela estava e não
estava segurando e fiquei tão comovido com o fato de ela - uma mu-
lher, qualquer mulher - não considerar aquilo repugnante, que achei
que ia chorar.” (LEUNENS, 2020, p. 62). A partir desse momento,
os acontecimentos históricos a sua volta ficam em segundo plano, e o
romance tem como foco seu relacionamento com Elsa. De início, os
dois parecem desenvolver uma amizade. Contam um ao outro sobre
sua família, e logo Johannes se ressente da forma como Elsa fala so-
bre o namorado, Nathan. Aos poucos, o personagem se apaixona por
Elsa, e essa paixão se torna uma obsessão. A forma como descreve seus

434 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


sentimentos desperta no leitor uma sensação de desconforto, e nos dá
indicações do caráter perturbado do personagem.
O pai e a mãe de Johannes morrem em decorrência de atos sub-
versivos, que não ficam explícitos na narrativa, deixando Johannes so-
zinho com Pimmichen, a avó idosa e quase inválida, e Elsa. Conforme
a guerra se encaminha para um fim, com a provável derrota da Ale-
manha, o jovem teme que a amiga vá embora. Quando essa derrota se
concretiza, sua solução desesperada é mentir, e manter Elsa escondida
sob o pretexto de que os nazistas venceram a guerra:

Nós vencemos a guerra.


Eu estava tão despreparado para aquela mentira quanto ela. Não
foi sequer uma mentira, pelo menos não no exato momento em que
a proferi. Não sei ao certo o que foi, na verdade. Aquilo tinha sido o
produto de muitas confusões enredadas em uma só. De certa maneira,
foi um teste para ver como ela teria reagido se nós tivéssemos ganho...
Um pequeno teste antes de anunciar a verdade. Foi também o que eu
teria gostado de dizer, e não só dizer por dizer, mas o que eu realmente
queria que tivesse acontecido. Sei que será difícil alguém acreditar nisso,
mas foi também uma brincadeira: uma fração dela estava carregada de
ironia, no intuito de ser engraçada. Outra fração visava torturar Elsa,
porque eu sabia que, em breve, ela me torturaria com os fatos reais, e
isso por muito mais tempo do que o breve instante em que eu a teria
feito sofrer’ (LEUNENS, 2020, p. 122).

Johannes tece uma teia de mentiras para manter a judia sob seu
domínio, sempre justificando suas ações abusivas com o amor que
sente pela menina. Para manter a ilusão, esconde a garota em um baú
para possibilitar a mudança para uma casa nova em segredo. Seu com-
portamento se torna cada vez mais abusivo, e o personagem se mostra
cada vez mais perturbado. Ao mesmo tempo em que manipula Elsa
para que ela não descubra que está livre e se sinta grata pela sua prisão,

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 435


manipula também o leitor, tentando convencê-lo da pureza de suas
intenções. Procura justificar seus atos sob o pretexto de estar prote-
gendo Elsa, como no trecho a seguir:

Seria errado dizer que Elsa sofria maus-tratos quando, na minha cabeça,
eu a estava protegendo. Em primeiro lugar, eu não acreditava que seus
pais e Nathan estivessem vivos, e que alguém apareceria para buscá-la.
Era óbvio que ela não tinha mais ninguém no mundo além de mim
(LEUNENS, 2020, p. 141).

O personagem conta a verdade somente nas páginas finais do ro-


mance, muitos anos após o fim da Segunda Guerra. A história nos é
contada a partir de sua perspectiva, permitindo que o leitor mergulhe
em seus pensamentos, ações, medos e atitudes perversas. É uma leitu-
ra envolvente, mas desconfortável.

JOJO BETZLER - JOJO RABBIT

No filme, Johannes Betzler é Jojo, interpretado pelo ator mirim Ro-


man Griffin Davis. Diferentemente do romance, há o uso de um apelido
infantil e carinhoso, que também dá nome ao filme. Há também uma
diferença na estrutura familiar do personagem fílmico. Jojo mora com a
carinhosa mãe, Rosie Betzler (Scarlett Johansson), e não sabemos deta-
lhes sobre a morte da irmã, Inge, e nem sobre o paradeiro do pai.
Em A Personagem de Ficção, ao discorrer sobre a diferença entre
personagens do romance e personagens cinematográficos, Gomes
(2014) afirma que:

436 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


A personagem de romance afinal é feita exclusivamente de palavras
escritas, e já vimos que mesmo nos casos minoritários e extremos em
que a palavra falada no cinema tem papel preponderante na constituição
de uma personagem, a cristalização definitiva desta fica condicionada a
um contexto visual. Nos filmes, por sua vez, e em regra generalíssima,
as personagens são encarnadas em pessoas. Essa circunstância retira do
cinema, arte de presenças excessivas, a liberdade fluida com que o romance
comunica suas personagens aos leitores. (GOMES, 2014, p. 111).

Além disso, de acordo com o teórico de cinema Marcel Martin


(2005), a atuação é um dos meios dos quais dispõe o cineasta para
a construção do seu universo fílmico pessoal. A atuação de Roman,
pessoa que “encarna” Jojo, confere ao personagem um ar de ingenui-
dade, nos inspira simpatia e permite que enxerguemos o personagem
de uma forma totalmente diferente do Johannes que vemos no ro-
mance. Suas expressões nos indicam que Jojo é inseguro, deslocado e
impopular, o que nos leva a sentir empatia.
Segundo Martin (2005), “em geral, a câmera encarrega-se de
acentuar a expressão gestual e verbal, recorrendo ao grande plano e ao
ângulo mais adequado” (MARTIN, 2005, p. 91). O filme inicia com
tomadas que mostram um garoto vestindo seu uniforme, e bravamen-
te tomando posição de sentido. Nessa cena, há um enquadramento
parcial, mostrando esse ato parte a parte. Em seguida, inicia um dis-
curso motivacional para prepará-lo para o fim de semana de treina-
mento na Jungvolk. A força de suas palavras entra em contradição com
as expressões de medo do ator, que em seguida verbaliza as inseguran-
ças do personagem em diálogo com Adolf Hitler (imaginário).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 437


Imagem 1 - Cena de abertura Jojo Rabbit

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=po4EKJoQALI.

Imagem 2 - Cena de abertura Jojo Rabbit

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=po4EKJoQALI.

Imagem 3 - Cena de abertura Jojo Rabbit

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=po4EKJoQALI.

438 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Imagem 4 - Cena de abertura Jojo Rabbit

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=po4EKJoQALI.

Uma vez que a história no livro é narrada em primeira pessoa, é


o próprio Johannes que nos conta suas aflições e inseguranças. Quem
expõe essas inseguranças no cinema é outro personagem: o próprio
Adolf Hitler, em sua versão “amigo imaginário”, que compreende as
aflições de Jojo e conversa com ele em momentos de dificuldade. Hi-
tler é interpretado pelo próprio diretor, cuja atuação contribui para o
tom cômico do filme. Neste filme, Hitler tem uma linguagem e gestos
infantis, pois é uma expressão do subconsciente de Jojo. É um recurso
que auxilia na construção do protagonista, e desmistifica o clichê de
adaptação mencionado por Hutcheon (2011), segundo o qual a inte-
rioridade é o terreno do modo contar.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 439


Imagem 5 - Jojo e Hitler

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=po4EKJoQALI.

Após a morte da mãe, enforcada em decorrência do seu traba-


lho na resistência alemã, Jojo se vê perdido, subitamente obrigado a
crescer e tomar conta de si mesmo e de Elsa. No livro, há aproximada-
mente dez páginas de fluxo de consciência no qual Johannes mostra
desespero e obsessão em agradar Elsa. O filme, por sua vez, retrata
esse momento com uma trilha sonora sugestiva (Everybody’s gotta live -
Love), e cores mais opacas em oposição às cores vibrantes utilizadas no
início do filme. Segundo Martin (2005), a cor cinematográfica pode
ser utilizada em função de valores (como a utilização do preto e bran-
co), ou ter implicações psicológicas a partir do uso de diferentes tona-
lidades (cores quentes ou frias). De forma geral, as cores utilizadas no
filme são fortes, coloridas e vivas, em concordância com a visão alegre

440 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


e otimista que Jojo tem do regime nazista. Há também uma grande
predominância da cor vermelha, uma referência ao Terceiro Reich.
Após a morte da mãe, essas crenças são abaladas, e as cores usadas nes-
sa sequência são condizentes com o momento de luto do personagem.
O gorro de Jojo é vermelho, o que remete ao regime nazista. Nesta
cena, o vermelho tem também um tom opaco, em consonância com o
estado interior do personagem.

Imagem 6 - mudança na tonalidade das cores

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Uq6rb5voESA&t=2s

Imagem 7 - mudança na tonalidade das cores

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Uq6rb5voESA&t=2s.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 441


Imagem 8 - Jantar Jojo e Hitler

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Uq6rb5voESA&t=2s.

Em Jojo Rabbit, o relacionamento de Elsa e Jojo é diferente. No


livro, acompanhamos a trajetória de Johannes da infância ao início
da vida adulta, e o vemos tornar-se alguém cruel e manipulativo. De
todas as ações abusivas do personagem durante o romance, a que mais
nos causa aflição é a de ter mentido para Elsa dizendo que a Alemanha
venceu a guerra. Johannes estende essa mentira por anos a fio, e justifi-
ca suas ações dizendo que o que faz é unicamente por amor e para sua
proteção. No filme, os sentimentos conflituosos de Jojo com relação a
Elsa são externalizados em conversas com o Hitler imaginário, e seus
medos sobre o que acontece com alguém que esteja escondendo um
judeu são discutidos (de forma discreta) com outros personagens se-
cundários.
Na adaptação cinematográfica, Jojo e Elsa desenvolvem uma
relação de amizade e cumplicidade. Em uma cena, Jojo escreve uma
carta como se fosse Nathan, noivo de Elsa, na qual termina o rela-
cionamento com a judia. Ainda que pareça ser um gesto mau, o uso

442 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


de uma linguagem infantilizada e as expressões faciais do ator suavi-
zam a mentira. Além disso, logo que percebe que magoou a amiga,
Jojo escreve uma segunda carta, na qual Nathan muda de ideia. O
medo da solidão após o fim da guerra também está presente no filme,
mas também de forma mais suave. Inicialmente, Jojo mente para Elsa
afirmando que a Alemanha venceu a guerra, mas essa mentira não
se sustenta. O próprio personagem conta a verdade alguns minutos
depois, no que se transforma na cena final do filme. A cena final tem
Jojo e Elsa dançando juntos a música Heroes, de David Bowie (versão
traduzida para o alemão), ao lado de fora da casa. A performance dos
atores e a trilha sonora são recursos cinematográficos que nos permi-
tem sentir o alívio de Elsa com o fim de sua reclusão, o de Jojo ao ver
que Elsa não o odeia, e interpretar como verdadeira a amizade entre os
dois personagens.

Imagem 10 - Jojo e Elsa

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=BfL5V3WHhqM&t=1s

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 443


Imagem 11 - Cena final - Jojo)

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=BfL5V3WHhqM&t=1s.

Imagem 11 - Cena final - Elsa

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=BfL5V3WHhqM&t=1s.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo realizado teve como objetivo analisar o filme Jojo Ra-


bbit, observando as principais diferenças entre o protagonista Jojo
Betzler, e aquele que lhe deu origem, Johannes Betzler (livro). Ainda
que tenham sido apontadas diferenças e semelhanças entre os perso-

444 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


nagens, a intenção não é fazer aqui considerações de valor, pois ambos
os personagens são ricos e complexos em suas próprias mídias.
Em ambas as histórias, vemos acontecimentos históricos pelo
olhar de uma criança. Como é próprio de um romance com um nar-
rador autodiegético, episódios históricos são narrados no livro pela
perspectiva de Johannes Betzler, no qual é possível identificar um re-
pertório infantil, pois o personagem na época era ainda uma crian-
ça. Ainda que a interioridade não seja totalmente transposta para o
cinema, a forma como Jojo interage com outros personagens (Adolf
Hitler imaginário, seu amigo Yoki, sua mãe e Elsa) traz um retrato do
nazismo por uma perspectiva leve e, em alguns momentos, cômica.
Hutcheon (2011) afirma que a adaptação distancia-se do roman-
ce “à medida que o processo avança da escrita do roteiro para a filma-
gem em si (...). Como produto final, o filme pode estar bem distante,
em termos de foco e ênfase, tanto do roteiro quanto do texto adap-
tado. (HUTCHEON, 2011, p. 122). É o caso do filme Jojo Rabbit,
que se distancia em muitos aspectos do romance. O filme evidencia
aspectos da sociedade Alemã na época da Segunda Guerra Mundial,
enquanto o romance se estende para além desse período e foca nas
relações pessoais entre os personagens, especialmente na relação entre
Johannes e Elsa. Além da mudança de gênero, a adaptação cinemato-
gráfica modificou também traços da personalidade do protagonista
Johannes/Jojo.
A adaptação transformou Johannes Betzler, personagem manipu-
lador, obsessivo e cruel, em Jojo Betzler, um garoto compassivo e capaz
de amadurecer. Essa mudança se deu através de recursos próprios da mí-
dia cinematográfica, como o uso de trilha sonora sugestiva, cores (vivas

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 445


em alguns momentos, opacas em outros), e a interação do protagonista
com personagens secundários. Uma vez que o personagem fílmico é
encarnado em uma pessoa, o recurso cinematográfico mais marcante
na construção de Jojo é a performance de Roman Griffin Davis, que
permite que o espectador o veja como um garoto inseguro e amável.
A palavra escrita em O Céu que nos oprime nos apresenta um persona-
gem mentiroso e obcecado, e interpretamos seu caráter por suas ações,
e principalmente por seus próprios pensamentos. No cinema, apenas
parte desses pensamentos são exteriorizados em conversas com outros
personagens. A forma como Roman interpreta esses diálogos, com uma
expressão ingênua e linguagem infantil, suavizam qualquer possibilida-
de de vermos o personagem da mesma forma que no romance.
Por fim, tanto no romance quanto no filme, o relacionamento
entre Johannes/Jojo e Elsa nos apresenta nuances quanto à persona-
lidade do protagonista. Enquanto que no livro as ações abusivas de
Johannes deixam pouca margem para que o leitor sinta compaixão
pelo personagem, no filme Jojo e Elsa tem uma relação leve, na qual
parecem criar laços fortes e verdadeiros.

COMO CITAR ESTE TEXTO

BENATTO, I. C. De Johannes a Jojo - a construção do protagonista na adaptação


fílmica de O Céu que nos Oprime. Um percurso pelas literaturas de língua inglesa.
Tutóia/MA: Diálogos, 2023. p. 427-447. https://doi.org/10.52788/9786589932796.1-21

446 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antonio et al. A personagem no romance In: A personagem de


ficção. São Paulo: Perspectiva, 2014.
CLIPFLICK. Jojo Rabbit -opening scene/ First scene. Youtube, 2020. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=po4EKJoQALI
D’ONOFRIO, Salvatore. Forma e sentido do texto literário. São Paulo: Ática,
2007.
GOMES, Paulo Emílio Salles et al. A personagem cinematográfica. In: A
personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2014.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. 2 ed. Florianópolis: Editora
UFSC, 2011.
LEUNENS, CHRISTINE. O céu que nos oprime. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2020.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Lisboa: Dinalivro, 2005.
OK LYRICS. Jojo Rabbit - EVERYBODY’S GOTTA LIVE / SUBTITULADO
HD. Youtube, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=Uq6rb5voESA&t=37s
MOVIE ENDINGS. Jojo Rabbit Ending. Youtube, 2020. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=BfL5V3WHhqM&t=1s
STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade.
Ilha do Desterro A Journal of English Language, Literatures in English and
Cultural Studies, n. 51, p. 019-053, 2006.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 447


Sobre as organizadoras

ISABELLE MARIA SOARES. Mestra em Letras, na área de concen-


tração em Interfaces entre Língua e Literatura, pela Universidade
Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO - Guarapuava, Paraná).
Especialista em Ensino de Língua Inglesa pela Universidade Estadual
do Norte do Paraná (UENP - Jacarezinho, Paraná). Licenciada com
Dupla Diplomação em Letras - Português e Inglês pela Universida-
de Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR - Pato Branco, Paraná)
e em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Universidade do Minho
(UMinho - Braga, Portugal) com bolsa do CAPES/PLI (2013-2015).
Atualmente, faz doutorado em Estudos Literários pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR - Curitiba, Paraná) com bolsa CAPES/
PROEX (2021-2022). Foi pesquisadora visitante na Cardiff Universi-
ty (Cardiff, País de Gales-Reino Unido) com bolsa CAPES/PRINT
(2022-2023) na modalidade Doutorado Sanduíche. Membro do Gru-
po de Estudos Ecocríticos (GEco - UFPR/UTFPR). Interesses de
pesquisa: Recepção do Medievo na Língua e Literatura Inglesa; Lite-
ratura Medieval Escandinava; Ecocrítica.

TAYNARA LESZCZYNSKI. Doutoranda em Estudos Literários na


Universidade Federal do Paraná (UFPR) (foi bolsista CAPES - PRO-
EX), atualmente, realizando período sanduíche na University of Ox-
ford, na Inglaterra (com bolsa CAPES - PRINT); Mestra em Letras
- Interfaces entre Língua e Literatura, pela Universidade Estadual do
Centro-Oeste (UNICENTRO), na linha de pesquisa Texto, Memó-

448 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


ria e Cultura (foi bolsista CAPES - DS); Especialista em Literatura
Contemporânea (2020), pela Faculdade de Educação São Luís; em Li-
teratura Brasileira (2020) e em Metodologia da Língua Inglesa (2021),
pela UNINA; Licenciada em Letras - Português e Literaturas de Lín-
gua Portuguesa (2018), pela Universidade Estadual do Centro-Oeste
(UNICENTRO); e em Letras - Português e Inglês (2018), pelo Cen-
tro Universitário de Maringá (UNICESUMAR), com Bolsa Atleta.
Participou do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docên-
cia (PIBID) e do Programa Institucional de Bolsas à Iniciação Cien-
tífica (PIBIC). Foi professora no Instituto Federal de Santa Catarina
(IFSC), campus Jaraguá do Sul (Ensino Superior e Técnico), onde
ministrou as disciplinas de Metodologia de Pesquisa e Inglês Instru-
mental nos cursos de graduação em Engenharia Elétrica e Fabricação
Mecânica e Metodologia de Projetos, Comunicação técnica e Inglês
técnico nos cursos técnicos em Eletrotécnica e Desenvolvimento de
Sistemas; e na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR),
campus Pato Branco, na graduação em Letras - Português e Inglês,
onde ministrou as disciplinas de Literaturas de Língua Inglesa: um
panorama e Língua Inglesa 1 e 3. Faz parte dos grupos de estudo Lite-
ratura e Modernidade (UFPR).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 449


Sobre as autoras e autores

ALEXANDRE JOSÉ DA SILVA CONCEIÇÃO. Formou-se em Letras


Tradução Inglês pela Universidade de Brasília em 2018, completou
Mestrado em Estudos da Tradução na mesma instituição em 2022, e
atualmente estuda Letras Inglês Licenciatura.

ANNA PAOLA COSTA MISI. Possui Mestrado em Letras pela Uni-


versidade Federal da Bahia (UFBA), Especialização em Metodologia
do Ensino Superior pelo Centro de Estudos e Pós-Graduação Olga
Mettig e Graduação em Letras com Inglês e em Pedagogia pela Uni-
versidade Católica do Salvador.

ANTONIUS GERARDUS MARIA POPPELAARS. Graduado em Le-


tras Inglês pela Universidade Federal da Paraíba. Possui mestrado em
Letras (UFPB), área de concentração: Literatura e Cultura. Pesquisa
e publica sobre dramaturgia, literatura anglo-americana, literatura
comparada e educação. Contato: antoniuspopulus@gmail.com.

BEATRIZ CERQUEIRA BISCARDE. Possui Especialização em Litera-


tura Inglesa, em andamento, pela Faculdade de Educação São Luís e
Graduação em Letras – Inglês pela Universidade Católica do Salvador
(UCSAL).

450 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


CHRISTIANO PEREIRA DO AMARAL. Acadêmico do Curso de
Pós-Graduação Latu-Sensu English and Translation (UGB - Centro
Universitário Geraldo Di Biase, 2016). email: christiano_trumpet@
yahoo.com.br

DAMARES SUELEN FERREIRA DO NASCIMENTO. É acadêmi-


ca do sexto período de Letras-Inglês pela Universidade Estadual do
Piauí (UESPI), campus Alexandre Alves de Oliveira. Foi bolsista do
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID -
2020/2021) e pesquisadora voluntária pelo Programa Institucional
De Bolsas De Iniciação Científica (PIBIC - 2021/2022). Atuou como
monitora da disciplina Língua Inglesa 1 (2021.2) e atualmente é mo-
nitora da disciplina Writing I (2022.1). Email: damsue02@gmail.com.

DANTE LUIZ DE LIMA. Possui graduação em Letras-Português/


Inglês pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Especializa-
ção em Ensino de Línguas Estrangeiras Modernas pela Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (2005). Mestrado em Literaturas de
Língua Inglesa pela Universidade Federal de Santa Catarina (2007).
Doutorado em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa
Catarina (2016). Atualmente é professor de Língua Inglesa e suas res-
pectivas literaturas na Universidade Tecnológica Federal do Paraná.
Pesquisador da área de Teopoética.

DIRLENVALDER DO NASCIMENTO LOYOLLA. É Doutor em Le-


tras: Literatura e Práticas Sociais pela Universidade de Brasília (UNB),
Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 451


Gerais (UFMG) e Bacharel em Estudos Literários pela Universidade
Federal de Ouro Preto (UFOP). Atualmente, é professor da Universi-
dade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). É professor creden-
ciado no POSLET (Unifesspa) e um dos líderes do Grupo de Pesquisa
“Modernismo periférico: poéticas do século XX” (UEMS).

FABIO COURA DE FARIA. É Doutor em Inglês: Estudos Linguísti-


cos e Literários pela Universidade Federal de Santa Catarina, com tese
em estudos culturais (2022). Mestre em Inglês e Literatura Corres-
pondente, com ênfase em literatura shakespeariana e estudos da adap-
tação musical (2016). Possui graduação com Licenciatura Plena em
Letras: Língua Inglesa pela mesma instituição (2014). Sua produção
acadêmica e fazer artístico percorrem também as áreas dos estudos de
tradução, perspectivas decoloniais, e das produções musicais e audio-
visuais.

GIOVANE ALVES DE SOUZA. Mestre pelo Programa de Pós-Gra-


duação em Literatura e Interculturalidade (PPGLI) da Universidade
Estadual da Paraíba (2021) - Conceito CAPES 4, onde desenvolveu
pesquisa na área de Literatura, Memória e Estudos Culturais. Espe-
cialista (2022) no curso de Especialização em Ensino de Línguas e
Literaturas na Educação Básica (UEPB/Campus III). Graduado em
Letras - Habilitação em Língua Inglesa (2018) pela mesma institui-
ção. Atualmente, professor substituto do Departamento de Letras e
Artes da Universidade Estadual da Paraíba, Campus I. Tem interesse/
pesquisa na área de Literaturas Estrangeiras Modernas, com enfoque
nos Estudos de Gênero.

452 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


GISELE GEMMI CHIARI. É doutora em Letras pela Universidade de
São Paulo e, atualmente, participa de estágio-doutoral no Programa
de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Londrina
e do grupo de pesquisa: Coletivos poéticos e políticas públicas de in-
clusão: inovação social na cena literária (CNPq). Sua pesquisa está
voltada para a análise de como a performance do texto literário pode
promover mudanças no circuito dos afetos no contexto escolar. Atua
principalmente nos seguintes temas: Literatura Brasileira, Romantis-
mo, Gonçalves Dias, Leitura Literária em Contexto Escolar.

HÉLIA DA SILVA ALVES CARDOSO. Graduada em Letras Espanhol


pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI) e Letras Inglês pela Uni-
versidade Federal do Piauí (UFPI), Especialista em Língua Espanhola
pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Mestranda em Estudos
da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN). E-mail: heliacardoso88@gmail.com.

HISLLA S. M. RAMALHO. É professora de língua inglesa e tradutora


graduada pela Universidade de Brasília e pela Faculdade JK. Além
disso, é mestre em Estudos da Tradução pelo POSTRAD da UnB
com ênfase em tradução de literatura africana anglófona. Em 2020 de-
fendeu sua dissertação de mestrado intitulada África do Sul e Brasil,
uma relação em tradução: traduzindo os contos de Sindiwe Magona ,
uma pesquisa que auxiliou na produção deste capítulo. Atualmente,
é doutoranda da Pós-graduação em Estudos da Tradução (PGET) na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 453


INGRID CAROLINE BENATTO. É mestranda em Letras pela Univer-
sidade Tecnológica Federal do Paraná - campus Pato Branco, na área
de concentração “Literatura, Sociedade e Interartes”. Possui gradua-
ção em Letras Português - Inglês pela UTFPR - campus Curitiba, e
pós-graduação em Língua Inglesa: Metodologia e tradução pela PU-
C-PR. Participa do grupo de pesquisa “Literatura em Língua Inglesa,
do(a) Universidade Tecnológica Federal do Paraná”.

JOÃO VICTOR PEREIRA DOS SANTOS. Acadêmico do curso de Li-


cenciatura Plena em Letras-Inglês na Universidade Estadual do Piauí
(UESPI), Campus Prof. Alexandre Alves de Oliveira. Membro do
grupo de pesquisa Entre Saberes docentes, linguísticos e literários.
E-mail: joaovpsantos@aluno.uespi.br.

JUAREZ JOSÉ PINHEIRO NETO. Nasceu em 14 de janeiro de 1999,


natural de Limoeiro do Ajuru, PA. Estudou a vida escolar toda em
colégio Público; formou-se em Letras-Língua Inglesa em 2022 pela
Universidade Federal do Pará. Durante a graduação estudou e pesqui-
sou a literatura Inglesa e suas influências na sociedade.

LARA FERREIRA SILVA DIAS. É professora assistente de Língua


Inglesa e Literaturas de Língua Inglesa da Universidade Estadual do
Piauí - UESPI. É membro do grupo de pesquisa EntreSaberes docen-
tes, linguísticos e literários (UESPI) e do Clube de Leitura de Lite-
ratura Contemporânea (UFPI). É doutoranda em Estudos Literários
pelo Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGEL) da Universida-
de Federal do Piauí; Mestre em Estudos Literários pela Universidade

454 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Federal do Piauí; Licenciada em Letras (Inglês) pela Universidade Fe-
deral do Piauí.

LARISSA DE MENEZES CONSTANTINO . Estudante do curso de Le-


tras com habilitação em língua inglesa pela Universidade Estadual da
Paraíba (UEPB), Campus I.

LÍDIA MARIA GUIMARÃES DE MIRANDA. Possui graduação em


Gestão Pública pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (2016),
pós-graduação em Administração Pública pela Universidade Candido
Mendes (2017), é graduada em Letras Língua Inglesa pela Universidade
Federal do Sul e Sudeste do Pará (2019). Atualmente, é mestranda em
Linguagem e Sociedade pelo Programa de Pós-graduação em Letras –
POSLET da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa).

LÍVIAN SILVA SANTOS. Estudante do curso de Letras com habilita-


ção em língua inglesa pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB),
Campus I.

LUIZ ANTÔNIO PEREIRA LIMA NETO. Mestrando do Programa


de Pós-Graduação em Educação e Cultura (PPGEDUC/UFPA-
-CUNTINS). Possui graduação em Letras Língua Inglesa (2017) e
especialização em Ensino e Aprendizagem de Língua Inglesa e Suas
Literaturas (2019) ambas pela Universidade Federal do Pará (2019).
É atualmente Professor substituto da Faculdade de Letras Língua In-
glesa também na Universidade Federal do Pará.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 455


MARIA DA CONCEIÇÃO VINCIPROVA FONSECA. Professora Orien-
tadora, Doutora em Letras pela UFF e com bolsa da CAPES na Uni-
versidade de Tradução e Interpretação de Ottawa (Canadá). Docente
nos Cursos de Graduação, Pós-graduação e Mestrado do UniFOA –
Centro Universitário de Volta Redonda.

NILSON MACÊDO MENDES JUNIOR . Orientador da graduação


(IFPI): Mestre, professor efetivo EBTT do Instituto Federal do Piauí
– IFPI, Campus Campo Maior e professor Assistente Externo do
Centro de Ensino Aberto e a Distância - CEAD da Universidade Fe-
deral do Piauí - UFPI no Curso de Licenciatura Plena em Língua e Li-
teratura da Língua Inglesa. Doutorando em Letras pela Universidade
Federal do Pernambuco (UFPE). nilsonmendes@ifpi.edu.br.

PAULO LÚCIO SCHEFFER LIMA. Professor Orientador, Professor do


Curso de Letras do UGB - Centro Universitário Geraldo Di Biase,
Mestre em Literatura Inglesa pela UERJ - Universidade Federal do
Rio de Janeiro e Coordenador da Pós-graduação do UGB – English
and Translation.

RENATA CRISTINA DA CUNHA. Doutora em Educação pela Univer-


sidade Federal de São Carlos. Mestre em Educação pela Universidade
Federal do Piauí. Especialista em Língua Inglesa pela Universidade
Estadual do Piauí e em Docência do Ensino Superior pela Universida-
de Federal do Piauí. É graduada em Pedagogia pela Universidade Fe-
deral do Piauí e em Letras Inglês pela Universidade Estadual do Piauí.
Atua na Educação Básica no Instituto Federal de Educação, Ciência e

456 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Tecnologia do Piauí (IFPI) e no Ensino Superior no curso de Letras-
-Inglês da UESPI. E-mail: E-mail: renatacristina@phb.uespi.br.

SAULO CUNHA DE SERPA BRANDÃO. É professor adjunto de Lín-


gua Inglesa da UFRPE/UABJ. É professor titular de Literatura, apo-
sentado, da UFPI. Formado em Letras pela FACHO, mestre e doutor
em Teoria da Literatura pela UFPE. Foi visiting scholar da Illinois
State University com pesquisa sobre a obra de Thomas R. Pynchon.
Pós-doutorado no Núcleo de Pesquisa de Informática, Literatura
e Linguística da UFSC (2003) e cumpriu um outro estágio de pós-
-doutoramento como Estagiário Sênior da CAPES na University of
Washington – Seattle (2013-2015). Publicou mais de 100 artigos em
revistas e livros.

VANESSA DE PAULA HEY. É doutoranda no Programa de Pós-gra-


duação em Letras, ênfase em estudos literários, pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR). Linha de pesquisa: literatura, história e
crítica. Atualmente, desenvolve estudos sobre a modernidade, o Mo-
dernismo e a modernização nas obras de Monteiro Lobato, Erico Ve-
rissimo e Franz Kafka.

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 457


Índice remissivo

A
Agatha Christie 6, 11, 180, 181, 182, 183, 185, 188, 190, 197
B

Beowulf 5, 9, 16, 17, 18, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 32
Bíblia 7, 12, 33, 138, 242, 244, 245, 246, 247, 248, 249, 250, 251, 252,
253, 254, 255, 256, 257, 258, 259, 260, 261, 262
Bildungsroman 6, 10, 102, 110, 112, 127, 128, 129, 130, 131, 132, 133,
134, 136
D

Depressão 13, 326, 327, 329, 330, 331, 333, 334, 335, 341, 343, 344,
345, 371
Diabo 6, 11, 137, 138, 139, 144, 148, 149, 150, 155, 159, 160
H
Horror 5, 10, 31, 38, 44, 46, 47, 50, 51, 61, 70, 72, 75, 78, 84, 93, 354
I
Inglês Antigo 9, 17, 18, 19, 20, 26
L

Língua inglesa 4, 7, 9, 11, 12, 13, 14, 18, 29, 34, 45, 48, 51, 59, 70, 90,
108, 134, 160, 178, 197, 221, 240, 261, 283, 285, 292, 305, 308, 320,
322, 324, 325, 344, 367, 387, 404, 420, 424, 446, 453, 455
Literatura africana 13, 285, 286, 289, 294, 453
Literatura Inglesa 9, 111, 448, 450, 456

458 ISABELLE MARIA SOARES & TAYNARA LESZCZYNSKI (ORGS.)


Literaturas de língua inglesa 9, 11, 13, 14, 29, 48, 70, 90, 108, 134, 160,
178, 197, 221, 240, 261, 283, 305, 325, 344, 367, 387, 404, 424, 446
M

Macbeth 5, 9, 10, 30, 31, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50,
51, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 70, 71
Modelismo 12, 263, 264, 265, 267, 268, 280, 281
P
Pós-colonialismo 8, 14, 287, 289, 290, 306, 356, 405, 406, 411, 412,
414, 416, 417, 419, 424
R
Romance histórico 7, 13, 308, 309, 310, 311, 312, 313, 314, 318, 321,
324, 325
S

Sexualidade 11, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 169, 173, 177, 178, 206,
231
Shakespeare 5, 9, 19, 30, 31, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 46,
47, 48, 49, 51, 61, 71, 160, 347, 360
Sobrenatural 10, 31, 52, 93, 94, 95, 104, 150, 152, 193, 371
W
Wuthering Heights 5, 10, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 102, 103, 108, 109

UM PERCURSO PELAS LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA 459

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