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A Revolta da Vacina

Por Jeanne Abi-Ramia
 
 

E lá estava Oswaldo Cruz/ entre a febre e a espada/ que para ele apontada/
sem dúvida fazia jus/ àquela falta de luz/ que a imprensa semeara/ entre a
gente que gritara/ seu não à vacinação/ que por decreto de então/
obrigatória se tornara 

(Edmilson Santini, cordelista. Trecho do cordel Oswaldo Cruz, entre a Febre e


a Espada)

Considerações

A Europa como referência

A Revolta da Vacina (Fonte:


Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro)

No alvorecer do século XX, o Brasil vivia uma época em que as ideias de


“progresso”, divulgadas pelos intelectuais da geração de 1870, conduziriam às
ações que pretendiam integrar o país, recentemente republicano, à
experiência, até então vitoriosa, dos países do Ocidente considerados
adiantados. A Europa era a referência para que o Brasil passasse a ser
“moderno e progressista”. Tempos de teorias científicas ligadas ao
determinismo climático, ao positivismo, ao evolucionismo, ao darwinismo
social.

O Rio de Janeiro, nos derradeiros anos da década de 1890, era reconhecido


pelas belezas naturais, embora não fosse traduzido, no sentido sanitário,
como o melhor dos mundos. Ainda era um espaço de tessitura urbana, com
ruas estreitas, pouco cuidadas e de saneamento precário. Quadro que deixava
a população e os visitantes reféns de doenças como febre amarela, varíola,
tuberculose. Os comandantes de navios vindos de outros locais do mundo
alardeavam, sem a menor preocupação em esconder, que não aportariam na
cidade. Sabia-se que os recém-chegados vindos de todos os cantos do mundo
corriam sérios riscos de contraírem doenças infecciosas, que poderiam levá-
los à morte.

O “túmulo dos estrangeiros”

Rua do Resende fundos (Fonte:


Augusto Malta/Fundação Museu da Imagem e do Som/RJ)

A cidade era conhecida internacionalmente como “o túmulo dos


estrangeiros”. Tal referência surgiria, possivelmente, a partir dos versos
atribuídos ao cônsul austríaco no Brasil, Ludwig Ferdinand Schmid (1823-
1888), ao descrever o clima do Rio de Janeiro no verão: “Oh! sombra, sobre a
imagem encantada./ Cores escuras pousam sobre os campos e florestas /O
mal da natureza paira, poderoso /Sobre a florida superfície tropical /O poder
supremo/ Deste Império não é de nenhum Herodes /No entanto é a terra da
morte diária /Túmulo insaciável do estrangeiro”.

As epidemias, as doenças e a falta de saneamento básico criavam obstáculos


para que existisse a sonhada sociedade dita moderna e protagonista daquele
tempo. Os letrados e pensadores entendiam, colocando-se ao lado dessa
causa, ser um avanço aproximar-se dos padrões europeus de cultura e de
urbanidade. No período, reformas urbanas significavam inserir o Brasil
na Belle Époque.

Eram dias difíceis. No quadro difuso e instável das cidades brasileiras, casas e
ruas misturavam-se numa dinâmica onde os limites espaciais, inúmeras vezes,
constituíam-se historicamente ao sabor dos interesses dos grandes
proprietários de terras.

A capital da República, recentemente instalada, reunia uma estrutura social


diferenciada de outras cidades brasileiras como, por exemplo, São Paulo. A
presença de jovens militares e uma menor dependência das camadas médias
“com relação às classes agrárias favoreceu até certo ponto uma política de
colaboração de classes. Os movimentos de protesto no Rio de Janeiro, até
1917, tiveram um conteúdo mais popular do que especificamente operário”,
segundo o historiador Boris Fausto. A chamada Revolta da Vacina, ocorrida
entre 10 e 18 de novembro de 1904, durante o governo de Francisco de Paula
Rodrigues Alves, está dentro desse contexto.

As desconfianças e os medos

A população da capital federal, por sua vez, estava sob um clima de


desconfiança quanto aos novos tempos: talvez nem tão novos assim. Afinal o
novo presidente representava a permanência da hegemonia e do projeto
político paulista. Para seus opositores, Rodrigues Alves, que assumira a
presidência da República em 1902, daria continuidade à política impopular
adotada pelo seu antecessor - Manuel Ferraz de Campos Sales enfrentara
graves questões econômicas e fiduciárias; e agitações, como a Revolta da
Armada, a Revolução Federalista e o movimento de Canudos.

Os presidentes, ao pretenderem apresentar ao mundo desenvolvido, o das


grandes potências, a imagem de um governo sólido, estável, dotado de
instituições liberais, economia saudável e administração competente, tinham
como intenção atrair recursos sem os quais a cafeicultura paulista
exportadora não poderia sobreviver. Necessitavam de empréstimos externos
que financiassem a expansão das lavouras diante do preço declinante das
sacas. Por outro lado, careciam de recursos técnicos, de infraestrutura e da
mão de obra dos imigrantes europeus.

Rodrigues Alves apresentou um programa de governo que consistia em dois


pontos primordiais: modernizar o porto e remodelar o Distrito Federal. Isso
exigia atacar o mal que assolava a cidade: doenças como peste bubônica,
febre amarela e varíola. A partir dessas decisões, profundas mudanças
aconteceriam no Rio de Janeiro: vitrine, cartão postal e capital federal.
Espaço urbano que ainda hoje, segundo a historiadora Marly Mota, continua
sendo, como um dos fundamentos da sua identidade política, “a caixa de
ressonância dos problemas nacionais” mesmo “depois de ter deixado de ser a
capital do país, (...) e apesar de esvaziada dos principais signos que
sustentavam a sua capitalidade”.

No contexto da cidade remodelada, a população, a partir da derrubada de


casarões e cortiços, e do consequente despejo de seus moradores, apelidou o
movimento de “bota-abaixo”. O objetivo era a abertura de grandes e
modernas avenidas com edificações de cinco ou seis andares. Os discursos
modernizadores, oriundos das grandes reformas que rasgaram o tecido urbano
nas grandes capitais europeias a partir da década de 1840, preconizavam
necessidade de aeração, de circulação, de lazer e de monumentalidade.

Havia, contudo, o outro lado da moeda: tais ações estabeleceram


paralelamente uma lógica de exclusão espacial das camadas desvalidas que
compunham a população do Distrito Federal. Nas imediações das grandes
artérias, lentamente, o habitar pouco custoso praticamente desapareceu.

Os projetos e os motivos

Rua da Carioca, 1906 (Fonte:


Augusto Malta/BN Digital)

Segundo a oligarquia paulista do café, de quem Rodrigues Alves era


representante, além de vergonha nacional, as condições sanitárias precárias e
insalubres do Rio e do seu porto impediam a chegada de investimentos,
maquinaria e mão de obra estrangeira. O projeto sanitário deveria ser
executado. Rodrigues Alves nomeou, então, dois assistentes: o engenheiro
Francisco Pereira Passos, como prefeito, e o médico sanitarista Oswaldo Cruz,
como chefe da Diretoria de Saúde Pública. Cruz assumiu o cargo em março de
1903, declarando: “Deem-me liberdade de ação e eu exterminarei a febre
amarela dentro de três anos”. O sanitarista cumpriu o prometido.

As ideias de saneamento não eram propriamente novidade. Diante das


condições de insalubridade, de ausência de saneamento e de agentes para
enfrentar o problema, epidemias se espalharam pela cidade entre 1850 e
1870. Já existia uma obrigatoriedade de vacinação no país, contra a varíola,
para as crianças, desde 1837, e, para adultos, desde 1846. Entretanto, não
era seguida, porque a produção da vacina em escala industrial, como diríamos
hoje, começaria apenas em 1884.

Várias moléstias faziam vítimas no Rio do início do século. As principais, que


já atingiam proporções epidêmicas, eram a peste bubônica, a febre amarela e
a varíola. Mas havia também sarampo, tuberculose, escarlatina, difteria,
coqueluche e tifo, entre outras. Para combater, especificamente, a peste
bubônica, Oswaldo Cruz formou um esquadrão especial de 50 homens
vacinados que percorriam a cidade espalhando raticida e mandando recolher o
lixo. Criou o cargo de “comprador de ratos” – funcionário que recolhia os
ratos mortos, pagando por animal. Já se sabia que eram as pulgas desses
animais as transmissoras da doença. A campanha contra a peste bubônica
correu bem.

Em 1881, o médico cubano Carlos Finlay havia identificado o


mosquito Stegomyia fasciata como o transmissor da febre amarela. Cruz,
então, criou as chamadas “brigadas mata-mosquitos”, que invadiam as casas
para desinfecção.

Mas o método de combate à febre amarela, que invadiu os lares, interditou,


despejou e internou à força não aconteceu em clima de tranquilidade.
Batizadas pela imprensa da época como “Código de Torturas”, as medidas
desagradaram também a alguns positivistas, que reclamavam da quebra dos
direitos individuais. Além disso, nem mesmo acreditavam que as doenças
fossem provocadas por micróbios. Por sua vez, jacobinos e florianistas, que já
articulavam um golpe contra o presidente Rodrigues Alves, perceberam que
poderiam canalizar a insatisfação popular em favor de sua causa: a derrubada
do governo, acusado de privilegiar os grandes fazendeiros e cafeicultores
paulistas.

A lei e a imprensa

Oswaldo Cruz, seu filho Bento e


o assistente Burle Figueiredo 1910 (Fonte: Acervo Casa de Oswaldo Cruz)

No dia 31 de outubro, o governo conseguiu aprovar a lei da vacinação.


Preparado pelo próprio Oswaldo Cruz, o projeto de regulamentação saiu
repleto de medidas autoritárias. O texto vazou para um jornal. No dia
seguinte à sua publicação, começaram as agitações no centro da cidade.

A imprensa, dividida, teve um papel significativo no desenrolar dos


acontecimentos. Jornais se posicionaram contra ou a favor da lei estabelecida
pelo governo federal. O Correio da Manhã, por exemplo, ocupava um lugar no
bloco oposicionista. A Tribuna, que circulava no Rio de Janeiro e que,
segundo o historiador Nelson Werneck Sodré, “excedia-se na sua linguagem”,
posicionou-se a favor da vacina, mas não de forma obrigatória. Entendia que o
governo deveria garantir, por meio da propaganda, “a adesão da população
através do convencimento”. É relevante perceber a presença de um
jornalismo engajado com as questões do seu tempo.

Os positivistas protagonizaram a cena política e social por meio de artigos


inflamados nos jornais da época. Jacobinos e florianistas, financiados pelos
monarquistas (que apostavam na desordem como um meio de voltar à cena
política), também utilizavam os jornais, com artigos e charges, para passar à
população suas ideias conspiradoras. Um debate temático em que preceitos e
conceitos eram questionados.

As dúvidas e as questões

As dúvidas quanto ao novo eram muitas. E não representavam apenas os


temores das camadas populares, ditas “desinformadas”. Um exemplo
importante pode ser observado no pronunciamento, quanto à aplicação da
vacina contra a varíola, feito pelo ilustre jurista Ruy Barbosa: “Não tem
nome, na categoria dos crimes do poder, a temeridade, a violência, a tirania
a que ele se aventura, expondo-se, voluntariamente, obstinadamente, a me
envenenar, com a introdução no meu sangue, de um vírus sobre cuja
influência existem os mais bem fundados receios de que seja condutor da
moléstia ou da morte”.

A oposição e o projeto de golpe

A oposição política, ao sentir a insatisfação popular, tratou de canalizá-la


para um plano arquitetado tempos antes: a derrubada do presidente
Rodrigues Alves. Um golpe de Estado foi armado. Seria desencadeado durante
o desfile militar de 15 de novembro, almejando restaurar as bases militares
dos primeiros anos da República. Era uma tentativa de retomar o papel que os
militares desempenharam no alvorecer republicano.

A data escolhida para deflagrar o golpe militar era repleta de simbolismo: um


renascimento do espírito perdido e comprometido pelo que os insurretos
entendiam ter sido “conspurcado pela politicagem grosseira dos civis com a
elite paulista à frente”. A vitória do movimento faria surgir uma nova
República, que retomaria a “inspiração original de seus fundadores
positivistas, em particular Benjamin Constant e seus alunos, que formavam a
oficialidade jovem da Escola Militar do Brasil, na Praia Vermelha”, segundo
palavras de Nicolau Sevcenko.

Um dos líderes da trama seria o General Silvestre Travasso, justamente o


comandante das tropas em parada que incitaria os participantes à rebeldia,
contando com o apoio dos oficiais comprometidos com o movimento. Contudo,
com a cidade em clima de terror, a parada militar foi cancelada. Lauro Sodré
e outros golpistas ainda conseguiram tirar da Escola Militar cerca de 300
cadetes que marchavam, armados, rumo ao Palácio do Catete. Mas os próprios
insufladores da revolta perderam a liderança e o movimento tomou rumos
próprios.

A Revolta da Vacina - ação e reação


O que deflagrou a Revolta da Vacina foi a publicação, no dia 9 de novembro
de 1904, do plano de regulamentação da aplicação da vacina obrigatória
contra a varíola. A partir daí, entre os dias 10 e 18, a cidade do Rio de Janeiro
viveria o que a imprensa chamou de “a mais terrível das revoltas populares da
República”. No dia 12, muitas pessoas se concentraram nas ruas. No dia
seguinte o caos estava instalado. Na edição do dia 14, o jornal Gazeta de
Notícias publicava: “Houve de tudo ontem. Tiros, gritos, vaias, interrupção de
trânsito, estabelecimentos e casas de espetáculos fechadas, bondes assaltados
e bondes queimados, lampiões quebrados a pedrada, árvores derrubadas,
edifícios públicos e particulares deteriorados”.

Página do jornal Gazeta de
Notícias 14/11/1904 (Fonte: Gazeta de Notícias/BN Digital)

O cenário era desolador pelas ruas centrais da cidade: barricadas foram


erguidas em verdadeiras trincheiras, delegacias e repartições públicas
assaltadas e invadidas. A existência de vielas, de becos e a própria topografia
da cidade propiciava aos insurretos a oportunidade de armadilhas e refúgios.

No primeiro momento, as autoridades perderam o controle da região central e


dos bairros periféricos, como a Saúde e a Gamboa, onde se concentravam as
moradias das camadas populares. Porém, quando reagiram, utilizaram os
recursos de contenção disponíveis. O governo reforçou a guarda do palácio,
mobilizando a Polícia, o Exército, a Marinha e a Guarda Nacional. Contando
com tais forças repressivas, conseguiram responder ao movimento.

A questão era bastante direta e clara para o governo republicano: como


refletir, para o resto do mundo, a imagem de uma nação próspera, civilizada,
ordeira e dotada de instituições, diante da presença, em plena capital
republicana, de uma “(...) multidão indômita, composta de aventureiros,
mestiços, negros e imigrantes pobres, que ao primeiro grito de motim
forravam a cidade de barricadas e punham em xeque as forças do governo”?
Se no dia 15 a revolta da Escola Militar já havia sido controlada, com a
rendição dos cadetes, depois que a Marinha bombardeara a Escola Militar, a
revolta popular persistia. Conflitos isolados avançavam nos bairros da Gamboa
e da Saúde. No dia 16 de novembro, foi decretado o estado de sítio e
revogada a obrigatoriedade da vacinação. Com isso, o movimento popular se
desarticulou. Além dos mortos, centenas de presos foram enviados para a Ilha
das Cobras. Muitos foram deportados para o norte do país, e a maior parte
não passou por processos formais de julgamento.

Com os revoltosos subjugados e a retirada do pretexto imediato (a vacina


obrigatória), o movimento se encerrou. A Capital Federal pagou um preço
visível no seu espaço urbano: caos de destroços e ruínas, com marcas de
combate por toda a parte, além de um número expressivo de mortos, feridos
e presos. Mesmo com a revogação da obrigatoriedade da vacina, permaneceu
válida a exigência do atestado de vacinação para trabalho, viagem,
casamento, alistamento militar, matrícula em escolas públicas, hospedagem
em hotéis. A revolta foi sufocada e a cidade, remodelada, como queria
Rodrigues Alves.

Estudos indicam, quanto à questão das doenças que o presidente Rodrigues


Alves decidiu enfrentar, que, em 1904, aproximadamente 3.500 pessoas
morreram de varíola. Dois anos depois, esse número caía para nove. Em 1908,
uma nova epidemia elevou os óbitos para cerca de 6.550 casos. Em 1910, foi
registrada uma vítima.

No primeiro semestre de 1904, foram feitas cerca de 110.000 visitas


domiciliares e interditados 626 edifícios e casas. A população contaminada era
internada em hospitais. Mesmo sob insatisfação popular, a campanha deu bons
resultados. Segundo documentos da época, as mortes, que em 1902 chegavam
a 1.000, baixaram para 48. Em 1909, não foi registrada no Rio de Janeiro
nenhuma vítima da febre amarela.

A cidade, resultado de uma experiência secular de adaptação da arquitetura


portuguesa aos trópicos, estava, enfim, reformada e livre do nome de
“túmulo dos estrangeiros. Consta que, atualmente, a Organização Mundial da
Saúde, da ONU, discute a destruição de exemplares do vírus da doença, ainda
mantidos em laboratórios dos Estados Unidos e da Rússia.

Conclusões

“O curso inexorável do progresso”


Largo da Carioca, 1910 (Fonte:
Museu Paranaense)

Quanto à atmosfera cosmopolita, no que era entendido como “o curso


inexorável do progresso” conduzida pelo prefeito Pereira Passos, resultou no
seguinte: em nove meses, seriam derrubados em torno de 600 edifícios e
casas, para abrir a Avenida Central (hoje, Rio Branco). A ação, conhecida
como “bota-abaixo”, obrigou parte da população desprovida de recursos a se
mudar para os morros e a periferia.

Oswaldo Cruz, em 1907, de volta de uma exposição na Alemanha, onde fora


premiado por sua obra de combate às doenças, sentiu os primeiros sintomas
da enfermidade que o levaria à morte. Adiante surgiram problemas psíquicos.
Os delírios se intensificaram. Conta-se que muitas vezes foi visto à noite
vagando solitariamente pelas dependências do Instituto Manguinhos, que
ajudara a projetar, em 1903, e que receberia o nome de Instituto Oswaldo
Cruz em 1908. Em 1916, o cientista foi nomeado prefeito de Petrópolis. A
cidade, envolvida em disputas políticas, não recebeu bem a nomeação.
Oswaldo Cruz morreu, em 11 de fevereiro de 1917, quando acontecia uma
passeata de protesto em frente à sua casa.

Historiadores, baseados em depoimentos da época, buscaram o motivo de


uma repressão “brutal e intransigente”, dirigida contra indivíduos desvalidos
socialmente. As pesquisas concluíram que a punição dos envolvidos não se
baseou numa investigação daqueles que participaram efetivamente do motim.
A polícia entendeu a situação como uma oportunidade para remover, da
cidade reformada por Pereira Passos, aquelas pessoas vistas como indesejadas
e potencialmente turbulentas.

O episódio, do ponto de vista das autoridades da época, era “um levante


irracional, de gente rude, com mentes obsoletas”, que colocava em risco a
ordem política e que deveria ser eliminada para salvar a República. Quando a
revolta aconteceu, como um grito indignado, não teve partido, nem
plataforma. Foi algo improvisado que não desejava poder e propagava-se sem
estar vinculado a um grupo específico. Não havia um chefe geral, nem possuía
um plano pré-estabelecido.
É uma visão simplista resumir a revolta como um movimento popular que teve
como causa imediata a recusa em aceitar o método eficaz de combater a
doença por meio da vacinação. Importa ressaltar que, além de expor a
política autoritária e higienista, o movimento era, antes, um sinaleiro da
tensão social existente numa cidade composta por indivíduos de origens
variadas.

Por outro lado, o episódio deixou evidenciado que as camadas populares não
toleravam “invasões truculentas na organização da sua sobrevivência e no
interior das suas moradias”. Também não admitiriam a violação dos corpos de
mulheres e crianças em nome de uma profilaxia que não entendiam muito
bem.

Reflexões

Qual a cor da vitória?

Segundo Nicolau Sevcenko, “nunca se contou os mortos da Revolta da Vacina.


Nem seria possível, pois muitos (...) foram morrer bem longe do palco dos
acontecimentos. Seriam inúmeros, centenas, milhares, mas é impossível
avaliar quantos. Os massacres em geral não manifestam rigor pela precisão.
(...) A matança coletiva dirige-se, via de regra, contra um objeto unificado
por algum padrão abstrato, que retira a humanidade das vítimas: uma seita,
uma comunidade peculiar, uma facção política, uma cultura, uma etnia.
Personificando nesse grupo assim circunscrito todo o mal e toda a ameaça à
ordem das coisas, os executores representam a si mesmos como heróis
redentores, cuja energia implacável esconjura a ameaça que pesa sobre o
mundo. O preço a ser pago pela sua bravura é o peso do seu predomínio. A cor
das bandeiras dos heróis é a mais variada, só o tom do sangue de suas vítimas
permanece o mesmo ao longo da história”.

Jeanne Abi-Ramia é professora de História e consultora da série de TV O


Mochileiro do Futuro.

Bibliografia:

Livros
ABI-RAMIA, Jeanne e SANDOVAL, Alexandre. Mestre do Tempo. Rio de Janeiro:
MultiRio, 2011.
BRITTO, Nara. Oswaldo Cruz. A construção de um mito na ciência brasileira.
Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1998.
FAUSTO, Boris. III o Brasil Republicano: Estrutura de Poder e Economia. São
Paulo: DIFEL, 1989.
MOTTA, Marly Silva da. Rio, Cidade Capital. São Paulo: Zahar, 2004.
PENNA, Lincoln de Abreu. República Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1999.
PRIORE, Mary e VENANCIO, Renato. Uma Breve História do Brasil. São Paulo:
Editora Planeta do Brasil, 2010.
SCHARCZ, Lilia Moritz (coord.). A Abertura para o Mundo 1889-1930. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2014.
SEVCENKO, Nicolau (org.). A História da Vida Privada no Brasil República: da
Belle Époque à Era do Rádio. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1999.
SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina. - Mentes Insanas Em Corpos
Rebeldes. Rio de Janeiro: Scipione, 2001.
SODRÉ, Nelson Werneck. A História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1966.

Sites
http://revistapesquisa.fapesp.br/2006/01/01/fazendo-rima-com-a-ciencia.
Acesso em 03/03/2016.
http://portal.fiocruz.br/pt-br/node/473. Acesso em 06/03/2016.
http://www.multirio.rj.gov.br/index.php/estude/historia-do-brasil. Acesso
em 07/03/2016.

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