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Revolta da vacina na cidade do Rio de Janeiro, 1904

Medice, cura te ipsum

No início do século 20, a cidade do Rio de Janeiro era conhecida no exterior como
“cemitério de estrangeiros”. As sucessivas epidemias de febre amarela, varíola e peste bubônica que
por lá grassavam matavam de preferência os adventícios, que por ali aportavam sem defesas
imunitárias. A tripulação de um navio italiano, exemplo funesto, com cerca de 300 marinheiros,
perdera cerca dois terços de sua jovem tripulação durante uma escala no porto carioca.

Então capital da recente república (1889), a cidade ostentava no seu próprio centro um
emaranhado de vielas sórdidas, com habitações coletivas em condições precárias, iluminação
deficiente, ausência de saneamento e serviços de recolha de lixo.

A eleição de um presidente ligado às lideranças paulistas exportadoras de café, Rodrigues


Alves, persuadido de que as condições sanitárias da capital acabariam por inviabilizar as
importações destinadas a modernizar a economia do país, foi determinante para finalmente encetar
o processo de urbanização radical a ser empreendido na cidade. O exemplo de Buenos Aires e,
mais atraente ainda, a reforma parisiense do Barão Haussmann, brilhavam como miragens no
horizonte das ambições dos governantes brasileiros.

A reforma foi conduzida sem estados d'alma. Os habitantes dos antigos cortiços foram
expulsos do apetecível centro e tiveram de realojar-se nos morros cariocas, que começavam a
abrigar trabalhadores, negros em sua maioria, e que viriam a constituir-se nas favelas, conjuntos de
casebres de construção frágil, em áreas sem saneamento, iluminação ou água corrente.

O ressentimento instalou-se, profundo, nessas camadas de população. Enquanto cresciam os


trabalhos monumentais de reconstrução, volviam as costumeiras epidemias a castigar os cariocas:
varíola, peste bubônica, febre amarela.

As autoridades brasileiras pediram auxílio à metrópole parisiense, que na época representava


para os brasileiros o modelo estrangeiro a imitar e consultar. Solicitaram ao Instituto Pasteur a
indicação de um cientista habilitado a assumir responsabilidade de tornar hígida a cidade, e mais
tarde, já se veria, também o país. A resposta chegou na forma de um telegrama: O homem a quem
buscam já o têm. É o doutor Oswaldo Gonçalves Cruz, que estudou microbiologia e soroterapia na
nossa instituição e se revelou ser capaz de arcar com tais emprendimentos.

Surpresa. O indicado tinha apenas 31 anos e dirigia, desde 1902, o Instituto Soroterápico,
responsável pela fabricação, entre outros, do soro contra a peste bubônica.

Nomeado Diretor Geral da Saúde Pública, cargo que equivaleria hoje ao de Ministro da
Saúde, empenhou sua palavra em que livraria a cidade da febre-amarela em três anos.
Sua confiança inabalável nos resultados da campanha contra a doença levada a cabo pelos
norte-americanos em Cuba, baseados nas pesquisas originais do médico cubano Carlos Finlay,
levou-o a implementar seu plano sem admitir transigências, ou quaisquer cedência a opiniões
médicas divergentes.

Tal atitude despertou ataques furiosos de segmentos da opinião médica local, os quais
punham em questão as próprias bases do seu plano de erradicação. A imprensa atacou-o com força,
e os brilhantes caricaturistas da época, eficazes formadores de opinião, passaram a tê-lo como alvo
de suas cáusticas charges. O visado colecionava caprichosamente tais ataques gráficos e os
guardava em grandes álbuns que gostava de folhear em horas de descontração. Como se sua auto-
estima se fortalecesse diante de tais homenagens satíricas.

Figura 1
Figura 2

No combate à peste bubônica, Oswaldo desenvolveu métodos originais. Criou uma brigada
de trabalhadores mata-ratos uniformizados, que entravam nas casas e procediam à desinfecção dos
porões e colocação de ratoeiras e veneno. Aos brigadistas da peste que trouxessem mais que cinco
ratos mortos por dia, prometia uma gratificação adicional de 300 réis por cabeça. Logo se apurou –
para gaudio dos caricaturistas – que tinha passado a existir entre a população uma pequena indústria
informal de criadores de ratos destinados tão-somente a ser levados ao doutor Gonçalves Cruz para
a recompensa. Picaresca carioca na sua mais pura vertente. Seja como for, a campanha de
extermínio resultou, complementada por uma matilha de cães-rateiros, fox-terriers especialmente
treinados.

Numa entrevista de 1904, o “Torquemada dos roedores”, como era denominado Oswaldo
pelos humoristas, declarou : “Apesar de todas as dificuldas opostas à ação da autoridade sanitária, a
peste está declarada extinta.”

Avançando no tempo, ao cabo dos três anos prometidos, em finais de 1906, a aposta de
Oswaldo com relação à febre amarela viria a concretizar-se: a cidade livrou-se da febre amarilíca.

Voltemos a 1904: a varíola continuava a castigar a população carioca. Em meados de 1904,


registraram-se 1800 internações num único no hospital da cidade, e 3500 óbitos. Oswaldo
declarava ao seu modo categórico: “Tem varíola que quer”, acenando para a confiabilidade e
eficácia da vacina, amplamente demonstrada por Louis Pasteur numa experiência famosa.

Apesar do quadro alarmante, as chamadas “camadas populares” rejeitavam a vacina.


Açulando-as nessa rejeição, comícios anti-vacina eram organizados diariamente. Na Câmara, os
positivistas chamavam os médicos defensores da vacina de “charlatães sem clínica” e as equipes
treinadas por Oswaldo para aplicar vacinas eram apostrofadas como “o Santo Ofício da Tortura
Pública.”

Circulava o rumor de que, consistindo a vacina no líquido de pústulas de vacas acometidas


de varíola, o ser humano que a recebesse adquiriria feições bovinas. (Mais de um século depois, o
próprio presidente da república hoje em exercício afirmaria que quem se vacinasse contra a covid-
19 corria o perigo de metamorfosear-se em jacaré).

Diante do agravamento do surto de varíola, o imperturbável Oswaldo endereçou um


informe ao Governo solicitando a reativação da lei da vacina obrigatória, promulgada já para
crianças durante o Império, em 1837, e para adultos em 1846. Lei essa que, no dizer popular, “não
pegara”, ou seja, não era cumprida. A produção da vacina em escala industrial só se iniciara em
1884.

A república fora proclamada em 1889 por um grupo de militares do exército brasileiro


fortemente influenciado pelo pensamento positivista de Auguste Comte. O lema que até hoje se lê,
inscrito em faixa diametral no centro da bandeira do país – Ordem e Progresso – provinha
diretamente desse corpo doutrinário.Tais oficiais sequer acreditavam que doenças pudessem ser
causadas por micróbios.

O governo do presidente Rodrigues Alves, um civil oriundo das oligarquias de São Paulo,
era visto por tais grupos de militares, ávidos de retomar o poder, como um inimigo a ser
combatido, acusado de privilegiar os cafeicultores paulistas. Juntara-se a eles, por motivos de
rivalidade política pessoal, o influente tribuno baiano Ruy Barbosa, jurista, jornalista e político.
Além disso, era ele um perene – e sempre decepcionado – candidato à cadeira presidencial. Com
sua retórica alambicada ele denunciava: “a vacina, além de não ser inofensiva, era um veneno, em
cuja influência (ao ser injetada) existem os mais bem fundados receios de que seja condutora da
moléstia, ou da morte.”

Em junho de 1904, foi enviada ao congresso um projeto de lei nos termos propostos por
Oswaldo, restaurando a obrigatoriedade da vacina antivariólica e dispondo que só os vacinados
pudessem obter contrato de trabalho, matrículas nas escolas, certidões de casamento, autorização
para viagem, etc. Após longas e acaloradas discussões, a lei foi aprovada a 31 de setembro e
regulamentada a 9 de outubro.

Ruy Barbosa prosseguia todavia na sua campanha: “A lei da vacina obrigatória é uma lei
morta (…). “Contrário era e continuo a ser à sua obrigação legal. (…)” “Assim como o direito veda
ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme.” “Ofensa às
garantias individuais”.

Tribunos em campanha incendiária contra a nova lei invocavam o nome do autor do Curso
de Filosofia Positiva e davam ensejo a ferinas caricaturas, com direito a ftrocadilhos demasiado
fáceis: “Positivamente invoco o nome de Comte e protesto por todas as juntas!” exclamava um
deles. A cena seguinte da “tragédia da vacina” mostra o mesmo tribuno diante do longo desfile de
féretros em frente a um cemitério. Ao fundo, a silhueta do Pão de Açúcar e do Morro da Urca.
Figura 3

A campanha incidia também na acusação de que a nova lei representava desacato e ofensa
ao pudor das mulheres. A deixa foi imediatamente explorada nas caricaturas e nos panfletos que
circulavam em massa pela cidade. Mulheres e meninas a serem obrigadas a oferecer suas partes
secretas à seringa malfeitora do Dr. Oswaldo Cruz.

Há quem afirme ter sido esse último aspecto o detonador da mais violenta revolta popular
havida na história do Rio de Janeiro, desde a sua fundação até hoje. A última gota na paciência
exasperada das camadas populares, havia pouco enxotadas do centro da cidade às periferias e lá
deixadas entregues à própria sorte. Assim como não foram consultadas quanto à reurbanização da
cidade, tão pouco foram elas alvo de ações de esclarecimento por parte das autoridades implicadas
na lei de vacinação. Sempre com objetivos de saúde pública, diante da epidemia, tinham sido
proibidos o comércio ambulante, a venda de bilhetes de loteria pelas ruas e nos bondes, os fogos de
artifício e os balões e fogueiras tradicionais nas festas juninas.

A agitar os ânimos da população, viram-se assim reunidos, numa estranha aliança,


elementos monarquistas e saudosistas do império, os militares radicais que tinham derrubado esse
mesmo regime e alguns políticos rivais de Rodrigues Alves. No dia 5 de novembro foi fundada a
Liga Contra a Vacinação Obrigatória, iniciativa do senador republicano Lauro Sodré. Cinco dias
depois, estudantes que demonstravam aos gritos foram reprimidos pela polícia. Dia 11 de
novembro houve troca de tiros. Dia 12, multidões na rua. Dia 13, caos no Rio de Janeiro. Quando
voltava à casa na rua Voluntários da Pátria, em Botafogo, Oswaldo Cruz, reconhecido em sua
carruagem aberta, foi alvo de pedradas.

Dia 14 estala o motim de 300 cadetes da Escola Militar ,que marcham sob o comando de um
general rumo ao Palácio do Catete, sede da presidência da república. O exército é chamado a
intervir. São feridos no embate o general Travassos que chefiava os rebeldes e o seu imediato. A
Marinha bobardeia a Escola Militar.

Dia 16 o governo revoga a lei da obrigatoriedade da vacina, mas perduram ainda alguns
conflitos isolados em bairros populares..

Dia 20 de novembro a rebelião é esmagada e a tentativa de golpe frustrada.

Figura 4

Na Gazeta de Notícias do dia 14 lê-se: “Houve de tudo ontem. Tiros, gritos, vaias,
interrupção de trânsito, estabelecimentos e casas de espetáculo fechadas, bondes assaltados e
bondes queimados, lampiões quebrados a pedrada, árvores derrubadas, edifício públicos e
particulares deteriorados”.

No fim da revolta, as estatísticas oficiais indicam 945 prisões, entre as quais 461 indivíduos
deportados (para os confins da Amazônia, onde muitos vieram a perecer de malária), 110 feridos e
30 mortos em menos de duas semanas de conflito.

Uma amarga derrota para Oswaldo Cruz, acusado de insensibilidade política. Mesmo assim,
o presidente o manteve no cargo de Secretário da Saúde Pública. Os seus dias de glória e
reconhecimento estavam por vir.

“Os revoltosos foram duramente punidos pelo governo e ainda mais pela varíola.” “A ação
do governo foi desastrada e desastrosa”, escreve Jaime Benchimol, historiador da medicina no
Brasil, a respeito dos trágicos dias de novembro de 1904.

Em 1908, quando a cidade foi atingida pela mais violenta epidemia de varíola de sua
história, a população acorreu aos postos em massa em busca de vacina.

Num canto discreto do XVIème arrondissement parisiense, junto ao parque , uma


pequena rua Oswaldo Cruz presta homenagem ao higienista brasileiro formado no seu prestigioso
Instituto Pasteur.

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