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Memórias do confinamento. Pandemia e Pandemônio.

Ando com medo. Afirmo, desde logo, que histerias coletivas não me
comovem, mas ao contrário fazem-me pensar no sentido inverso. Por alguma razão que
ainda desconheço, sempre que quase todos apontam para um lado, teimo olhar para o
outro. Talvez cacoete de ler sobre o passado. A história de todos os tempos faz crer que
as maiorias, sempre ou quase sempre, estavam erradas.

Ando com medo da preguiça, esse indicioso vírus que a todos


acompanha, e é tanto mais presente quanto mais próxima a velhice. Nesses já quinze
dias de confinamento (acho que perdi as contas), acostumei-me ao dolce far niente
imposto pelas proféticas autoridades estaduais e municipais que nos fizeram crer na
calamidade que se avizinhava.

Desde então, salvo por alguns pequenos incidentes que podem ser
resolvidos em par de hora de trabalho diário, aprendi a conviver com o ócio. O ócio,
entretanto, exige método e rotina para não atrair o desespero, embora as circunstâncias
econômicas já sejam suficientes para invocá-lo.

Já dispunha de rede de descanso estendida no porão da minha casa,


lembrança das inclemências no verão, na busca de espaço mais fresco. A bendita
transformou-se em meu sítio habitual, onde trato de avivar o plano de aposentadoria,
com as leituras há muito adiadas em nome da azáfama das ocupações profissionais.

A preocupação é cada vez maior para quando tudo voltar ao normal e


os esforços haverão de ser titânicos, para todos, na remoção dos escombros acumulados
pela inatividade. Experimento verdadeiro terror de não o conseguir, depois de
experimentar os prazeres da vilegiatura sine die.

Tento me convencer de que a situação é excepcional e que exige


soluções excepcionais, devendo todos estarmos preparados para dores da
excepcionalidade e, principalmente, para empenhar os maiores esforços na futura e
penosa recuperação, mas os fatos constantemente me amofinam.

Tamanho transtorno, jamais ocorrido na história da humanidade,


nem por outras pandemias ou guerras mundiais, despertou-me as piores expectativas.
Comecei lendo sobre a Peste Negra e fiquei a esperar aqueles eventos descritos pelos
cronistas da época (Século XIV). Todos os dias a expectativa fazia-me aguardar pelos
cadáveres insepultos, ver nos meios de comunicação os hospitais do país regurgitando
doentes e o chamado à solidariedade, senão em cuidados para com os enfermos, pelo
menos nas orações, único remédio para mal que não conhecemos ou sabemos
combater.

Leio que no Brasil, a essa altura (03/4/2020), três centenas


morreram de ou simplesmente com o vírus, número que, em situações anteriores, a
ninguém alarmaria, bastando conferir os boletins epidemiológicos disponíveis no site
do Ministério da Saúde. A gravidade de determinada situação, no meu modesto
entender, deve sempre ser comparada com outras e, para decidirmos sobre o quão
grave são os tempos que nos acometem, seria necessário saber do que antes se tratava,
isto é, quantas mortes, no país de 220 milhões de habitantes, estamos tratando cada
mês, das doenças em geral. Nesse momento, tenho a firme impressão de que paramos
de morrer de outras causas.

Desconfio que os seres humanos continuam morrendo, apesar de


nossa brutal insensibilidade. Leio que, em março de 2020, o México, que apresentou o
estupefaciente número de trinta mortes de ou com o vírus, experimentou a modesta
estatística de 2.500 mortos pela violência no narconegócio. Suponho que os traficantes
estão perdendo dinheiro com o confinamento, aumentando as disputas territoriais.

O curioso de tudo é que as vozes, que aparentemente soam-me


portadoras de bom-senso, são todas tidas e havidas como de loucos negacionistas.
Dizer que a brutal crise econômica já chegou (os meios de comunicação apenas se
esqueceram de noticiá-la), passou a significar descaso para com a vida humana, valor
essencial a ser preservado.

Por aqui, no torrão natal, leio que são 5 cinco os mortos desde o início
da calamidade. Quase todos idosos, ou portadores de comorbidades. Informa-nos o
Ministério da Saúde que a primeira morte de ou com o vírus, aconteceu nas Minas
Gerais, a 23 de janeiro, donde concluo que ele está entre nós desde antes daquela data,
alastrando-se com a força que sua natureza impõe, explicando que eu próprio, ainda em
janeiro, tenha caído doente, por uma semana, com estranhos sintomas não muito
comuns em infecções anteriores, que atacou meu sistema imunológico, deitando-me à
cama por uma interminável semana.

Fico pensando na taxa de mortalidade deste estado em que vivem 12


milhões de almas nesses meses comandados pelo vírus da coroa, provavelmente 9.000
pessoas por mês, se deixamos de considerar que, entre nós, a mortalidade deve ser algo
maior com o percentual de idosos que albergamos.

Sobre o vírus, por tudo que ele evoca, desde o medo ancestral dos
inimigos invisíveis até os movimentos geopolíticos (e os há, tenham certeza), tenho
implicado com o nome. Não consigo entender que o bicho (o vírus é meio vivo e meio
morto) nascido na China e estudado mundo afora, tenha o nome derivado do espanhol.

A mente perversa responsável pelo batismo (e provavelmente também


pela disseminação) não economizou imaginação. A Espanha não vem sendo poupada
pela história. Império maior, no Século XVI, despertou reações, em parte pela resposta
autóctone das colônias (como passou nos Países Baixos, hoje Holanda e Bélgica), sendo
alvo da guerra de propaganda. A Inquisição Espanhola foi elevada à maior atrocidade
de que se tem notícia, todos esquecendo de situar o fato em seu tempo, no qual a
Justiça Secular era muito mais violenta. Não serve à escatológica narrativa que a
Inquisição fosse até branda para os padrões de sua época.

Depois, coube aos espanhóis a responsabilidade pelo extermínio dos


selvagens na futura América, como se eles próprios não vivessem, entre si, às turras,
com repetidas histórias de guerras, dominação, submissão e genocídio. Quanto aos
incensados nativos do Novo Mundo, os espanhóis mataram-nos em pequeno número,
nos inevitáveis conflitos entre as culturas. A mortandade deve ser debitada aos vírus e
bactérias embarcadas nos navios que aqui chegaram, para os quais os Europeus, fazia
gerações, já tinham desenvolvido imunidade.
Na sequência, não sendo partícipe da 1ª Guerra, desfrutando de
relativa liberdade de imprensa que podia relatar os fatos do conflito e a pandemia que,
em seu tempo, tomou conta da Europa, foi a doença denominada como “Gripe
Espanhola”. Não poucos, entre os que pesquisaram o início daquela pandemia,
identificaram sua origem chinesa (a tese comumente aceita é de que veio junto com
tropas americanas aquarteladas no Kansas, antes de rumarem à Europa), assim como
antes a Peste Negra, e mais recentemente as gripes aviárias, suína, o H1N1 e,
finalmente, o amaldiçoado corona-vírus, batizado com o nome em espanhol.

Isso não bastasse, é na Espanha que a pandemia, neste momento,


vem demonstrando sua face mais medonha. Serão necessários muitos anos e estudos
sérios para encontrar as efetivas causas do fenômeno. Até hoje não se sabe exatamente
tudo sobre as pandemias anteriores. O certo é que parece injusto dar-se nome espanhol
para essa calamidade.

Nada disso evita a constatação mais dramática desses tempos


bicudos: vamos aceleradamente para a pior crise econômica de muitas gerações, a
primeira inteiramente evitável, fruto do medo.

Não seria necessário, nessa altura, afirmar que o Estado não cria
riqueza. Apenas administra, muito mal, aquela que é extorquida dos cidadãos pelos
tributos. Mas se debita à custa do Estado dar condições econômicas a todos pelo tempo
em que for necessário o isolamento.

É uma óbvia impossibilidade em si mesma. Se a sociedade não gera


riqueza o Estado não pode arrecadar, e menos ainda poderá se sobrepor à produção dos
indivíduos e empresas para sustentar todo mundo.

O confinamento é inviável em si mesmo e deverá, em algum


momento, muito mais cedo do que tarde, ser levantado, quando a doença ainda estará
por aí a se espalhar, resultando, no mínimo, a constatação de que a quarentena foi
inútil no plano médico-sanitário, mas horripilante para a economia.

Os afirmacionistas (contrário de negacionistas) não tiveram o pudor


de lembrar que tudo, principalmente a saúde de que hoje dispomos, é fruto do
desenvolvimento econômico e tecnológico, justamente o que querem brecar em nome
da saúde, nesse relativismo moral que nos custará sangue e vidas.

Tal como as mortes no México com o recrudescimento da violência


dos traficantes, o desarranjo resultará em negócios que se vão, empregos que
desaparecerão, riqueza que se perde, doenças que sobrevirão e mortes que nos
assustarão.

Já sentimos, por aqui, o aumento exponencial na sensação de


insegurança com as ruas vazias e as polícias ocupadas em prender senhoras que saem
na busca do pão que lhes falta e surfistas solitários capazes de infectar os peixes que os
rodeiam. A discreta melhora na segurança que experimentamos, com muito esforço, no
ano de 2019, já se perdeu. Líderes de facções criminosas vão sendo devolvidos às ruas
nessa pandemia de insanidade.
Os modestos números cogitados no Brasil de 220 milhões de
habitantes (6000 infectados e 300 mortos a 3 de abril de 2020) tampouco podem
servir de refrigério quando o pior se avizinha, apesar de todos os avisos do cataclisma
econômico associado à baixa eficiência das medidas de isolamento, quando o vírus –
agora se sabe – estava entre nós pelo menos desde janeiro, época de verão, contatos
físicos, sexo, festas e carnaval.

Estando por aqui desde o mês de janeiro, a epidemia viral deve estar
nestas paragens perto de seu pico, que nesses casos situa-se entre doze e trezes
semanas contadas desde o início.

Afora isso, não poucos virologistas informam que nossas defesas


contra os vírus sempre dependeram da formação de anticorpos, na ausência de vacinas
ou de medicamentos que possam impedir ou atenuar a infecção. É a chamada
“imunidade de rebanho”. Nessa perspectiva, isolar os mais jovens pode ter sido a pior
das opções, pois é no corpo deles que os anticorpos são produzidos com maior
eficiência, além de serem mais numerosos mesmo nos países com maior percentual de
idosos. Mais jovens imunizados significa barreira maior para a disseminação do vírus
até sua desaparição, quando 50 a 70% da população dispuser de imunidade adquirida.

Em algum momento poderemos chegar a terrível conclusão de que


nos empenhamos em forjar a maior crise econômica de que se tem notícia, para ainda
piorar a situação dos enfermos. Temos que escolher entre a pandemia e o pandemônio.

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