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CONTÁGIO:
HISTÓRIA DA PREVENÇÃO
DAS DOENÇAS TRANSMISSÍVEIS
colaboração de:
ram as vacinas? Esses são alguns dos pontos que serão tratados nas páginas
seguintes.
Este livro não irá abranger todos os aspectos da história da Medicina. Isso
exigiria uma obra muitas vezes maior do que esta. Mesmo o assunto aqui
tratado - as doenças transmissíveis e sua prevenção - é excessivamente amplo
para ser estudado em detalhe em um trabalho como este. Será necessário deixar
de lado vários aspectos, focalizando apenas alguns episódios mais importantes.
Iremos percorrer uma longa história, de mais de dois mil anos, para desco-
brir como diversos povos, em diferentes épocas, concebiam o processo de con-
tágio. Ao longo dessa história, veremos uma grande mistura de superstições, de
experimentos, de teorias diversas, e a luta contínua da humanidade contra doen-
ças terríveis.
Por meio do estudo dessa história, será possível compreender como se
desenvolve a evolução do pensamento humano, através de uma série de
palpites, tentativas, erros e acertos. Veremos como algumas "certezas"
causaram a morte e o sofrimento de milhões de pessoas. Por fim, estudando o
surgimento da moderna teoria microbiana, veremos como foi gradualmente
introduzido um maior rigor na pesquisa médica, resultando em importantes
avanços. Pelo conhecimento desse caminho histórico, será possível perceber a
enorme importância das medidas sanitárias e de higiene, capazes de evitar
horríveis doenças - medidas simples mas que, infelizmente, continuam a ser
ignoradas ou deixadas de lado, até hoje, no Brasil e em outros lugares do
mundo.
A medicina evoluiu muito e sabemos como controlar um grande número
de doenças. Mas o controle exige dinheiro e decisões políticas que nem sempre
são tomadas. Por outro lado, existem enfermidades que ainda estão fora do
controle da medicina, como a aids. Para que não se repitam episódios como o
das grandes peste dos séculos anteriores, é necessário que todos saibam o
significado das grandes epidemias e conheçam os meios de evitá-las, podendo
assim cuidar de si próprios e exigir dos governantes o combate adequado às
doenças. É para proporcionar essa base científica que este livro foi escrito.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 4
AS GRANDES PESTES
1
O que é uma grande epidemia? próximos, temia-se que a doença
Que efeitos podem produzir as também surgisse.
enfermidades transmissíveis, Em 1664, o aparecimento de
quando atingem muitas pessoas? um cometa nos céus levou a muitas
Quem nunca viveu essa experiência predições pessimistas. Segundo
nem pode avaliar o que ela Defoe, os astrólogos de Londres
significa. Por isso, é conveniente anunciaram que a peste logo iria
começar com a descrição de um atingir a cidade. O pavor tomou
caso histórico importante. muitas pessoas. Pessoas alucinadas
Daniel Defoe foi um corriam pelas ruas, gritando e pro-
importante escritor que viveu nos fetizando desgraças. Londres se
séculos XVII e XVIII. É o autor de encheu de magos, adivinhos, astró-
um livro de aventuras bem logos, curandeiros e diversos tipos
conhecido: Robinson Crusoe. Ele de charlatões, que davam conselhos,
escreveu em 1722 um outro livro previam os acontecimentos futuros,
menos famoso, o Diário do ano da indicavam antídotos "infalíveis"
peste, em que descreve uma grave contra qualquer tipo de doença,
epidemia ocorrida em Londres, em vendiam talismãs mágicos para pro-
1665. teger da peste e, de muitas formas,
De tempos em tempos - como lucravam com o temor do povo.
depois veremos - a Europa era var- Nada aconteceu, no entanto,
rida por grandes pestes, que mata- até o final de 1664. Houve apenas
vam milhões de pessoas. Em 1663, duas mortes suspeitas, com os sin-
uma dessas epidemias atingiu a Ho- tomas da peste bubônica. Como
landa. Não existiam televisores, eram dois casos isolados, isso não
nem rádios, nem mesmo jornais produziu muita preocupação. Mas
para transmitir notícias. No entanto, poucas semanas depois, uma outra
através de cartas e pelos comentá- pessoa morreu, na mesma casa onde
rios de pessoa para pessoa, ficava- esses dois primeiros haviam faleci-
se sabendo rapidamente o que do, também com sinais da peste.
acontecia. Nos outros países O número total de enterros em
Londres era de 240 a 300 por sema-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 5
para que pudessem sair pelo orifício persiste a idéia de que as doenças
as causas que produziam fortes podem ser castigos divinos pelos
dores de cabeça. Quando se acredi- pecados cometidos pelo doente. Nas
tava que a doença era produzida religiões afro-brasileiras, a presença
pela entrada de um espírito constante da feitiçaria e de práticas
maligno, ele devia ser afastado por mágicas de cura é conhecida por
preces mágicas, pelo barulho todos. Ao longo de toda a história
(tocando tambores) ou mesmo da humanidade, como veremos,
batendo no corpo do doente. essas e outras concepções
Em outros casos, supunha-se "primitivas" sempre estiveram pre-
que o contágio, ao invés de intro- sentes.
duzir algo, retirou alguma coisa da
pessoa - sua vitalidade ou sua alma.
Nesse caso, o curandeiro devia pro- MEDICINA RELIGIOSA: ME-
curar localizar a alma do doente, SOPOTÂMIA
que poderia ter sido roubada e
guardada por um feiticeiro dentro Os assírios e babilônios são os
de uma cumbuca, ou ter sido levada povos mais antigos cuja medicina é
por algum demônio para o mundo conhecida. Essas civilizações se
dos espíritos. desenvolveram na Mesopotâmia, o
De um modo geral, os curan- local onde, atualmente, se localiza o
deiros tinham sucesso e curavam Iraque. Através de textos desses
seus doentes. Pode-se entender a povos, escritos em tabletes de argila
eficácia de seus tratamentos a partir há mais de 4.000 anos, pode-se ter
de conhecimentos modernos, pois uma idéia sobre suas concepções
eles utilizavam muitos medicamen- médicas.
tos de grande poder, além de práti- Sob todos os aspectos, as anti-
cas importantes como a dieta. Por gas sociedades da Mesopotâmia
outro lado, é inegável o efeito real eram dirigidas pela religião. O
produzido pela sugestão sobre os poder do rei vinha dos deuses e
doentes, e todo o tratamento mágico todas as leis sociais eram de origem
tendia a fortalecer no doente a divina. Supunha-se que o deus era o
vontade e a certeza de se curar. O verdadeiro mestre de tudo; ele
próprio processo de confissão, que atingia com a doença a quem
precedia o ritual de cura, pode ser quisesse punir. Se o homem
considerado como benéfico, por esquecesse o fim de sua criação e
aliviar eventuais culpas do doente e rejeitasse as leis que os deuses lhe
colocá-lo em harmonia psicológica impuseram, ele estaria em estado de
com seu meio social. pecado. O deus se irritava e enviava
Muitas dessas concepções doenças e outras calamidades.
"primitivas" sobrevivem até hoje, Todos os deuses podiam pro-
em meio às sociedades mais cultas. duzir e curar doenças. A deusa da
Na tradição judaico-cristã, ainda medicina, em especial, era Gula,
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 12
depois o pássaro era solto, para o segundo bode, que era o "bode
voar. O significado simbólico pare- expiatório" (em latim, "expiatio"
cia ser o seguinte: pelo sangue der- significa responder ou pagar por
ramado sobre o pássaro e sobre a uma falta; a palavra não tem relação
pessoa impura, eles se uniam; o com "espiar" ou "espionar"). Ele era
pássaro passava a representar a levado para o deserto e solto. Dessa
própria pessoa. Quando ele era forma, as impurezas de todas as
deixado livre e voava, carregava pessoas iriam embora. A pessoa que
embora as impurezas da pessoa. conduzia o bode para o deserto
precisava se purificar, pois alguma
FIGURA impureza poderia ter passado para
LEVITICO.TIF ela, ao conduzir o animal carregado
de pecados.
No entanto, o ritual não termi- A idéia de um "bode expiató-
nava aí. A pessoa devia lavar suas rio" ou de outro animal que vai car-
roupas, raspar todos os pêlos do regar os pecados e a culpa de todas
corpo, lavar-se, e aguardar durante as pessoas, apareceu em várias ou-
7 dias. A raspagem permitia verifi- tras civilizações - até mesmo no
car se realmente não havia mais México, antes da chegada dos euro-
manchas ou sinais da doença. Após peus à América. De modo seme-
os sete dias, a pessoa devia nova- lhante, o Novo Testamento cristão
mente raspar todos os pêlos e se indica que Jesus expulsou os
lavar. Era então feito um sacrifício demônios de pessoas e passou esses
de um carneiro, oferecido à divin- demônios para porcos. Esse exem-
dade, pedindo-se que ele fosse acei- plo ilustra um aspecto do conceito
to em pagamento pelo delito ou mágico ou religioso de contágio: as
pecado cometido pela pessoa. Sim- impurezas podem ser adquiridas por
bolicamente, isso significava que a contato, e podem também ser expe-
lepra tinha sido um castigo por al- lidas da pessoa, para um animal (ou,
gum delito ou pecado, e que só às vezes, para outra pessoa).
agora, penitenciando-se e pagando Na concepção hebraica de im-
por esse delito ou pecado, a pessoa pureza, vemos alguns dos aspectos
ficava realmente pura. da moderna concepção médica de
Nota-se um aspecto bastante doenças contagiosas. Mas é claro
interessante nesse ritual, e que apa- que há também muitas diferenças.
rece também em outros semelhan-
tes: a transmissão da impureza de
uma pessoa para um animal. O Le-
vítico prescrevia um ritual anual, de
purificação de todo o povo. Nesse
ritual, tomavam-se dois bodes. Um
deles era morto. O sacerdote trans-
feria todos os pecados do povo para
MEDICINA GREGA
3
MEDICINA RELIGIOSA como amante a jovem Chryseis,
GREGA filha de um sacerdote de Apolo.
Esse sacerdote implorou a
A civilização grega antiga foi Agamenon que libertasse sua filha.
o ponto de partida de toda a cultura Em troca, o sacerdote oferecia um
científica ocidental moderna. Até pagamento e solicitaria aos deuses
hoje, é um grego - Hipócrates - a que os exércitos do rei fossem bem
quem chamamos de "pai da Me- sucedidos na guerra. Apesar de falar
dicina". em nome de Apolo, o pedido do
A Medicina grega marca uma sacerdote foi negado. O sacerdote
importante etapa na evolução do se afastou, foi para a praia e fez
pensamento médico. Inicialmente, uma oração a Apolo, solicitando
ela se assemelhava à Medicina de que ele o vingasse.
outras nações: era uma mistura de
concepções mágicas, religiosas e de "Apolo ouviu sua prece. Desceu
receitas práticas para a cura das furioso dos picos do monte Olimpo,
com seu arco e sua aljava cheia, nos
doenças. ombros. As flechas vibravam em suas
A antiga religião grega aceita- costas, com a raiva que tremia dentro
va a existência de muitos deuses. dele. Apolo se assentou longe dos
Apolo e sua irmã Artemis eram navios, com uma face tão negra
descritos na mitologia grega como quanto a noite, e seu arco de prata deu
um terrível assobio e espalhou a morte
podendo produzir doença e peste enquanto ele atirava suas flechas entre
através de flechas lançadas sobre os eles. Primeiramente o deus atingiu
homens. A Ilíada de Homero des- suas mulas e cães, mas depois dirigiu
creve, no seu primeiro livro, um suas setas mortíferas contra as
caso desse tipo, que ilustra as con- próprias pessoas. Durante todo o dia,
queimavam as piras dos mortos.
cepções mitológicas gregas. Durante nove dias ele atirou suas
Segundo a Ilíada, o rei Aga- flechas entre as pessoas (...)"
menon havia raptado e tomado
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"epidemia" uma doença que não é doença surgiu não tinha fontes, e
própria de um local, mas que todos utilizavam poços. Mas logo a
permanece durante algum tempo doença se espalhou pelas outras
naquela cidade. partes de Atenas, e ficou claro que
não se tratava de envenenamento,
mas de uma terrível peste.
A PESTE DE ATENAS: O CON- O próprio Tucídides foi aco-
TÁGIO NA TRADIÇÃO GRE- metido pela peste, mas sobreviveu.
GA Ele não se preocupou em especular
sobre a causa da doença, mas des-
Na teoria hipocrática, as epi- creveu com grande cuidado os seus
demias eram causadas por algum sintomas:
tipo de influência (em geral, climá-
tica) que atingia ao mesmo tempo "Se alguém já estava doente an-
toda a população. Não havia men- tes, sua enfermidade se transformava
na peste. Os outros, sem nenhum sinal
ção ao contágio. Em contraste com de aviso, em plena saúde, eram
a visão "científica" de Hipócrates, a tomados inicialmente por um forte
população em geral admitia a calor na cabeça, vermelhidão e infla-
transmissão de doenças de uma mação dos olhos. As partes internas,
pessoa para outra. Pode-se observar como a garganta e a língua, ficavam
sanguinolentas e emitiam um hálito
isso numa famosa descrição que o fétido e repugnante. Esses sintomas
historiador Tucídides fez da peste eram seguidos por espirros e rouqui-
que assolou Atenas. dão, e logo depois a doença descia ao
A peste descrita por Tucídides peito, manifestando-se por uma tosse
ocorreu no ano 430 antes da era violenta. Depois, fixava-se na boca do
estômago, revolvendo-o; e seguiam-se
cristã, logo após a invasão da descargas de bílis de todos os tipos
cidade pelos espartanos, durante a catalogados pelos médicos, acompa-
Guerra do Peloponeso. Havia nhados por sofrimento atroz.
notícias de que a doença já havia (...) Os órgãos internos queima-
ocorrido antes em outros locais, vam tanto que os enfermos não
suportavam o contato das roupas e
mas em Atenas a epidemia foi tecidos, mesmo os mais finos; desnu-
muito mais rápida e grave, matando davam-se completamente e queriam
milhares de atenienses. jogar-se na água fria. E muitos de fato
Tucídides contou que os médi- o faziam, jogando-se nos poços,
cos ignoravam como tratar essa oprimidos por uma sede insaciável;
mas não fazia diferença se bebiam
doença e que nenhuma tentativa de muito ou pouco."
tratar os doentes tinha sucesso. As
pessoas recorreram às preces e con- A terrível doença, quando não
sultas aos oráculos, mas isso de matava em poucos dias, produzia
nada serviu. Inicialmente, os ateni- graves danos e mutilações nas
enses pensaram que os invasores mãos, pés e órgãos genitais. Alguns
haviam envenenado os poços de sobreviventes ficavam cegos.
água, pois a parte da cidade onde a
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Pode ser também que essa no- influência indireta nas teorias médi-
ção de contágio parecesse a Hipó- cas posteriores.
crates uma mera superstição, como Para Hipócrates, a medicina
as noções de magia e religião com era uma arte ou técnica, um conhe-
as quais ela sempre esteve associ- cimento empírico - isto é, adquirido
ada na Antigüidade. Como a pela experiência, pela observação,
medicina hipocrática é por tentativa. Embora houvesse
decididamente naturalista e uma vaga teoria por trás dos
despreza qualquer explicação ensinamentos de Hipócrates, suas
sobrenatural, talvez a idéia de con- obras nunca deram grande ênfase à
tágio tenha sido recusada e atirada tentativa de explicar os sintomas
ao lixo juntamente com as outras das doenças através de causas
idéias supersticiosas com as quais internas, por exemplo.
estava associada. Essa atitude geral da medicina
Pode ter havido ainda um ter- hipocrática era coerente com a
ceiro motivo, teórico. Para Hipócra- visão de Platão a respeito do
tes, a saúde é um equilíbrio dos conhecimento. Segundo ele, não
humores; como esse equilíbrio po- seria possível obter um
deria ser rompido pelo contato físi- conhecimento racional, exato, das
co com outra pessoa? Como um de- coisas que pertencem ao mundo
sequilíbrio dos humores em um do- material. Qualquer concepção sobre
ente pode passar para outro? É di- o mundo que percebemos à nossa
fícil imaginar uma coisa desse tipo. volta, para Platão, seria apenas uma
Pode ter sido, portanto, por motivos opinião mais ou menos provável e
teóricos, que o contágio foi que nunca pode ser segura. Assim,
excluído do pensamento médico de quando se trata do mundo material,
Hipócrates. torna-se mais importante a prática
do que a teoria.
No entanto, essa visão sobre o
A SISTEMATIZAÇÃO DA ME- conhecimento do mundo se alterou
DICINA RACIONALISTA completamente com Aristóteles. Ele
GREGA defendeu a possibilidade de um co-
nhecimento científico, racional, se-
Um dos mais importantes filó- guro, exato, do mundo material,
sofos de todos os tempos foi Aristó- pelo estudo das causas dos fenôme-
teles. Ele viveu em uma época pró- nos.
xima à de Hipócrates - talvez um Aristóteles diferenciou clara-
pouco posterior. Seu pai era médi- mente o conhecimento, propriamen-
co, e por isso ele deve ter adquirido te dito, da técnica, considerando
certo conhecimento da medicina da esta última como inferior, por não
época. Embora nunca tenha se dedi- ter uma base sólida. A experiência
cado mais especialmente a esse es- prática, a observação, as generaliza-
tudo, sua obra filosófica teve grande ções, eram para Aristóteles o ponto
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 32
das com igual quantidade de sal, faz peste passava de uma pessoa para
bem." outra, mas como entender isso?
Galeno não falava sobre nada pare-
Esse era o estilo geral dos re- cido.
ceituários medievais. Talvez algu- Mesmo sem dispor de uma
mas das indicações fizessem algum base teórica, era necessário agir.
efeito benéfico. A maior parte era Imaginou-se que o melhor modo de
provavelmente inócua ou mesmo impedir que a doença atingisse uma
prejudicial. região seria proibir a entrada de
pessoas já doentes. Mas as pessoas
poderiam estar doentes sem sabê-lo
AS GRANDES PESTES MEDI- e sem manifestar nenhum sintoma.
EVAIS Como distinguir os sãos dos doen-
tes? A idéia que surgiu foi isolar
No final da Idade Média e no todas as pessoas que estivessem
Renascimento a Europa foi varrida vindo de locais infectados e esperar
por grandes pestes, de diversos durante vários dias, para verificar se
tipos. Há motivos históricos para o surgiam nelas os sinais da peste. Se
surgimento dessas epidemias, surgissem, não poderiam entrar na
nessas épocas. Durante a Idade cidade.
Média, as cruzadas cristãs coloca- A cidade de Ragusa, perto de
ram os europeus em contato com Veneza elaborou nessa época a pri-
outros povos e com doenças desco- meira legislação exigindo uma qua-
nhecidas, para as quais o organismo rentena (isto é, um isolamento de 40
europeu não tinha nenhuma resis- dias) para viajantes que viessem de
tência. No Renascimento, as gran- lugares infectados. Não havia, é
des navegações tiveram um efeito claro, nenhuma base médica para o
semelhante. número 40. Provavelmente, os
Uma das mais terríveis epide- legisladores se inspiraram no
mias medievais foi a peste negra. período hebraico de impureza das
Iniciou-se em 1347 ou 1348 e esti- mulheres após o parto.
ma-se que matou 1/3 da população Um médico da época, Guy de
da Europa. Parece ter sido uma Chaliac, assim descreveu a peste
combinação de peste bubônica e negra que atingiu Avignon, em
pneumonia. 1348:
FIGURA "A mortalidade começou entre
PESTE.TIF nós no mês de janeiro e durou sete
meses. Foi de dois tipos. O primeiro
Como ocorreu em outras oca- durou dois meses. Era caracterizado
por uma febre contínua e por cuspir
siões semelhantes, as antigas teorias sangue; as pessoas morriam dela em
médicas não conseguiram explicar três dias. A segunda durou o resto do
essa peste. Todos percebiam que a tempo. Também era caracterizada por
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 52
durante 30 dias. Todos os morado- prisão das mulheres onde lhe darão
res deviam caiar, limpar e esfregar cinqüenta açoites".
suas casas, retirar "imundície, cor- Também as mulheres brancas
rupção ou mau cheiro que prejudi- só poderiam andar pelas ruas após
que a saúde", perfumando as resi- as Ave-Marias (depois do pôr-do-
dências com ervas cheirosas, vina- Sol) se fossem acompanhadas; e
gre, etc. As ruas deviam ser varridas mesmo isso devia ser evitado. Orde-
todos os dias; os escravos deviam nou-se também a todos os militares
lançar todas as imundícies das casas que se desfizessem de suas amantes,
no rio; ficou proibida e estabelecida no prazo de oito dias. Os que não
uma multa para qualquer pessoa obedecessem ficariam presos por
que fizesse imundícies na praia, trinta dias. Os soldados reincidentes
sem lançá-las no rio. ficariam presos o dobro do tempo e
Ao pôr-do-Sol e ao amanhe- sairiam da cadeia "degredados para
cer, os canhões deveriam disparar o Ceará", sem a possibilidade de
tiros, para espalhar os vapores ma- perdão. Supomos que devia ser um
lignos. Os colchões dos doentes castigo terrível, na época, ser man-
deviam ser queimados ou expostos dado para o Ceará. Como indicação
ao ar durante 30 a 40 dias, para clara de que o pecado estava associ-
livrar-se dos vapores doentios. As ado à doença, dizia-se que as vir-
roupas dos doentes também deviam gens eram poupadas pela epidemia.
ser queimadas ou lavadas duas ou Havia cuidados especiais com
três vezes, sendo expostas ao ar os mortos: as covas deviam ser fei-
durante um mês. Os doentes deviam tas longe do povoado e não perto
ser isolados em um hospital, para das igrejas, como era costume
não transmitir a doença pelo contá- antes. A profundidade das covas
gio. devia ser de pelo menos 5 palmos.
Acreditava-se que a causa A terra deveria ser muito bem
principal da doença era um castigo socada e sobre ela deviam ser
divino. Por precaução, as meretrizes acesas fogueiras durante três dias.
foram deslocadas para um local a Depois sua superfície deveria ser
dez léguas de distância da cidade, ladrilhada, para que não saíssem de
sendo ordenada a expulsão das que lá os vapores venenosos.
"ofendessem a Deus" depois da Todos os cuidados tomados
publicação das ordens do gover- reduziram, mas não eliminaram a
nador. Ordenou-se também que as doença. Talvez houvesse outra ex-
escravas e também as mulatas e plicação para ela. Ninguém tinha
negras livres fossem recolhidas à dúvida de que os pecados da popu-
noite. As desobedientes deveriam lação eram a principal causa da epi-
pagar uma multa de dez tostões, e demia, mas isso era algo difícil de
as reincidentes pagariam o dobro, controlar.
"e a dita escrava será levada a Em 1691, a febre amarela ma-
tou um marinheiro em um navio
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 81
devia ser muito maior. Por isso, a dade muito menor? E sob o ponto
maior parte da população achava de vista teórico: por que motivo a
que era melhor se arriscar com a pessoa que já adquiriu a enfermi-
variolação do que ser atingido pela dade fica protegida depois contra
varíola natural. ela? Nada disso era compreendido.
Na França, houve inicialmente A resistência na França foi
forte reação contra o procedimento. vencida graças principalmente ao
Uma folheto anônimo, denominado esforço do astrônomo e naturalista
Razões de dúvidas contra a inocu- Charles-Marie de la Condamine,
lação, questionava se não seria que escreveu a favor da variolação,
criminosa a inoculação de uma do- em 1755, influenciando muitos
ença em um corpo humano. Afirma- nobres a e deixar inocular.
va que não se conhecia se o proces- Aproximadamente na mesma época,
so era realmente antigo ou apenas outros países da Europa aceitaram o
uma invenção recente. O autor do processo.
folheto dizia que o procedimento À medida que o processo se
adotado era arbitrário, injusto, falso, difundia e era utilizado por pessoas
irregular. A variolação era total- mais experientes, o risco foi
mente contrária a tudo o que se diminuindo. Na segunda metade do
sabia em Medicina (ou seja: contrá- século XVIII, morria apenas uma de
ria à teoria dos humores), pois não cada 400 pessoas inoculadas. As
produzia a evacuação das matérias que não morressem estavam
nocivas ao organismo. Por fim, re- aparentemente protegidas pelo resto
provava o processo por vários moti- da vida. Seria um risco aceitável?
vos: a variolação "é contrária aos Na segunda metade do século
olhos do Criador"; não preserva da XVIII, na Europa, um de cada 300
varíola natural; é contrária às leis habitantes morria de varíola, a cada
civis; e parece mais pertencente à ano, ou seja, um de cada 30, a cada
Magia, do que à Medicina. década. Como a varíola podia atacar
Quem se horrorizasse com o em qualquer idade, era um risco
processo, na época, não podia ser contínuo, para quem não passasse
criticado. Sob o ponto de vista mais pela variolação. Parecia portanto
intuitivo, é repugnante fazer uma válido o processo. Mas nem todos
ferida no braço e passar sobre ela o se deixavam inocular: era um pro-
pus tirado de uma pessoa doente. cesso de uso voluntário.
Sob o ponto de vista racional, como Depois de algum tempo, no
se podia entender que o vírus entanto, ressurgiram as críticas. A
(veneno) da varíola produzida arti- varíola não estava desaparecendo da
ficialmente se tornava mais fraco do Europa. Parecia estar até aumen-
que quando era recebido natural- tando. Em Londres, por exemplo, os
mente, pelo contágio, em quanti- dados mostravam isso claramente:
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 87
doenças, que não têm nada a ver médicos que responderam ao ques-
com vacas. A linguagem, infe- tionário haviam vacinado, até essa
lizmente, é assim: quando se es- época, um total de 164.381 pessoas.
quece a origem das palavras, seu Desse total, 56 pessoas tiveram
significado muda tanto que elas se varíola depois da vacinação, o que
tornam irreconhecíveis. mostrava que a proteção não era
totalmente segura. Houve também
FIGURA alguns efeitos negativos da vacina-
VACCIN.TIF ção: 66 casos de fortes erupções na
pele, 24 casos de forte inflamação
Mas voltemos à época de Jen- do braço, e em três desses casos as
ner. pessoas morreram.
A divulgação desses trabalhos Surgiu uma oposição à vacina-
produziu repercussão imediata. ção. Os jornais populares publica-
Outros médicos logo se apressaram vam ilustrações que ridicularizavam
a testar as observações de Jenner. a vacinação, mostrando pessoas que
No mesmo ano de 1798, George se transformavam em vacas. Tam-
Pearson publicou um estudo em que bém houve resistência por parte de
confirmou a eficácia da varíola de muitos médicos importantes. Existi-
vaca para proteger contra a varíola am vários motivos racionais para a
humana. No ano seguinte, o médico resistência. Por um lado, a vacina-
Joseph Marshall inoculou 211 pes- ção era um processo puramente
soas com a cow-pox e depois tentou empírico, que não era compreendi-
transmitir-lhes artificialmente a do. Por outro lado, parecia um mé-
varíola humana. Nenhuma delas todo perigoso. Houve casos em que
contraiu a enfermidade. a vacinação foi seguida por erisi-
Houve alguma resistência ao pela, em pessoas aparentemente
novo método, porque ele era muito saudáveis, havendo muitas mortes.
estranho e não se compreendia Por outro lado, como a doença era
como podia funcionar. No entanto, passada de uma pessoa para outra,
muitos médicos aderiram à inocula- verificou-se que podiam ser trans-
ção da varíola de vaca. O próprio mitidas ao mesmo tempo outras
Jenner indica que, até 1801, "mais doenças, como a sífilis. Assim, ao
de 6.000 pessoas foram inoculadas tentar se proteger da varíola, a pes-
com o vírus da cow-pox e a maior soa podia cair vítima de outra en-
parte delas foi desde então inocu- fermidade transmissível.
lada com o da varíola, e exposto à
infecção de todos os modos racio- FIGURA
nais que puderem ser imaginados, VACACIN.TIF
sem efeito." Em 1806, o Royal
College of Surgeons da Inglaterra Houve muitas falhas iniciais
fez um inquérito sobre a eficácia e por causa de falta de padronização
os efeitos de vacinação. Os 426 de métodos e falta de cuidados bási-
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 92
des salões, muitas vezes com dois uniram seus esforços tentando dimi-
ou três juntos na mesma cama. nuir as enfermidades que matavam
No entanto, graças às idéias o povo.
sobre limpeza e miasmas, a situação Foi graças a essa nova atitude
começou a mudar. Em torno de que começaram a ser escritos livros
1750, o cirurgião-geral do exército especificamente dedicados à
inglês, John Pringle (1707-1782), conservação da saúde - ou seja, à
conseguiu uma significativa queda higiene, no sentido original da
da mortalidade nos hospitais milita- palavra. Antes dessa época,
res, através da limpeza e de uma existiam menções nos tratados
melhor ventilação. A reforma das médicos aos modos de se conservar
prisões inglesas foi obra do filan- a saúde, mas, em geral, a ênfase era
tropo John Howard (1726-1790), no tratamento e não na prevenção
que conseguiu diminuir a incidência de doenças. A exceção principal
de tifo, tuberculose e febre tifóide. eram os livros sobre os modos de
Apenas após 1780 foram criadas as evitar as pestes, que surgiam apenas
primeiras alas hospitalares em meio às grandes epidemias. Não
separadas para doentes com enfer- se considerava que, em condições
midades contagiosas. Aos poucos, normais de vida, fosse necessário
foi se firmando uma nova corrente dedicar tanta atenção à saúde.
de prevenção contínua de todas as Até o século XVIII, as idéias
doenças, através de medidas de sobre miasmas e sobre a
limpeza. transmissão de enfermidades pelo ar
Esse amplo movimento higie- eram apenas hipóteses. Na verdade,
nista, que continuou durante o sécu- pouco se sabia a respeito da própria
lo XIX, não dispunha de nenhum natureza do ar. Apenas dois séculos
conhecimento novo. A teoria básica atrás foram feitos os primeiros
era a dos miasmas. Havia apenas estudos de caráter científico
um interesse real em utilizar os moderno sobre a composição do ar
conhecimentos disponíveis na e sobre seu papel na doença e na
melhoria da saúde pública e na manutenção da vida.
prevenção das doenças. Mais A idéia de que o ar pode con-
necessária do que a pesquisa ter substâncias maléficas à saúde
médica, foi a decisão política de ganhou bastante apoio através de
mudar a situação existente, fazendo estudos feitos no final do século
o melhor que se podia fazer. Por XVIII. Entre 1774 e 1777, o natu-
isso, os homens que contribuíram ralista Joseph Priestley fez estudos
para a grande redução de sobre o ar e a vida.
mortalidade nos séculos XVIII e Já se sabia que, quando se co-
XIX não são conhecidos por suas locava uma vela acesa em um
teorias ou idéias. São médicos, es- recipiente fechado, no qual existisse
critores, políticos e administradores, um pequeno animal vivo, a vela
muitas vezes desconhecidos, que logo se apagava e o animal morria.
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 97
entanto, estudos posteriores levaram pela reação de sal comum (10 par-
simplesmente à descoberta do papel tes), óxido negro de manganês (2
do oxigênio e do gás carbônico, na partes) e ácido sulfúrico (oito par-
respiração, e da fotossíntese nas tes). Aconselhava-se o uso desse
plantas. Esses estudos não levaram, gás nas enfermarias dos hospitais e
portanto, a nenhum esclarecimento nas casas em que houvesse molés-
das causas de enfermidades que tias contagiosas, como meio de des-
pareciam se propagar pelo ar. truir os vapores nocivos. Chegava-
Apesar disso, o estudo se a dizer que esse ácido gasoso era
químico do ar e dos diferentes também benéfico para as próprias
gases, no final do século XVIII, pessoas que já estivessem doentes.
trouxe uma maior respeitabilidade O médico português Francisco de
às considerações sobre diferentes Mello Franco afirmava em 1814:
tipos e características da atmosfera.
Compreendeu-se que uma parte do "Este facílimo expediente é infalí-
ar puro (oxigênio) é essencial para a vel, não somente para atalhar o pro-
gresso do contágio, mas também para
vida dos animais e do homem; que diminuir os seus efeitos nos indivíduos
a respiração e a combustão já atacados. São tantas as experiênci-
consomem oxigênio e produzem as feitas por homens consumados em
gás carbônico; que existem Química, e Medicina a este respeito,
diferentes gases, que podem que nenhuma dúvida pode já restar
aos mesmos incrédulos."
produzir efeitos especiais nos seres
vivos. Muitas idéias antigas perma-
A certeza, infelizmente, é
neciam ativas e influentes, mas a
muito perigosa na Medicina. Vapo-
física e a química voltaram a ganhar
res ácidos, pelo que sabemos atual-
um papel relevante na Medicina.
mente, podem ser excelentes desin-
Embora a idéia dos miasmas
fetantes, mas não são úteis às pesso-
em si própria não tivesse evoluído,
as doentes, nem às sadias.
haviam sido encontradas novas sub-
Mello Franco defendia uma
stâncias, capazes de impedir a
interpretação química dos miasmas.
putrefação e que deviam ser
Ele supunha que a causa das febres
também capazes de destruir os
palustres seriam simples compostos
miasmas invisíveis. Louis Bernard,
de nitrogênio (azoto) e hidrogênio.
barão de Guyton de Morveau
Embora a interpretação puramente
(1737-1816), companheiro de
química não nos pareça atualmente
pesquisas de Lavoisier, foi um dos
ser correta, Mello Franco, como
investigadores desses antissépticos.
outros higienistas da época,
Guyton de Morveau estudou
apresentava recomendações de bom
ácidos minerais em forma gasosa,
senso: seria necessário, para evitar
concluindo pela grande eficácia pu-
as enfermidades palustres, acabar
rificadora e anti-pútrida dos mes-
com os pântanos, secando-os e cul-
mos. Recomendava especialmente o
tivando a região.
"ácido muriático oxigenado", obtido
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 99
FIGURA
ANTRAX1.TIF
O PROCESSO DE TRANSMISSÃO DAS
9 DOENÇAS
uma determinação cada vez maior, fui savam para o cuidado das pacientes,
obrigado a reconhecer a identidade da levando consigo um cheiro nause-
doença de que Kolletschka havia
morrido, com a enfermidade de que eu
ante.
havia visto tantas puérperas morrerem.
(...) FIGURA
A causa que havia excitado a DISSECA.TIF
doença do professor Kolletschka era
conhecida, ou seja, a ferida produzida
pela faca de autópsia contaminada ao
Semmelweis percebeu que aí
mesmo tempo por material do cadáver. estava o problema. Durante o
Não foi a ferida, mas a contaminação exame dos cadáveres, algumas
da ferida pelo material cadavérico que "partículas cadavéricas" se
foi a causa da morte. Kolletschka não prenderiam às mãos dos médicos e
foi o primeiro a morrer dessa forma.
Devo reconhecer que, se a doença de
não seriam removidas pelo processo
Kolletschka é idêntica à doença de que apressado de lavagem, como o
vi tantas puérperas morrerem, então próprio cheiro mostrava. Depois, ao
nas puérperas ela deve ter sido examinar as mulheres grávidas ou
produzida pela mesma causa em trabalho de parto, a mão
geradora, que a produziu em
Kolletschka. "
contaminada passaria para os
órgãos genitais dessas pessoas al-
Efeitos semelhantes devem ter gumas partículas cadavéricas, que
causas semelhantes. Mas o que se espalhariam pelo sangue, produ-
poderia haver de semelhante entre zindo a doença. A causa da febre
uma mulher que fica doente após o puerperal seria igual à causa da
parto, e um médico que se infecci- morte de Kolletschka: infecção por
ona pela ferida de um bisturi sujo? contato com substâncias de cadáve-
Ao longo de dois meses, res.
Semmelweis pensava e repensava Note-se que Semmelweis está
sobre a semelhança entre os dois utilizando algumas idéias antigas:
tipos de morte. Por fim, concluiu relação entre mau cheiro e doenças,
que deviam ter entrado "partículas produção de algum tipo de veneno
cadavéricas" no corpo das por materiais podres. O elemento
mulheres. E isso deveria ter sido novo era afirmar que o transporte
causado pelos próprios médicos que desse material venenoso seria feito
as examinaram. pelos próprios médicos.
Os estudantes e os médicos da Semmelweis não está supondo
Primeira Clínica praticavam com a existência de um contágio, propri-
grande dedicação a dissecação de amente dito. Ele acreditava que o
cadáveres. Após isso, lavavam material em decomposição de qual-
apressadamente suas mãos com quer cadáver, independentemente
água (nem sempre usando sabão) e da causa de sua morte, era capaz de
as enxugavam em toalhas sujas ou produzir a febre puerperal. De certa
em seus próprios aventais. Daí pas- forma, portanto, sua concepção era
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 115
publicar seu trabalho. Outras pesso- idéias muito parecidas com as suas.
as divulgaram aquilo que ele estava No entanto, não basta sugerir uma
fazendo, mas às vezes de modo idéia: é necessário examinar as vári-
incompleto. Difundiu-se a idéia de as sugestões existentes, testá-las, ir
que ele explicava a febre puerperal eliminando as alternativas até isolar
apenas através da infecção por ma- uma hipótese que explique todos os
téria proveniente de cadáveres. No fatos conhecidos. Apenas Sem-
entanto, em vários hospitais eu- melweis se deu ao trabalho de fazer
ropeus, as pessoas que atendiam aos esse trabalho cuidadoso de experi-
partos não praticavam autópsias - e, mentação e de análise.
apesar disso, havia muitas mortes Depois que seu trabalho teve
por febre puerperal. Isso parecia sucesso, Semmelweis procurou
indicar que Semmelweis estava er- difundi-lo, mas de forma pouco
rado. hábil, conseguindo mais inimigos,
Em Viena, a oposição de im- por sua agressividade. Apenas de-
portantes médicos fez com que pois de sua morte, na década de
Semmelweis fosse perseguido. Em 1880, se generalizaram os cuidados
1850, ele abandonou a Áustria e foi de limpeza no tratamento
para sua terra natal - a Hungria. Lá, obstétrico. Isso ocorreu lentamente,
começou a trabalhar no hospital de em geral sem se reconhecer o valor
Budapeste - inicialmente, de graça. do trabalho de Semmelweis, que foi
Nesse hospital ele também conse- criticado em vida e esquecido após
guiu reduzir a mortalidade, que era sua morte.
alta, para cerca de 1%.
Embora o principal trabalho
da vida de Semmelweis tenha sido o A TRANSMISSÃO DO CÓLE-
combate à febre puerperal, ele tam- RA PELA ÁGUA
bém aplicou idéias semelhantes à
cirurgia. As operações simples, Quando se pensava no contá-
como a retirada de pólipos do útero, gio indireto das enfermidades,
eram geralmente seguidas pela quase sempre se imaginava que ele
morte da paciente por piemia. No ocorria através do ar. Foi em
entanto, tomando os mesmos cuida- meados do século XIX que se
dos de desinfecção que já foram descobriu que uma das mais
explicados, ele fazia essas terríveis doenças da época - o cólera
operações sem perder uma só - podia ser transmitido através da
paciente. E comentava: "Eu atribuo água.
esses resultados favoráveis apenas O cólera foi pouco conhecido
ao fato de que opero com as mãos na Europa até o século XIX. Existi-
limpas". am notícias sobre ele na Índia, onde
Como foi mostrado no início ocorria sempre, com maior ou me-
deste capítulo, outras pessoas antes nor intensidade. No século VII, um
de Semmelweis já haviam sugerido médico indiano, Sushruta, já havia
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 118
uma das empresas e outras casas de Por que? Talvez o tipo de água pro-
outra, houve 60 casos de cólera para duzisse uma predisposição à
cada 100.000 pessoas. Portanto, os doença, mas a causa fosse de outro
casos de cólera pareciam estar dire- tipo - uma coisa que viesse pelo ar,
tamente ligados ao fornecimento de por exemplo. Houve o caso de uma
água pela empresa Southwark & pessoa que, por engano, ingeriu o
Vauxhall. Descobriu-se que essa líquido evacuado por um doente de
água era coletada no rio Tâmisa, em cólera - e, apesar disso, não ficou
uma região que recebia esgotos. A doente. As pessoas que alegavam
água fornecida pela outra empresa, esses fatos defendiam a idéia de que
pelo contrário, vinha de uma fonte a enfermidade provinha de
pura. emanações no ar, miasmas.
Se a causa do cólera era algo Mesmo sem conseguir
que vinha pela água, devia ser pos- explicar tais fatos, Snow admitiu
sível filtrar o líquido e separar a que eram os dejetos dos doentes que
causa da enfermidade. Em uma transmitiam a doença. Sugeriu
penitenciária, em que havia muitos então várias medidas que ainda hoje
casos de cólera, experimentou-se são válidas, para a prevenção do
filtrar a água através de areia e de cólera:
carvão. Sabia-se que a areia retém a 1) asseio: lavar as mãos após con-
maior parte das impurezas sólidas e tato com doentes;
que o carvão absorve cheiros. No 2) lavar as roupas pessoais e de
entanto, mesmo com a filtragem, cama dos doentes, ou expô-las a
continuou a haver o surgimento de uma temperatura de mais de 100
novos casos de cólera. Quando se graus;
mudou a fonte da água utilizada, 3) evitar contaminação da água; se
cessou o cólera. Isso confirmava a houver suspeita sobre a água, fervê-
importância da água na transmissão la para destruir a causa do cólera e
da doença, mas ao mesmo tempo depois filtrá-la para melhorar o sa-
mostrava que a causa do cólera não bor;
era algo que pudesse ser filtrado e 4) purificar os alimentos pela água
separado, por meios comuns, nem ou fogo e lavar as mãos antes de co-
era um tipo de miasma, associado mer, quando houver incidência de
ao mau cheiro. cólera;
Apesar de todos os fatos cole- 5) separar os doentes dos sãos.
tados por Snow, não se deve pensar Com certo otimismo, Snow
que houvesse alguma prova defini- concluiu:
tiva de que o cólera era transmitido
através da água. Ele próprio cita "Tenho confiança (...) que, obser-
fatos difíceis de explicar. Alguns vadas as precauções acima enumera-
das, precauções essas que creio
médicos objetaram que nem todas serem baseadas na noção exata da
as pessoas que bebem água suposta- causa do cólera, possa este tornar-se
mente contaminada ficam doentes. extremamente raro e, por que não
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 125
dizer, ser totalmente banido dos países mentos na água fossem uma causa
civilizados." que predispunha ao cólera, sem ser
sua causa essencial.
Infelizmente, vemo-nos ainda Em meados do século XIX,
às voltas com o cólera, no Brasil. Sir James R. Martin apontou a
Talvez Snow tivesse sido muito existência de seis explicações da
otimista. Ou talvez estejamos vi- difusão do cólera:
vendo em um país que ainda não 1. O cólera é produzido por uma
pode ser considerado como civili- influência atmosférica climática e
zado. por uma suscetibilidade dos
habitantes, produzida pelo hábito de
respirar uma atmosfera impura.
RESISTÊNCIAS À HIPÓTESE 2. O cólera é causado por um con-
DE TRANSMISSÃO DO CÓLE- tagion: material morbífico que au-
RA PELA ÁGUA menta no corpo humano e que se
propaga por emanações que saem
O trabalho de John Snow que dos corpos dos doentes.
foi descrito acima é muitas vezes 3. O cólera é causado por um vene-
apresentado como um estudo que no que produz a doença quando é
estabeleceu sem nenhuma possibili- ingerido, multiplica-se no corpo
dade de dúvidas a transmissão do humano e sai nas fezes e vômito.
cólera pela água. Para se compreen- Esse veneno se espalha principal-
der a dinâmica real da ciência, é im- mente misturado à água, que é bebi-
portante mostrar que as coisas não da.
são bem assim. Nossa tendência 4. O cólera é devido a um material
normal é pensar que aquilo que ou veneno mórbido que se produz
aceitamos hoje em dia foi apenas no ar, não no corpo, sendo
claramente provado e não pode ser difundido pelas condições atmosfé-
colocado em dúvida. Mas em cada ricas.
época existem sempre muitas 5. O cólera é o resultado de um tipo
hipóteses diferentes e pode não se de fermentação produzida no ar
tornar claro qual delas é a mais estagnado, impuro e úmido; é trans-
correta. portado em navios, em roupas e
Os dados apresentados por outros objetos e assim é difundido
Snow foram em geral aceitos como pelas ações humanas.
reais, mas interpretados de outra 6. O cólera aumenta e se propaga
forma. A contaminação da água tanto pelo ar impuro quanto pelo
potável por dejetos poderia ter pro- corpo humano (combinação de hi-
duzido uma diarréia comum, enfra- póteses acima).
quecendo as pessoas e preparando A hipótese 3 é a de Snow, que
seus aparelhos digestivos para rece- atualmente aceitamos. Na época, no
berem a infecção do cólera. Ou entanto, Sir James Martin concluiu
seja: podia-se aceitar que os excre- que a hipótese 5 (fermentação do
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 126
ar) era "a única que se sustenta com diretamente venenosos, mas que
base nos fatos conhecidos". depois de algum tempo ocorria
Outras hipóteses diferentes alguma transformação ou
também surgiram nesse momento. multiplicação do material lá
O grande higienista alemão Max contido.
von Pettenkofer (1818-1901) A incerteza era tão grande,
sugeriu em 1854 que a fonte da que muitas autoridades preferiam
enfermidade não estava no ar nem não manifestar nenhuma opinião.
na água, mas na terra. Se o solo Em 1848, a Academia Imperial de
fosse úmido e poroso, ele poderia Medicina de Paris nomeou uma
ser penetrado pelos produtos de "comissão do cólera", encarregada
decomposição dos excrementos de de fazer um relatório sobre os nu-
animais e do homem. Esse material merosos trabalhos que eram recebi-
sofreria um tipo de fermentação no dos sobre esse assunto. Durante 18
solo, produzindo o veneno do anos, a comissão guardou um total
cólera. Esse veneno seria produzido silêncio sobre essa importante ques-
apenas com a presença de um tipo tão, e quando divulgou suas conclu-
especial de fermento contido nos sões não afirmou nada de concreto
dejetos dos doentes de cólera. A sobre as causas e cuidados para
partir desse processo, seria evitar a doença.
produzido um miasma que se Podemos observar o estado de
espalharia pelo ar. conhecimentos sobre o cólera no
Não aceitamos essa explica- Brasil, em meados do século XIX,
ção. No entanto, essa hipótese con- através de grande quantidade de
duziu a métodos de profilaxia muito publicações da época. Um interes-
adequados: Pettenkofer defendeu sante manual para uso do povo foi
cuidados sanitários, destruindo os publicado em 1855 pelo médico
dejetos dos coléricos ou impedindo Tomás Antunes de Abreu. Era um
que eles se espalhassem. O asseio e folheto vendido por 3$000 réis jun-
a desinfecção foram um bom méto- tamente com dois frascos de remé-
do preventivo da enfermidade. dios para o cólera. Nesse folheto, o
A maior parte das pessoas que autor indicava vários cuidados hi-
estudaram o cólera nessa época giênicos que lhe pareciam impor-
aceitava que a doença podia ser tantes:
transmitida pelos doentes, mas não
se chegava a uma acordo sobre o "É inteiramente nociva a aglome-
modo como isso acontecia. Uma ração de muitas pessoas dentro de um
pequeno recinto, principalmente tendo
pessoa da família ou uma que fechá-lo à noite; porque o ar muito
enfermeira poderia passar vários facilmente se corrompe, e não sendo
dias ao lado de um colérico, sem renovado, causará grande dano:
adquirir a enfermidade. Uma das portanto convém, que os Srs. Proprie-
suposições que surgiu foi a de que tários façam apartar os seus escravos,
dando-lhes acomodações mais espa-
os dejetos do doente não eram
Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis 127
sarna, matando o ácaro que produz espalhar pelo ar. Lemaire estudou
essa afecção. um menino que tinha essa afecção
Do estudo dessas substâncias no couro cabeludo. Produzindo uma
químicas, Lemaire foi levado à in- leve corrente de ar da cabeça do
vestigação dos microorganismos menino em direção a um balão de
que produziam a fermentação e vidro com gelo, a 50 cm de
putrefação. Existia a crença de que distância, ele verificou que a
esses seres podiam se espalhar pelo umidade condensada em torno do
ar, mas os estudos realizados nessa balão continha esporos de
época não eram totalmente conclu- Achorion. Esta foi a primeira vez
sivos. Lemaire desenvolveu um que se detectou no ar a presença de
novo método para capturar micro- seres vivos capazes de reproduzir
organismos do ar. Ele colocava gelo uma doença.
dentro de um balão de vidro, que Lemaire realizou vários estu-
era depois fechado. O balão, colo- dos utilizando sua técnica de coleta
cado na atmosfera, produzia a con- de microorganismos do ar. Em
densação de vapor d'água em sua 1866, pesquisou o ar exalado na
superfície externa e, juntamente respiração de pessoas saudáveis.
com o vapor, eram coletados os Para isso, investigou o ar dos quar-
microorganismos do ambiente. tos de uma instalação militar. Os
Lemaire separava o líquido e depois soldados dormiam em quartos cole-
o estudava ao microscópio. tivos, com portas e janelas
Durante as fermentações e pu- fechadas. Deitavam-se às 9 horas da
trefações há desprendimento de noite. Durante dez dias, entre as 4 e
gases da substâncias em transforma- 5 horas da manhã, antes que eles se
ção. Em 1864, Lemaire estudou levantassem, Lemaire coletava a
pelo processo acima indicado o ar umidade do ar dos alojamentos,
acima de materiais em fermentação para estudo. Os soldados eram
e putrefação e observou que, junta- todos saudáveis, jovens e se
mente com os gases, desprendem-se alimentavam bem. O pesquisador
dessas substâncias os seres micros- contou que, ao entrar nos quartos,
cópicos que produzem esses proces- sentia um forte odor desagradável,
sos. Imaginou então que os "sui generis". Lemaire coletava uma
miasmas não eram simplesmente certa quantidade de líquido
odores, mas microorganismos que condensado do ar. Esse líquido
acompanhavam os cheiros fétidos tinha o mesmo odor desagradável
de substâncias em decomposição. do quarto.
No mesmo ano, Lemaire estudou Observando depois esse lí-
um fungo microscópico (o Achorion quido ao microscópio, observou a
schoenleinii, já estudado antes por presença de vários corpúsculos
Bazin) que produz uma micose no cilíndricos, esféricos e ovóides, que
homem. Bazin já havia sugerido se multiplicavam rapidamente, nas
que esse microorganismo poderia se horas seguintes. Identificou várias
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