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Texto 1:
Eram as últimas horas do dia quando chegamos ao princípio da calçada que leva ao
alto de Santarém. A pouca frequência do povo, as hortas e pomares mal cultivados, as casas de
campo arruinadas, tudo indicava as vizinhanças de uma grande povoação descaída e
desamparada. O mais belo, contudo, de seus ornatos e glórias suburbanas ainda o possui a
nobre vila, não lho destruíram de todo; são os seus olivais. Os olivais de Santarém, cuja riqueza
e formosura proverbial é uma das nossas crenças populares mais gerais e mais queridas!... os
olivais de Santarém lá estão ainda. Reconheceu-os o meu coração e alegrou-se de os ver;
saudei neles o símbolo patriarcal da nossa antiga existência. Naqueles troncos velhos e
coroados de verdura, figurou-se-me ver, como nas selvas encantadas do Tasso, as venerandas
imagens de nossos passados; e no murmúrio das folhas, que o vento agitava a espaços, ouviu o
triste suspirar de seus lamentos pela vergonhosa degeneração dos netos...
[...]
Mas era, era essa. A antiga capela-real, a veneranda igreja da Alcáçova foi passando
por sucessivos reparos e transformações, até que chegou a esta miséria.
Perverteu-se por tal arte o gosto entre nós, desde o meio do século passado
especialmente, os estragos do terremoto grande quebraram por tal modo o fio de todas as
tradições da arquitetura nacional, que na Europa, no mundo todo talvez, se não ache um país
onde, a par de tão belos monumentos antigos como os nossos, se encontrem tão vilãs, tão
ridículas e absurdas construções públicas como essas quase todas que há um século se fazem
em Portugal.
Nos reparos e reconstruções dos templos antigos é que este péssimo estilo, esta
ausência de todo estilo, de toda a arte mais ofende e escandaliza.
[...]
Não se pode cair mais baixo em arquitetura do que nós caímos quando, depois que o
Marquês de Pombal nos traduziu, em vulgar e arrastada prosa, os rococós de Luís XV, que, no
original, pelo menos, eram floridos, recortados, caprichosos e galantes como um madrigal,
esse estilo bastardo, híbrido, degenerando progressivamente e tomando presunções de
clássico, chegou nos nossos dias até ao chafariz do Passeio Público!
[...]
Muito me pesa, leitor amigo, se outra coisa esperavas das minhas Viagens, se te falto,
sem o querer, a promessas que julgaste ver nesse título, mas que eu não fiz decerto. Querias
talvez que te contasse, marco a marco, as léguas da estrada? palmo a palmo, as alturas e
larguras dos edifícios? algarismo por algarismo, as datas da sua fundação? que te resumisse a
história de cada pedra, de cada ruína?...
[...]
— Escuta! — disse eu ao leitor benévolo no fim do último capítulo. Mas não basta que
escute, é preciso que tenha a bondade de se recordar do que ouviu no capítulo XXV e da
situação em que aí deixamos os dous primos, Carlos e Joaninha.
Neste despropositado e inclassificável livro das minhas Viagens, não é que se quebre,
mas enreda-se o fio das histórias e das observações por tal modo, que, bem o vejo e o sinto, só
com muita paciência se pode deslindar e seguir em tão embaraçada meada.
[...]
Não chamem exagerado ao que vai escrito no fim do último capítulo; senti o que
escrevi, senti muito mais do que escrevi. O que poderá haver é desacerto nas palavras, porque
em verdade não sei explicar a impressão que me faz uma ruína neste estado. Desafinam-me os
nervos, vibram-me numa discordância e dissonância insuportável.
(Almeida Garrett. Viagens na minha terra. 1846. Fragmentos colhidos dos capítulos XXVIII,
XXXII e XLII)
Romantismo: nacionalismo, criticidade, revisão de valores
Texto 2:
Texto 3:
Não chamem exagerado ao que vai escrito no fim do último capítulo; senti o que
escrevi, senti muito mais do que escrevi. O que poderá haver é desacerto nas palavras, porque
em verdade não sei explicar a impressão que me faz uma ruína neste estado. Desafinam-me os
nervos, vibram-me numa discordância e dissonância insuportável. Queria ver antes estes
altares expostos às chuvas e aos ventos do céu — que o sol os queimasse de dia — que à noite,
à luz branca da lua, ou ao tíbio reflexo das estrelas, piasse o mocho e sussurrasse a coruja
sobre seus arcos meio caídos.
Não me parecia profanado o templo assim, nem descaído de majestade o monumento.
Podia ajoelhar-me no meio das pedras soltas, entre as ervas úmidas, e levantar o meu
pensamento a Deus, o meu coração à glória, à grandeza, o meu espírito às sublimes aspirações
da idealidade. O material, o grosseiro, o pesado da vida não me vinham afligir aí.
Deus, a ideia grande do mundo — Deus, a Razão Eterna — Deus, o amor — Deus, a
glória — Deus, a força, a poesia e a nobreza da alma — Deus está nas ruínas escalavradas do
Coliseu, como nos zimbórios de bronze e mármore de S. Pedro.
Mas aqui!... nos pardieiros de um convento velho, consertado pelas Obras Públicas
para servir de quartel de soldados — aqui não habita espírito nenhum.
Quero-me ir embora daqui!
E como? sem ver o túmulo del-rei Fernando? Não pode ser, é verdade.
Onde está ele?
No coro alto.
Subamos ao coro alto.
O belo jazigo do rei formoso e frívolo, tão dado às delícias do prazer como foi seu pai
às austeridades da justiça, em que estado ele está! Ó nação de bárbaros! Ó maldito povo de
iconoclastas que é este!
(Almeida Garrett. Viagens na minha terra. 1846. Fragmento colhido do capítulo XLII)
Texto 4:
Prólogo do Autor
A história das agonias íntimas geradas pela luta desta situação excepcional do clero
com as tendências naturais do homem seria bem dolorosa e variada, se as fases do coração
tivessem os seus anais como os têm as gerações e os povos. A obra da lógica potente da
imaginação que cria o romance seria bem grosseira e fria comparada com a terrível realidade
histórica de uma alma devorada pela solidão do sacerdócio.
E, por isso mesmo que sobre ela pesava o mistério, a imaginação vinha aí para suprir a
história. Da ideia do celibato religioso, das suas consequências forçosas e dos raros vestígios
que destas achei nas tradições monásticas nasceu o presente livro.
Desde o palácio até a taberna e o prostíbulo; desde o mais esplêndido viver até o
vegetar do vulgacho mais rude, todos os lugares e todas as condições têm tido o seu
romancista. Deixai que o mais obscuro de todos seja o do clero. Pouco perdereis com isso.
[...]
Por isso na minha concepção complexa, cujos limites não sei de antemão assinalar, dei
cabida à crônica-poema, lenda ou o que quer que seja do presbítero godo: dei-lha, também,
porque o pensamento dela foi despertado pela narrativa de certo manuscrito gótico, afumado
e gasto do roçar dos séculos, que outrora pertenceu a um antigo mosteiro do Minho.
O monge de Cister, que deve seguir-se a Eurico, teve, proximamente, a mesma origem.
Ajuda — 1843.