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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS

FACULDADE DE LETRAS / CURSO DE PORTUGUÊS


DISCIPLINA: LITERATURA DE LÍNGUA PORTUGUESA 2
ORIENTADOR: PROF. DR. ROBERTO SARMENTO LIMA

Romantismo: nacionalismo, criticidade, revisão de valores

Texto 1:

Eram as últimas horas do dia quando chegamos ao princípio da calçada que leva ao
alto de Santarém. A pouca frequência do povo, as hortas e pomares mal cultivados, as casas de
campo arruinadas, tudo indicava as vizinhanças de uma grande povoação descaída e
desamparada. O mais belo, contudo, de seus ornatos e glórias suburbanas ainda o possui a
nobre vila, não lho destruíram de todo; são os seus olivais. Os olivais de Santarém, cuja riqueza
e formosura proverbial é uma das nossas crenças populares mais gerais e mais queridas!... os
olivais de Santarém lá estão ainda. Reconheceu-os o meu coração e alegrou-se de os ver;
saudei neles o símbolo patriarcal da nossa antiga existência. Naqueles troncos velhos e
coroados de verdura, figurou-se-me ver, como nas selvas encantadas do Tasso, as venerandas
imagens de nossos passados; e no murmúrio das folhas, que o vento agitava a espaços, ouviu o
triste suspirar de seus lamentos pela vergonhosa degeneração dos netos...

Estragado como os outros, profanado como todos, o olival de Santarém é ainda um


monumento.

Os povos do meio-dia, infelizmente, não professam com o mesmo respeito e


austeridade aquela religião dos bosques, tão sagrada para as nações do norte. Os olivais de
Santarém são exceção: há muito pouco entre nós o culto das árvores.

[...]

Depois de muito procurar entre pardieiros e entulhos, achamo-la enfim a igreja de


Santa Maria de Alcáçova. Achamos, não é exato: ao menos eu, por mim, nunca a achava, nem
queria acreditar que fosse ela quando ma mostraram. A real colegiada de Afonso Henriques, a
quase-catedral da primeira vila do reino, um dos principais, dos mais antigos, dos mais
históricos templos de Portugal, isto?... esse igrejório insignificante de capuchos! mesquinha e
ridícula massa de alvenaria, sem nenhuma arquitetura, sem nenhum gosto! risco, execução e
trabalho de um mestre pedreiro de aldeia e do seu aprendiz! É impossível.

Mas era, era essa. A antiga capela-real, a veneranda igreja da Alcáçova foi passando
por sucessivos reparos e transformações, até que chegou a esta miséria.

Perverteu-se por tal arte o gosto entre nós, desde o meio do século passado
especialmente, os estragos do terremoto grande quebraram por tal modo o fio de todas as
tradições da arquitetura nacional, que na Europa, no mundo todo talvez, se não ache um país
onde, a par de tão belos monumentos antigos como os nossos, se encontrem tão vilãs, tão
ridículas e absurdas construções públicas como essas quase todas que há um século se fazem
em Portugal.
Nos reparos e reconstruções dos templos antigos é que este péssimo estilo, esta
ausência de todo estilo, de toda a arte mais ofende e escandaliza.

[...]

Não se pode cair mais baixo em arquitetura do que nós caímos quando, depois que o
Marquês de Pombal nos traduziu, em vulgar e arrastada prosa, os rococós de Luís XV, que, no
original, pelo menos, eram floridos, recortados, caprichosos e galantes como um madrigal,
esse estilo bastardo, híbrido, degenerando progressivamente e tomando presunções de
clássico, chegou nos nossos dias até ao chafariz do Passeio Público!

[...]

Muito me pesa, leitor amigo, se outra coisa esperavas das minhas Viagens, se te falto,
sem o querer, a promessas que julgaste ver nesse título, mas que eu não fiz decerto. Querias
talvez que te contasse, marco a marco, as léguas da estrada? palmo a palmo, as alturas e
larguras dos edifícios? algarismo por algarismo, as datas da sua fundação? que te resumisse a
história de cada pedra, de cada ruína?...

Vai-te ao Padre Vasconcelos; e quanto há de Santarém, peta e verdade, aí o acharás


em amplo fólio e gorda letra: eu não sei compor desses livros, e quando soubesse, tenho mais
que fazer.

[...]

— Escuta! — disse eu ao leitor benévolo no fim do último capítulo. Mas não basta que
escute, é preciso que tenha a bondade de se recordar do que ouviu no capítulo XXV e da
situação em que aí deixamos os dous primos, Carlos e Joaninha.

Neste despropositado e inclassificável livro das minhas Viagens, não é que se quebre,
mas enreda-se o fio das histórias e das observações por tal modo, que, bem o vejo e o sinto, só
com muita paciência se pode deslindar e seguir em tão embaraçada meada.

[...]

Não chamem exagerado ao que vai escrito no fim do último capítulo; senti o que
escrevi, senti muito mais do que escrevi. O que poderá haver é desacerto nas palavras, porque
em verdade não sei explicar a impressão que me faz uma ruína neste estado. Desafinam-me os
nervos, vibram-me numa discordância e dissonância insuportável.

(Almeida Garrett. Viagens na minha terra. 1846. Fragmentos colhidos dos capítulos XXVIII,
XXXII e XLII)
Romantismo: nacionalismo, criticidade, revisão de valores

Texto 2:

Este é que é o pinhal de Azambuja?


Não pode ser.
Esta, aquela antiga selva, temida quase religiosamente como um bosque druídico! E eu
que, em pequeno, nunca ouvia contar história de Pedro de Malas-Artes que logo, em
imaginação, lhe não pusesse a cena aqui perto!... Eu que esperava topar a cada passo com a
cova do Capitão Roldão e da dama Leonarda!... Oh! que ainda me faltava perder mais esta
ilusão...
Por quantas maldições e infernos adornam o estilo dum verdadeiro escritor romântico,
digam-me, digam-me: onde estão os arvoredos fechados, os sítios medonhos desta espessura?
Pois isto é possível, pois o pinhal da Azambuja é isto?... Eu que os trazia prontos e recortados
para os colocar aqui todos os amáveis Salteadores de Schiller, e os elegantes facinorosos de
Auberge-des-Adrets, eu hei de perder os meus chefes d’obra! Que é perdê-los isto — não ter
onde os pôr!...
Sim, leitor benévolo, e por esta ocasião te vou explicar como nós hoje em dia fazemos
a nossa literatura. Já não me importa guardar segredo; depois desta desgraça não me importa
já nada. Saberás, pois, ó leitor, como nós outros fazemos o que te fazemos ler.
Trata-se de um romance, de um drama — cuidas que vamos estudar a história, a
natureza, os monumentos, as pinturas, os sepulcros, os edifícios, as memórias da época? Não
seja pateta, senhor leitor, nem cuide que nós o somos. Desenhar caracteres e situações do vivo
na natureza, colori-los das cores verdadeiras da história... isso é trabalho difícil, longo,
delicado, exige um estudo, um talento, e sobretudo um tato!...
Não senhor: a coisa faz-se muito mais facilmente. Eu lhe explico.
Todo o drama e todo o romance precisa de:
Uma ou duas damas,
Um pai,
Dois ou três filhos, de dezenove a trinta anos,
Um criado velho,
Um monstro, encarregado de fazer as maldades,
Vários tratantes, e algumas pessoas capazes para intermédios.
Ora bem, vai-se aos figurinos franceses de Dumas, de Eug. Sue, de Vítor Hugo, e
recorta a gente, de cada um deles, as figuras que precisa, gruda-as sobre uma folha de papel
da cor da moda, verde, pardo, azul — como fazem as raparigas inglesas aos seus álbuns e
scrapbooks; forma com elas os grupos e situações que lhe parece; não importa que sejam mais
ou menos disparatados. Depois vai-se às crônicas, tiram-se uns poucos de nomes e de
palavrões velhos; com os nomes crismam-se os figurões, com os palavrões iluminaram... (estilo
de pintor pintamomos). E aqui está como nós fazemos a nossa literatura original.

(Almeida Garrett. Viagens na minha terra. 1846. Fragmento colhido do capítulo V)

Texto 3:

Não chamem exagerado ao que vai escrito no fim do último capítulo; senti o que
escrevi, senti muito mais do que escrevi. O que poderá haver é desacerto nas palavras, porque
em verdade não sei explicar a impressão que me faz uma ruína neste estado. Desafinam-me os
nervos, vibram-me numa discordância e dissonância insuportável. Queria ver antes estes
altares expostos às chuvas e aos ventos do céu — que o sol os queimasse de dia — que à noite,
à luz branca da lua, ou ao tíbio reflexo das estrelas, piasse o mocho e sussurrasse a coruja
sobre seus arcos meio caídos.
Não me parecia profanado o templo assim, nem descaído de majestade o monumento.
Podia ajoelhar-me no meio das pedras soltas, entre as ervas úmidas, e levantar o meu
pensamento a Deus, o meu coração à glória, à grandeza, o meu espírito às sublimes aspirações
da idealidade. O material, o grosseiro, o pesado da vida não me vinham afligir aí.
Deus, a ideia grande do mundo — Deus, a Razão Eterna — Deus, o amor — Deus, a
glória — Deus, a força, a poesia e a nobreza da alma — Deus está nas ruínas escalavradas do
Coliseu, como nos zimbórios de bronze e mármore de S. Pedro.
Mas aqui!... nos pardieiros de um convento velho, consertado pelas Obras Públicas
para servir de quartel de soldados — aqui não habita espírito nenhum.
Quero-me ir embora daqui!
E como? sem ver o túmulo del-rei Fernando? Não pode ser, é verdade.
Onde está ele?
No coro alto.
Subamos ao coro alto.

Oh! que não sei de nojo como o conte!

O belo jazigo do rei formoso e frívolo, tão dado às delícias do prazer como foi seu pai
às austeridades da justiça, em que estado ele está! Ó nação de bárbaros! Ó maldito povo de
iconoclastas que é este!

(Almeida Garrett. Viagens na minha terra. 1846. Fragmento colhido do capítulo XLII)

Texto 4:

Prólogo do Autor

Para as almas, não sei se diga demasiadamente positivas, se demasiadamente


grosseiras, o celibato do sacerdócio não passa de uma condição, de uma fórmula social
aplicada a certa classe de indivíduos cuja existência ela modifica vantajosamente por um lado
e desfavoravelmente por outro. A filosofia do celibato para os espíritos vulgares acaba aqui.
Aos olhos dos que avaliam as coisas e os homens só pela sua utilidade social, essa espécie de
insulação doméstica do sacerdote, essa indireta abjuração dos afetos mais puros e santos, os
da família, é condenada por uns como contrária aos interesses das nações, como danosa em
moral e em política, e defendida por outros como útil e moral. Deus me livre de debater
matéria tantas vezes disputada, tantas vezes exaurida pelos que sabem a ciência do mundo e
pelos que sabem a ciência do Céu! Eu por minha parte, fraco argumentador, só tenho pensado
no celibato à luz do sentimento e sob a influência da impressão singular que desde verdes
anos fez em mim a ideia da irremediável solidão da alma a que a Igreja condenou os seus
ministros, espécie de amputação espiritual, em que para o sacerdote morre a esperança de
completar a sua existência na Terra. Suponde todos os contentamentos, todas as consolações
que as imagens celestiais e a crença viva podem gerar, e achareis que estas não suprem o
triste vácuo da soledade do coração. Dai às paixões todo o ardor que puderdes, aos prazeres
mil vezes mais intensidade, aos sentidos a máxima energia e convertei o mundo em paraíso,
mas tirai dele a mulher, e o mundo será um ermo melancólico, os deleites serão apenas o
prelúdio do tédio [...]

A história das agonias íntimas geradas pela luta desta situação excepcional do clero
com as tendências naturais do homem seria bem dolorosa e variada, se as fases do coração
tivessem os seus anais como os têm as gerações e os povos. A obra da lógica potente da
imaginação que cria o romance seria bem grosseira e fria comparada com a terrível realidade
histórica de uma alma devorada pela solidão do sacerdócio.

Essa crônica de amarguras procurei-a já pelos mosteiros, quando eles desabavam no


meio das nossas transformações políticas. Era um buscar insensato. Nem nos códices
iluminados da Idade Média, nem nos pálidos pergaminhos dos arquivos monásticos estava ela.
[...]

E, por isso mesmo que sobre ela pesava o mistério, a imaginação vinha aí para suprir a
história. Da ideia do celibato religioso, das suas consequências forçosas e dos raros vestígios
que destas achei nas tradições monásticas nasceu o presente livro.

Desde o palácio até a taberna e o prostíbulo; desde o mais esplêndido viver até o
vegetar do vulgacho mais rude, todos os lugares e todas as condições têm tido o seu
romancista. Deixai que o mais obscuro de todos seja o do clero. Pouco perdereis com isso.

[...]

Por isso na minha concepção complexa, cujos limites não sei de antemão assinalar, dei
cabida à crônica-poema, lenda ou o que quer que seja do presbítero godo: dei-lha, também,
porque o pensamento dela foi despertado pela narrativa de certo manuscrito gótico, afumado
e gasto do roçar dos séculos, que outrora pertenceu a um antigo mosteiro do Minho.

O monge de Cister, que deve seguir-se a Eurico, teve, proximamente, a mesma origem.

Ajuda — 1843.

(Alexandre Herculano. Eurico, o presbítero. 1844. Prólogo do autor)

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