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O vírus da desigualdade
Maria Clara Sottomayor
Vivemos num tempo estranho. Não são só os prazos judiciais que estão suspensos ou as escolas
fechadas, mas também nós, em alguma medida, estamos suspensos/as ou fechados/as. A viver
num limbo. Com noções de tempo e de urgência diferentes.
Somos a geração que vive, em pleno século XXI, uma pandemia, que a Europa, sempre
orgulhosa das suas tradições e do seu conhecimento, não consegue controlar. E a Europa dos
Direitos Humanos também está em risco de desaparecer, se não souber que só a cooperação
global poderá vencer a crise humanitária, em que vivemos, e a económica que se avizinha. Todos
os nacionalismos agora são perigosos. Queremos solidariedade. O projeto europeu, a «União de
direitos» não faz sentido sem ela. Assim como as pessoas se auxiliam umas às outras em
momentos de crise, e emerge um “eu-humanidade” e um “eu globalizado”, que não conhece nem
nacionalidades, nem fronteiras, queremos Estados que se ajudem uns aos outros. Assim como a
história individual de uma pessoa tem as suas memórias traumáticas, nós como sociedade,
como mundo, vivemos, neste momento, uma história global de medo da doença e da morte.
Uma história que nos separa fisicamente uns dos outros, mas que nos une nos mesmos
sentimentos. Uma história que talvez permita, na opinião dos mais otimistas, uma renovação do
mundo. Para já mostra-nos um Estado Social próximo de nós, que cuida de nós e nos protege.
Lembro-me de os críticos do Estado Social falarem em paternalismo, em Estado-Pai. Agora
temos um Estado-Mãe, e até os neoliberais o apreciam. São os rostos de mulheres, que, através
da televisão, nos entram todos os dias pela casa dentro a informar e a aconselhar os cidadãos, a
preocuparem-se com a nossa saúde, com a nossa vida. Aprecio o empenhamento dos serviços
de saúde do Estado e confio. Tranquiliza-me saber que estão lá. Não vou criticar agora os
defeitos estruturais das políticas, na saúde, no emprego e na economia. Mas medidas pontuais
de apoio às famílias e aos trabalhadores não chegam. Espero que a solidariedade tenha vindo
para ficar. E que a democracia continue a funcionar e a exigir progresso, igualdade, e, sobretudo,
humanidade. Faço votos também, como juíza e como jurista, para que a racionalidade jurídica
dominante não seja a do egoísmo e a da defesa do poder, mas passe a ser a da solidariedade e da
proteção dos mais frágeis.
A pandemia da corona vírus, diz-se, é igual para todos, porque potencialmente qualquer pessoa
o pode contrair. Basta pensar que foram infetados o Princípe Carlos de Inglaterra, Boris
Johnson e Harvey Weinstein. Mas, para além de haver grupos mais vulneráveis à doença, por
força da idade ou de problemas de saúde pré-existentes, temos também a maior
vulnerabilidade da pobreza e da falta de condições habitacionais de muitas famílias, para fazer
face à contaminação da pandemia ou para ter tempo de qualidade no confinamento à habitação.
Alguns de nós nem têm casa – os sem abrigo, os refugiados – ou vivem em situação de reclusão,
sem condições para se protegerem do perigo do contágio. Segundo as Nações Unidas, 40% da
população mundial não dispõe de uma coisa tão simples como água e sabão para lavar as mãos.
E existe uma outra desigualdade, que atravessa todas as classes sociais, a de género, e que se
agrava quando cruzada com outros fatores de discriminação, como a nacionalidade, a etnia, a
religião, a orientação sexual, a pobreza.
O confinamento na habitação gera novos encargos nas famílias com trabalho doméstico e
cuidado de crianças. Quem, nas famílias, suporta este encargo? Apetece perguntar aos
machistas, aos anti-feministas ou aos pseudo-feministas, que fingem que a resposta não é óbvia
e que a igualdade de género há muito foi atingida. Adivinhem! Estudos demonstram que são as
mulheres que continuam a suportar a maior parte do trabalho doméstico e que a partilha de
tarefas, mesmo quando existe, está muito longe de ser igualitária. Na hora de saber quem cuida
das crianças e pede licenças parentais nos locais de trabalho, toda a gente sabe, e o INE
confirma, que são as mulheres a fazê-lo. Em época de pandemia, nas famílias em que ambos os
membros do casal exercem profissões qualificadas, são as mulheres que têm de conciliar o
teletrabalho com serviços domésticos e cuidados. O teletrabalho exige concentração e não é
compatível com a dispersão e as interrupções permanentes geradas por estas tarefas. Os
padrões habituais de divisão de tarefas, já profundamente desiguais com prejuízo – financeiro
e de bem-estar – para as mulheres, tornam-se ainda mais desiguais. Às tarefas normais somam-
se encargos novos, desde estar a par das notícias até saber quais são os sintomas do vírus,
tomar decisões como sair ou ficar em casa… A pandemia cria para elas outros encargos mentais:
como nos vamos preparar para evitar o contágio? Que necessidades novas temos? Como nos
vamos organizar? Espera-se que sejam as mulheres a providenciar tudo: compras, alimentação,
roupa lavada, medicamentos. Se pensarmos também sobre quem está na linha da frente, no
sistema de saúde, a combater o vírus e a cuidar dos doentes, podemos calcular, uma vez que a
saúde é um setor feminizado, que a maioria desses profissionais serão também mulheres.
Nas últimas duas semanas, sem registo de alarme social – o femicídio parece ter-se
transformado num não assunto – duas mulheres foram assassinadas pelos maridos. Segundo
relata a comunicação social, declararam aos maridos a sua intenção de se divorciarem. A
violência doméstica parece matar mais em época de pandemia. O confinamento na habitação,
para além de gerar mais conflitos nas famílias e provavelmente mais divórcios, como dizem que
está a suceder na China, coloca mulheres e crianças, as principais vítimas de violência
doméstica, numa situação de maior risco. Não podemos esquecer que a casa, espaço de refúgio
e conforto para muitos, pode ser um lugar mais perigoso do que a rua, para quem tem de
observar todos os dias, em relações de intimidade, regras não escritas de subordinação – o
vírus da desigualdade.
Esta crise é sistémica e muitos autores têm alertado para o seu potencial transformador.
Segundo estas opiniões, o covid 19 criou uma comunhão de destino entre todos nós, que
poderá abrir as portas a uma sociedade, no futuro, mais solidária e a um Estado mais social,
assim como à queda do neoliberalismo. Outros, mais pessimistas, vaticinam os perigos do
autoritarismo, do populismo e da vigilância estatal dos cidadãos.
Quando conseguimos matar este vírus num local, renasce logo noutro, com uma nova forma. E
consegue enganar. Como fez o fascismo, apropriando-se da expressão “socialismo”, também o
vírus da desigualdade é capaz de se apropriar do conceito de igualdade para disfarçar os seus
intuitos misóginos. Como dizia Simone de Beauvoir, os direitos das mulheres têm a
particularidade de nunca serem definitivamente conquistados. Temos que permanecer
vigilantes durante toda a nossa vida. Seja qual for a evolução da sociedade e da economia,
temos que estar atentos/as às novas formas de discriminação das mulheres. E usar a nossa
imaginação para as neutralizar, a nossa coragem para as denunciar e a nossa determinação para
as destruir. A desigualdade é o vírus mais resistente da história, a pandemia mais incontrolável
do mundo.
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