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Oswaldo Cruz recordado por Fernando Namora

A febre amarela aportara ao Brasil em 1849, numa escuna americana que fundeara na Baía com um
doente a bordo. Algumas pessoas logo contraíram a moléstia e, no mês seguinte, o navio Navarra propagou a
epidemia da Baía para a capital. Foi um célebre e voraz incêndio. Todos os anos morriam, só no Rio, quinze
mil contagiados. E o Brasil parecia resignado a essa mortandade e à gangrena social em que ela se emoldurava:
as providências eram mínimas, as condições sanitárias reflectiam o marasmo que amodorrara as actividades
do país. «O Brasil agoniza» - dizia-se, numa voz de exéquias, por todas as bandas. No porto de Santos viam-se
cardumes de navios ancorados e ao abandono, pois não se encontrava gente disposta a equipá-los. Relacionava-
se febre-amarela com navegação. Em 1838, um só veleiro, aproando à Gâmbia vindo da Serra Leoa, bastara
para contaminar metade da população.
O novo presidente não desconhecia que qualquer plano dinamizador da economia brasileira seria falaz
se as doenças epidémicas, que desgastavam as energias do povo, não fossem combatidas de um modo resoluto.
Era por aí que se devia começar. E, por isso, escolheu um nome ilustre, o Dr. Emídio Sales Guerra, médico
respeitado e homem de carácter, para reabilitar o país dessa nódoa afrontosa. O médico, porém, escusou-se,
propondo, em seu lugar, um jovem experimentado nessas andanças: Oswaldo Cruz. Repetiu-se o espanto e
repetiu-se a frase: «Mas quem é esse Oswaldo Cruz?».
Tal espanto, contudo, se sejustificara no barão Pedro Afonso, não assentava num estadista que se
propunha inaugurar uma era revolucionária na administração publica, visto que, cntretanto, “esse” Oswaldo
Cruz fizera frente a um dos assaltos da peste. A escassa popularidade do higienista só exprimia, afinal, quanto
os problemas sanitários andavam arredados dos homens da política. Todavia, Rodrigues Alves não discutiu
a sugestão: embora necessitasse de alguém sabedor, destemido e calejado, que não se rendesse aos primeiros
escolhos da desmesurada tarefa, e um novato, para mais desconhecido, fosse uma carta fechada, decidiu
convidar imediatamente o recomendado para director-geral da Saúde Publica.
Logo os incrédulos, os maldizentes profissionais e os despeitados se mobilizaram contra a leviana nomeação:
como poderia confiar-se o saneamento do Brasil a um obscuro medicastro de trinta anos? Mas esse cepticismo,
que nem sequer se rebuçava, não quebrou o ímpeto de Oswaldo Cruz, que obteve do presidente a garantia
de que lhe seriam dados plenos poderes para decretar uma ofensiva rude e dispendiosa. Em troca, penhorou
arrojadamente a sua palavra:
- Em quatro anos, Sr. Presidente, eliminarei a febre-amarela do Rio de Janeiro.
Foram anos de luta sem quartel. Não eram apenas as cordas de mosquitos c os seus antros, lixos e águas
estagnadas, que Oswaldo Cruz tinha de defrontar, mas sobretudo a rotina, a ignorância do povo, o derrotismo e a
ciumeira de quantos se sentiam humilhados por ser um fedelho sem títulos a pôr e dispor das autoridades sanitárias.
Entre estas, armou-se imediatamente uma ala esquerda, que denunciou ao público a fragilidade científica das medidas,
violentas e arrogantes, impostas pelo ingénuo director da Saúdc - para que desbaratar dinheiro e esforço na secagem de
um labirinto de charcos? Para que fazer queimadas espectaculares de milhentos montículos de lixo? Para que derramar
criminosamente petróleo nos tanques e nos lagos da cidade, isolar doentes, perseguir os supostos propagadores -se
ninguém, até aí, pudera asseverar, irrefutavclmente, donde provinha o mal e como se transmitia? Para que acirrar o
pânico, numa tonta caça às bruxas, se o agente da febre-amarela nunca fora encontrado nem no sangue dos morbosos
nem no franzino corpo do mosquito? Se a injecção de sangue de um enfermo atacado da moléstia não a reproduzira,
para que submeter o povo a tratos severos c grotescos? O plano sanitário é uma loucura! - apregoava-se num crescendo
de irritação.
Essa campanha de descrédito contra Oswaldo Cruz e o governo que o apadrinhava foi sendo dirigida por
camarilhas poderosas. No Parlamento, na imprensa, nas associações médicas, o nome de Oswaldo Cruz era um pretexto
de sanha e chacota. As iniciais da Directoria-Geral de Saúde Publica serviram para compor esce refrão: «Dinheiro
Gasto Sem Proveito.» A sátira mordaz era contundente e eficaz, como todas as sátiras, e só alguém de vontade granítica
lhe resistiria. O presidente Rodrigues Alves, embora acusado por todos os detractores, impressionara.se com a ferrenha
serenidade de Oswaldo Cruz e mantinha-se fiel ao apoio em que se comprometera. O higienista, em vez de se malbaratar
em polémicas, elaborou um Código Sanitário, difundido sob o título «Aviso ao povo» nos mesmos jornais em que os
zoilos o desafiavam à discussão, distribuiu breviários sobre a epidemiologia da febre-amarela, mobilizando tudo e todos
com tão empolgante pertinácia que mesmo os descrentes se iam receando daquilo que se vangloriavam de desdenhar.

Osvaldo Cruz repetia os seus comunicados com uma insistência que, por vezes, irritava o leitor. Mas essa
reacção era prevista. Que repontassem, que esbravecessem, pois, ao fazê-lo, mostravam que já não se sentiam alheios
ao acontecimento. De temer, seria a indiferença. («Está hoje provado», porfiava ele, «que os mosquitos ou pcrnilongos
transmitem a febre-amarela. Defendam-se, combatendo o mosquito!) E a mesma advertência e o mesmo apelo eram
sublinhados em termos idênticos, dia após dia, através de rodos os meios de difusão, para que em ninguém restassem
duvidas de que, desaparecido o insecto responsável, estariam libertos da epidemia. O Stegomya punha os ovos nas
imundícies e nas águas paradas, onde se desenvolviam as larvas: era necessário, pois, destruí-los nesses coitos, estorvar-
lhes a medrança.
Oswaldo Cruz não se apresentava como um inovador, nunca deixando de se estribar na experiência cubana: «A
aplicação destas medidas na cidade de Havana deu completo resultado, extinguindo totalmente a febre-amarela. Em
pouco tempo, acabou-se com uma epidemia que durava havia mais de um século.» Muitos negavam, porém, as deduções
científicas desse facto. Mas que importava que uns tantos, ressabiados na sua vaidade ferida, ou cúmplices de interesses
mesquinhos, continuassem a difamá-lo, a urdir maquinações, a citar, ao desbarato, autores e livros estrangeiros? Não era
ele que estava em causa, mas sim o destino de um povo degradado pela doença. Perseveraria, sem desalentos, a badalar
os seus «conselhos ao povo», até que esse povo tomasse posição na contenda e, por fim, varresse do terreiro os advogados
malévolos.
O director de Saúde, ao explicar à populaça que os velhos métodos de desinfecção da roupa e das camas eram
improfícuos e que a profilaxia deveria atender ao isolamento dos doentes, ao uso de telas e mosquiteiros e à eliminação
dos insectos vectores e dos pântanos que os abrigavam, esquecia-se, porém, que a sua estratégia, mesmo tendo em conta
os antecedentes de Cuba, era, a muitos títulos, revolucionária: com efeito, ela tinha por fito suprimir o agente causal,
não só do indivíduo, mas também dos agrupamentos humanos. Eram esses os novos esteios da medicina sanitária, a
que a teoria microbiana das doenças viera fornecer uma base racional: impedimento do contágio ou da difusão dos
microrganismos patogénicos, pelo extermínio dos veículos transmissores, e criação ou exaltação das defesas específicas,
através das vacinas. Ao longo da sua carreira de higienista, tão curta mas tão árdua, sempre que estava indicada uma,
outra ou o conjunto destas tácticas, Oswaldo Cruz actuou de forma que a sua obra se inscrevesse na história como das
demonstrações mais eloquentes dos benefícios trazidos à humanidade pela prevenção, em escala colectiva, das doenças
infecciosas.
Entretanto, porém, no desaforo das rivalidades e das incompreensões, o Código Sanitário era crismado
de «Código das Torturas» e os jornais clamavam que «a vida alheia não podia estar à mercê de experimentações
duvidosas e de intolerâncias sectárias».

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