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A psicanálise na era digital em tempos de pandemia.

Sem dúvida as pandemias sempre levaram as civilizações a alterarem seus comportamentos e


modificarem costumes muitas vezes centenários. Muitas formas de ciências buscaram
responder, proteger e curar seus contemporâneos. Adotaram sistemáticas diversas, afim de
superar esse enorme desafio, desde sacrifícios a deuses, danças ritualísticas, exorcismos, caça
às bruxas e muitos outros procedimentos extremamente primitivos na tentativa de lidar com
um inimigo invisível e mortal.

Hoje, temos de lidar com um inimigo muito semelhante ao de nossos antepassados, e graças a
era digital temos ferramentas mais modernas, conhecimentos avançados de várias áreas
científicas, temos inúmeros cientistas trabalhando em conjunto, imensas somas de dinheiro
financiando tudo isso, mas nos esquecemos de algo que a nossa racionalidade fez um esforço
hercúleo pra esquecer, somos humanos, e como tais temos a mesma psique , estruturada da
mesma forma, com seus traumas, pulsões, resistências, desejos e fantasias. Somos seres
guiados de pelo inconsciente.

Nos primeiros meses de 2020 observamos atônitos nossos maiores pesquisadores sem
qualquer solução para nossas dúvidas e pavores. Tem sido realmente impactante notar que
nações desenvolvidas, que dispõem de imensas fortunas, não conseguiram sequer instruir suas
populações sobre o melhor procedimento a ser adotado nessa situação.

A informação e, muitas vezes, a desinformação transmitida em tempo real a todo o planeta,


provocou pavor, violência, sensação de desamparo e imensa ansiedade. Ficamos impassíveis
diante de tanta informação conflitante, tantos números, tantos óbitos. Nós, habituados a
soluções milagrosas e quase instantâneas, disseminadas tão rápida e facilmente pela internet
nos vimos órfãos, totalmente desamparados, de certa forma sequestrados de nossas vidas,
tolhidos de nossa liberdade tão vaidosamente exposta nas mídias sociais.

Surgiram dúvidas dilacerantes. Por que não previmos que isso poderia acontecer? Se previmos
por que não prevenimos? Por que essa informação que chega de forma tão absurdamente
rápida sobre coisas completamente irrelevantes não nos informou sobre algo tão perigoso? E
após obtermos as informações, por que demoramos tanto a agir? Por que tantos duvidam? Por
que alguns seguem à risca as recomendações enquanto outros fazem festas reunindo dezenas
de pessoas? Por que tanta desinformação é disseminada? Tem alguém ganhando com o pânico
mundial gerado? Esses e outros questionamentos serão respondidos em algum momento, ou
talvez não.

Outra situação que saltou aos olhos, foi o comportamento extremamente primitivo da nossa
sociedade. Freud através de sua conceituação do inconsciente, construiu conforme ele mesmo
enumerou a terceira ferida narcísica da humanidade. E nos últimos meses vimos essa ferida
supurar, latejar, sangrar. Se Freud estivesse vivo em nossos dias não seria nenhuma novidade a
humanidade comportar-se dessa forma. Nossa forma de vida, nossos imensos privilégios,
nossas opulências e superficialidades ficaram extremamente evidentes, ficamos encarcerados
em nossos lares, com internet de altíssima velocidade, entretenimentos dos mais variados
tipos, com as pessoas que dizíamos amar com quem ansiávamos passar longas horas
conversando, tivemos que educar nossos filhos e conviver dias e mais dias com eles. Tem sido
realmente revelador, passar tantas horas em família.
Relacionamentos amorosos têm sido reavaliados, a educação dispensada aos filhos também.
Atividades antes desprezadas têm sido enaltecidas. Professores, garis, entregadores, caixas de
supermercados, profissionais da saúde, agora são nossos heróis. Quanta demagogia um único
ano da nossa existência suportaria?

A pandemia expos nosso lado obscuro, tirou de nós a ilusão de independência, escancarou
nossas vaidades. Tivemos que conversar com o nosso íntimo, assumir nossos privilégios, notar
os vazios existências de nossas vidas, e quanto nos escondíamos deles em nossas horas de
atividades laborais, que descobrimos sem qualquer importância real.

Fomos ao supermercado, enchemos nossos carrinhos de álcool em gel e papel higiênico,


ficamos indignados por não haver respiradores ou leitos de UTI para todos, vimos idosos
escalando muros e portões para fugirem de suas “prisões domiciliares”. Vimos mortos
abandonados nas ruas, vimos aproveitadores em todas as camadas da sociedade, vimos
solidariedade? Vimos, tão tímida, mas houve e sempre haverá. Mas o que vimos em massa, foi
o primitivo, foram as pulsões de vida e de morte. As vimos tão claramente quanto a tela de luz
azul dos nossos telefones inteligentes.

Fomos desnudados de nossa moral e ética como sociedade moderna. Abraçamos nossas
mazelas de forma individual, cuidamos de nós e dos nossos, e fomos confrontados com nosso
eu inconsciente. Nos vimos em pânico, lutando contra um inimigo invisível, sem ferramentas
emocionais que nos permitissem avaliar as situações de forma racional. Ficamos todos
irracionais, comandados por instintos de sobrevivência e auto preservação.

A pandemia escancarou uma sociedade culturalmente domesticada ao consumo, totalmente


dependente de sistemas econômicos que valorizam o egoísmo e a concorrência, que
impossibilita o coletivo, o respeito às regras e não consegue enxergar saídas coletivas que
beneficiem a sociedade como um todo.

Os primeiros meses de 2020 foram caóticos, muitas nações estão ruindo, sistemas econômicos
falindo, desemprego e fome em nações ricas, mas principalmente o ser humano está ruindo.
Após mais de um século a famosa frase de Freud nunca fez tanto sentido, “o eu não é mais
senhor em sua própria casa”, os indivíduos e as sociedades nas quais estão inseridos não
querem se conhecer, não é conveniente para um sistema de consumo que as pessoas
compreendam e reformulem suas frustrações. O sistema precisa ser alimentado com seres
humanos carentes, incompletos, egoístas. É preciso que a maioria esmagadora viva no
automático, seja dominada por sentimentos de inferioridade, inadequação e medo.

A psicanálise já fez muito por nós até aqui, e será ainda mais importante para nosso
desenvolvimento e adequação ao novo quadro mundial que se desenha. Sem sombra de
dúvidas, poderemos utilizar as ferramentas tecnológicas para elevar nossa sociedade a um
novo patamar, que saibamos encarar a nova realidade com mais clareza, mais
aprofundamento e bases comportamentais mais sólidas.

Contagem, 17 de junho de 2020.

Diziane Alves da Silva

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