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Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 1

Esta é uma versão eletrônica do texto do livro:

MARTINS, Roberto de Andrade; MARTINS, Lilian Al-Chueyr Pereira;


FERREIRA, Renata Rivera; TOLEDO, Maria Cristina Ferraz. Contágio:
história da prevenção das doenças transmissíveis. São Paulo: Moderna, 1997.

CONTÁGIO:
HISTÓRIA DA PREVENÇÃO
DAS DOENÇAS TRANSMISSÍVEIS

ROBERTO DE ANDRADE MARTINS

colaboração de:

Lilian Al-Chueyr Pereira Martins


Maria Cristina Ferraz de Toledo
Renata Rivera Ferreira

TERCEIRA VERSÃO, NÃO REVISTA, SEM IMAGENS


JULHO DE 1996
INTRODUÇÃO

As doenças constituem uma terrível ameaça para a humanidade. Algumas


são brandas, mas outras podem matar milhões de pessoas. Durante muitos
séculos, não se sabia o que produzia as pestes e as grandes epidemias: um casti-
go divino? uma conjunção astrológica? uma mudança climática? Foi preciso um
longo caminho para que se pudesse compreender a causa das enfermidades
transmissíveis e como se prevenir contra elas.
Hoje em dia todos sabemos que certas doenças podem passar de uma pes-
soa para outra. Desde uma gripe banal, até doenças graves, como cólera e aids,
podem ser transmitidas de uma pessoa doente para outra sadia. Isso ocorre
quando a doença é causada por microorganismos como, por exemplo, as bacté-
rias ou os vírus. Esses seres invisíveis, responsáveis por muitas enfermidades,
multiplicam-se nos indivíduos doentes e podem passar deles para outras pessoas
através da respiração, de excreções, de picadas de insetos, etc. Há outros tipos
de doenças que não são causadas por organismos microscópicos; mas não ire-
mos tratar delas, neste livro.
Quando se conhece o tipo de microorganismo causador de uma doença e o
seu modo de transmissão, pode-se evitar que ele passe às pessoas sadias - atra-
vés de várias medidas sanitárias e de higiene. Em certos casos, pode-se também
produzir vacinas, que protegem as pessoas, mesmo se ficarem em contato com
doentes. Por fim, em muitos outros casos, podem ser desenvolvidos remédios
(como os antibióticos) que combatem esses microorganismos quando eles já se
estabeleceram em um organismo, de tal forma a destrui-los.
Dizer que muitas doenças são produzidas por microorganismos é, hoje,
uma afirmativa banal. No entanto, esse é um conhecimento médico
relativamente recente - tem pouco mais de um século de idade. Foi apenas
durante a segunda metade do século XIX que se estabeleceu a teoria microbiana
das doenças. Durante centenas de anos, os médicos ignoraram a causa das
enfermidades transmissíveis, que eram explicadas de modos que atualmente nos
parecem absurdos. Os modos de prevenção e cura dessas doenças eram
também, obviamente, muito diferentes dos de hoje.
Como se chegou a esse conhecimento atual? Por que fases passou a Medi-
cina, em sua tentativa de compreender as epidemias e o contágio? Como surgi-
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ram as vacinas? Esses são alguns dos pontos que serão tratados nas páginas
seguintes.
Este livro não irá abranger todos os aspectos da história da Medicina. Isso
exigiria uma obra muitas vezes maior do que esta. Mesmo o assunto aqui
tratado - as doenças transmissíveis e sua prevenção - é excessivamente amplo
para ser estudado em detalhe em um trabalho como este. Será necessário deixar
de lado vários aspectos, focalizando apenas alguns episódios mais importantes.
Iremos percorrer uma longa história, de mais de dois mil anos, para desco-
brir como diversos povos, em diferentes épocas, concebiam o processo de con-
tágio. Ao longo dessa história, veremos uma grande mistura de superstições, de
experimentos, de teorias diversas, e a luta contínua da humanidade contra doen-
ças terríveis.
Por meio do estudo dessa história, será possível compreender como se
desenvolve a evolução do pensamento humano, através de uma série de
palpites, tentativas, erros e acertos. Veremos como algumas "certezas"
causaram a morte e o sofrimento de milhões de pessoas. Por fim, estudando o
surgimento da moderna teoria microbiana, veremos como foi gradualmente
introduzido um maior rigor na pesquisa médica, resultando em importantes
avanços. Pelo conhecimento desse caminho histórico, será possível perceber a
enorme importância das medidas sanitárias e de higiene, capazes de evitar
horríveis doenças - medidas simples mas que, infelizmente, continuam a ser
ignoradas ou deixadas de lado, até hoje, no Brasil e em outros lugares do
mundo.
A medicina evoluiu muito e sabemos como controlar um grande número
de doenças. Mas o controle exige dinheiro e decisões políticas que nem sempre
são tomadas. Por outro lado, existem enfermidades que ainda estão fora do
controle da medicina, como a aids. Para que não se repitam episódios como o
das grandes peste dos séculos anteriores, é necessário que todos saibam o
significado das grandes epidemias e conheçam os meios de evitá-las, podendo
assim cuidar de si próprios e exigir dos governantes o combate adequado às
doenças. É para proporcionar essa base científica que este livro foi escrito.
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AS GRANDES PESTES
1
O que é uma grande epidemia? próximos, temia-se que a doença
Que efeitos podem produzir as também surgisse.
enfermidades transmissíveis, Em 1664, o aparecimento de
quando atingem muitas pessoas? um cometa nos céus levou a muitas
Quem nunca viveu essa experiência predições pessimistas. Segundo
nem pode avaliar o que ela Defoe, os astrólogos de Londres
significa. Por isso, é conveniente anunciaram que a peste logo iria
começar com a descrição de um atingir a cidade. O pavor tomou
caso histórico importante. muitas pessoas. Pessoas alucinadas
Daniel Defoe foi um corriam pelas ruas, gritando e pro-
importante escritor que viveu nos fetizando desgraças. Londres se
séculos XVII e XVIII. É o autor de encheu de magos, adivinhos, astró-
um livro de aventuras bem logos, curandeiros e diversos tipos
conhecido: Robinson Crusoe. Ele de charlatões, que davam conselhos,
escreveu em 1722 um outro livro previam os acontecimentos futuros,
menos famoso, o Diário do ano da indicavam antídotos "infalíveis"
peste, em que descreve uma grave contra qualquer tipo de doença,
epidemia ocorrida em Londres, em vendiam talismãs mágicos para pro-
1665. teger da peste e, de muitas formas,
De tempos em tempos - como lucravam com o temor do povo.
depois veremos - a Europa era var- Nada aconteceu, no entanto,
rida por grandes pestes, que mata- até o final de 1664. Houve apenas
vam milhões de pessoas. Em 1663, duas mortes suspeitas, com os sin-
uma dessas epidemias atingiu a Ho- tomas da peste bubônica. Como
landa. Não existiam televisores, eram dois casos isolados, isso não
nem rádios, nem mesmo jornais produziu muita preocupação. Mas
para transmitir notícias. No entanto, poucas semanas depois, uma outra
através de cartas e pelos comentá- pessoa morreu, na mesma casa onde
rios de pessoa para pessoa, ficava- esses dois primeiros haviam faleci-
se sabendo rapidamente o que do, também com sinais da peste.
acontecia. Nos outros países O número total de enterros em
Londres era de 240 a 300 por sema-
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na. Em janeiro de 1665, subiu a mam de eflúvios; pela respiração ou


mais de 400. Mas a maioria das transpiração; pelas exalações das
feridas dos doentes; ou por outras
mortes era atribuída a causas co- vias, talvez fora do alcance dos pró-
muns. prios médicos. Esses eflúvios afetam
Durante algumas semanas, o os homens sãos que se aproximam a
frio foi rigoroso (era época de in- uma certa distância dos doentes, e
verno, no hemisfério norte) e as penetram imediatamente em suas
partes vitais, colocando seu sangue
mortes diminuíram. Mas no fim de subitamente em fermentação e agitan-
abril e início de maio surgiram mais do os seus espíritos (...)."
casos indubitáveis de peste em
Saint Giles e outros locais. No final Havia muitas hipóteses sobre
de maio, as autoridades finalmente o modo de transmissão da enfermi-
reconheceram que já haviam mor- dade, mas não se sabia nada com
rido algumas dezenas de pessoas certeza. Os bubões dos doentes
dessa doença. exalavam um forte mau cheiro, e
O que era essa enfermidade? muitos pensavam que era através
Era algo que já se conhecia muito desses odores que a doença passava
bem, na Europa, embora não tivesse de uma pessoa para outra.
atingido Londres até então. Produ- No início de junho, a doença
zia grandes inchações em certas aumentou assustadoramente em
partes do corpo - principalmente Londres. As pessoas ricas começa-
nas axilas e virilhas - que eram ram a fugir da cidade, para não se-
chamadas de "bubões", vindo daí o rem atingidas pela doença. Iam para
nome da doença (peste bubônica). outras cidades ou para o campo,
Nesses locais, formava-se pus. acompanhados de seus criados,
Quem adoecia, quase sempre levando consigo objetos de valor,
morria depois de poucos dias, com roupas, móveis. As ruas da cidade
fortes dores. se encheram de carroças e cavalos
Mas como se adquiria a en- que transportavam pessoas e seus
fermidade? Era evidente que bens para longe da peste. Outros
alguma coisa passava dos doentes sairam de Londres em barcos. Mui-
para as pessoas sadias, pois a tas pessoas fugiram a pé, levando
doença ia se espalhando aos poucos tendas para acampar fora da cidade.
de uma região para outra, atacando Da população total, que era de
principalmente quem morava com 400.000 habitantes, cerca de
os doentes, ou próximo deles, ou 100.000 abandonaram suas casas
tinha contato com eles. Defoe assim em Londres.
explicava a transmissão:
FIGURA
"Parece-me fora de dúvida que LONDON.TIF
esta calamidade se espalha pelo
contágio; quer dizer, por certos vapo-
res ou fumaças, que os médicos cha-
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No fim de junho, a peste já ninguém entrasse ou saisse - exceto


matava 700 pessoas por semana. Na os cadáveres dos mortos - para que
primeira semana de julho o número a doença não se espalhasse. Apenas
chegou a mais de 1.200. Na semana depois de 28 dias da morte de um
seguinte, 1.700 mortos. morador os demais moradores da
O pânico se espalhou. casa eram liberados, se não
Ouviam-se gritos, choros e mostrassem sinais da doença.
lamentações vindos de muitas Durante todo o tempo, essas casas
casas. Com medo do contágio, as ficavam marcadas na porta, com
pessoas que permaneciam em uma grande cruz vermelha e a
Londres evitavam sair à rua. inscrição: "Senhor, tende piedade
Quando precisavam sair de suas de nós".
residências, caminhavam pelo meio
das ruas, longe das casas, por medo FIGURA
de encontrar algum doente ou para CRUZ.TIF
evitar receber os odores e emana-
ções das moradias infectadas. Qual a causa da peste? Nin-
Não era possível saber quem guém sabia. Teria sido o cometa?
estava livre da enfermidade. Teria sido a cólera de Deus, que
Pessoas aparentemente sãs caíam na estava castigando os pecadores?
rua e morriam. Lá ficavam, caídas Muitos achavam que eram as duas
no chão, até que seus corpos fossem coisas: Deus havia resolvido
recolhidos, à noite. castigar as pessoas e havia enviado,
As autoridades começaram a como mensageiro, o cometa
tomar algumas medidas. O rei orde- fatídico. Em meio à peste, o pavor
nou que os professores de medicina fazia com que muitas pessoas
se reunissem e divulgassem ao pú- confessassem publicamente seus
blico quais os melhores remédios pecados, no meio da rua, a altos
contra a doença, distribuindo-os brados, com a esperança de serem
gratuitamente à população. Eram perdoados por Deus e escaparem do
recomendados perfumes e substân- castigo.
cias aromáticas para impedir que a O grande número de mortes
peste penetre nas casas. Mas ne- tornou necessário simplificar os
nhum remédio foi realmente capaz enterros. As autoridades proibiram
de impedir ou de curar a enfermi- que fossem feitas cerimônias públi-
dade e os médicos, assim como seus cas, cortejos e acompanhamentos.
pacientes, começavam a morrer. Os enterros deviam ser rápidos,
Os magistrados tomaram imediatos, para que não se espa-
medidas graves: toda casa em que lhasse a doença.
surgisse algum caso de peste, devia Todas as reuniões e diversões
ser trancada, com todos os seus públicas - até mesmo os combates
moradores, e dois guardas deviam de ursos, populares na época - fo-
se revezar à porta, para que ram proibidas, para evitar o contato
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entre as pessoas. As autoridades O número de mortos aumen-


mandaram varrer as ruas e retirar tava cada vez mais. Em agosto, pas-
todo tipo de detrito. Foram tomados savam de mil mortos por dia. Já não
cuidados especiais de vigilância dos era mais possível fazer caixões,
alimentos, para que não se vendes- nem mesmo covas individuais para
sem carnes e outros produtos po- os mortos. À noite e durante toda a
dres. Enfim, adotaram-se várias madrugada, passavam pelas ruas de
medidas de bom senso, embora não Londres, constantemente, as carro-
se soubesse exatamente o que cau- ças de coleta de cadáveres, com
sava a doença ou como ela se espa- seus condutores gritando: "Tragam
lhava. os seus mortos! Tragam os seus
Evitava-se encostar em objetos mortos!" Os corpos eram empilha-
que tivessem sido tocados pelos dos nas carroças, vestidos ou despi-
doentes. Como qualquer pessoa dos, e depois carregados até o cemi-
podia estar com a peste, os comer- tério, para serem despejados em
ciantes já não pegavam no dinheiro: grandes valas.
os compradores deviam pagar suas O clima de horror era indescri-
compras com moedas no valor tível. Acostumando-se à morte, as
exato da venda, e colocar seu pessoas já não lamentavam e chora-
dinheiro dentro de vasilhas com vam mais seus parentes. Os doentes
vinagre, para purificá-lo. Só depois eram abandonados. A morte parecia
de algum tempo os comerciantes inevitável para todos.
recolhiam essas moedas. No final de agosto e início de
Imaginando que os animais setembro, as estatísticas oficiais
também poderiam carregar a doença indicaram 7.000 a 8.000 mortos por
de um lado para o outro, os porcos, semana. Os números verdadeiros
cães, gatos, coelhos, pombos e ou- podem ter sido duas ou três vezes
tros animais domésticos foram pro- maiores, pois os dados oficiais tal-
ibidos em Londres. Calcula-se que vez fossem forjados - para não as-
nessa época foram mortos 40.000 sustar demais a população.
cães e cerca de 200.000 gatos na A partir de outubro, as mortes
cidade. Também se tentou extermi- diminuiram. Em novembro, o
nar os ratos, com veneno, matando- número caiu para "apenas" 900
se uma grande quantidade deles. falecimentos por semana. Embora a
Atualmente, sabemos que a peste não tivesse desaparecido,
peste bubônica é transmitida pelas todos sentiam que a enfermidade
pulgas dos ratos da cidade. Ela não estava sumindo. Os habitantes que
passa diretamente de uma pessoa haviam fugido começavam a
para outra pela respiração, nem pelo retornar.
contato físico. Assim, os cuidados Durante o ano de 1665, a peste
que eram tomados não ajudavam a matou cerca de 100.000 habitantes
impedir que a peste se espalhasse. de Londres, de uma população total
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de 400.000. Famílias inteiras


pereceram.
A doença desapareceu como
havia aparecido: sem que ninguém
a entendesse, sem que ninguém sou-
besse como se prevenir ou curar a
peste. Uma enorme tragédia, diante
da qual todos estavam impotentes.
Nenhum de nós conheceu pes-
soalmente uma situação semelhante
a essa - e esperamos nunca presen-
ciá-la. Muitos devem pensar que
tudo isso é coisa de um passado
distante, que jamais se repetirá.
Será verdade?
No início do século XX, ape-
sar de todo o conhecimento que já
se tinha, uma epidemia mundial de
gripe matou milhões de pessoas.
Em pleno final do século XX, doen-
ças que já pareciam coisa do
passado - como cólera e dengue -
reaparecem e causam a morte de
muitas pessoas no Brasil. Surgem
doenças novas, como a aids.
Estamos livres de uma situação
como a peste de Londres de 1665?
MEDICINA MÁGICA E RELIGIOSA
2
MAGIA E CONTÁGIO um boneco no qual se coloca algu-
ma coisa dessa pessoa (cabelos,
A idéia moderna de contágio unhas, pedaço de tecido, etc.). Su-
tem raízes muito antigas, no pensa- põe-se que, assim, o boneco se
mento primitivo. Ela surgiu do pen- torna ligado à pessoa e aquilo que
samento mágico, pré-científico, que se fizer com ele (espetá-lo com
sobrevive em muitos povos, como alfinetes, por exemplo) irá
os índios. repercutir também na pessoa (que
"Contágio" significa a passa- ficará doente ou morrerá).
gem de alguma coisa, de uma pes- O contato direto entre um
soa (ou de um animal, objeto, etc.) bruxo e uma pessoa era considerado
para outra, pelo contato físico. A o mais perigoso: acreditava-se que
palavra "contágio" vem do latim encostando um dedo ou mesmo
"contactus", que significa contato. pisando na sombra de uma pessoa,
Antes de se tornar um conceito o mago poderia passar-lhe doenças
médico, essa idéia surgiu como um e tirar sua vitalidade ("roubar sua
conceito mágico, que sobrevive em alma").
muitos povos, como os indígenas. Todas essas idéias faziam sur-
Uma concepção extremamente gir um temor de tocar ou se aproxi-
difundida por toda a humanidade, mar de qualquer coisa considerada
desde tempos remotos, é a de que se negativa, por medo de se ligar a ela
estabelece uma ligação com aquilo e receber algum tipo de "contágio"
que tocamos. Em diversas antigas maligno. Assim, o contágio, fosse
práticas de magia, para se enfeitiçar intencional (por um mago ou feiti-
uma pessoa e obter o seu amor, era ceira), fosse ocasional (por contato
necessário tocá-la com o dedo, ou com algum doente ou com um obje-
obter algum objeto que tivesse sido to maléfico) era visto como uma
tocado ou usado pela pessoa, pois importante causa de doenças.
assim se podia criar uma ligação Os mortos, por exemplo, eram
com ela. Na feitiçaria atual, para se vistos como algo perigoso. Isso era
influenciar uma pessoa, fabrica-se reconhecido tanto no caso de morte
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natural, como, mais ainda, no caso se lembrar de todo tipo de falta


de mortes por causas estranhas, cometida, que pudesse ter desenca-
desconhecidas. Evitava-se tocar deado a doença como castigo.
neles, ou mesmo em seus objetos. Havia outras causas de doen-
Eram realizados vários rituais que ças além do contágio. Algumas de-
procuravam quebrar a ligação entre las eram sobrenaturais, como a
os vivos e os mortos. Muitas vezes, cólera dos deuses e demônios;
a cabana e os objetos do morto outras naturais. Doenças como
eram queimados, para que não pu- resfriados e reumatismo eram vistas
dessem contagiar outras pessoas. como ocorrências naturais, que não
Também se acreditava que as precisavam de explicação especial.
influências positivas de um objeto Eram tratadas com remédios
sagrado ou de uma pedra preciosa caseiros.
poderiam atuar pelo simples toque. O que, exatamente, ocorria du-
Tocando ou carregando consigo um rante o contágio de uma doença,
cristal, a pessoa se unia a esse segundo essas concepções primiti-
cristal e adquiria seu poder. vas? Havia muitos modos de se
Também se acreditava que pelo tentar explicar o que ocorria. Em
toque um sacerdote ou mesmo um alguns casos, supunha-se que o
rei poderia transmitir um poder contágio introduziu alguma coisa
positivo. maligna dentro da pessoa - um espí-
Sempre que surgia alguma do- rito, um objeto enfeitiçado (como
ença "estranha", que não podia ser pontas de flecha mágicas), ou algo
curada pelos meios domésticos co- de outro tipo. Nesses casos, a cura
muns, supunha-se que a causa era exigia tirar do doente aquilo que
sobrenatural. Temia-se que ela pu- penetrou nele.
desse ter sido enviada por demôni-
os, por feiticeiros ou pelos deuses. FIGURA
Em qualquer caso, acreditava-se CURANDE1.TIF
que essas doenças estavam
associadas também a algum tipo de Os feiticeiros procuravam reti-
falta cometida pelo doente ou por rar o agente maligno através da
alguém de sua família. Essa transpiração, pela massagem, ou
infração poderia ter sido algum tipo sugando, com a boca ou ventosas,
de pecado ou ofensa a um ser os objetos mágicos do corpo. Ba-
sobrenatural, ou algum nhos purificadores eram recomen-
comportamento errôneo para com dados em muitos casos. Podiam
outras pessoas - uma transgressão também ser utilizadas substâncias
social ou moral. Para determinar o que produzissem vômito e purgan-
tipo exato de doença, o curandeiro tes. Às vezes se procurava extrair as
precisava também atuar como substâncias malignas através de
adivinho ou como confessor, fa- sangria. Em casos especiais, era
zendo com que o doente procurasse necessário abrir o crânio do doente,
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para que pudessem sair pelo orifício persiste a idéia de que as doenças
as causas que produziam fortes podem ser castigos divinos pelos
dores de cabeça. Quando se acredi- pecados cometidos pelo doente. Nas
tava que a doença era produzida religiões afro-brasileiras, a presença
pela entrada de um espírito constante da feitiçaria e de práticas
maligno, ele devia ser afastado por mágicas de cura é conhecida por
preces mágicas, pelo barulho todos. Ao longo de toda a história
(tocando tambores) ou mesmo da humanidade, como veremos,
batendo no corpo do doente. essas e outras concepções
Em outros casos, supunha-se "primitivas" sempre estiveram pre-
que o contágio, ao invés de intro- sentes.
duzir algo, retirou alguma coisa da
pessoa - sua vitalidade ou sua alma.
Nesse caso, o curandeiro devia pro- MEDICINA RELIGIOSA: ME-
curar localizar a alma do doente, SOPOTÂMIA
que poderia ter sido roubada e
guardada por um feiticeiro dentro Os assírios e babilônios são os
de uma cumbuca, ou ter sido levada povos mais antigos cuja medicina é
por algum demônio para o mundo conhecida. Essas civilizações se
dos espíritos. desenvolveram na Mesopotâmia, o
De um modo geral, os curan- local onde, atualmente, se localiza o
deiros tinham sucesso e curavam Iraque. Através de textos desses
seus doentes. Pode-se entender a povos, escritos em tabletes de argila
eficácia de seus tratamentos a partir há mais de 4.000 anos, pode-se ter
de conhecimentos modernos, pois uma idéia sobre suas concepções
eles utilizavam muitos medicamen- médicas.
tos de grande poder, além de práti- Sob todos os aspectos, as anti-
cas importantes como a dieta. Por gas sociedades da Mesopotâmia
outro lado, é inegável o efeito real eram dirigidas pela religião. O
produzido pela sugestão sobre os poder do rei vinha dos deuses e
doentes, e todo o tratamento mágico todas as leis sociais eram de origem
tendia a fortalecer no doente a divina. Supunha-se que o deus era o
vontade e a certeza de se curar. O verdadeiro mestre de tudo; ele
próprio processo de confissão, que atingia com a doença a quem
precedia o ritual de cura, pode ser quisesse punir. Se o homem
considerado como benéfico, por esquecesse o fim de sua criação e
aliviar eventuais culpas do doente e rejeitasse as leis que os deuses lhe
colocá-lo em harmonia psicológica impuseram, ele estaria em estado de
com seu meio social. pecado. O deus se irritava e enviava
Muitas dessas concepções doenças e outras calamidades.
"primitivas" sobrevivem até hoje, Todos os deuses podiam pro-
em meio às sociedades mais cultas. duzir e curar doenças. A deusa da
Na tradição judaico-cristã, ainda medicina, em especial, era Gula,
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denominada "A senhora que dá a Outras possíveis causas de do-


vida aos moribundos, e os torna ença eram crimes ou infrações mo-
sadios pelo contato de sua mão rais, sociais e políticas, como rou-
pura." bar, incitar brigas, mentir. Violar
Como a doença era produzida leis religiosas, deixar de fazer ofe-
pelos deuses, o único recurso contra rendas aos deuses e de invocar a
qualquer enfermidade era acalmar e deusa antes das refeições, bem
agradar aos deuses. Evidentemente, como jurar em falso pelo nome do
o médico pertencia à classe dos deus, eram causas certas de doença.
sacerdotes, pois sem o conheci- Em outros casos, não eram os
mento religioso nada era possível. deuses que atingiam diretamente o
homem: eles o abandonavam,
FIGURAS deixavam de protegê-lo, e ele era
PAZUZU.TIF atingido pelos maus espíritos e
SEKHMET.TIF demônios. Os feiticeiros podiam,
através de encantamentos, lançar o
O sacerdote supunha que a do- demônio de uma doença contra o
ença estava associada a algum peca- corpo humano. Os demônios
do, ou à magia. Para poder se curar, entravam no corpo do homem e o
o doente deveria primeiramente torturavam.
tentar descobrir qual o pecado que A terapia era coerente com a
ocasionou a doença, pois só então causa atribuída às doenças. O trata-
poderia saber qual o deus a quem mento exigia que o deus irritado
deveria dirigir suas preces e oferen- fosse acalmado, obtendo-se seu
das. Pelo estudo dos sintomas da perdão pela prece, sacrifício e ofe-
doença, era possível, muitas vezes, rendas. Dependendo do caso, era
descobrir qual o deus que a havia necessário expulsar o demônio que
produzido: tomou o corpo do doente, através de
um exorcismo.
"Quando um homem é atingido Algumas das oferendas desti-
no pescoço, é a mão de Adad; quando nadas aos deuses eram alimentos
é atingido no pescoço e seu peito está
dolorido, é a mão de Ishtar, a dos
como pão, bebidas, aves, carnes,
colares. Quando um homem sofre das leite, mel. O sacrifício podia ser
têmporas e os músculos do pescoço uma substituição do doente por um
estão doloridos, é a mão de um animal entregue ao deus, em sacri-
demônio." fício:
A causa da doença podia ser "Darás um porco como teu subs-
uma ofensa ao deus ou algum tipo tituto. Dai sua carne por tua carne, seu
de ato que produziu uma impureza: sangue por teu sangue; que ele [o
pisar água suja, tocar ou olhar para deus] possa aceitá-lo; o coração que
colocaste sobre teu coração, dai-o pelo
uma pessoa que não tinha lavado as teu coração; que ele possa aceitá-lo."
mãos, etc.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 13

Para expulsar os demônios, 250 plantas das quais eram


além de orações, eram utilizados extraídos medicamentos, que em
remédios especiais: substâncias que geral eram usados misturados com
desagradassem esses demônios, cerveja ou vinho de palmeira.
para que eles saissem do corpo do Muitos desses medicamentos eram,
doente. Por isso, muitos remédios certamente, eficazes.
eram terríveis e repugnantes. A idéia de uma medicina
Utilizavam cataplasmas de plantas quase totalmente religiosa pode
podres; a fumaça mal-cheirosa de parecer absurda, a uma mente
penas ou lãs queimadas; científica moderna. Mas deve-se
medicamentos amargos; remédios notar que essa medicina não era
feitos de excrementos humanos ou irracional. Afinal de contas, o
de animais. tratamento e a prevenção das
O melhor modo de evitar do- doenças era totalmente coerente
enças, evidentemente, era permane- com a causa das mesmas. Há,
cer reconciliado com o deus, além portanto, um certo tipo de
de utilizar amuletos ou talismãs, racionalidade na medicina religiosa.
para afastar os demônios ou encan- Irracional seria, pelo contrário,
tamentos mágicos. Continham a acreditar que as doenças eram pro-
figura do demônio e a oração apro- duzidas por deuses e demônios e
priada. Alguns eram carregados utilizar simples remédios naturais
pela pessoa, presos a um colar. contra elas; ou acreditar que as do-
Outros, eram mantidos em casa. enças eram naturais e utilizar ora-
Havia também pedras e plantas que ções contra as mesmas. Nesses ca-
podiam afastar os maus espíritos. sos, o tratamento seria incoerente
com a causa da doença e poderia ser
Embora fosse tipicamente re- considerado irracional.
ligiosa, a medicina da Mesopotâmia
admitia causas naturais para várias
doenças. Por exemplo: Se um ho- MEDICINA RELIGIOSA IN-
mem tinha dores no coração, sentia DIANA
seu estômago em fogo e seu peito
como se estivesse rasgado, o sacer- Em outras civilizações antigas,
dote diagnosticava que esse homem das quais foram preservados muitos
estava sofrendo o efeito do calor do textos religiosos, também se notam
dia. Em vez de orações e rituais, a concepções semelhantes às da Me-
cura consistia em amassar juntas sopotâmia. Na Índia, cerca de 1.000
várias substâncias vegetais e dar ao anos antes da era cristã, foram com-
doente para beber em jejum, com postos os livros que se chamam
cerveja. "Vedas". Em um deles - o Atharva-
Há textos mesopotâmicos que Veda - encontram-se muitas orações
descrevem sintomas e dão nomes às contra feiticeiros, pois eles eram
doenças mais comuns. Há cerca de
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 14

responsáveis por grande número de produzidas pela invasão do corpo


males e doenças. por demônios. Há textos indianos
Assim como na Mesopotâmia, em que as idéias de seres sobrenatu-
observamos na Índia a existência de rais e causas naturais das doenças
orações aos deuses para curarem parecem se confundir. Existem ora-
doenças, para protegerem dos ções destinadas a expulsar o
demônios e dos feiticeiros, etc. Um "yakshma" do corpo dos doentes;
dos aspectos relevantes do pensa- esse "yakshma" é alguma coisa que
mento indiano antigo é a associação produz a tuberculose e outras doen-
entre muitas doenças e vermes visí- ças, e não se torna claro se é um
veis e invisíveis. ente sobrenatural, como os demôni-
As verminoses intestinais sem- os, ou natural, como os vermes.
pre foram bem conhecidas e muitos O yakshma parecia ser alguma
povos nem lhes davam importância, coisa viva, que penetrava no corpo
por serem coisas comuns e aparen- e que podia ser tirado dele, por
temente pouco perigosas. No en- encantamentos. Além disso, o
tanto, partindo do conhecimento de yakshma podia também ser mantido
que o corpo humano pode abrigar à distância por meios naturais: por
vermes, os indianos generalizaram remédios e pela fumaça de plantas
essa idéia e passaram a imaginar aromáticas:
também "vermes invisíveis" que po- A idéia de que a fumaça de
deriam habitar o corpo e produzir substâncias aromáticas (como in-
doenças. A oração védica seguinte, censo) podia afastar as causas das
muito antiga, invoca o deus Indra doenças apareceu também em ou-
contra todos os tipos de vermes: tros povos antigos. Como vamos
ver, é uma concepção que teve
"Com a grande mó de Indra, que longa vida, sendo de enorme impor-
esmaga todos os tipos de vermes, eu tância na medicina européia até o
amasso em pedaços os vermes, como
os grãos em uma mó. (...)
século XVIII.
O verme que vive nas entra- Vê-se, através desses exem-
nhas, que vive na cabeça, nas coste- plos, como a concepção da invasão
las, o avaskava e o perfurador - eu os do corpo por entidades vivas, invisí-
despedaço com minha magia. veis, capazes de produzir doenças, é
Os vermes que estão nas mon-
tanhas, nas florestas, nas ervas, no
antiga. De certa forma, é na antiga
gado, nas águas, que entraram em nós medicina religiosa que estão as raí-
- eu destruo toda essa geração de zes da moderna teoria microbiana
vermes." das doenças.

A idéia de que os vermes po-


diam produzir muitas doenças e se OS INDIANOS E AS IMPURE-
localizar em diferentes partes do ZAS
corpo não era muito diferente da
idéia de que as doenças podiam ser
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 15

Nas civilizações em que a me- do rio, mas próximo dele, deviam


dicina tinha caráter religioso, um esfregar o traseiro com areia ou
conceito extremamente importante terra (não existia papel higiênico),
era o de "impureza". Aquele que com a mão esquerda, depois lavar a
cometia uma falta religiosa se tor- mão no rio. Isso devia ser repetido
nava impuro e sujeito a doenças. pelo menos 5 vezes. Em seguida,
Essa "impureza" podia estar associ- deviam se banhar no rio.
ada àquilo que podemos considerar Dentro do rio, deveria ser feito
como um pecado - uma falta moral, um ritual especial de purificação da
uma ofensa à divindade; mas tinha boca, com água. Os brâmanes casa-
um significado mais amplo, como dos deviam repetir essa purificação
vamos ver. 32 vezes. Por fim, era necessário
Para se livrar da impureza, a mascar e esfregar os dentes com um
pessoa precisava realizar um ritual ramo de uma planta. Todas essas
purificador, que muitas vezes purificações eram acompanhadas de
incluía o banho. Dessa forma, o orações. Somente após tudo isso os
asseio corporal estava fortemente brâmanes podiam realizar qualquer
associado à idéia de pureza tarefa religiosa, pois só esse ritual
religiosa. os purificava dos pecados
Purificações rituais pela água cometidos durante a noite.
aparecem muito fortemente na tra- Todos os dias, os brâmanes
dição indiana. Os portugueses - e, casados deviam repetir essa
depois, os ingleses - que invadiram purificação ao meio-dia. Também
a Índia no fim do século XV, se devia fazer essa purificação em
ficavam espantados ao ver que os momentos especiais, como em ri-
indianos se lavavam e tomavam tuais associados à lua cheia e lua
banhos inúmeras vezes por dia. Os nova, ou quando houvesse um
europeus dessa época, pelo contrá- eclipse.
rio, raramente se lavavam e, por No entanto, além de ocasiões
isso, o banho lhes parecia algo su- fixas de purificação, era necessário
persticioso e até demoníaco. dar especial atenção a certas situa-
O padre português Gonçalo ções que podiam produzir
Trancoso, em 1616, descreveu que impureza. A morte era,
as purificações dos indianos come- especialmente, uma fonte de grande
çavam antes do nascer do Sol. To- impureza.
dos os indianos da classe social Segundo um antigo texto indi-
mais elevada - os "brâmanes", da ano, o Vishnu-Smriti, um brâmane
casta sacerdotal - deviam levantar- se tornava impuro pela morte de um
se e ir para o rio mais próximo, em parente (até o sétimo grau) ou de
silêncio absoluto. Deviam cobrir seu mestre espiritual. Essa impureza
um local do chão com ervas e durava dez dias. Se uma mulher da
evacuar nesse lugar, com o rosto família sofresse um aborto, esse
voltado para o norte. Depois, fora fato também produzia uma
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 16

impureza, por um número de noites Havia outras regras que pode-


igual ao número de meses desde a mos interpretar como cuidados com
concepção do feto. a saúde. Uma pessoa era conside-
Em todos esses casos, após rada impura se vomitasse ou cuspis-
decorrido o tempo de impureza, era se sangue.
necessário fazer um ritual especial: Durante o período de impure-
mergulhar em um rio, pronunciar za, a pessoa não devia cozinhar -
certo hino sagrado três vezes e, era preciso comer alimentos
depois de sair da água, repetir a comprados ou oferecidos
oração chamada Gayatri mil e oito gratuitamente; devia evitar carne e
vezes. dormir no chão, sozinho. Após o
Carregar o corpo de um de- período de impureza, era necessário
funto, para a cremação, era especi- realizar sempre um ritual
almente perigoso e exigia muitos purificador, pois a impureza não
rituais adicionais. A impureza de desaparecia por si mesma.
um cadáver era considerada tão A duração do período de im-
grande que podia contagiar mesmo pureza era variável. Uma mulher
as pessoas próximas. Por isso, a menstruada só ficava pura depois de
pessoa se tornava impura se seguia quatro dias. Em outros casos, como
um funeral, ou se ficava ao alcance espirrar, cuspir, dormir, urinar ou
da fumaça da pira crematória. De- falar com um estrangeiro, bastava
via, nesses casos, lavar suas roupas uma rápida purificação.
e tomar o banho ritual, para se Algumas das regras indianas
tornar novamente pura. nos parecem simples regras de as-
A impureza era considerada seio, mas tinham conotação religi-
como algo contagioso: tocar uma osa. As várias excreções do corpo
pessoa que tocou um cadáver ou eram consideradas impuras: gordu-
tocar uma mulher menstruada acar- ra, sêmen, sangue, caspa, urina,
retava impureza. A pessoa também fezes, excreção dos ouvidos, unhas
adquiria impureza se aceitasse ali- cortadas, catarro, lágrimas, suor. As
mentos de alguém impuro, ficando cavidades corporais acima do umbi-
impuro durante tanto tempo quanto go (boca, ouvidos etc.) eram consi-
este. deradas puras, e as de baixo, impu-
Se um animal morresse em um ras.
poço, ou se este se tornasse impuro Dava-se mais importância à
em alto grau, recomendava-se tirar limpeza da parte de cima do corpo
toda a água, secar com um pano e do que à de baixo. Quando se
acender fogo dentro. Por fim, quan- sujava alguma parte do corpo,
do começasse a surgir água no poço abaixo do umbigo, com alguma
novamente, devia-se atirar alimento excreção do corpo, bastava limpar
sagrado nele. Considerava-se que com terra e água. Quando se sujava
grandes reservatórios de água (rios, acima do umbigo, era necessário,
açudes) não se tornavam impuros. além disso, tomar banho. Se a boca
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 17

ou os lábios se sujavam, além da diante do fogo. Então, ele ficaria


limpeza e do banho, devia-se ficar novamente puro.
em jejum e tomar uma bebida Por fim, há outras regras que
sagrada. nos parecem simplesmente
Além das excreções corporais, absurdas, sob o ponto de vista de
as bebidas alcoólicas também acar- asseio. De acordo com o Vishnu-
retavam impureza, no mais alto Smriti, a boca de um bode ou cavalo
grau. Se um recipiente de ferro ou é sempre pura, e por isso um objeto
de argila entrava em contato com não se torna impuro por ser
essas substâncias, devia ser purifi- abocanhado por esses animais. A
cado expondo-o ao fogo. Pedras regra não vale, no entanto, para a
preciosas impuras deviam ser enter- boca da vaca. São considerados
radas durante 7 dias. Objetos de sempre puros: elefante, cavalo,
osso ou dente (como marfim) devi- gato, raios de sol, fogo, ar, terra,
am ser polidos. Mas os recipientes poeira, gotas de saliva que caem da
de madeira impregnados por impu- boca, moscas, excrementos de vaca.
rezas deviam simplesmente ser jo- Embora algumas das regras
gados fora, pois não podiam ser indianas nos pareçam estranhas ou
purificados. No caso de roupas, se mesmo ridículas, a maior parte
após lavadas ainda tiver ficado uma delas deve ter sido benéfica à
parte manchada, esta deveria ser manutenção da saúde, evitando
cortada. Há também normas gerais, contato com coisas que poderiam
como esta: produzir doenças. Assim, as regras
religiosas sobre pureza foram, na
"Enquanto o cheiro ou umidade prática, excelentes normas de
causados por uma substância impura higiene.
permanecem no objeto que foi sujado,
deve-se aplicar constantemente terra e
A tradição indiana teve peque-
água, em todas as purificações de na influência no ocidente, exceto de
objetos inanimados." modo indireto, através dos árabes,
no final da Idade Média. Há, no
Além de regras que nos pare- entanto, outra tradição antiga que
cem de bom senso como as anterio- influenciou mais diretamente o pen-
res, havia outras mais estranhas. Se samento europeu: o pensamento
grãos que já foram cozidos se tor- hebraico.
navam impuros, por contato com
animais, devia-se retirar apenas o
que foi sujado; depois, devia-se AS IMPUREZAS E AS DOEN-
borrifar o restante com água na qual ÇAS NA BÍBLIA
se colocou um pedaço de ouro e
sobre a qual foi recitada a oração As noções de impureza e de
Gayatri; por fim, devia-se segurar o seu contágio estão presentes de
alimento na frente de um bode e modo muito claro na Bíblia. A co-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 18

nexão entre doenças e impureza é eram terríveis: pobreza, insucesso


também muito clara nessa tradição. em tudo, traição, fome, e muitos
O deus hebraico, como se tipos de doenças - peste, febre,
sabe, era capaz de enviar doenças e úlceras, sarna, loucura, cegueira, "e
epidemias de todos os tipos sobre um mal incurável da planta dos pés
os que o desobedeciam. No livro do até a ponta da cabeça". Essa maldi-
Êxodo, na Bíblia, descreve-se que ção não terminava com a morte:
Moisés pediu ao faraó do Egito, em transmitia-se a todos os descenden-
nome do deus hebraico, que liber- tes, pois o próprio sêmen levava a
tasse o seu povo. Como o faraó não impureza aos filhos.
o fez, conta a Bíblia que a
divindade hebraica teria enviado FIGURA
sucessivas pragas sobre o Egito, JOB.TIF
incluindo doenças:
No pensamento bíblico, as
"O Senhor disse a Moisés: idéias de pecado, impureza, sujeira,
- Vai encontrar o Faraó, e dize- doença, castigo e morte estão todas
lhe: Eis o que diz o Senhor, o Deus
dos hebreus. Deixai ir meu povo, para
intimamente interligadas. O livro da
que ele me sacrifique. Se vos recusar- Bíblia em que se pode perceber
des ainda, e se vós os retiverdes, melhor essas idéias é o Levítico.
estenderei minha mão sobre vossos De modo semelhante a outras
campos, e os cavalos, asnos, camelos, culturas antigas, o Levítico ensina
bois e ovelhas serão atingidos por uma
peste muito grave."
que uma pessoa pode se tornar im-
pura (pecadora, suja) de muitos
Como o Faraó não obedecesse, modos diferentes. Os tipos que mais
Deus mandou que Moisés enchesse nos interessam, por terem relação
as mãos com cinzas e as lançasse com a doença, não têm relação com
para o céu: "Esse pó espalhar-se-á falhas morais e com pecados no
por todo o Egito. Então se formarão sentido do cristianismo.
nos homens e nos animais úlceras e Vários tipos de animais eram
tumores, em toda a terra do Egito". considerados impuros. A vaca ou a
Por fim, a Bíblia conta que o ovelha eram puros e podiam ser
Faraó acabou por ceder, quando comidos pelos hebreus, mas o Leví-
uma peste matou todos os filhos tico ensinava que os quadrúpedes
mais velhos de todos os egípcios - ruminantes que não tenham a pata
incluindo o filho do próprio Faraó. dividida em duas (como o camelo)
Em vários pontos da Bíblia, eram impuros e não podiam servir
fica claro que o deus hebraico não de alimento. Da mesma forma, as
lançava doenças apenas sobre os lebres, os porcos e vários outros
inimigos dos hebreus, mas também animais eram proibidos para os he-
sobre eles próprios, se não obede- breus. Dos animais aquáticos, ape-
cessem às suas ordens. Os castigos nas seriam puros os que possuem
nadadeiras e têm o corpo recoberto
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 19

por escamas. Polvos, camarões ou os indianos, os objetos de madeira


baleias, que não obedecem a essas não poderiam ser purificados de
condições, seriam impuros. modo nenhum.
Os animais impuros não podi- Mesmo os animais puros po-
am ser comidos e nem mesmo toca- dem se tornar impuros, se morrerem
dos, quando estão mortos. Se uma por si próprios. Nesse caso, aplica-
pessoa tocasse um animal impuro se a eles a mesma restrição que aos
morto, ela ficaria também impura. animais impuros: não podem ser
Se alguém tocar essa pessoa, tam- comidos nem tocados, pois transmi-
bém ficaria impuro. tirão sua impureza a quem os tocar.
Para se libertar da impureza, Esta regra parece uma prescrição de
nesse caso, era necessário lavar as origem médica, pois evita que as
roupas, lavar o próprio corpo, e pessoas tenham contato com
esperar até o anoitecer. Apenas à alguma doença que possa ter
noite a pessoa ficaria novamente matado o animal. Mas a Bíblia não
pura. Antes disso, a pessoa não dá esse tipo de justificativa, e sim
poderia participar de atos religiosos, um motivo puramente religioso. O
nem entrar em contato com outras Levítico avisa:
pessoas, pois elas se contaminariam
também. "Tomai cuidado para não conta-
Tudo o que sai de um animal minar vossas almas, e não tocai
nenhuma dessas coisas, para que não
impuro também é impuro. Se algu- sejais impuros."
ma coisa cai de um animal impuro
morto sobre um objeto, esse objeto Há várias outras causas possí-
também fica impuro. No caso de veis de impureza, associadas a do-
objetos de argila, porosos, essa im- enças ou estados físicos. Como em
pureza não pode ser retirada: eles muitas outras civilizações, a Bíblia
devem ser quebrados, destruídos. ensinava que as mulheres menstrua-
No caso de roupas ou objetos de das deviam ser consideradas impu-
madeira, eles devem ser lavados e, ras, durante 7 dias. Também após o
após o anoitecer, se tornarão puros parto, a mulher se tornava impura.
novamente. Se, antes de serem puri- Se o filho fosse um menino, a impu-
ficados, a água escorrer desses obje- reza duraria 7+33 dias (ou seja, um
tos para um outro, este outro tam- total de 40 dias). Se fosse uma me-
bém ficará impuro. Ou seja: a pró- nina, a impureza duraria o dobro
pria água, que é o principal meio de desse tempo. Durante esse período
purificação, também pode transmitir de impureza, as mulheres deveriam
a impureza. No entanto, a água em ficar relativamente isoladas. Foi
grande quantidade (em rios, lagos, provavelmente a partir desse núme-
reservatórios) não fica impura. ro "mágico", de 40 dias, que se ori-
Note-se que algumas dessas ginou a "quarentena" - período de
regras são muito parecidas às dos
indianos; outras são diferentes. Para
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 20

isolamento de pessoas que podem "Todo homem que seja mancha-


estar com uma doença contagiosa. do pela lepra e que tenha sido separa-
do dos outros por decisão do sacer-
Normas iguais às das mulheres dote, usará roupas sem costura,
menstruadas aplicavam-se também andará com a cabeça nua, com o rosto
a homens com corrimento do órgão coberto por suas vestes, e gritará que
sexual (gonorréia). Eles se está sujo e contaminado."
tornavam impuros enquanto
estiverem doentes, e os leitos e Também os objetos podiam fi-
cadeiras que utilizassem também se car "leprosos", se tivessem manchas
tornavam impuros. semelhantes à da lepra. No caso de
Uma doença à qual o Levítico roupas, por exemplo, se apareces-
deu grande atenção foi a lepra. De sem tais manchas (talvez de mofo?),
acordo com o que sabemos atual- elas deveriam ser levadas ao sacer-
mente, a lepra é uma doença trans- dote que as examinaria e guardaria
missível por contato. Ela produz durante 7 dias. Se as manchas cres-
manchas na pele e as regiões do cessem, ele declararia que se trata
corpo afetadas pela doença se tor- de lepra, e elas deveriam ser quei-
nam insensíveis a ferimentos ou madas. Se não crescessem, poderi-
queimaduras (este é um antigo am ser lavadas, depois observadas
modo de identificá-la). Com a evo- durante mais 7 dias. Se nada apare-
lução da doença, antigamente, a cesse, seriam lavadas de novo e
pessoa podia chegar a perder partes declaradas puras. Casas em que
do corpo (dedos, nariz, etc.). aparecessem certas manchas tam-
A lepra a que a Bíblia se refere bém poderiam ser consideradas
nem sempre corresponde àquilo que leprosas.
chamamos de lepra. Praticamente A "lepra" das roupas e das ca-
qualquer tipo de mancha branca era sas era apenas uma concepção des-
chamada de lepra. Quando um he- envolvida por analogia com a lepra
breu apresentava esse tipo de sinal, das pessoas. Não se tratava de um
devia ser levado ao sacerdote, que o conceito semelhante ao nosso, de
examinava. Se os pêlos da região que um objeto pode ser veículo de
das manchas tinham mudado de cor contágio de uma doença. As roupas
e se a pele apresentava uma depres- e casas podiam ficar "leprosas" sem
são no lugar da mancha, o sacerdote nenhum contato de pessoas doentes.
declarava que se tratava de lepra Após o desaparecimento dos
impura, e a pessoa teria que ficar sinais de "lepra", era necessária
isolada dos demais. No entanto, em uma série de rituais religiosos. A
outros casos de "lepra" o sacerdote pessoa deveria levar ao sacerdote
podia declarar que a pessoa estava dois pássaros. Um deles era morto
pura. Os impuros deveriam ser em sacrifício, e com seu sangue (e
separados da sociedade, para não outras substâncias) tingia-se o se-
contagiar outras pessoas. gundo pássaro. A pessoa era asper-
gida 7 vezes com esse sangue, e
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 21

depois o pássaro era solto, para o segundo bode, que era o "bode
voar. O significado simbólico pare- expiatório" (em latim, "expiatio"
cia ser o seguinte: pelo sangue der- significa responder ou pagar por
ramado sobre o pássaro e sobre a uma falta; a palavra não tem relação
pessoa impura, eles se uniam; o com "espiar" ou "espionar"). Ele era
pássaro passava a representar a levado para o deserto e solto. Dessa
própria pessoa. Quando ele era forma, as impurezas de todas as
deixado livre e voava, carregava pessoas iriam embora. A pessoa que
embora as impurezas da pessoa. conduzia o bode para o deserto
precisava se purificar, pois alguma
FIGURA impureza poderia ter passado para
LEVITICO.TIF ela, ao conduzir o animal carregado
de pecados.
No entanto, o ritual não termi- A idéia de um "bode expiató-
nava aí. A pessoa devia lavar suas rio" ou de outro animal que vai car-
roupas, raspar todos os pêlos do regar os pecados e a culpa de todas
corpo, lavar-se, e aguardar durante as pessoas, apareceu em várias ou-
7 dias. A raspagem permitia verifi- tras civilizações - até mesmo no
car se realmente não havia mais México, antes da chegada dos euro-
manchas ou sinais da doença. Após peus à América. De modo seme-
os sete dias, a pessoa devia nova- lhante, o Novo Testamento cristão
mente raspar todos os pêlos e se indica que Jesus expulsou os
lavar. Era então feito um sacrifício demônios de pessoas e passou esses
de um carneiro, oferecido à divin- demônios para porcos. Esse exem-
dade, pedindo-se que ele fosse acei- plo ilustra um aspecto do conceito
to em pagamento pelo delito ou mágico ou religioso de contágio: as
pecado cometido pela pessoa. Sim- impurezas podem ser adquiridas por
bolicamente, isso significava que a contato, e podem também ser expe-
lepra tinha sido um castigo por al- lidas da pessoa, para um animal (ou,
gum delito ou pecado, e que só às vezes, para outra pessoa).
agora, penitenciando-se e pagando Na concepção hebraica de im-
por esse delito ou pecado, a pessoa pureza, vemos alguns dos aspectos
ficava realmente pura. da moderna concepção médica de
Nota-se um aspecto bastante doenças contagiosas. Mas é claro
interessante nesse ritual, e que apa- que há também muitas diferenças.
rece também em outros semelhan-
tes: a transmissão da impureza de
uma pessoa para um animal. O Le-
vítico prescrevia um ritual anual, de
purificação de todo o povo. Nesse
ritual, tomavam-se dois bodes. Um
deles era morto. O sacerdote trans-
feria todos os pecados do povo para
MEDICINA GREGA
3
MEDICINA RELIGIOSA como amante a jovem Chryseis,
GREGA filha de um sacerdote de Apolo.
Esse sacerdote implorou a
A civilização grega antiga foi Agamenon que libertasse sua filha.
o ponto de partida de toda a cultura Em troca, o sacerdote oferecia um
científica ocidental moderna. Até pagamento e solicitaria aos deuses
hoje, é um grego - Hipócrates - a que os exércitos do rei fossem bem
quem chamamos de "pai da Me- sucedidos na guerra. Apesar de falar
dicina". em nome de Apolo, o pedido do
A Medicina grega marca uma sacerdote foi negado. O sacerdote
importante etapa na evolução do se afastou, foi para a praia e fez
pensamento médico. Inicialmente, uma oração a Apolo, solicitando
ela se assemelhava à Medicina de que ele o vingasse.
outras nações: era uma mistura de
concepções mágicas, religiosas e de "Apolo ouviu sua prece. Desceu
receitas práticas para a cura das furioso dos picos do monte Olimpo,
com seu arco e sua aljava cheia, nos
doenças. ombros. As flechas vibravam em suas
A antiga religião grega aceita- costas, com a raiva que tremia dentro
va a existência de muitos deuses. dele. Apolo se assentou longe dos
Apolo e sua irmã Artemis eram navios, com uma face tão negra
descritos na mitologia grega como quanto a noite, e seu arco de prata deu
um terrível assobio e espalhou a morte
podendo produzir doença e peste enquanto ele atirava suas flechas entre
através de flechas lançadas sobre os eles. Primeiramente o deus atingiu
homens. A Ilíada de Homero des- suas mulas e cães, mas depois dirigiu
creve, no seu primeiro livro, um suas setas mortíferas contra as
caso desse tipo, que ilustra as con- próprias pessoas. Durante todo o dia,
queimavam as piras dos mortos.
cepções mitológicas gregas. Durante nove dias ele atirou suas
Segundo a Ilíada, o rei Aga- flechas entre as pessoas (...)"
menon havia raptado e tomado
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 23

A epidemia não cessava. transformado em semideus por de-


Aquiles reuniu os homens e propôs formação da tradição.
que consultassem um sacerdote ou Segundo o escritor Ovídio,
algum intérprete de sonhos para Asclepios foi o filho do deus Apolo
descobrir por que Apolo estava tão com a mortal Coronis. Durante a
furioso. Um adivinho contou que gravidez, Coronis traiu Apolo com
Apolo estava irritado porque o rei um homem e foi morta pelo deus.
desrespeitara o sacerdote. Houve No entanto, ele salvou o filho, ti-
então uma disputa entre Aquiles e rando-o de seu ventre. Logo depois
Agamenon, que por fim concordou de ser tirado de sua mãe, Asclepios
em devolver a filha ao sacerdote. foi levado por Apolo até Magnésia,
Após a devolução de Chryseis, confiado ao centauro Quíron, que
foram feitas orações e sacrifícios de conhecia todas as plantas
animais a Apolo, que ficou satis- medicinais e que o instruiu na arte
feito, e a peste terminou. da cura. "Curava a uns com as
Nessa fase da cultura grega, as doces palavras da magia, a outros
grandes calamidades pareciam pro- oferecia remédios eficazes, ou lhes
duzidas pelos deuses, como castigo aplicava ervas em torno de seus
por ofensas religiosas. Havia, é membros, ou cortava o mal com o
claro, outros tipos de doenças co- ferro, para devolver-lhes a saúde."
muns que não eram atribuídas aos Asclepios, segundo a lenda,
deuses. Não se sabe, no entanto, adquiriu um conhecimento tão gran-
como era o tratamento dessas doen- de que se tornou capaz de ressusci-
ças, no período grego mais antigo. tar os mortos. Plutão, o deus dos
A mitologia grega indica que infernos, pediu a Zeus que o matas-
Apolo, o deus do Sol, além de pro- se, pois estava despovoando seus
duzir doenças, poderia também domínios. Zeus atendeu a seu pedi-
curá-las - e, por isso, ele se tornou a do e matou-o com um raio. Depois,
principal divindade controladora para consolar seu pai Apolo, colo-
das doenças. Posteriormente, surgiu cou-o no céu, onde forma parte da
o semideus Asclepios (ou constelação da Serpente.
Esculápio), filho de Apolo, como Asclepios era representado ge-
divindade específica da Medicina. ralmente com um bastão de
Segundo autores romanos do viajante, no qual estava enrolada
início da era cristã, a Medicina uma serpente - símbolo da
grega começou com Asclepios. Te- adivinhação entre os gregos e
ria nascido na Tesalia, no século auxiliar de todas as divindades
XIII antes da era cristã. Juntamente médicas. Havia diversos outros
com Apolo, teria descoberto as animais associados a esse deus: cão,
plantas medicinais. É plausível que cabra e galo - este último, símbolo
tenha existido de fato um médico de vigilância no exercício da profis-
chamado Asclepios, posteriormente são médica.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 24

Na mitologia, Asclepios tem em geral, de um galo. Então, os en-


uma família que simbolizava vários fermos podiam passar a noite dor-
aspectos da Medicina. Sua esposa mindo no templo - e isso era cha-
Epione aliviava a dor. Sua filha mado de "incubação". Era um ato
Hygeia era a divindade da saúde. religioso pelo qual se provocava a
Outra filha, chamada Panacea, re- aparição, em sonho, da própria di-
presentava os remédios que cura- vindade, para se obter a saúde.
vam todas as doenças. Seu filho Em alguns casos, o doente ti-
Telesphoros representava a recupe- nha visões que indicavam a
ração do enfermo. natureza da doença e o modo de
Hygeia, a filha preferida de tratá-la. Em outros casos, durante o
Asclepios, é às vezes representada sonho, o próprio deus o curava,
alimentando uma serpente. É do instantaneamente. Isso ocorria pela
nome Hygeia (saúde, em grego) que aplicação das mãos no local doente,
vem o nosso termo "higiene". Para ou por operação cirúrgica, ou minis-
nós, a palavra se refere a limpeza, trando um remédio, ou pela ajuda
asseio. No entanto, seu significado de animais (uma grande serpente,
primitivo é muito diferente: repre- um cachorro e um ganso) que
sentava tudo aquilo que se pode acompanhavam Asclepios.
fazer para manter ou restaurar a
saúde. FIGURA
Aproximadamente no século TEMPLO.TIF
VI a. C. foram criados templos es-
pecialmente dedicados a Asclepios. Nem sempre o deus atendia ao
Esses templos eram edificados em doente, porque ele não o merecia ou
lugares considerados saudáveis e de não havia realizado a purificação
paisagem agradável. Estavam sem- correta antes da incubação. Podia
pre rodeados por um bosque sagra- também ocorrer que fossem neces-
do, no qual não se podia matar nem sárias muitas repetições da incuba-
nascer - para simbolizar a vida eter- ção, antes que a pessoa recebesse a
na. Geralmente, dentro desse bos- visita de Asclepios.
que, existiam uma fonte natural, Esse tipo de Medicina
assim como templos dedicados a religiosa existia também no Egito:
Artemis e a outras divindades asso- os doentes tinham o costume de se
ciadas à cura. Dentro do próprio encerrar nos templos de Isis e de
templo de Asclepios, existiam ser- Serapis, e esperar que essas
pentes vivas. divindades lhes revelassem, durante
Os enfermos se dirigiam a es- o sono, os remédios que lhes eram
ses templos em busca de curas mila- necessários.
grosas. Deviam submeter-se a je- Há várias interpretações possí-
juns, banhos, untar-se com óleos, veis sobre o que ocorria no templo
lavar-se e fazer outras purificações. de Asclepios. Em parte, pode ter
Depois, deviam efetuar sacrifícios - ocorrido que as pessoas se curassem
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 25

de problemas psicossomáticos por C. Nessa época surgiram os


simples sugestão. Pode também ter primeiros filósofos gregos
ocorrido que os próprios sacerdotes importantes que conhecemos: Tales
e encarregados do templo se disfar- de Mileto, Anaximandro, Anaxíme-
çassem, à noite, e dessem remédios nes, Heráclito, Pitágoras, e outros.
e fizessem operações cirúrgicas, Esses filósofos começaram a propor
fazendo-se passar pelo deus. Pode um novo tipo de conhecimento, que
ser que a parte mais importante do não se baseava na tradição religiosa
processo fosse posterior aos sonhos: e sim no próprio raciocínio humano.
os encarregados do templo talvez Não foram conservados os li-
fizessem prescrições médicas úteis. vros dos médicos anteriores a Hipó-
De qualquer forma, pode-se dizer crates. No entanto, sabe-se alguma
que os templos de Asclepios eram coisa sobre a medicina naturalista
muito populares e procurados por pré-hipocrática. Um exemplo é o
muita gente. pensamento do médico Euryphon
A corrente médica religiosa de Cnidos, que viveu em torno de
associada a Asclepios foi muito 450 a. C. Ele atribuiu as doenças a
popular e duradoura. Certamente distúrbios de alimentação: "Quando
existia na Grécia uma medicina prá- o ventre não se livra do alimento
tica, lado a lado com essa Medicina que foi ingerido, são produzidos
religiosa. Como vimos, o próprio resíduos que se elevam à região da
mito de Asclepios indica que ele cabeça e então produzem doenças.
utilizava ervas, preparados medici- Quando, no entanto, o ventre é
nais e mesmo cirurgia. Mas era esvaziado e limpo, a digestão ocorre
muito forte a crença de que as do- como deve".
enças eram enviadas pelos deuses Essa idéia de resíduos impuros
como punição por algum erro e de e a necessidade de evacuar e limpar
que a cura dependia da os intestinos tem uma influência
benevolência divina. Uma Medicina egípcia. É possível que os egípcios
independente, naturalista, só tenham notado, através de sua prá-
poderia ter começado a se desen- tica de embalsamamento, que após
volver quando a própria religião a morte os cadáveres começavam a
começou a se enfraquecer. Vamos apodrecer a partir dos intestinos.
ver como isso aconteceu. Daí talvez tenha se originado a dou-
trina de que a principal causa da
doença é o apodrecimento dos ali-
O SURGIMENTO DA MEDICI- mentos no ventre. Esse apodreci-
NA NATURALISTA GREGA mento produziria substâncias noci-
vas, capazes de se espalhar pelo
O enfraquecimento das corpo através do sangue, produ-
crenças mitológicas começou a zindo doenças. A doença poderia
ocorrer, na Grécia, ser evitada, no entanto, pela
aproximadamente no século VI a. limpeza dos intestinos ou por
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 26

sangrias, retirando junto com o grego da Antigüidade. Supõe-se que


sangue as substâncias nocivas. ele viveu em torno do ano 400 antes
Note-se que é uma concepção da era cristã (no mesmo período em
naturalista, bem diferente da idéia que viveram Sócrates e Platão) mas
de impurezas religiosas, utilizada não se sabe muito sobre ele.
pelos hebreus e indianos. Existe uma grande quantidade
Uma outra idéia central que se de escritos que sobreviveram até
desenvolveu nesse período e que hoje, que são atribuídos a Hipócra-
apareceu nos escritos de vários filó- tes. Esse conjunto de obras é cha-
sofos, como Pitágoras e Alcmeon, é mado Coleção Hipocrática (ou, em
a de que a saúde seria o resultado latim: Corpus Hippocraticum). São
do equilíbrio e harmonia do corpo: muitos livros, de estilos diferentes,
excessos e desarmonia produziriam que não podem ter sido escritos por
doenças. Os escritos dessa época uma mesma pessoa, pois se contra-
não foram conservados, mas um dizem e criticam uns aos outros.
autor grego posterior assim descre- Eles foram reunidos quando foi
veu essa teoria: criada a grande biblioteca de Ale-
xandria, um século depois da época
"Alcmeon sustenta que aquilo de Hipócrates. Pode ser que
que estabelece a saúde é o equilíbrio nenhum deles tenha sido escrito
dos poderes: úmido e seco, frio e
quente, amargo e doce, e os demais.
pelo verdadeiro Hipócrates. Muitos
Pelo contrário, a supremacia de um historiadores já tentaram identificar
deles é a causa da doença, pois a as épocas e autores dessas obras,
supremacia de qualquer um é destru- mas nenhum desses resultados é
tiva." seguro. Por isso, vamos nos referir
às "obras de Hipócrates", sem no
Note-se que essa é também entanto querer dizer que essas obras
uma doutrina médica totalmente foram escritas por uma única pessoa
naturalista, ou seja, sem a interven- chamada Hipócrates.
ção de conceitos sobrenaturais, A medicina hipocrática é to-
mágicos ou religiosos. Teorias se- talmente naturalista, ou seja, nunca
melhantes, que interpretavam a leva em conta causas sobrenaturais.
doença como ruptura do equilíbrio Uma idéia básica que aparece em
de diversas substâncias ou poderes, muitas obras de Hipócrates é a de
surgiram também em outros locais, que o organismo humano é com-
na Antigüidade - como na China e posto por um certo número de lí-
na Índia, por exemplo. Mas não se quidos ou "humores".
sabe se existe alguma ligação entre A palavra "humor"
a teoria grega e as dessas outras significava, antigamente, uma coisa
civilizações. úmida, ou seja, um líquido ou
Idéias como essas serão cen- fluido. O termo latino "humudu" foi
trais no pensamento médico de Hi- a origem do português "húmido",
pócrates, o mais famoso médico que depois perdeu a letra h inicial e
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 27

se tornou "úmido". Do mesmo surgido a partir da teoria dos quatro


radical latino veio a palavra elementos de Empédocles. Ele ensi-
"humore", significando suco, nava que tudo é constituído a partir
bebida, líquido corporal ou líquido de quatro elementos básicos: terra,
de qualquer espécie. Muitos séculos fogo, água e ar. Essa idéia seria de-
depois, a palavra "humor" passou a pois aproveitada por vários outros
indicar uma disposição de espírito, autores, assumindo grande impor-
porque se supunha que os humores tância na medicina.
dentro do corpo humano Em grande parte, a saúde e a
determinavam a personalidade da doença resultariam da alimentação,
pessoa. Uma pessoa bem humorada pois é dos alimentos que se
seria, na verdade, uma pessoa que originam todas as substâncias do
tem bons humores (bons líquidos) corpo, incluindo os humores. Os
dentro dela. alimentos precisariam ser
Segundo o pensamento de Hi- transformados nas substâncias
pócrates, quando os humores corpo- corporais, e isso ocorreria através
rais estão em seus lugares corretos de seu "cozimento", digestão ou
no corpo, e em quantidades corre- "maturação" no organismo. Se o
tas, existe a saúde. Mas quando um alimento não é bem "cozido" no
deles está em excesso ou corpo, resultam humores inade-
acumulado em um local ou não tem quados e a doença.
as propriedades corretas, ocorre a O processo de cura exigiria
doença. que esses humores fossem
Na obra hipocrática Sobre a "cozidos" e os excessos expelidos
natureza do homem aparece uma pela urina, suor, excrementos ou
descrição bastante clara dessas idéi- catarro. O principal tratamento das
as: doenças era feito principalmente
pela dieta, exercícios físicos,
"O corpo do homem tem dentro banhos quentes, assim como
dele sangue, fleuma, bílis amarela e remédios destinados a retirar os
bílis negra. Eles constituem a natureza
desse corpo e por eles surge a dor ou
humores em excesso (como
a saúde. Ocorre a saúde mais perfeita laxativos ou vomitórios). Em outras
quando esses elementos estão em fases, devia-se deixar que o
proporções corretas um para com o organismo atuasse sozinho.
outro em relação a composição, poder Em algumas das obras hipo-
e quantidade, e quando eles estão
perfeitamente misturados. Sente-se
cráticas, os remédios eram também
dor quando um desses elementos está vistos como devendo ser dotados de
em falta ou excesso, ou se isola no propriedades opostas às dos humo-
corpo sem se compor com todos os res causadores da doença. Nesse
outros." caso, os remédios poderiam anular
os efeitos desses humores no corpo.
É possível que a concepção de No entanto, em outras obras, cri-
quatro humores fundamentais tenha tica-se esse método de terapia.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 28

No decorrer da doença, o or- as mulheres e nos que tenham


ganismo procuraria "cozinhar" o constituição úmida."
humor cru, através do calor natural,
que poderia se intensificar Os escritos hipocráticos nunca
(manifestando-se pela febre). A supunham que alguma coisa capaz
febre não era, portanto, um sinal ne- de produzir doenças penetrasse
gativo, mas um sinal positivo de dentro do doente, ou que a doença
reação do organismo. Durante a pudesse passar de uma pessoa para
doença, existiria uma luta entre o outra. Quanto muitas pessoas ad-
poder da doença e o poder do corpo. quiriam a mesma doença, a causa
O processo terminaria por uma seria alguma mudança do ambiente,
"crise", que poderia ser favorável que afetou a todos do mesmo modo.
ou negativa. Para acompanhar a Nota-se especialmente esse
evolução da doença, era de grande tipo de concepção em uma obra
importância examinar todo tipo de hipocrática denominada Sobre as
excremento ou secreção (vômito, epidemias. Nessa obra, o autor se dá
fezes, urina, catarro, suor, etc.). O ao trabalho de descrever cuidado-
doente poderia se recuperar com a samente o clima, os sintomas da
expulsão ou transformação do hu- doença e a sua evolução, mas em
mor cru; poderia morrer; ou poderia nenhum instante fala sobre
haver uma recuperação parcial, contágio. Cada epidemia descrita
quando o humor cru ou parcial- nesta obra tem uma "constituição"
mente cozido ficasse isolado sob a particular, associada às condições
forma de um abcesso, de uma infla- ambientais (ventos, temperatura,
mação ou inchaço localizado. umidade) que a produziram.
A teoria hipocrática de doença Em que sentido, então, se pode
e cura não utilizava nenhuma supo- falar aqui sobre "epidemias"? É
sição semelhante à de contágio. A preciso recordar o significado pri-
causa da doença era sempre algo as- mitivo dessa palavra. "Epidemia"
sociado à alimentação, ao clima, às era um termo inicialmente utilizado
características da região, ao modo para indicar a residência
de vida, à idade e sexo da pessoa. A temporária, em uma cidade, de uma
hepatite, por exemplo, seria causada pessoa que não era daquele local.
pela bílis negra e ocorreria no outo- Pelo contrário, "endemia" se referia
no. O tifo ocorreria no verão, quan- à residência permanente de alguém
do a bílis era colocada em movi- nativo daquele mesmo local. Essas
mento. palavras não diziam respeito a
doenças e não tinham nenhuma
"Com relação às estações, se o conotação de algo que passasse de
inverno for seco e soprar vento do uma pessoa para outra. Assim,
norte, e a primavera for úmida e soprar utilizando o significado original da
vento do sul, haverá necessariamente palavra, o texto hipocrático está
no verão febres agudas, doenças dos
olhos e disenteria, especialmente entre
descrevendo corretamente como
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 29

"epidemia" uma doença que não é doença surgiu não tinha fontes, e
própria de um local, mas que todos utilizavam poços. Mas logo a
permanece durante algum tempo doença se espalhou pelas outras
naquela cidade. partes de Atenas, e ficou claro que
não se tratava de envenenamento,
mas de uma terrível peste.
A PESTE DE ATENAS: O CON- O próprio Tucídides foi aco-
TÁGIO NA TRADIÇÃO GRE- metido pela peste, mas sobreviveu.
GA Ele não se preocupou em especular
sobre a causa da doença, mas des-
Na teoria hipocrática, as epi- creveu com grande cuidado os seus
demias eram causadas por algum sintomas:
tipo de influência (em geral, climá-
tica) que atingia ao mesmo tempo "Se alguém já estava doente an-
toda a população. Não havia men- tes, sua enfermidade se transformava
na peste. Os outros, sem nenhum sinal
ção ao contágio. Em contraste com de aviso, em plena saúde, eram
a visão "científica" de Hipócrates, a tomados inicialmente por um forte
população em geral admitia a calor na cabeça, vermelhidão e infla-
transmissão de doenças de uma mação dos olhos. As partes internas,
pessoa para outra. Pode-se observar como a garganta e a língua, ficavam
sanguinolentas e emitiam um hálito
isso numa famosa descrição que o fétido e repugnante. Esses sintomas
historiador Tucídides fez da peste eram seguidos por espirros e rouqui-
que assolou Atenas. dão, e logo depois a doença descia ao
A peste descrita por Tucídides peito, manifestando-se por uma tosse
ocorreu no ano 430 antes da era violenta. Depois, fixava-se na boca do
estômago, revolvendo-o; e seguiam-se
cristã, logo após a invasão da descargas de bílis de todos os tipos
cidade pelos espartanos, durante a catalogados pelos médicos, acompa-
Guerra do Peloponeso. Havia nhados por sofrimento atroz.
notícias de que a doença já havia (...) Os órgãos internos queima-
ocorrido antes em outros locais, vam tanto que os enfermos não
suportavam o contato das roupas e
mas em Atenas a epidemia foi tecidos, mesmo os mais finos; desnu-
muito mais rápida e grave, matando davam-se completamente e queriam
milhares de atenienses. jogar-se na água fria. E muitos de fato
Tucídides contou que os médi- o faziam, jogando-se nos poços,
cos ignoravam como tratar essa oprimidos por uma sede insaciável;
mas não fazia diferença se bebiam
doença e que nenhuma tentativa de muito ou pouco."
tratar os doentes tinha sucesso. As
pessoas recorreram às preces e con- A terrível doença, quando não
sultas aos oráculos, mas isso de matava em poucos dias, produzia
nada serviu. Inicialmente, os ateni- graves danos e mutilações nas
enses pensaram que os invasores mãos, pés e órgãos genitais. Alguns
haviam envenenado os poços de sobreviventes ficavam cegos.
água, pois a parte da cidade onde a
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 30

Outros, perdiam toda a lembrança Na descrição de Tucídides,


de seu passado, não conhecendo percebe-se claramente que as pes-
mais seus familiares. Tucídides soas acreditavam que a peste era
descreveu que os cadáveres ficavam transmissível: abandonavam os do-
jogados pelo chão. Os pássaros e os entes por medo de adquirirem a
animais que normalmente se peste.
alimentariam desses corpos, Provavelmente, Hipócrates
ficavam longe deles, ou, se os presenciou essa peste. Há narrativas
comiam, morriam logo depois. de que ele próprio teria acabado
com ela, acendendo grandes foguei-
FIGURA ras por toda a cidade de Atenas (ou
ATENAS.TIF seja, mudando o seu clima, de modo
artificial). Porém, se vivenciou essa
Temendo o contágio, os pró- assustadora experiência, ela não lhe
prios parentes abandonavam as passou a idéia de contágio.
pessoas doentes. Segundo Tucídi- Por que motivo Hipócrates
des, as pessoas que ficavam doentes não aceitou a concepção popular de
e sobreviviam não eram mais ataca- contágio nas epidemias? Não pode-
das pela peste e podiam atender sem mos sabê-lo com certeza, pois ele
perigo aos doentes. nem chega a discutir essa idéia.
Tantas pessoas morriam que já Mas pode-se tentar compreender
não se conseguia mais enterrá-las sua posição com base na atitude
ou queimar adequadamente seus geral que é mostrada nos textos
corpos. A morte atingia a todos e a hipocráticos. De um modo geral,
proximidade do fim fazia com que nesses livros não se tenta adivinhar
as pessoas se tornassem imediatis- aquilo que não pode ser observado.
tas, durante a praga. Ninguém mais O que se pode conhecer de uma
se importava com as leis, com a doença é aquilo que é mostrado
honra ou a religião. Todos queriam pelos sintomas, e pouco mais além
apenas aproveitar da maneira mais disso. Ao invés de especular sobre o
agradável possível os seus últimos que não se vê, os textos
momentos. hipocráticos se concentram nos
Há estimativas de que tenha aspectos que podem ser mais úteis
morrido a metade ou mais da meta- para a prática médica: descrição dos
de dos habitantes de Atenas. sintomas, desenvolvimento da
A peste desapareceu como doença, previsão do seu
havia surgido: sem que se soubesse desenvolvimento, regras para trata-
sua causa ou como curá-la. Parecia mento. Essa atitude empirista pode
algo sobrenatural. Pouco depois da ter sido um dos motivos para evitar
peste, os atenienses colocaram no qualquer discussão sobre uma coisa
altar uma estátua de bronze de Ate- invisível que pudesse estar
nas Hygeia, a quem foi atribuída a passando de um doente para uma
salvação da cidade. pessoa sadia, transmitindo a doença.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 31

Pode ser também que essa no- influência indireta nas teorias médi-
ção de contágio parecesse a Hipó- cas posteriores.
crates uma mera superstição, como Para Hipócrates, a medicina
as noções de magia e religião com era uma arte ou técnica, um conhe-
as quais ela sempre esteve associ- cimento empírico - isto é, adquirido
ada na Antigüidade. Como a pela experiência, pela observação,
medicina hipocrática é por tentativa. Embora houvesse
decididamente naturalista e uma vaga teoria por trás dos
despreza qualquer explicação ensinamentos de Hipócrates, suas
sobrenatural, talvez a idéia de con- obras nunca deram grande ênfase à
tágio tenha sido recusada e atirada tentativa de explicar os sintomas
ao lixo juntamente com as outras das doenças através de causas
idéias supersticiosas com as quais internas, por exemplo.
estava associada. Essa atitude geral da medicina
Pode ter havido ainda um ter- hipocrática era coerente com a
ceiro motivo, teórico. Para Hipócra- visão de Platão a respeito do
tes, a saúde é um equilíbrio dos conhecimento. Segundo ele, não
humores; como esse equilíbrio po- seria possível obter um
deria ser rompido pelo contato físi- conhecimento racional, exato, das
co com outra pessoa? Como um de- coisas que pertencem ao mundo
sequilíbrio dos humores em um do- material. Qualquer concepção sobre
ente pode passar para outro? É di- o mundo que percebemos à nossa
fícil imaginar uma coisa desse tipo. volta, para Platão, seria apenas uma
Pode ter sido, portanto, por motivos opinião mais ou menos provável e
teóricos, que o contágio foi que nunca pode ser segura. Assim,
excluído do pensamento médico de quando se trata do mundo material,
Hipócrates. torna-se mais importante a prática
do que a teoria.
No entanto, essa visão sobre o
A SISTEMATIZAÇÃO DA ME- conhecimento do mundo se alterou
DICINA RACIONALISTA completamente com Aristóteles. Ele
GREGA defendeu a possibilidade de um co-
nhecimento científico, racional, se-
Um dos mais importantes filó- guro, exato, do mundo material,
sofos de todos os tempos foi Aristó- pelo estudo das causas dos fenôme-
teles. Ele viveu em uma época pró- nos.
xima à de Hipócrates - talvez um Aristóteles diferenciou clara-
pouco posterior. Seu pai era médi- mente o conhecimento, propriamen-
co, e por isso ele deve ter adquirido te dito, da técnica, considerando
certo conhecimento da medicina da esta última como inferior, por não
época. Embora nunca tenha se dedi- ter uma base sólida. A experiência
cado mais especialmente a esse es- prática, a observação, as generaliza-
tudo, sua obra filosófica teve grande ções, eram para Aristóteles o ponto
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 32

de partida do conhecimento cientí- Os quatro elementos materiais


fico, mas não o seu final. O final básicos (fogo, ar, água e terra) re-
seria um conhecimento seguro, ba- presentavam, no pensamento grego,
seado na intuição das verdadeiras aquilo que chamamos de estados da
causas dos fenômenos observados. matéria: "água" se referia a
A enorme influência de qualquer líquido (vinho, vinagre,
Aristóteles fez com que, entre as óleo etc.), assim como "terra" re-
pessoas com formação filosófica, o presentava qualquer sólido. A água,
mero conhecimento prático ou ao se congelar, virava terra (gelo);
empírico passasse a ser desprezado. ao ser aquecida, virava ar (vapor); e
O verdadeiro conhecimento tinha o fogo seria o estado de maior
que ser sistemático, exato, aquecimento do ar, que se tornava
formando uma estrutura de- luminoso. Essas quatro
monstrativa semelhante à possibilidades esgotavam tudo o
matemática. O ponto central desse que se conhecia e serviam para
conhecimento era a etiologia - o descrever todos os tipos de materi-
conhecimento da causa ("aitia", em ais da natureza.
grego, é causa) 1. A própria Segundo Aristóteles,
medicina deveria ser um sistema existiriam quatro poderes básicos,
filosófico racional, para ser um formando dois pares de opostos:
conhecimento e não uma mera arte. quente-frio, úmido-seco. Uma coisa
É claro que a medicina de Hi- não pode ser quente e fria ao
pócrates não satisfazia a esse ideal. mesmo tempo, nem úmida e seca ao
Por isso, um importante ramo da mesmo tempo: essas qualidades são
medicina pós-hipocrática procurou opostas. Mas podem existir as
fornecer uma base racional, siste- combinações de quente com úmido
mática, para o pensamento médico. ou seco, e de frio com úmido ou
A filosofia de Aristóteles for- seco. Cada uma dessas quatro
neceu uma base geral para a medici- combinações corresponde a um dos
na racionalista. Ele aperfeiçoou a elementos básicos da matéria. O
doutrina dos quatro elementos de fogo é quente e seco; o ar é quente e
Empédocles, analisou a relação en- úmido (pois, como já foi dito, o ar é
tre esses elementos e as quatro qua- equivalente ao vapor d'água); a
lidades básicas (quente-frio, úmido- água é fria e úmida; a terra é fria e
seco) e estabeleceu relações entre seca.
essas qualidades e elementos com Esta análise permite compre-
os humores e com alguns órgãos. ender, "teoricamente", por que exis-
tem quatro e apenas quatro elemen-
tos: o motivo é que existem quatro e
1 Até hoje, muitos médicos gostam
apenas quatro combinações pos-
de discutir a "etiologia" das doenças. Isso
síveis das qualidades básicas.
nada mais é do que um modo pedante de Aristóteles estabeleceu rela-
dizer: a causa das doenças. ções entre os quatro elementos e os
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 33

quatro humores do corpo humano. quantidade excessiva, ele deveria


O sangue é quente e úmido, po- ser reduzido pela expulsão, com
dendo ser associado ao ar; a fleuma diuréticos, vomitórios, sangrias,
é fria e úmida, podendo ser associ- lavagens intestinais, etc. Se o que
ada à água; a bílis negra é conside- estava desequilibrado não era a
rada fria e associada à terra, quantidade, mas a qualidade de um
enquanto a bílis amarela é "ardente" humor (por exemplo, se a fleuma
e associada ao fogo. estava "muito fria"), a terapia
Aristóteles não desenvolveu deveria consistir em alterar essa
uma Medicina, mas sua concepção qualidade, pelo seu oposto. Aquilo
geral de ciência e seus princípios que está frio deveria ser aquecido, o
básicos sobre a natureza dos com- que está seco deveria se tornar
ponentes orgânicos serviram de úmido, etc. O "aquecimento"
base para os médicos que, após ele, poderia ser produzido, por exemplo,
tentaram formular uma medicina por banhos quentes ou banhos de
racionalista. vapor, por alimentos "quentes"
Entre 350 e 250 a. C. houve (com muito tempero), pelo vinho
vários médicos importantes que (que dá sensação de calor), etc.
seguiram esse caminho. Os mais Em toda essa teoria, não havia
conhecidos são Diocles, Praxágoras lugar para um conceito como o de
e Mnesitheos. Eles enfatizaram a contágio. As influências externas
relação entre os quatro humores, os podiam produzir doenças apenas
quatro elementos e as quatro quali- através do frio, calor, umidade ou
dades básicas. Procuraram dar as secura. Não se podia imaginar que o
causas das diversas doenças, atribu- toque de um doente pudesse alterar
indo-as às perturbações desses hu- essas qualidades em uma pessoa sã
mores; e recomendaram tratamentos e, por isso, o contágio era impensá-
baseados na teoria, de um modo vel, irracional e não poderia existir.
muito mais sistemático do que Na corrente médica racionalista,
havia sido feito pelos escritos portanto, as epidemias só podiam
hipocráticos. ser devidas a uma influência
De acordo com essa tradição, externa (climática) que atingisse ao
a melancolia, por exemplo, seria mesmo tempo um grande grupo de
produzida quando a bílis negra se pessoas. Sendo mais sistemática do
acumula em torno do coração. Res- que o pensamento hipocrático, a
friados violentos seriam devidos ao medicina racionalista se tornou
acúmulo de uma fleuma muito fria. ainda mais fortemente incompatível
A paralisia seria devida ao bloqueio com as "superstições" sobre
das artérias pela fleuma fria. contágio.
Uma vez que se conhecesse A medicina racionalista de
cada doença, podia-se estabelecer base hipocrática teve seu ápice nas
racionalmente o processo de sua obras de Galeno. Cláudio Galeno
cura. Se um humor estivesse em nasceu em Pérgamo, no ano 129 da
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 34

era cristã. Morreu aos setenta anos, predominasse um único humor.


em 199 ou 200, provavelmente em Seus nomes provinham dos nomes
Roma. De certa forma, pode-se dos humores correspondentes:
dizer que ele era romano, pois viveu - temperamento sangüíneo: aquele
nesse império. No entanto, toda sua em que há predomínio do sangue;
formação se baseou na medicina - temperamento bilioso ou colérico:
grega, e ele preferiu escrever suas com predomínio da bílis amarela
obras em grego - não em latim. ("khole", em grego);
Pode, por isso, ser considerado um - temperamento melancólico: com
continuador da tradição médica gre- predomínio da bílis negra
ga. ("melankhole", em grego);
Galeno foi fortemente influen- - temperamento fleumático: predo-
ciado por Aristóteles, embora criti- mínio do muco ou fleuma
casse várias concepções aristotéli- ("phlegma", em grego).
cas. Defendeu que o verdadeiro
médico devia ser também um FIGURA
filósofo; defendeu o conhecimento 4TEMP.TIF
de física, astronomia, fisiologia,
lógica e outras ciências, como base Os diversos climas, as regiões
para a medicina. geográficas, as atividades, os ali-
A obra de Galeno foi muito mentos e remédios - tudo, enfim -
vasta. Escreveu enormes tratados poderia ser classificado a partir da
sobre cada assunto. De um modo concepção dos quatro elementos,
geral, fundamentou-se nas obras das quatro qualidades e dos quatro
hipocráticas, desenvolvendo alguns humores. Conhecendo-se essas pro-
de seus pontos. Uma doutrina que priedades, seria sempre possível
tem raízes nos escritos de Hipócra- compreender as situações de equilí-
tes mas só ganhou forma definitiva brio ou desequilíbrio, a saúde e a
em Galeno é a teoria dos tempera- doença. Tudo se tornava perfeita-
mentos. mente compreensível, dentro de um
Cada pessoa já nasceria com sistema filosófico racional.
certa combinação ou "tempero" dos A partir dessa concepção, Ga-
quatro humores básicos. Poderiam leno recomendava cuidados para a
existir pessoas em que os quatro preservação da saúde ("higiene").
estivessem perfeitamente equilibra- Os principais pontos a serem obser-
dos, mas normalmente haveria pre- vados eram: 1) ar e ambiente; 2) co-
dominância de um ou de dois mida e bebida; 3) sono e vigília; 4)
humores. Daí surgiriam certos tipos movimento e repouso; 5) excreções;
físicos, havendo também 6) paixões da alma.
repercussão na própria Observando moderação e
personalidade da pessoa. Os quatro equilíbrio em relação às característi-
temperamentos mais importantes cas de cada uma dessas seis coisas,
seriam aqueles em que
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 35

seria possível manter o equilíbrio


interno e a saúde.
As concepções de Galeno
eram tão coerentes, tão bem
fundamentadas sob o ponto de vista
filosófico, que se tornava difícil
negá-las. Tudo se encaixava com
perfeição. Sua obra era tão
impressionante, que foi aceita com
entusiasmo nos séculos seguintes,
durante mais de mil anos.
Essa aparente perfeição da
medicina de Galeno foi, justamente,
o seu maior defeito. Quando tudo
parece estar correto e compreendi-
do, diminui ou cessa o desejo de
investigar e descobrir coisas novas.
Quando se dispõe de um sistema
racional completo, a experiência se
torna desnecessária. A teoria nunca
é colocada em questão, por ser per-
feita - mesmo se na prática as pes-
soas continuarem a morrer.
MEDICINA ROMANA
4
OS ROMANOS E OS VENENOS e dando seus uso médicos. Plínio
("VÍRUS") dizia que, entre os Romanos, o
estudo de remédios só se
O Império Romano foi o pri- desenvolveu após a divulgação dos
meiro herdeiro da cultura grega. Os trabalhos do rei Mitrídates, de
romanos não desenvolveram um Pontos. Esse rei, segundo vários
pensamento médico muito original, autores, foi o primeiro a fazer um
mas há vários aspectos da medicina estudo sobre antídotos (um dos
romana que nos interessam, por sua quais se tornou conhecido como
relação com a transmissão de doen- "mitridato"). Muito preocupado
ças e com as fases posteriores de com sua própria segurança, ele ado-
nossa história. tou a prática de beber um pouco de
Na medicina da Roma antiga veneno diariamente, depois de to-
nota-se uma preocupação com ve- mar remédios, para se acostumar a
nenos, que não existia na medicina eles e para que se tornassem inó-
grega. Em parte, isso pode ter sido cuos.
devido ao grande contato dos roma- Segundo Plínio, Pompeius,
nos com a África e com serpentes. que venceu Mitrídates, coletou seus
Outro possível motivo seria a difu- remédios e seus escritos, que foram
são da prática de envenenar os ini- traduzidos para o latim por
migos. Os venenos mais poderosos Lenaeus. Esse teria sido o primeiro
possuem uma característica trabalho médico original, em latim.
peculiar, sob o ponto de vista Um primeiro aspecto interes-
médico: uma pequena quantidade sante no estudo dos venenos é que
deles é capaz de matar uma pessoa. uma pessoa pode se acostumar ou
Plínio, chamado "o Velho", habituar aos mesmos, de tal forma
em sua grande obra "História que depois eles não façam mais
Natural" (século I d. C.), fez uma efeito (fenômeno que será, muito
compilação de tudo o que se sabia depois, chamado de "imunização").
em sua época sobre animais, Sabia-se, na época, que algo seme-
vegetais e minerais, descrevendo-os lhante podia ocorrer com algumas
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 37

doenças. Na peste de Atenas, que já cava-se utilizar apenas uma ou duas


foi descrita antes, as pessoas que substâncias, capazes de produzir
adquiriam a doença e escapavam vômito, evacuação etc.
com vida (como o próprio Tucídi- Embora Plínio elogiasse os es-
des), ficavam protegidas contra a tudos de Mitrídates, criticou ao
peste: podiam ter contato com os mesmo tempo os antídotos compos-
doentes, sem correr risco nenhum. tos que se desenvolveram depois:

FIGURA "Existe uma mistura elaborada,


TRIAGA.TIF chamada teriaga, que é composta por
incontáveis ingredientes - embora a
Natureza nos tenha dado muitos
É interessante assinalar que remédios, cada um dos quais, sozinho,
muitos povos "primitivos" já co- teria sido suficiente. O antídoto mitri-
nheciam o processo de habituação dato é composto por 54 coisas, cada
contra venenos. Em 1560, José de uma com um peso diferente, alguns
dos quais prescritos em um 1/60 de
Anchieta descreveu como os indíge- um denário. Em nome da verdade:
nas brasileiros praticavam a qual deus fixou essas proporções
habituação ao veneno das cobras absurdas? Nenhum cérebro humano
venenosas. Ao se referir à jararaca pode ter sido tão sutil. É claro que isso
brasileira, Anchieta afirmou que os é uma ostentação da arte e uma
colossal fraude da ciência."
índios, quando "mordidos
sucessivamente, não só não correm
Apesar da crítica de Plínio, as
risco de vida, como mesmo sentem
teriagas e mitridatos, como veremos
menor dor, o que tivemos mais de
mais adiante, irão se manter popula-
uma vez ocasião de observar".
res durante muitos séculos - até cem
O estudo dos venenos levou à
anos atrás.
busca de antídotos - remédios espe-
Mas o aspecto mais curioso do
cíficos contra cada tipo de veneno,
estudo dos venenos nesse período é
capaz de anular os seus efeitos.
o próprio nome que se dava a eles.
Essa idéia de antídoto era
Eram chamados de "vírus". O signi-
completamente diferente da
ficado original dessa palavra latina
concepção hipocrática dos re-
é o de um líquido venenoso, de ori-
médios, que se destinavam a
gem animal ou vegetal. A palavra
restabelecer o equilíbrio dos humo-
era aplicada na Antigüidade ao ve-
res corporais e não a combater al-
neno das cobras e escorpiões, a
guma substância estranha que en-
sucos vegetais venenosos ou a ve-
trou no organismo.
nenos preparados artificialmente.
Um terceiro aspecto importan-
Por extensão, a palavra "vírus" pas-
te é que, na busca de antídotos efi-
sou também a ser usada para indicar
cazes, começou a elaboração de
emanações venenosas, cheiros desa-
misturas extremamente complexas
gradáveis (especialmente de coisas
de muitas substâncias diferentes -
podres), e também sucos ou secre-
enquanto que, inicialmente, bus-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 38

ções com algum poder mágico ou fez uma descrição pormenorizada


medicinal. dos cuidados que, em sua opinião,
Atualmente a palavra "vírus" deveriam ser tomados durante as
possui um significado diferente, epidemias. Ele acreditava que o
bem preciso, referindo-se a certos mais seguro era fugir do local. Se
microorganismos. No entanto, o isso não fosse possível, a pessoa
sentido original da palavra continua deveria evitar a fadiga, fazer-se car-
existindo, por exemplo, no adjetivo regar por escravos, não se levantar
"virulento", que significa venenoso, cedo, evitar banhos, tomar uma
maligno, mortal. Uma serpente única refeição por dia, e muitos
virulenta, por exemplo, não é uma outros cuidados.
que injeta vírus (no sentido mo- Muitas das recomendações de
derno da palavra), e sim uma que Celsus eram tolas. Ele
injeta veneno com suas mordidas. recomendava, na prevenção contra
Desde essa época, a idéia de as epidemias, os procedimentos
venenos ("vírus") específicos come- gerais que já apareciam em
ça a ser generalizada. Falava-se em Hipócrates e outros autores para
venenos não apenas de cobras, ara- manter a saúde: cuidar especial-
nhas e escorpiões, mas também de mente da alimentação e da bebida,
cães raivosos, que não são animais utilizar moderação nas atividades,
normalmente "venenosos", mas que etc. Quando a pessoa fosse atingida
se tornam capazes de transmitir a pela epidemia, os procedimentos de
raiva a outros cães ou pessoas. As- cura consistiam em restabelecer o
sim, o "vírus" pode ser natural ou equilíbrio dos humores, especial-
transmitido por alguém que o ad- mente pela sangria.
quiriu. Esse foi mais um passo na Nessa época, entre os roma-
direção do conceito moderno de nos, generalizou-se a idéia de que
contágio. as epidemias eram produzidas por
fenômenos celestes. A astrologia
estabelecia uma conexão entre os
CONCEPÇÕES DOS ROMA- astros e os fenômenos terrestres. Os
NOS SOBRE EPIDEMIAS E cometas, especialmente, eram vistos
CONTÁGIO como os anunciadores das maiores
tragédias. O astrólogo romano Mar-
No Império Romano, ocorriam cus Manilius, do primeiro século da
muitas epidemias que chamaram a era cristã, indicava o significado
atenção dos médicos. Em geral, se- dos cometas: destruição de
guindo a tradição hipocrática, eles colheitas, praga, morte. Não se
consideravam que a epidemia se considerava que os cometas e os
devia a uma mudança climática que planetas produzissem diretamente
produzia um desequilíbrio dos hu- as doenças. Pensava-se que eles
mores. Um médico do primeiro alteravam a atmosfera, e esta, por
século antes da era cristã, Celsus, sua vez, produzia as epidemias.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 39

Embora não se trate de um au- ças e catástrofes. Pelo contrário,


tor romano, cabe citar a principal Júpiter e Vênus, juntamente com a
autoridade antiga em astrologia: Lua, seriam astros benéficos e pro-
Claudius Ptolemaios (ou Ptolomeu), tetores.
o famoso astrônomo e geógrafo
egípcio do século II. O nome de FIGURA
Ptolomeu é bastante conhecido, por PARTO.TIF
ter sido quem aperfeiçoou o sistema
astronômico geocêntrico (no qual a O Tetrabiblos contém uma
Terra seria o centro do universo) descrição detalhada da conexão en-
que só começou a ser abandonado tre os vários planetas e os órgãos do
no século XVI, a partir do trabalho corpo humano: Júpiter, por exem-
de Copérnico. Embora mais conhe- plo, era o astro que dominava os
cido como astrônomo, Ptolomeu pulmões, as artérias, o tato e o sê-
escreveu também uma obra sobre men. As doenças ocorreriam princi-
astrologia, o Tetrabiblos ou Livro palmente por influência de Saturno
quádruplo, que foi provavelmente o e Marte, mas a posição dos outros
mais influente texto astrológico de astros determinaria o órgão que se-
todos os tempos. ria afetado. Como exemplo dessas
No Tetrabiblos, Ptolomeu des- relações, podemos dar essa descri-
envolveu uma teoria sobre a influ- ção:
ência dos planetas que tomava
como ponto de partida a "Em geral Saturno produz ven-
classificação das quatro qualidades tres frios, aumenta a fleuma, torna as
pessoas reumáticas, fracas, magras,
básicas de Aristóteles (quente ou ictéricas, e predispostas à disenteria,
frio, úmido ou seco). tosse, cólica e elefantíase; ele também
Segundo Ptolomeu, cada um torna as mulheres sujeitas a doenças
dos astros possuiria um poder espe- do útero. Marte faz as pessoas cuspi-
cífico capaz de influenciar os acon- rem sangue, torna-as melancólicas,
enfraquece seus pulmões e causa o
tecimentos da Terra, como o clima. escorbuto e a sarna. Além disso ele as
O Sol teria poder de aquecer e, em torna constantemente irritadas (...),
certo grau, de secar. A Lua ume- produz hemorróidas, tumores e tamb-
deceria e seria moderadamente ém úlceras ardentes ou feridas devo-
quente, produzindo por causa radoras."
dessas duas qualidades o
amolecimento e a putrefação. Através das influências dos
Saturno seria um planeta princi- planetas e de suas posições no céu,
palmente frio, moderadamente seco. seria determinado o clima de cada
Marte teria a capacidade de secar e época do ano - e o clima, por sua
queimar. Esses dois planetas vez, poderia produzir doenças.
(Saturno e Marte) eram considera- Apesar dessa tradição astroló-
dos maléficos por Ptolomeu. Seriam gica e hipocrática, outros autores -
os principais responsáveis por doen- principalmente alguns que não eram
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 40

médicos - vislumbravam outras


possíveis causas das epidemias. O "Não devem existir pântanos
arquiteto romano Vitruvius, ao dis- perto das casas, ou de estradas
públicas, pois eles sempre emitem
cutir a escolha do melhor local para venenos [vírus] nocivos no calor, e
se edificar uma cidade, indicava geram animais armados com ferrões,
algumas regras. Um lugar, para ser que voam em torno de nós em enxa-
saudável, deveria ser alto, sem ne- mes densos. Eles [os pântanos]
blinas, e ter uma temperatura inter- também produzem da lama e do lixo
fermentado, a peste venenosa das
mediária. Além disso, não deveria serpentes e cobras d'água, quando
estar perto de pântanos, pois o elas ficam privadas da umidade do
vento poderia trazer vapores in- inverno. E por isso são adquiridas
fectados e venenosos pelos animais doenças ocultas, cujas causas nem os
gerados no pântano. médicos conseguem compreender."
Existe aqui a idéia de que o ar
pode trazer doenças. É claro que Guiados por seu bom senso, os
Hipócrates também afirmava isso, romanos deram grande importância
mas em outro sentido. Na concep- a cuidados sanitários e de higiene.
ção hipocrática, o ar poderia pro- Houve sistemas de água e esgoto
duzir epidemias quando houvesse em outros povos antigos: por
um desequilíbrio de calor, frio, umi- exemplo, na Etrúria, em Creta, e na
dade e secura, atuando sobre os antiga cidade indiana de Mohenjo
humores corporais. Em Vitruvius, a Dharo (no vale do rio Indo), dois
idéia era diferente. Ele se referia a mil anos antes da era cristã. Mas os
vapores venenosos que poderiam cuidados adotados pelos romanos
produzir epidemias. foram superiores aos de todos os
outros povos antigos. Havia um
FIGURA sistema de esgotos na cidade de
MOSCAS.TIF Roma que não foi ultrapassado por
qualquer sistema semelhante no
Idéias ainda mais próximas mundo todo, até o século XIX. Os
das nossas foram sugeridas por esgotos eram levados em condutos
outros autores romanos do início da subterrâneos até um local, a cloaca
era cristã. Marcus Varro sugeriu maxima, onde eram lançados no rio
que nos pântanos "crescem certos Tibre. Além de privadas nas casas,
animais tão pequenos que não havia sanitários públicos, alguns
podem ser captados pelos olhos, deles muito luxuosos, todos equipa-
que através do ar entram pelas dos com água corrente. As casas
narinas ou pela boca e produzem mais ricas eram providas de banhei-
graves doenças". E o escritor ras; além disso, existiam muitos
Lucius Columella, ao falar sobre as balneários públicos, como os ba-
atividades do campo, sugere que os nhos de Caracalla, capazes de aco-
mosquitos podem transmitir modar mil e seiscentas pessoas de
doenças: cada vez, ou os de Diocleciano,
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 41

com três mil quartos de banho. Isso em versos, denominada De rerum


mostra que o asseio era uma prática natura, na qual expôs a teoria ato-
generalizada em Roma. mística antiga. O atomismo era uma
Para proporcionar água desti- filosofia materialista, que não acei-
nada ao consumo e à limpeza, a tava a existência de qualquer coisa
cidade de Roma era provida de 14 além de átomos e do espaço vazio.
grandes aquedutos que traziam água A própria alma e os deuses deveri-
de fontes distantes através de con- am ser meras combinações de áto-
dutos subterrâneos ou suspensos. mos. Não existia lugar, nessa filoso-
No início da era cristã, eles propor- fia, para a religião, a magia, a su-
cionavam à cidade cerca de 200 mi- perstição.
lhões de litros de água por dia. Os Por outro lado, o atomismo
romanos implantavam também admitia a existência de coisas
sistemas de água e esgoto nas invisíveis. Os próprios átomos eram
principais regiões que invisíveis, porém reais e materiais.
conquistavam. Alguns aquedutos Lucretius dedicou uma grande parte
eram subterrâneos, com extensão de do seu livro para mostrar que não
muitos quilômetros. Outros tinham era absurdo aceitar-se a existência
partes suspensas, a grandes alturas. de coisas materiais invisíveis. Não
Esses aquedutos foram obras vemos, por exemplo, nada em volta
fantásticas de engenharia, para a de um ímã, mas deve existir alguma
época. coisa em volta dele que produz o
efeito de atração do ferro. Não ve-
FIGURAS mos a água que se evapora de um
AQUED1.TIF tecido colocado ao sol, mas essa
AQUED2.TIF água certamente continua a existir,
dividida em inúmeras partículas
Todos os cuidados com a invisíveis. E Lucretius forneceu
água, esgoto, asseio pessoal e lim- muitos outros exemplos
peza da cidade certamente contribu- semelhantes.
íram muito para preservar os roma- Lucretius imaginou causas na-
nos de doenças. É difícil saber, no turais invisíveis que poderiam pro-
entanto, até que ponto eles estavam duzir doenças. No espaço celeste,
conscientes dos benefícios dessas existiriam todos os tipos de átomos,
medidas para a saúde, e até que movendo-se ao acaso. Eles colidi-
ponto eram guiados apenas por riam entre si, podendo se prender
considerações estéticas (beleza, uns aos outros. Através de combi-
limpeza, cheiro agradável etc.). nações dos átomos, poderiam ser
Talvez a maior contribuição gerados todos os tipos de coisas, ao
romana para a compreensão das acaso. Algumas delas poderiam ser
epidemias e doenças transmissíveis "sementes" que se desenvolvessem
tenha sido dada pelo filósofo Lucre- e produzissem coisas úteis ao
tius (séc. I), que escreveu uma obra homem; outras, poderiam ser
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 42

daninhas. Lucretius utilizou esse familiares, que tinham medo de


tipo de idéia para explicar o ficar próximos e se contagiar.
surgimento das epidemias: o ar Assim, apareceram em Lucre-
poderia se tornar doentio, por causa tius algumas idéias sobre a
de "sementes" maléficas que viriam transmissão da doença de uma
do céu (nas nuvens e neblina) ou do pessoa a outra. Ele utilizou
solo, quando este fosse atingido por claramente a palavra "contágio"
chuvas seguidas de muito calor. para se referir a essa transmissão. A
Embora, mais uma vez, o ar palavra "contágio", que vem do
seja considerado o veículo das do- latim, significa o ato de tocar, o
enças, as epidemias não seriam cau- contato, especialmente quando
sadas simplesmente por calor, frio, ocorre alguma influência no objeto
umidade e secura: haveria causas tocado. Aplica-se, por exemplo, ao
especiais, materiais - as "sementes" contato social, à comunicação entre
de doenças - misturadas com o ar. as pessoas. Significa mais
As pessoas seriam atingidas pela especialmente sujar, poluir ou
doença ou quando respirassem o ar passar algo maléfico, pelo contato.
impregnado por essas sementes, ou O contágio é, em Lucrécio,
então quando ingerissem o "poder simplesmente alguma influência
pestilencial" pelos alimentos. que passa pelo contato de uma coisa
Lucretius concebeu diferentes tipos com outra.
dessas sementes. Essa concepção é Coerente com a doutrina ato-
bem diferente da de Hipócrates e mista, Lucrécio supôs que fosse
seus seguidores. algo material que produzia as doen-
Apesar de considerar as epi- ças. Não propôs que fosse algo
demias como causadas por uma vivo, nem que essa causa da doença
mudança do ar, Lucretius reconhe- se reproduzisse dentro dos atingidos
ceu a existência da passagem da por ela. No entanto, como fala sobre
doença de uma pessoa para outra. as "sementes" ou "germes" das do-
Ele também descreveu a grande enças, pode ser que ele admitisse a
peste de Atenas testemunhada por idéia de pequenos organismos
Tucídides e indicou que os corpos vivos.
jaziam empilhados, sem serem Outros termos importantes
sepultados, mas que as aves de rapi- passaram a ser utilizados nessa
na e os animais não se época, como "infecção" e
aproximavam deles, ou, se os "contaminação". Essas palavras não
comiam, logo caíam mortos. Havia possuíam significado médico,
portanto algo nos mortos que podia inicialmente. "Infectar" significava
causar a morte. As pessoas e ani- primitivamente tingir, colorir,
mais sadios podiam adquirir a peste impregnar com alguma substância
dos doentes, por contágio. As pes- visível. O ar infectado seria,
soas eram abandonadas por seus portanto, uma atmosfera colorida,
tingida ou impregnada por algo
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 43

visível (vapores, bruma, poeira); sobrenatural, como no conceito


mas daí veio, por analogia, a religioso ou mágico de contágio.
concepção de que o ar carregado de Na época, as idéias de Lucre-
substâncias ou germes nocivos tius não tiveram grande
estaria também infectado, mesmo se repercussão. No entanto, mais de
essas coisas fossem invisíveis. Por mil anos depois, a redescoberta de
fim, quando alguma causa suas obras iria levar ao
patológica entra e impregna uma ressurgimento do conceito de
pessoa, também se passou a falar contágio através de sementes
sobre a infecção dessa pessoa. materiais invisíveis.
A palavra "contaminar", por
sua vez, vem do latim contaminare,
que significa sujar, poluir, misturar
uma impureza. Por analogia, a pala-
vra passou também a significar
sujar moralmente, corromper,
desonrar. Essa palavra adquiriu um
significado amplo de transmitir uma
impureza, nos sentidos religioso,
ético, e material. Uma pessoa
contaminada pela impureza deveria
ser evitada, pois a impureza era
algo que se transmitia de uma
pessoa para outra. As idéias de
contaminação e de contágio são
portanto bastante semelhantes e
relacionadas.
Lucretius e outros romanos -
em geral, pessoas que não eram
médicos - deram importantes contri-
buições à compreensão das epide-
mias e do contágio. Escapando à
tradição hipocrática, eles foram
capazes de sugerir novas idéias,
incompatíveis com a teoria dos hu-
mores, que apontavam para meios
de transmissão de doenças. As idéi-
as do atomista Lucretius são espe-
cialmente importantes, pois ele fala
sobre influências invisíveis, dando
ao mesmo tempo a essas causas a
interpretação puramente materialis-
ta, sem qualquer conotação
O PERÍODO MEDIEVAL
5
A BAIXA IDADE MÉDIA porção harmoniosa entre as qualida-
des. Apesar dessa base teórica, Isi-
Após a queda do Império Ro- doro aceitou a existência de contá-
mano, na Europa não se desenvol- gio - provavelmente, baseando-se
veu nenhuma outra grande nação, no conhecimento popular. Por
durante séculos. O cristianismo se exemplo, ao descrever a hidrofobia,
tornou a única força que tentou ele afirmava que a mordida ou a
unificar todos os povos europeus. espuma da boca de um cão raivoso
A fase inicial da Idade Média, produzia a doença: "Se um homem
na Europa, apresentou uma deca- ou animal a tocar, ele
dência geral de todos os conheci- imediatamente se tornará demente
mentos. Nos séculos posteriores a ou também ficará raivoso".
Galeno, não são conhecidos autores Ao falar da peste, Isidoro tam-
médicos originais. bém admitia o contágio:
Apesar do desinteresse geral
pelo estudo e pelo conhecimento "A pestilência é um contágio que,
erudito, alguns autores conservaram ao atingir uma pessoa, se espalha
rapidamente para várias outras. Ela
a tradição greco-romana. Um dos surge do ar corrompido, penetra nas
mais importantes foi Isidoro de vísceras e se estabelece nelas. Embo-
Sevilha, que viveu ra esta doença geralmente surja por
aproximadamente entre os anos 570 potências aéreas, no entanto ela
e 636. Isidoro procurou compilar nunca pode surgir sem a vontade do
Todo Poderoso Deus."
todo tipo de conhecimento,
escrevendo uma espécie de
Note-se que essas idéias são
enciclopédia. Entre muitos outros
semelhantes às de Lucretius. No
assuntos, ele tratou também da
entanto, de um modo geral, Isidoro
Medicina.
aceitava a teoria dos humores, e
Isidoro se baseou principal-
pode-se perguntar como é possível
mente em Galeno, expondo e de-
conciliar a idéia de contágio com
fendendo a doutrina dos quatro
essa teoria: como poderia uma har-
humores e da saúde como uma pro-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 45

monia entre os humores ser quebra- excelentes para produzir curas de


da por contato com a saliva do cão doenças graves.
raivoso? Os textos médicos medievais
No período medieval, a lepra europeus, até o século IX, costu-
alastrou-se assustadoramente. Sa- mavam ser compilações simplifica-
bia-se que essa enfermidade era das, tiradas em geral de fontes gre-
contagiosa, e os leprosos eram bani- gas. Alguns eram simples listas de
dos da sociedade. Somente podiam drogas e suas indicações. Tornava-
se aproximar de outras pessoas se cada vez mais rara a leitura das
tocando matracas, para que todos obras originais de Hipócrates ou
pudessem reconhecê-los e prevenir- Galeno, nessa época.
se do contágio. Ou seja: a A Medicina, como profissão,
"sabedoria popular" aceitava a exis- praticamente desapareceu. O povo
tência da transmissão das doenças. manteve certo conhecimento popu-
lar de uso de ervas, aliado a práticas
FIGURA de magia das curandeiras. Quando
CAUTERI.TIF esses recursos não bastavam, recor-
ria-se aos mosteiros, onde os religi-
A influência do cristianismo osos mantinham assistência espiri-
na Medicina, durante essa fase, foi tual e médica aos doentes. Era uma
negativa. Ressurgiu, com muita época em que predominava, portan-
força, a idéia de que a doença era o to, a Medicina monástica.
fruto do pecado. A possessão pelos
demônios e a feitiçaria também FIGURA
eram aceitas como causas de MONAS2.TIF
enfermidades. Assim sendo, o
tratamento principal era pelo Vários mosteiros foram cria-
arrependimento, pela oração, dos especificamente para dar apoio
sacrifícios etc. O uso de remédios aos doentes. Os monges tinham a
se tornou secundário, e deveria ser obrigação de estudar as versões
sempre acompanhado por orações. latinas simplificadas de Hipócrates
Nesse período - e especial- e de Galeno, e estudar a obra sobre
mente no século VII - surgiu o culto remédios de Dioscorides. Copiavam
popular aos santos curadores. os textos clássicos, para preservá-
Cosme e Damião, dois irmãos cris- los e para vendê-los a outros mos-
tãos que haviam sido mártires na teiros. Em diversos locais da Itália,
Sicília, tornaram-se importantes Espanha, França, Irlanda e Alema-
santos médicos. Posteriormente, nha, surgiram diversos mosteiros
São Sebastião e São Roque médicos. Alguns formaram grandes
passaram a ser invocados contra a bibliotecas, como o mosteiro de S.
praga. As peregrinações ou o Gall, na Suíça, que no século IX
contato com objetos sagrados tinha seis mil livros médicos. De
(relíquias) eram considerados como um modo geral, o interesse
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 46

principal dos mosteiros continuava A cultura médica dos árabes


a ser a religião, mas em alguns era, inicialmente, do mesmo tipo
casos o estudo da Medicina deve ter que estudamos em outras civiliza-
se tornado excessivamente im- ções: de tipo religioso e mágico. Os
portante. Por isso, em 1130, o escritos do início do islamismo
concílio de Clermont proibiu a prá- mostram que se dava grande valor a
tica da Medicina aos monges, pois amuletos, talismãs e fórmulas mági-
ela os distraía das obrigações cas, na cura de doenças.
principais. Gradualmente, no entanto, a
civilização árabe se transformou.
Durante sua expansão para leste e
MEDICINA ÁRABE oeste, os árabes entraram em con-
tato com a tradição grega e helenís-
Ao mesmo tempo em que se tica, egípcia, mesopotâmica e india-
desenvolvia a Medicina monástica na. Surgiu um grande interesse pelo
na Europa, formava-se e espalhava- estudo dessas tradições - especial-
se pelo mundo a grande civilização mente pelo pensamento grego. As
islâmica. mais importantes obras antigas fo-
O islamismo foi fundado no ram traduzidas e comentadas pelos
século VII. Data-se de 622 a fuga árabes e passaram a circular pelo
de Muhammad (Maomé) para mundo islâmico. O idioma árabe se
Meca. Esse movimento religioso se tornou, na época, o idioma
espalhou com enorme velocidade e científico e filosófico mundial.
força, conquistando grande parte do O estudo e a reflexão sobre o
mundo em menos de dois séculos. pensamento antigo levaram a um
O domínio árabe se estendeu por rápido florescimento da cultura
todo o norte da África e, para leste, árabe. No campo da Medicina, logo
pelo Oriente Médio, Mesopotâmia, surgiram não só comentários sobre
Pérsia e norte da Índia. A oeste, os Hipócrates e Galeno, mas também
árabes penetraram na Península trabalhos originais.
Ibérica e tomaram a maior parte do Na Pérsia, destacam-se Rhazes
território onde atualmente estão e Avicena. Rhazes ou Al Rhazi2
Portugal e Espanha. (860-932) nasceu perto do lugar
No século IX, havia dois gran- onde agora é Teerã. Escreveu sobre
des centros políticos, religiosos e varíola e malária. Introduziu na
culturais do mundo árabe: Bagdá Medicina o álcool e a tintura de
(na antiga Pérsia) ao leste, com uma mercúrio. Avicena ou Ibn Sina
população de 800.000 pessoas; e
Córdoba (na atual Espanha), a
2 Costuma-se indicar o nome de
oeste, com 500.000 habitantes. A
autores árabes de duas formas: pelo nome
unidade dessa vasta civilização era latinizado, do modo como se tornou
proporcionada pela religião conhecido na Europa; e pela forma árabe,
islâmica e pelo idioma árabe. transliterada em caracteres romanos.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 47

(980-1063) escreveu uma famosa exceto o cólera, que ele afirmava se


obra: o Qanun (ou Cânon), que multiplicar exatamente quando o ar
serviu de base à Medicina durante está seco.
séculos. Dessa forma, segundo Avi-
No ocidente árabe - em Cór- cena, o clima interfere apenas de
doba - os mais importantes autores modo indireto no surgimento das
médicos foram de um período pos- doenças pestilenciais. A causa não
terior: Averroes ou Ibn Ruschd seria o próprio estado seco ou
(1126-98) e seu estudante, o judeu úmido, frio ou seco. Isso apenas
Moses Maimonides (1135-1204). contribuiria para o surgimento e
Ambos foram eminentes filósofos, difusão da podridão, que seria a
fortemente influenciados pelo pen- verdadeira causa das enfermidades.
samento de Aristóteles. Referindo-se à tradição dos
De um modo geral, os pensa- hebreus, Avicena indicou que
dores árabes respeitavam e seguiam vários fenômenos naturais serviam
as autoridades clássicas. Tinham para prever o surgimento da peste: a
um bom conhecimento de plantas e grande multiplicação de rãs, o
remédios, mas davam pouca im- surgimento de muitos répteis a
portância à anatomia e cirurgia. partir da podridão, o surgimento de
Vamos dar uma amostra da ratos e outros animais subterrâneos
Medicina árabe, através de alguns sobre a terra, a fuga de pássaros
trechos do Cânon de Avicena. abandonando seus ovos no ninho, e
Ao discutir as febre pestilenci- gado caminhando como se estivesse
ais, Avicena as associa à transfor- embriagado.
mação e apodrecimento do ar e da A causa primeira de todas es-
água. Nesse sentido, suas idéias se sas doenças, segundo Avicena, viria
assemelham às dos autores romanos dos astros e de suas formas. Sempre
que mencionamos anteriormente. surgiriam essas doenças quando há
Segundo Avicena, a água só apo- certas configurações celestes e exis-
drece quando está misturada a cor- tem as disposições terrestres ade-
pos terrestres malignos. Da mesma quadas. Os sinais celestes principais
forma, o ar não apodreceria por si seriam o surgimento de halos em
próprio, mas apenas quando se volta do Sol e da Lua; aparição de
misturassem a ele certos vapores fogos no céu; estrelas cadentes e
malignos. A água estagnada ou dos cometas.
pântanos, alterada pela podridão, Avicena indicou vários deta-
assim como corpos de cadáveres, lhes sobre os sinais atmosféricos da
produziriam vapores malignos, peste, para cada uma das estações.
transportados pelos ventos a outros Como a doença é trazida por sub-
lugares. De um modo geral, stâncias putrefatas misturadas no ar,
Avicena afirmava que as pestes um sinal importante seria que a
surgiam pelo ar úmido e turvo, atmosfera ficaria turva, enevoada
sendo mais raras no tempo seco - ou enfumaçada - por exemplo, frio
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 48

com pó e sem chuvas. Se no verão necessidade de "secar" o corpo, ou


fizer frio de noite, e durante o dia seja, diminuir sua umidade. A justi-
um calor forte e sufocante, estando ficativa parece ter sido a de que
o ar conturbado, poder-se-ia esperar toda putrefação só ocorre na pre-
o surgimento da peste, febres pesti- sença de umidade e portanto, dimi-
lenciais, varíola e enfermidades se- nuindo a umidade, diminui-se a
melhantes. possibilidade de que as substâncias
Segundo Avicena, quando o ar do corpo apodreçam. Inicialmente,
putrefato é inalado, atinge o coração ele indicava que se deve produzir a
e daí se espalha por todo o corpo, evacuação do ventre. Se surgisse
podendo também se comunicar a nesse processo alguma matéria san-
outras pessoas: guínea, isso indicaria a necessidade
de sangria. Se surgissem outros hu-
"E quando o ar está deste modo, mores, seria necessário produzir
atinge o coração, no qual corrompe a novas evacuações.
estrutura do espírito que nele está, e
putrefaz toda a umidade que o circun-
A prevenção das pestes partia
da, (...) e espalha pelo corpo sua do mesmo princípio. Devia-se ex-
causa de fluidez, fazendo a febre trair do corpo toda umidade supér-
pestilencial. E ela se comunica a flua. Para isso, era necessário res-
muitos homens, que possuam em si tringir as bebidas, os alimentos e os
mesmos a propriedade preparatória.
Pois se existe o agente, mas o pacien-
banhos. Recomendava fortemente o
te não está preparado, não ocorrem a uso de vinagre nos alimentos, para
ação e o efeito." impedir sua putrefação. Além disso,
recomendava a administração dos
É interessante como Avicena antigos antídotos: teriaga e mitri-
tentava explicar a predisposição ao dato.
contágio. Aqui, ele fez intervir a Além de cuidados médicos
teoria dos humores: o corpo estaria com o próprio doente, Avicena
preparado para a doença se esti- indicava que era necessário refrige-
vesse cheio de humores maus, ou se rar sua casa, e corrigir o ar. A
estivesse debilitado (por exemplo, "refrigeração" da casa consistia em
pelo excesso de atividades sexuais), utilizar substâncias consideradas
ou mesmo se os seus poros estives- "frias". Ele indicava o uso de água
sem dilatados por banhos quentes. de rosas, sândalo, cânfora, limão,
Assim, o desequilíbrio dos humores água de romãs, vinagre e outras
não seria a causa que desencadeia a substâncias aromáticas.
doença, e sim uma condição para Segundo Avicena, a
atuação do contágio. Esta parece ter "correção" do ar pestilencial era útil
sido a primeira tentativa de tanto para os sãos quanto para os
conciliação entre a teoria médica de enfermos. Consistia em produzir
Galeno e a noção de contágio. bons odores, impedindo sua putre-
Ao discutir a cura das febres fação com qualquer coisa
pestilenciais, Avicena indicava a disponível - aloés, âmbar, almíscar,
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 49

láudano, cipreste, louro etc. Reco- Oxford, em 1167; Montpellier, em


mendava borrifar a casa com 1181; Pádua, em 1222. Nas uni-
vinagre, e defumação com sândalo, versidades, os estudos médicos
cânfora, mirra e outras substâncias. seguiam principalmente as obras de
De um modo geral, as reco- Galeno e de Avicena.
mendações de Avicena eram Os médicos formados pelas
coerentes com a idéia de que as universidades, nesse período, eram
pestes seriam trazidas pela poucos. Em Paris, foram apenas 6
putrefação. No entanto, como já no ano de 1296, e 32 em 1395, para
mencionamos, ele também receitava uma população de cerca de 250.000
o uso de antídotos (como a teriaga) pessoas. A prática médica continu-
para proteger contra a peste. Isso ava na mão de leigos. Ao mesmo
parece indicar uma mistura de duas tempo, surgiram escolas médicas
idéias: a da putrefação e a de desvinculadas tanto dos mosteiros
venenos. Na verdade, para Avicena, quando das universidades, como a
as duas idéias estavam intimamente famosa escola de Salerno, criada no
relacionadas: o apodrecimento século XII.
poderia produzir venenos. A escola de Salerno produziu,
Percebe-se em Avicena um no século XIII, uma obra em versos
conhecimento e uso da teoria sobre a manutenção da saúde, que
hipocrático-galênica dos humores, se tornou muito popular, difun-
acrescentando no entanto muito dindo-se por toda a Europa, o Re-
elementos novos. gimen sanitatis Salernitanum. Esse
livro constitui uma boa amostra da
Medicina européia da Alta Idade
O RENASCIMENTO CULTU- Média.
RAL DA IDADE MÉDIA Os versos dessa obra davam
variados conselhos para a conserva-
A partir dos séculos XI e XII, ção da saúde. Uma parte das reco-
os europeus iniciaram a tradução mendações se referia à alimentação:
para o latim de muitos textos anti- não beber muito vinho, não comer
gos (conservados pelos árabes) e de muito à noite, etc. A obra continha
obras escritas pelos próprios árabes. outras indicações detalhadas sobre
Através dos árabes, os europeus como conservar a saúde: levantar
redescobriram Hipócrates, Galeno, cedo pela manhã, lavar as mãos e
Aristóteles e muitos outros autores olhos com água fria, espreguiçar-se
que já não eram mais lidos. de modo suave, pentear os cabelos,
Foi principalmente por causa esfregar os dentes, caminhar, etc.
desse tipo de influência que ressur- Quanto à alimentação, o Re-
giu o interesse pelo estudo, na Eu- gimen apresentava uma série de
ropa. No século XII, foram criadas restrições: só comer quando o es-
as primeiras universidades: Paris, tômago estiver vazio da refeição an-
em 1110; Bolonha, em 1113; terior; evitar pêras, maçãs,
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 50

pêssegos, leite, queijo, carnes aparecem inúmeras receitas e indi-


salgadas, carne de cervo, de égua, cações práticas que não se
de vaca e de bode, especialmente baseavam em nenhuma teoria.
quando estiver doente. Vamos mostrar um exemplo tirado
Uma importante preocupação de outra obra: o Tesouro dos
do Regimen de Salerno era com pobres, escrito no século XIII. Esse
alimentos capazes de preservar de livro é de autoria de um português,
enfermidades: conhecido como Petrus Hispanus,
que em 1277 tornou-se papa (João
"Seis coisas que aqui serão descritas XXI).
Possuem um poder secreto contra O Tesouro dos pobres é um
todos os venenos:
Pera, alho, raízes de rabanete, nozes,
receituário com indicações para
nabo e ruta, muitas doenças comuns. Uma delas
Principalmente alho; pois aquele que o é o carbúnculo ou antraz - uma do-
comer, ença atualmente considerada como
Pode beber, e não se preocupar com transmissível e que se caracteriza
quem fez sua bebida;
Pode caminhar todas as horas por
pelo aparecimento de manchas que
ares infectados. lembram carvões.
Como os alhos possuem portanto
poderes de salvar da morte, "Contra o antraz. Primeiramente
Suporte-os, embora produzam um faça-se uma sangria no lugar em que
hálito desagradável: está o antraz. Se a matéria vier da
E não zombe do alho, como alguns parte de cima do pescoço, faça-se a
que pensam sangria da veia hepática. Se for do
Que ele apenas faz os homens pisca- lado do coração, [faça-se da veia]
rem, beberem e federem." cardíaca; feito isso, prepare para si o
seguinte remédio: colocar por cima
O que eram os "ares infecta- farelos cozidos com vinagre; da
mesma forma, colocar alhos amassa-
dos" de que o Regimen falava? O dos com sal e amoníaco (...), colocan-
próprio livro explicava que eram do por cima dissolvido em vinagre.
ares impregnados por maus odores, Também vale beber ou colocar em
capazes de produzir doenças: "É volta teriaga. Também vale colocar
certo que a infecção vem principal- diamante ou safira perto de qualquer
pessoa. Também colocar por cima a
mente pelo cheiro". No entanto, ao crista de galo ou galinha atrai o vene-
contrário de Avicena, o Regimen no. Antes de colocar tudo isso, verifi-
não acreditava que o uso de perfu- que se há lá veneno e atraia o mesmo
mes pudesse superar a infecção do com linha ou outra coisa. Repita-se,
ar. Ele recomendava simplesmente para não ficar lá, e aplique-se em volta
ceruso, isto é, alvaiade, diluído com
viver longe de qualquer lugar de óleo de rosas, suco de erva-moura e
onde pudesse provir o ar infectado um pouco de farinha de cevada; e
(água podre, cavernas, excrementos aplique-se em um ponto sadio. (...)
etc.). Diz-se que aplicar por cima dos car-
Observa-se que nesta e em ou- búnculos gemas cruas de ovo, tritura-
tras obras populares do período
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 51

das com igual quantidade de sal, faz peste passava de uma pessoa para
bem." outra, mas como entender isso?
Galeno não falava sobre nada pare-
Esse era o estilo geral dos re- cido.
ceituários medievais. Talvez algu- Mesmo sem dispor de uma
mas das indicações fizessem algum base teórica, era necessário agir.
efeito benéfico. A maior parte era Imaginou-se que o melhor modo de
provavelmente inócua ou mesmo impedir que a doença atingisse uma
prejudicial. região seria proibir a entrada de
pessoas já doentes. Mas as pessoas
poderiam estar doentes sem sabê-lo
AS GRANDES PESTES MEDI- e sem manifestar nenhum sintoma.
EVAIS Como distinguir os sãos dos doen-
tes? A idéia que surgiu foi isolar
No final da Idade Média e no todas as pessoas que estivessem
Renascimento a Europa foi varrida vindo de locais infectados e esperar
por grandes pestes, de diversos durante vários dias, para verificar se
tipos. Há motivos históricos para o surgiam nelas os sinais da peste. Se
surgimento dessas epidemias, surgissem, não poderiam entrar na
nessas épocas. Durante a Idade cidade.
Média, as cruzadas cristãs coloca- A cidade de Ragusa, perto de
ram os europeus em contato com Veneza elaborou nessa época a pri-
outros povos e com doenças desco- meira legislação exigindo uma qua-
nhecidas, para as quais o organismo rentena (isto é, um isolamento de 40
europeu não tinha nenhuma resis- dias) para viajantes que viessem de
tência. No Renascimento, as gran- lugares infectados. Não havia, é
des navegações tiveram um efeito claro, nenhuma base médica para o
semelhante. número 40. Provavelmente, os
Uma das mais terríveis epide- legisladores se inspiraram no
mias medievais foi a peste negra. período hebraico de impureza das
Iniciou-se em 1347 ou 1348 e esti- mulheres após o parto.
ma-se que matou 1/3 da população Um médico da época, Guy de
da Europa. Parece ter sido uma Chaliac, assim descreveu a peste
combinação de peste bubônica e negra que atingiu Avignon, em
pneumonia. 1348:
FIGURA "A mortalidade começou entre
PESTE.TIF nós no mês de janeiro e durou sete
meses. Foi de dois tipos. O primeiro
Como ocorreu em outras oca- durou dois meses. Era caracterizado
por uma febre contínua e por cuspir
siões semelhantes, as antigas teorias sangue; as pessoas morriam dela em
médicas não conseguiram explicar três dias. A segunda durou o resto do
essa peste. Todos percebiam que a tempo. Também era caracterizada por
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 52

uma febre contínua e por apostemas celestes - Saturno, Júpiter e Marte -


[inchações], carbúnculos e tumores que ocorreu no dia 24 de março de
nas partes externas, principalmente
nas axilas e virilhas. E as pessoas
1345, no décimo quarto grau de
morriam dela em cinco dias. Era tão Aquário. Essa mesma explicação já
contagiosa (especialmente a que havia sido proposta antes pela Fa-
incluiu cuspir sangue) que um homem culdade de Medicina de Paris. A
a pegava de um outro não apenas conjunção dos astros "modificou o
quando vivia junto, mas simplesmente
por olhar para ele. Por isso as pessoas
ar e os outros elementos. Como o
morriam sem servidores e eram enter- ímã move o ferro, ela moveu os
radas sem padres. O pai não visitava o humores espessos, quentes, veneno-
filho, nem o filho [visitava] o pai. A sos; e reunindo-os dentro do corpo,
caridade estava morta e a esperança criou lá apostemas". Logo depois
caída."
dessa conjunção, a mortalidade co-
meçou no Oriente, espalhando-se
Havia, portanto, a percepção
gradualmente.
de que a peste era contagiosa, mas o
medo era tanto que se acreditava
FIGURA
poder adquirir a enfermidade até
BUBAO.TIF
pelo olhar.
Guy de Chauliac narrou que
O autor afirmava que para se
essa epidemia se iniciou no Oriente
prevenir contra a doença, "nada era
e se espalhou pelo mundo todo. Ele
melhor do que fugir do lugar antes
estimou que 3/4 da população fran-
de ficar infectado". Também reco-
cesa morreu com a peste. Ele pró-
mendava purgantes, sangrias para
prio foi vítima dela, ficando doente
diminuir o sangue, purificar o ar
durante seis semanas, mas sobrevi-
com fogo e fortificar o coração com
veu.
a teriaga, frutos e coisas perfuma-
Na época, houve lugares em
das; fortificar os humores com o
que se suspeitou que a doença havia
"bolus" da Armênia e resistir à pu-
surgido porque "os judeus envene-
trefação com coisas ácidas. Para
naram o mundo", e por isso mata-
curar os doentes, tentava-se utilizar
ram todos os judeus da região. Ou-
sangrias e evacuações, além de re-
tros acreditaram que os pobres
médios. Fazia-se os apostemas ex-
mutilados eram os responsáveis, e
ternos "madurarem" por meio de
os expulsaram. Ninguém compre-
figos e cebolas cozidas, misturados
endia a doença e os médicos nada
com fermento e manteiga. Depois,
podiam fazer contra ela. No
eles eram abertos e tratados como
entanto, Guy de Chauliac tinha uma
uma úlcera. Aplicavam-se ventosas
explicação para a peste: a influência
no tumores, depois eles eram raspa-
dos astros, que modificou o ar e
dos e cauterizados.
atuou sobre os humores do corpo
Guy de Chauliac elaborou
humano. A causa astral teria sido
uma teriaga especial para essa
uma conjunção de três corpos
peste, seguindo os ensinamentos de
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 53

Arnaldo de Villanova e dos Um dos mais importantes do-


médicos de Paris e Montpellier. O cumentos sobre o assunto era o
remédio era composto por mais de Malleus maleficarum (o martelo das
40 substâncias diferentes, incluindo maléficas, ou seja, das feiticeiras).
noz moscada, gengibre, zedoária, Esse livro, escrito em 1484, foi um
raiz de genciana, salva, menta, manual composto pelos inquisi-
limão, "osso de coração do cervo", dores Heinrich Kramer e James
raspas de marfim, safira, esmeralda, Sprenger - dois dominicanos, pro-
coral vermelho, aloés, sândalo, fessores de teologia. Parece ter sido
conserva de rosas, conserva de o trabalho mais utilizado pelos in-
nenúfares e outros materiais quisidores de toda a Europa, que o
variados. Apesar de teriagas empregavam como orientação para
pretensamente milagrosas como interrogar e julgar as feiticeiras.
essa, de nada adiantou a fértil Apesar de escrita em uma época em
imaginação dos médicos, diante da que a cultura européia já estava bem
peste. A destruição foi imensa. mais desenvolvida, essa obra
Esta e outras pestes tiveram mostra antigas idéias sobre o poder
enorme efeito sobre o povo, que da magia.
passou a viver temendo pela pró-
xima epidemia mortal. O desconhe- FIGURA
cimento das causas das doenças BRUXAS.TIF
levava a todo tipo de especulação.
Nesse período, a astrologia médica Os autores do Malleus malefi-
fez grande sucesso; a religião utili- carum receberam para seu trabalho
zou as pestes para lembrar aos pe- amplos poderes do papa Inocêncio
cadores que deviam temer a Deus; e VII. Ao incumbi-los de sua missão
ressurgiram com muita força as inquisitorial, o papa escreveu em
crenças em poderes mágicos ou uma bula de 9 de dezembro de
diabólicos como causadores de en- 1484:
fermidades.
"(...) Chegou-nos recentemente
aos ouvidos, não sem que nos afligís-
semos na mais profunda amargura,
BRUXARIA, ASTROLOGIA E que em certas regiões da Alemanha do
DOENÇAS Norte (...), muitas pessoas de ambos
os sexos, a negligenciar a própria
Durante a Idade Média e o salvação e a desgarrarem-se da Fé
Renascimento, a crença nos poderes Católica, entregaram-se a demônios, a
mágicos ou demoníacos como causa Íncubos e a Súcubos3, e pelos seus
de enfermidades se tornou muito
3 Acreditava-se que os demônios
forte. Foi especialmente durante a
podiam assumir forma de homens
Inquisição, com a caça às bruxas, (íncubos) e mulheres (súcubos), para
que se tornou claro como essas seduzir e manter relações sexuais com os
crenças eram fortes e difundidas. humanos.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 54

encantamentos, pelos seus malefícios


e pelas suas conjurações, e por outros Os inquisidores não
encantos e feitiços amaldiçoados e por
outras também amaldiçoadas
colocavam em dúvida a influência
monstruosidades e ofensas hórridas, dos astros sobre as enfermidades.
têm assassinado crianças ainda no Eles aceitavam, por exemplo, que
útero da mãe, além de novilhos, e têm os cometas são criados por Deus
arruinado os produtos da terra, as uvas para prenunciar a morte dos reis.
das vinhas, os frutos das árvores, e
mais ainda: têm destruído homens,
Ao mesmo tempo que reconheciam
mulheres, bestas de carga, rebanhos, a importância dos astros, os
animais de outras espécies, parreirais, inquisidores afirmavam que, em
pomares, prados, pastos, trigo e outros casos, as pragas e enfer-
muitos outros cereais (...)" midades podiam ser causadas pelos
demônios.
Como se vê, o próprio papa Pode nos parecer totalmente
acreditava que as bruxas e feiticei- absurdo, hoje em dia, que se atribu-
ros, com auxílio do demônio, des- íssem as epidemias e doenças às
truíam plantações e arrasavam ani- bruxas; isso nos parece fruto da
mais e pessoas. Kramer e Sprenger imaginação doentia da época. No
discutiram, com ampla erudição, se entanto, os inquisidores afirmavam
de fato existia esse poder e se as que esses poderes eram reais, que as
doenças e epidemias não teriam bruxas eram capazes de causar todo
apenas outras causas naturais, como tipo de enfermidades, e que os pró-
por exemplo a influência dos astros: prios médicos aceitavam a possibili-
dade de que as enfermidades
"Há quem defenda que toda
transformação que se dá no corpo
fossem produzidas por feitiçaria.
humano - para a saúde ou para a Mesmo doenças bem conhecidas,
doença, por exemplo - pode ser que se sabia serem contagiosas,
reduzida à questão das causas na- como a lepra, eram atribuídas à
turais, conforme Aristóteles demons- feitiçaria.
trou no sétimo livro da sua Física. E
dessas causas a maior é a influência
Como todas as enfermidades
dos astros em cujo movimento os podiam ser causadas pela magia,
demônios não têm o poder de interfe- todas elas podiam também ser com-
rir: isso só Deus pode fazer." batidas por orações e por exorcis-
mos. O próprio gado deveria ser
No entanto, contra essa opini- benzido para proteger contra as
ão, os inquisidores apresentaram a doenças causadas por bruxaria.
autoridade religiosa: As diferenças entre doenças
naturais e sobrenaturais ficavam
"Santo Agostinho nos serve de muito diluídas. As ervas e outros
testemunha ao dizer: ‘Existem, com
efeito, feitiços, malefícios e encanta-
remédios podiam servir para preser-
mentos diabólicos, que não só fazem var ou curar de doenças, mas como
adoecer os homens como também os elas funcionavam? Os inquisidores
matam’." sugeriram que elas serviam para
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 55

fortalecer a pessoa e aumentar sua épocas adequadas para utilizar san-


resistência ao demônio. Dessa grias ou purgantes.
forma, se uma pessoa se curava Tais obras eram repletas de
através de remédios, isso não queria indicações sobre os sinais que
dizer que a enfermidade era natural anunciavam o surgimento das tão
- poderia ter sido também um efeito temidas pestes: sinais coloridos
de feitiçaria. Por precaução, era durante eclipses, certas mudanças
conveniente acompanhar qualquer meteorológicas etc. Observando-se
tratamento médico por orações e os acontecimentos atmosféricos ou
por apelos aos santos e a Deus, para astronômicos dos primeiros dias do
que eles fossem realmente eficazes. ano seria possível prever tudo o que
Nessa época, o número de su- aconteceria nos meses seguintes.
postas bruxas capturadas e queima- Por exemplo: se ventasse pela noite
das pela Inquisição atingiu dezenas do 11 ou 14 dia do ano, haveria
de milhares. É natural que, nesse peste.
tipo de clima cultural, a busca de Os eclipses eram sempre sinal
uma compreensão médica das doen- de catástrofe. Seu significado de-
ças e de sua transmissão ficasse em pendia do signo em que ocorresse.
segundo plano. Se houvesse um eclipse nos signos
Os inquisidores aceitavam, do fogo (Áries, Leão, Sagitário),
nessa época, algumas concepções haveria guerras, lutas, "desterro de
astrológicas. Desde o final da Idade algum príncipe, prisões de gente do
Média, por influência árabe, a astro- povo por muitas discórdias, incên-
logia havia adquirido grande influ- dios, roubos, destruições, febres
ência na Europa. Um dos astrólogos agudas, destruição dos frutos" e
árabes mais influentes foi Albuma- outras calamidades. Se o eclipse
sar, ou Abu Ma'shar de Bagdá ocorresse nos signos do ar
(século X). Traduzido para o latim, (Gêmeos, Libra, Aquário), haveria
ele influenciou fortemente o desen- "fome com muitas doenças, corrup-
volvimento da astrologia européia. ção do ar, e peste".
Na Espanha e depois em Portugal, Os cometas, igualmente, sem-
após a invenção da imprensa de pre anunciariam desgraças.
tipos móveis, surgiram obras muito
populares, os chamados Reportórios FIGURA
dos tempos, que divulgaram essas COMETA.TIF
idéias. Essas obras davam indica-
ções sobre as épocas e condições Essa tradição astrológica, ini-
adequadas para o plantio e colheita, ciada na Antigüidade, manteve-se
relações entre os astros e o clima, muito forte até o século XVII, en-
etc. Grande parte dessas obras era fraquecendo-se mas não desapare-
destinada à astrologia médica, indi- cendo nos séculos seguintes. Houve
cando as condições celestes capazes ocasiões em que as autoridades re-
de produzir doenças, bem como as
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 56

ligiosas se manifestaram contra a


astrologia. Isso ocorreu, em particu-
lar, no início do século XVI. Havia
sido feita uma previsão astrológica
de um grande dilúvio que acontece-
ria em 4 de fevereiro de 1524,
quando haveria uma conjunção de
Saturno, Júpiter e Marte no signo de
Peixes, provocando chuvas torren-
ciais.
Muitos livros foram escritos
para combater a previsão. Um deles
é o do frei português Antônio de
Beja. Um dos argumentos que ele
utilizou foi que, se os astros deter-
minassem os acontecimentos na
Terra, todos os locais seriam igual-
mente atingidos pelas mesmas ca-
lamidades - e isso não ocorre. Uma
cidade pode ser atingida pela peste
sem que ela apareça nas cidades
vizinhas.
Apesar de críticas religiosas à
astrologia, pode-se dizer que a reli-
gião católica foi muito tolerante e
jamais perseguiu os astrólogos
como fez com as bruxas e feiticei-
ros. A Medicina, por sua vez, admi-
tia a importância da astrologia para
explicar as epidemias, através de
influências climáticas, pois isso
estava de acordo com a tradição
galênica e hipocrática. Certamente
essa tradição astrológica dificultou
a compreensão das causas bem
terrestres de doenças transmissíveis.
DO PERÍODO DAS GRANDES
6 DESCOBERTAS AO SÉCULO XVIII

AS GRANDES NAVEGAÇÕES bastante conhecida entre todos os


E AS NOVAS DOENÇAS conquistadores.

No final do século XV e início FIGURA


do século XVI, as grandes navega- AZTECAS.TIF
ções européias em direção à Ásia e
à América produziram, entre outros Os historiadores contam várias
efeitos, grande intercâmbio de en- outras terríveis epidemias devidas a
fermidades, como febre amarela, essa doença. Em 1545, houve uma
cólera e sífilis. grande epidemia no México, na
qual morreram 800.000 pessoas.
FEBRE AMARELA Em 1598, os ingleses tiveram que
A febre amarela era desconhe- abandonar Porto Rico por causa da
cida na Europa, antes da época da febre amarela. E bem mais tarde,
descoberta da América. É possível Napoleão teve que desistir do Haiti
que a doença seja originária da pró- e da conquista da América, pois
pria América, embora alguns 23.000 dos 30.000 soldados que
acreditem que os europeus a enviou para lá morreram de febre
levaram para lá, da África. amarela.
Em 1493, por ocasião da se- A primeira descrição
gunda viagem de Colombo à detalhada da enfermidade data de
América, houve uma epidemia no 1648. Um cronista da época, Lopez
Haiti, possivelmente de febre de Cogulludo, descreveu os
amarela (não se sabe com certeza, sintomas da doença, que começava
pois as descrições da época não com uma forte dor de cabeça "e de
caracterizam bem a doença). Cerca todos os ossos do corpo, tão violen-
de 80% dos espanhóis morreram. ta que parecia que se
Foi o primeiro contato dos europeus desconjuntavam e que uma prensa
com essa enfermidade. os apertava". Por causa das dores
Posteriormente, a doença se tornou nas costas, a doença era chamada
também de "golpe de barra".
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 58

Depois, sobrevinha um calor muito os médicos, pois se supunha que


intenso, ocasionando delírios em estava envolvido o humor colérico
muitos. Em seguida, alguns (bílis amarela). Os sintomas descri-
apresentavam-se com vômitos tos pelo próprio Gaspar Correia e,
como de sangue podre, e deste, na mesma época, pelo médico por-
poucos ficavam vivos. tuguês Garcia de Orta, eram os se-
Em geral, no terceiro dia a fe- guintes: início repentino, fortes
bre cedia e os doentes pareciam dores no abdômen, vômitos, diar-
bem, mas não conseguiam comer réia, sede, câimbras, suor frio, pulso
nem beber. A melhora era apenas fraco, olhos afundados, coloração
aparente: depois de mais um ou dois azulada sob as unhas das mãos e
dias, morriam. O nome "febre ama- dos pés. Nada se fazia contra a
rela" foi dado à doença apenas no doença, exceto vomitórios e
século XVIII, para descrever um de clisteres. A morte era muito rápida:
seus sintomas - a coloração amarela muitas vezes a pessoa morria
da pele dos doentes. poucas horas depois dos primeiros
Da América Central, a febre sintomas; outras vezes, vivia dois
amarela se espalhou pelo mundo, ou três dias.
levada pelos navegantes. Atingiu a Nessa época, o cólera não se
América do Norte, América do Sul, espalhou pelo mundo. Apenas no
Espanha, França, Inglaterra e Itália. século XIX, como veremos mais
tarde, a enfermidade produziu su-
CÓLERA cessivas epidemias na Europa e no
Outra enfermidade que se tor- restante do globo, produzindo gran-
nou conhecida na época das grandes de mortalidade.
navegações foi o cólera. Desde o
início das suas expedições à Índia, SÍFILIS
os portugueses tomaram conheci- No final do século XV, a do-
mento do cólera que parece sempre ença que chamamos de sífilis tor-
ter atingido a região do rio Gânges. nou-se conhecida em toda a Europa.
Em 1543, por exemplo, houve uma Ela chamou a atenção pública, pela
epidemia tão forte, que o escritor primeira vez, durante o cerco que os
Gaspar Correia conta que "todos o franceses fizeram à cidade de Nápo-
dia dobravam sinos, e enterravam les. Por isso, os franceses
mortos de doze a quinze cada dia; e chamavam a enfermidade de
em tanta maneira que mandou o "doença de Nápoles", enquanto os
Governador que não se tangessem italianos a chamavam de "doença
sinos nas igrejas, para não fazer francesa" (morbo galico, em latim).
pasmo à gente". Muitos autores atuais supõem que
A doença era chamada de se trata de doença antiga na Europa,
"moryxy" entre os indianos, mas que ainda não tinha sido
"hacaiza" entre os árabes, e recebeu descrita. Outros acham que a
o nome de "cholerica passio" entre enfermidade foi trazida da América,
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 59

pela frota de Colombo. O escritor mancham e infeccionam as


espanhol Gonçalo Herñandez de mulheres com quem se põem em
Oviedo escreveu, em 1535: contato".
Segundo Anchieta, essa en-
"Muitas vezes na Itália eu ria, fermidade não surgia ao acaso, mas
ouvindo os italianos nos falarem sobre por causa de um costume dos índi-
o mal francês e os franceses chama-
rem-no de mal de Nápoles. Na ver-
os. Eles utilizavam certas lagartas
dade, uns e outros acertariam o nome finas e peludas, de corpo negro e
se dissessem o mal dos índios." cabeça vermelha, chamada
"socaúna". O veneno dos pêlos
Segundo Oviedo, um dos dessas lagartas fazia inchar a região
companheiros de viagem de Co- tocada. Anchieta diz que os índios
lombo (Vicente Pinzón), lhe contou aplicavam tais lagartas aos órgãos
que no ano de 1493, quando a es- genitais, de tal modo a estimular a
quadra de Colombo regressou à ereção. O cronista Gabriel Soares
Espanha, a doença começou a se também descreve esse costume dos
manifestar entre os espanhóis e que índios. Anchieta atribui a doença a
já se sabia que ela era transmitida esse costume. Não é impossível que
nas relações sexuais. Muitas o microorganismo causador da
pessoas morriam, pois "como a sífilis tenha passado de uma lagarta
doença era coisa nova, não a à espécie humana, mas nunca foi
entendiam nem sabiam curar os feito um estudo científico sobre
médicos". No ano seguinte, os isso.
espanhóis enviaram tropas para A febre amarela, o cólera e a
auxiliar o rei Fernando de Nápoles, sífilis, são doenças atualmente con-
contra Carlos VIII da França. Entre sideradas transmissíveis. No en-
os espanhóis devem ter ido vários tanto, nada se sabia sobre a causa
sifilíticos, e a enfermidade se dessas ou de outras enfermidades
espalhou entre os franceses e novas, da época.
italianos.
Com as viagens dos portugue- ESCORBUTO
ses à Índia, a enfermidade se propa- Outra doença que afetou for-
gou por lá, onde se tornou conhe- temente as navegações foi o escor-
cida como "paranque rere", que buto. Embora essa doença já exis-
significa "a doença do português". tisse antes, foi durante as grandes
No Brasil, já existia uma viagens que se tornou conhecida,
doença semelhante à sífilis. José de produzindo grande terror entre os
Anchieta diz que os índios muitas marinheiros.
vezes tinham feridas nos órgãos Na viagem de Vasco da Gama
sexuais e que essa doença era à Índia, em 1497, entre Moçambi-
transmitida às mulheres: "Não só se que e Sofala, começou a aparecer o
tornam eles feios com o aspecto escorbuto na tripulação. O cronista
horrível da moléstia, como também Lopes de Castanheda descreve que,
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 60

depois de transpor o Cabo das Tor- carência nutricional, que atualmente


mentas, Vasco da Gama acreditou descrevemos como falta de
já estar encontrando sinais da Índia vitamina C. De certa forma, João de
que procurava. Por isso, colocou o Barros estava certo ao associar a
nome de Bons Sinais no rio a que enfermidade aos alimentos, mas
chegou, nas costas de Moçambique, ninguém na época podia adivinhar a
e resolveu consertar aí os seus navi- necessidade de frutas e de verduras
os, tendo então grandes problemas na alimentação, para evitar o
escorbuto.
"(...) com uma doença que lhes O surgimento dessas novas
sobreveio (parece que do ar daquela doenças foi um fator que estimulou
região) que a muitos lhes inchavam as
mãos, e as pernas e os pés. E com
os médicos a repensarem seus co-
isto lhes cresciam tanto as gengivas nhecimentos sobre a causa e propa-
sobre os dentes que não podiam gação das epidemias.
comer e apodreciam-lhe, de maneira
que não havia quem suportasse o
fedor da boca, e com estes males
padeciam dores mui grandes, e morre-
A TEORIA DO CONTÁGIO DE
ram alguns o que pôs a gente em FRACASTORO
grande desmaio."
Dos diversos médicos euro-
Na volta da Índia, a enfermi- peus que começaram novamente a
dade reapareceu entre os portugue- refletir sobre o contágio, talvez o
ses. Vasco da Gama tinha 148 ho- mais importante tenha sido o vero-
mens ao partir de Lisboa e retornou nês Girolamo Fracastoro (1484-
com 55. A maior parte desses 93 1553).
mortos pereceu de escorbuto. No final do século XVI a
Como se vê, Castanheda acre- sífilis começou a se espalhar pela
ditava tratar-se de uma doença do Europa. Transmitida sexualmente,
próprio local ("do ar daquela regi- ela se difundiu com enorme rapidez,
ão"). Outro cronista, João de Bar- por todas as classes sociais. Após o
ros, descreveu a enfermidade, à contágio, a enfermidade podia de-
qual não se dava ainda nenhum morar vários meses para se
nome, e a explicava de outra forma: manifestar - o que fazia com que se
ela seria devida a carnes e peixes espalhasse sem ninguém notar.
salgados, assim como biscoitos que Produzia fraqueza, palidez, frio e
se tinham estragado por causa do dor nos braços e pernas, manchas
longo tempo da viagem. na pele, feridas nos órgãos genitais,
Essa terrível enfermidade foi pústulas pelo corpo, queda de
também descrita por Camões, nos cabelo, feridas profundas e
Lusíadas. Ao contrário do que se incuráveis, úlceras nos olhos,
pensou na época, não é causada deformidades e, por fim, a morte.
nem por alimentos podres, nem pelo Diz-se que a sífilis até mesmo
ar infectado. Trata-se de uma influenciou a moda: o surgimento
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 61

das perucas teria sido o resultado do ceu simultaneamente em muitos


grande número de nobres que se países da Europa e só depois na
tornaram carecas por causa dessa Espanha e Portugal. Afirma, tam-
doença. Embora não produzisse bém, que muitos "foram atacados
efeitos tão rápidos quanto as pestes, por esse contágio, sem haver se
tornou-se um enorme problema so- comunicado com ninguém, e sem o
cial e apavorou a população. ter obtido no seio do prazer." A
Em 1530, poucas décadas após doença teria que ter, portanto, uma
o surgimento da doença na Europa, origem mais ampla.
Fracastoro publicou uma famosa Para explicar o surgimento
obra, na qual introduziu o próprio desta enfermidade, Fracastoro utili-
nome da enfermidade: Syphilis, sive zou uma teoria astrológica, bem ao
Morbus Gallicus ("Sífilis, ou gosto da época. Inicialmente, ele
doença francesa"). Este curioso afirmava que uma doença tão geral
livro tinha um estilo pouco comum só poderia ter sido transmitida pelo
em obras médicas: foi escrito em ar "corrompido". Mas como o ar se
versos, com estilo literário. Tudo corrompeu e produziu essa enfermi-
indica que Fracastoro se inspirou na dade? Por uma influência celeste, já
obra de Lucretius, De rerum natura, que os astros agitam e movem os
também em versos, para compor elementos terrestres: o Sol controla
seu trabalho. As próprias idéias de o calor e o frio, a Lua controla a
Fracastoro, como veremos, umidade e os mares. Os outros as-
possuem semelhança com as de tros também influenciariam as sub-
Lucretius. stâncias terrestres.
Em uma linguagem rebuscada, Como evidência de que os as-
Fracastoro conta uma série de his- tros podiam trazer novas doenças,
tórias, uma das quais introduz o Fracastoro lembrou a peste negra de
nome da enfermidade. Ele conta dois séculos antes, que teria sido
que o pastor Syphilus, do Haiti, causada pela união de Marte e Sa-
havia prestado homenagens ao seu turno. Convidou, por isso, seus
rei, Alcithous, como se ele fosse leitores a elevarem os olhos para os
uma divindade. Por isso, teria sido céus, para descobrir a origem do
castigado pelo deus Sol, que enviou novo flagelo. E logo identificou a
a nova doença aos homens. Daí causa: uma conjunção de Júpiter,
vem o nome da enfermidade, sífilis. Marte e Saturno na constelação de
A história é tola, mas o nome foi Câncer. Embora Júpiter fosse consi-
adotado por todos. derado um planeta benéfico, ele não
Fracastoro discute a crença era capaz de impedir a ação de Sa-
existente na época, de que a doença turno e Marte reunidos.
tivesse sido introduzida por Co-
lombo e se espalhado pelo contato "[Júpiter] não pode se impedir de
sexual. No entanto, ele nega essa lamentar os infelizes mortais, prevendo
as guerras, a destruição das coisas e
explicação, pois diz que ela apare-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 62

dos impérios, as devastações e as nosos; viver no campo aberto, ou


mortes funestas que devem desolar a numa colina agradável, onde o ar é
terra. Ele é atingido pela dor sobretudo
à vista dos efeitos contagiosos de uma
sempre renovado pelos ventos. Re-
nova enfermidade, cuja violência não comendava evitar o repouso e o
pode ser interrompida por nenhum ócio. O trabalho e os exercícios se-
recurso da indústria humana. Os riam saudáveis; suar faria bem. Não
outros deuses aplaudem; o Olimpo se deveria fatigar o espírito. Devia-
treme, e o ar fica carregado por um
novo veneno. Suas influências malig-
se respeitar um regime no qual se
nas se espalham pouco a pouco e evitariam os peixes e também
infectam logo o espaço imenso dos pássaros que se alimentam de
céus. Talvez os planetas, unindo seus peixes. Não se deveria utilizar
fogos ao Sol, tenham puxado dos freqüentemente nem o vinagre, nem
mares e da terra vapores que, insinu-
ando-se nas partículas do ar, o tenham
o leite. Quanto ao vinho, só
alterado e carregado desse veneno, deveriam ser usados os
rarefeito demais para ser sensível aos provenientes de solo úmido. As
olhos; talvez algum outro vício do ar plantas odoríferas, que purificam o
tenha corrompido nossa atmosfera." ar, também seriam úteis. Quando,
apesar de todos os cuidados, a en-
Segundo Fracastoro, o ar po- fermidade surgisse, o tratamento
deria ser afetado de diversas manei- consistiria em purificar o corpo com
ras pelas "sementes celestes" que aí o uso de sangrias ou purgantes.
se espalhariam, e podiam
influenciar às vezes só as plantas, às FIGURA
vezes só alguma espécie de animal. SIFILIS.TIF
No caso da sífilis, "ela só quer o
homem. Ela se insinua em seus Logo após o aparecimento da
membros para consumi-lo. Sem sífilis, os médicos experimentaram
dúvida esse veneno, circulando em muitos remédios e descobriram que
todo o corpo, se prendeu à parte o mercúrio, embora seja uma subs-
espessa do sangue, aos humores que tância venenosa, pode curar essa
lá residem, às matérias gordurosas e doença. Fracastoro sugeriu várias
fétidas; que ele, em uma palavra, se explicações para a eficácia do mer-
nutriu de tudo o que aí havia de cúrio.
impuro; é a razão que devemos dar
para essa doença que encontrou seu "Talvez as partículas agudas de
alimento no sangue." que ele se compõe, encontrando-se
Fracastoro não associou a sífi- extremamente divididas depois de
lis ao contato sexual. Como a en- haver penetrado nas diferentes partes
do corpo, tornem-se capazes, por esse
fermidade viria pelo ar, ele sugeriu meio, de dissolver e de destruir a
vários cuidados para se preservar semente da peste; talvez, enfim,
dela, tais como: escolher um ar con- porque os destinos e a natureza lhe
veniente; fugir dos ventos quentes; deram qualquer outra qualidade, que
evitar lugares lamacentos ou panta- nos é desconhecida."
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 63

remédios cuja ação não é com-


Fracastoro recomendava mis- preendida.
turar o mercúrio com várias sub- Fracastoro utilizou repetidas
stâncias, quase todas elas de cheiro vezes a palavra "contágio" em suas
desagradável: raízes de heléboro descrições, mas em nenhum
negro e de íris em pó, gálbano, instante esclareceu em que sentido a
assa-fétida, óleo tirado do enxofre e doença era contagiosa.
outras substâncias. A pessoa Embora o livro sobre a sífilis
deveria cobrir todo o corpo com seja a mais conhecida obra de Fra-
esse ungüento e depois se deitar e castoro, foi em outro trabalho que
cobrir bem, até transpirar ele desenvolveu o seu conceito de
abundantemente. Essa operação contágio. Em 1546, ele publicou um
deveria ser repetida dez vezes. estudo Sobre doenças contagiosas.
A absorção do mercúrio pelo Nesse trabalho, ele aceitava a exis-
corpo produzia uma forte salivação, tência de enfermidades - entre as
que obrigava o paciente a cuspir quais incluiu a varíola, lepra, tifo,
sem parar. Isso era interpretado pneumonia, peste bubônica e outras
como um bom sinal: parecia que era - que poderiam passar de uma pes-
a própria doença que estava saindo soa para várias outras. Como o nú-
do corpo, com a saliva. "O humor mero de pessoas doentes podia ir
espesso e maligno que vos atormen- aumentando, sem que a doença se
tava se dissolverá pouco a pouco. enfraquecesse, Fracastoro concluiu
Vós o sentireis flutuar com a saliva, que essas doenças epidêmicas eram
e tereis a satisfação de vê-lo escoar- causadas por pequenos germes vi-
se como um riacho e cair a vossos vos ou sementes que possuíam o
pés." poder de se multiplicar no corpo do
Em meio a todas as descrições paciente. Um veneno, pelo contrá-
de Fracastoro, podemos perceber os rio, não se multiplica sozinho e não
seguintes elementos importantes: os pode produzir uma epidemia.
astros podiam influenciar e produzir Esses germes eram denomina-
combinações novas dos elementos dos "contagion" por Fracastoro.
terrestres; isso ocorreria principal- Tratar-se-ia de uma corrupção que
mente quando eles se reúnem em se desenvolveria dentro da substân-
uma constelação (conjunção); o ar cia em putrefação, passando de uma
se tornaria então corrompido ou coisa para outra, e seria causada
envenenado, ficando repleto de originalmente pela infecção por
germes ou sementes da partículas imperceptíveis. Os
enfermidade, provenientes do céu; germes eram descritos como peque-
esse ar produziria a corrupção do nos demais para serem vistos.
sangue, que poderia ser combatida De acordo com Fracastoro,
por processos gerais de purificação havia três modos de contágio: pelo
(sangria, evacuações) ou por contato direto de uma pessoa com
outra; por agentes intermediários
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 64

fomentadores (fomites), impregna- ficar quais as idéias mais comuns


dos por material infeccioso, tais no período, estudando alguns
como roupas velhas, às quais ade- escritos de médicos desse século,
rem os germes das enfermidades; e sobre a peste.
à distância, pelo ar. Manuel Álvares (1545-1612)
Cada tipo de semente ou foi um importante médico portu-
germe causaria uma doença dife- guês, que se tornou professor da
rente. No entanto, os germes pode- Universidade de Toulouse, na Fran-
riam se modificar, transformando-se ça, de 1572 até sua morte. Em 1585,
nas sementes de outras doenças, houve uma peste bubônica em
assim explicando diferentes epide- Toulouse, e Álvares escreveu um
mias. Partindo dessa concepção, livro em que tentava explicar a en-
Fracastoro indicou como método fermidade e indicar como se podia
terapêutico tentar destruir rapida- evitá-la e curá-la.
mente os germes que invadiam o Álvares discorreu sobre várias
corpo. hipóteses a respeito do surgimento
Não há dúvidas de que Fracas- das epidemias. Ele sugeriu que elas
toro se aproximou muito de nosso podiam ser trazidas pela infecção
conceito de enfermidades transmis- do ar, causada por imundícies,
síveis. No entanto, não se deve pen- inundações, chuvas, umidade,
sar que ele seja um cientista mo- tremores de terra, vapores ou abun-
derno. Como vimos, ele continuava dância de corpos mortos. Como
a aceitar todo tipo de concepções vimos, a idéia de que o ar transmite
sobre a influência dos astros na as epidemias era já bastante antiga.
atmosfera; e não se pode dizer que Não poderia faltar também, é claro,
sua idéia de contágio tivesse uma a menção a fatores astrológicos,
boa fundamentação. Como Fracas- como a conjunção de Saturno e
toro apelava para coisas invisíveis Marte no signo de Aquário. Manuel
(os germes ou sementes), a hipótese Álvares admitia que Deus se servia
não podia ser testada. No fundo, era dos astros "como instrumentos da
uma hipótese como muitas outras - justiça", para castigar os pecados
com uma desvantagem: era nova e dos homens, fazendo com que por
contrária à teoria galênica. sua influência o ar se alterasse tanto
que se torne contrário à vida.
Conhecidas as causas das epi-
OS PORTUGUESES E AS PES- demias, podia-se tentar evitá-las.
TES NO SÉCULO XVI Como elas eram enviadas por Deus,
a primeira providência seria abolir a
No século XVI ainda predomi- causa principal, que era o pecado,
navam na medicina as concepções evitando o erro, penitenciando-se e
de Hipócrates e Galeno. As pestes rezando e implorando por piedade
continuavam a se suceder, atingindo divina.
fortemente Portugal. Podemos veri-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 65

Álvares admitia também a longe das casas, assim também


existência do contágio pelo toque como os cachorros e gatos; pois eles
de coisas e pessoas infectadas. Por com freqüência trazem o mau ar".
isso, recomendava que se cuidasse As roupas também deveriam ser
das portas da cidade: "evitar que periodicamente purificadas:
nenhuma pessoa entre de qualquer
lugar infectado, para não aumentar "É bom mudar com freqüência de
o contágio". Pelo mesmo motivo, os roupas, e fazê-las passar sobre o fogo,
como também manter fogo aceso no
doentes deviam ser isolados; e de- quarto, sem se aquecer demais (...) A
via-se evitar também confusões ou freqüente troca de camisa e roupas é
aglomerações. Não se deveria con- também extremamente exigida contra
versar com doentes, nem visitá-los, esse mal, desde que as que tirardes
a menos que se tivesse certeza de sejam colocadas no ar, a fim de que se
tiverem alguma coisa de mau, o ar,
que a doença não era contagiosa; e passando em cima, o leve e dissipe
ficar sempre um pouco afastado ao sem perigo."
conversar com qualquer pessoa.
Álvares recomendava que se Não era hábito, na época, to-
fizesse varrer as ruas e que se lim- mar banho ou utilizar roupas
passem as imundícies. É importante limpas. As pessoas utilizavam as
observar que, nessa época, pratica- mesmas roupas durante dias ou até
mente não existiam esgotos subter- semanas inteiras, pois o asseio era
râneos nas cidades. Os dejetos eram pouco comum. Note-se que Manuel
lançados das casas para as ruas. Álvares não recomendava banhos
Não havia, também, coleta de lixo, nem que as roupas fossem lavadas -
que era igualmente lançado às ruas apenas que fossem arejadas ou pas-
ou empilhado nas praças públicas. sadas sobre o fogo.
O mau cheiro exalado das ruas A purificação da atmosfera,
devia ser terrível. Como se através de perfumes e substâncias
associava as doenças a um ar aromáticas, era um meio essencial
corrompido e podre, tudo o que para evitar a propagação da peste:
piorava o cheiro do ar devia ser devia-se "corrigir a má qualidade do
evitado. ar" com perfumes de flores como
rosas e violetas, com sândalo, gen-
FIGURA gibre, rosmaninho, lavanda, ben-
BICUDO2.TIF joim, louro, manjerona ou casca de
maçãs. Podia-se também lançar vi-
Se o principal meio de trans- nagre ou água de rosas sobre brasas
missão das pestes era o ar, a doença ou pedras incandescentes, para es-
podia ser também carregada pelo ar palhar seus vapores benéficos pela
preso às roupas. Por isso, Álvares casa. "É bom manter as janelas
recomendava a proibição de venda abertas para o Sul, ou para o
de tecidos ou vestimentas. Além Oriente, e que o Sol entre por aí,
disso, "deve-se manter os porcos
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 66

exceto se o contágio vem desses Outros tipos de receitas lem-


lados". bram feitiçaria e usam práticas re-
Para se proteger do ar malig- pugnantes:
no, Álvares recomendava também
ingerir um alho com um pouco de "Muitos bebem pela manhã um
vinho, ou levar na boca um pouco pouco de sua própria urina e a consi-
deram um remédio soberano. Eu a
de angélica, zedoária, genciana, ou considero salgada e corrosiva; é
outras substâncias aromáticas. O melhor (como escreve Gaynerius,
vinagre, que impede a putrefação autor digno de fé e grande prático)
dos alimentos, era especialmente cheirar com freqüência a urina de um
recomendável contra as epidemias: bode e o próprio bode, que se deve
manter em casa."
"Antes de sair de casa, as pessoas
comuns lavarão as mãos, o nariz, as
É difícil entender por que mo-
orelhas e o rosto com vinagre ou
tivo um bode fedorento poderia
vinho, mesmo no caso de crianças
proteger contra a epidemia.
pequenas".
Havia muitas outras recomen-
Era recomendável também
dações para manter a saúde. Devia-
adicionar vinagre aos alimentos, e
se evitar exercícios violentos, ba-
embeber nele uma esponja, para
nhos, saunas, relações sexuais. Não
cheirar com freqüência ou colocar
dormir demais, nunca dormir de
sobre o coração, "como um remédio
dia, mas também não ficar acordado
soberano contra toda corrupção do
demais. Sair de casa apenas depois
ar". Podia-se também adicionar ao
que o Sol tiver se erguido, e voltar
vinagre canela e outras substâncias
para casa antes do pôr-do-Sol.
aromáticas.
Quanto aos alimentos, ele
Vários tipos de substâncias
indicava vários cuidados com as
podiam ser carregadas em saqui-
carnes: recomendava carneiro,
nhos, pendurados ao pescoço, para
vitela, coelhos, pombos, pássaros
proteger da peste: algumas vezes
do campo. Proibia carne de vaca,
com substâncias aromáticas, outras
porco, cervo, cabra; gordura, san-
vezes com substâncias venenosas
gue, fígado, pulmão, miolos, tripas,
(como o arsênico):
pele. Declarava que todos os legu-
"Na grande peste de Lisboa no
mes eram maus e que se deviam
ano de 1568, em que morreram cerca evitar cebolas, couves e outros. Dos
de 50.000 pessoas, ouvi em Sala- frutos, os doces seriam maus. Re-
manca que o melhor remédio que os comendava os ácidos, como romãs,
habitantes tinham para se preservar foi limões, laranjas, pêras e uvas.
carregar um saquinho de arsênico
sobre o coração. E acredito que ele é
Receitava a adição de temperos
levado porque um veneno atrai outro; e aromáticos, como canela, cravo da
deve-se ter dois, para trocá-los." Índia, noz moscada, açafrão,
pimenta, gengibre, coral, raspas de
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 67

marfim "ou de licorne", no tempo opiniões, que podiam ser aceitas ou


frio. não.
Por fim, adicionava vários As crenças e recomendações
procedimentos médicos de Álvares são típicas da época.
preventivos: as pessoas cheias de Algo semelhante pode ser encon-
sangue deviam fazer sangrias da trado em um folheto publicado em
veia média do braço direito, depois Lisboa em 1569: Recopilação das
usar um purgante leve, e por fim um coisas que convém guardar-se no
remédio de acordo com os humores modo de preservar a Cidade de Lis-
que abundam em seu organismo. boa e os sãos, e curar os que estive-
Também recomendava as "pílulas rem enfermos de peste. Este pe-
de Refus", às quais se devia queno livro, composto por Tomás
adicionar açafrão, ou amoníaco, ou Álvares e Garcia de Salzedo, Medi-
outras substâncias boas para "retirar cos do Serenissimo Rey de Portu-
o veneno". Não poderia deixar de gal, Dom Sebastião Primeiro, nosso
receitar um antídoto tradicional: Senhor, não contém qualquer dis-
tomar em jejum o remédio de cussão teórica. É apenas um conjun-
Mitrídates, contra todos os venenos, to de normas a serem respeitadas
do qual fornecia uma receita contra a peste, compiladas, como o
simples - duas nozes, dois figos, 20 próprio nome diz, de muitas fontes.
folhas de arruda, um grão de sal. A Recopilação dava enorme
Álvares indicava uma série de importância ao ar da cidade. No
remédios populares da época, como caso de Lisboa, recomendava-se es-
a teriaga, o "opiato vulgar de Salo- pecialmente que fossem feitas fo-
mão", o óleo de vitríolo (ácido sul- gueiras pelas ruas, por causa da
fúrico), e outros. Sugeria também grande umidade da cidade, "que é
vários outros procedimentos estra- causa potentíssima desta enfermi-
nhos, como esfregar os pulsos, têm- dade". Eram indicadas para o fogo
poras e coração com óleo de escor- as madeiras de cedro, cipreste, oli-
piões, ou usar presa ao corpo uma veira, pinho, aroeira, zimbro, ale-
pedra de lápis-lazúli. E depois de crim "e todos os mais bons cheiros
uma série de regras das mais varia- que cada um quiser deitar". Os fo-
das, terminava o seu livro assim: gos deviam ser feitos especialmente
pela manhã e no início da noite.
"Fim. Aceite-o quem quiser." Essa obra também recomendava a
limpeza das ruas.
Essa frase final parece indicar As casas deviam ser mantidas
que os próprios médicos não consi- limpas, lavadas com água e vinagre,
deravam muitas seguras suas sendo melhor ainda utilizar vinagre
indicações - ao invés de um e água de rosas, em partes iguais.
conhecimento seguro, comprovado, Era conveniente também perfumá-
tratava-se de meras crenças ou las com substâncias aromáticas e
fazer fogos, dentro de casa, no
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 68

verão, de noite e pela manhã, com siste na retificação do ar, e em im-


madeiras de bom cheiro. Enfim: a pedir que se corrompa."
maior parte das indicações Vários cuidados deviam ser
preventivas se referia à purificação tomados com a água: buscar água
do ar e ao combate contra os maus de fonte conhecida, ou de rio que
odores. corresse por terra limpa, no qual
Os autores da Recopilação re- não se curtisse linho ou cânhamo.
conheciam o perigo do contágio, e Devia-se evitar água de poço, ou
por isso proibiam bailes, danças e então fervê-la com certas substân-
qualquer ajuntamento de pessoas. cias purificadoras - no inverno, ca-
As casas onde tivessem havido três nela, erva doce, ou cravo; no verão,
ou mais doentes deviam ser azedas, ou sementes dela, ou um
esvaziadas; era preciso queimar pouco de vinagre. "Ajuda também
madeiras e perfumes dentro dessas na retificação da água, ou vinho que
casas e mantê-las vazias "porque se houver de beber, apagar na água
está claro que aquele ar está mais ou no vinho uma lâmina ou barra de
danado que outro". As roupas de ouro ardendo".
pessoas empesteadas deviam ser Os exercícios deviam ser mo-
queimadas ou lavadas com água do derados, pois além de excitar e
mar, depois com água doce, e por aquecer os humores, produziam
fim com água e vinagre, para mau cheiro (pelo suor). Deviam ser
purificá-las. O sangue extraído nas feitos em aposento fechado e per-
sangrias devia ser imediatamente fumado.
mandado para o mar, pois supunha- A Recopilação considerava
se que ele também podia transmitir muito importante um estado de
a enfermidade. espírito positivo: evitar ira, tristeza,
e sentimentos violentos. As roupas
FIGURA deviam ser alegres, limpas, sem
ESPONJA.TIF pregas. O uso de pedras preciosas
em contato com o corpo também
Os enterros deviam ser feitos o ajudava a proteger da peste - princi-
mais depressa possível. A Recopila- palmente esmeraldas e jacintos.
ção sugeria que se fizesse uma cova Como fortificantes, eram indicados
muito alta e comprida para lá serem a teriaga e outros remédios.
colocados todos os corpos. O doen- Se, apesar de todos os cuida-
te deveria ser envolvido no lençol dos, a doença se instalasse, havia
ou manta na qual morreu e o corpo vários procedimentos médicos indi-
deveria ser coberto primeiro com cados. Logo no início, indicava-se a
cal, depois com terra. A terra deve- importância de grandes sangrias;
ria ser batida e coberta "para que mas quando a pessoa já estivesse
não saia mau vapor; porque depois fraca, a sangria devia ser evitada,
de Deus, o remédio deste mal con- pois apenas produzia a morte mais
rápida. O sangue deveria ser extraí-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 69

do do mesmo lado e lugar onde que pela omissão de algum meio


surgiam os inchaços, com o útil para combater os males
objetivo de ajudar a natureza a desconhecidos.
"tirar o veneno", pelo mesmo lado e
lugar onde ela operava.
Recomendavam-se também SÉCULOS XVI E XVII: TEN-
purgantes, sempre posteriores à TATIVAS DE QUEBRA DA
sangria. Os purgantes deviam ser TRADIÇÃO
muito suaves: rosas, violetas em
conserva, e polpa de tamarindos. A partir do Renascimento,
Em alguns casos, aconselhava-se o ocorreram muitas mudanças na Eu-
suadouro, que também podia elimi- ropa. Esse foi o período em que se
nar o veneno; mas não era muito re- deu a invenção da imprensa, a re-
comendado, pois "o veneno é gros- descoberta da pólvora, as grandes
seiro e sangüíneo". navegações. Ocorreu um enorme
A Recopilação indica vários desenvolvimento econômico e
medicamentos que deviam ser colo- cultural.
cados sobre os inchaços. O Nas universidades, a tradição
principal era assar e depois amassar continuava a ser respeitada e segui-
uma cebola com teriaga e azeite de da como antes. No entanto, come-
açucenas. Essa pasta deveria ser çou a surgir um amplo movimento
colocada nos inchaços dos doentes, de renovação científica e cultural. O
"para atrair o veneno" e aliviar a Renascimento é um período durante
dor. Também se podia depenar um o qual se percebe uma tentativa de
galo vivo, polvilhá-lo com sal valorizar o homem e a iniciativa
moído, e colocar sobre o inchaço, individual, e de fugir da tradição fi-
para atrair o veneno. Era cando mais próximo à realidade.
recomendado também o uso de No campo religioso, ocorreu
sanguessugas, capazes de extrair no século XVI o movimento de
grande quantidade de sangue, de reforma de Lutero, que dividiu a
modo indolor. Igreja cristã e questionou os valores
De um modo geral, os proce- tradicionais. Na mesma época, sur-
dimentos curativos pareciam se giu a teoria astronômica de Copér-
basear na idéia de que havia alguma nico, que tirava a Terra do centro do
substância nociva no organismo (o universo e a transformava em
"veneno"), que precisava ser retira- apenas mais um dos planetas circu-
da através de evacuações, sangrias, lando em torno do Sol.
ou por "atração". A impressão de livros permitiu
Não há uma doutrina clara por uma maior difusão de obras de to-
trás de todas essas instruções. As dos os tipos, incluindo as científicas
sugestões eram as mais variadas e médicas. Foram publicadas edi-
possíveis, talvez porque os autores ções das obras clássicas, que antes
preferissem pecar pelo excesso do circulavam apenas sob forma de
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 70

caríssimos manuscritos. Enquanto to e violento toda a tradição. Sua


que antes os estudos nas univer- rejeição às autoridades antigas foi
sidades eram rígidos, limitados a mostrada quando queimou publica-
alguns poucos autores e textos se- mente os livros de Galeno e Avi-
lecionados, torna-se agora disponí- cena, numa praça de Basle, em
vel uma grande variedade de idéias 1527. O maior obstáculo ao desen-
de diferentes épocas e tendências. volvimento do conhecimento lhe
Tudo isso ajudou a estimular o sur- parecia ser o respeito aos livros
gimento de uma renovação nas ci- tradicionais. Era necessário retornar
ências. ao "livro da natureza" e adquirir
O próprio trabalho de Fracas- conhecimento pela experiência.
toro, já estudado, que pertence a Paracelso não se tornou o Co-
essa época, mostrava esse tipo de pérnico da Medicina, no entanto:
renovação. No entanto, outros auto- não conseguiu edificar uma nova
res do século XVI e XVII represen- teoria que substituísse a antiga. Sua
tam melhor a tentativa de revolucio- obra foi uma estranha mistura de
nar a Medicina. Nesse período, idéias místicas, astrológicas, alquí-
surgiram críticas diretas e globais à micas e médicas. O homem era,
tradição antiga. Andreas Vesalius para ele, uma miniatura do universo
(1514-1564) fundou a anatomia mo- (um microcosmo) e por isso os
derna, através da cuidadosa obser- conhecimentos médicos não podiam
vação, descrição e representação ser separados de uma filosofia sobre
artística do corpo humano. Seus toda a natureza. Ele foi mais um
estudos mostraram que Galeno ha- mago do que cientista, no conceito
via povoado a antiga anatomia com moderno da palavra. Talvez a maior
muitos erros graves, que foram contribuição que ele tenha dado à
aceitos como verdade durante mil Medicina tenha sido o impulso para
anos, pois ninguém tinha sido capaz buscar algo novo, através de todos
de se dedicar à observação da os meios disponíveis.
própria natureza. Mais tarde, A formação básica de Para-
William Harvey (1578-1657) celso era alquímica - a química da
revolucionou a fisiologia, época. Familiarizado com muitas
mostrando que o sangue circula por substâncias que não eram utilizadas
todo o corpo, bombeado pelo pelos médicos, ele as introduziu em
coração, ao contrário do que se seus tratamentos. Foi por sua influ-
acreditava até então. ência que se começou a utilizar
Talvez o autor médico mais chumbo, enxofre, ferro, arsênico,
característico desse movimento de sulfato de cobre e sulfato de potás-
renovação tenha sido Philippus sio, dando início a uma farmacopéia
Aureolus Theophrastus Bombastus mais baseada em minerais do que
von Hohenheim (1493-1541), que em substâncias orgânicas.
escolheu para si mesmo o nome O corpo humano, segundo Pa-
Paracelso. Ele atacou de modo dire- racelso, era um tipo de laboratório
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 71

alquímico, regido por um princípio coisas eram também comuns e inse-


vital misterioso, ao qual deu o nome paráveis das regras de curar (...)."
de Archeus. Esse princípio, locali-
zado na região do estômago, dirigia Apesar de crédulo, Van Hel-
o processamento dos alimentos, mont teve dúvidas sobre o diagnós-
separando a parte boa para o orga- tico, pois não compreendia como
nismo da parte maléfica. Esse era possível que o fígado desregu-
mesmo princípio eliminava as sub- lado produzisse ao mesmo tempo
stâncias já utilizadas pelo orga- dois humores opostos. Apesar de
nismo, através das excreções. não ficar muito convencido do valor
Quando ocorria alguma perturbação da teoria, Van Helmont precisava se
do Archeus, a separação não era curar da sarna e aceitou o trata-
bem feita e o corpo podia se enve- mento recomendado: tomar purgati-
nenar, ou começar a acumular vos, para se purificar.
"tártaro" - o resíduo dos processos
"No sexto dia evacuei quinze ve-
orgânicos. Isso seria uma das mais zes. Enquanto isso, eles bendiziam
importantes causas das enfermida- minha transformação, pois meu corpo
des. havia se tornado tão fluido. Depois de
Outro pensador médico pouco mais dois dias, como a coceira não
posterior, que pode ser enquadrado havia aliviado sua crueldade, tomei de
novo o mesmo remédio, com uma
na linhagem de Paracelso, foi Jan notável revolta de meu estômago, e
Baptista Van Helmont (1577-1644). ocorreu um processo semelhante de
Aos 24 anos, antes de se tornar um evacuação. Eles disseram que a
famoso médico e alquimista, Van juventude costumava produzir o
Helmont contraiu sarna e procurou desenvolvimento da cólera. E quando
viram que apesar disso a coceira e as
a ajuda de dois famosos médicos. feridas não estavam diminuindo,
Os médicos, como era usual na decretaram que dois dias depois eu
época, seguiam a corrente humoral deveria tomar o remédio purgativo pela
e, como o próprio Van Helmont terceira vez.
conta, logo afirmaram conhecer a Um pouco antes da noite, mi-
nhas veias estavam exauridas, meu
causa do problema: queixo havia caído, minha voz era
rouca, todo o meu corpo estava
"Os médicos (...) julgaram que arruinado e fraco. Era difícil para mim
existia em mim uma abundância de descer de meu quarto e andar, pois
cólera [bílis] queimada ou seca, junta- meus joelhos quase não me suporta-
mente com uma fleuma salgada, de tal vam (...).
modo que havia se desregulado a Percebi tarde demais que an-
capacidade do fígado de produzir tes dos remédios purgativos meus
sangue. Alegrei-me, porque essas intestinos eram saudáveis; mas que
coisas que os autores haviam me agora, por falta de apetite e digestão
transmitido eram confirmadas por dois falha, eu havia adquirido muita fraque-
mestres experientes, pois eu, que za, embora a sarna se mantivesse
havia aprendido que na ciência mate- firme e segura."
mática todas as especulações são
muito verdadeiras, acreditei que essas
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 72

Abandonando o tratamento funcionamento desses fermentos era


dos grandes médicos, Van Helmont dirigido pelo Archeus. De certa
acabou por se curar seguindo suges- forma, essas sementes se asseme-
tões de leigos e utilizando enxofre lham à idéia atual de micróbios -
aplicado ao local da sarna. Segundo embora diferentes em outros aspec-
ele próprio, a partir de então nunca tos.
mais confiou na tradição médica. As doenças também seriam
Como outros, Van Helmont procu- processos vitais regidos por fermen-
rou chegar a um novo tipo de co- tos. Como o funcionamento do
nhecimento médico. corpo era regido pelo Archeus, ele
A concepção de Van Helmont seria um intermediário no estabele-
sobre as doenças era bastante obs- cimento de enfermidades. De certa
cura. Ele defendia a existência de forma, o Archeus se deixaria im-
dois tipos de princípios vitais no pregnar por uma "imagem" da do-
corpo. O mais importante era cha- ença, que o contaminava como um
mado por ele de "Archeus" (nome veneno. Ele afirmava que essas
que já havia sido utilizado por Para- "imagens" eram as sementes dos
celso). O Archeus produziria a es- seres que produziam a doença, ou
trutura, a forma, a imagem do or- sementes da natureza corrupta.
ganismo. Esse Archeus, segundo Parecia haver uma oscilação
Van Helmont, estaria centralizado entre a idéia de que essas sementes
no estômago ou no fígado, e gover- fossem algo material e a de que fos-
naria todo o corpo através de um sem algo espiritual, mas em alguns
tipo de alento vital ou ar, que ele pontos Van Helmont afirmava
denominou "blas". Esse "blas" não claramente serem "idéias" e,
seria exatamente igual ao ar que portanto, imateriais. Essas "idéias"
respiramos, mas algo mais se implantavam no Archeus e
espiritual. É semelhante ao conceito passavam a controlar os órgãos e a
grego de "pneuma" ou ao conceito produzir os sintomas das doenças.
indiano de "prana", que O calor e o frio, os humores e
representava ao mesmo tempo a outras coisas que apareciam nas
respiração, o alento vital, e também doenças não seriam causas, mas
as forças vitais dentro do corpo. efeitos.
Os processos vitais básicos, A enfermidade poderia surgir
segundo Van Helmont, estariam sem a influência de nenhum fator
associados à fermentação, que físico direto (calor, umidade, etc.),
transformaria os elementos e exatamente por ser causada por uma
produziria ar. A fermentação, para "idéia": "Um medo da peste cria a
ele, era produzida por certas peste". A cura também poderia ser
partículas dotadas de vida. Toda a feita à distância, de um modo
matéria viva proviria de fermentos, "magnético", quase mágico. Se uma
que atuariamm na água e pessoa se ferisse, ao invés de colo-
produziriam suas sementes. O car um remédio na ferida, poderia
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 73

aplicá-lo sobre o sangue em uma muitos outros pesquisadores esta-


toalha com a qual ele se limpou. vam procurando construir uma nova
Nos dois casos, o remédio produzi- física. O médico Santorio Santorio,
ria o mesmo efeito. Em certo senti- de Pádua (1561-1636) foi um dos
do, existia em Van Helmont um primeiros a estudar alguns dos as-
conceito de contágio, mas bem dife- pectos físicos do corpo humano,
rente do moderno. Podemos dizer procurando medir todos os fenôme-
que seu conceito estava mais pró- nos estudados. Ele inventou o ter-
ximo do utilizado na magia, pois as mômetro clínico, para comparar de
doenças seriam causadas por idéias modo mais objetivo as temperaturas
imateriais. dos doentes e dos sãos; desenvolveu
No século seguinte, Frederick um relógio para medir a pulsação; e
Hoffmann (1660-1742) utilizou - o aspecto que mais nos interessa -
algumas idéias semelhantes às de realizou um detalhado estudo sobre
Van Helmont. Ele adotou uma visão a transpiração.
fisico-química do corpo humano. Ao longo de experimentos fei-
Hoffmann acreditava que as tos durante 30 anos, consigo próprio
doenças malignas eram causadas e com outras pessoas, Santorio
por um veneno e "surgem de um procurou medir os efeitos da trans-
princípio venenoso diminuto que se piração cutânea. Ele pesava diaria-
multiplica como um fermento, e mente todos os alimentos e bebidas
perverte e atrapalha completamente ingeridos e todas as excreções. Ob-
o movimento do sangue". servou que, embora o peso de uma
À medida que os conceitos pessoa (adulta) permanecesse prati-
químicos iam surgindo, tentava-se camente constante, a quantidade de
utilizá-los na medicina. François de substâncias ingeridas era bem maior
la Boe (1614-1672), conhecido do que a quantidade de urina e ex-
como "Sylvius de Leiden", tentou crementos. A diferença deveria ser
explicar as enfermidades através devida à transpiração. Segundo suas
das noções de alcalinidade e acidez. medidas, um homem forte e ro-
Para ele, a fonte das enfermidades busto, que realizava exercício físico
era puramente química, podendo moderado, que comia e bebia oito
também ser combatida por meios libras por dia (cerca de 3,7 kg),
químicos. Mas tentativas desse tipo perdia cinco libras de líquido (cerca
eram prematuras e grosseiras, fra- de 2,3 kg) pela transpiração diária.
cassando completamente.
Ao mesmo tempo em que a FIGURA
química (ou alquimia) adquiria im- SANTORIO.TIF
portância médica, a física também
começou a conquistar um espaço na Até essa época, ninguém havia
medicina. Este foi o período em que percebido que a transpiração era tão
Giordano Bruno, Galileo Galilei, significativa. Baseando-se em sua
Johannes Kepler, Simon Stevin e descoberta, Santorio imaginou que
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 74

esse processo deveria ter grande do ar produziam enfermidades, mas


importância para o organismo. De não por agirem diretamente sobre
tanto se dedicar a esse estudo, pas- os humores corporais e sim modifi-
sou a imaginar que toda a saúde cando a transpiração. A visão de
dependia única e exclusivamente da Santorio também se opôs à crença
transpiração. em venenos ou germes do ar produ-
Segundo Santorio, se o corpo tores de doenças, pois seriam
retornasse todos os dias ao mesmo apenas as condições físicas da at-
peso, a saúde se conservaria. Mas a mosfera que produziriam a supres-
saúde declinaria quando o corpo são da transpiração e as enfermida-
diminuisse seu peso ordinário por des. O processo seria puramente
uma evacuação mais abundante de físico.
excrementos ou de urina do que de A teoria de Santorio pode ser
costume, ou quando, pelo contrário, considerada o início de uma nova
o peso aumentasse pelo motivo in- corrente na Medicina, tentando
verso. Se depois de alguns dias o estudar o corpo humano como uma
corpo não recuperasse o seu peso máquina, medindo suas proprieda-
ordinário, seja por uma transpiração des e tentando explicar as doenças
copiosa, seja por evacuações sensí- apenas pela física.
veis, devia-se aguardar uma febre Durante os séculos XVII e
ou qualquer outra doença. XVIII, a medicina física recebeu
Santorio dizia que, cuidando um grande apoio teórico pelos
da transpiração, por controle dos trabalhos do filósofo René
pesos dos alimentos, das excreções Descartes (1596-1650) e do médico
e do corpo, podia-se manter uma Julien de la Mettrie (1709-1751).
saúde perfeita e chegar aos 100 Para eles, o corpo humano seria
anos de idade; deve-se no entanto uma simples máquina material.
notar que ele próprio só chegou aos Todo o funcionamento do corpo
75 anos. poderia ser compreendido pelas leis
Tudo o que pudesse perturbar da física. Como a física estava se
a transpiração seria prejudicial à desenvolvendo muito, na época,
saúde. Segundo Santorio, diversas houve certo otimismo com essa
causas prejudicavam a transpiração, corrente de pensamento, mas ela
mas as principais eram um frio não produziu efeitos relevantes na
úmido, uma alimentação viscosa, o Medicina desse período.
jejum, o pavor, as noites inquietas,
e evacuações muito abundantes. O
clima podia produzir doenças, por- VERMES E ANIMAIS MI-
que influencia a transpiração. CROSCÓPICOS, PARTÍCULAS
Através desses estudos, San- VENENOSAS E MIASMAS
torio acabou por reinterpretar a dou-
trina das epidemias de Hipócrates. No início do século XVII fo-
O calor, o frio, a umidade e a secura ram inventados os primeiros
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 75

microscópios e telescópios, que suas propriedades. Da mesma


logo abriram aos pesquisadores forma, um animal apodrecendo
novos universos. No mundo emitiria para o ar partículas que
astronômico, tornou-se possível carregariam suas características e o
descobrir que a Lua era cheia de mau odor.
montanhas e que Júpiter tinha Kircher supunha que a partir
satélites. No mundo microscópico, de todas as substâncias - até mesmo
descobriu-se uma imensa metais, pedras preciosas e outros
quantidade de seres minúsculos, minerais, vegetais ou animais -
que nunca tinham sido suspeitados saiam emanações com suas proprie-
ou vistos antes. dades. Essas partículas seriam emi-
O desenvolvimento desses es- tidas principalmente por causa do
tudos que levou a novas hipóteses calor ou fricção, e poderiam retor-
sobre a causa das enfermidades. nar ao corpo se ele fosse resfriado.
Não poderiam existir vermes ou Apesar dessa evaporação contínua
insetos microscópicos capazes de dos corpos, eles não diminuiriam de
invadir o corpo humano e produzir tamanho, pois "as partículas do ar
enfermidades? próximo substituem as que saíram,
Um dos mais influentes por causa de uma certa atração na-
autores da época que desenvolveu tural, e se transformam em um
esse tipo de hipótese foi o padre germe da substância nativa do com-
Athanasius Kircher (1602-1680). O posto" - isso é, o ar poderia aderir
padre Kircher não era médico: foi ao corpo e adquirir suas proprieda-
um intelectual de interesses muito des, deixando de ser ar.
amplos, que se dedicava a todas as Kircher usou essa idéia para
novidades científicas da época. Em explicar o contágio das enfermida-
1658, ele publicou uma obra des. Quando uma pessoa ou animal
denominada Pesquisa físico-médica morria, o corpo seria dominado por
sobre a doença contagiosa, que se um poder especial, que causava sua
chama de peste. Nesse livro, deterioração e produziria o apare-
Kircher assumiu que todo tipo de cimento de vermes e da putrefação.
substância ou objeto está Esse poder produziria, como todas
continuamente emitindo ao seu as outras coisas, um tipo de emana-
redor partículas que contêm suas ção em volta do corpo, constituída
propriedades essenciais. Essas por pequenas partículas. Essas par-
emanações seriam constituídas por tículas possuiriam o poder caracte-
partículas muito pequenas, invisí- rístico de causar a putrefação e a
veis. Se sentimos um odor agradá- produção de vermes naquilo que
vel, por exemplo, isso seria uma está em volta, e que fosse atingido
indicação de que existe uma coisa por essa emanação. As partículas
que tem essa característica agradá- em si não eram descritas como seres
vel e que está emitindo para o ar vivos, mas como sementes que se
uma emanação que transmite as espalhavam; cada uma delas produ-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 76

ziria um pequeno verme imperceptí- (sementes), que ficam nos corpos


vel. porosos (como tecido e madeira);
No caso das enfermidades h) esses germes podem depois
contagiosas, quando o "veneno da penetrar nas pessoas pela respiração
praga" atingia uma pessoa e a mata- ou pelos poros da pele e reproduzir
va, espalhar-se-ia à sua volta um a doença e a morte.
mau cheiro carregado de sementes Kircher parece apenas se preo-
que infectaria as roupas e as pessoas cupar com cadáveres: ele não
que se aproximassem. parece supor que os doentes vivos
A exposição que Kircher fazia possam transmitir uma peste.
de suas idéias não era totalmente Os vermes invisíveis imagina-
clara, mas pode-se perceber vários dos por Kircher são diferentes dos
aspectos em sua hipótese: micróbios que conhecemos atual-
a) o cadáver de uma pessoa morta mente. Eles não se reproduziriam
por uma doença é decomposto e dentro dos doentes: produziriam a
apodrece por causa do veneno que o enfermidade, e essa enfermidade
matou; produziria uma emanação de partí-
b) o corpo que começa a apodrecer culas, as quais, por sua vez, produ-
desprende uma exalação (que se ziam novos vermes.
pode perceber pelo seu mau cheiro) Embora Kircher tenha se
constituída por partículas invisíveis; inspirado em observações
c) essas partículas representam, em microscópicas - como ele mesmo
miniatura, o corpo do qual se origi- diz - não apresentou nenhuma
naram, e possuem as suas proprie- observação que mostrasse essas
dades; partículas do ar, nem a formação
d) por isso, essas partículas dos vermes, ou os germes contidos
possuem as mesmas propriedades nos corpos porosos ou penetrando
virulentas do veneno que matou a pela pele. Tratava-se de uma teoria
pessoa, que está produzindo o seu baseada na imaginação de Kircher e
apodrecimento e que produz o apa- não em observações.
recimento de vermes no seu O mais importante microsco-
interior; pista dessa época era Anton van
e) essas partículas podem ser consi- Leeuwenhoek (1632-1723). Foi o
deradas vivas, pois elas produzem primeiro a descrever, em 1675, o
novos vermes nos materiais em que enorme número de seres vivos mi-
penetram; croscópicos que podem ser obser-
f) as partículas podem ser inaladas vados na água estagnada. Ele os
pela respiração, produzindo o con- chamou de "pequenos animais" ou
tágio da doença, já que elas contêm "animálculos". Observou também
todas as propriedades do cadáver; os "animais do esperma"
g) ao invés de vermes, as partículas (espermatozóides) e percebeu em
podem produzir pequenos germes sua própria boca, em meio a restos
de alimentos, um grande número de
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 77

microorganismos. Leewenhoek, no toda a estrutura com o contágio da


entanto, não associou os animais enfermidade". As contrário do que
microscópicos às enfermidades. supunha Kircher, no entanto,
Alguns autores posteriores Sydenham não supôs que essas
aderiram às idéias de Kircher, mas partículas se originassem de corpos
elas não foram adotadas pela maio- mortos.
ria da comunidade médica. De um Na tradição hipocrática e ga-
modo geral, continuava-se a aceitar lênica, a enfermidade se
que a atmosfera podia ser portadora manifestava por um desequilíbrio
de certas partículas ou emanações dos humores; durante a cura, era
causadoras de doenças, mas não se necessário que fosse eliminado
interpretava essas partículas como humor que estivesse em excesso ou
germes vivos. cuja qualidade fosse defeituosa. No
Pouco depois da divulgação entanto, Sydenham notou que isso
do trabalho de Kircher, o médico nem sempre acontecia. Ele utilizava
Thomas Sydenham (1624-1689) nas febres um remédio que havia
publicou um livro sobre as "febres". sido trazido da América - o quinino
Nessa época, esse era o nome dado - e verificou que ele curava a
a um conjunto de enfermidades epi- malária sem que houvesse a
dêmicas, muitas delas associadas à eliminação de qualquer tipo de
proximidade de pântanos - evacuação de humores. Esse fato
incluindo a malária. Eram era difícil de explicar pelas antigas
caracterizadas pela periodicidade: a teorias. Sydenham supôs que a cura
febre terçã, por exemplo, era aquela da enfermidade não se dá pela
que reaparecia a cada três dias. eliminação dos humores anômalos
Sydenham estudou durante 15 do corpo, mas pela expulsão das
anos (de 1661 a 1676) o clima e as partículas que produzem a doença.
doenças de Londres. Concluiu que Os fluidos do corpo doente
não era possível explicar apenas conteriam essas partículas infeccio-
pelo calor e frio, umidade e secura, sas, e portanto "podem ter o papel
as enfermidades que surgiam a cada de venenos, pela influência de
ano. Elas pareciam ter alguma regu- algum contágio venenoso".
laridade, mas de outra origem. Sydenham acreditava na exis-
Sydenham tomou então o con- tência de diferentes tipos de enfer-
ceito de "constituição" utilizado por midades epidêmicas: cada uma
Hipócrates para caracterizar as epi- delas estaria associada a um tipo de
demias, e lhe deu um novo signifi- partículas infecciosas. Uma das
cado. Em diferentes anos, sairiam evidências disso era, mais uma vez,
de dentro da terra ou viriam do céu o efeito do quinino, que era capaz
certos eflúvios prejudiciais. de curar a malária, mas não as
Segundo Sydenham, as partículas outras febres. A opinião mais
da atmosfera entrariam no corpo, se comum na época, no entanto, era a
misturando ao sangue e "tingem de que "a febre" podia se manifestar
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 78

de diferentes modos, mas que não muito popular a partir do século


existiam enfermidades diferentes XVIII. Lancisi utilizou o termo
específicas. "miasma" de modo muito feliz, para
As febres produzidas pelos representar algo que contamina ou
pântanos foram estudadas, algumas infecta o ar, e que provém da morte.
décadas depois, por Giovanni Maria O termo "miasma" é grego. Ele si-
Lancisi (1654-1720), um importante gnifica mancha ou nódoa, e era
médico de Roma que atendeu pes- utilizado pelos teatrólogos gregos
soalmente a três papas, durante sua antigos para simbolizar
vida. Em 1717, ele publicou um especialmente uma mancha de
livro sobre Os eflúvios nocivos dos sangue, proveniente de assassinato.
pântanos e seus remédios. Nesse Um assassino, uma pessoa que
livro, ele descreveu os "miasmas" havia derramado sangue, se tornava
como certas influências nocivas impregnado por um miasma, uma
emanadas dos pântanos. No calor mancha ou impureza, um sinal
do verão, a fermentação e putrefa- maldito e indelével da morte, que o
ção de animais e plantas causaria acompanhava para sempre.
uma exalação ou eflúvio, que pro- Portanto, o uso de "miasma" para
duziria doenças. Segundo Lancisi, representar os gases pútridos pro-
essa influência era geral e não espe- venientes da morte (de substâncias
cífica, ou seja, existiria um único podres) é bem adequado. As pala-
tipo de miasma, capaz de produzir vras latinas "contaminação" e
diferentes efeitos, dependendo das "infecção", como já vimos, tradu-
circunstâncias e das pessoas atingi- ziam idéias semelhantes, mas não se
das por ele. referiam diretamente à morte. Con-
No caso específico da malária, taminar significava inicialmente
Lancisi supôs que ela era causada poluir, sujar, profanar, transmitir
por pequenos animais que penetra- uma impureza física ou moral.
vam no corpo e circulavam pelo Infectar, por sua vez, tinha o si-
sangue. Isso explicaria o motivo gnificado de tingir, colorir,
pelo qual ela se mostrava diferente impregnar ou misturar alguma coisa
das outras febres dos pântanos. nova, que mudava a aparência.
Para evitar as enfermidades A teoria dos miasmas é um in-
dos pântanos, Lancisi propôs eli- teressante caso de uma concepção
miná-los secando-os, plantando errada que foi extremamente útil à
árvores que absorvessem o excesso humanidade. Como veremos, ela
de água, cultivando-os, ou mesmo impulsionou muitas medidas sani-
inundando-os. As medidas propos- tárias adotadas nos séculos XVIII e
tas por Lancisi tiveram excelentes XIX que trouxeram grande me-
resultados, fortalecendo e levando à lhoria à saúde pública.
divulgação de suas idéias.
É curioso indicar o significado
da palavra "miasma", que se tornou
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 79

A FEBRE AMARELA NO BRA- zida não somente de intemperança, e


SIL calor podre, mas infestada com uma
maligna e venenosa qualidade que se
imprime no sangue e na cólera [bílis]:
O Brasil foi o primeiro país os quais humores alterados e apodre-
em que a febre amarela foi descrita cidos são a causa material desta febre
de forma detalhada, no final do (...)"
século XVII. Em nosso país, a
doença era inicialmente Segundo Rosa, as causas ex-
desconhecida. Foi observada pela ternas da doença (que era chamada
primeira vez em 1685, trazida de "bicha") seriam vapores levanta-
aparentemente em um navio que dos da terra e das cavernas, assim
chegou de São Domingos. A como "uma qualidade furiosa man-
primeira vítima foi um trabalhador dada do Céu pelas causas que o
do porto de Recife. Logo depois, Altíssimo sabe", e que podia ser
outras pessoas que moravam na observada pelos excessos de sol e
mesma casa também adoeceram. A chuva.
doença se espalhou e em apenas Sabemos, através de escritos
duas semanas, no início de 1686, da época, que havia diversas expli-
morreram 600 pessoas na cidade de cações para a doença. Alguns acre-
Recife. ditavam que a causa era a existência
A febre amarela continuou a de barricas de carne podre no navio
atacar os moradores de Recife du- que chegou com o mal. Aparente-
rante todo o ano de 1686. No ano mente, todas as teorias da época
seguinte, chegou à cidade o médico foram aventadas: um fermento con-
João Ferreira da Rosa, proveniente tagioso, influências celestes causa-
de Portugal. O governador, Mar- das por eclipses e outras causas.
quês de Montebelo, encarregou Ninguém parece ter sugerido a ex-
Rosa de debelar a epidemia. O pró- plicação atual: uma doença trans-
prio governador acreditava que a missível, que se propaga pelas pica-
doença era transmitida dos doentes das de mosquitos.
e mortos para os sãos, através dos Partindo de sua análise, Rosa
vapores exalados das covas e do recomendou uma campanha sanitá-
contágio pelas roupas, objetos e ria, que era bastante racional se
residências que haviam sido utiliza- admitirmos sua hipótese básica: a
dos pelos enfermos. de que havia uma infecção do ar,
Atendendo ao apelo do Mar- causadora da doença, que devia ser
quês, o médico João Ferreira da atacada por todos os meios.
Rosa estudou a doença, logo che- As medidas recomendadas por
gando à total compreensão de sua Rosa eram semelhantes às utilizadas
natureza: em Portugal contra a peste, dois
séculos antes. Era necessário acen-
"É esta febre uma febre essen- der fogueiras em todas as ruas e
cial, mui maligna e perniciosa, produ- perfumar o ar da cidade com ervas,
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 80

durante 30 dias. Todos os morado- prisão das mulheres onde lhe darão
res deviam caiar, limpar e esfregar cinqüenta açoites".
suas casas, retirar "imundície, cor- Também as mulheres brancas
rupção ou mau cheiro que prejudi- só poderiam andar pelas ruas após
que a saúde", perfumando as resi- as Ave-Marias (depois do pôr-do-
dências com ervas cheirosas, vina- Sol) se fossem acompanhadas; e
gre, etc. As ruas deviam ser varridas mesmo isso devia ser evitado. Orde-
todos os dias; os escravos deviam nou-se também a todos os militares
lançar todas as imundícies das casas que se desfizessem de suas amantes,
no rio; ficou proibida e estabelecida no prazo de oito dias. Os que não
uma multa para qualquer pessoa obedecessem ficariam presos por
que fizesse imundícies na praia, trinta dias. Os soldados reincidentes
sem lançá-las no rio. ficariam presos o dobro do tempo e
Ao pôr-do-Sol e ao amanhe- sairiam da cadeia "degredados para
cer, os canhões deveriam disparar o Ceará", sem a possibilidade de
tiros, para espalhar os vapores ma- perdão. Supomos que devia ser um
lignos. Os colchões dos doentes castigo terrível, na época, ser man-
deviam ser queimados ou expostos dado para o Ceará. Como indicação
ao ar durante 30 a 40 dias, para clara de que o pecado estava associ-
livrar-se dos vapores doentios. As ado à doença, dizia-se que as vir-
roupas dos doentes também deviam gens eram poupadas pela epidemia.
ser queimadas ou lavadas duas ou Havia cuidados especiais com
três vezes, sendo expostas ao ar os mortos: as covas deviam ser fei-
durante um mês. Os doentes deviam tas longe do povoado e não perto
ser isolados em um hospital, para das igrejas, como era costume
não transmitir a doença pelo contá- antes. A profundidade das covas
gio. devia ser de pelo menos 5 palmos.
Acreditava-se que a causa A terra deveria ser muito bem
principal da doença era um castigo socada e sobre ela deviam ser
divino. Por precaução, as meretrizes acesas fogueiras durante três dias.
foram deslocadas para um local a Depois sua superfície deveria ser
dez léguas de distância da cidade, ladrilhada, para que não saíssem de
sendo ordenada a expulsão das que lá os vapores venenosos.
"ofendessem a Deus" depois da Todos os cuidados tomados
publicação das ordens do gover- reduziram, mas não eliminaram a
nador. Ordenou-se também que as doença. Talvez houvesse outra ex-
escravas e também as mulatas e plicação para ela. Ninguém tinha
negras livres fossem recolhidas à dúvida de que os pecados da popu-
noite. As desobedientes deveriam lação eram a principal causa da epi-
pagar uma multa de dez tostões, e demia, mas isso era algo difícil de
as reincidentes pagariam o dobro, controlar.
"e a dita escrava será levada a Em 1691, a febre amarela ma-
tou um marinheiro em um navio
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 81

que havia partido do Recife para para proporcionar proteção à cida-


Portugal. Um outro marinheiro de.
abriu o cadáver para estudá-lo e
encontrou muitos vermes intestinais
no morto. Concluiu que a causa da
doença eram lombrigas. Tratou a si
próprio e a todos os outros
marinheiros com emplastros e
remédios para vermes, e não houve
outras mortes na tripulação. Diante
desse enorme sucesso, muitos
passaram a acreditar que a febre
amarela era uma doença produzida
por vermes.
Em dezembro de 1694, ocor-
reu um eclipse do Sol, observado
em Recife. Isso pareceu um mau
presságio e, como era de se esperar,
logo aumentou a epidemia. O
número de mortes foi muito grande,
durante o ano de 1695. Depois, a
doença diminuiu, acabando por
desaparecer gradativamente, sem
que se soubesse o motivo.
Na Bahia a febre amarela sur-
giu no ano seguinte ao seu apareci-
mento em Recife. Houve dias em
que chegaram a morrer 200 pessoas
atacadas pela "bicha". Em deses-
pero, a população apelou aos céus.
No dia 10 de maio de 1686, uma
procissão conduziu a imagem de
São Francisco Xavier pela cidade,
pedindo ao santo que acabasse com
a epidemia. Logo depois, a doença
começa a diminuir. Em 1692, o pa-
dre Antônio Vieira declarou o tér-
mino da epidemia, que havia atingi-
do 25.000 pessoas. Era evidente que
o fim da praga era um milagre de
São Francisco. O santo milagroso se
tornou o padroeiro da Bahia e sua
procissão foi repetida ano após ano,
A VARÍOLA E A DESCOBERTA DA
7 VACINAÇÃO

A VARÍOLA E A SUA PRE- Na Antigüidade, a varíola pa-


VENÇÃO rece ter sido desconhecida na Euro-
pa. Na Idade Média, apareceram as
primeiras descrições da doença por
A varíola (também chamada médicos árabes: Rhazes e Avicena.
antigamente de "bexiga") é uma en- Supõe-se que os árabes
fermidade que hoje se considera tenham espalhado a varíola pela
extinta em todo o mundo. Foi, no Palestina, Síria, Egito, Pérsia e
entanto, um terrível problema du- depois Espanha. Os cruzados
rante séculos. levaram a enfermidade para a
A manifestação da varíola se Europa, onde ela se tornou comum
iniciava pela febre, seguida pelo a partir dessa época.
aparecimento de muitas erupções Posteriormente, os europeus se
com a forma de pequenos pontos. encarregaram de espalhar também a
Eles aumentavam durante os dias doença pela América. No México, a
seguintes, podendo também atingir varíola foi introduzida por um es-
a laringe. As pústulas se cravo negro das forças espanholas e
espalhavam pelo corpo todo, matou a metade dos habitantes.
inclusive pelo rosto. Quando o Segundo Torquemada, morreram
doente sobrevivia, as pústulas 800.000 nativos em 1545 e
secavam e caíam duas ou três 2.000.000 em 1576. Atribui-se ta-
semanas depois. mbém à varíola grande parte da re-
O início da varíola era seme- dução dos índios da Califórnia.
lhante à catapora. No entanto, a Sabe-se atualmente que a en-
doença era muito mais perigosa: fermidade não surgiu na Idade Mé-
matava uma grande parte das pes- dia. Algumas múmias egípcias,
soas atingidas, produzindo danos como a de Ramsés V, morto em
permanentes nas que se salvavam: 1157 antes da era cristã, apresentam
deformações físicas, cegueira e erupções que são atribuídas à varí-
grandes cicatrizes. ola.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 83

Em muitos povos, a doença O operador primeiro esfregava


era tão importante que era associada esse local com um pano seco, du-
a divindades específicas. Na Índia, rante oito a dez minutos; depois,
a deusa Sitala Mata era invocada com um pequeno instrumento
para a cura dessa doença. Na China, agudo na ponta, como um bico de
os deuses Ma-Chen e Pan-Chen corvo, fazia vários arranhões leves,
estavam associados à doença. Na em um pequeno espaço da pele do
África, o deus da varíola entre os tamanho de uma pequena moeda, de
Iorubas era Sopona, que foi depois modo que aparecesse um mínimo
introduzida no Brasil com os nomes de sangue. Aplicava-se então um
de Omolu e Obaluaê. pouco de algodão impregnado com
Na Índia e na China, a varíola matéria variólica, depois de ser
era conhecida desde tempos muito molhado com um pouco de água
antigos. Ela estava sempre presente, sagrada do rio Gânges. Enrolava-se
aumentando de intensidade no ve- em cima uma atadura. Seis horas
rão. Nessas duas regiões, foi desco- depois a bandagem era removida e
berto um modo de evitar a perigosa deixava-se o algodão cair. Surgiam
enfermidade. O processo, que muito em geral de 50 a 100 pústulas pelo
tempo depois iría levar à descoberta corpo, pela inoculação. Essas
da vacinação, consistia em produzir pústulas eram menores do que as
nas pessoas sadias um ataque ate- que surgiam na doença espontânea,
nuado de varíola. As pessoas fica- e embora a pessoa tivesse febre,
vam depois protegidas contra a recuperava-se com relativa
doença, pois ela só atinge uma vez facilidade, sem que a enfermidade
cada pessoa. deixasse marcas.
Na Índia, havia sacerdotes Outro processo para proteger
(brâmanes) que viajavam por todos contra a varíola foi desenvolvido na
os lugares, dedicando-se à preven- China. Conta-se que uma monja
ção dessa doença. A cada ano, eles chinesa vivia como eremita em uma
recolhiam o líquido que aparecia montanha próxima ao Tibete. Para
nas pústulas das pessoas atacadas proteger as crianças, ela inventou
pela varíola, impregnando com esse um preparado utilizando cascas
pus pequenos pedaços de algodão. secas das feridas de varíola, que
Esse material era guardado durante eram pulverizadas e misturadas com
um ano ou mais. Antes da época do uma planta (Uvularia grandiflora).
ano em que a varíola costumava Em dias propícios, especialmente
aparecer, os brâmanes iniciavam escolhidos, esse pó era soprado na
seu trabalho. As pessoas se narina de crianças sadias, utili-
preparavam, evitando comer peixe, zando-se um canudo de prata. Para
leite e manteiga de leite de búfala. as meninas, era utilizada a narina
Os brâmanes introduziam o pus da esquerda, e para os meninos, a
varíola na parte externa do braço. direita. Essas crianças, após alguns
dias, desenvolviam uma forma
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 84

branda de varíola, recuperavam-se e Sistemas semelhantes de ino-


ficavam depois protegidas durante o culação da varíola foram descober-
resto da vida contra a doença. tos independentemente em outros
locais - inclusive na Europa - mas
FIGURA não tiveram grande difusão. Sabe-se
VAR-CHIN.TIF que no principado de Gales, muitos
séculos atrás, fazia-se "enxerto" de
Não se sabe atualmente como varíola. O procedimento eram cha-
essa monja chegou a tal prática. A mado "comprar bexiga", pois se
população da época atribuiu essa pagavam duas ou três moedas à
invenção a uma inspiração divina. pessoa que fornecia a doença aos
Os procedimentos desenvolvi- outros. O procedimento era popular
dos na Índia e na China são diferen- entre os estudantes: a mão ou braço
tes e parecem não ter se inspirado eram arranhados, esfregando-se
um no outro. Nos dois casos, pode- sobre o arranhão a matéria de feri-
se supor que as pessoas perceberam das de varíola. Na Dinamarca, havia
que a varíola era transmissível e que um costume semelhante no século
o contato com as feridas aumentava 15. No entanto, tudo isso parecia
a possibilidade de contágio. Devia apenas superstição ou folclore. A
existir, então, nas feridas, algum Medicina erudita ignorava o proces-
material que transmitia a doença. so.
Por outro lado, sabia-se também Em meados do século XVII,
que a enfermidade nunca atacava missionários jesuítas que estavam
duas vezes a mesma pessoa. Podia- na China comunicaram aos
se portanto tentar transmitir a europeus o método de inalação das
doença a pessoas fortes, sadias, para cascas de feridas para prevenção da
que elas ficasse protegidas da varíola. Mas o método não suscitou
doença. No entanto, era impossível muito interesse. Nessa mesma
prever o que aconteceria. Poderia época, o método indiano foi ado-
acontecer que as pessoas que tado na Grécia, no Egito e depois na
fossem artificialmente contagiadas Turquia, e de lá acabou chegando à
morressem. Por sorte, verificou-se Europa.
que isso não acontecia, e os O processo utilizado nesses lo-
processos passaram a ser aplicados cais consistia em passar a doença
com sucesso. diretamente de um doente para uma
A varíola artificial não era to- pessoa sadia. Arranhava-se ou per-
talmente segura. Na Índia, aparen- furava-se o braço ou a testa da pes-
temente, uma pessoa em cada 500 soa com uma agulha, que estava
inoculadas morria. No entanto, a embebida no líquido de uma pústula
doença era tão comum e tão grave, "madura" (tendendo a secar).
que o risco parecia pequeno e valia Na Turquia, os maometanos
a pena arriscar-se. não aceitaram o processo de inocu-
lação. Os cristão turcos utilizavam o
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 85

processo, e observava-se uma tado; por isso houve um preconceito


enorme diferença de mortalidade contra o método chinês, que não foi
pela varíola, entre as duas popula- adotado. Começou-se a fazer inocu-
ções. O fato foi observado e im- lações pelo método turco. O proces-
pressionou o médico grego so foi chamado de "variolação" ou
Emanuel Timoni, que estava na de "inoculação de bexigas". Não
Turquia em 1713. Ele enviou uma devemos chamar esse processo de
carta à Inglaterra, comunicando "vacinação". Mais adiante veremos
suas observações, e seu trabalho foi o significado exato da palavra
publicado pela principal sociedade "vacina".
científica da época: a Royal Society, À medida que a notícia se di-
de Londres. Mesmo assim, o vulgou pelo mundo, muitos
processo não despertou interesse. começaram a adotar esse processo.
Ele só foi difundido graças ao No Brasil, um missionário carmelita
esforço de uma mulher: Lady Mary do Pará leu uma notícia sobre a
Wortley Montague. variolação e resolveu aplicá-la, pois
Lady Montague era esposa do a metade dos seus índios já havia
embaixador inglês em Constantino- morrido com a enfermidade. Outros
pla. Em 1717, diante do perigo da missionários seguiram seu exemplo,
varíola, fez inocular seu filho na- com bastante sucesso.
quela capital por Maitland, um ci- No caso da varíola natural, ob-
rurgião inglês. Em 1722 ela retor- servava-se nessa época que uma de
nou à Inglaterra e sua jovem filha cada cinco ou seis doentes acabava
foi inoculada por uma pequena morrendo. Em alguns casos, a me-
incisão em cada braço. Foi a tade das pessoas doentes morriam.
primeira pessoa inoculada na No caso da variolação, havia um
Inglaterra. A notícia se espalhou e, certo risco. Estudos publicados em
graças ao prestígio de Lady 1727 mostraram que, de 764 pes-
Montague, alguns meses depois, a soas inoculadas, 15 haviam
princesa e outros membros da morrido. As vítimas eram
família real foram inoculados, com geralmente crianças e idosos, que
sucesso. tinham convulsões e morriam. A
Os médicos ingleses resolve- proporção era muito alta: uma para
ram estudar o método. Em 1725 cada 50 pessoas. Houve também
foram feitos experimentos com cri- acidentes graves, como em Boston,
minosos condenados, em Newgate, em 1723, onde uma grande parte
que se ofereceram como voluntá- dos variolados morreu.
rios, ganhando como prêmio o per- Qual era a gravidade da en-
dão real, caso não morressem. Sete fermidade, nessa época? Entre 1650
foram inoculados pelo método chi- e 1700, cerca de 5% da população
nês e seis pelo método turco. No- de Londres morria de varíola, a
tou-se que cérebro de um dos prisi- cada década. O risco de adquirir
oneiros do primeiro grupo foi afe- varíola e ficar cego ou deformado
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 86

devia ser muito maior. Por isso, a dade muito menor? E sob o ponto
maior parte da população achava de vista teórico: por que motivo a
que era melhor se arriscar com a pessoa que já adquiriu a enfermi-
variolação do que ser atingido pela dade fica protegida depois contra
varíola natural. ela? Nada disso era compreendido.
Na França, houve inicialmente A resistência na França foi
forte reação contra o procedimento. vencida graças principalmente ao
Uma folheto anônimo, denominado esforço do astrônomo e naturalista
Razões de dúvidas contra a inocu- Charles-Marie de la Condamine,
lação, questionava se não seria que escreveu a favor da variolação,
criminosa a inoculação de uma do- em 1755, influenciando muitos
ença em um corpo humano. Afirma- nobres a e deixar inocular.
va que não se conhecia se o proces- Aproximadamente na mesma época,
so era realmente antigo ou apenas outros países da Europa aceitaram o
uma invenção recente. O autor do processo.
folheto dizia que o procedimento À medida que o processo se
adotado era arbitrário, injusto, falso, difundia e era utilizado por pessoas
irregular. A variolação era total- mais experientes, o risco foi
mente contrária a tudo o que se diminuindo. Na segunda metade do
sabia em Medicina (ou seja: contrá- século XVIII, morria apenas uma de
ria à teoria dos humores), pois não cada 400 pessoas inoculadas. As
produzia a evacuação das matérias que não morressem estavam
nocivas ao organismo. Por fim, re- aparentemente protegidas pelo resto
provava o processo por vários moti- da vida. Seria um risco aceitável?
vos: a variolação "é contrária aos Na segunda metade do século
olhos do Criador"; não preserva da XVIII, na Europa, um de cada 300
varíola natural; é contrária às leis habitantes morria de varíola, a cada
civis; e parece mais pertencente à ano, ou seja, um de cada 30, a cada
Magia, do que à Medicina. década. Como a varíola podia atacar
Quem se horrorizasse com o em qualquer idade, era um risco
processo, na época, não podia ser contínuo, para quem não passasse
criticado. Sob o ponto de vista mais pela variolação. Parecia portanto
intuitivo, é repugnante fazer uma válido o processo. Mas nem todos
ferida no braço e passar sobre ela o se deixavam inocular: era um pro-
pus tirado de uma pessoa doente. cesso de uso voluntário.
Sob o ponto de vista racional, como Depois de algum tempo, no
se podia entender que o vírus entanto, ressurgiram as críticas. A
(veneno) da varíola produzida arti- varíola não estava desaparecendo da
ficialmente se tornava mais fraco do Europa. Parecia estar até aumen-
que quando era recebido natural- tando. Em Londres, por exemplo, os
mente, pelo contágio, em quanti- dados mostravam isso claramente:
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 87

Período: Número de mortos


por varíola em Londres:
1701 a 1716 22.219 antes da inoculação
1717 a 1731 34.448 início da inoculação
1732 a 1746 29.462 uso da inoculação
1746 a 1761 29.165 uso da inoculação
1762 a 1776 36.276 uso da inoculação

Em 1772, observou-se o má-


ximo de mortes de varíola em Lon- Foi no final do século XVIII
dres: 3.992 em um único ano. que o médico inglês Edward Jenner
Agora, a cada década, 10% dos ha- (1749-1823) realizou estudos que
bitantes de Londres morriam de levaram à substituição da variolação
varíola, um número nunca pela vacinação. Ele trabalhava com
alcançado no século anterior. pessoas do campo, e praticava a
O que estava acontecendo? variolação. Sua atenção foi
Logo surgiu uma terrível sus- chamada para uma enfermidade
peita: a própria variolação estava parecida com a varíola ("smallpox",
espalhando a doença. Antes desse em inglês), que acometia as vacas e
processo ser introduzido, as pessoas era chamada "cow pox", ou seja,
estavam sujeitas apenas a se conta- varíola das vacas. Essa doença
giar de pessoas doentes pelo proces- produzia uma erupção nas tetas das
so natural. Mas agora, muitas pes- vacas, e podia ser transmitida às
soas adquiriam a varíola artificial- pessoas que as ordenhavam, nas
mente, e as que não eram fazendas, produzindo grandes
inoculadas podiam adquirir o con- feridas em suas mãos, febre e
tágio também dessas. Ou seja: as algumas vezes outros efeitos.
fontes de contágio aumentaram. Jenner notou que as pessoas
Embora a enfermidade artificial fo- que tinham tido a varíola das vacas
sse mais fraca, talvez ela pareciam resistentes à varíola
mantivesse todo o seu poder quando humana. Nas fazendas, quando
passasse pelos processos naturais inoculava com varíola as pessoas,
para outras pessoas. Jenner notava que não surgiam os
Felizmente, no final do século efeitos esperados nas que já tinham
XVIII, foi descoberto um modo tido cow pox. O primeiro caso que
mais seguro de prevenção da varí- ele observou foi o de um fazen-
ola: a vacinação. Essa descoberta é deiro, Joseph Merrett. Em 1770,
tão importante, que merece uma alguns cavalos de sua fazenda co-
descrição detalhada. meçaram a ter feridas nos joelhos.
Logo depois, as vacas foram afeta-
das por varíola de vaca, e em se-
A DESCOBERTA DA VACINA guida apareceram feridas nas mãos
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 88

de Merrett, que as ordenhava. Sur- nas suas tetas. Todas eram


giram os vários sintomas, e ele chamadas popularmente de cow
ficou incapaz de trabalhar durante pox, mas apenas um tipo especial
vários dias. Depois, sarou. produzia nas pessoas a proteção
desejada. Jenner aprendeu a
"Em abril de 1795, ocorrendo diferenciar a cow pox "verdadeira"
aqui uma inoculação geral [variolação], das outras, resolvendo assim esse
Merrett foi inoculado com sua família.
Já se havia passado um período de 25
primeiro problema.
anos desde que ele tinha tido a cow- A situação, como se vê, não
pox. No entanto, embora eu inserisse era muito simples. Logo surgiram
repetidamente a matéria variólica em outras dúvidas. Jenner tomou co-
seu braço, descobri que era impossível nhecimento de casos em que várias
infectá-lo com ela, aparecendo apenas
uma eflorescência na pele, com
pessoas haviam ordenhado a mesma
aparência de erisipela no centro, vaca, na mesma ocasião, e que ti-
próxima às partes perfuradas. Durante nham adquirido a varíola de vaca;
todo o tempo que sua família teve a algumas depois não mostravam
varíola - e um dos seus membros a nenhum efeito ao serem inoculadas
teve de modo muito forte - ele perma-
neceu na casa com eles, mas não
com a varíola humana, mas outras
recebeu dano pela exposição ao mostravam todos os sintomas. Isso
contágio." parecia novamente mostrar que a
varíola das vacas não era uma boa
Jenner testou a resistência à proteção. Mas Jenner continuou
varíola de várias pessoas. Parecia seus estudos, convencido de que
que as pessoas que adquiriam a devia existir algum fator que não
varíola de vaca não adquiriam mais estava sendo levado em conta.
a varíola humana no processo de Jenner logo chegou a uma
inoculação. Seria isso um fenômeno nova conclusão: o efeito da enfer-
geral? Se isso fosse verificado, seria midade das vacas dependia do está-
de grande importância, pois Jenner gio em que ela era transmitida às
sabia que a doença das vacas, pessoas. Desde o início da doença
embora produzisse algumas feridas nas vacas, até que os animais se
e mal-estar nas pessoas, não era tão curassem, a cow pox ia produzindo
grave quanto a varíola humana, e diferentes efeitos. Em certas fases,
nunca era mortal. No entanto, o ela transmitia às pessoas uma mu-
efeito observado não parecia ser dança constitucional que as prote-
uma regra geral: havia pessoas que gia contra a varíola. Em outras fa-
tinham adquirido doença das vacas ses, a pessoa podia ficar doente e
e que sofriam depois disso os podiam surgir ferimentos em seu
efeitos da varíola. Jenner ficou um corpo, mas ela não ficava protegida
pouco desanimado com isso, mas contra a varíola. Por isso, pessoas
não desistiu. Investigando melhor a infectadas pela mesma vaca, em
doença das vacas, percebeu que diferentes dias, podiam ficar prote-
existiam diferentes tipos de feridas gidas ou não contra a varíola.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 89

Jenner interpretou essa diferença ele cuidou de uma empregada de


como uma mudança do veneno (ou uma fazenda, chamada Sarah Nel-
vírus) da doença. mes, que havia acidentalmente ad-
A partir de todas as informa- quirido a varíola de vaca. Seu braço
ções que colheu e de suas análises, apresentava grandes ferimentos
Jenner se convenceu de que poderia produzidos pela enfermidade.
proteger as pessoas da varíola utili- Jenner utilizou o pus dessas feridas
zando a varíola de vaca, desde que para tentar transmitir a doença a um
escolhesse com cuidado as vacas menino de 8 anos de idade, da
com a cow pox verdadeira, na fase mesma fazenda, chamado Phipps.
correta da doença. Planejou propa- Alguns dias depois da inocula-
gar a enfermidade por inoculação ção com a cow-pox, surgiram erup-
como no caso da varíola, primeiro ções e o menino se sentiu indisposto
da vaca, e depois de uma pessoa e teve uma leve dor de cabeça. Phi-
para outra. pps se recuperou depressa, sem
É interessante assinalar que a cicatrizes. Esse era o primeiro
idéia de fazer inoculações de outras passo: tinha sido possível transmitir
doenças já havia surgido antes, por a doença da moça para o menino,
influência da variolação. Um artificialmente, e a enfermidade ti-
professor de Jenner, chamado John nha sido bastante suave. Mas era
Hunter (1728-1793) estava preciso verificar se essa varíola de
estudando as doenças venéreas e vaca artificial protegia contra a va-
desejava descobrir se a sífilis e a ríola humana. Um mês e meio de-
gonorréia eram manifestações pois do primeiro experimento, Jen-
diferentes de uma mesma ner faz outro teste com o mesmo
enfermidade, ou doenças diferentes. menino: ele o inocula com a varíola
Resolveu fazer uma experiência: humana. Não houve nenhum efeito
inoculou em si próprio o pus das importante. Alguns meses depois,
feridas de um doente de gonorréia. repetiu o teste, e novamente não
Como resultado do teste, adquiriu surgiram efeitos. Phipps parecia
sífilis (sem dúvida porque o doente estar permanentemente protegido
tinha, também, essa doença) e contra a varíola.
concluiu que as duas enfermidades Esse experimento foi muito
tinham uma causa comum. arriscado, mas deu um resultado
Em 1796, Jenner se sentiu su- feliz. Poderia ter sido uma tragédia.
ficientemente seguro para fazer a Jenner interrompeu as suas
sua primeira experiência. Atual- pesquisas por dois anos, por falta de
mente, qualquer teste desse tipo vacas com cow pox. Então, a
seria feito primeiro com animais, doença das vacas surgiu em várias
mas não existiam esses cuidados no fazendas e ele fez novos
século XVIII. Assim, ele resolveu experimentos. No dia 16 de março
fazer o experimento diretamente de 1798, inoculou um garoto de 5
com seres humanos. Nessa época, anos de idade, chamado William
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 90

Summers, com o pus tirado das se deu ao trabalho de fazer testes


tetas de uma vaca que tinha a cow- com todas elas. Fez apenas, após
pox. No sexto dia o menino se vários meses, a experiência de ino-
sentiu indisposto, vomitou e surgiu culação da varíola humana em três
um inchaço em seu braço, mas no das pessoas. Nos três casos, não
oitavo dia ele já estava se sentindo houve efeitos. Jenner considerou
bem. seus experimentos perfeitamente
No décimo-segundo dia (28 de decisivos, concluindo que "a cow-
março), Jenner inoculou William pox protege a constituição humana
Pead, um menino de oito anos, utili- da infecção da varíola". Ele divul-
zando material tirado da pústula de gou seu trabalho através de um fo-
William Summers. No sexto dia, lheto publicado em 1798, ao qual se
William Pead queixou-se de dor nas seguiram depois outras obras.
axilas e no sétimo mostrou os sin- É curioso assinalar que foi o
tomas de pessoas com cow-pox. título dos trabalhos de Jenner que
Depois de mais três dias, sarou. levou ao nome "vacina". Essas pu-
No dia 5 de abril, várias crian- blicações, embora escritas em
ças e adultos foram inoculados a inglês, apresentavam em latim o
partir de material tirado do braço de nome da doença das vacas: "variola
William Pead. Em sua maior parte, vaccinae", que significa varíola das
eles adoeceram no sexto dia e me- vacas ou varíola "vaquina" (que
lhoraram no sétimo; mas em três Aurélio me perdoe essa palavra!).
deles houve uma indisposição se- Portanto, a palavra "vaccina" era
cundária por causa de uma extensa inicialmente um adjetivo latino, que
inflamação. Jenner aplicou indicava a origem da enfermidade.
mercúrio nas feridas e elas Não representava o procedimento
melhoraram. Uma das crianças utilizado. Assim como a variolação
tinha apenas seis meses de idade! era chamada de inoculação da
varíola, passou-se a falar sobre a
FIGURA inoculação da cow pox (ou seja, da
JENNERVC.TIF varíola "vaquina"). Como o latim
dava uma maior respeitabilidade ao
Entusiasmado com o sucesso, procedimento, era preferível utilizar
Jenner realizou sucessivas transfe- a expressão "inoculação da variola
rências da doença de uma pessoa vaccinae", que depois foi
para outras. Verificou que os efeitos simplificada para "inoculação da
eram sempre semelhantes, não se vacina" e por fim se transformou
tornando nem mais fracos nem mais em "vacinação". A palavra
fortes com as transferências sucessi- "vacina", isoladamente, é um
vas. absurdo gramatical, pois trata-se de
Jenner estava tão seguro de um adjetivo ("da vaca") que é usado
que essas pessoas estavam todas como substantivo. Pior ainda é falar
protegidas contra a varíola, que nem sobre as "vacinas" contra várias
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 91

doenças, que não têm nada a ver médicos que responderam ao ques-
com vacas. A linguagem, infe- tionário haviam vacinado, até essa
lizmente, é assim: quando se es- época, um total de 164.381 pessoas.
quece a origem das palavras, seu Desse total, 56 pessoas tiveram
significado muda tanto que elas se varíola depois da vacinação, o que
tornam irreconhecíveis. mostrava que a proteção não era
totalmente segura. Houve também
FIGURA alguns efeitos negativos da vacina-
VACCIN.TIF ção: 66 casos de fortes erupções na
pele, 24 casos de forte inflamação
Mas voltemos à época de Jen- do braço, e em três desses casos as
ner. pessoas morreram.
A divulgação desses trabalhos Surgiu uma oposição à vacina-
produziu repercussão imediata. ção. Os jornais populares publica-
Outros médicos logo se apressaram vam ilustrações que ridicularizavam
a testar as observações de Jenner. a vacinação, mostrando pessoas que
No mesmo ano de 1798, George se transformavam em vacas. Tam-
Pearson publicou um estudo em que bém houve resistência por parte de
confirmou a eficácia da varíola de muitos médicos importantes. Existi-
vaca para proteger contra a varíola am vários motivos racionais para a
humana. No ano seguinte, o médico resistência. Por um lado, a vacina-
Joseph Marshall inoculou 211 pes- ção era um processo puramente
soas com a cow-pox e depois tentou empírico, que não era compreendi-
transmitir-lhes artificialmente a do. Por outro lado, parecia um mé-
varíola humana. Nenhuma delas todo perigoso. Houve casos em que
contraiu a enfermidade. a vacinação foi seguida por erisi-
Houve alguma resistência ao pela, em pessoas aparentemente
novo método, porque ele era muito saudáveis, havendo muitas mortes.
estranho e não se compreendia Por outro lado, como a doença era
como podia funcionar. No entanto, passada de uma pessoa para outra,
muitos médicos aderiram à inocula- verificou-se que podiam ser trans-
ção da varíola de vaca. O próprio mitidas ao mesmo tempo outras
Jenner indica que, até 1801, "mais doenças, como a sífilis. Assim, ao
de 6.000 pessoas foram inoculadas tentar se proteger da varíola, a pes-
com o vírus da cow-pox e a maior soa podia cair vítima de outra en-
parte delas foi desde então inocu- fermidade transmissível.
lada com o da varíola, e exposto à
infecção de todos os modos racio- FIGURA
nais que puderem ser imaginados, VACACIN.TIF
sem efeito." Em 1806, o Royal
College of Surgeons da Inglaterra Houve muitas falhas iniciais
fez um inquérito sobre a eficácia e por causa de falta de padronização
os efeitos de vacinação. Os 426 de métodos e falta de cuidados bási-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 92

cos. O próprio Jenner se preocupou pessoas que tinham sido inoculadas


em esclarecer as diferenças entre a antes com varíola e com cow-pox.
verdadeira varíola de vaca e outras Isso mostrava que nenhum dos mé-
enfermidades do gado. Descreveu todos proporcionava uma segurança
também detalhadamente os total. Em 1826-7 houve epidemia de
cuidados a serem tomados: como e varíola na França; em 1827, na
quando colher o material das vacas, parte norte da Itália. Muitos
como guardá-lo, como inoculá-lo. vacinados foram novamente
As vantagens do processo des- atacados pela varíola.
coberto por Jenner eram muitas. Em A partir de então, começou na
primeiro lugar, os efeitos secundá- Prússia a prática da "re-vacinação":
rios e o risco da vacinação eram repetir a vacinação, com o objetivo
menores: apenas 3 mortes em de proteger mais as pessoas. Não
160.000 pessoas vacinadas, contra 1 havia nenhuma base teórica para
morte em cada 500 pessoas às quais essa repetição, mas aparentemente o
se tinha aplicado a variolação. Em novo método deu resultado. Na
segundo lugar, verificou-se que a Prússia, durante uma epidemia que
doença das vacas apenas se transmi- durou 5 anos, ocorreu apenas um
tia pelo contato, nunca pela proxi- caso de varíola, entre 14.384 solda-
midade ou pelo ar. Por isso, as pes- dos vacinados duas vezes, e apenas
soas que eram inoculadas com a três casos entre 26.864 civis re-va-
varíola das vacas não se tornavam cinados.
perigosas para as demais. Ao con- Sob o ponto de vista prático, a
trário, como já foi dito antes, a va- vacinação parecia excelente. Mas e
ríola humana podia se transmitir sob o ponto de vista teórico? Não se
sem contado físico direto (pelo ar) e entendia muita coisa.
por isso as pessoas que tinham sido A varíola das vacas parecia ser
inoculadas artificialmente com a diferente da varíola humana - caso
varíola humana tornavam-se perigo- contrário, os efeitos seriam iguais.
sas para as outras. Como, então, uma enfermidade era
Com a prática da vacinação, a capaz de proteger contra outra?
mortalidade pela varíola não Jenner acreditava que tanto a
desapareceu mas foi sendo varíola humana quanto a das vacas
gradualmente reduzida, durante o tinham a mesma origem. Nos seus
século XIX. A mortalidade em trabalhos, ele cita vários fatos para
Londres pela varíola caiu de 4% por tentar mostrar que a cow-pox so-
década, em 1810, para 1% por mente surgia nas fazendas depois
década, em 1850. que aparecem cavalos com uma
É verdade que, aos poucos, fo- doença nos joelhos. Ele supunha
ram surgindo problemas. Em 1818 por isso que os cavalos são a
surgiu uma violenta epidemia de origem primitiva da cow-pox, que
varíola na Inglaterra e no continente depois é passada às vacas pelas
europeu. Atingiu e matou muitas mãos das pessoas que cuidam de
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 93

ambos. Ele acreditava que a causa o que todos aceitavam na época.


da doença ia se modificando, Como vimos, o próprio Jenner fala
quando passava de um animal para muitas vezes sobre o "vírus" da
outro. Nos cavalos, o vírus seria varíola e da cow-pox, o que ainda
mais fraco, nas vacas seria mais significava, nessa época, a mesma
forte. Nos seres humanos, teria se coisa que veneno.
tornado ainda mais forte, Davy sugeriu que um processo
produzindo a varíola humana con- semelhante à vacinação poderia ser
tagiosa e mortal. utilizado com outras doenças que
Se a varíola humana e a cow- também fossem transmitidas por
pox tivessem uma origem comum, venenos. Ele se refere especifica-
tornar-se-ia mais fácil compreender mente à raiva ou hidrofobia, que
como uma pode proteger contra a também passa de um cão para
outra: porque possuem, essencial- outro, pela mordida. George Pear-
mente, a mesma causa, que passou son, por sua vez, havia sugerido,
apenas por algumas modificações. antes disso, que se poderia
A hipótese de Jenner sobre a origem desenvolver um processo se-
eqüina da cow-pox, no entanto, logo melhante de proteção contra a sífilis
foi negada. - que também é contagiosa.
Independentemente da origem Nessa época, começou a se
da doença, o efeito da vacinação era formar uma nebulosa associação
tão misterioso quanto o da variola- entre essas várias idéias: uma en-
ção. Por que motivo uma pessoa fermidade contagiosa que só ataque
que já teve uma doença fica prote- uma vez cada pessoa é transmitida
gida contra essa enfermidade? Por por um vírus e deve ser evitável por
que isso ocorre no caso da varíola e um processo semelhante à vacina-
não ocorre no caso de outras doen- ção.
ças, que podem atacar várias vezes Nem Jenner, nem os outros
a mesma pessoa? O próprio Jenner autores da época, se preocuparam
não tentou explicar isso. Ele se con- em explicar como o "vírus" da
tentpu com o estabelecimento de varíola se multiplica dentro do
que a vacinação funciona e é organismo. Ninguém sugeriu, na
segura. época, que a doença pudesse ser
O químico Humphry Davy causada por microorganismos.
propôs, em 1811, uma explicação: A vacinação é um exemplo
um veneno poderia combater outro clássico de técnica médica que sur-
semelhante. Assim, se a pessoa já giu sem nenhuma explicação, mas
tivesse dentro de seu corpo um que funcionou. De certa forma, ela
veneno (da cow-pox), essa substân- representa um retorno à humildade
cia impediria a ação da varíola hu- de Hipócrates, que não pretendia
mana. Nessa hipótese, está implícita desenvolver uma ciência teórica e
a suposição de que a varíola é sim uma técnica, uma arte empírica
transmitida por um tipo de veneno - de curar.
MIASMAS OU MICROORGANISMOS?
8 A SITUAÇÃO NO INÍCIO DO SÉCULO XIX

urina de cães e de pessoas, cerveja e


CHEIROS, GASES E A PRE- outras substâncias. Somente quando
VENÇÃO DAS DOENÇAS ocorriam as pestes surgiam hábitos
de limpeza, como o de varrer as
Durante o século XVIII e iní- casas e as ruas.
cio do século XIX houve uma gran- Até mesmo os médicos
de melhora da saúde pública. É cu- podiam ser contrários às medidas
rioso que essa melhora não foi pro- sanitárias. Em 1760 não existiam
duzida por nenhum conhecimento privadas em Madrid. Os
médico novo: ela se deu por me- excrementos eram jogados pelas
didas sanitárias inspiradas pelas janelas das casas à noite, sendo
velhas idéias sobre os miasmas. removidos no dia seguinte pelos
Desde o fim do Império Ro- limpadores. O rei ordenou que se
mano, as preocupações com limpe- construísse uma privada em cada
za, na Europa, haviam se reduzido casa, mas o povo se opôs violenta-
muito. A água era obtida de qual- mente à medida. Os médicos pro-
quer tipo de fonte, de rios, de cha- testaram, dizendo que a sujeira das
farizes públicos, de poços sujos. ruas era útil, pois absorvia as partí-
Praticamente não existia água enca- culas insalubres do ar. Se as ruas
nada. Também era rara a existência não fossem sujas, essas partículas
de esgotos. Quando existiam, a atacariam as pessoas.
água suja misturava-se à água que A limpeza corporal e das rou-
era utilizada para todos os fins pas era rara e precária. Os
domésticos. perfumes, utilizados pelos ricos,
Em algumas cidades, os ex- eram um substituto dos banhos, e
crementos eram coletados e trans- não seu complemento. É verdade
portados para longe em carroças, que houve épocas em que os banhos
mas era mais comum que fossem públicos eram muito freqüentados,
simplesmente lançados à rua. O mas com um objetivo especial: ser-
próprio chão das casas - de terra ou viam de local para encontros
de madeira - ficava impregnado por sexuais. Proibidos os banhos
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 95

mistos, o interesse pelo asseio popularizados na época, surgiu o


diminuiu muito. Havia até mesmo tabaco. Sua fumaça parecia servir
preconceito contra os banhos, para proteger contra os ares infecci-
acreditando-se que podiam produzir onados pelas doenças e até mesmo
enfermidades. pela peste.
Havia se generalizado a idéia Durante o século XVIII, man-
de que as doenças eram causadas tinha-se a idéia de que os perfumes
pelo mau cheiro. Já vimos muitos podiam combater os efeitos nocivos
exemplos disso, em capítulos dos miasmas; mas aos poucos pas-
anteriores. No século XVIII, sou-se a prefer eliminar os próprios
tornou-se bastante popular a teoria fedores, ao invés de escondê-los.
dos miasmas, para explicar não Passou-se a dar grande importância
apenas as enfermidades dos à ventilação das residências, para
pântanos, mas todas as doenças que seu ar fosse renovado e purifi-
produzidas por cheiros de coisas cado. Observou-se que vários tipos
estragadas e podres. A limpeza não de substâncias químicas eram capa-
era um problema estético e sim uma zes de evitar a putrefação e podiam,
questão de saúde, ou seja, de assim, ser utilizados contra a produ-
higiene (no sentido original da ção de miasmas. Essas substâncias
palavra). E o melhor guia para fugir foram chamadas de "anti-sépticas",
das doenças seria seguir a orienta- isto é, contrárias à putrefação. Isso
ção do nariz. ocorreu muito antes do desenvolvi-
Não existia nenhuma preocu- mento da teoria microbiana das do-
pação com insetos, ratos ou outros enças e, portanto, o estudo de antis-
animais, pois ninguém imaginava sépticos não pode ser considerado
que eles pudessem transmitir en- como conseqüência daquela teoria.
fermidades. A importância de No início da Idade Moderna, a
afastar os excrementos e o lixo das situação de sujeira era terrível nas
casas era apenas o seu cheiro. residências, mas pior ainda em
lugares em que se acumulavam
FIGURA muitas pessoas, como prisões,
SUJEIR2.TIF hospitais e instalações militares. No
fim do século XVII, mais de 1/4 dos
A água, para ser saudável, ta- pacientes dos hospitais de Paris e
mbém não devia ter cheiro. Esse era Londres morriam. Ser levado para
o critério principal, mais do que sua um hospital era semelhante a ser
cor. A presença de microorga- executado. O filósofo Gottfried
nismos na água era conhecida e en- Leibniz chamava os hospitais de
carada com indiferença. Não se "sementeiras da morte".
imaginava que eles pudessem ser De acordo com nossos padrões
nocivos. atuais, a situação nos hospitais era
É curioso assinalar que, entre escandalosa. Doentes de todos os
os meios para conservar a saúde tipos ficavam misturados, em gran-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 96

des salões, muitas vezes com dois uniram seus esforços tentando dimi-
ou três juntos na mesma cama. nuir as enfermidades que matavam
No entanto, graças às idéias o povo.
sobre limpeza e miasmas, a situação Foi graças a essa nova atitude
começou a mudar. Em torno de que começaram a ser escritos livros
1750, o cirurgião-geral do exército especificamente dedicados à
inglês, John Pringle (1707-1782), conservação da saúde - ou seja, à
conseguiu uma significativa queda higiene, no sentido original da
da mortalidade nos hospitais milita- palavra. Antes dessa época,
res, através da limpeza e de uma existiam menções nos tratados
melhor ventilação. A reforma das médicos aos modos de se conservar
prisões inglesas foi obra do filan- a saúde, mas, em geral, a ênfase era
tropo John Howard (1726-1790), no tratamento e não na prevenção
que conseguiu diminuir a incidência de doenças. A exceção principal
de tifo, tuberculose e febre tifóide. eram os livros sobre os modos de
Apenas após 1780 foram criadas as evitar as pestes, que surgiam apenas
primeiras alas hospitalares em meio às grandes epidemias. Não
separadas para doentes com enfer- se considerava que, em condições
midades contagiosas. Aos poucos, normais de vida, fosse necessário
foi se firmando uma nova corrente dedicar tanta atenção à saúde.
de prevenção contínua de todas as Até o século XVIII, as idéias
doenças, através de medidas de sobre miasmas e sobre a
limpeza. transmissão de enfermidades pelo ar
Esse amplo movimento higie- eram apenas hipóteses. Na verdade,
nista, que continuou durante o sécu- pouco se sabia a respeito da própria
lo XIX, não dispunha de nenhum natureza do ar. Apenas dois séculos
conhecimento novo. A teoria básica atrás foram feitos os primeiros
era a dos miasmas. Havia apenas estudos de caráter científico
um interesse real em utilizar os moderno sobre a composição do ar
conhecimentos disponíveis na e sobre seu papel na doença e na
melhoria da saúde pública e na manutenção da vida.
prevenção das doenças. Mais A idéia de que o ar pode con-
necessária do que a pesquisa ter substâncias maléficas à saúde
médica, foi a decisão política de ganhou bastante apoio através de
mudar a situação existente, fazendo estudos feitos no final do século
o melhor que se podia fazer. Por XVIII. Entre 1774 e 1777, o natu-
isso, os homens que contribuíram ralista Joseph Priestley fez estudos
para a grande redução de sobre o ar e a vida.
mortalidade nos séculos XVIII e Já se sabia que, quando se co-
XIX não são conhecidos por suas locava uma vela acesa em um
teorias ou idéias. São médicos, es- recipiente fechado, no qual existisse
critores, políticos e administradores, um pequeno animal vivo, a vela
muitas vezes desconhecidos, que logo se apagava e o animal morria.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 97

Tornava-se impossível manter um jos, imaginou que poderiam purifi-


fogo nesse ar, e se um outro animal car o ar mortal. Expondo o frasco
vivo fosse colocado lá, ele morreria com ar nocivo à luz, durante meses,
quase instantaneamente. Priestley não foi notada nenhuma melhora.
estudou esse tipo de fenômeno. Ele Na época, acreditava-se que a
observou que o animal morre tendo queima de enxofre era capaz de im-
convulsões, e que o mesmo aconte- pedir a propagação das epidemias,
ce quando é colocado em outros Priestley experimentou adicionar
gases que haviam sido descobertos um pouco de fumaça de enxofre ao
recentemente: "ar fixo" (gás car- ar nocivo, para ver se ele
bônico), "ar inflamável" melhorava; mas continuou
(hidrogênio), ar cheio de fumaça de igualmente mortal.
enxofre queimado, e também ar in- Priestley observou, no entanto,
fectado com matéria podre. que esse tipo de ar não era prejudi-
Priestley imaginou que a respiração cial às plantas. Colocando ramos de
dos animais desprendia alguma menta dentro de recipientes com
substância maligna: o ar que sai dos água e o ar nocivo, observou que os
pulmões seria equivalente ao ar ramos se desenvolviam de forma
impregnado pela putrefação animal. vigorosa, crescendo mais depressa
Priestley conjetura: "provavelmente do que no ar comum. Imaginou en-
uma das utilidades dos pulmões é tão que esse ar putrefato pudesse ser
retirar um eflúvio pútrido, sem o benéfico e útil para as plantas,
qual, talvez, um corpo vivo poderia assim como os excrementos
apodrecer tão depressa quanto um também são úteis para elas. Fez
morto". Priestley, como a maioria então um experimento para verificar
dos médicos da época, acreditava se as plantas retiravam do ar sua
que a putrefação produz um gás ou parte nociva. Verificou que o
vapor venenoso, capaz de produzir crescimento de um ramo de menta
enfermidades. em um frasco fechado em que havia
Priestley comparou vários ti- ar nocivo permitia, algum tempo
pos de ar entre si, concluindo que o depois, a vida de ratos naquele
efeito da respiração animal no ar era frasco.
igual ao do apodrecimento: ambos Priestley concluiu que as plan-
apagavam a chama de uma vela, tas são capazes de viver no ar
ambos eram nocivos aos animais, pútrido e retirar do ar o eflúvio
ambos possuíam cheiro pútrido, do qual se alimentam, tor-
desagradável e produziam a nando o ar adequado para a respira-
precipitação de carbonato de cálcio ção dos animais.
em água de cal. Os estudos de Priestley tinham
Priestley tentou purificar o ar como ponto de partida a hipótese de
que havia se tornado mortal, através que havia alguma semelhança entre
de vários processos. Como os raios os efeitos da respiração e os efeitos
solares eram considerados benfaze- nocivos de materiais podres. No
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 98

entanto, estudos posteriores levaram pela reação de sal comum (10 par-
simplesmente à descoberta do papel tes), óxido negro de manganês (2
do oxigênio e do gás carbônico, na partes) e ácido sulfúrico (oito par-
respiração, e da fotossíntese nas tes). Aconselhava-se o uso desse
plantas. Esses estudos não levaram, gás nas enfermarias dos hospitais e
portanto, a nenhum esclarecimento nas casas em que houvesse molés-
das causas de enfermidades que tias contagiosas, como meio de des-
pareciam se propagar pelo ar. truir os vapores nocivos. Chegava-
Apesar disso, o estudo se a dizer que esse ácido gasoso era
químico do ar e dos diferentes também benéfico para as próprias
gases, no final do século XVIII, pessoas que já estivessem doentes.
trouxe uma maior respeitabilidade O médico português Francisco de
às considerações sobre diferentes Mello Franco afirmava em 1814:
tipos e características da atmosfera.
Compreendeu-se que uma parte do "Este facílimo expediente é infalí-
ar puro (oxigênio) é essencial para a vel, não somente para atalhar o pro-
gresso do contágio, mas também para
vida dos animais e do homem; que diminuir os seus efeitos nos indivíduos
a respiração e a combustão já atacados. São tantas as experiênci-
consomem oxigênio e produzem as feitas por homens consumados em
gás carbônico; que existem Química, e Medicina a este respeito,
diferentes gases, que podem que nenhuma dúvida pode já restar
aos mesmos incrédulos."
produzir efeitos especiais nos seres
vivos. Muitas idéias antigas perma-
A certeza, infelizmente, é
neciam ativas e influentes, mas a
muito perigosa na Medicina. Vapo-
física e a química voltaram a ganhar
res ácidos, pelo que sabemos atual-
um papel relevante na Medicina.
mente, podem ser excelentes desin-
Embora a idéia dos miasmas
fetantes, mas não são úteis às pesso-
em si própria não tivesse evoluído,
as doentes, nem às sadias.
haviam sido encontradas novas sub-
Mello Franco defendia uma
stâncias, capazes de impedir a
interpretação química dos miasmas.
putrefação e que deviam ser
Ele supunha que a causa das febres
também capazes de destruir os
palustres seriam simples compostos
miasmas invisíveis. Louis Bernard,
de nitrogênio (azoto) e hidrogênio.
barão de Guyton de Morveau
Embora a interpretação puramente
(1737-1816), companheiro de
química não nos pareça atualmente
pesquisas de Lavoisier, foi um dos
ser correta, Mello Franco, como
investigadores desses antissépticos.
outros higienistas da época,
Guyton de Morveau estudou
apresentava recomendações de bom
ácidos minerais em forma gasosa,
senso: seria necessário, para evitar
concluindo pela grande eficácia pu-
as enfermidades palustres, acabar
rificadora e anti-pútrida dos mes-
com os pântanos, secando-os e cul-
mos. Recomendava especialmente o
tivando a região.
"ácido muriático oxigenado", obtido
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 99

É muito interessante que nossas teorias atuais sejam muito


Mello Franco recomendasse que se diferentes. No fim do século XVIII
fervesse a água impura, quando e início do século XIX, procurou-se
fosse necessário utilizá-la para dar uma fundamentação química à
beber. Para nós, esse tipo de teoria dos miasmas, mas a tentativa
procedimento é justificado pela falhou. Não foi possível encontrar
destruição dos microorganismos os gases responsáveis pelas doenças
vivos que podem existir na água. dos pântanos ou por outras enfermi-
Na época, no entanto, a justificativa dades transmissíveis.
era outra: libertar a água de sólidos
dissolvidos nela e, principalmente,
produzir a evaporação dos miasmas. DÚVIDAS SOBRE CONTÁGIO
Nem sempre era possível puri- NO INÍCIO DO SÉCULO XIX
ficar a água pela fervura. Nas
longas viagens de navios, por O século XIX foi uma época
exemplo, a água guardada durante em que ocorreu grande desenvolvi-
semanas ou meses em tonéis de mento econômico e científico em
madeira costumava se estragar, todo o mundo. A Europa se indus-
ficando com um cheiro podre. Era trializou, com todas as conseqüên-
impossível ferver toda essa água. cias positivas e negativas acarreta-
Nesses casos havia sido das pelo processo. Havia empregos
desenvolvido um outro proce- e produção de bens materiais, úteis
dimento: a purificação por pó de à sociedade. Por outro lado, como a
carvão (ou seja, o "carvão ativado" industrialização atraiu para as gran-
que se utiliza hoje em dia nos filtros des cidades muitas pessoas pobres,
domésticos de água) e a aci- houve um crescimento desordenado
dificação da água. das regiões industrializadas. Algu-
Novamente, o principal mas delas dobraram ou triplicaram
critério de salubridade da água era o de tamanho, em poucos anos. For-
cheiro. O procedimento tinha por maram-se bairros miseráveis, nos
objetivo eliminar o mau odor da arredores, sem condições
água (pelo carvão) e impedir que a higiênicas: eram locais sujos e úmi-
água apodrecesse de novo (pelo dos. Em cidades industriais da
ácido). O processo é igualmente Inglaterra, como Manchester e
capaz de destruir microorganismos Liverpool, praticamente não
e deve ter sido realmente útil para a existiam sanitários. Os excrementos
conservação da saúde da tripulação. eram empilhados em montes de até
Os vários casos aqui cinco metros de altura, nos bairros
analisados mostram que a teoria dos pobres. Não existia coleta de lixo, a
miasmas foi muito útil, sem ser água era geralmente suja. As
verdadeira. Ela conduziu a muitas fábricas tinham péssimas condições
medidas higiênicas que atualmente sanitárias. Os operários adultos
consideramos excelentes - embora trabalhavam mais de dez horas por
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 100

dia e crianças pequenas eram do se falava sobre lugares com ar


empregadas por salários ridículos infectado, isso significava um ar
para trabalhar durante todo o dia. maléfico para a saúde, seja por qual
A mortalidade nas grandes ci- motivo fosse: por conter gases
dades cresceu bastante, nesse perí- como o dióxido de carbono, por
odo. Os cuidados de higiene, que conter "miasmas" de substâncias
haviam progredido muito no século podres, ou por conter o "vírus" de
XVIII, sofreram um recuo. pessoas doentes.
Algumas doenças aumentaram Samuel Hahnemann (1755-
muito: febre tifóide, tuberculose, 1843) foi o fundador da homeopa-
difteria. Ocorrem grandes tia, e teve considerável influência
epidemias de cólera, que se no início do século XIX. A
espalham por todo o mundo. principal obra em que suas idéias
Foi no decorrer do século XIX foram divulgadas, o Organon da
que se chegou à compreensão da arte de curar, foi publicado em
natureza das enfermidades 1810.
transmissíveis. Mas o início do Hahnemann acreditava que
século não era muito promissor, sob não é possível conhecer as causas
o ponto de vista médico. Havia das doenças; sob este ponto de
grande confusão sobre as doenças vista, sua abordagem é de tipo
que consideramos transmissíveis: empírico. O mais importante, na
discutia-se até se existiam de fato Medicina, seria estudar sintomas e
enfermidades contagiosas ou não. procurar a cura - especulações sobre
O conceito básico de contágio aquilo que não se conhece não
era o de transmissão de uma doença ajudavam muito. Coerente com essa
de uma pessoa para outra. Normal- posição, a homeopatia se baseou em
mente, no início do século XIX, certos princípios que não possuíam
associava-se o contágio a um vírus fundamentação teórica, mas que
ou veneno. Como vimos, Fracastoro pareciam funcionar. O principal
admitia o contágio pelo contato deles era o da cura do semelhante
direto, pelo ar e através de objetos pelo semelhante: se um remédio
materiais (roupas, móveis, etc.) que produzia, numa pessoa sadia, certo
servissem de intermediários. Não se conjunto de sintomas semelhantes
imaginava até o início do século aos de uma enfermidade, esse
XIX que pudesse haver transmissão remédio poderia curar aquela
de enfermidades pela água, nem enfermidade. A justificativa básica
com o intermédio de seres vivos. A desse princípio era a experiência: o
inoculação era uma transmissão princípio parecia dar certo,
artificial de doença que não era independentemente de qualquer
considerada um contágio, propria- explicação teórica que se pudesse
mente dito. procurar.
A noção de infecção era mais Embora a teoria fosse, para
ampla do que a de contágio. Quan- Hahnemann, algo secundário e às
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 101

vezes até negativo, ele apresentava cepção, tornava-se natural aceitar a


algumas reflexões importante para infecção e o contágio das enfermi-
nosso estudo. Sua posição básica dades.
era vitalista, ou seja, ele negava que Hahnemann utilizava o
se pudesse compreender o orga- conceito de miasma de um modo
nismo humano apenas como um especial. Originalmente, a idéia de
sistema físico-químico. A diferença miasma estava relacionada às
entre um ser vivo e um aparelho emanações de substâncias em
seria algo que ele chamava de putrefação, que se acreditava
"força vital", responsável por toda a capazes de produzir doenças. Esse
dinâmica do organismo. As doenças miasma seria sempre
proviriam de um desarranjo da essencialmente de um só tipo, mas
força vital, que se refletiria no poderia levar a diferentes doenças,
corpo como um todo, e na mente. dependendo das condições específi-
Essa força vital não estaria su- cas de sua ação e da pessoa que
jeita às leis da física e da química: sofresse sua influência. Para
ela teria leis próprias. A causa das Hahnemann, pelo contrário, o mi-
doenças não poderia ser material, asma seria um agente capaz de co-
pois devia atuar sobre uma força municar a enfermidade que pode
vital que não era material. Hahne- provir do ambiente ou de outra pes-
mann lembrava que um estado de soa doente. Todas as doenças epi-
espírito - como o medo, a irritação dêmicas e o contágio se dariam pelo
ou a tristeza - podia produzir en- miasma. Esse miasma, para ele,
fermidades, o que parecia difícil de poderia ser de diferentes tipos, cada
se explicar sob o ponto de vista um associado a uma doença dife-
físico, mas que se tornava compre- rente. Por isso, quando uma pessoa
ensível sob o ponto de vista do tem uma certa doença somente pode
vitalismo. transmitir aquela mesma doença,
Tanto as causas das doenças, pelo seu miasma.
como os remédios, atuariam sobre a Hahnemann afirmava que as
força vital através de um poder ou pessoas podiam se acostumar gra-
dinamismo não material. Isso torna- dualmente às influências mórbidas e
va compreensível, na homeopatia, resistir à infecção dos miasmas.
como um remédio extremamente Seria por esse motivo que as enfer-
diluído podia se manter eficaz. meiras, os médicos e os coveiros
Hahnemann às vezes fazia com que podiam lidar com grande número de
os doentes apenas cheirassem um enfermos (ou cadáveres), sem ficar
remédio já diluído, e isso era sufici- doentes. Nesses casos, não se nota-
ente. Por outro lado, as influências riam sinais do miasma nessas pes-
mórbidas que produziam as diversas soas. No entanto, sem serem afeta-
enfermidades também podiam agir das, e parecendo totalmente saudá-
sob forma extremamente diluída ou veis, essas pessoas poderiam trans-
rarefeita. Dentro desse tipo de con- mitir o miasma a outras. Em 1831,
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 102

durante uma grave epidemia de có- res da existência do contágio, no


lera, Hahnemann sugeriu que a do- início do século. Ele considerava a
ença não se propagava pelo ar, difteria e a febre tifóide como
como todos acreditavam, mas pelo contagiosas. Ao estudar a epidemia
contato entre as pessoas; e que os de difteria de 1818-20, Bretonneau
principais responsáveis pela sua propôs que as doenças transmissí-
difusão seriam os médicos e enfer- veis eram específicas, desenvol-
meiras: eles teriam desenvolvido vendo-se através de um agente que
uma resistência contra o "miasma se reproduz. O agente do tifo, se-
venenoso do cólera", mas gundo ele, seria "um ser miasmático
passavam-no para outras pessoas. que se prende e adere às secreções
Seriam os "transportadores sadios mórbidas". Bretonneau compara o
do miasma". "ser miasmático" a uma semente
vegetal, capaz de reter sua capaci-
"Assim, os médicos e enfermei- dade de germinar durante longos
ras são os propagadores e comunica- períodos.
dores mais certos e freqüentes do
contágio do cólera. Apesar disso,
Em 1834-5, Gendron descre-
todos, mesmo os jornais públicos, se veu epidemias de febre tifóide e
espantam de como a infecção pode se defendeu a idéia de que ela é conta-
espalhar tão rapidamente, desde o giosa, pois passava de um membro
primeiro dia, do primeiro paciente de da família para outro. Concluiu que
cólera em uma extremidade da cidade
a pessoas na outra extremidade da
se espalhava por contágio,
cidade que não chegaram perto do "envenenando por um princípio
paciente. " desconhecido e impalpável conhe-
cido como miasma". Mas Breton-
Evidentemente, essa sugestão neau, Gendron e outros autores da
de Hahnemann não agradou nem época não conseguiam mostrar
um pouco à classe médica da época. como ocorria o contágio.
Hahnemann estava certo: de fato, Imaginou-se, na época, um
existem portadores de doenças que teste crucial para decidir se uma
são aparentemente sadios. Mas isso doença era contagiosa ou não: veri-
só foi de fato estabelecido várias ficar se era possível transmitir a
décadas depois, quando o processo enfermidade pela inoculação, como
de transmissão foi esclarecido. no caso da varíola. Foram feitos
A discussão sobre o contágio testes de inoculação da difteria e de
das enfermidades tornou-se muito algumas outras doenças, sem ne-
importante por ocasião das epidemi- nhum resultado. Isso aumentou
as. Era essencial saber se uma en- muito a descrença na existência de
fermidade era contagiosa ou não, contágio. No entanto, o teste não
para tomar medidas de segurança era decisivo, pois sabia-se que,
contra sua propagação. mesmo no caso da varíola, somente
Pierre Bretonneau (1771- era possível transmitir a
1862) foi um dos grandes defenso- enfermidade inoculando-se uma
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 103

pessoa com líquido tirado das com a Academia de Medicina,


pústulas em certa fase da doença. formou uma comissão encarregada
Na década de 1830, a peste de dar um parecer sobre a questão:
bubônica, iniciando-se no Egito, "Se é possível descobrir uma
espalhou-se pelos países vizinhos. ligação apreciável entre os
Discutia-se se ela era contagiosa ou fenômenos meteorológicos e o des-
não. O doutor Bullard, que estudava envolvimento ou propagação do
a doença, realizou testes extrema- cólera". Três anos depois, a comis-
mente perigosos, em Esmirna. Ves- são declarou que, no estado dos
tiu-se com roupas de pessoas que conhecimentos da época, era im-
haviam morrido de peste, deitou-se possível chegar a uma solução
no leito deles, e inoculou-se com o desse problema. Ou seja: não se
pus dos bubões. Utilizou o mesmo podia nem afirmar que havia, nem
procedimento com dois afirmar que não havia relação entre
prisioneiros, condenados à morte. clima e epidemias.
Os dois prisioneiros morreram, em A antiga teoria de Santorio, de
uma semana. O doutor Bullard, que a redução da transpiração, cau-
porém, nada sentiu. A conclusão sada pela umidade, podia produzir
tirada foi de que não existia a graves doenças, foi estudada nova-
contágio e que era inútil qualquer mente nesse período. Em 1838, o
medida de proteção contra a peste, médico Fourcault realizou experi-
como a quarentena. mentos para verificar se a supressão
Era difícil tirar alguma conclu- artificial da transpiração podia oca-
são a partir desse teste. Por um sionar doenças. Ele recobriu a pele
lado, uma pessoa havia de animais com verniz e outras sub-
permanecido sadia apesar de todas stâncias que fechavam todos os
as tentativas de transmissão da poros. Quando toda a pele ficava
enfermidade; mas talvez essa recoberta, os animais morriam.
pessoa - um médico saudável - Quando apenas uma parte da pele
fosse mais resistente à doença. Ou- era coberta, surgiam inflamações,
tras duas pessoas haviam morrido, tubérculos e outros sinais patológi-
mas podia não ter sido por contágio. cos. Esses experimentos pareciam
Talvez a atmosfera estivesse confirmar, portanto, a teoria de
infectada e algumas pessoas Santorio.
adquirissem a enfermidade e outras Paralelamente às discussões
não, dependendo de sua constitui- sobre existência do contágio, o iní-
ção física, independentemente de cio do século XIX presenciou o
ter contato com doentes. surgimento de muitos outros estu-
Era igualmente difícil testar as dos médicos. Apenas para citar um
hipóteses sobre a influência do exemplo, uma das teorias mais po-
clima ou da atmosfera nas pulares do período foi a "medicina
epidemias. Em 1831, a Academia fisiológica" de François Joseph Vic-
de Ciências de Paris, juntamente tor Broussais (1772-1838).
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 104

Broussais desenvolveu uma te- anatômicos, fisiológicos e químicos


oria muito simples: a causa básica da época, muitos investigadores
das enfermidades seria a inflamação tentavam desenvolver uma
do aparelho digestivo. As doenças Medicina bastante sofisticada. Um
infecciosas e contagiosas, segundo exemplo dessa abordagem mais
Broussais, atuariam no organismo científica é o de François Magendie
por "corpúsculos daninhos ou vapo- (1783-1855). Magendie estudou a
res irritantes que desenvolvem in- composição e as propriedades do
flamação das cavidades aéreas" e sangue - especialmente sua
depois provocariam inflamação do coagulação - e concluiu que a
estômago e do intestino. Conhecida maioria das doenças era causada
a causa básica de todas as doenças, por mudanças físicas e químicas no
a terapia se tornava simples e igual, sangue. Injetando diferentes
para todo tipo de enfermidades: líquidos no sangue de animais, ob-
todas podiam ser tratadas por san- servou o surgimento de enfermida-
grias, drogas sedativas e jejum. des artificiais. Os álcalis (bases),
A terapêutica predileta de por exemplo, tornavam o sangue
Broussais era aplicar um punhado mais fluido e davam um efeito
de sanguessugas perto do estômago semelhante ao tifo.
ou do ânus, de tal modo que o san- Segundo Magendie, as carac-
gue dessas regiões fosse retirado e a terísticas do sangue podem ser afe-
inflamação cedesse. O jejum reco- tadas por calor, frio, alimento, bebi-
mendado podia ser absoluto, duran- da, e também pela influência quí-
te vários dias seguidos. No caso de mica dos miasmas. Como essas
uma inflamação recente, a perda de causas físicas e químicas pareciam
sangue deveria ser continuada até suficientes para compreender as
que o paciente desmaiasse, mas doenças, Magendie se opôs à exis-
logo depois deveria ser inter- tência do contágio. Apenas o acei-
rompida (especialmente em tou em poucos casos - como na va-
crianças pequenas). ríola e na sífilis.
No início do século XIX, a
FIGURA questão da própria existência do
SANGUESS.TIF contágio das doenças epidêmicas
estava indefinida, embora a Medici-
O uso de sanguessugas era an- na já dispusesse de uma metodolo-
tigo, mas tornou-se particularmente gia bastante sofisticada de
popular nessa época. No ano de investigação. Na década de 1830,
1833, a mania desenvolvida por no entanto, começam a ser dados
Broussais levou a França a importar passos decisivos para a
41.500.000 sanguessugas. compreensão do papel dos
É claro que nem toda a medi- microorganismos nas enfermidades,
cina da época era tão ridícula assim. como veremos a seguir.
Utilizando-se dos conhecimentos
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 105

no Bassi estabeleceu que esses inse-


DESCOBERTA DE MICRO- tos morriam quando infectados por
ORGANISMOS ASSOCIADOS um fungo microscópico, que foi
A DOENÇAS mais tarde denominado Botrytis
bassiana em sua homenagem. Bassi
Antes do século XIX, como compreendeu que a doença dos bi-
vimos, houve diversas sugestões de chos da seda era transmitida por
que algumas doenças seriam causa- contato ou por comida infectada e
das por seres vivos microscópicos. desenvolveu medidas profiláticas
Mas teorias como a de Kircher eram apropriadas. Embora não tenha feito
apenas hipóteses sem fundamento, estudos experimentais de outras
resultantes da imaginação e não da enfermidades, na mesma época
investigação dos fatos. Bassi desenvolveu a hipótese de
Também se desenvolveu, du- que as doenças contagiosas - entre
rante o século XVIII, o conheci- as quais incluía o cólera - são
mento de que havia parasitas devidas a parasitas vivos.
visíveis no homem e nos animais - A observação de Bassi perma-
os vermes intestinais. Algumas ve- neceu, no entanto, como um caso
zes esses vermes eram observados isolado e à qual se deu pouca
durante febres, surgindo a importância, na época.
suposição de que eles poderiam ser Ehrenberg, famoso microbio-
a causa de doenças. No entanto, a logista alemão (1795-1876), escre-
própria origem dos vermes veu em 1836 uma obra sobre os
intestinais era desconhecida. Eles seres microscópicos que são obser-
pareciam surgir por geração vados em substâncias orgânicas em
espontânea dos restos de alimentos putrefação - os "infusórios". Nesse
que se deterioravam no intestino. trabalho, ele afirma:
Podiam ser a causa de doenças, mas
podiam ser também apenas um "Os infusórios invisíveis são oca-
efeito ou sintoma. sionalmente daninhos, mas apenas,
pelo que parece, matando peixes em
A partir da década de 1830, tanques, tornando a água turva,
começam a surgir indícios muito produzindo cheiros desagradáveis e
fortes a favor da idéia de que assustando pessoas supersticiosas. É
parasitas microscópicos ou visíveis improvável que eles causem malária,
podem ser a causa de doenças. Este praga e outras doenças - e isso nunca
foi mostrado de modo seguro. Durante
foi o início da fase moderna da a epidemia de cólera em Berlim, em
chamada "teoria microbiana das 1832, não vi nenhum fenômeno
doenças". anormal nas águas nem na atmosfera.
O primeiro caso em que se in- É verdade que existem minúsculos
vestigou um microorganismo que insetos na sarna e no pus. Mas todas
essas coisas, como (...) os animálculos
ocorria em uma doença foi no estu- do cólera, consistem apenas em
do de uma praga do bicho da seda. afirmações ou suposições."
Em 1835 o médico italiano Agosti-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 106

mos em excrementos de doentes


Logo a afirmação de com febre tifóide, e na urina de pes-
Ehrenberg seria derrubada pela ob- soas com cálculos renais.
servação. As primeiras relações Os mesmos pesquisadores es-
entre doenças humanas e microor- tudaram, em 1838, o processo de
ganismos foram confirmadas pelo putrefação de animais mortos. Des-
estudo microscópico em 1836, por creveram o gradual surgimento de
A. Donné. Ele estudou doenças microorganismos (mônadas e vibri-
venéreas de homens e mulheres, ões), cujo número vai aumentando,
analisando ao microscópio as secre- à medida que o organismo se de-
ções dos órgãos sexuais dos doen- compõe. Quando a quantidade de
tes. Na sífilis e na blenorragia microorganismos é muito grande, o
(gonorréia), ele não notou nenhum material em decomposição se torna
microorganismo. No cancro ou ba- alcalino, e surge o cheiro caracterís-
lanite, observou um "animálculo" tico dos materiais podres. Esses
que identificou como Vibrio estudos pareciam indicar que a pro-
lineola. Nas mulheres com vaginite, dução dos infusórios ocorre antes
descobriu a presença de flagelados da decomposição das substâncias,
desconhecidos, para os quais propôs sendo a causa e não o efeito desta.
o nome de Trico-monas vaginalis. O cheiro de substâncias podres
Observou que o muco vaginal, que poderia ser também apenas um efei-
normalmente é alcalino, adquiria to da ação dos microorganismos, o
um caráter ácido e, posteriormente, que enfraquecia a idéia dos mias-
recomendou o uso de duchas alcali- mas.
nas contra a vaginite. Nessa mesma época (1837 e
Donné procurou verificar se as 1838), foi feito um importante
secreções das doenças venéreas trabalho, que inicialmente não tinha
possuíam a capacidade de produzir relação com doenças, mas que logo
novamente a doença. Para isso, ino- se verá ser essencial para a compre-
culou sob a epiderme as secreções ensão das mesmas. Foi um estudo
de diferentes tipos e observou que de Cagniard-Latour sobre a fermen-
apenas o pus do cancro (o único que tação da cerveja. Os cervejeiros
apresentava vibriões), quando ino- preparavam inicialmente um caldo
culado, produzia pústulas no local. de cevada, no qual era colocada
Esses resultados sugeriam forte- certa quantidade de fermento
mente que o vibrião fosse a causa (levedo de cerveja). Esse levedo,
da doença. visto ao microscópio, parece ser
No ano seguinte (1837), os simplesmente um pó, com
médicos Beauperthuy e Roseuville partículas arredondadas. Quando o
confirmaram a presença de levedo é colocado no caldo de
"pequenos animais" no pus do can- cevada, mantido a uma temperatura
cro e de outras doenças venéreas. adequada, o líquido começa a
Também observaram microorganis- fermentar e espumar, produzindo-se
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 107

a transformação de açúcar em Em 1840, o microscopista Ja-


álcool e gerando a cerveja. cob Henle (1809-1885) apresentou
Nesse processo, produz-se na o seguinte argumento: como apenas
superfície da cerveja uma grande organismos vivos podem se multi-
quantidade de levedo, que é reco- plicar, a matéria mórbida que causa
lhido para ser usado depois. A doenças infecciosas deve ser
quantidade de levedo final pode ser orgânica. As doenças contagiosas
cinco ou mais vezes superior à seriam causadas por organismos
quantidade inicial - ou seja, o minúsculos que penetrariam em
levedo parece se reproduzir. nosso corpo e que se
Estudando o processo, Cagniard- desenvolveriam aí, depois de um
Latour conseguiu observar ao período de incubação mais ou
microscópio que as partículas do menos longo, durante o qual estari-
levedo eram "corpúsculos capazes am se reproduzindo. Henle explicou
de se reproduzir, e que ninguém havia descoberto esses
conseqüentemente organizados, e organismos pela imperfeição dos
não uma substância inerte ou microscópios.
puramente química, como se Além de propor essa hipótese,
supunha". Como esses corpúsculos Henle estabeleceu pela primeira vez
não eram dotados de movimento as condições necessárias para
próprio, Cagniard-Latour os consi- provar que um organismo particular
derou como vegetais microscópicos. é a causa de uma determinada
Ele observou que essas partículas doença. Seria necessário demonstrar
participavam da transformação do que o parasita está sempre presente;
açúcar em álcool e que só produ- seria preciso isolar o parasita e
ziam a fermentação quando estavam estudá-lo fora do organismo doente;
vivas: podiam ser destruídas pelo e deveria ser possível reproduzir a
calor, mas permaneciam vivas doença utilizando o parasita
mesmo a temperaturas negativas ou isolado. Algumas décadas depois,
quando secas. como veremos, um aluno de Henle,
Embora esse autor estivesse Robert Koch, restabeleceu e
preocupado apenas com a própria conseguiu aplicar com sucesso
fermentação, a analogia com as do- essas regras. No entanto, o próprio
enças não podia deixar de ser nota- Henle não conseguiu observar
da. Nas enfermidades contagiosas, nenhum microorganismo associado
parecia existir alguma substância (o a doenças.
vírus) que passava de uma pessoa Na época, o químico alemão
para outra e que aumentava em Justus von Liebig (1803-1873) se
quantidade, já que podia chegar a colocou contra essa hipótese, ata-
atingir milhões de pessoas. Essa cando também os trabalhos de Ca-
multiplicação do vírus era seme- gniard-Latour sobre as fermenta-
lhante ao que ocorria com os fer- ções. Para Liebig, a base de todos
mentos. os processos fisiológicos era pura-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 108

mente química. O fermento seria Nos vômitos, não eram encontra-


um tipo de catalisador, e não um ser dos.
vivo. Graças à influência de Liebig, As observações de Pouchet
Henle abandonou suas idéias. eram bem descritas e claras. No
Embora vários observadores entanto, não se deu importância à
começassem a descrever a presença sua descoberta, pois ainda não se
de microorganismos em pessoas ou aceitava que as doenças pudessem
animais doentes, a atitude geral era ser causadas por microorganismos.
cautelosa. Virchow notou que al- No mesmo ano em que Pouchet
gumas vezes certos microorganis- publicou seu estudo, outros pesqui-
mos podiam ser encontrados tanto sadores apresentaram trabalhos em
em pessoas doentes quanto em pes- que explicavam o cólera como uma
soas sadias (por exemplo, na difte- doença dos pântanos (como a malá-
ria). Concluiu que o microorganis- ria), sugerindo que deveria ser tra-
mo não poderia ser a causa tada com o mesmo remédio - o qui-
essencial da doença, senão todas nino. Um outro médico indicou que
essas pessoas estariam doentes. a defumação com madeiras resino-
Desde 1830, a Europa estava sas era um meio excelente para pre-
sendo invadida por sucessivas epi- venir o cólera. Ou seja: ainda se
demias de cólera. Vários autores - aceitava uma teoria miasmática
como Hahnemann e Bassi - haviam dessa doença.
sugerido que essa doença era cau- Um outro importante passo
sada por seres microscópicos vivos. ocorre em 1850. Nesse ano, Casimir
Mas não havia sido ainda observado Davaine (1812-1882) e Pierre Rayer
nenhum microorganismo associado (1793-1867) descobriram um bacilo
à doença. associado a uma doença: o antraz.
Em 1849, o naturalista francês O antraz, também chamado de
Félix Pouchet (1800-1876) detectou "carbúnculo" e "pústula maligna", é
microorganismos nos dejetos de uma doença que atinge animais e o
doentes de cólera. Ao observar no homem. Nos séculos XVIII e XIX,
microscópio os excrementos de essa moléstia produziu várias epi-
quatro coléricos, notou uma imensa demias no sul da Europa, devas-
quantidade de infusórios. O tipo tando criações de gado. O antraz
observado era conhecido como afeta vacas, carneiros, cabras, cava-
"Vibrio rugula". Era muito los e outros animais - geralmente
pequeno, tinha movimentos herbívoros. A doença produz tremo-
bruscos, rápidos, de onde vinha o res, dificuldades respiratórias e con-
nome de "Vibrio": vibrião, vulsões. Algumas vezes, há hemor-
corpúsculo vibratório. Segundo ragias pelas diversas aberturas do
Pouchet, esses vibriões só eram corpo. Podem surgir inchações es-
observados nos dejetos recentes, curas em diferentes partes do corpo.
com aparência de água de arroz. A maior parte dos animais morria
em poucos dias - às vezes, no
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 109

mesmo dia do início dos sintomas, O próprio Davaine, em um li-


outras vezes depois de vários dias. vro que publicou em 1860, mostra-
O cadáver dos animais mortos apre- se cético com relação à influência
senta um quadro de infecção geral, patogênica (isto é, produtora de
com sangue muito escuro que de- doenças) de microorganismos. Ele
mora a se coagular. O corpo apo- afirma que vários pesquisadores
drece muito rapidamente. procuraram detectar seres micros-
Em 1850, Rayer e Davaine ob- cópicos em animais contaminados
servaram no sangue de carneiros por diversas doenças, sem encontrá-
mortos pelo carbúnculo pequenos los. Nessa época, ele acredita que
corpos filiformes, tendo cerca do apenas os vegetais microscópicos,
dobro de comprimento de um gló- como os fungos, poderiam produzir
bulo sanguíneo. Esses pequenos doenças.
corpos não apresentavam movi- A cautela existente nesse perí-
mento espontâneo. Podiam ser baci- odo tinha um aspecto positivo:
los, mas podiam também ser partí- procurava-se evitar a aceitação de
culas inanimadas. hipóteses sem fundamentação. Era
Os dois pesquisadores resolve- necessário apresentar evidências
ram inocular animais sadios com o mais sólidas, para convencer a co-
sangue de carneiros doentes. Após munidade científica e médica da
alguns dias, os animais inoculados existência de uma relação de causa
morreram. Davaine e Rayer e efeito entre seres microscópicos e
notaram que seu sangue tinha a doenças. Isso só ocorreu mais tarde.
mesma aparência observada antes.
Como a quantidade de sangue inje-
tada era pequena e o sangue dos
animais inoculados estava repleto
pelos pequenos bastões, parecia que
eles tinham se reproduzido, tratan-
do-se portanto de seres vivos. No
entanto, tudo poderia ser também
interpretado de outra forma. Poderia
ser que alguma substância do san-
gue transmitisse a doença, e que a
doença, por sua vez, produzisse
esses bastões. Eles poderiam não
ser vivos e ser apenas um efeito da
doença.

FIGURA
ANTRAX1.TIF
O PROCESSO DE TRANSMISSÃO DAS
9 DOENÇAS

A DESCOBERTA DE SEM- Entre 1652 e 1862 foram re-


MELWEIS: OS MÉDICOS PO- gistradas 200 epidemias da doença.
DEM TRANSPORTAR A Era comum que, de cada dez mães,
MORTE uma ou mais morressem após o
parto. Freqüentemente, os bebês
Enquanto se faziam as primei- também morriam, com sintomas
ras descobertas de seres microscópi- parecidos. Em certos casos, nas
cos associados a doenças, uma linha fases mais intensas das epidemias,
de investigações completamente morriam todas as mulheres que en-
diferente levou à descoberta do travam nos hospitais. A
meio de transmissão de algumas enfermidade praticamente só
enfermidades. Neste capítulo vamos ocorria em hospitais - os partos
estudar a descoberta dos processos realizados em casa, por parteiras,
de transmissão da febre puerperal e raramente eram seguidos pela febre
do cólera. puerperal.
"Febre puerperal" é o nome de Atualmente, sabe-se que a do-
uma doença que ocorria nas mater- ença é uma forma de infecção gene-
nidades, matando milhares de mães ralizada, que começa no útero e se
e crianças. Esse nome descrevia a espalha por todo o corpo, causada
fase em que a enfermidade surgia: por estreptococos. A causa inicial
ela era observada no "puerpério" - o da infecção era a entrada de germes
período logo após o parto. por meio de mãos sujas, instrumen-
A doença era conhecida desde tos cirúrgicos contaminados, con-
a Antigüidade, mas aumentou muito tato com roupas infectadas, etc.
a partir do século XVII. Coinciden- Como o útero ficava ferido após o
temente, essa foi a época em que os parto, tornava-se fácil ocorrer uma
médicos começaram a se dedicar infecção. Os sintomas iniciais eram
aos cuidados do parto. Antes disso, febre, delírio, dores muito intensas.
o nascimento das crianças era A infecção atingia todos os órgãos
acompanhado apenas por parteiras. e, naquela época, a morte era quase
sempre a conseqüência final.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 111

No fim do século XVIII, havia que melhoraram muito as estatísti-


várias teorias sobre a causa da febre cas.
puerperal. Uma delas dizia que a Alexander Gordon, em 1795,
causa era a supressão da hemorragia sugeriu que os médicos e enfermei-
posterior ao parto (isso na verdade é ras transferiam a febre puerperal
um sintoma e não a causa). Outra das doentes para as sãs:
teoria dizia que a causa era o acú-
mulo de leite dentro do corpo da "Tenho prova inquestionável de
mulher, após o parto, pois a autóp- que a causa da doença é uma infecção
ou contágio específico. Essa
sia dos cadáveres mostrava que enfermidade ataca apenas as mulhe-
muitos órgãos estavam cheios de res que são visitadas ou acompanha-
um líquido branco (na verdade, não das no parto por um praticante ou
se tratava de leite e sim pus). Outros enfermeira que antes atendeu pacien-
pensavam que a doença era um dis- tes afetados pela doença. Qualquer
pessoa que esteve com uma paciente
túrbio dos humores (uma "condição de febre puerperal se torna carregada
gástrico-biliosa"). Também se atri- por uma atmosfera de infecção, que se
buía a febre puerperal a fatores comunica a toda mulher grávida que
emocionais como medo, vergonha, entre dentro de sua esfera."
etc.
Desconfiava-se ainda de fato- Gordon recomendava que as
res externos, atmosféricos - mias- roupas de cama e pessoais de paci-
mas, influências cósmicas ou terres- entes infectadas fossem queimadas;
tres. Também parecia existir o con- recomendava também que os médi-
tágio: logo que a enfermidade apa- cos e enfermeiras se lavassem total-
recia em uma pessoa, no hospital, mente e que passassem suas roupas
outras pessoas também adoeciam. pela fumaça. Mas suas idéias não
Na Inglaterra, a teoria mais popular foram aceitas.
era a do contágio pelo ar. Charles Houve casos em que se sentiu
White, em um livro publicado em a necessidade de tomar medidas
1773, atribuiu a febre puerperal às enérgicas contra epidemias de febre
más condições de realização dos puerperal. Em 1829, a mortalidade
partos na Inglaterra. Adotou medi- por febre puerperal era tão grande,
das de limpeza, ar fresco e tempera- que Robert Collins, chefe do Hospi-
tura ambiente adequada, além de tal de Dublin esvaziou a materni-
separar as doentes das sãs. Depois dade, para purificá-la e eliminar os
que uma doente morresse ou se "vapores da doença". Encheu os
recuperasse, devia-se limpar o quar- quartos com gás clorídrico, com
to, lavar cortinas e roupas de cama, todas as aberturas seladas. As pare-
e purificar o chão e os móveis, com des e chãos foram lavados com clo-
vinagre. De acordo com nossos co- reto de cálcio em forma de pasta.
nhecimentos atuais, a explicação Os móveis foram pintados. As
que ele adotou está errada, mas sua paredes e teto foram lavadas de
hipótese levou a medidas higiênicas novo com cal. Roupas de cama
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 112

foram lavadas e depois tratadas em Em setembro e outubro, baixou para


uma estufa a 120-130 graus 14%. Em média, de cada seis
Fahrenheit. A mortalidade, logo mulheres que entravam na
depois, caiu a apenas 5 casos em maternidade, uma saía morta.
mil. O sucesso da medida parecia Semmelweis procurou
indicar que a causa da enfermidade explicações para a febre puerperal.
estava impregnada no prédio e nos Através de um estudo cuidadoso,
objetos do hospital, transmitindo-se foi excluindo as várias causas que
pelo ar. No entanto, outros médicos haviam sido sugeridas.
perceberam indícios de contágio por Uma das explicações preferi-
pessoas. das era a de causas atmosféricas,
Em 1843, o norte-americano como miasmas ou variações
Oliver Wendell Holmes (1809- climáticas. Semmelweis construiu
1894) afirmava que "A doença tabelas de mortalidade, com os
conhecida como febre puerperal é dados de vários anos, e observou
tão contagiosa que é que havia uma mortalidade grande,
freqüentemente carregada de constante, em todas as épocas do
paciente a paciente pelos médicos e ano, com qualquer tipo de clima.
enfermeiras". Holmes sugeriu que Além disso, sabia-se que as pessoas
os médicos que tratassem de que preferiam realizar o parto em
pacientes com febre puerperal não suas casas raramente ficavam
deviam atender partos. Se isso não doentes, o que parecia excluir
pudesse ser evitado, deveriam lavar qualquer causa atmosférica,
cuidadosamente suas mãos com cósmica ou telúrica. Quando a
cloreto de cálcio e trocar de roupas epidemia se intensificava e a
após deixar a paciente com febre. maternidade era fechada, as mortes
Apesar dos argumentos apre- diminuíam.
sentados por Holmes, suas propos- A causa devia estar dentro do
tas não foram aceitas. Foi apenas o próprio hospital. No entanto,
trabalho do médico húngaro Ignaz mesmo dentro do prédio, ocorria
Philipp Semmelweis (1818-1865) um fato inexplicável. Em geral, a
que proporcionou evidências claras mortalidade na divisão de Sem-
sobre o processo de transmissão da melweis era quatro vezes maior do
enfermidade. que na Segunda Clínica. Como am-
Em 1846, Semmelweis iniciou bas ficavam no mesmo prédio,
seu trabalho em Viena. Havia duas Semmelweis começou a procurar a
divisões na maternidade. Ele traba- causa dessa diferença, convencido
lhava na Primeira Clínica de que havia fatores nocivos dentro
Obstétrica, na qual eram instruídos dos limites da Primeira Clínica
os estudantes de Medicina. A Obstétrica.
mortalidade média das parturientes, Era fato bem sabido, na cida-
de maio a julho de 1846, foi de de, que a mortalidade na Primeira
12,23%. Em agosto subiu a 18,05%. Clínica era grande. Sugeriu-se que o
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 113

próprio medo da Primeira Clínica deitadas de costas. Semmelweis


poderia influir nas pacientes, enfra- mudou a posição das parturientes na
quecê-las e produzir a febre puerpe- Primeira Clínica, apesar de grande
ral. Semmelweis, no entanto, afas- resistência dos médicos e das enfer-
tou essa possibilidade. Por um lado, meiras. Não houve melhora, e retor-
o medo só poderia ter surgido após nou-se à posição anterior.
um período em que a mortalidade Semmelweis obteve a
na Primeira Clínica fosse maior do informação de que no mesmo
que na Segunda. Por outro lado, não hospital, anteriormente, haviam
se podia conceber como o medo sido seguidos os métodos ingleses
poderia produzir uma doença tão de higiene e a mortalidade havia
grave e mortal. caído a 1,3% durante 20 anos. Com
Semmelweis tomava hipótese a mudança do diretor, que não
por hipótese, analisava as evidên- aceitava a teoria do contágio, os
cias, e ia excluindo uma por uma. métodos foram abandonados e a
Mesmo as sugestões mais estranhas mortalidade havia aumentado. O
eram levadas em conta, pois próprio Semmelweis não acreditava
tratava-se de um problema no contágio da febre puerperal
gravíssimo: estava em jogo a vida através do ar, pois nesse caso a
de centenas de mulheres. epidemia deveria ser ainda pior.
Na Primeira Clínica, as Na verdade, Semmelweis não
doentes de febre puerperal eram tinha inicialmente nenhuma idéia
isoladas em uma sala especial. sobre a causa da enfermidade ou
Eram visitadas pelo padre, que sobre sua transmissão.
passava antes pelos quartos onde O fato que veio lhe trazer uma
estavam as mulheres sadias, com repentina compreensão desse pro-
um sacristão tocando um sino. blema foi a morte de um colega.
Sugeriu-se que isso podia criar um Seu amigo Jakob Kolletschka,
terror muito grande entre as professor de Medicina Legal, feriu-
mulheres e aumentar a doença. Na se com o bisturi ao realizar uma
Segunda Clínica, pelo contrário, o autópsia. A ferida se infectou e
padre chegava às doentes sem seguiu-se uma infecção geral,
passar pelas outras. Semmelweis chamada "piemia", da qual ele
conseguiu fazer com que o padre faleceu poucos dias depois.
desse uma volta por fora dos quar- Semmelweis ficou chocado com a
tos das parturientes e que o sacris- morte e, ao mesmo tempo,
tão não tocasse mais o sino. As informando-se sobre os detalhes,
mortes continuaram, sem mudança. percebeu que os sintomas do amigo
Notou-se uma outra diferença tinham sido idênticos aos das
entre os dois setores da materni- mulheres com febre puerperal.
dade. Na Segunda Clínica, as partu-
rientes eram colocadas de lado, du- "Dia e noite essa figura da doen-
rante o parto. Na Primeira, eram ça de Kolletschka me perseguia, e com
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 114

uma determinação cada vez maior, fui savam para o cuidado das pacientes,
obrigado a reconhecer a identidade da levando consigo um cheiro nause-
doença de que Kolletschka havia
morrido, com a enfermidade de que eu
ante.
havia visto tantas puérperas morrerem.
(...) FIGURA
A causa que havia excitado a DISSECA.TIF
doença do professor Kolletschka era
conhecida, ou seja, a ferida produzida
pela faca de autópsia contaminada ao
Semmelweis percebeu que aí
mesmo tempo por material do cadáver. estava o problema. Durante o
Não foi a ferida, mas a contaminação exame dos cadáveres, algumas
da ferida pelo material cadavérico que "partículas cadavéricas" se
foi a causa da morte. Kolletschka não prenderiam às mãos dos médicos e
foi o primeiro a morrer dessa forma.
Devo reconhecer que, se a doença de
não seriam removidas pelo processo
Kolletschka é idêntica à doença de que apressado de lavagem, como o
vi tantas puérperas morrerem, então próprio cheiro mostrava. Depois, ao
nas puérperas ela deve ter sido examinar as mulheres grávidas ou
produzida pela mesma causa em trabalho de parto, a mão
geradora, que a produziu em
Kolletschka. "
contaminada passaria para os
órgãos genitais dessas pessoas al-
Efeitos semelhantes devem ter gumas partículas cadavéricas, que
causas semelhantes. Mas o que se espalhariam pelo sangue, produ-
poderia haver de semelhante entre zindo a doença. A causa da febre
uma mulher que fica doente após o puerperal seria igual à causa da
parto, e um médico que se infecci- morte de Kolletschka: infecção por
ona pela ferida de um bisturi sujo? contato com substâncias de cadáve-
Ao longo de dois meses, res.
Semmelweis pensava e repensava Note-se que Semmelweis está
sobre a semelhança entre os dois utilizando algumas idéias antigas:
tipos de morte. Por fim, concluiu relação entre mau cheiro e doenças,
que deviam ter entrado "partículas produção de algum tipo de veneno
cadavéricas" no corpo das por materiais podres. O elemento
mulheres. E isso deveria ter sido novo era afirmar que o transporte
causado pelos próprios médicos que desse material venenoso seria feito
as examinaram. pelos próprios médicos.
Os estudantes e os médicos da Semmelweis não está supondo
Primeira Clínica praticavam com a existência de um contágio, propri-
grande dedicação a dissecação de amente dito. Ele acreditava que o
cadáveres. Após isso, lavavam material em decomposição de qual-
apressadamente suas mãos com quer cadáver, independentemente
água (nem sempre usando sabão) e da causa de sua morte, era capaz de
as enxugavam em toalhas sujas ou produzir a febre puerperal. De certa
em seus próprios aventais. Daí pas- forma, portanto, sua concepção era
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 115

semelhante à dos miasmas, que ta- essa desinfecção inicial, consi-


mbém não eram específicos. derava-se que bastava lavar as mãos
A hipótese de Semmelweis com água e sabão, entre os exames
explicava a diferença observada das várias doentes.
entre a Primeira e a Segunda Clíni- O resultado foi muito bom. A
cas. Na Primeira, tinham acesso os mortalidade por febre puerperal,
estudantes de medicina. Na que em maio de 1847 ainda era de
segunda, eram treinadas apenas as 12%, caiu em junho a 2,4%, em
parteiras. Os primeiros realizavam julho foi de 1,2% e em agosto de
autópsias; as segundas, não. 1,9%. A mortalidade tornou-se
Vários fatos se tornaram signi- aproximadamente igual à da
ficativos, de repente. As pessoas Segunda Clínica. Portanto, parecia
que tinham seus partos em casa que Semmelweis havia descoberto a
eram em geral atendidas por partei- diferença entre as duas divisões.
ras, ou clínicos que não praticavam Apesar do sucesso prático, o
autópsias, e por isso não eram con- superior de Semmelweis, diretor do
taminadas. Hospital, não aceitou suas idéias e
Semmelweis percebeu que ele se recusou à proposta de formar
próprio tinha sido responsável pela uma comissão para estudar o as-
morte de muitas mulheres. Quase sunto. Houve também resistências
todos os dias, pela manhã, antes de entre os estudantes e professores à
atender às mulheres, ele realizava adoção do método de desinfecção.
autópsias de cadáveres e, depois, ia O cloro produzia forte irritação da
examinar as pacientes. pele e o seu cheiro desagradável se
Se a hipótese estiver correta, espalhava pelo prédio. Em setem-
pensou Semmelweis, o modo de bro, um estudante ridicularizou o
evitar a enfermidade é destruir as método de Semmelweis e se
partículas cadavéricas nas mãos, recusou a tomar as precauções
por meios químicos. Em maio de indicadas. Nesse mês, a mortalidade
1847, ele começou a usar uma aumentou para 5,2%. Semmelweis
solução de cloro, pois já se sabia descobriu o estudante e o puniu. A
que o cloro impedia a putrefação e mortalidade diminui novamente.
eliminava o mau-cheiro. Depois, No entanto, no mês seguinte,
começou a usar cloreto de cálcio, houve novo problema. Embora to-
que era mais barato. Essa dos os cuidados estivessem sendo
substância, misturada com água, era respeitados, doze mulheres que
colocada em bacias no fundo das estavam todas na mesma fileira de
quais havia areia lavada. A areia era camas ficaram doentes e onze delas
utilizada para esfregar as mãos. morreram de febre puerperal.
Todos os estudantes e professores
que entravam na clínica deviam FIGURA
lavar e esfregar suas mãos, antes de SEMMEL1.TIF
poderem atender às pacientes. Após
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 116

Semmelweis logo entendeu A partir de então, Semmelweis


que ainda não tinha conseguido en- modificou seu procedimento: era
contrar a explicação completa nem necessário desinfetar as mãos com o
o método seguro de prevenir a febre cloreto de cálcio depois de qualquer
puerperal. Analisando esse caso, ele contato com alguém que tivesse fe-
logo se convenceu de que a doença ridas ou alguma doença de onde
devia ter sido transmitida às mãos pudesse sair algum material pútrido.
dos estudantes e médicos depois Posteriormente, como mesmo essa
que eles haviam entrado na Clínica. medida não se mostrou suficiente,
Notou então que, na fileira de mu- adotou o procedimento de isolar das
lheres que haviam morrido, a pri- demais pacientes qualquer pessoa
meira paciente já tinha ingressado que tivesse alguma doença que pu-
no hospital com uma doença do desse infectá-las.
útero, da qual saía um líquido com Após a adoção desses cuida-
odor fétido. Após examiná-la, dos, a mortalidade permaneceu
Semmelweis e seus estudantes havi- baixa (geralmente entre 1 e 2%).
am apenas lavado as mãos com sa- Aparentemente, a febre puerperal
bonete, e passado a examinar as pa- havia sido superada.
cientes seguintes, que depois adoe- Note-se que não houve qual-
ceram com febre puerperal. quer menção, aqui, a estudos mi-
Semmelweis concluiu que o croscópicos ou químicos, nem dis-
material transmitido da primeira cussão sobre a natureza do material
paciente para as outras havia pro- cadavérico infeccioso. Semmelweis
duzido a enfermidade. Embora não não discutiu se a causa da febre
se tratasse propriamente de "matéria puerperal era algum tipo de germe
cadavérica", o líquido que saía da vivo ou qualquer outro tipo de
ferida do útero podia ser conside- agente. De fato, Semmelweis nunca
rada como um material em decom- estudou esses aspectos. Seu
posição, tendo propriedades seme- objetivo principal era a prevenção
lhantes ao material de um cadáver. da febre puerperal e, tendo atingido
Note-se que, a rigor, a hipóte- esse fim, sua maior preocupação era
se inicial de Semmelweis teve que que o método se difundisse e fosse
ser rejeitada. A causa da mortali- usado em outros hospitais.
dade não era apenas o transporte de A recepção da descoberta de
material dos cadáveres para as paci- Semmelweis foi muito lenta. Em
entes. Existe uma semelhança entre parte, pode-se entender isso como
os dois casos, mas não uma identi- uma reação contra a idéia de que os
dade. Apesar disso, Semmelweis próprios médicos eram responsáveis
continuou a se referir sempre à pela morte das pacientes - ninguém
"matéria cadavérica", o que produ- queria admitir isso. Por outro lado,
ziu muita confusão sobre suas idéi- a divulgação das idéias de Sem-
as. melweis foi muito imperfeita. Ele
próprio demorou vários anos para
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 117

publicar seu trabalho. Outras pesso- idéias muito parecidas com as suas.
as divulgaram aquilo que ele estava No entanto, não basta sugerir uma
fazendo, mas às vezes de modo idéia: é necessário examinar as vári-
incompleto. Difundiu-se a idéia de as sugestões existentes, testá-las, ir
que ele explicava a febre puerperal eliminando as alternativas até isolar
apenas através da infecção por ma- uma hipótese que explique todos os
téria proveniente de cadáveres. No fatos conhecidos. Apenas Sem-
entanto, em vários hospitais eu- melweis se deu ao trabalho de fazer
ropeus, as pessoas que atendiam aos esse trabalho cuidadoso de experi-
partos não praticavam autópsias - e, mentação e de análise.
apesar disso, havia muitas mortes Depois que seu trabalho teve
por febre puerperal. Isso parecia sucesso, Semmelweis procurou
indicar que Semmelweis estava er- difundi-lo, mas de forma pouco
rado. hábil, conseguindo mais inimigos,
Em Viena, a oposição de im- por sua agressividade. Apenas de-
portantes médicos fez com que pois de sua morte, na década de
Semmelweis fosse perseguido. Em 1880, se generalizaram os cuidados
1850, ele abandonou a Áustria e foi de limpeza no tratamento
para sua terra natal - a Hungria. Lá, obstétrico. Isso ocorreu lentamente,
começou a trabalhar no hospital de em geral sem se reconhecer o valor
Budapeste - inicialmente, de graça. do trabalho de Semmelweis, que foi
Nesse hospital ele também conse- criticado em vida e esquecido após
guiu reduzir a mortalidade, que era sua morte.
alta, para cerca de 1%.
Embora o principal trabalho
da vida de Semmelweis tenha sido o A TRANSMISSÃO DO CÓLE-
combate à febre puerperal, ele tam- RA PELA ÁGUA
bém aplicou idéias semelhantes à
cirurgia. As operações simples, Quando se pensava no contá-
como a retirada de pólipos do útero, gio indireto das enfermidades,
eram geralmente seguidas pela quase sempre se imaginava que ele
morte da paciente por piemia. No ocorria através do ar. Foi em
entanto, tomando os mesmos cuida- meados do século XIX que se
dos de desinfecção que já foram descobriu que uma das mais
explicados, ele fazia essas terríveis doenças da época - o cólera
operações sem perder uma só - podia ser transmitido através da
paciente. E comentava: "Eu atribuo água.
esses resultados favoráveis apenas O cólera foi pouco conhecido
ao fato de que opero com as mãos na Europa até o século XIX. Existi-
limpas". am notícias sobre ele na Índia, onde
Como foi mostrado no início ocorria sempre, com maior ou me-
deste capítulo, outras pessoas antes nor intensidade. No século VII, um
de Semmelweis já haviam sugerido médico indiano, Sushruta, já havia
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 118

descrito uma epidemia de cólera. Os Rússia em 1823. No entanto, não


portugueses entraram em contato penetrou no resto da Europa.
com essa enfermidade durante o Houve uma grande preocupa-
século XVI. Aparentemente, na ção com essa epidemia de cólera,
região do Gânges, essa enfermidade entre os europeus, pois pela primei-
sempre existiu, de forma endêmica, ra vez se presenciava a expansão
com maior ou menor intensidade. quase ilimitada de uma doença que
Apesar de ser conhecido, o se pensava só ocorrer na Índia, no
cólera era algo remoto e de pequena verão.
importância para os europeus, até Não se compreendia a causa
que, em 1814, um batalhão inglês da enfermidade. Ela não parecia
foi dizimado pela enfermidade, na associada a deficiências
Índia. Havia, na época, dois bata- alimentares, pois atingia toda a po-
lhões em marcha de Jaulnah para pulação de diferentes regiões. O
Trichinopoli. Um deles nada sofreu, clima também não parecia ser de-
mas o outro teve grande número de terminante, já que a epidemia atra-
mortos pela doença. Na época, os vessou diferentes épocas de vários
indianos acreditaram que a anos, sem se extinguir. Havia indi-
epidemia era uma conseqüência da cações de que a doença era contagi-
ira dos deuses, que haviam sido in- osa, pois sua expansão seguia as
sultados pela poluição de certos rotas comerciais. No entanto, ob-
tanques sagrados na aldeia de servou-se que a remoção dos habi-
Cunnatae. Esses tanques haviam tantes de uma aldeia atingida pelo
sido utilizados pelos soldados para cólera para um novo local
se banharem. Dois dias depois, eliminava a epidemia, o que parecia
centenas deles morreram. indicar que era o próprio lugar que
Em 1817, o cólera aumentou produzia a doença e que ela não era
de intensidade na Índia. Em agosto transportada com as pessoas. Por
desse ano, houve dez mil mortos na esse motivo, imaginou-se que eram
região do Behar e Jessore. Em se- inúteis medidas de quarentena.
tembro, matou 20.000 homens da Nessa época, surgiram explicações
armada inglesa. Ainda no mesmo como a do médico inglês Reginald
ano, o cólera matou cerca de cem Orton, que afirmava que o cólera
mil habitantes de Java e Malaca - era "devido a uma ação nervosa
um décimo da população. Durante o deficiente produzida por uma aera-
inverno, a enfermidade ficou ção reduzida do sangue, que por sua
"adormecida", mas reapareceu em vez depende de um clima desequili-
março de 1818 por toda a Índia. brado que se segue a uma deficiên-
Daí, espalhou-se gradualmente por cia de fluido elétrico na atmosfera".
outros países da Ásia, atingindo a Outra onda dessa doença se
China, as Filipinas, o Japão, a Síria iniciou em 1826 e seguiu aproxima-
e a Pérsia em 1822; daí passou para damente o mesmo caminho, espa-
a Turquia e chegou à fronteira da lhando-se depois da Rússia para a
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 119

Polônia, Alemanha e pelo resto da epidemia chegou ao Rio de Janeiro


Europa. Daí, alastrou-se e atingiu a em 1854, matando 3.400 pessoas
América. Essa "pandemia" - que em quatro meses.
atingiu o mundo todo - somente No Brasil, esta enfermidade
cessou em 1837. reapareceu recentemente, em torno
Durante essa segunda pande- de 1990, depois de ter desaparecido
mia, em Paris, houve 34.000 doen- por muito tempo. Por causa dessa
tes em 1834. Isso correspondia a ocorrência recente, a população
4% da população da cidade. Mais sabe hoje vagamente que é um pro-
da metade dos doentes morria. blema grave, que pode matar as
Estima-se que, nas duas primeiras pessoas. As campanhas sanitárias
grandes epidemias, houve mais de nunca informam sobre os sintomas
40 milhões de vítimas, em todo o dessa doença, por medo talvez de
mundo. chocar as pessoas. Mas é importante
O caminho do cólera seguia as saber como é o cólera, para com-
vias de comunicação: aparecia pri- preender por que é tão importante
meiramente nos portos, depois se evitá-lo. Vamos descrever a evolu-
espalhava seguindo as estradas e ção dessa terrível doença.
rios. Era por isso provável que esti- Uma pessoa acometida por
vesse passando de uma pessoa para essa enfermidade sente,
outra. Mas ninguém sabia o modo inicialmente, uma indisposição
exato como essa enfermidade se geral, às vezes tendo vertigem,
transmitia, e os lugares onde se pro- desfalecimento sem causa aparente,
curava bloquear a doença através da sensação de estar afundando. Logo
quarentena dos navios eram tão depois, surgem diarréia e vômitos.
atingidos como os demais. Acredi- Há falta de apetite, fraqueza, sensa-
tava-se que a doença se espalhava ção de frio nos pés. Sente-se às
pelo ar; também se supunha que vezes dores acima dos olhos, e no
pudesse haver a produção de um ventre. Essa primeira fase pode
veneno no solo, que impedia a durar alguns dias, mas em geral é
transpiração, congestionava os in- curta.
testinos e levava à inflamação do No segundo período, há uma
corpo. diarréia abundante, súbita, sem ar-
Seguiram-se outras duas pan- dor, sem contrações. Depois de
demias, de 1846 até 1863 e de 1854 evacuar as matérias fecais contidas
até 1875. Pode-se dizer que nenhum nos intestinos, sobrevém uma diar-
outro tipo de doença causou tantas réia líquida, de cor branca, leitosa,
mortes e tanto terror no século XIX contendo grumos, sem cheiro forte,
quanto o cólera. Durante o período semelhante à água em que se lavou
de 1847 a 1848, adoeceram na Rús- arroz. Os líquidos são expelidos de
sia 1.700.000 pessoas, havendo modo quase constante, sem que o
cerca de 40% de mortes. Em Paris, doente tenha consciência disso.
em 1848, houve 11.000 vítimas. A
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 120

Surgem náuseas e, às vezes, vômi- não forem umedecidos, pode-se


tos, que também são leitosos. produzir a cegueira.
A diarréia e os vômitos produ- Essa terceira fase pode durar
zem uma grave desidratação do do- poucas horas, ou prolongar-se por
ente, que fica rapidamente magro, até dois dias.
como se estivesse secando. Os ali- Se o organismo não começar a
mentos e líquidos ingeridos não são se recuperar, segue-se o período
absorvidos pelo organismo. final. A carne fica mole como
Os doentes sentem frio. O massa de pão. A pele se torna
pulso se enfraquece, o ventre fica violeta. Formam-se equimoses que
mole, vazio. Podem aparecer câim- vão aumentando e se reunindo até
bras muito fortes. Há violentas con- formar placas escuras. A respiração
trações musculares dos membros e é demorada, os batimentos do
do tronco que causam dores muito coração ficam fracos. O sangue é
vivas. O pulso se acelera. A face viscoso, negro, coagula-se
fica pálida, os olhos se afundam, lentamente, tem a aparência de uma
cercados por uma auréola roxa. A geléia grossa e escura. Quem chega
voz se torna rouca. a essa fase não se salva. A morte
Essa segunda fase pode durar ocorre em poucas horas.
apenas algumas horas, ou prolon- Toda essa terrível seqüência
gar-se por até três dias. durava, em média, dois dias. Uma
Na terceira fase, continuam as pessoa pode se sentir bem ao se
dejeções e os vômitos aquosos. levantar, e estar morta à noite. A
Como conseqüência da perda de mortalidade variava entre 1/3 e 2/3
líquido do organismo, há uma ex- dos doentes.
trema fraqueza, o sangue se torna Quando a enfermidade surgiu
espesso e escuro, a circulação fica na Europa, eram utilizados os tra-
fraca, a pele fica insensível. Há fe- tamentos conhecidos para outras
bre, transpiração, sensação de falta doenças: clisteres para "limpar o
de ar, a urina desaparece ou diminui intestino", sangrias "para retirar o
muito. As câimbras continuam. O sangue doente". Quando se perce-
doente sente muita sede. A respira- beu que a absorção de líquidos ces-
ção é difícil e ansiosa. As mãos, pés sava e que isso produzia a maior
e o fundo da face adquirem uma cor parte dos sintomas, surgiu a idéia de
azulada. Os pés e mãos ficam frios. injetar diretamente água nas veias
Até o hálito fica frio. A pele das dos doentes. Posteriormente, o mé-
mãos se enruga como quando é dei- todo foi aperfeiçoado e levou ao
xada muito tempo dentro da água. soro moderno. Atualmente, se o
O círculo em volta dos olhos se tratamento é iniciado logo no início,
afunda mais ainda, tornando-se es- quase todos os doentes podem ser
curo. Fica difícil ver os olhos do salvos.
doente. Os olhos ficam secos, e se Foi durante uma das epide-
mias, em meados do século XIX,
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 121

que se começou a compreender o produzido a morte de Barnes, 15


modo de transmissão do cólera. Um dias depois. E "alguma coisa" deve
dos pesquisadores que contribuiu ter depois passado de Barnes para a
para essa compreensão foi John esposa, desta para a mãe, etc.
Snow, médico inglês, que descreveu Em seu livro, Snow conta que
suas observações e conclusões em o primeiro caso de cólera em Lon-
um livro intitulado Sobre o modo de dres, na epidemia que começou em
comunicação do cólera, publicado 1848, foi de um marinheiro, chama-
em 1855. do John Harnold, que havia
Snow estudou o modo como chegado de Hamburgo, onde a
apareceu e se espalhou a doença, enfermidade já havia se espalhado.
para tentar compreender o modo de O marinheiro morreu no dia 22 de
transmissão. Ele contou que, em setembro de 1848, em uma
1832, o cólera apareceu em uma hospedaria, com todos os sinais do
aldeia inglesa, em York, aparente- cólera. Durante alguns dias, não
mente sem causa nenhuma. No dia houve outros casos. Mas na semana
28 de dezembro desse ano, um la- seguinte, uma pessoa que se
vrador, John Barnes, teve forte diar- hospedou no mesmo quarto em que
réia, convulsões, e no dia seguinte Harnold morreu, ficou doente,
estava morto. A esposa do lavrador morrendo no dia 30 de setembro.
ficou doente, mas não morreu. A "Alguma coisa" devia ter ficado no
sua mãe, que cuidou dela e lavou quarto, produzindo a morte da
suas roupas, ao voltar para casa, segunda pessoa.
sentiu tonturas e caiu. Dois dias Nem sempre, no entanto, era
depois, ela, o marido e a filha mor- necessário um contato direto com
reram. Aparentemente, a doença de um doente ou com seus objetos para
John Barnes havia sido transmitida que o cólera fosse transmitido. Em
à esposa e à sogra, e desta à sua alguns casos, a doença atingia os
família. Mas como o próprio John moradores de várias casas vizinhas,
Barnes havia adquirido a doença, se sem que tivesse havido contato
ninguém na região tinha tido direto entre eles. Parecia que o
cólera? A investigação do caso agente causador do cólera podia se
mostrou que a irmã de Barnes havia transmitir até uma certa distância
morrido de cólera, 15 dias antes, em dos doentes. Por outro lado, nem
Leeds. Como ela não tinha parentes sempre o contato com um doente,
na cidade, suas roupas haviam sido ou ficar no quarto de um doente,
colocadas (sem serem lavadas) em produzia a enfermidade.
um baú e haviam sido enviadas para A partir de alguns poucos ca-
o irmão, John Barnes. Ao receber o sos iniciais, a doença se espalhou
baú, ele o abriu e examinou as rou- pelo país. Em 1849, morreram em
pas. No dia seguinte ficou doente e, Londres 53.000 pessoas de cólera,
no outro, morreu. "Alguma coisa" de uma população total de cerca de
que havia ficado nas roupas deve ter 2 milhões.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 122

O que era essa coisa que que produz todos os distúrbios


transmitia o cólera? Ninguém sabia observados.
exatamente o que poderia ser, mas John Snow raciocinou que, se
como a doença pode ir passando de essa causa é introduzida e se mul-
uma pessoa para várias, e atingir tiplica no canal alimentar, seria ra-
milhares ou até milhões de pessoas, zoável supor que ela também sai e
era algo que podia ir aumentando se espalha com os dejetos (vômitos
em quantidade. Para nós, isso é um e fezes) dos doentes e não com sua
sinal evidente de que se trata de um respiração, suor ou outro veículo.
microorganismo que se reproduz e É claro que ninguém ingere os
multiplica. Mas, na época, a conclu- dejetos de um doente consciente-
são cautelosa de John Snow foi mente. Mas ocorre que as evacua-
bastante vaga: "Doenças transmiti- ções esbranquiçadas dos doentes de
das de pessoa a pessoa são causadas cólera não possuem a cor nem o
por alguma coisa que passa dos cheio de fezes, podendo passar
enfermos para os sãos e que possui despercebidas em lençóis e roupas
a propriedade de aumentar e se brancas. Outras pessoas poderiam
multiplicar nos organismos dos que sujar as mãos sem notar e, se não
são atacados por ela". lavassem as mãos antes de comer,
Como já vimos, nessa mesma iriam ingerir uma pequena quanti-
época Félix Pouchet havia encon- dade desses dejetos, que seria sufi-
trado os vibriões nos dejetos de ciente para produzir a doença. Snow
doentes do cólera; mas essa desco- indicou que alguns fatores agravan-
berta não teve grande repercussão. tes da transmissão ocorriam quando
Surgiu a hipótese de que um várias pessoas dormiam no mesmo
"veneno mórbido" se espalhava quarto, quando comiam no próprio
pelo ar, em volta dos doentes, cômodo em que estava um doente e
transmitindo o cólera aos que quando não havia água disponível
estivessem próximos. Snow, no para o asseio.
entanto, não considerou essa Note-se que, embora Snow
explicação boa. Se a enfermidade estivesse se baseando no conheci-
fosse adquirida pela respiração, mento de um grande número de
deveria surgir algum tipo de fatos, ele não podia ver nem reco-
sintoma ligado aos pulmões. Mas o nhecer a causa da enfermidade, e
cólera se manifestava basicamente por isso sua explicação era apenas
no canal alimentar e não no sistema uma hipótese engenhosa, mas sem
respiratório (ao contrário da gripe, possibilidade de comprovação dire-
por exemplo). Por isso, Snow supôs ta.
que o agente produtor do cólera é A hipótese de Snow explicava
introduzido primeiramente no canal como a doença podia passar de uma
alimentar: seria alguma coisa en- pessoa para outra, ou como podia
golida acidentalmente, que se repro- acometer pessoas que tivessem
duz no estômago e nos intestinos e contato com as roupas ou objetos de
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 123

um doente. Mas, às vezes, a O pior caso desse tipo, que se


enfermidade se espalhava sem con- tornou tristemente famoso, foi o
tato direto. Como isso poderia ocor- ocorrido em Broad Street, em 1854.
rer? Em um trecho de menos de 200
Snow imaginou que a água metros dessa rua, em um intervalo
utilizada na lavagem das roupas de 10 dias, houve 500 mortes (um
sujas dos doentes e mesmo as suas quinto dos moradores). Verificou-se
dejeções poderiam se misturar à que todos utilizavam a água retirada
água utilizada por outras pessoas de um mesmo poço, com uma
para uso doméstico e contaminá-las. bomba manual. Próximo a esse lo-
Isso poderia ocorrer tanto pela infil- cal, havia um asilo de pobres, com
tração dos dejetos no solo, atin- 535 pessoas. Somente 5 morreram
gindo poços; ou pelos esgotos lan- de cólera, no mesmo período, pois
çados em rios, de onde a água fosse utilizavam outra fonte de água. Da
retirada para ser utilizada nas casas. mesma forma, os operários de uma
Isso explicaria o motivo pelo qual cervejaria no mesmo local não tive-
as famílias que moravam em casas ram nenhum caso de cólera, pois ao
próximas e que utilizavam a mesma invés de tomarem água só bebiam
água podiam adquirir o cólera ao cerveja.
mesmo tempo, sem contato direto
com os doentes. FIGURA
No entanto, Snow observou BOMBA.TIF
que não era apenas pela água que a
doença era transmitida. Pessoas que Todos esses casos pareciam
cuidaram de doentes e que não be- indicar que a água era uma das
beram água nem se alimentaram na grandes responsáveis pela transmis-
casa desses doentes adquiriam o são do cólera (embora não fosse a
cólera. Como? Provavelmente, por única). Mas a maior evidência sobre
terem tocado em dejetos do doente isso foi obtida por Snow em um
e depois, sem lavar as mãos, em sua estudo estatístico sobre o forneci-
casa, terem tocado alimentos. mento de água de Londres. Havia,
Baseando-se nessa hipótese, na época, duas grandes empresas de
Snow e outros médicos começaram água encanada na cidade: a Lambert
a agir. Em julho de 1849, houve 80 e a Southwark & Vauxhall. Durante
casos de cólera na rua Silver, em o ano de 1854, de cada 100.000
Londres, em 15 dias. Dos 80 doen- pessoas que utilizavam água forne-
tes, morreram 38. Todas as pessoas cida pela empresa Southwark &
bebiam água tirada de um mesmo Vauxhall, 114 tiveram cólera. No
poço. Observou-se que o esgoto mesmo período, de cada 100.000
passava perto desse ponto e que pessoas que utilizavam água forne-
gotejava uma água suja no poço. cida pela empresa Lambert, ne-
Esse poço foi interditado e acabou o nhuma teve cólera. Nas ruas em que
cólera naquela rua. algumas casas recebiam água de
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 124

uma das empresas e outras casas de Por que? Talvez o tipo de água pro-
outra, houve 60 casos de cólera para duzisse uma predisposição à
cada 100.000 pessoas. Portanto, os doença, mas a causa fosse de outro
casos de cólera pareciam estar dire- tipo - uma coisa que viesse pelo ar,
tamente ligados ao fornecimento de por exemplo. Houve o caso de uma
água pela empresa Southwark & pessoa que, por engano, ingeriu o
Vauxhall. Descobriu-se que essa líquido evacuado por um doente de
água era coletada no rio Tâmisa, em cólera - e, apesar disso, não ficou
uma região que recebia esgotos. A doente. As pessoas que alegavam
água fornecida pela outra empresa, esses fatos defendiam a idéia de que
pelo contrário, vinha de uma fonte a enfermidade provinha de
pura. emanações no ar, miasmas.
Se a causa do cólera era algo Mesmo sem conseguir
que vinha pela água, devia ser pos- explicar tais fatos, Snow admitiu
sível filtrar o líquido e separar a que eram os dejetos dos doentes que
causa da enfermidade. Em uma transmitiam a doença. Sugeriu
penitenciária, em que havia muitos então várias medidas que ainda hoje
casos de cólera, experimentou-se são válidas, para a prevenção do
filtrar a água através de areia e de cólera:
carvão. Sabia-se que a areia retém a 1) asseio: lavar as mãos após con-
maior parte das impurezas sólidas e tato com doentes;
que o carvão absorve cheiros. No 2) lavar as roupas pessoais e de
entanto, mesmo com a filtragem, cama dos doentes, ou expô-las a
continuou a haver o surgimento de uma temperatura de mais de 100
novos casos de cólera. Quando se graus;
mudou a fonte da água utilizada, 3) evitar contaminação da água; se
cessou o cólera. Isso confirmava a houver suspeita sobre a água, fervê-
importância da água na transmissão la para destruir a causa do cólera e
da doença, mas ao mesmo tempo depois filtrá-la para melhorar o sa-
mostrava que a causa do cólera não bor;
era algo que pudesse ser filtrado e 4) purificar os alimentos pela água
separado, por meios comuns, nem ou fogo e lavar as mãos antes de co-
era um tipo de miasma, associado mer, quando houver incidência de
ao mau cheiro. cólera;
Apesar de todos os fatos cole- 5) separar os doentes dos sãos.
tados por Snow, não se deve pensar Com certo otimismo, Snow
que houvesse alguma prova defini- concluiu:
tiva de que o cólera era transmitido
através da água. Ele próprio cita "Tenho confiança (...) que, obser-
fatos difíceis de explicar. Alguns vadas as precauções acima enumera-
das, precauções essas que creio
médicos objetaram que nem todas serem baseadas na noção exata da
as pessoas que bebem água suposta- causa do cólera, possa este tornar-se
mente contaminada ficam doentes. extremamente raro e, por que não
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 125

dizer, ser totalmente banido dos países mentos na água fossem uma causa
civilizados." que predispunha ao cólera, sem ser
sua causa essencial.
Infelizmente, vemo-nos ainda Em meados do século XIX,
às voltas com o cólera, no Brasil. Sir James R. Martin apontou a
Talvez Snow tivesse sido muito existência de seis explicações da
otimista. Ou talvez estejamos vi- difusão do cólera:
vendo em um país que ainda não 1. O cólera é produzido por uma
pode ser considerado como civili- influência atmosférica climática e
zado. por uma suscetibilidade dos
habitantes, produzida pelo hábito de
respirar uma atmosfera impura.
RESISTÊNCIAS À HIPÓTESE 2. O cólera é causado por um con-
DE TRANSMISSÃO DO CÓLE- tagion: material morbífico que au-
RA PELA ÁGUA menta no corpo humano e que se
propaga por emanações que saem
O trabalho de John Snow que dos corpos dos doentes.
foi descrito acima é muitas vezes 3. O cólera é causado por um vene-
apresentado como um estudo que no que produz a doença quando é
estabeleceu sem nenhuma possibili- ingerido, multiplica-se no corpo
dade de dúvidas a transmissão do humano e sai nas fezes e vômito.
cólera pela água. Para se compreen- Esse veneno se espalha principal-
der a dinâmica real da ciência, é im- mente misturado à água, que é bebi-
portante mostrar que as coisas não da.
são bem assim. Nossa tendência 4. O cólera é devido a um material
normal é pensar que aquilo que ou veneno mórbido que se produz
aceitamos hoje em dia foi apenas no ar, não no corpo, sendo
claramente provado e não pode ser difundido pelas condições atmosfé-
colocado em dúvida. Mas em cada ricas.
época existem sempre muitas 5. O cólera é o resultado de um tipo
hipóteses diferentes e pode não se de fermentação produzida no ar
tornar claro qual delas é a mais estagnado, impuro e úmido; é trans-
correta. portado em navios, em roupas e
Os dados apresentados por outros objetos e assim é difundido
Snow foram em geral aceitos como pelas ações humanas.
reais, mas interpretados de outra 6. O cólera aumenta e se propaga
forma. A contaminação da água tanto pelo ar impuro quanto pelo
potável por dejetos poderia ter pro- corpo humano (combinação de hi-
duzido uma diarréia comum, enfra- póteses acima).
quecendo as pessoas e preparando A hipótese 3 é a de Snow, que
seus aparelhos digestivos para rece- atualmente aceitamos. Na época, no
berem a infecção do cólera. Ou entanto, Sir James Martin concluiu
seja: podia-se aceitar que os excre- que a hipótese 5 (fermentação do
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 126

ar) era "a única que se sustenta com diretamente venenosos, mas que
base nos fatos conhecidos". depois de algum tempo ocorria
Outras hipóteses diferentes alguma transformação ou
também surgiram nesse momento. multiplicação do material lá
O grande higienista alemão Max contido.
von Pettenkofer (1818-1901) A incerteza era tão grande,
sugeriu em 1854 que a fonte da que muitas autoridades preferiam
enfermidade não estava no ar nem não manifestar nenhuma opinião.
na água, mas na terra. Se o solo Em 1848, a Academia Imperial de
fosse úmido e poroso, ele poderia Medicina de Paris nomeou uma
ser penetrado pelos produtos de "comissão do cólera", encarregada
decomposição dos excrementos de de fazer um relatório sobre os nu-
animais e do homem. Esse material merosos trabalhos que eram recebi-
sofreria um tipo de fermentação no dos sobre esse assunto. Durante 18
solo, produzindo o veneno do anos, a comissão guardou um total
cólera. Esse veneno seria produzido silêncio sobre essa importante ques-
apenas com a presença de um tipo tão, e quando divulgou suas conclu-
especial de fermento contido nos sões não afirmou nada de concreto
dejetos dos doentes de cólera. A sobre as causas e cuidados para
partir desse processo, seria evitar a doença.
produzido um miasma que se Podemos observar o estado de
espalharia pelo ar. conhecimentos sobre o cólera no
Não aceitamos essa explica- Brasil, em meados do século XIX,
ção. No entanto, essa hipótese con- através de grande quantidade de
duziu a métodos de profilaxia muito publicações da época. Um interes-
adequados: Pettenkofer defendeu sante manual para uso do povo foi
cuidados sanitários, destruindo os publicado em 1855 pelo médico
dejetos dos coléricos ou impedindo Tomás Antunes de Abreu. Era um
que eles se espalhassem. O asseio e folheto vendido por 3$000 réis jun-
a desinfecção foram um bom méto- tamente com dois frascos de remé-
do preventivo da enfermidade. dios para o cólera. Nesse folheto, o
A maior parte das pessoas que autor indicava vários cuidados hi-
estudaram o cólera nessa época giênicos que lhe pareciam impor-
aceitava que a doença podia ser tantes:
transmitida pelos doentes, mas não
se chegava a uma acordo sobre o "É inteiramente nociva a aglome-
modo como isso acontecia. Uma ração de muitas pessoas dentro de um
pequeno recinto, principalmente tendo
pessoa da família ou uma que fechá-lo à noite; porque o ar muito
enfermeira poderia passar vários facilmente se corrompe, e não sendo
dias ao lado de um colérico, sem renovado, causará grande dano:
adquirir a enfermidade. Uma das portanto convém, que os Srs. Proprie-
suposições que surgiu foi a de que tários façam apartar os seus escravos,
dando-lhes acomodações mais espa-
os dejetos do doente não eram
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 127

çosas do que as de ordinário. Estas aguardente e cascas de limão ou


habitações devem ser colocadas em laranja. Indicava também uma dieta
lugares secos, elevados, e arejados;
devem ser abertas de dia, limpas
especial. Se, mesmo com esses cui-
freqüentemente, e caiadas; e visitadas dados, alguém adoecesse, o médico
por quem possa fazer observar estas recomendava vários tratamentos
regras, tendo o cuidado de não con- caseiros e o uso dos dois remédios
sentir nelas a presença de roupa suja, que acompanhavam o livrete.
e nem de qualquer outro objeto, que
possa exalar mau cheiro. As tarimbas
É evidente que tais medidas
[camas] devem ter de quatro a cinco não serviam para evitar o cólera.
palmos de altura do chão. Quem se guiasse por esse folheto
Quando se der algum caso do não tomaria nenhum cuidado com a
cólera, ainda mesmo não fatal, não se água ou com os dejetos do doente,
consentirá que no respectivo aposento
habitem outros indivíduos, sem que
ficando presa fácil da enfermidade.
seja ele primeiramente desinfetado por Em 1865, a França foi atingida
meio da água de Labarraque [cloro] pela quarta epidemia de cólera. Os
posta em bacias com água por espaço meios aceitos até então não impedi-
de 24 horas, findas as quais se caiará, ram que a enfermidade se espa-
e por oito dias se conservará aberto
dia e noite, depois do que pode ser
lhasse. Nesse ano, refletindo sobre
habitado sem recear-se mal algum." o cólera, o médico Michel Chevreul
assim resumiu os conhecimentos
Nota-se que a preocupação es- existentes: a causa do cólera é des-
sencial era com o ar. conhecida; seu tratamento é desco-
O autor explicava o cólera nhecido.
como um "envenenamento miasmá- Na França ainda não se aceita-
tico". Seu desenvolvimento seria va a idéia de que o cólera fosse con-
favorecido pela umidade, calor tagioso. Chevreul relata que algu-
forte, tempestades, variações brus- mas pessoas corajosas, para testar a
cas e consideráveis da temperatura possibilidade do contágio,
do ar. Os fatores individuais que ingeriram os dejetos dos coléricos,
predisporiam ao cólera eram: indi- vestiram suas roupas e deitaram-se
gestões, abuso de bebidas, comidas em seus leitos sujos. Nada lhes
muito gordurosas, frutos, tristeza, ocorreu, concluindo-se então que a
terror, cólera, "abuso do coito". doença não era contagiosa.
Tomás de Abreu recomendava Chevreul defendeu a idéia de
também "lavar-se sem abusar dos que o cólera era contagioso, porém
banhos"; mudar a roupa pelo menos não tinha provas disso. Por isso,
duas ou três vezes por semana e sugeriu que fosse feito um estudo
sempre que estivesse molhada pelo detalhado do ar em volta dos doen-
suor ou pela chuva; não trabalhar à tes, de seus dejetos, e que se procu-
chuva e, se tomasse chuva, mudar rasse também a existência de micro-
de roupa e tomar um ponche quen- organismos vegetais (micrófitos) ou
te, feito com água fervendo, açúcar, animais (microzoários) nos dejetos
dos coléricos.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 128

Como vimos, Pouchet já havia do de matéria animal ou vegetal em


observado vibriões nos dejetos dos decomposição, em lixo, excremen-
coléricos, mas não se deu impor- tos, etc. Como resultado, foram
tância à sua descoberta. A idéia de adotadas medidas de limpeza das
que a transmissão da enfermidade cidades, construção de esgotos e
se dava pelo ar era muito forte. A suprimentos de água livres de con-
Academia de Ciências de Paris for- taminação.
mou uma Comissão para identificar Foi também graças a esse mo-
o material transmissor do cólera. vimento que o rio Tâmisa, que atra-
Seguindo a sugestão de Chevreul, vessa Londres, foi recuperado. Em
imaginou-se que a doença poderia meados do século XIX, o cheiro
ser causada por microorganismos desse rio era tão insuportável que se
que flutuassem pelo ar. Nessa colocou em questão se o
época, Louis Pasteur havia encon- Parlamento (às suas margens)
trado seres microscópicos no ar, poderia continuar a se reunir. Pode-
capazes de produzir a putrefação de se imaginar que a situação fosse
materiais orgânicos. Ele fez parte semelhante à do terrível cheiro do
dessa Comissão, que durante meses rio Tietê, que atravessa a cidade de
recolheu e analisou a respiração e o São Paulo.
ar em volta de doentes de cólera. Nos Estados Unidos, o co-
Nada se descobriu. O fracasso foi merciante Lemuel Shattuck teve um
repetido por um grupo inglês, que papel político semelhante ao de
realizou análises químicas e micros- Chadwick, conseguindo também
cópicas do ar nas alas de coléricos, muitos resultados importantes, em
em hospitais. A partir desses estu- 1850. Os hospitais, escolas e fábri-
dos, a idéia de que o cólera poderia cas também sofreram uma melhora
ser causado por seres microscópicos higiênica considerável. No mesmo
foi abandonada, durante décadas. período, na Alemanha, Max von
Durante o períodoem que o Pettenkofer conseguiu aprovar uma
cólera produziu grandes epidemias, legislação sanitária. Foram também
o movimento sanitarista ressurgiu, criadas as primeiras cátedras uni-
com a mesma base teórica do século versitárias dedicadas à saúde (ou
XVIII - a hipótese dos miasmas. seja, à higiene).
Aproximadamente em 1850 Todas as medidas do movi-
surgiram legislações sanitárias em mento sanitarista (limpeza, água,
diversos países. Na Inglaterra, o esgoto) reduziram muito a mortali-
advogado Edwin Chadwick, utili- dade, na época. Mesmo sem que se
zando dados estatísticos, estabele- compreendesse a causa da peste
ceu a existência de uma correlação bubônica, da lepra e do cólera, essas
entre condições de vida e mortali- doenças praticamente desaparece-
dade. Seu trabalho procurava mos- ram dos países mais desenvolvidos.
trar que as doenças transmissíveis Outras enfermidades, como tifo e
eram causadas por miasmas, surgin-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 129

tuberculose, não foram no entanto


eliminadas.
A teoria dos miasmas foi uma
das mais importantes e úteis de toda
a história da medicina. Em muitas
ocasiões, levou a importantes cuida-
dos de higiene e a uma redução da
mortalidade. Mas ocorreu neste
caso aquilo que geralmente sucede
quando uma teoria tem sucesso: ela
impede o desenvolvimento de novas
hipóteses e, após dar contribuições
positivas, pode se tornar mais pre-
judicial do que benéfica, levando à
estagnação da ciência.
O DESENVOLVIMENTO DA TEORIA MI-
10 CROBIANA DAS DOENÇAS

econômica na França. No entanto, a


PASTEUR, BÉCHAMP E AS partir de 1853, a produção caiu
DOENÇAS DOS BICHOS-DA- progressivamente, reduzindo-se a
SEDA 1/5 do que era antes, por causa de
uma enfermidade que dizimava as
Na década de 1860, houve im- criações - a pebrina.
portantes avanços na compreensão Duas décadas antes, como já
do papel de microorganismos em foi indicado, uma doença dos bi-
doenças contagiosas. Foram se chos-da-seda (chamada
acumulando estudos que defendem "muscardina") havia sido estudada
aquilo que chamamos de "teoria por Bassi, que descobriu tratar-se de
microbiana das doenças". A palavra uma enfermidade causada por um
"micróbio" não existia ainda, e fungo microscópico. A enfermidade
nesse período seria mais adequado que afetava as criações na década
falar sobre a teoria dos "parasitas de 1850, no entanto, era outra. Os
microscópicos". bichos-da-seda atacados pela nova
Foi nessa época que Pasteur doença apresentavam uma série de
desenvolveu o seu primeiro estudo pequenas manchas negras na super-
que teve relação direta com proble- fície, e corpúsculos negros dentro
mas médicos: a pesquisa da causa dos diversos órgãos.
da enfermidade dos bichos-da-seda. O naturalista Armand de Qua-
A quase totalidade dos livros afirma trefages descreveu a enfermidade
que, nessa ocasião, Pasteur iniciou como possuindo ao mesmo tempo
o estudo científico da teoria um caráter epidêmico e hereditário.
microbiana das enfermidades. A pebrina era epidêmica, no sentido
Como veremos, a história não foi de ser uma doença que não era pró-
bem essa. Pelo contrário: nesse pria do local, mas se manifestava
episódio, Pasteur foi um opositor da durante um certo tempo de modo
teoria microbiana. intenso, atingindo toda uma popula-
A criação de bichos-da-seda ção através de uma causa comum.
era de grande importância Era hereditária, no sentido de que
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 131

os bichos-da-seda doentes fages, cujos trabalhos ele havia es-


produziam ovos "viciados": "(...) tudado. Pasteur admitiu que os ovos
todos eles estavam atingidos pela provenientes de bichos-da-seda com
pebrina, que os matou em parte, corpúsculos deviam ser considera-
deixando os sobreviventes dos doentes, mesmo se não se no-
transmitirem aos ovos o germe da tassem nos próprios ovos as man-
doença". Quatrefages comparava a chas que assinalavam a pebrina. Ele
pebrina à tuberculose, que também aceitou, portanto, que a enfer-
parecia ser hereditária. midade era hereditária e semelhante
Dada a natureza "hereditária" à tuberculose.
da doença, Quatrefages recomen- Utilizando essa concepção,
dava que só fossem aproveitados os Pasteur propôs que se examinasse
ovos de bichos sadios, isso é, sem todo o corpo do macho e da fêmea,
manchas. Para reduzir a "influência após a colocação dos ovos, para
epidêmica" da enfermidade, Quatre- procurar a existência de corpúscu-
fages indicava que as criações devi- los. Se houvesse corpúsculos nos
am ser pequenas e que se deviam pais, os ovos seriam declarados
tomar todos os cuidados higiênicos. doentios.
Quanto aos próprios corpúscu-
FIGURAS los, Pasteur adotou uma opinião que
BISEDA1.TIF já havia sido proposta anteriormente
BISEDA2.TIF pelo italiano Ciccone: eles não seri-
am microorganismos e sim o pro-
Em 1865, a epidemia se duto de um organismo doente.
tornou tão grave que os prefeitos e
proprietários agrícolas solicitaram "(...) atrevo-me a dizer que minha
providências ao Senado. Por in- opinião presente é que os corpúsculos
não são nem animais nem vegetais,
fluência do químico Jean-Baptiste mas corpos mais ou menos análogos
Dumas, Pasteur foi indicado para às granulações das células cancerosas
esse trabalho. ou dos tubérculos pulmonares. Do
Louis Pasteur (1822-1895) era ponto de vista de uma classificação
um químico. Sua formação nada metódica, eles deveriam ser
classificados preferivelmente ao lado
tinha a ver com Medicina ou Histó- dos glóbulos de pus ou dos glóbulos
ria Natural. A única ligação entre do sangue, ou mesmo dos grãos de
seu trabalho e a Biologia, anterior- amido, do que ao lado dos infusórios
mente, tinha sido seu estudo de ou dos mofos."
microorganismos responsáveis pela
fermentação e pela putrefação. Ape- Pode-se perceber que, no iní-
sar da falta de preparo na área, Pas- cio de seu estudo dos bichos-da-
teur aceitou a indicação de Dumas e seda, Pasteur utilizava idéias idênti-
iniciou o estudo da pebrina. cas às de seus antecessores.
A maior parte das idéias de Em um trabalho posterior,
Pasteur coincidia com as de Quatre- Pasteur começou a considerar a
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 132

possibilidade de existência de poucos dias, embora eles não fi-


infecção nas criações dos bichos- cassem cheios de corpúsculos.
da-seda. Essa infecção podia ser A posição de Pasteur nessa
evitada afastando os animais mortos época era confusa e até contraditó-
dos sadios e tomando cuidados de ria. Ele admitia claramente que os
asseio. bichos-da-seda podiam se tornar
Para descobrir a "fonte de in- doentes durante a criação; falava
fecção", Pasteur analisou a poeira em infecção e chegou a se referia a
dos alojamentos dos bichos-da-seda contágio, mas atribuiu a infecção a
e encontrou nela uma grande quan- corpúsculos que não se
tidade de corpúsculos. Ele se per- reproduziam, que eram apenas
guntou se esses corpúsculos podiam tóxicos e que matavam rapidamente
ser microorganismos, ou esporos os bichos sem torná-los cor-
dos mesmos, por analogia com a pusculosos - ou seja, sem transmitir
doença que havia sido estudada por a pebrina.
Bassi (a muscardina). Mas ele
negou claramente essa FIGURA
possibilidade. PASTEUR.TIF

"Deposito sobre a mesa da Aca- Três semanas após a apresen-


demia um pouco do pó do alojamento tação do segundo trabalho de Pas-
de que falo. Examinando-o ao micros-
cópio, a Academia poderá se conven-
teur, Antoine Béchamp (1816-1908)
cer da assustadora multiplicação apresentou à Academia de Ciências
desses pequenos corpos que eu de Paris o resultado de estudos que
sempre considero como uma produção estava desenvolvendo sobre os bi-
que não é nem vegetal nem animal, chos-da-seda. No início de seu tra-
incapaz de se reproduzir, e que deve
ser incluída na categoria desses
balho, Béchamp expôs com toda
corpos que a fisiologia distingue há clareza as duas alternativas para
alguns anos como organitas, tais como compreender a pebrina:
os glóbulos do sangue, os glóbulos do
pus, etc." "Pode-se fazer duas hipóteses
para dar conta da natureza da doença
Apesar de não serem microor- chamada pebrina.
ganismos, esses corpúsculos encon- 1ª Ela é constitucional. Nesse caso
os corpúsculos vibrantes não passam
trados na poeira seriam maléficos, de um sinal patogênico, uma produção
pois Pasteur afirmava conterem patológica. Longe de ser causa da
"elementos tóxicos em um alto doença, eles são apenas seu efeito.
grau". Polvilhando as folhas de 2ª Ela é parasitária. Então os cor-
amoreira que alimentavam os bi- púsculos, se não se descobrir ne-
nhuma outra produção organizada, são
chos-da-seda com a poeira repleta a causa produtora da doença.
de corpúsculos, havia uma grande O trabalho que desenvolvo há
mortalidade entre os animais, em quatro meses está fundamentado
sobre a segunda alternativa."
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 133

los eram parasitas e não produtos


Portanto, Béchamp estava ex- dos bichos-da-seda.
plorando a possibilidade que Béchamp fez outros testes que
Pasteur rejeitou desde o início: a de deram também resultados muito
que os corpúsculos fossem parasitas claros. Se os corpúsculos fossem
microscópicos vivos, que fossem a produtos do animal, eles deveriam
própria causa da pebrina. de desfazer quando um bicho-da-
A visão de Pasteur sobre os seda morto apodrecesse. Béchamp
corpúsculos foi atacada também esmagou três bichos-da-seda pouco
pelo naturalista Balbiani. Segundo corpusculosos em água. Observou
ele, haviam sido feitos estudos quí- inicialmente o líquido e viu que
micos sobre os corpúsculos, conclu- uma gota colocada ao microscópio
indo que eles não tinham as proprie- mostrava três ou quatro corpúsculos
dades dos tecidos animais. Por isso, de cada vez, no campo visual.
Balbiani afirma que, ao invés de Deixou o líquido se decompor
serem produzidos pelo corpo do durante oito dias e notou um cheiro
bicho-da-seda, os corpúsculos in- característico de coisas podres.
vadiam gradualmente os seus teci- Examinou então uma gota do
dos, como parasitas. Ele comparou líquido no microscópio. Observou
os corpúsculos da pebrina a parasi- que havia uma enorme quantidade
tas vegetais que já haviam sido es- de corpúsculos iguais aos dos
tudados antes em outros animais bichos-da-seda. Eles não haviam se
(peixes, aranhas, insetos, etc.). dissolvido ou apodrecido. Pelo
Pasteur havia feito estudos so- contrário: eles haviam se
bre fermentações e aceitava que multiplicado. Isso mostrava ao
esse fenômeno era produzido por mesmo tempo que não eram partes
microorganismos. Béchamp, na dos bichos-da-seda, e que eram se-
mesma época, havia chegado a res vivos autônomos, pois haviam
conclusões idênticas. Aproveitando se reproduzido.
sua experiência com esse tipo de Além disso, Béchamp obser-
fenômenos, Béchamp testou os vou que os corpúsculos tinham
corpúsculos da pebrina para certo movimento (eram chamados
verificar se eles se comportavam às vezes de "corpúsculos vibrantes",
como fermentos. Colocando-os em por causa disso). Quando eram dei-
uma solução de açúcar de cana, xados muito tempo em potassa
verificou que eles de fato cáustica, o movimento desaparecia.
produziam a fermentação do A única interpretação razoável do
líquido, com a transformação do fenômeno era a de que eles eram
açúcar em glucose e acidificação do vivos e que a potassa os havia ma-
líquido. Como se admitia que os tado.
fermentos eram vegetais microscó- Pasteur não foi capaz de res-
picos, concluia-se que os corpúscu- ponder aos argumentos de Balbiani
e Béchamp.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 134

Béchamp procurou estudar o muitas vezes, os pesquisadores


processo de reprodução dos corpús- estão mais interessados em si pró-
culos. Em março de 1867, publicou prios do que na descoberta da ver-
o resumo de um trabalho em que dade. Os cientistas não são anjos.
mostrava que esses corpúsculos se São seres dotados de vaidade, de
dividiam por cissiparidade, como agressividade, capazes de ocultar a
vários outros microorganismos. verdade, de mentir, de utilizar estra-
No mês seguinte, Pasteur apre- tégias pouco dignas para vencer os
sentou também à Academia de Ci- adversários e sobressair-se social-
ências de Paris um pequeno mente.
trabalho em que anunciava ter Sob o ponto de vista
mudado de opinião e aceitar agora científico, por outro lado, a
que os corpúsculos eram parasitas. descrição desse episódio permite
No entanto, o motivo da mudança também tirar algumas lições. Vimos
de opinião de Pasteur não foi o como foi difícil estabelecer que a
trabalho de Béchamp. Pelo doença dos bichos-da-seda era
contrário: Pasteur nem citou o nome causada por microorganismos. Por
de Béchamp, mas anunciou que ele um lado, não basta observar o corpo
próprio, Pasteur, acabara de do animal e ver dentro dele certos
descobrir que os corpúsculos se corpúsculos para concluir que esses
dividem por cissiparidade no corpúsculos são microorganismos
estômago dos bichos-da-seda. A que causam a enfermidade. É
partir desse momento, Pasteur con- preciso primeiro reconhecer que
siderou que havia provado rigoro- esses corpúsculos são vivos;
samente que os corpúsculos eram verificar se eles podem viver fora
parasitas e que eram a causa da pe- do organismo doente e se
brina. reproduzir; se for possível, deve-se
Nem neste trabalho, nem em identificar o seu tipo; e estabelecer
qualquer outro posterior, Pasteur a relação entre eles e a doença. No
admitiu que Béchamp havia defen- caso estudado, desde o início nin-
dido antes dele, com excelentes ar- guém tinha dúvidas de que os cor-
gumentos e observações, a natureza púsculos eram ou causa, ou efeito
parasitária dos corpúsculos do bi- da doença. Mas, em princípio, po-
cho-da-seda. Dada a grande influ- deria se tratar de outra coisa: os
ência de Pasteur na época, o traba- corpúsculos poderiam ser microor-
lho de Béchamp foi esquecido. E ganismos que invadissem os
perpetuou-se, até hoje, a falsa his- bichos-da-seda quando eles
tória de que Pasteur, estudando os estivessem debilitados pela
bichos-da-seda, fundou a teoria enfermidade, ao invés de serem a
microbiana das enfermidades. própria causa da doença. Por isso,
Sob o ponto de vista socioló- ainda teria sido necessário que
gico, este episódio que estudamos Béchamp e Pasteur tivessem apro-
aqui é uma triste amostra de como,
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 135

fundado suas investigações, para morriam depois de três ou quatro


esclarecer pontos como este. dias com os mesmos sintomas dos
carneiros e apresentando sempre o
sangue cheio de coágulos e com os
DAVAINE E O ANTRAZ: O ES- mesmos microorganismos. No en-
TUDO DE MICROORGANIS- tanto, inicialmente os bastonetes só
MOS NA DÉCADA DE 1860 eram observados quando o animal
morria.
Na década de 1860, ao mesmo Davaine fez testes de
tempo em que Pasteur e Béchamp transmissões sucessivas da doença
investigavam os bichos-da-seda, em coelhos: quando um deles
muitos outros pesquisadores se morria, utilizava seu sangue para
dedicaram à pesquisa de microor- produzir a doença em um outro, e
ganismos e sua relação com doen- assim sucessivamente. O resultado
ças. era sempre idêntico.
Como já foi citado, Davaine Estudando o sangue dos ani-
havia estudado, juntamente com mais inoculados, dia após dia, Da-
Rayer, o antraz ou carbúnculo dos vaine observou que havia um perío-
carneiros. Eles haviam observado a do no qual não se observava ne-
presença de certos microorganismos nhuma bactéria; no entanto, no ter-
no sangue dos animais mortos. No ceiro dia, elas começavam a apare-
entanto, na época em que fizeram cer e seu número aumentava muito,
esses estudos, eles próprios não antes que surgisse qualquer sintoma
deram grande importância à desco- da doença. Logo depois, o animal se
berta. Em 1863, Davaine retomou mostrava doente e morria em pou-
os estudos sobre o antraz. cas horas.
Durante o trabalho anterior, Durante esse período inicial de
havia sido observado que o sangue "incubação" da doença (termo
dos animais que haviam morrido usado por Davaine), o sangue não
pelo antraz mostrava-se cheio de transmitia a doença. Quando os
coágulos e com a presença de certos bacilos se tornavam visíveis, o san-
bastonetes (bactérias). No entanto, gue passava a transmitir a doença.
esse sangue só era observado quan- Davaine concluiu que as bactérias
do o animal já tinha morrido. Havia eram a causa do antraz, pois sur-
a possibilidade de que as bactérias giam no sangue antes de qualquer
fossem apenas um produto da dete- outro sinal da doença e porque ape-
rioração ou putrefação do sangue. nas quando estavam presentes era
Nos novos estudos, Davaine possível transmitir essa doença por
observou que era capaz de transmi- inoculação do sangue.
tir o antraz a animais sadios com Surgiram, no entanto, objeções
injeção de uma pequena quantidade ao trabalho de Davaine. Poderia ter
do sangue de animais doentes. Ino- ocorrido que o sangue contivesse
culou cavalos, bois e coelhos, que alguma substância (um veneno)
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 136

capaz de produzir a doença; ções, comportando-se como um ser


enquanto esse veneno estivesse vivo.
começando a atuar no organismo, o Neste trabalho, Davaine utili-
sangue ainda seria incapaz de zou a palavra "vírus" para designar
transmitir a doença; depois, quando a causa do antraz ou carbúnculo.
o organismo já estivesse doente, o Até essa época, como vimos, essa
sangue se tornaria carregado de palavra era aplicada
veneno, pela sua deterioração e indiscriminadamente a uma grande
putrefação; ao mesmo tempo, variedade de influências mórbidas
surgiriam os microorganismos, que ou venenosas, incluindo o veneno
seriam um dos sintomas e não a das serpentes. No entanto, a partir
causa da doença. desse momento começou a surgir
No ano seguinte (1864), Da- uma diferenciação entre venenos
vaine publicou novo trabalho. propriamente ditos (que não se
Inoculou 150 animais, sempre com reproduzem e propagam de um
resultados idênticos. Observou que doente para outro) e os vírus (que se
guardando durante algum tempo o propagam sucessivamente, como no
sangue de coelhos mortos pelo car- caso da varíola).
búnculo e permitindo que o sangue É claro que as bactérias de
apodrecesse, as bactérias eram des- Davaine não eram vírus no sentido
truídas. Tomando esse sangue apo- atual da palavra. Mas este foi um
drecido, Davaine injetou pequenas dos passos pelos quais se chegou à
quantidades em coelhos sadios. Eles conceituação atual.
não adquiriram o carbúnculo e não Outra importante linha de in-
surgiam bactérias no seu sangue. vestigações foi desenvolvida na
Quando a quantidade de sangue mesma época por François Jules
podre era grande, os coelhos ino- Lemaire. Como Pasteur e Béchamp,
culados morriam, mas com Lemaire era um químico e não mé-
sintomas diferentes dos observados dico ou biólogo. No início da déca-
no antraz. Colhendo sangue desses da de 1860 ele se dedicava ao estu-
coelhos, logo antes de sua morte, do de substâncias anti-sépticas.
Davaine observou que ele não Observou que a benzina, o ácido
transmitia a doença a outros fênico e o alcatrão eram capazes de
coelhos. interromper a fermentação e a pu-
Davaine concluiu que o antraz trefação orgânica. Estudou espe-
não tinha relação com o apodreci- cialmente as propriedades do ácido
mento do sangue e que não era um fênico, mostrando que ele servia
veneno. A putrefação produzia para destruir os microorganismos.
algum tipo de substância tóxica ou Utilizou essa substância na conser-
venenosa, mas que não se transmitia vação de peças anatômicas e de
por inoculações sucessivas. O car- animais. Em 1861, mostrou que o
búnculo, pelo contrário, sempre se ácido fênico diluído a 1% e adicio-
reproduzia nas sucessivas inocula- nado ao ácido acético curava a
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 137

sarna, matando o ácaro que produz espalhar pelo ar. Lemaire estudou
essa afecção. um menino que tinha essa afecção
Do estudo dessas substâncias no couro cabeludo. Produzindo uma
químicas, Lemaire foi levado à in- leve corrente de ar da cabeça do
vestigação dos microorganismos menino em direção a um balão de
que produziam a fermentação e vidro com gelo, a 50 cm de
putrefação. Existia a crença de que distância, ele verificou que a
esses seres podiam se espalhar pelo umidade condensada em torno do
ar, mas os estudos realizados nessa balão continha esporos de
época não eram totalmente conclu- Achorion. Esta foi a primeira vez
sivos. Lemaire desenvolveu um que se detectou no ar a presença de
novo método para capturar micro- seres vivos capazes de reproduzir
organismos do ar. Ele colocava gelo uma doença.
dentro de um balão de vidro, que Lemaire realizou vários estu-
era depois fechado. O balão, colo- dos utilizando sua técnica de coleta
cado na atmosfera, produzia a con- de microorganismos do ar. Em
densação de vapor d'água em sua 1866, pesquisou o ar exalado na
superfície externa e, juntamente respiração de pessoas saudáveis.
com o vapor, eram coletados os Para isso, investigou o ar dos quar-
microorganismos do ambiente. tos de uma instalação militar. Os
Lemaire separava o líquido e depois soldados dormiam em quartos cole-
o estudava ao microscópio. tivos, com portas e janelas
Durante as fermentações e pu- fechadas. Deitavam-se às 9 horas da
trefações há desprendimento de noite. Durante dez dias, entre as 4 e
gases da substâncias em transforma- 5 horas da manhã, antes que eles se
ção. Em 1864, Lemaire estudou levantassem, Lemaire coletava a
pelo processo acima indicado o ar umidade do ar dos alojamentos,
acima de materiais em fermentação para estudo. Os soldados eram
e putrefação e observou que, junta- todos saudáveis, jovens e se
mente com os gases, desprendem-se alimentavam bem. O pesquisador
dessas substâncias os seres micros- contou que, ao entrar nos quartos,
cópicos que produzem esses proces- sentia um forte odor desagradável,
sos. Imaginou então que os "sui generis". Lemaire coletava uma
miasmas não eram simplesmente certa quantidade de líquido
odores, mas microorganismos que condensado do ar. Esse líquido
acompanhavam os cheiros fétidos tinha o mesmo odor desagradável
de substâncias em decomposição. do quarto.
No mesmo ano, Lemaire estudou Observando depois esse lí-
um fungo microscópico (o Achorion quido ao microscópio, observou a
schoenleinii, já estudado antes por presença de vários corpúsculos
Bazin) que produz uma micose no cilíndricos, esféricos e ovóides, que
homem. Bazin já havia sugerido se multiplicavam rapidamente, nas
que esse microorganismo poderia se horas seguintes. Identificou várias
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 138

bactérias conhecidas, nesse como os próprios homens e animais


material. saudáveis, produziam
Para comparação, Lemaire continuamente miasmas, com o
coletou também, no mesmo horário, desprendimento de vegetais e
o ar exterior, à mesma altura dos animais microscópicos no ar. Esses
quartos. A água coletada era pura, microorganismos poderiam entrar
sem aparentar microorganismos. no corpo das pessoas através de
Lemaire concluiu que a vários caminhos (pela respiração,
própria respiração de pessoas pela pele, pela ingestão de alimen-
saudáveis produz um miasma, que tos) e produzir em seu interior um
poderia ser daninho às pessoas estado de fermentação e putrefação
fracas. O estudo mostrava também a que causaria as doenças. Lemaire
importância da ventilação dos afirmava que as emanações gasosas
quartos, à noite. de qualquer tipo de material orgâni-
De certa forma, Lemaire esta- co podre eram capazes de produzir
va se encaminhando na direção de doenças graves e a morte de
nossos conceitos atuais, mas várias animais sadios. O mesmo resultado
de suas idéias eram diferentes das era obtido pela introdução de
que aceitamos. Talvez por não ser material em putrefação no animal
um biólogo, não dava muita impor- através de inoculação sub-cutânea,
tância às diferenças entre os micro- injeção nas veias e introdução no
organismos que observava. Por não tubo digestivo. Matando-se os mi-
ser médico, também não percebia croorganismos do material em pu-
grande diferença entre as doenças. trefação pelo ácido fênico, ele já
Em 1868, sugeriu que a peste, a não produzia mais esses efeitos.
febre amarela, a febre intermitente Começou também a surgir
(malária), o tifo, o cólera e várias nessa época a idéia de que as pes-
outras doenças transmissíveis fos- soas poderiam se proteger contra as
sem todas de natureza idêntica, doenças ingerindo desinfetantes e
mostrando sintomas diferentes ape- anti-sépticos. Do creosoto e do
nas por causa de distinções entre os alcatrão, que tinham poder anti-
indivíduos afetados, suas alimenta- séptico, fizeram-se o "rum creoso-
ções, e outras condições. Ele consi- tado" e o "conhaque de alcatrão",
derou que todas essas doenças eram que foram muito populares no
de natureza parasitária, produzidas Brasil até meados do século XX.
por infusórios, pois haviam sido Lemaire, como outras pessoas
encontrados vibriões no sangue de da época, aderiu de forma pouco
pacientes com todas essas enfermi- cuidadosa à idéia de que os micro-
dades. organismos podem transmitir doen-
A teoria de Lemaire era uma ças. Durante a década de 1860,
modernização da teoria dos houve uma explosão de
miasmas não específicos. Ele supôs "descobertas" de seres microscópi-
que tanto as matérias em putrefação cos que causavam todas as doenças
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 139

conhecidas. Em 1867, Victor Poulet humano, encontrando em alguns


observou infusórios no ar expirado casos os fungos Aspergillus flaves-
por crianças com coqueluche: ob- cens e Aspergillus nigricans. Cole-
servou bactérias e bacilos e supôs tou esses fungos e observou que
que eles eram a causa da doença, conseguia cultivá-los em uma la-
que parecia ser contagiosa. Mas seu ranja. Testou sobre os fungos culti-
estudo se reduziu a isso. vados a ação de várias substâncias,
Nessa fase, os microorganis- para verificar de que modo era pos-
mos não eram isolados, cultivados, sível destruí-los. Verificou que o
nem se testava se eles realmente hipoclorito de cálcio diluído e o
transmitiam a doença. Poucos arsenito de potássio tinham grande
foram os casos em que houve poder contra esses fungos, enquanto
sequer uma identificação cuidadosa que outras substâncias recomenda-
desses microorganismos. As das na época, como o álcool, não
descrições de diferentes destruíam os fungos. Esse tipo de
observadores eram em geral teste foi o precursor dos modernos
contraditórias. antibiogramas.
O botânico Hallier, de Jena, Wreden estudou também
utilizava um método simples de como esses fungos se espalhavam
estudo. Examinava ao microscópio pelo ar. Em um hospício, observou
as secreções dos doentes, depois a ocorrência desses fungos em
elas eram semeadas em qualquer pessoas que ocupavam uma sala
meio de cultura e o mofo que surgia que tinha uma parede mofada.
era declarado causa da doença. Ale- Apenas quando a parede foi lavada
gou descobrir a causa do cólera, da com solução de hipoclorito de
febre tifóide, do tifo exantemático, cálcio, destruindo o mofo, foi
da varíola, etc. Seus trabalhos possível curar de modo definitivo as
foram atacados por De Bary, pessoas.
especialista em plantas inferiores, Nesse período, o estudo mais
que mostrou que os mesmos mofos completo e cuidadoso de microor-
surgiam também espontaneamente ganismos associados a doenças foi,
em culturas em contato com o ar, e sem dúvidas, o de Davaine. Após as
que não se reproduziam sempre os investigações que já havia realizado
mesmos efeitos quando o teste de sobre o antraz, ele continuou suas
Hallier era repetido. Trabalhos pesquisas, aprofundando-as e res-
como o de Hallier trouxeram pondendo a novas objeções. Apesar
descrédito a esse tipo de explicação. de todos os testes que havia feito
Havia boas exceções. O estudo antes, permanecia a dúvida sobre se
de afecções externas produzidas por eram realmente as bactérias que
fungos - como as micoses - conse- produziam o antraz, ou se alguma
guiu se desenvolver de modo bas- outra substância do sangue poderia
tante satisfatório. Em 1867, Robert ser a verdadeira causa da doença.
Wreden estudou doenças do ouvido Davaine injetou sangue de um coe-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 140

lho doente em uma fêmea, no final da doença. Fez experimentos em


da gravidez. A coelha ficou doente que colocou sangue de animais do-
e morreu, mas o feto não mostrava entes de antraz em um recipiente,
sinais da doença e não foram encon- verificando que esse tipo de mosca
tradas as bactérias em seu sangue. É se alimentava do sangue. Estudou
o próprio sangue da mãe que ali- depois as moscas ao microscópio,
menta e permite a oxigenação do verificando que fora de seu corpo e
feto. Davaine percebeu que esse no seu interior havia bactérias do
sangue era filtrado pela placenta, antraz. Esmagando diferentes partes
não havendo passagem das bacté- do corpo das moscas, fez experi-
rias. Isso era uma forte indicação de mentos de inoculação em cobaias,
que a doença era realmente causada que morreram de antraz. Isso mos-
por elas e não por alguma substân- trava que as bactérias ingeridas pe-
cia dissolvida no sangue. las moscas mantinham o seu poder
Davaine conseguiu depois re- e não haviam morrido. O estudo
produzir esse mesmo tipo de não mostrou, no entanto, que a
fenômeno artificialmente. Para isso, picada das moscas realmente
filtrou o sangue de um animal doen- transmitisse a doença, nem que esse
te em um filtro de porcelana; verifi- fosse o modo pelo qual a doença era
cou que o material retido no filtro, de fato transmitida.
que continha as bactérias, transmitia No mesmo ano, Davaine
a doença; o líquido que atravessava publicou um trabalho comparando
o filtro e que não continha os cor- os efeitos de injeções de substâncias
púsculos não transmitia o antraz. podres com injeções de sangue com
Era difícil objetar a esses novos antraz. Anteriormente, ele havia
experimentos. concluído que, no caso de substân-
Em 1869, Davaine desenvol- cias podres, havia simplesmente um
veu, com o auxílio de A. Raimbert, veneno, que não se reproduzia no
um estudo sobre a transmissão do organismo. No entanto, prosseguin-
antraz. Embora essa doença fosse, do seus estudos, ele se convenceu
na época, mais comum entre os de que os microorganismos que
animais, havia uma doença humana produziam a putrefação de substân-
semelhante, chamada às vezes de cias orgânicas eram a causa da
"pústula maligna". Os trabalhadores morte por septicemia. Em seus ex-
dos matadouros e curtumes eram às perimentos, tomou o sangue contido
vezes acometidos por essa doença no coração de um boi sadio, guar-
mortal e diziam que ela lhes era dou-o durante dois dias e, quando
transmitida pelas moscas. Raimbert observou que estava apodrecendo,
estudou os vários tipos de moscas injetou-o em cobaias. Elas
que infestavam esses locais. Algu- morreram depois de poucos dias, e
mas delas se alimentavam de san- no seu sangue Davaine observou a
gue, e ele imaginou que podiam ser presença de muitas bactérias
realmente o veículo de transmissão diferentes da do antraz: eram
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 141

filamentos móveis, do tipo chamado transmitida de um animal doente


de "vibrião", enquanto as bactérias para outros.
do antraz eram imóveis. As dúvidas de Bernard não
Tomando o sangue das eram razoáveis, dado o volume de
cobaias mortas, Davaine o injetou evidências apresentadas por Da-
em novas cobaias e observou que vaine. No entanto, havia uma
era possível transmitir grande mistura de bons trabalhos
sucessivamente a septicemia. No com pesquisas fracas e duvidosas,
caso do antraz, uma gota de sangue na época. Era difícil perceber a
era suficiente para transmitir a diferença entre eles. Quais eram,
doença; no caso da septicemia, era afinal, os critérios que poderiam
necessária uma quantidade maior, discriminar entre uma investigação
mas a doença também era completa, conclusiva, e uma
transmitida. investigação incompleta? Isso não
Note-se como a pesquisa de estava nem um pouco claro. Foi
Davaine era cuidadosa. Ele procu- graças ao trabalho de Koch, na dé-
rava investigar todos os aspectos, cada seguinte, que foram estabeleci-
fazer comparações, identificar os dos esses critérios.
agentes das doenças, fazer sucessi-
vas transmissões a animais sadios,
etc. Nesse período, pode-se dizer A INFECÇÃO DE CORTES E
que seu trabalho foi exemplar. FERIDAS E O MÉTODO ANTI-
Apesar de todos esses cuida- SÉPTICO DE LISTER
dos, o trabalho de Davaine não foi
suficiente para convencer os mais À medida que se desenvolvia
céticos. Um deles foi o influente o conhecimento dos
pesquisador Claude Bernard (1813- microorganismos e de suas relações
1878). Bernard aceitava que com enfermidades, esses
diferentes microorganismos podem conhecimentos eram também
existir e atacar o homem, mas que o aplicados à prática médica.
ponto essencial é o estado interno Costuma-se considerar que um dos
do organismo, e por isso esses primeiros resultados médicos desses
agentes podem estar presentes sem desenvolvimentos foi o trabalho de
produzir efeito. Afirmava que os Joseph Lister (1827-1912) de pre-
vírus se desenvolvem muitas vezes venção de infecção de ferimentos.
no organismo e por isso podem ser Lister era um cirurgião que es-
considerados mais como produtos tava estudando as complicações que
da doença do que suas causas. ocorriam no tratamento de fraturas
Acreditava que as bactérias do expostas. Quando uma pessoa se
antraz podiam se desenvolver feria e fraturava um braço ou uma
espontaneamente no organismo perna, o tratamento era relativa-
(sem infecção externa), embora a mente simples e satisfatório sempre
doença pudesse também ser que o dano era apenas interno. No
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 142

entanto, quando o acidente produzia pela destilação do vinho e o utilizou


uma ferida externa (fratura nas feridas. Albucasis recomendava
exposta), surgiam infecções que o uso de cal viva.
eram, geralmente, mortais. Quando Utilizava-se também, na Idade
era necessário amputar um membro, Média, a cauterização de feridas
era quase certa a morte do paciente, com ferro em brasa ou com óleo
pelo mesmo motivo. fervente. Mas a cauterização e o uso
Em seu primeiro trabalho, de cáusticos (como a cal viva)
publicado em 1867, Lister descre- foram praticamente abandonadas no
veu as ocorrências comuns nesses século XVII, restando apenas as
casos: parecia que o sangue se alte- práticas mais suaves e tradicionais.
rava, ocorrendo uma putrefação no Sob o ponto de vista dos co-
local da ferida. Vinte e quatro horas nhecimentos atuais, sabemos que
depois do acidente que ocasionou a várias das substâncias utilizadas
fratura, saía da ferida um líquido ou eram benéficas para o tratamento de
soro que tinha um odor de matéria feridas, destruindo ou dificultando a
em decomposição. Esse odor se multiplicação de microorganismos e
tornava cada vez mais fétido evitando desse modo as infecções.
durante os dois ou três dias Os tratamentos eram empíricos,
seguintes, antes do estabelecimento mas bastante eficientes.
da supuração, ou seja, do No início do século XIX, o
surgimento de pus. A infecção tratamento de feridas com as sub-
muitas vezes se espalhava pelo stâncias tradicionais também foi
organismo todo, levando à morte. abandonado. Como não se compre-
É claro que desde a Antigüida- endia a natureza da infecção e não
de as infecções em feridas eram um havia explicação para os tratamen-
importante problema médico. Hipó- tos utilizados, tudo foi tentado.
crates recomendava utilizar em feri- Alguns autores ingleses recomenda-
das recentes o vinagre ou vinho, vam utilizar-se apenas água nas
com substâncias adstringentes feridas. Outros, como Broussais,
(como o alúmen) para secar as feri- utilizavam óleo e farinha de linhaça.
das, pois "o estado seco é mais Com as tentativas de inovar, certa-
próximo do estado sadio, e o úmido mente os resultados eram piores do
mais próximo do estado de doença". que os antigos. Como resultado, as
Celsus adicionou às receitas de Hi- práticas cirúrgicas do século XIX
pócrates o uso de óleo, mel e ervas tornaram-se mais perigosas do que
como folhas de oliveira ou aloés. anteriormente.
Galeno receitava o uso de vinho, Segundo Lister, ocorriam mui-
alúmen, água de cal, extrato de pla- tos casos de piemia, erisipela e po-
ntas adstringentes e vitríolo (sulfato dridão de hospital entre os interna-
de cobre) em úlceras malignas com dos. Na sala de que Lister cuidava,
putrefação. No período medieval, o essas "doenças hospitalares" apare-
médico árabe Rhazes obteve álcool ciam principalmente quando a sala
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 143

estava cheia de pessoas com lesões zoavelmente informado sobre as


abertas. "Isso me pareceu ser uma pesquisas recentes. Sabia que não
prova evidente de que as emanações era o oxigênio que produz esse efei-
derivadas de escoamentos pútridos to e sim certas partículas que flutua-
(...) formam a grande causa de in- vam no ar, que são os germes de
salubridade de um hospital cirúr- seres inferiores visíveis ao micros-
gico." A situação enfrentada por cópio. Lister associou os estudos de
Lister tinha semelhança com a febre Pasteur às infecções, imaginando
puerperal estudada por que os germes da atmosfera pene-
Semmelweis. No entanto, ao invés travam nas feridas e lá se
de supor que a doença passava de multiplicavam e produziam a
uma pessoa para outra pelo contato, alteração do sangue, a putrefação, o
ele imaginou que o problema estava mau cheiro e o pus.
no ar. O hospital de Lister ficava ao
Havia uma antiga crença de lado de um campo onde, pouco
que o ar era prejudicial para a cura antes, haviam sido enterrados cadá-
de feridas. Arnaldo de Villanova, veres de coléricos. Lister supôs que
Paracelso e outros médicos do perí- as complicações graves das feridas
odo medieval e do renascimento dependiam dos germes provenientes
afirmavam que era preciso proteger do cemitério, que poderiam ser
as feridas e cortes cirúrgicos do ar. transportados pelo ar. Elas ocasio-
No século XVI, Joseph du Chesne nariam uma putrefação, cujos pro-
recomendava lavar as feridas com dutos envenenariam o organismo.
água, tratando-as também com vi- As idéias de Lister estavam
nagre e óleo. Justificava esse uso próximas das de Lemaire, de um
dizendo que o vinagre serve para miasma não específico associado a
proteger alimentos contra o mofo e microorganismos produzidos pela
a putrefação, tendo igual papel nas putrefação. Lister, no entanto, não
feridas; e que o óleo impedia que o cita os trabalhos de Lemaire.
ar entrasse na ferida, protegendo-a Poderíamos imaginar que o
da corrupção. Na mesma época, passo seguinte deveria ser o estudo
Ambroise Paré indicou a importân- microscópico do líquido que surgia
cia de costurar as grandes feridas, nas feridas, para verificar se conti-
unindo suas bordas, para "proteger nha microorganismos. Esse seria o
da alteração do ar, que prejudica as procedimento natural de um pesqui-
feridas". Em torno de 1600, havia sador que estivesse investigando a
um consenso dos médicos, que causa da infecção. Mas não foi isso
acreditavam que o ar produzia que Lister fez. Ele não era um mi-
complicações e gangrena; mas nin- croscopista e sim um cirurgião.
guém sabia o motivo disso. Como no caso de Semmelweis, seu
Lister se perguntou como a at- interesse era prático e não teórico.
mosfera poderia levar à decomposi- Não procurou testar diretamente sua
ção das substâncias. Ele estava ra- hipótese e sim utilizá-la para desen-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 144

volver um método adequado para ce ter escolhido esse anti-séptico


evitar as infecções. sem conhecer os estudos daquele
Lister procurou um modo de pesquisador. Escolheu o ácido fêni-
tratar das feridas com uma substân- co porque essa substância tinha sido
cia capaz de matar os germes e im- usada no esgoto da cidade de
pedir a putrefação. A substância não Carlisle e tinha conseguido eliminar
poderia ter uma ação cáustica muito o mau cheiro e os microorganismos.
violenta, pois iría ser aplicada em Pareceu-lhe que um anti-sépti-
uma ferida aberta. co tão poderoso poderia ser conve-
Nas décadas anteriores, niente para experimentos sobre o
haviam sido feitos vários estudos assunto. Resolveu assim aplicar
sobre substâncias anti-sépticas (ou ácido fênico em fraturas complica-
seja, que impedem ou dificultam a das. A primeira tentativa, realizada
putrefação). Fazia-se testes na Enfermaria Real de Glasgow, em
colocando carne ou outros materiais março de 1865, foi um insucesso: a
animais e vegetais em diferentes ferida se infeccionou e o paciente
líquidos e comparando-os para morreu. As tentativas seguintes
verificar o surgimento da foram bem sucedidas.
decomposição do material. O procedimento inicialmente
Estudou-se o vinho, álcool, óleo de utilizado por Lister consistia em
terebintina, sal amoníaco, salitre, embeber um pano em ácido fênico
bórax, alúmen, aloés, mirra e outras muito concentrado (o ácido cristali-
substâncias. Magendie e Duroy zado era diluído em pouca água),
observaram o grande poder da que era introduzido com uma pinça
tintura de iodo na conservação de na ferida. Lister colocava sobre a
carne, sangue e outros materiais. ferida um pequeno pedaço de tecido
Angus Smith testou vários gases, também embebido em ácido fênico,
observando o poder anti-séptico do e recobria tudo com uma tampa de
cloro, bromo, iodo, ácido clorídrico, em metal maleável (estanho), para
ácido sulfuroso e éter. Todas essas evitar a evaporação do ácido e re-
pesquisas observavam a putrefação, duzir o contato com o ar. Em feri-
mas não estudavam seus aspectos das grandes, usou uma pasta feita
microscópicos. Autores posteriores de gesso, ácido fênico e óleo de li-
testaram o efeito de substâncias nhaça.
sobre os próprios microorganismos. Depois que Lister começou a
Lister escolheu a substância usar o método anti-séptico, não
anti-séptica mais poderosa que co- ocorreu mais nenhum caso de pie-
nhecia e que não produzia muita mia em 36 fraturas abertas tratadas.
irritação nos tecidos vivos: o ácido Antes da introdução do método
fênico ou carbólico. O próprio Le- anti-séptico, metade das
maire já havia recomendado essa amputações levava à morte. Nos
substância para evitar a gangrena. anos seguintes, apenas 1/6 dos
No entanto, novamente, Lister pare-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 145

pacientes que sofriam amputação séptica", que desenvolveu um novo


morreram. tipo de pulverizador automático, a
As feridas assim tratadas não vapor, capaz de produzir uma
se infeccionavam, mas o método nuvem contínua de ácido fênico
não era conveniente. O ácido puro sobre o local da cirurgia.
utilizado por Lister produzia grande
irritação dos tecidos, dificultando a FIGURA
cicatrização. Aos poucos, ele foi PULVERIZ.TIF
alterando o procedimento e utili-
zando ácido mais diluído. Em perío- O método de Lister foi adota-
dos posteriores, fixou-se na concen- do em outros locais, com sucesso.
tração de uma parte do ácido para Em München, no ano de 1874, a
40 partes de água. gangrena havia atingido 80% de
Em 1871, o procedimento uti- todas as feridas, fossem acidentais
lizado já era bastante diferente. As ou cirúrgicas, tratadas no hospital.
feridas eram lavadas com água clo- No início de 1875, foi introduzido o
rada, solução de ácido sulfuroso, método anti-séptico, e não houve
ácido fênico ou cloreto de alumínio. mais casos de gangrena. A piemia
Colocava-se sobre o ferimento uma desapareceu, a erisipela era rara e,
gaze anti-séptica, desenvolvida por quando existia, era leve.
ele, impregnada por ácido fênico e Apesar da boa repercussão
recoberta por uma fina camada de inicial, o trabalho de Lister logo foi
resina, que diminuía o efeito criticado.
irritante do ácido. Por cima da gaze, O professor Léon le Fort rejei-
colocava um tecido tou, em 1882, as idéias de Lister.
impermeabilizado com borracha, Ele notou que muitos cirurgiões que
para evitar todo contato com o ar. não protegiam as feridas do ar ti-
No caso de cirurgias, as mãos, nham tanto sucesso quanto Lister.
instrumentos e objetos utilizados Ao invés de acreditar na infec-
eram todos desinfetados com ácido ção pelo ar, Le Fort supôs que po-
fênico na concentração de 1/40 ou deria ocorrer um contágio pelos
1/20. Além disso, durante todo o instrumentos, esponjas de limpeza,
tempo da cirurgia, era feita uma mãos e objetos necessários ao cura-
pulverização de ácido fênico diluído tivo. Cuidando-se da limpeza dessas
sobre o local da operação. O objeti- coisas, tornava-se desnecessária a
vo era formar uma "atmosfera anti- proteção contra o ar.
séptica" capaz de destruir todos os Deve-se aqui assinalar um as-
germes do ar, para que eles não pu- pecto das cirurgias da época que
dessem infectar o corte cirúrgico. pode nos parecer inacreditável, mas
Inicialmente, eram utilizadas peque- é real. Para lavar todos os tipos de
nas bombas pulverizadoras feridas dos doentes nos hospitais,
manuais. Mas Lister considerava utilizava-se uma esponja e uma
tão importante essa "atmosfera anti- bacia com água. A mesma bacia, a
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 146

mesma esponja e a mesma água oxigenada, compostos de mercúrio,


eram utilizadas para todos os paci- etc.
entes, passando de cama para cama O estudo microscópico, ao in-
sem qualquer tipo de desinfecção. vés de fortalecer o trabalho de Lis-
Apenas na década de 1860, o médi- ter, trouxe uma nova crítica: nos
co norte-americano William Morton seus curativos eram encontrados
propôs o uso de um dispositivo todos os tipos de microorganismos.
portátil que permitia lavar as feridas Aos poucos, todos os aspectos
em água corrente. Pode-se perceber do trabalho de Lister foram sendo
que, nessa época, havia problemas criticados - com bons argumentos e
muito mais graves nos hospitais do total razão. A hipótese básica de
que a transmissão de germes pelo Lister, fundamentada no trabalho de
ar. Pasteur (ou talvez devêssemos di-
A pulverização de ácido du- zer: nas pesquisas de Lemaire), era
rante a cirurgia também foi dura- de que a causa das infecções das
mente criticada: parecia ter um pa- feridas e cortes cirúrgicos eram
pel mínimo, ou ser inútil. Desde que germes que vinham do ar. A experi-
fossem tomados os cuidados de ência mostrou que a grande fonte de
limpeza, as cirurgias eram seguras. germes eram os instrumentos e
Os aparelhos desenvolvidos por mãos dos médicos e enfermeiras e
Lister eram custosos, além de tornar por isso as pulverizações e cobertu-
a cirurgia muito incômoda: tudo fi- ras dos curativos foram abandona-
cava molhado, o paciente ficava dos. Lister acreditou na necessidade
frio, a visão do local operado ficava de utilizar anti-sépticos fortíssimos
mais difícil. A prática de pulveriza- nas feridas e curativos, para impedir
ção acabou por desaparecer, man- sua infecção. Posteriormente, prefe-
tendo-se a mesma estatística de riu-se utilizar nas feridas anti-sépti-
sucesso. cos mais brandos e gazes esteriliza-
Embora o ácido fênico pare- das, mas sem anti-séptico. O ácido
cesse adequado para a desinfecção fênico foi abandonado, substituído
das mãos e de objetos como as es- por outras substâncias. Ao invés de
ponjas de limpeza, muitos destruir os germes causadores da
preferiam a desinfecção dos outros putrefação (anti-sepsia), passou-se a
instrumentos pelo fogo ou pelo adotar medidas que evitavam a pre-
aquecimento em vapor ou estufas, sença desses germes (assepsia).
de acordo com o método O golpe final contra as propos-
desenvolvido a partir de 1880 por tas de Lister veio, por ironia, do
Octave Terrillon em Paris e próprio Louis Pasteur, que sempre
Schimmelbusch em Berlim. divulgou e deu apoio a Lister. De-
Para uso local nas feridas, o pois de muitas tentativas, Pasteur
ácido fênico foi em geral conseguiu identificar e isolar o mi-
substituído por outros anti-sépticos, croorganismo causador das infec-
como a solução de iodo, a água ções mais graves (da septicemia).
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 147

Descobriu então que se tratava de Por fatores difíceis de enten-


um vibrião anaeróbio - ou seja, que der, Lister foi bastante respeitado e
vive e se reproduz sem contato com homenageado durante sua vida, em-
o ar, sendo destruído pelo oxigênio. bora todos abandonassem seus mé-
A conclusão imediata dessa desco- todos e suas idéias. Ele é lembrado
berta é que os cuidados tomados por até hoje como o suposto descobri-
Lister para evitar o contato entre o dor da causa e dos métodos de pre-
ar e a ferida eram prejudiciais, pois venção das infecções cirúrgicas.
protegiam os vibriões contra o Semmelweis, pelo contrário, foi
oxigênio que poderia destruí-los. atacado e esquecido, embora seus
Não há dúvidas de que, na se- métodos fossem depois, gradual-
gunda metade do século XIX, mente, adotados por todos.
houve uma revolução nos métodos
utilizados nos hospitais, levando à
prevenção de infecções
hospitalares. Mas não se deve
atribuir a Lister essa revolução.
Lister foi mais um símbolo de um
movimento do que um descobridor
da profilaxia da infecção hospitalar.
Por sua influência, estimulou outros
médicos a estudarem o problema e
desenvolverem os métodos que
depois se tornaram aceitos por
todos. Por mais que simpatizemos e
admiremos a tentativa de Lister, não
foi ele quem chegou a uma
compreensão das infecções nem
quem desenvolveu os métodos
preventivos adequados.
Trata-se de um caso muito di-
ferente do de Semmelweis. Este
conseguiu desenvolver um método
para evitar a propagação da febre
puerperal, partindo de estudos bas-
tante cuidadosos e de análises que
podemos considerar como corretas.
Lister partiu de meras hipóteses e
analogias que depois se verificou
serem incorretas, e desenvolveu
métodos pouco adequados para a
prevenção das infecções.
APERFEIÇOAMENTO E DIFICULDADES
11 DA TEORIA MICROBIANA

AS BACTÉRIAS Pasteur e outros pesquisadores eram


CAUSADORAS DE DOENÇAS muito apressados, tiravam suas
E OS POSTULADOS DE KOCH conclusões sem o rigor necessário.
Na região em que Koch mora-
O avanço científico é gradual va, o antraz era uma enfermidade
e recebe contribuições de muitas conhecida. Com um microscópio
pessoas que são desconhecidas pela que comprou, Koch estudou essa
história. Raramente se pode dizer enfermidade, repetindo inicialmente
que um indivíduo isolado foi res- alguns passos básicos. Estudou o
ponsável por algum passo significa- sangue de animais doentes mortos e
tivo. No entanto, há certo consenso sempre encontrou neles os mesmos
de que Robert Koch (1843-1910) bacilos. Estudou o sangue de ani-
foi a pessoa que mais contribuiu mais sadios e verificou que nunca
para criar uma bacteriologia cientí- encontrava esses bacilos.
fica, no século XIX. Realizou, em seguida, testes
Koch foi um médico que, for- de transmissão da enfermidade,
mando-se em 1866, tornou-se inici- com ratos. Fez uma pequena incisão
almente um clínico rural. Em 1871, na raiz da cauda dos animais, esfre-
fixou-se em Wollstein, uma cidade gando um pouco de sangue de an-
com 2.000 habitantes. No seu traz na ferida. No dia seguinte, o
tempo vago, Koch realizava estudos rato estava morto. O sangue do
em um laboratório que montou em animal morto estava cheio de baci-
sua própria casa. Ele havia sido los, que pareciam ter se multiplica-
aluno de Henle que, como vimos, do. Koch usou o sangue do primeiro
defendeu na década de 1840 que as rato aplicando-o em um segundo,
doenças contagiosas eram causadas com o mesmo resultado. Faz uma
por seres vivos microscópicos. série de 30 transmissões sucessivas,
Koch aceitava essa idéia e conhecia para se convencer de que o efeito
os trabalhos que haviam se era sempre o mesmo.
desenvolvido na década de 1860.
Pensava, no entanto, que Davaine, FIGURA
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 149

KOCHLAB.TIF microorganismos em um meio de


cultura, fora dos animais.
Até aí, o trabalho de Koch Conseguia reproduzi-los, isolá-los
nada tinha de novo. No entanto, de outras substâncias ou
para poder provar que eram esses microorganismos, e provocar a
bacilos que produziam a doença e doença com esse material.
não qualquer outra substância solú- Com a adição desse novo
vel ou microorganismo invisível, passo, Koch desenvolveu um méto-
Koch sentiu a necessidade de isolá- do de estudos que lhe pareceu pro-
los do organismo animal. tegido contra qualquer crítica. Seria
Se aqueles seres eram real- possível afirmar que um microorga-
mente vivos, devia ser possível nismo é a causa de uma doença nas
fazer com que eles se re- seguintes condições:
produzissem em uma cultura. Koch - o mesmo parasita deve encontrar-
testou vários meios de cultura, se em todos os casos da doença;
utilizando as substâncias a seu - ele não deve ocorrer em qualquer
dispor e refinando os meios de outra enfermidade por acaso, nem
impedir que a cultura fosse como parasita não patogênico;
contaminada por outros microorga- - deve ser possível cultivá-lo e
nismos. Acabou por desenvolver isolá-lo inteiramente, mantendo-o
uma técnica de manter uma gota em cultura pura;
líquida entre duas placas de vidro. - deve ser possível reproduzir com
Colocando um pouco do sangue essa cultura a doença em animais de
contaminado nesse material e man- laboratório;
tendo a temperatura adequada, Ko- - ele deve reaparecer no animal ino-
ch foi capaz de observar, ao micros- culado.
cópio, a reprodução dos bacilos. Essas regras constituem os
Após permitir a reprodução "postulados de Koch", que logo se
dos microorganismos, Koch diluía o divulgaram e criaram um novo pa-
líquido e separava uma parte para drão na pesquisa microbiológica.
novo processo de crescimento dos Elas já haviam sido sugeridas pelo
bacilos, de tal forma que as outras próprio Henle, trinta anos antes,
substâncias do sangue que estives- mas ninguém, antes de Koch, havia
sem presentes inicialmente ficassem sequer tentado completar todos
cada vez mais diluídas. Apesar esses passos da pesquisa. O antraz
disso, o líquido sempre produzia os foi a primeira doença para a qual
mesmos efeitos nos ratos: eles mor- Koch foi capaz de desenvolver a
riam e seu sangue se mostrava cadeia completa de prova. Por isso,
repleto dos mesmos esse estudo, publicado em 1876,
microorganismos. pode ser considerado como uma
O estudo de Koch tinha um revolução no estudo científico das
aspecto que faltava às pesquisas de enfermidades produzidas por micro-
Davaine: ele conseguia estudar os organismos.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 150

Havia muitas dificuldades zando um meio de cultura sólido,


nesse tipo de trabalho. A primeira formavam-se pequenas colônias
era a investigação cuidadosa dos separadas, sem mistura, conse-
próprios microorganismos, de tal guindo então isolar as bactérias que
modo a poder identificá-los e dife- estava estudando.
renciá-los claramente uns dos ou- Mas, além de um estudo cui-
tros. Isso só foi possível com o dadoso dos próprios microorganis-
avanço da microscopia, com melho- mos, era sobretudo necessário mos-
res lentes, e com o uso de corantes trar que eles eram a causa das en-
de diferentes tipos, que permitem fermidades, pois muitos alegavam
observar a estrutura de cada orga- que se tratava apenas de um efeito
nismo. Assim, várias bactérias que da doença. Por isso, o último passo
pareciam iguais foram - utilizar uma cultura pura e conse-
diferenciadas. O próprio Koch deu guir produzir a enfermidade com
grande contribuição às técnicas ela - era um elemento essencial do
microbiológicas de observação. método de Koch.
Desenvolveu novos processos de Foram necessários mais dois
iluminação dos microscópios; anos para que Koch conseguisse
introduziu a coloração de bactérias identificar um outro tipo de micro-
por anilinas; desenvolveu um organismo patogênico: o causador
método de fotografia microscópica da infecção das feridas
e o exame com lente de imersão. É (septicemia). Tentativas anteriores
claro que outras pessoas, ao mesmo de estudo desse microorganismo
tempo, deram importantes haviam falhado pela dificuldade em
contribuições, mas Koch ajudou obter culturas puras. Havia sido até
muito no desenvolvimento de técni- mesmo proposta a idéia de que as
cas adequadas para observação, bactérias se transformavam em dife-
descrição e registro dos microorga- rentes tipos (polimorfismo). O tra-
nismos. balho de Koch aniquilou essa supo-
Por outro lado, era necessário sição.
separar e cultivar os diferentes tipos Em 1880, Koch identificou o
de microorganismos. O desenvolvi- agente causador de uma das mais
mento de culturas puras (sem mistu- importantes doenças da época: a
ras) era muito difícil. Era preciso tuberculose.
fazer muitas tentativas até descobrir Durante o século XIX, embora
o meio (sólido ou líquido) no qual as medidas de higiene tivessem re-
cada tipo de microorganismo se duzido muito várias doenças, a tu-
desenvolvia e reproduzia. Koch berculose resistia a tudo e desafiava
testava todo tipo de substâncias que a Medicina. Como vimos, na
conseguia imaginar para o cultivo década de 1860 Pasteur acreditava,
das bactérias: rodelas de batata, o como outros, que se tratava de uma
líquido do interior do olho de um enfermidade hereditária. Outros
boi, ágar, etc. Descobriu que, utili- achavam que sua causa era a
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 151

exposição a um ar insalubre. Um estabeleceu-se que a tuberculose era


terceiro grupo pensava que era uma transmissível e que era possível
doença transmissível. diferenciá-la de outros processos
Desde o século XVIII, houve semelhantes. Mas não se sabia
tentativas de transmitir a tubercu- ainda qual o agente que produzia a
lose por inoculação, sem resultado. doença. O problema não era apenas
Em 1843, Klencke induziu tubercu- descobrir algum microorganismo
lose dos pulmões e fígado em coe- presente nos doentes: eram
lhos, por inoculação de material descobertos vários diferentes. Era
tirado de tubérculos do homem, necessário isolá-los, cultivá-los e
injetados nas veias do pescoço. Em testá-los, seguindo o método de
1865, Jean-Antoine Villemin (1827- Koch.
1892) fez importantes estudos, As dificuldades, no caso da tu-
inoculando material tirado de tubér- berculose, foram muitas. Os micro-
culos de cadáveres humanos em organismos que realmente
diversos animais. Observou que causavam a doença eram muito
apenas o macaco, a vaca e o coelho pequenos, apresentavam-se em
adquiriam a doença. Conseguiu pequena quantidade e quase sempre
também transferir a tuberculose de dentro de células do organismo.
um animal vivo para outro. No en- Nos pulmões dos doentes eram en-
tanto, tentativas realizadas por ou- contrados outros microorganismos
tros pesquisadores produziam efei- maiores e em maior quantidade, que
tos semelhantes injetando outras se pensou muitas vezes serem a
substâncias. A situação era confusa. causa da enfermidade. Foi preciso
Uma técnica especial de observar e testar vários deles, o que
estudo foi desenvolvida por Julius era especialmente difícil porque a
Cohnheim (1839-1884). Depois de tuberculose é uma doença que se
várias tentativas, ele inoculou com desenvolve lentamente. Foi também
material tirado de tubérculos huma- necessário desenvolver um corante
nos o olho de coelhos vivos. Obser- adequado para tornar visível o mi-
vou que, depois de um certo tempo croorganismo. E, por fim, esse mi-
de incubação, havia o surgimento croorganismo não se desenvolvia
de nódulos na íris. Eles cresciam, nos meios de cultura testados, até
tornando-se visíveis a olho nu, sem que Koch experimentou, em 1882,
que nenhum outro sinal fosse o uso do soro de sangue,
notado. Depois, a enfermidade se esterilizado e endurecido. Só então
espalhava pelo corpo, atingindo as foi possível cultivar os bacilos e,
glândulas linfáticas, pulmões, depois, testar seu efeito, observando
pâncreas, fígado e rins, acabando que eles de fato causavam a
por produzir a morte do animal. Ao tuberculose.
fazer a inoculação com outras Paralelamente ao trabalho de
substâncias, só ocorria uma Koch, outras pessoas pesquisavam
irritação temporária. Assim, as causas microscópicas das doen-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 152

ças. Em 1877, Pasteur estudou o zado para conseguir "vacinas" con-


antraz e o cólera das galinhas. Em tra todas as doenças causadas por
1880, conseguiu desenvolver uma microorganismos: bastaria atenuar o
"vacina" contra essas doenças. A micróbio. Sabemos atualmente que
descoberta se deu graças a um isso não é verdade, infelizmente.
acaso. Em 1879, Pasteur estava Mas pouco depois ele conseguiu
estudando o cólera das galinhas, desenvolver uma vacina para o an-
com a ajuda de Roux, Chamberland traz.
e Thuillier. Uma cultura antiga, dei- Koch fez um duro ataque a
xada na estufa durante as férias, Pasteur, nessa época. Ele o acusou
tornou-se inofensiva, embora conti- de não saber nem estudar os micró-
vesse ainda microorganismos. As bios, nem obtê-los em culturas pu-
galinhas inoculadas com essa ras. Pasteur trabalhava apenas sobre
cultura não adquiriam a hipóteses, pois não havia provado a
enfermidade. Inicialmente, os pes- atenuação da virulência dos micró-
quisadores não deram grande bios. Em um trabalho que publicou
importância ao fato, mas depois, ao em 1882, Koch afirmou que Pasteur
conseguir novas culturas do era incapaz de estudar o assunto.
microorganismo, verificaram que Na verdade, Pasteur procurava
aquelas galinhas estavam resultados práticos e não se preocu-
imunizadas contra a enfermidade. pava muito com os mecanismos da
O que havia acontecido? A in- imunidade. Ele supôs, nessa época,
terpretação, na época, foi que os que a imunidade se dava por uma
microorganismos haviam sofrido transformação química do animal.
alguma mudança, haviam se torna- Quando o micróbio do cólera das
dos mais fracos, atenuados, e não galinhas atingisse os animais de
produziam mais a doença; apesar forma atenuada, ele seria incapaz de
disso, produziam alguma mudança provocar a doença de forma grave,
no corpo das galinhas, que se torna- mas estaria de qualquer forma vi-
vam resistentes aos microorganis- vendo e se alimentando das
mos normais. substâncias orgânicas desse animal.
A idéia era, de certa forma, Pasteur imaginou que, dessa forma,
semelhante às que Jenner havia os micróbios atenuados
imaginado quase cem anos antes. consumiriam certas substâncias
Ele havia suposto que o "vírus" que essenciais, impossibilitando que os
causava a varíola humana e a micróbios não atenuados se
varíola das vacas provinha do desenvolvessem depois no mesmo
cavalo mas que, nas vacas, por organismo.
algum motivo, ele mudava suas A explicação de Pasteur foi
propriedades e já não era mais tão criticada. Se ela fosse verdadeira, a
perigoso quanto o vírus humano. imunização seria passageira, pois o
Pasteur logo imaginou que o organismo acabaria por repor, pela
mesmo processo poderia ser utili-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 153

nutrição e por seu metabolismo, as Quando, em 1889, o Instituto fica


substâncias que existiam antes. pronto, sobrou pouquíssimo
Na verdade, nem Pasteur nem dinheiro para operá-lo. Por que
ninguém, em 1880, conseguia en- Pasteur se recusou a mostrar suas
tender o que ocorria na imunização. anotações?
O último resultado importante Ao longo da década de 1880,
obtido por Pasteur foi ainda mais foram descobertos gradualmente os
discutível: a vacina contra a raiva, agentes de várias outras doenças: o
em 1885. Apesar de muitas tentati- da gonorréia, por Albrecht Neisser,
vas, o grupo de Pasteur não foi ca- em 1879; o da febre tifóide, por
paz nem de ver um microorganismo Eberth e Gaffky, o da lepra por
nos animais raivosos, nem de culti- Gerard Hansen e o da malária por
var o hipotético microorganismo Alphonse Laveran, todos em 1880;
causador da raiva. No entanto, con- o da erisipela por Fehleisen, e do
seguiam transmitir a raiva por cólera, por Koch, em 1883; o da
inoculação e, por tentativa e erro, difteria por Klebs e por Friedrich
acabaram descobrindo que o líquido Loeffler, com a ajuda de Koch, em
tirado da medulas espinhais de coe- 1884; o do tétano, por Nikolaier e
lhos inoculados com raiva tinha a Kitasato, e o da pneumonia, por
capacidade de produzir a imuniza- Fraenkel, também em 1884; o da
ção e até mesmo de proteger as pes- meningite por Weichselbaum, em
soas que já tinham contraído a 1887 - e vários outros, nos anos
raiva. seguintes.
Não havia nem base teórica, A descoberta dos microorga-
nem precedentes práticos que justi- nismos permitiu, por fim,
ficassem esse trabalho. Pasteur foi determinar se certas doenças eram
criticado, e com razão. Os resulta- transmissíveis ou não, e através de
dos iniciais obtidos com a vacina que meio. Apesar de todos os
contra a raiva davam resultados trabalhos que haviam sido
duvidosos. Mesmo quando as pri- realizados antes a respeito do
meiras dificuldades foram supera- cólera, foi apenas após uma
das, ficou uma dúvida sobre a ho- investigação de Koch, em 1883, que
nestidade das comunicações apre- se confirmou a existência de um
sentadas por Pasteur. Alguns anos vibrião causador dessa doença e sua
depois, quando Pasteur queria cons- transmissão pela água. Estudando-
truir seu Instituto, solicitou a doa- se as substâncias químicas que
ção de uma área pública para isso. destruíam esse vibrião, foi possível,
A municipalidade de Paris pediu finalmente, desenvolver métodos
para examinar os cadernos de ino- totalmente seguros para a profilaxia
culações anti-rábicas de Pasteur, dessa doença. Desde o final do sé-
antes de ceder gratuitamente o culo XIX, o cólera desapareceu da
terreno. Pasteur não concordou e Europa, depois de matar milhões de
precisou por isso comprar o terreno. pessoas. Em outras partes do mundo
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 154

(como o Brasil) ele ainda produz Mas o excesso de otimismo, a


muitas mortes - não por inexistência confiança exagerada na teoria mi-
de conhecimento científico, mas por crobiana, levou também a grandes
falta de medidas públicas erros. O que as pesquisas mais cui-
adequadas. dadosas haviam mostrado era que
A década de 1880 marca uma algumas doenças eram causadas por
verdadeira revolução no estudo das microorganismos. O que se passou
doenças transmissíveis. A utilização a acreditar foi que todas as doenças
de um método rigoroso de investi- são causadas por eles.
gação, desenvolvido por Koch, Sabemos atualmente que al-
permitiu chegar a resultados claros gumas enfermidades são causadas
e superar a fase em que se discutia por alimentação deficiente. Não
interminavelmente sobre o papel basta ingerir grande quantidade de
dos microorganismos nas doença. alimentos; nem é suficiente ingerir
Não se pode dizer que através alimentos com muita proteína -
do método de Koch todos ficassem como a carne. Todos hoje sabem
convencidos. O eminente higienista que existem certas substâncias - as
alemão Max von Pettenkofer, que vitaminas - que são essenciais para
tanta influência teve na melhoria a saúde. Mas isso só foi descoberto
das condições de saúde de seu país, no século XX.
jamais aceitou a teoria microbiana. Durante o período das grandes
Estava tão seguro de que os micro- navegações, como já vimos, torna-
organismos não podem produzir ram-se conhecidas várias doenças.
doenças, que para mostrar isso be- Algumas são atualmente considera-
beu uma cultura de vibriões do das transmissíveis. Outras, como o
cólera. Por mais espantoso que seja, escorbuto, são de origem alimentar:
não adoeceu. Seria ele imune à carência de vitaminas.
doença? Não o sabemos. Nessa época, acreditava-se
que os alimentos podiam produzir
doenças quando estavam estragados
EXCESSOS DE CONFIANÇA ou quando desequilibravam os
NA TEORIA: A TRAGÉDIA DA humores do corpo. A própria prática
DESCOBERTA DAS VITAMI- mostrou que era possível curar
NAS enfermidades com alimentação
adequada. Nos séculos XVI e XVII,
No final do século XIX, após navegantes ingleses e holandeses
os grandes sucessos da teoria mi- passaram a utilizar com grande
crobiana das doenças, parecia que, sucesso limões e laranjas no
depois de milênios, a Medicina tratamento da doença. Verificou-se
havia encontrado finalmente um que a utilização de vegetais frescos,
caminho seguro, científico, para seu em geral, também ajudava a curar o
desenvolvimento. escorbuto.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 155

Imaginou-se que talvez a ali- cesso de polimento do arroz retira a


mentação que era utilizada nos na- película que contém a vitamina B
vios - carne seca, biscoitos e outros deste cereal. Até o início do século
alimentos que podiam durar durante XIX, utilizava-se o arroz integral,
meses - fosse a causa da doença. No obtido em geral de forma artesanal,
entanto, mesmo transportando-se a batendo-se o arroz com casca e se-
bordo animais vivos (como ovelhas) parando apenas a palha. Esse pro-
e alimentando os marinheiros com cesso "primitivo" foi substituído
carne fresca, surgia o escorbuto. pelo polimento industrial do arroz,
Apesar de se conseguir evitar criando o belo cereal branco que
assim o escorbuto, não se sabia cla- consumimos até hoje. Em meados
ramente o que era essa doença, nem do século XIX, a produção de arroz
por qual motivo os limões e outros branco na Ásia aumentou muito, e
vegetais ácidos eram capazes de sua exportação atingiu o mundo
curá-la. Podia ser que a todo.
enfermidade fosse um desequilíbrio O beribéri já era conhecido,
dos humores e que os limões como o escorbuto, desde as grandes
curassem a doença por causa de navegações. No Brasil, foi chamado
serem úmidos e frios. Além disso, de "inchação das pernas", ou epi-
desde a Idade Média, acreditava-se demia das "pernas inchadas", por
que os limões tinham grande poder causa de um dos seus sintomas.
contra os venenos. Como os Podemos ver em diversos quadros
"venenos" eram também causa das de Portinari figuras humanas que
epidemias, o limão parecia também apresentam a aparência de doentes
útil nesses casos. do beribéri. Além desse sintoma
No caso do escorbuto, antes da visível (que nem sempre ocorre), há
descoberta das vitaminas, a prática dormência dos membros, fraqueza,
já havia resolvido o problema. dificuldade de se mover, que pode
Apesar disso, no início do século se transformar em uma paralisia,
XX havia pesquisas para descobrir sensação de alguma coisa apertando
o seu microorganismo. o tronco, como um cinto muito
Em outros casos, a falta de co- justo ("cinta epigástrica"). Pode
nhecimento das vitaminas levou a haver asfixia e morte rápida ou
conseqüências muito mais graves. lenta.
O episódio mais terrível foi o do
estudo do beribéri, na passagem do FIGURA
século XIX para o século XX. PORTINA2.TIF
O beribéri é, pelo que sabemos
hoje, uma doença grave, causada Embora conhecida e descrita
pela falta de vitaminas. Ele é fre- muitas vezes, essa enfermidade só
qüente nas populações que se ali- se tornou importante na segunda
mentam com grande quantidade de metade do século XIX, quando em
arroz polido (arroz branco). O pro- muitas partes do mundo começou a
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 156

produzir grande número de mortes. te, é instrutivo estudar esses traba-


No Brasil, em 1858, houve uma lhos. Lacerda conhecia os trabalhos
"epidemia de pernas inchadas" em de Koch e Pasteur e procurava se-
um colégio em Mariana, matando guir os melhores métodos experi-
várias crianças. Na década de 1860, mentais.
surgem muitos casos, atacando tro- Lacerda colhia o sangue de al-
pas militares no Mato Grosso, que guns beribéricos, examinava-o e
só se salvaram da "peste" fugindo encontrava alguns corpúsculos pe-
do local. Na Bahia, a doença surge quenos, de forma esférica ou ovói-
nesse período de forma esporádica, de, em movimento constante. La-
produzindo muitas mortes. O beri- cerda não tinha dúvidas de que
béri surgia com freqüência em pri- esses corpúsculos eram vivos: seu
sões, hospitais, asilos e navios. Isso movimento diminuía quando o lí-
sugeria que se tratasse de doença quido ia secando.
contagiosa, que se espalhasse facil- Com o sangue recolhido, La-
mente em aglomerações de pessoas cerda fazia a cultura dos microor-
com higiene deficiente. ganismos, tomando grande cuidado
No final do século XIX, a en- para evitar a entrada de outros se-
fermidade se tornou comum nas res. Observava o surgimento de
cidades. Nessa época, no Rio de pontinhos brancos no caldo de cul-
Janeiro só havia quatro doenças que tura, formando colônias.
matavam mais do que o beribéri: Tirando uma gota do líquido
tuberculose, varíola, malária e de cultura e colocando entre duas
gripe. Os casos de tifo, sarampo e lâminas de vidro, via "filamentos
disenteria eram menos numerosos cilindróides, hialinos, soltos, imó-
do que os de beribéri. veis, de comprimentos vários, al-
Pela sua gravidade, o beribéri guns muito longos, chegando a me-
foi muito estudado, na época. Como dir de 10 a 15 ". Lacerda descre-
era de se esperar, a partir da década veu várias transformações que esses
de 1880 as explicações mais filamentos podiam sofrer, produ-
comuns eram as que adotavam a zindo corpúsculos arredondados,
teoria microbiana das doenças. No isolados ou em grupos, ou bastões.
Brasil, vários médicos adotaram a Esse microorganismo de forma tão
nova e vitoriosa teoria, dedicaram- variável foi chamado por Lacerda
se ao beribéri... e encontraram seu de Bacillus beribericus.
micróbio! Em nosso país, o mais Após conseguir a cultura do
entusiasta defensor da teoria microorganismo, era necessário uti-
parasitária do beribéri foi o diretor lizá-la para verificar se era possível
do Museu Nacional, João Batista transmitir a doença. Lacerda fez a
Lacerda. inoculação em porquinhos da Índia
Embora atualmente possa nos e em coelhos, com sucesso, e em
parecer ridículo que alguém tenha um carneiro, sem resultado nenhum.
descoberto uma coisa que não exis-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 157

Em todos os animais inoculados, cuidadoso. Alguns estudos de auto-


Lacerda encontrou os microorganis- res de outros países, no entanto,
mos. No caso de alguns deles, chegaram a conclusões iguais às
houve perturbações do movimento, dele: Ogata Masanori e Wallace
que Lacerda considerou como uma Taylor no Japão (1886), Connelis-
indicação de que eles estavam com sen e Sugunoya na Índia (1886),
beribéri. Pekelharing na Índia (1887). De
Pelo menos aparentemente, fato, não apenas esses mas também
Lacerda estava seguindo o método outros autores estavam
de Koch. Segundo sua descrição, "descobrindo" microorganismos do
ele verificou que os beribéri. Cada um, no entanto, ob-
microorganismos sempre eram servava micróbios diferentes.
encontrados nos doentes de Continuaram a morrer
beribéri; conseguiu cultivar o milhares de pessoas por todo o
microorganismo; reproduziu com o mundo, enquanto se procurava o
mesmo a doença em animais sãos; e micróbio do beribéri. Surgiam
reencontrou nos animais inoculados indicações (que parecem hoje muito
o mesmo microorganismo. O que claras) de que se tratava de uma
poderia estar errado? enfermidade de origem alimentar,
Há vários pontos duvidosos no mas ninguém percebia claramente
trabalho de Lacerda. Teria ele de qual a deficiência, na época. Em
fato reconhecido algum microorga- 1880, o médico Kamehiro Takaki,
nismo, ou observado vários diferen- do Hospital Naval de Tóquio,
tes, que por falta de treino conside- convenceu-se de que havia algum
rou como sendo um só? Seria o mi- problema nutricional na Marinha
croorganismo associado de fato ao japonesa. Acreditou que a causa era
beribéri, ou seria devido a uma in- a pequena quantidade de nitrogênio
fecção secundária e presente tamb- ingerida pelos marinheiros, e para
ém em outros casos? Lacerda não solucionar essa deficiência
fez comparação com pacientes de introduziu mais carne, mais ve-
outras doenças, ou com pessoas sãs. getais e, em algumas refeições, ce-
Seria a cultura pura, ou uma mistura vada no lugar do arroz. Houve uma
de microorganismos? Provavel- grande redução do beribéri na Mari-
mente era uma mistura. Pode-se de nha japonesa.
fato dizer que os animais de teste Algumas pessoas, como o pró-
adquiriram beribéri? Provavelmente prio Lacerda, acreditavam que o
não. arroz estragado podia produzir o
O que existe de mais instrutivo beribéri. Um pesquisador holandês,
neste exemplo é que ele mostra que Christiaan Eijkman, observou em
o método de Koch não é tão simples Java que as galinhas do laboratório,
de aplicar quanto parece. quando alimentadas durante algum
O trabalho de Lacerda foi tempo com arroz polido, ficaram
criticado como precipitado e pouco doentes com sintomas semelhantes
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 158

aos do beribéri. Elas se curavam


quando eram alimentadas com arroz A década de 1890 foi o perío-
não polido, integral. Sua interpreta- do no qual ocorreu um novo impor-
ção foi de que havia no arroz polido tante avanço: a descoberta de inse-
algum microorganismo ou toxinas tos transmissores de doenças
produzidas por microorganismos; (vetores).
mas que o arroz integral continha Durante quase todo o século
alguma substância que anulava o XIX, por mais que variassem as
efeito desse microorganismo ou teorias, considerava-se em geral que
toxina. o ar era o meio de transmissão das
Foi o sucessor de Eijkman, doenças (miasmas, germes). Desde
Gerrit Grijns (1865-1944) que per- a Antigüidade, houve
cebeu em 1901 que as galinhas ta- esporadicamente sugestões de que
mbém adoeciam com outras alimen- as doenças pudessem ser transporta-
tações como tapioca ou carne de das por animais. A malária, por
cavalo cozida, e se curavam com exemplo, como seu próprio nome
arroz integral. Concluiu que a causa indica (mal'aria), era atribuída
do beribéri era a falta de alguma geralmente a um mau ar dos
substância que existia na película pântanos, mas havia especulações
do arroz integral. Foi necessária no sobre sua transmissão por
entanto uma série de estudos, com a mosquitos. Também no caso da
contribuição de diversos pesquisa- febre amarela, foram feitas associa-
dores, antes que o trabalho de ções entre a incidência da doença e
Grijns fosse confirmado e se a presença de mosquitos. Mas em
identificasse que substância era geral prevalecia a idéia de que a
essa. Isso demorou mais de dez transmissão era pelo ar.
anos, durante os quais milhares de Davaine e Raimbert, em 1869,
pessoas morreram de beribéri, foram talvez os primeiros a investi-
estupidamente, por causa do arroz gar mais cuidadosamente a possibi-
polido. lidade de que as moscas pudesse
Essa longa história do beribéri transmitir uma doença (o antraz).
nos mostra como é difícil a Mas os primeiros estudos conside-
evolução da ciência. Quando uma rados decisivos sobre o papel dos
teoria se mostra valiosa - como, no insetos como vetores só foram reali-
caso, a teoria microbiana das zados vinte anos depois.
doenças - ela chega a cegar as Em 1889, Theobald Smith
pessoas, impedindo-as de (1859-1934) iniciou estudos, publi-
vislumbrar qualquer outra cados em 1893, que permitiram
alternativa. identificar os carrapatos como veto-
res do plasmódio da febre bovina do
Texas.
OS VETORES DAS DOENÇAS A "febre do Texas" que dizi-
MICROBIANAS mava rebanhos de gado nos Estados
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 159

Unidos, era atribuída pelos os primeiros animais que haviam


criadores aos carrapatos. No introduzido a doença. Casos
entanto, os pesquisadores semelhantes já haviam sido
"científicos" consideravam essa descritos no campo, mas sem con-
idéia totalmente impossível. trole das condições.
Na década de 1880, foram en- Para verificar se a infecção do
contradas algumas bactérias no san- campo era produzida pelos carrapa-
gue do gado doente e essas mesmas tos, como se supunha, Smith esco-
bactérias foram também lheu um outro campo isolado, no
encontradas nos carrapatos; por qual não haviam ainda sido coloca-
outro lado, elas eram observadas dos animais doentes. Espalhou pelo
também na água, solo, urina, fezes e solo alguns milhares de carrapatos
outros locais. Não se sabia se essas coletados de gado da região onde
bactérias tinham alguma relação havia a doença. Nesse campo, no
com a doença, nem se sua presença dia seguinte, foram colocadas qua-
nos carrapatos era relevante. tro cabeças de gado sadias. Três
Theobald Smith liderou uma contraíram a doença. Isso foi uma
pesquisa realizada em uma estação forte indicação de que a doença era
experimental governamental, perto transmitida pelos carrapatos.
de Washington. Primeiramente, Por fim, em outro experimen-
foram trazidas 7 vacas da região em to, foram colocadas vacas da região
que a doença existia de modo per- doente em um campo, depois de se
manente. Quatro delas foram colo- retirarem dessas vacas todos os
cadas em um campo separado. No carrapatos. Depois de algum tempo,
mesmo campo, foram colocadas, no essas vacas foram retiradas. O gado
mesmo dia, 6 cabeças de gado sa- sadio que foi colocado depois no
dias. Todas, exceto uma, morreram mesmo campo não ficou doente.
da doença depois de dois meses. As Isso indicava que não eram os ex-
vacas iniciais não manifestaram, no crementos do gado doente, a água, o
entanto, sinais da doença, mos- solo ou o capim que transmitiam a
trando que animais aparentemente doença.
sadios podiam transmitir a doença a No ano seguinte, após o in-
outros. verno, não foram observados carra-
As quatro vacas iniciais foram patos no campo infectado. Colo-
retiradas do campo e lá foram colo- cando-se 5 cabeças de gado nesse
cadas mais oito cabeças de gado, campo, nenhuma delas ficou
com diversos intervalos - de três doente.
dias a dois meses. Com exceção de Em toda a série de experimen-
duas, as demais morreram da tos, observou-se que bastava a pre-
mesma doença. Por algum motivo, sença de carrapatos provenientes de
o campo havia se tornado infectado animais doentes para produzir a
e era capaz de transmitir a febre do doença em animais sadios e que não
Texas, mesmo tendo sido retirados bastava a presença de animais doen-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 160

tes para produzir a doença. Portan- Como os médicos explicavam


to, ela não era transmitida direta- a doença? Inicialmente, pensava-se
mente por contato, nem pelos ex- que sua causa seria a indigestão, ou
crementos, mas apenas pelo inseto. talvez a supressão da transpiração,
Uma vez conhecida a causa e pela umidade, pela chuva; ou ainda
o modo de transmissão de uma o sereno da madrugada, ou mesmo
doença, torna-se possível uma a insolação do verão. A falta de tro-
prevenção bem fundamentada. Com voadas também foi considerada
o conhecimento de que a febre do uma das causas. Continuava-se
Texas era transmitida pelos também a acreditar na existência de
carrapatos, foi possível o controle miasmas, provenientes da
da mesma. decomposição de organismos, que
A febre amarela foi a primeira originariam a doença.
doença humana para a qual se As idéias sobre a causa da fe-
detectou um inseto transmissor. bre amarela começaram a mudar
Esses estudos foram publicados em após o desenvolvimento da teoria
1884 pelo médico cubano Juan microbiana das doenças. No Brasil,
Carlos Finlay y de Barres (1833- como em outros lugares, os primei-
1915), embora só fossem ros sucessos da teoria logo fizeram
confirmados e aceitos vinte anos com que todos começassem a pro-
depois. curar e encontrar microorganismos
Antes de estudar o trabalho de causadores de tudo.
Finlay, vamos no entanto recuar um Nos Estados Unidos, em 1878,
pouco no tempo. um médico chamado Richardson
Já vimos que no final do afirmou ter descoberto bactérias em
século XVII e início do século forma de halteres, que seriam a
XVIII, houve uma grande epidemia causa da febre amarela. Deu-lhes o
de febre amarela no Brasil. Durante nome de Bacteria sanguinis febris
muito tempo, a doença parece ter flavae (bactéria sangüínea da febre
desaparecido do país. No entanto, amarela). A descoberta não foi con-
no fim de setembro de 1849, um firmada por estudos posteriores.
navio norte-americano, depois de No Rio de Janeiro, Domingos
passar por Havana e outros lugares José Freire Júnior, professor da
em que havia a febre amarela, Faculdade de Medicina, anunciou
chegou ao Brasil. Em outubro, em 1880 que havia encontrado a
apareceram alguns casos da doença causa da febre amarela: o Cryptoco-
em Salvador. No mês seguinte, já ccus xantogenicus - nome que si-
havia uma forte epidemia, que gnifica literalmente: a bolinha
acabou por atingir milhares de oculta que produz a cor amarela. O
pessoas, de São Paulo ao Pará. No microorganismo teria sido
Rio de Janeiro, até o final do localizado no fígado, baço e rins
século, houve um total de 58.000 dos doentes. Freire estudou o
vítimas da febre amarela. processo de transmissão do
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 161

micróbio e o encontrou na água, nos sim com a descoberta do inseto que


alimentos, no ar, nos cemitérios e transmitia a doença.
nos hospitais. A partir dessa A idéia de que os mosquitos
descoberta, produziu em 1883 uma podiam ter alguma relação com a
vacina contra a febre amarela, que febre amarela já havia sido proposta
aplicou em mais de 10.000 pessoas. em 1848, por Josiah Nott. Mas foi
Ele alegou ter reduzido a mortali- graças às investigações cuidadosas
dade da doença em 90%. Em 1885, do cubano Finlay, que em 1881 essa
o médico Araújo Góes estudou relação começou a ser esclarecida.
essas descobertas e negou a Sabia-se que a febre amarela
existência dos "Cryptococcus": produz imunidade: as pessoas que
Freire Júnior havia observado se salvam da doença não a
apenas hemácias. Sua vacina, por adquirem novamente. Por analogia
sua vez, era no mínimo inócua. com outras doenças, imaginou-se
O mais insistente "descobri- que era uma enfermidade
dor" brasileiro de micróbios da fe- contagiosa. Mas os fatos
bre amarela foi João Batista de La- conhecidos eram confusos.
cerda. Em 1883, divulgou a desco- Algumas pessoas que viviam junto
berta do Fungus febris flavae e, nos a doentes de febre amarela também
anos seguintes, à medida que eram ficavam doentes; outras, não.
percebidos seus erros, foi suces- Durante a época em que mais
sivamente "descobrindo" novos mi- se discutia o contágio da doença,
cróbios. vários médicos - Firth, Chervin,
Diante de uma seqüência de Guyon e outros - que eram firmes
fracassos e pela importância da opositores da doutrina do contágio,
doença, Dom Pedro II convidou quiseram dar ao mundo uma prova
Pasteur a vir ao Brasil estudar a da sinceridade de suas opiniões.
febre amarela. A princípio, Pasteur Eles próprios se expuseram ao
pareceu interessado. Solicitou ao contato das roupas de enfermos e de
imperador do Brasil permissão para cadáveres, dormindo em suas
fazer experiências com alguns con- camas, respirando o seu alento,
denados à morte. Dom Pedro II esfregando as mãos e o rosto com o
disse que isso era impossível, e vômito, ingerindo o próprio vômito
Pasteur desistiu da pesquisa. negro, inoculando-se com o sangue,
Durante décadas, houve su- a saliva, e excrementos de tais
cessivos pesquisadores que enfermos. Nenhum deles adoeceu.
anunciaram ter, enfim, corrigido o Concluíram que a doença não era
erro dos anteriores e encontrado o contagiosa.
"verdadeiro" micróbio causador da Esse tipo de teste repugnante,
febre amarela. por algum motivo incompreensível,
No caso desta doença, o avan- foi repetido várias vezes. Em 1901,
ço mais importante não ocorreu o grupo de pesquisadores norte-
com a descoberta de um micróbio e americanos que investigava a febre
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 162

amarela dormiu durante vinte dias pequeno cone de diâmetro igual a


em camas onde haviam morrido 1/30 de milímetro, pudesse reter
doentes de febre amarela, utilizando uma quantidade suficiente de vírus
suas roupas e travesseiros sujos de para realizar uma inoculação
vômito. No Brasil, Emílio Ribas e eficaz? Isso parecia absurdo. No
Adolpho Lutz fizeram o mesmo entanto, ele resolveu fazer o teste.
teste: confirmaram que não há con- Os experimentos foram reali-
tágio direto do doente para os sãos. zados perto de Havana, em uma
Finlay estava convencido de fazenda de jesuítas, onde os novos
que a doença não passava direta- padres se "aclimatavam", ao chegar
mente de um doente para uma pes- em Cuba.
soa sã. Imaginou então que pudesse Finlay coletou inicialmente
existir algum transmissor da febre vários dos mosquitos que eram
amarela. suspeitos de atuar como vetores.
Como em outros casos, o Para isso, ele esperava que
ponto de partida foi uma crença surgissem tais insetos e que
popular: acreditava-se que os mos- picassem uma pessoa (às vezes, ele
quitos pudessem produzir a doença. próprio). Dava preferência a
Para estudar essa hipótese, Finlay mosquitos jovens, "que
resolveu testar se era possível aparentemente nunca tivessem pica-
transmitir a febre amarela fazendo do alguém" (é difícil imaginar como
com que um mosquito picasse uma ele poderia reconhecer se o mosqui-
pessoa doente e, depois, uma pessoa to preenchia essa condição). O inse-
sadia. Buscando esse agente, por to era aprisionado em um tubo de
exclusão, fixou-se no estudo de um vidro, que era tampado com algo-
inseto sempre presente nos focos de dão. Quando o tubo era destam-
infecção, em Cuba e outros locais pado, invertido e colocado sobre o
próximos: um mosquito que picava braço de uma pessoa, o mosquito
as pessoas durante o dia, chamado imediatamente o picava, e ficava
Culex fasciatus (também conhecido sugando o sangue de 1 a 5 minutos.
como Stegomya fasciata e depois O tubo era tampado novamente. O
chamado de Aedes aegypti). mosquito demorava 2 ou 3 dias a
digerir o sangue e só então picava
FIGURA novamente.
MOSQUITO.TIF No dia 13 de agosto de 1883,
Finlay fez um desses mosquitos
O próprio Finlay tinha grandes picar um jovem que estava no sexto
dúvidas teóricas sobre a possibili- dia de febre amarela, em um
dade de que esse fosse o vetor. Afi- hospital de Cuba. No dia 15, o
nal de contas, a doença deve ser mesmo mosquito foi levado a picar
transmitida por alguma coisa mate- uma outra pessoa que também
rial. Seria possível que o aguilhão estava no sexto dia da febre amarela
de um mosquito, comparável a um e que morreu 3 dias depois.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 163

Transportado para a fazenda dos mosquito. Isso, na verdade, não foi


jesuítas, no dia 17 de agosto, o um defeito de seu trabalho, mas
mesmo mosquito foi levado a picar mostra que ele era um ótimo
um padre, como experimento. investigador. De fato: a febre
No dia 24 de agosto, o padre amarela é causada por um vírus,
caiu doente. Depois de 8 dias de que nem Finlay nem ninguém
doença, descritas detalhadamente poderia ter observado com as técni-
por Finlay, ele se recuperou. cas existentes na época.
Finlay repetiu o mesmo tipo Seus estudos foram confirma-
de teste com outros enfermos e dos em 1900 por uma comissão
novas pessoas sadias. Houve casos norte-americana, coordenada por
em que não houve transmissão da Walter Reed. Nessa época, o go-
doença. Finlay acabou por descobrir verno dos Estados Unidos tinha
que era necessário que inseto grande interesse no controle dessa
picasse um doente estivesse em doença, pois, além de atingir o país,
certa fase da doença (entre o a febre amarela inviabilizava a
terceiro e o sexto dia) e que houves- construção do Canal do Panamá,
se um intervalo de tempo entre o que era de enorme importância
contato do mosquito com o doente e econômica. Reed e seu grupo
a picada da pessoa sadia. Para obter confirmaram a descoberta de
com segurança a transmissão, era Finlay. No entanto, Reed também
necessário utilizar vários mosquitos não conseguiu descobrir um
ao mesmo tempo. micróbio associado à febre amarela.
Em estudos posteriores, Finlay Em 1901, o mesmo grupo des-
conseguiu também transmitir a cobriu que o soro sangüíneo, filtra-
febre amarela através de injeções do através de paredes de porcelana
com sangue colhido de doentes. Fez capazes de reter as bactérias, era
ainda testes de imunização, ainda capaz de transmitir a doença.
tentando desenvolver um processo Não se tratava, portanto, de ne-
de transmitir uma forma branda da nhuma bactéria ou microorganismo
doença. visível ao microscópio. Concluiu-se
A partir de seus estudos, já em que a causa da febre amarela era um
1884, Finlay indicou o modo de "vírus filtrável", ou simplesmente
evitar a propagação da febre amare- um vírus - no sentido moderno da
la: proteger os doentes dos insetos. palavra.
De certa forma, o vírus invisí-
FIGURA vel foi uma noção muito incômoda,
FINLAY.TIF nessa época. No caso da raiva, da
febre amarela, da varíola e em
Apesar de seu sucesso nesse vários outros, não se conseguia ver
estudo, Finlay não conseguiu obser- nenhum agente microscópico da
var o agente causador da doença, doença. Também não se conseguia
que seria transmitido pelo cultivar esses vírus invisíveis em
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 164

nenhum meio de cultura, fora de lay, Emílio Ribas iniciou em 1901 o


animais. Não se podia aplicar aqui, combate ao mosquito, conseguindo
portanto, os postulados de Koch. controlar a doença.
Apesar de não se chegar ao No Rio de Janeiro, sucessivas
agente causal da doença, a desco- epidemias de febre amarela produ-
berta do processo de transmissão foi ziam muitas mortes. De um modo
suficiente para o controle da febre geral, a doença vinha pelos navios.
amarela: desde que não houvesse Em 1896, chegou à cidade o navio
mosquitos, a doença não se espa- "Lombardia", com 340 pessoas.
lhava. A destruição dos mosquitos Dessas, apenas 7 não ficaram doen-
foi feita através de drenagem de tes. Morreram 234.
águas estagnadas e por substâncias Em 1903, Oswaldo Cruz foi
que destruíam as larvas dos insetos nomeado Diretor Geral da Saúde
(como petróleo). Com o combate ao Pública, pelo presidente Rodrigues
mosquito, a partir de 1901, a febre Alves e iniciou o combate à febre
amarela desapareceu de Cuba e do amarela. Nesse ano, houve 584
Panamá. mortes por essa doença, no Rio de
É interessante lembrar os pro- Janeiro. No ano seguinte, o número
cessos antigos de prevenção da fe- baixou para 48, mas em 1905 subiu
bre amarela. Como vimos, a grande novamente para 289. Nos anos se-
epidemia do Recife, no final do sé- guintes, o número de vítimas foi
culo XVII, foi combatida com me- caindo para 42, 39, 4 e, finalmente,
didas de limpeza, desinfecção de em 1909, não houve nenhuma
casas, roupas e objetos de doentes, morte por febre amarela. Logo de-
fogueiras, tiros de canhão, controle pois, a vigilância diminuiu, e em
da moralidade, ervas aromáticas, 1928 ocorreu um forte surto
enterros especiais de cadáveres, etc. epidêmico. De 1928 a 1929,
Ninguém se preocupou com mos- morreram 478 vítimas da febre
quitos nem com a existência de pân- amarela, no Rio de Janeiro.
tanos perto da cidade. Quais das Outros vetores de doenças fo-
medidas tomadas podem ter sido ram sendo descobertos, no final do
úteis, no caso? Talvez as fogueiras, século XIX e início do século XX.
as ervas aromáticas e os tiros de Em 1897, Ronald Ross descobriu
canhão tenham ajudado a espantar que o plasmódio da malária era
os mosquitos. As outras medidas, transportado por mosquitos - Ano-
por mais justificadas que fossem pheles - identificado por Grassi em
para os conhecimentos da época, 1898. A malária não era um proble-
foram inúteis. ma tão grave quanto a febre ama-
No Estado de São Paulo, a fe- rela, pois há muito tempo se conhe-
bre amarela produzia muitas mortes cia um bom remédio contra seus
no início do século. Em Sorocaba, efeitos - o quinino. No entanto, com
houve 2.300 casos. Diante da situa- o conhecimento de seu meio de
ção, conhecendo o trabalho de Fin-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 165

transmissão, foi também possível entanto, é difícil exterminar os


controlá-la. ratos; e como é muito mais fácil
No final do século XIX, houve matar os gatos, que são mais
epidemias asiáticas de peste bubôni- visíveis, provavelmente essas
ca. Seu estudo permitiu, primeiro, a medidas eram mais prejudiciais do
descoberta do microorganismo cau- que benéficas, pois eliminavam os
sador da doença por Yersin, em predadores naturais dos roedores.
Hong Kong, em 1894. Em 1897, Depois que se descobriu a re-
Simond e Ogata mostraram que a lação entre os ratos e a peste, em
peste bubônica é transmitida pela muitos lugares em que essa doença
pulga de ratos doentes. A peste aparecia, as autoridades
bubônica se espalha, estimularam a população a
primeiramente, entre os ratos, por combater os ratos, remunerando as
suas pulgas, que não costumam pessoas por corpos de ratos que
picar seres humanos. No entanto, fossem entregues. Essa medida era
quando um rato doente morre e seu perigosa, pois se o rato já estivesse
corpo esfria, as pulgas procuram doente, pouco depois de sua morte
outro hospedeiro e se não encon- as pulgas procurariam outro lugar
tram logo um outro rato, podem para viver - e escolheriam, muito
picar seres humanos e transmitir- provavelmente, a pessoa que matou
lhes a doença. Na época das o rato e o levou para entregar às
grandes pestes européias, já se autoridades sanitárias.
havia observado que havia grande Uma outra medida que era to-
mortalidade de ratos antes que a mada contra as pestes era a purifica-
doença aparecesse nas pessoas; mas ção das roupas, colocando-as ao ar
não se sabia a relação entre as duas livre. Em parte, isso pode ter sido
coisas. útil: as pulgas saem de roupas ex-
O modo de evitar o postas ao calor do Sol. Por outro
surgimento e a propagação da peste lado, dentre as dezenas de substân-
bubônica é a redução dos ratos, nas cias aromáticas recomendadas para
cidades. Isso pode ser conseguido, serem usadas nas casas, é possível
em parte, com medidas de limpeza: que alguma fosse também útil
redução do lixo acumulado pelas contra pulgas. Sabe-se que, no
ruas e em terrenos vazios, limpezas Brasil, existem ervas que, colocadas
de porões das casas, etc.; ou por dentro das casas, são capazes de
medidas dirigidas diretamente ao afastar as pulgas. Todas as outras
seu extermínio, através de venenos. medidas tomadas contra a peste, no
Nas antigas pestes, como vimos, o entanto, eram inúteis: queimar
primeiro tipo de medida era tomado substâncias aromáticas pelas ruas,
(com o fim consciente de diminuir o fazer fogueiras, cheirar esponjas
mau cheiro) e algumas vezes embebidas em vinagre e outras
procurava-se eliminar também medidas semelhantes não tinham
todos os animais das cidades. No
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 166

efeito nem contra os ratos, nem animal vem provavelmente de seu


contra as pulgas. hábito alimentar: ele tira sangue das
Houve descobertas pessoas, exatamente como os anti-
inesperadas de vetores. Durante o gos barbeiros (que eram os sangra-
século XIX, havia sido percebido dores) faziam. Por outro lado, como
que a transmissão do tifo se dava, ele ataca o rosto das pessoas, pode
como no caso do cólera, pela água. ser que o nome se origine disso:
Apesar disso, não se conseguia eles atacam a região da barba.
controlar totalmente a doença, que Como estavam sendo desco-
irrompia às vezes entre os soldados, bertos muitos insetos transmissores
durante a guerra. Em 1909, Charles de doenças, Chagas resolveu exami-
Nicolle estabeleceu que o tifo era nar alguns barbeiros à procura de
transmitido por piolhos, que até microorganismos. Talvez ele espe-
então eram considerados como rasse encontrar um novo vetor da
incômodos, mas inofensivos. malária. Mas achou dentro de
Deve-se a um brasileiro, alguns barbeiros um novo tipo de
Carlos Chagas, a descoberta de uma microorganismo: certos flagelados,
nova doença, seu microorganismo semelhantes aos que provocam a
causador e seu vetor, em uma série "doença do sono" do gado africano.
de estudos realizados no início do Mais tarde, eles foram batizados
século. Em 1907, estava sendo como Trypanosoma cruzi.
construída uma estrada de ferro no Esses microorganismos
norte de Minas Gerais. Havia muita pareciam novos e não se conhecia
malária na região e Carlos Chagas nenhuma doença produzida por
foi incumbido de organizar as eles. No entanto, Chagas prosseguiu
medidas que permitissem proteger sua pesquisa. Experimentou picar
os trabalhadores contra a doença. diversos animais pelo barbeiro.
Durante esse trabalho, Chagas to- Observou que, depois de algumas
mou conhecimento da existência de semanas da picada, era possível
um grande inseto que se alimentava encontrar os mesmos tripanossomos
de sangue, chamado "barbeiro". o sangue desses animais de teste.
Esse inseto, quase do tamanho de Nem todos os animais eram
uma barata, vive escondido em suscetíveis. Chagas conseguiu
frestas das casas, durante o dia, mas infectar macacos, coelhos, cobaias e
à noite sai de seu esconderijo e suga cães. As cobaias eram
o sangue dos moradores. especialmente sensíveis ao
Normalmente, quando se acende microorganismo e morriam depois
uma luz, ele se enconde de uma semana.
rapidamente. Conta-se que a Posteriormente, examinando o
mordida não é dolorosa e que o sangue de pessoas da região estuda-
inseto ataca em geral o rosto das da, Chagas encontrou o tripanosso-
pessoas adormecidas, sem que elas mo no sangue de alguns habitantes,
acordem. O nome popular desse especialmente crianças. Através do
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 167

estudo desses enfermos, conseguiu cura para a doença, nem vacina


caracterizar uma doença nova para contra ela.
a Medicina, que era conhecida pelo Há suspeitas de que o conhe-
povo como "opilação" e que passou cido naturalista Charles Darwin foi
a ser chamada "doença de Chagas". vítima dessa doença. Durante sua
As crianças que apresentavam tripa- juventude, ele viajou pela América
nossomos tinham sintomas de ane- do Sul e observou em vários locais
mia, pequeno crescimento, desor- um animal semelhante ao barbeiro.
dens nervosas, aumento dos gân- Ele narrou que era muito desagradá-
glios linfáticos e, às vezes, fígado e vel sentir esses grandes insetos su-
baço inchados, além de outros sin- bindo por seu corpo para picá-lo.
tomas. Os microorganismos às ve- Darwin dizia que os nativos de Iqui-
zes desapareciam do sangue, tor- qui se divertiam com esse animal,
nando-se mais fáceis de encontrar capturando-o e vendo-o sugar o
em períodos de febre. Às vezes a sangue do dedo de uma pessoa,
doença era grave e levava à morte. pois, embora fosse normalmente
Em outros casos, os sintomas mais achatado, ele inchava e ficava re-
agudos passavam e a doença se tor- dondo. Posteriormente, Darwin teve
nava crônica, produzindo gradual- problemas incuráveis de saúde com
mente problemas cardíacos graves. alguns sintomas que concordam
No campo, onde a doença de Cha- com os da doença de Chagas, que
gas ocorre mais comumente, é gra- era então desconhecida.
nde o número de pessoas atacadas A gradativa descoberta de ve-
por essa enfermidade de forma tores das doenças permitiu controlar
crônica, muitas vezes sem saber que males terríveis, como a peste
estão doentes. bubônica, a malária, a febre amarela
e outras enfermidades. Há, no en-
FIGURAS tanto, a necessidade de que as auto-
BARBEIRO.TIF ridades e a própria população este-
TRYPAN.TIF jam conscientes da necessidade de
manter uma constante vigilância
O trabalho de Carlos Chagas para evitar que elas reapareçam.
foi posteriormente confirmado, em Quando se pensa que a luta foi ven-
quase todos os seus detalhes. Pouco cida e que não é preciso tomar mais
se acrescentou ao que ele próprio cuidado, pode haver o ressurgi-
fez, com seus auxiliares. Este bom mento da febre amarela e do den-
exemplo de pesquisa microbiana no gue, como ocorreu no Brasil na dé-
Brasil nos redimiu dos trabalho de cada de 1980.
Lacerda, Freire Júnior e outros.
No caso da doença de Chagas,
foi possível apenas encontrar um
modo de prevenção, pelo combate
ao barbeiro. Não existe até hoje
O SÉCULO XX: SUCESSOS E
12 DIFICULDADES

Seriam necessários muitos ou- Pode-se evitar a transmissão


tros capítulos para discutir o desen- dessas doenças conhecendo-se o
volvimento de nossa história ao modo pelo qual cada uma se trans-
longo do século XX. Não será pos- mite e através de cuidados com os
sível fazer isso. As principais lições enfermos (impedindo que eles dis-
já foram apresentadas e, de seminem os microorganismos cau-
qualquer forma, é impossível fazer sadores da doença), controlando os
um estudo histórico completo. vetores, tomando cuidados com a
Veremos apenas as linhas gerais água, etc. - dependendo, em cada
que se desenvolveram após o século caso, do conhecimento do processo
XIX, delineando as tendências, de transmissão. Em certos casos, é
sucessos e dificuldades do período possível também proteger as pes-
mais recente. soas sãs através de "vacinas" que
Ao longo de todo o período produzem uma versão branda da
que foi aqui estudado, observou-se enfermidade e dão depois
um lento processo de avanço do imunidade contra ela.
conhecimento. A partir de idéias Ao longo do século XX, pros-
vagas sobre o contágio, chegou-se seguiram as linhas de trabalho inici-
no século XIX a uma compreensão adas no século anterior:
do processo de transmissão de do- - identificação de microorganismos
enças: as doenças transmissíveis são causadores de doenças;
causadas por seres vivos microscó- - identificação de processos de difu-
picos, que se reproduzem dentro são desses microorganismos;
dos indivíduos doentes, podendo - identificação de vetores;
depois ser transferidos a pessoas sãs - busca de vacinas.
pelo ar, pelo contato físico, por Além disso, houve um grande
dejetos que se espalham pelo solo desenvolvimento de novos medica-
ou pela água, por objetos sujos, ou mentos (como os antibióticos).
mesmo por transportadores Os exemplos já mostrados
(vetores) animais - geralmente inse- permitem perceber que nada disso é
tos. simples. A identificação correta de
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 169

um microorganismo costuma ser décadas, diferentes pesquisadores


precedida de muitos erros anterio- diziam ter encontrado o
res; e mesmo no século XX ocorre- "verdadeiro" vírus dessa doença.
ram muitas "descobertas" de micro- Depois de muito tempo, percebeu-
organismos que não existem ou que se que o caso é muito mais
não são a causa real das doenças complexo. Não existe "o câncer",
estudadas. como doença única, assim como
Seria inútil aqui fazer uma não existe "a febre" como doença
longa lista de doenças, nomes de única. Os diferentes tipos de câncer
microorganismos que as causam, se caracterizam por uma
data de sua descoberta, nome dos multiplicação anormal das células,
seus descobridores. Estaríamos mas esse fenômeno pode ter
reduzindo a um esquema seco e diferentes tipos de causa. Há formas
inútil as centenas de pesquisas que de câncer que se devem a vírus,
foram necessárias para superar to- como há outras formas que
das as dificuldades e fazer a dependem de fatores hereditários - e
identificação correta, em cada caso. muitos tipos possuem causa ainda
Houve um avanço técnico fun- ignorada.
damental, ocorrido no século XX: a Muitas vacinas novas foram
observação dos vírus. No final do desenvolvidas durante o século XX:
século XIX, já havia sido introdu- contra difteria, poliomielite, tétano,
zida a hipótese de existência de tuberculose, meningite, etc. No en-
certos microorganismos ultra-mi- tanto, em muitos casos de impor-
croscópicos (os "vírus filtráveis"), tantes doenças foi impossível o
que não eram vistos nos melhores desenvolvimento de vacinas. A le-
microscópios existentes na época, pra, por exemplo, embora seja uma
passavam por poros dos filtros de doença que pode ser tratada, não
porcelana e não eram cultiváveis dispõe ainda de uma vacina eficaz.
nos meios de cultura conhecidos. No Índia, onde essa enfermidade é
Apenas a partir da década de 1940, muito mais comum do que no Bra-
após o desenvolvimento do sil, foram desenvolvidas muitas
microscópio eletrônico, foi possível tentativas de vacinas para a lepra,
observar, descrever e classificar mas os resultados ainda não foram
esses vírus. satisfatórios. Talvez, nesse caso, se
houvesse interesse dos países ricos
FIGURA e dos grandes laboratórios privados
STANLEY.TIF de medicamentos, a vacina já
tivesse sido obtida há muito tempo.
Houve grandes fracassos na No caso da aids, por exemplo, o
procura de microorganismos de al- grande interesse das nações mais
gumas doenças. Um importante ricas está levando a um
caso desse tipo foi a frustrante desenvolvimento rápido das
busca do vírus do câncer. Durante
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 170

pesquisas, em direção a vacinas que dios contra as doenças causadas por


protejam contra a doença. microorganismos. Todos os antibió-
Em outros casos, apesar de ticos existentes foram descobertos
todo interesse, parece de fato im- no século XX. Mas como estamos
possível desenvolver uma vacina. É centralizando nosso estudo na com-
o caso da gripe, que se apresenta de preensão e prevenção das doenças
cada vez com novas características, transmissíveis (não em sua cura),
talvez por causa de mutações do esse assunto não será abordado
vírus que a causa. Já foram desen- aqui.
volvidas muitas vacinas contra a Sob o ponto de vista concei-
gripe, mas cada uma só funciona tual, houve no século XX um gra-
para uma variedade específica da nde avanço no estudo da imunolo-
doença. Isso pode parecer um pro- gia, para tentar compreender os
blema de pequena importância, pois processos que protegem uma pessoa
estamos atualmente acostumados a contra os microorganismos pato-
pensar na gripe como sendo pouco gênicos. Por que uma pessoa não
perigosa. Isso não é verdade. Exa- está sujeita à mesma doença duas
tamente por se mostrar de cada vez vezes, para certas doenças? O que
sob uma nova forma, a gripe pode essas doenças têm de especial, e o
ser extremamente perigosa. Em que ocorre com o organismo da
1918, a chamada "gripe espanhola" pessoa? Por que certas pessoas são,
se difundiu por todo o mundo, ma- desde seu nascimento, imunes a
tando cerca de 30 milhões de pesso- certas doenças?
as - mais do que a primeira grande Não se pode dizer que as res-
guerra4. Não havia e ainda não exis- postas obtidas até agora sejam defi-
te nenhum modo de proteger as nitivas, mas a imunologia atingiu
pessoas contra uma ocorrência um grande desenvolvimento. Se os
desse tipo. Se surgir nova forma recursos imunológicos do corpo hu-
mortal de gripe, ela ceifará nova- mano fossem totalmente compreen-
mente milhões de vidas. didos, seria possível desenvolver
proteções mais eficazes contras as
FIGURA doenças transmissíveis.
GRIPE.TIF No início do desenvolvimento
da teoria microbiana, acreditava-se
Houve em nosso século um que a entrada de microorganismos
enorme desenvolvimento de remé- em um organismo sempre causava a
doença. Isso não é verdade, e adver-
sários da teoria apontavam que, se
4 No Rio de Janeiro, durante a fase fosse assim, durante as epidemias,
mais intensa da epidemia de gripe, todos ficariam doentes. No entanto,
morreram 13.000 pessoas em dois meses.
Uma porcentagem entre 5 e 6% da
algumas pessoas adoecem e outras
população do Rio de Janeiro e de São não.
Paulo morreu em 1918 de gripe.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 171

Sabe-se, atualmente, que o es- Não há dúvidas de que aquilo que


tado emocional de uma pessoa os homeopatas dizem ser possível é
influi em seu sistema imunológico, algo extremamente desejável, pro-
podendo aumentar ou reduzir sua porcionando um novo modo de
resistência à ação de microorganis- proteger as pessoas sãs das doenças
mos. A preocupação, medo, ansie- transmissíveis.
dade, tristeza e outros estados seme- É preciso sempre lembrar que
lhantes enfraquecem o sistema nosso conhecimento avançou, mas
imunológico, tornando o organismo não é perfeito nem completo. Nem
mais suscetível aos microorganis- todas as doenças são causadas por
mos. O cansaço também tem o microorganismos: elas podem ter,
mesmo efeito. Pelo contrário, a como vimos, uma origem em ca-
tranqüilidade, segurança, alegria e rências alimentares - e, no Brasil,
outros estados semelhantes certamente esse é um ponto de ex-
possuem efeito contrário, trema importância. Há doenças cau-
protegendo contra a infecção por sadas pelas bebidas alcoólicas; há
microorganismos. De certa forma, doenças produzidas por problemas
os antigos médicos que escreveram hereditários; e vários outros tipos
sobre a peste estavam certos: o que nada têm a ver com as doenças
medo e a tristeza contribuem para transmissíveis que estudamos aqui.
que as pessoas caiam vítimas das As doenças cardíacas, que são atu-
doenças transmissíveis. almente uma das mais importantes
Há correntes médicas que causas de mortalidade entre adultos,
consideram muito mais importante não são causadas por microorganis-
o estado geral do organismo do que mos. A teoria microbiana da doen-
a eventual presença de ças foi um importante passo no
microorganismos nele e que por desenvolvimento da Medicina, mas
isso procuram preservar as pessoas não foi o último passo. É preciso
das doenças transmissíveis por manter o espírito aberto à desco-
outros meios. A homeopatia berta de tipos completamente novos
defende a idéia de que um de processos patológicos, para que
organismo saudável é resistente aos o conhecimento adquirido não seja
microorganismos; e que uma pessoa uma barreira aos avanços futuros.
pode se preparar contra cada doença Sob o ponto de vista de avan-
transmissível tomando certos ço do conhecimento, há, por um
remédios homeopáticos específicos. lado, a constante busca de novos
Desde o século passado, a ho- microorganismos e dos modos de
meopatia tem sido muito discutida, combatê-los; e, por outro lado, a
mas parece nunca ter sido possível procura de uma compreensão mais
uma avaliação desapaixonada de profunda do modo pelo qual eles
sua eficácia: os fatos nunca mudam atuam no organismo e da reação do
a opinião dos que são contrários ou corpo humano contra eles. O pri-
favoráveis a essa prática médica. meiro desses caminhos já nos pro-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 172

porcionou muitos resultados valio- nismos e outras vezes não - e isso


sos; o segundo, talvez revolucione a não acontece.
Medicina preventiva no século Houve, como vimos, casos em
XXI. que a teoria microbiana foi utilizada
Paralelamente ao avanço do de forma exagerada ou pouco crí-
conhecimento, há outros pontos que tica. Por mais estranho que pareça,
devem ser considerados: até que a aceitação de uma teoria científica
ponto esses novos conhecimentos passa por processos semelhantes
foram aceitos e assimilados pelos aos da aceitação de uma religião ou
médicos e pela população em geral? partido político: nem sempre as
até que ponto esses conhecimentos pessoas possuem bom
são utilizados de forma adequada conhecimento ou bons argumentos
para a prevenção das doenças para aceitar ou rejeitar uma nova
transmissíveis? teoria, mas aderem a ela ou a negam
No decorrer do estudo de cada violentamente por motivos de difícil
doença em particular, houve sempre compreensão. As pessoas que
uma saudável discussão e crítica aceitaram de forma entusiástica a
das evidências apresentadas na teoria microbiana das doenças
identificação dos agentes geralmente não estavam mais bem
causadores, do seu modo de informadas do que as que a
transmissão, dos vetores. Para o negavam.
bem da ciência, isso deve sempre A nível popular, em todo o
acontecer. A aceitação de novos mundo, a teoria microbiana foi di-
resultados sem crítica nenhuma é vulgada e aceita. É claro que as pes-
pelo menos tão perigosa quanto a soas com baixo nível de instrução
negação sistemática de qualquer podem nunca ter ouvido falar
novidade. nessas idéias, mas de um modo
De um modo geral, pode-se geral essa teoria se integrou na
dizer que a teoria microbiana teve visão popular de mundo, assim
uma rápida difusão e aceitação, no como as idéias de que a Terra é
final do século XIX. No início do redonda. Isso não quer dizer que a
século XX, apenas por teimosia população possua um conhecimento
seria possível ignorar a causa mi- científico dessa teoria. Para se
crobiana e o meio de transmissão de adquirir um conhecimento
certas doenças. Houve pessoas, é científico da teoria microbiana, é
verdade, que mantiveram a crença necessário conhecer os fatos e
de que os microorganismos seriam argumentos em que ela se baseia.
apenas um sintoma e não os agentes Uma pessoa sem formação
transmissores das enfermidades. científica acredita no poder dos
Mas essa crença só poderia ser jus- micróbios como acredita nos anjos
tificada se algumas vezes a doença da guarda: simplesmente porque
fosse acompanhada por microorga- alguém diz que eles existem e que
estão à nossa volta. Mesmo pessoas
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 173

relativamente bem informadas tiva era que funcionava. Por outro


dificilmente saberão quais os testes lado, a própria eficácia da
necessários para se estabelecer que vacinação foi colocada em dúvida:
certo microorganismo é a causa de parecia que nem sempre ela
determinada doença. A crença protegia as pessoas da doença. Por
generalizada na teoria microbiana fim, em certos casos a vacinação
não é, portanto, uma mostra de era perigosa, pois houve muitos
evolução científica popular: para a casos de pessoas que morreram por
grande maioria da população, essa causa da inoculação.
crença é da mesma natureza que No Brasil, já existia, desde o
qualquer superstição. século XIX, a vacinação contra a
Talvez exatamente por isso, os varíola. Mas só em 1904 foi propos-
conhecimentos médicos modernos ta a vacinação obrigatória de toda a
coexistam ainda hoje com interpre- população contra essa doença. O
tações religiosas e mágicas das do- projeto, apresentado e defendido
enças. Quando a aids surgiu, não pelo governo de Rodrigues Alves,
houve muitas pessoas que foi duramente combatido por várias
afirmaram tratar-se de um castigo correntes. Os monarquistas, positi-
divino por causa dos pecados huma- vistas, operários, militares e outros
nos? Quando as técnicas médicas grupos se uniram, formando uma
não curam uma pessoa, ela não "liga contra a vacina obrigatória". A
recorre a orações aos santos, imprensa se posicionou contra a
benzedeiras ou curandeiros? Os vacinação, divulgando "charges"
substratos mais profundos de nossa que ridicularizavam o processo.
cultura popular não são muito Apesar de toda a oposição, o pro-
diferentes dos de dois mil anos jeto de lei foi aprovado no dia 9 de
atrás. novembro de 1904. Seguiu-se ime-
A questão das vacinas foi um diatamente um motim, que
capítulo à parte em toda a discussão paralisou a cidade do Rio de Janeiro
da nova teoria. No século XIX, a durante uma semana. Uma
aceitação da teoria microbiana era, insurreição militar tentou depor
em princípio, independente da acei- Rodrigues Alves, sem sucesso.
tação das vacinas. As vacinas não Não se deve pensar que a
foram uma conseqüência da teoria oposição à vacinação tenha sido
microbiana nem eram explicadas apenas fruto da ignorância e do pre-
por ela. Houve uma grande conceito. Vejamos rapidamente os
resistência contra a obrigatoriedade argumentos que eram utilizados
da vacinação, por vários motivos. pelos dois lados.
Um deles foi a falta de Um dos defensores da vacina-
compreensão do processo de ção obrigatória, Vieira Bueno, ar-
imunização: a vacinação foi gumentava que:
descoberta ao acaso, era completa- - em todos os países cultos a vaci-
mente empírica. Sua única justifica- nação anti-variólica era obrigatória;
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 174

- graças a isso, a varíola não apare- - a vacinação pode não proteger da


cia mais onde há vacinação e doença: no Egito, apesar da vacina-
revacinação (por exemplo, na ção e re-vacinação, o exército bri-
Alemanha); tânico foi atacado pela varíola:
- durante a guerra franco-prussiana, 1,22% contraíam a doença e
os franceses não tinham a vacinação 0,175% morriam;
obrigatória; morreram de varíola - há perigos na vacinação: 1.069
23.600 franceses, enquanto de um crianças morreram pela vacinação
milhão de soldados alemães que na Inglaterra e em Gales, antes de
atravessaram a França só houve 659 1859;
óbitos; - faltava uma base científica para a
- antigamente atacava-se a vacina- vacina, que não era justificada pela
ção porque ela podia ser o veículo teoria microbiana.
da sífilis e da tuberculose, mas com
a vacina a partir de animais não FIGURA
havia mais este perigo. OSWCRUZ2.TIF
Respondendo a esses
argumentos, um opositor da Como se vê, havia argumentos
vacinação obrigatória, Horta fortes dos dois lados. Os que de-
Barbosa, afirmava: fendiam a vacinação obrigatória
- a vacinação não era obrigatória em nem sempre reconheciam a
todos os países cultos: a obrigatori- existência de limitações e perigos
edade só existia na Alemanha, Fran- reais do processo - e talvez os
ça, Sérvia e Japão. Não existia na adversários da vacinação tivessem
Holanda, Suíça, Bélgica e Ingla- mais razão do que os defensores, na
terra. Na Suíça, houve rejeição po- época. A longo prazo, a vacinação
pular à obrigatoriedade (70%) e ela venceu e a varíola foi a única
não foi instituída; na Inglaterra, doença totalmente eliminada da
havia obrigatoriedade e foi face da Terra, pela Medicina. Mas
revogada por causa da oposição que até hoje é necessário admitir que as
surgiu contra ela5; vacinas apresentam riscos, que não
oferecem proteção total e que não
5 Na Inglaterra, os argumentos se chegou a uma compreensão com-
principais contra a vacina obrigatória pleta de seu modo de atuação.
foram: liberdade de escolha e falta de Quanto aos processos de pre-
necessidade da vacina (bastariam cuidados
de higiene para evitar a doença). Enquanto
venção das doenças transmissíveis
a prática era obrigatória na Inglaterra, de por medidas sanitárias e controle de
1873 a 1892, 41.215 homens e 992 vetores, pode-se dizer que nunca
mulheres se recusaram à vacinação e foram
processados por esse crime; 144 foram
presos, 24.312 foram multados e 9.126 1898, quem apresentasse objeções
tiveram outras penas; de 1893 a 1902 conscientes à vacinação não precisavam se
houve 15.446 pessoas processadas, das vacinar e os pais de 414.812 crianças se
quais 11.659 foram condenadas; a partir de recusaram à vacinação.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 175

houve uma oposição significativa a antissépticos. Além disso, as


essas medidas. Algumas vezes, os práticas hospitalares de higiene
interesses comerciais foram ainda deixam muito a desejar.
superiores ao interesse da saúde Sob o ponto de vista da popu-
pública, e não foram aplicadas lação em geral, no Brasil, pode-se
medidas de controle de pessoas e dizer que existe pouca conscientiza-
mercadorias nos portos, alegando-se ção do perigo representado por
que essas medidas eram doenças como a febre amarela ou o
desnecessárias e inúteis. Mas, de cólera. A propaganda governamen-
um modo geral, aceitou-se a tal divulgando os cuidados necessá-
importância das medidas de rios contra essas doenças, na década
isolamento de doentes, controle de de 1980, evitavam toda descrição
dejetos, extermínio de vetores, etc. dos sintomas da doença. A campa-
Atualmente, quando tais medidas nha contra a disseminação do cólera
não são adotadas de forma ade- (que se mostrou ineficaz) divulgava
quada por algum governo (como o que essa doença se transmitia pela
brasileiro), isso não ocorre por água e pelos alimentos (mas não
ignorância científica ou por dúvidas falava sobre fezes e vômitos dos
sobre a eficácia dos métodos de doentes, porque isso seria muito
prevenção: a omissão é geralmente desagradável). Dizia que o cólera
causada por falta de interesse políti- podia matar - mas não dizia que 1/4
co na prevenção das doenças. dos doentes podem morrer, se não
Apesar de todos os cuidados são tratados imediatamente. Dizia
utilizados modernamente, ainda é que as pessoas que tivessem início
muito comum a ocorrência de infec- de diarréia líquida deviam procurar
ções nos hospitais. Apenas para os postos de saúde - mas não in-
citar um dado: no início da década formavam sobre outros sintomas da
de 1990, cerca de 30% dos recém- doença, nem explicavam como a
nascidos em um bom hospital de pessoa definha e morre, desidratada,
Campinas (CAISM/UNICAMP) em poucas horas, por causa dessa
adquiriam infecções hospitalares. doença. Como resultado, a visão
Nos hospitais norte-americanos, a popular da doença é de que o cólera
porcentagem varia entre 5 e 25%. é um tipo qualquer de diarréia, com
Isso mostra que, na prática, é muito o qual não precisamos nos preocu-
difícil evitar a transmissão de doen- par muito. Talvez por isso o cólera
ças quando há muitas pessoas no ainda esteja presente no Brasil, na
mesmo local. A desinfecção e o uso década de 1990.
de antibióticos não garantem a pro- Mesmo quando se conhece
teção contra microorganismos, pois muito bem o processo de transmis-
o próprio combate aos mesmos são de uma doença, como a aids,
acaba por produzir, por seleção, o pode ser impossível deter o seu
surgimento de variedades avanço por motivos sociais e cultu-
resistentes às drogas e aos rais. No início do século, quando
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 176

uma pessoa tinha febre amarela, as ações de âmbito político e go-


autoridades eram notificadas e ela vernamental, que exigem recursos e
era literalmente presa em um interesse. Mesmo quando há o
quarto, totalmente fechado com conhecimento e existem verbas, a
tela, para não poder passar a doença incompetência ou falta de interesse
a outras pessoas. Ninguém discutia político pode ocasionar a morte de
se isso violava ou não os direitos da milhares de pessoas.
pessoa. Atualmente, ninguém pode Não podemos ser excessiva-
propor que os doentes de aids sejam mente otimistas nem pessimistas.
isolados ou sequer identificados, Por um lado, a situação atual do
pois isso não seria politicamente Brasil, sob o ponto de vista médico,
correto. Será correto que uma é certamente melhor do que a dos
pessoa saiba que está com aids e países europeus no século XIX.
oculte esse fato daqueles que estão Houve um avanço. Por outro lado,
à sua volta, em situações de risco não atingimos o nível atual dos paí-
(contato sexual, por exemplo)? ses mais avançados. A falta de con-
Seria possível controlar a aids dições higiênicas, de alimentação
e impedir o aumento que observa- adequada e mesmo de instrução da
mos? Provavelmente sim. Mas isso maior parte da população brasileira
talvez exigisse medidas antipáticas impede uma adequada prevenção de
e uma conscientização popular de doenças transmissíveis.
um tipo que se tem evitado. Como Considerando-se o mundo,
no caso do cólera, as campanhas de como um todo, também não se deve
prevenção da aids são "suaves", ser excessivamente otimista nem
nunca mostram os estragos pessimista. Constatamos que houve
horríveis que essa enfermidade avanços incríveis, quando compa-
causa nem divulgam as assustadoras ramos a situação atual com a de um
estatísticas dessa doença no Brasil. século atrás. Mas o próprio surgi-
Apenas aqueles que conviveram mento e disseminação da aids mos-
com doentes em estágio avançado tra que sempre existirão novos pro-
sabem de fato o que a aids provoca. blemas contra os quais será preciso
Para os outros, continua a ser um lutar.
risco obscuro de algo que talvez
possa matar, mas que não
amedronta, pois a população é
"protegida" contra as informações
sobre os sintomas e
desenvolvimento da doença.
Existe uma distância entre a
obtenção de um conhecimento e a
aplicação desse conhecimento.
Entre esses dois elos da Medicina
preventiva, existem decisões e
CRONOLOGIA

Povos primitivos (pré-história) séc. II d. C. - Cláudio Galeno


- Crenças sobre magia e sistematiza a medicina racionalista,
transmissão de doenças por contato. baseada nos humores
3.000 antes de Cristo - Meso- séc. II d. C. - A astrologia
potâmia - medicina religiosa. médica é sistematizada por Cláudio
1.000 a. C. - Índia - doenças Ptolomeu
produzidas por vermes invisíveis; Idade Média - Europa - Medi-
regras de purificação cina praticada por monges
1.000 a. C. - Hebreus - medi- sécs. X - XI - Desenvolvimen-
cina religiosa - impurezas causam to da medicina árabe (Rhazes, Avi-
doenças cena)
600 a. C. - Grécia - templos séc. XII - Criação das primei-
dedicados a Asclepios, deus da me- ras universidades européias
dicina séc. XII - Proibição da prática
430 a. C. - Ocorre uma grande da medicina pelos monges, na Euro-
peste em Atenas, descrita por Tucí- pa
dides séc. XIII - Obra popular sobre
400 a. C. - Grécia - medicina conservação da saúde: Regimen
de Hipócrates sanitatis Salernitanum
350 a. C. - A teoria dos quatro séc. XIII - Petrus Hispanus
elementos é sistematizada por Aris- (papa João XXI) escreve o Tesouro
tóteles dos pobres
séc. III a. C. - Início do desen- séc. XIV - A "peste negra"
volvimento de aquedutos e esgotos mata um terço da população da
em Roma Europa
séc. I d. C. - Roma - Plínio, o séc. XV - É escrito o Malleus
Velho, escreve a obra História na- maleficarum, um manual dos in-
tural quisidores sobre feitiçaria
séc. I d. C. - O filósofo sécs. XV - XVI - Grandes na-
atomista Lucretius discute vegações dos espanhóis e portugue-
"sementes" de doenças ses - surgimento de novas doenças
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 178

séc. XVI - Popularização de 1836 - Antoine Donné desco-


obras sobre astrologia, na Europa bre microorganismos associados a
séc. XVI - Girolamo Fracasto- doenças venéreas
ro escreve sobre a sífilis e propõe 1840 - Jacob Henle propõe
uma teoria do contágio por germes que todas as doenças contagiosas
séc. XVI - Crenças sobre seriam produzidas por microorga-
transmissão de doenças pelo ar nismos
sécs. XVI e XVII - Tentativas 1847 - Ignaz Semmelweis des-
de criar uma nova medicina: Para- cobre que uma doença mortal (a
celsus, Van Helmont e outros febre puerperal) era transportada
1665 - Peste em Londres, des- pelos médicos, dos doentes para os
crita por Daniel Defoe. sãos
séc. XVII - Athanasius 1849 - Félix Pouchet descobre
Kircher sugere que as doenças vibrião nos excrementos de doentes
contagiosas são transmitidas por de cólera
animais microscópicos 1850 - Casimir Davaine e
séc. XVII - Epidemias de Pierre Rayer descobrem um bacilo
febre amarela no Brasil causador de uma doença dos
séc. XVIII - Giovanni Lancisi carneiros ( antraz)
defende a teoria dos miasmas 1855 - John Snow publica es-
séc. XVIII - Os europeus co- tudos que mostram que o cólera se
meçam a usar os processos orientais transmite principalmente pela água
de inoculação da varíola contaminada
1774-77 - Joseph Priestley década de 1860 - são observa-
realiza estudo químico do ar e do dos vários organismos microscópi-
seu papel na vida cos que ocorrem em diferentes do-
1796-98 - Edward Jenner des- enças
envolve o processo de vacinação 1861-68 - François Jules Le-
contra varíola maire estuda substâncias anti-sépti-
sécs. XVIII - XIX - Movi- cas, detecta microorganismos no ar
mento sanitarista, inspirado na teo- e propõe que eles são as causas das
ria dos miasmas, promove medidas doenças transmissíveis
de higiene pública e reduz as doen- 1863-69 - Davaine comprova
ças o papel de bactérias como causa do
1831 - Samuel Hahnemann su- antraz
gere que médicos e outras pessoas 1865-67 - Antoine Béchamp,
sadias podem transportar doenças combatendo pesquisas de Louis
1835 - Agostino Bassi desco- Pasteur, mostra que uma nova do-
bre que uma doença dos bichos da ença dos bichos da seda (pebrina) é
seda é produzida por microorganis- produzida por parasitas microscópi-
mos cos
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 179

1867-1871 - Joseph Lister 1903 - Oswaldo Cruz inicia o


desenvolve o método cirúrgico anti- combate à febre amarela no Rio de
séptico Janeiro
1876 - Robert Koch estuda o 1907 - Carlos Chagas
antraz e desenvolve a metodologia descobre a "doença de Chagas"
de estudo de microorganismos cau- transmitida pelo barbeiro
sadores de doenças 1918 - Epidemia mundial de
1880-83 - Robert Koch identi- "gripe espanhola" mata 30 milhões
fica os microorganismos causadores de pessoas
da tuberculose e do cólera
1880-85 - Louis Pasteur e co-
laboradores desenvolvem vacinas
contra antraz e raiva
década de 1880 - descoberta
de vários microorganismos
causadores de doenças, por diversos
pesquisadores
1880 - Domingos José Freire
Júnior pensa ter descoberto o mi-
cróbio causador da febre amarela
1883 - João Batista Lacerda
pensa ter descoberto os micróbios
causadores do beribéri e da febre
amarela
1884 - Juan Carlos Finlay y de
Barres mostra que a febre amarela é
transmitida por um mosquito
1889 - Theobald Smith estabe-
lece que uma doença (febre bovina)
era transmitida por carrapatos
1894-97 - Descoberta do mi-
croorganismo causador da peste
bubônica e de sua transmissão por
pulgas de ratos
1900-01 - Uma comissão che-
fiada por Walter Reed confirma os
estudos de Finlay sobre a febre
amarela e estabelece que a doença é
causada por um vírus filtrável
1901 - Gerrit Grjns descobre
que o beribéri é causado por carên-
cia de uma substância [vitamina]
existente em alguns alimentos

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