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Maceió, 2017
Coletânea Oiycertí Critnimim - Grupo de pesquisa
Histeria Seda! d .1 Crime - CXTq.
Frojeto editorial:
Profa. Dra. Célia Nonata
Pró f. Dr. Francisco Ponteies Nelo
Conselho editorial:
Prof. Dr. Marcos Bretãs - UFRJ
Profa. Dra. Maíra Ines Vendrame - Unisinos
Profa. Dra. Claudia Mauch - UFRGS
prof. Dr. Flavio de Sá de Cavalcanti Neto - Instituto Federal de Pernambuco
Profa. Dra, Vanessa Spinosa - LTRN
Diagrama cão
Imprensa Oficia Gracilaino Ramos
Catalogação na fonte
Bibliotecária Responsável: Fernanda Lins de Lima
Incluí bibliografia.
ISBN'978-85-9465-113-6.
CDU. 343.97(81]
AGRADECIMENTOS
j Cardoso Al-Alam
Célia. Nonata da Silra li com muita satisfação que apresentamos aos leitores
FLORO GOMES NOVAES,'VINGADOR DAS ALAGOAS": UM a coletanea do Grupo de Pesquisa História Social do Crime:
ESTUDO DE CASO DA VIOLÊNCIA NO SERTÃO 221 DiíC-.rt Criminiun'. A proposta da coletânea é divulgar os tra-
balhos dos pesquisadores e alunos do Grupo de Pesquisa e
Victor Carneiro Lima fomentar estudos na área da violência e criminalidade, além
A RESSIGNIFICAÇÃO DOS CRIMINOSOS NA NARRATIVA J^ proporcionar maior visibilidade ao grupo e seus membros.
FÍLMICA
.255
A contribuição do Grupo de Pesquisa História Social do Cri-
me para a historiografia criminal está na proposta de traba-
Cristine de Andrade Pires lhos que ofereçam a problernatizacão da criminalidade e da
violência num diálogo interdisciplinar e atual, buscando nas
vertentes teóricas da Teoria da Privação, quanto da Escola de
Chicago ou da vertente da história cultural a ampliação da
discussão do nosso objeto de pesquisa.
A História Social do Crime, uma vertente da Historio-
grafia Inglesa orientada para as pesquisas sobre a temática da
criminalidade, a formação dos bandidos e dos motins na In-
glaterra iria contribuir para uma profusão de trabalhos sobre
o tema, e que ainda são registros para as análises de quaisquer
trabalhos. Um dos argumentos centrais nesta perspectiva de
análise demandou estudos exaustivos sustentados pela relação
pobreza-crime. A criminalidade seria analisada a partir do pro-
cesso de exclusão social, pauperização e desigualdades econó-
micas, que inevitavelmente incidiam sobre as classes operárias
e o lumpem proletariado. A proposta foi apurada pela Tese da
Privação Relativa1 e Absoluta-1, ainda vigentes para o entendi-
sempre fugidios (difíceis de localizar). Mas um conflito de másio conhecia o Tenente, por isto recuou na abordagem po-
rua envolvendo um ex-Tenente do Exército e um pequeno licial e talvez seus caminhos tenham se cruzado na Guerra. O
grupo de jovens policiais nos evidencia questões importan- capitão-do-mato pode ter vindo a Pelotas logo depois de uma
tes. A contenda ocorrida em 27 de abril de 1873, na atual Rua baixa do conflito no Paraguai, o que também poderia ter lhe
General Osório, centro da cidade de Pelotas, se deu após a dado uma experiência e capital social importante. De acordo
abordagem dos policiais ao Tenente Francisco José Bernardes, com Paulo Moreira "[...] os soldados exigiam reconhecimento
sob a alegação de que ele estava armado na rua à noite. Este e legitimidade para suas experiências ligadas ao conflito com
não deixou por menos e enfrentou os jovens soldados ques- o Paraguai" (1995, p. 83). Se o retorno da Guerra não con-
tionando a forma da abordagem e certamente o direito que cretizou para estas pessoas as promessas feitas pelo Império
tinham em interpelá-lo. se atuassem enquanto voluntários, como o acesso a terras e
prémios, elas se utilizavam desta experiência para reivindicar
A tudo isto ele respondente caminhava calmo, e sem
fazer uso de suas armas, quando ao passar por ele certo status, um capital social relevante na época. Inclusive
o capitão do mato Damazio, encostou-lhe uma pis- em relação à Polícia, as autoridades desta instituição discuti-
tola aos peitos com a intimação de que se rendesse. ram as formas de recepção dos policiais que participaram da
Afastando ele respondente a pistola com a mão, per-
guntou a Damazio o que era aquilo, e se ele o não Guerra e que voltaram com distinções hierárquicas como a de
conhecia, a isto Damazio prontamente retirou-se tra- sargento, por exemplo. Tais distinções para alguns deveriam
tando-o por Tenente14.
ser reconhecidas dentro da própria estrutura policial15.
Uma função mal vista era esta do capitão-do-mato, mas
Damásio, certamente sentindo-se ainda autorizado ao extremamente importante para os senhores de escravos, que
trabalho policial, ajudou na interpelação, mas após reconhe- dependiam deste para recuperar seus cativos. A cidade de Pe-
cer o Tenente, recuou. Não me interessa neste momento tra- lotas concentrou um grande número de trabalhadores escravi-
balhar o caso em específico, mas um vestígio captado neste zados ocupados nos afazeres das charqueadas, mas também
processo crime. O Tenente ao ser julgado por reagir ao poder em outros espaços de labuta como as diversas atividades ur-
de autoridade dos jovens soldados, perante o Juiz apresentou banas, nas chácaras, dentre outras ocupações. Em 1858, Pelotas
um documento que justificava sua baixa como combatente na contava com 4.122 pessoas escravizadas num total de 10.757
Guerra do Paraguai, realçando assim sua experiência militar habitantes (GUTiEPvREZ, 2004, p.498). Em 1873, segundo os
e reivindicando talvez outro tratamento acionado pelo capital dados das matrículas de escravos construídas pela Diretoria
social acumulado no engajamento naquele conflito bélico. Da- Geral de Estatísticas (DGE), havia 7.687 escravos na cidade
(ARAÚJO, 2011). Em 1882 ainda existiam 6.781 pessoas escra-
14. AFERS. Fundo Comarca de Pelotas. Subfundo 2' vara cível. Processo Crime Nume
ro:4417.1873.
15. Ver capítulo l de AL-ALAM (2016).
r
vizadas 16 . e em 1.884 n cidade ainda contaria com 6.D2Ô escrj- eri'/..^^ como contra a urdem pública. R dentro dês-
vos. Ma década de 1880, às portas da abolição, os senhores de toy/ o registrado como "Vagar alta noite pelas ruas fora de
escravos de Pelota? continuavam a usar intensamente este tipo hora'. q u c evidencia a intensidade das formas de sociabili-
de mão-de-obra. Tonas Vargas pesquisando os charqueadores dade t' circulação das e dos escravizados que preocupavam a
da localidade demonstrou que aqueles que puderam segurar elite senhorial. Homens e mulheres escravizados que mesmo
suas propriedades o fizeram até o último momento, relativi- com todo um aparato repressivo na cidade, continuavam a
zando a ideia já tradicional de que os grandes proprietários do exercerem suas subjetividades, praticando suas experiências
Rio Grande do Sul teriam aberto mão de seus escravos já na de vida, na maioria das vezes mal vistas pelos senhores de
década de 1870 (Vargas, 2011). Entre 1860 e 1880 havia uma escravos. A estas redes de sociabilidade e solidariedade que
média de 30 charqueadas na região de Pelotas. passavam ao largo dos olhares dos senhores, Flavio Gomes
Esta intensidade da presença de africanos e afrodescen- chamou de Campo Negro. Uma:
dentes enquanto trabalhadores escravizados, e a necessidade
[...] complexa rede social permeada por aspectos
da manutenção do status quo da escravidão, levou a instala-
mu l ti facetados que envolveu, em determinadas re-
ção de um considerável contingente de instituições normativas giões do Brasil, inúmeros movimentos sociais e prá-
na região. Estavam organizados em Pelotas desde a década ticas económicas com interesses diversos. Tal arena
social foi palco de lutas e solidariedades entre as
de 1830, a Polícia Provincial, os Guardas Municipais Perma-
comunidades de fugitivos, cativos nas plantações e
nentes, a Guarda Nacional, o Exército, a Marinha, e a Polícia até nas áreas urbanas vizinhas, libertos, lavradores,
Particular. Em 1832, em consonância aos projetos carcerários fazendeiros, autoridades policiais e outros tantos
sujeitos históricos que vivenciaram os mundos da
liberais do Estado Nacional brasileiro recém fundado, foi inau- escravidão. (GOMES, 1995: p. 36)
gurada uma Casa de Correção na cidade, que logo fracassaria l
enquanto modelo punitivo transformando-se em uma prisão Mesmo pontuando as relações dos quilombolas na so-
como outra qualquer no Império (AL-ALAM, 2008). Afinal, ciedade escravista, esta ideia dá conta da mobilidade escrava
longe dos modelos corretivos europeus e norte-americanos, a em Pelotas, que mesmo cerceada por diversas práticas nor-
prisão tinha uma função objetiva no contexto da sociedade es- mativas, incendiava o imaginário da elite senhorial.
cravista, controlar e punir quando possível a escravaria. Ainda, importante salientar que dos cerca de 330 regis-
No único livro de entrada e saída de presos que sobrou tros no livro de entrada e saída de presos escravos da cadeia
desta prisão17, justamente o que registrava os escravos, des- civil da cidade, 10% eram relacionados a práticas de fugas.
taca-se aqueles registros vinculados aos motivos de prisões Portanto, toda esta conjuntura intensa da presença da mão-
-de-obra escrava em Pelotas, principalmente pela concentra-
t
16. BPP. CEDOC. Jornal Onze de /unho. Dia 24 de novembro de 1S82. Destes 6.7S1, j ção de um grande número de charqueadas na região, e os
4.251 eram homens e 2,530 eram mulheres. i
esforços realizados pela elite senhorial em manter o usufruto
17. BPP. CKDOC Livro de entrada e saída de escravos da cadeia civil de Pelotas. 1362- jl
1878. Ver capítulo 2.2 de AI.-ALAM (2016). i disciplinado deste tipo de trabalho, demandava os usos de di-
ferentes instituições normativas e profissionais relacionadas a por
estas, dentre eles, o imprescindível capitão-do-mato. -mato. entrou em uma taberna situada na Rua General Víc-
Pelo o que observamos na bibliografia o padrão geral torino1'1, onde estava presente uma mulher fazendo compras,
desta ocupação era de uma vida muito dificultosa financeira- descrita pelo jornal Diário de Pelotas- 1 como crioula. Damásio
mente, vivendo muitas vezes estes indivíduos de vencimentos tentou agarrá-la a pretexto de andar fugida, e a mulher correu
nem tão honestos, sendo acusados "[...] de roubar escravos, buscando ajuda na casa de um senhor chamado Orestes. Da-
usar indevidamente seu trabalho e prender e até matar cativos másio per segui n do-a de facão em punho entrou na residência
inocentes para obter recompensas." (REIS, 1996, p. 17).18 gritando ofensas e insultos às pessoas presentes, chamando
Em 1871, o Delegado de Polícia de PeJotas enviava ofício a atenção dos vizinhos e passantes na rua. Alguns homens
ao Presidente da Câmara Municipal, anunciando a prisão do intervirá m e segundo o jornal "[...] deram fim a esse escân-
capitão-do-mato Liborio Appolinario e pedia providências: dalo, provocado por aquele empregado da Polícia. Não é a
primeira queixa que temos recebido contra Damásio. Preciso
Previno a V. S-. que o Capitão-do-mato Liborio
Appolinario, nomeado ultimamente para exercer
se torna, pois, que o Sr. Delegado de Polícia dê providências,
aquelas funções, tem recebido quantias independen- para que se não reproduzam esses fatos"22. Interessante des-
te de escravos fugidos, por modo ilícito prendendo tacar que esta matéria de jornal, que poderia ser um artigo
a ordem de autoridades a indivíduos e soltando me-
diante pagamento, como ainda a bem pouco tempo ou um apedido, demonstra o quanto o reconhecimento social
aconteceu quando recebeu do aguadeiro António e comunitário era complexo, nunca homogéneo, e evidencia
Mendonça Mor que, mancomunado com outros,
questionamentos à legitimidade da atuação deste capitão-do-
obrigaram-no a este a dar 1QO$000 para o soltarem o
que tendo chegado ao meu conhecimento o fiz pren- -mato naquela sociedade do século XIX, diversificada social-
dê-lo bem como os outros cúmplices. Assim, pois, mente, num intenso e produtivo setor charqueador.
levando ao conhecimento de V. S*, tomara as provi-
dências que o caso urge."
No dia 5 de novembro do mesmo ano, o mesmo jornal
Diário de Pelotas, noticiaria a prisão de Damásio Duval:
Damásio não era uma exceção, e aparece em diver-
Foi ontem recolhido a cadeia civil Damásio Duval,
sos momentos na documentação envolvido em denúncias e que exerce o emprego de capitão-do-mato.
acusações. Teve três vezes caçado o título de capitão-do-rnato Motivou sua prisão o ter desrespeitado a autoridade
policial que admoestou por ter ele feito uma prisão
pela Câmara Municipal, em 1876, 1878 e 1880.
injusta e sem ordem legal.
Na noite do dia 2 de junho de 1876, numa sexta-feira, Damásio Duval, há muito que não deveria ocupar
18. Destaque-se que, para facilitar o trabalho dos capitaes-do- mato, os anúncios de
20 Atuaí rua Anchieta.
fuga de escravizados esmeravam-se no detalhamento nas características de identifi-
cação dos tidos como fujões, seja na sua descrição física, em hábitos de sociabilida- 21, O jornal Diário de Pelotas foi um órgão do Partido Liberal e circulou entre 1366 até
de, etc. Ver: FREYRE, 1979; SCHWARCZ, 1987. 1889. Sua tipografia ficava na Rua do Imperador, atual Félix da Cunha (LONER,
20Í O, P.95).
19. AHRS. Fundo Polícia. Maço 15. Ofício Delegado Prudencio ao Presidente da Câma-
ra Municipal Dr. João Chaves Campello. Dia 13 de novembro de 1871. 22. BPP. CHX3C Jornal Diário de Pelotas. Dia 3 de junho de 1876..
o cargo d s capitão-do-rraio por seu gfrtio dísculo e
provocante, e mi-.^mc pó;- andar constantem^nte em- Aí testemunhas de acusação informaram que Damá-
briagado.
sio havia invadido a casa do denunciante e quebrado a porta.
A Câmara Municipal prestaria um relevante serviço
se demitisse esse mau empregado, substituindo-o p0r Uma testemunha de defesa, Francisco Lobato Lopes, de 40
outro de costumes morigerados e de mais confiança 3 • anos, casado, negociante e morador da cidade de Rio Grande,
afirmou ter autorizado Damásio a capturar a sua escrava e
Cedendo a pressão, no dia 20 de novembro, o Subde- levá-la até a prisão. O caso teve divergências na Justiça, pois
legado de Polícia, Capitão Manoel Luís da Cunha, pedia a • o advogado de defesa do capitão-do-mato alegou que suas
bem do serviço público, a demissão de Damásio do cargo de testemunhas não haviam sido ouvidas. Já o Juiz entendeu que
capitao-do-mato. A Câmara Municipal mandou caçar o título estas testemunhas haviam sido apresentadas após o momento
do empregado público, tido como bêbado e provocador24. As < das inquirições. Em rneio a esta discussão, um ofício assinado
habilidades sociais de Damásio não estavam sendo reconhe- . por Joaquim Guilherme da Costa, alegava que estava sendo
cidas, afinal este capitão-do-mato deveria aliviar a tensão so- coagido por Damásio a prestar depoimento em seu favor e
cial com a prisão dos tidos fugidios cativos e não tencionar o .. que certamente teria acontecido com outras pessoas. A de-
espaço urbano capturando negros livres e forros. núncia foi considerada improcedente, pois o réu teria entrado
Em 1874, Damásio já havia se envolvido em conflitos, no corredor que dá acesso a casa do denunciante para pegar a
o que é evidenciado por um processo crime contra ele. Joa- escrava, e, portanto não teria invadido o seu domicílio. Além
quim Marques de Oliveira denunciou que no dia 16 de maio disto, inferiu o juiz que a porta teria sido quebrada por Clara,
de 1874, ao voltar do seu trabalho e entrar em sua casa: que teria a agarrado para não deixar-se levar pelo capitão-do-
-mato. O denunciante apelou, mas não temos registro poste-
"[...J notou sinais de violência ern uma pequena
cancela de balaustres torneados que tem na porta rior do caso e nem ao menos soubemos como ficou a situação
da rua, e, passando a indagar do que houvesse ocor- da trabalhadora escravizada Clara.
rido, soube que o suplicado, capitão-do-maío, às 10
horas da manhã, havia com todo o desrespeito e bru-
Mesmo sendo acusado por subdelegados, delegados,
talidade entrado na casa do suplicante para prender, e outras pessoas que dispunham de representações nas insti-
como prendeu, sem formalidade alguma, e a titulo tuições normativas que gerenciavam o policiamento na cida-
de fugida, uma parda de nome Clara, que o supli-
cante tomara a jornal desde o dia 11 do corrente, e
de, assim como bastante atacado pelo jornal liberal Diário de
que costumava todos os dias sair a rua."25. Pelotas, Damásio parecia ter um capital político importante
naquela sociedade pelotense do século XIX. Em abril de 1877,
ele é indicado pelo Delegado de Polícia António José de Aze-
23. BPP. CEDOC. Jornal Diário de Pelotas. Dia 5 de novembro de 1876. vedo para receber o título novamente e retorna às atividades
24. BPP. CEDOC. Atas da Câmara Municipal de Pelotas. Sessão do dia 20 de novembro de capitão-do-mato26.
de 1876.
25. APERS. Fundo Comarca de Pelotas. Subfundo Tribunal do júri. Processo Crime Nú-
mero 977. 1374. :&. BPP. CEDOC Atas da Câmara Municipal de Pelotas. Sessão do dia 30 de abril de 1877.
Mas Ls;o não sienÍh:^\ que os conflitos cessassem. Em
í
19 de outubro de 1878, o Jornal do Comércio 2 ' e o Diário de O Lil Sr. Cjftiij,' í/ii rn,ií;> tambum coadjuvou as pra-
cns na cena d,.> u s p a noa me n tu, naturalmente persua-
Pelotas noticiavam a prisão efetuada pela Polícia Particular dido de que d:iva caca a algum escravo rugido.
de Damásio Duval por invadir uma casa tarde da noite, ar- O Sr. Sargento GmiandanU' do Destacamento che-
mado de um facão e provocando desordem com o dono do gou, momentos depois, ao lugar dos conflitos, mas
não teve ocasião de presenciar a ru/tf:::'» de seus co-
lugar 23 . O despudor de invadir as casas à busca de fujões ou mandados.
para impor sua autoridade parecia ser urna prática corriquei- Sabemos, pela respectiva parte, que o soldado autor
ra para este capitão-do-mato. dos distúrbios foi recolhido á prisão, pelo que louva-
mos o Sr. Comandante da Policia; mas e preciso que
Como antigo soldado de Polícia, Damásio devia se o mesmo comandante não mande praças ébrias em
sentir autorizado a exercer demais tarefas de policiamento na serviço, e muito menos em lugares onde se acumula
gente de todas as classes.
cidade, ou ao menos coadjuvar os praças na luta repressiva Como o cidadão espancado foi preso á ordem do
cotidiana do trabalho de rua. Afinal, havia feito sua escola na honrado Sr. Subdelegado de Policia, de S.S, espe-
atuação na cidade a partir do trabalho policial. Em conflito ramos providências no sentido de se não repetirem
cenas iguais.
que descreveremos a seguir, podemos observar as dimensões Moderado, conciliador e cheio de bondade, o Sr. Ca-
do cotidiano deste tipo de labor, já que muitas vezes o que pitão Araújo deve recomendar á policia que cumpra
demandava o trabalho da Polícia eram justamente as práticas os seus deveres, mas não maltrate ninguém 2 ^.
cotidianas populares vistas como subversivas, mas efetuadas Damásio parecia ser uma pessoa pública bastante visa-
e vivenciadas pelos próprios policiais (MOREIRA, 2009). O da naquela sociedade pelotense do final do século XIX, já sen-
Diário de Pelotas, que é o jornal onde encontramos as críticas do tratado com certo "carinho" por este impresso da cidade,
contundentes a figura de Damásio na imprensa da cidade, que ajudava na construção deste personagem.
anunciava um conflito envolvendo praças da polícia e com a Na sessão da Câmara Municipal de Pelotas do dia 30
participação do "Senhor Capitão-do-mato", certamente Da- de dezembro de 1878, o Presidente da Casa lia requerimento
másio. Vaie a pena reproduzir a transcrição da notícia; do mesmo Delegado de Polícia requisitando a demissão de
Damásio do cargo de capitão-do-mato, justificada pela falta
A Polícia anteontem andou fazendo das suas-
A' porta do circo da companhia inglesa, uma das
de cumprimento de seus deveres, sendo atendido 30 .
praças da seção fixa, completamente embriagada, Mas parece que mesmo tendo seu título de capitão-do-
provocou um pobre cidadão, dando-lhe com um re- -mato caçado, Damásio continuava identificando-se com tal
lho, o que obrigou-o a usar do direito de represália.
Foi isso bastante para que outros policiais avanças- atividade, como se fizesse parte de sua pessoa este ethos da
27. O jornal do Comércio foi fundando em 1869 e funcionou até 1882. Em 1878 passou
a circular como órgão do Partido Liberal na cidade (LONER, 2010, P.156). 29 BPP. CEDOC. Jornal Diário de Pelotas. Dia 17 de marco de 1878.
28. BPP. CEDOC. Jomal do Comércio. Dia 19 de outubro de 1878; Jornal Diário de Pe- 30 HPR CEDOC. Atas da Câmara Municipal de Pelotas. Sessão do dia 30 de dezembro
lotas. Dia 19 de outubro de 1878. de 1378.
r
sociedade escravista. Unia íorrrn de pensar e agir em sociu- santo P." captura dos encravos, teria sido um sermão realizado
dade que estava extremamente vinculado a preservação da nor P a d r e António Vieira em São Luís do Maranhão no ano
ordem escravista, mas que também estava vinculada a atua- He Itió3. Descrevia Vieira as situações em que Santo António
cão policial. Aliás, a< instituições normativas no Brasil, como era reverenciado no cotídiano da América Portuguesa: "Se
a Polícia, nasceram intimamente ligadas à preservação da vos adoece uni rilho, Santo António! Se vos foge o escravo,
propriedade privada e a escravidão, e no final do século XIX Santo António! Se requereis um despacho, Santo António! Se
tiveram atuação destacada no período de crise para preser- aguardais a sentença, Santo António! Se perdeis a menor miu-
vação deste sistema compulsório de trabalho (ROSEMBERG, deza de vossa casa, Santo António! E talvez se quereis o bem
2008). O mesmo jorna! Diário de Pelotas anunciava a atuação alheio, Santo António!" (MOTT, 1996, P.lll). O autor eviden-
de Damásio, que continuava a policiar as ruas: cia diversos registros que retorçam este imaginário de Santo
António como caçador de fujões, tanto nas elites senhoriais
Um preto, escravo, foi anteontem, á noite, surpre-
endido, em uma taverna, pelo ex-capitão-do-mato
como nas camadas populares.
Damásio, na ocasião em que tentava negociar 16 gali- Em Pelotas, o Santo tinha capela específica. No ano de
nhas, mortas e guardadas em um saco. 1852 foi criada a Capela curada de Santo António da Boa Vista,
Tentando prendé-Io para o levar até á Policia, Damá-
sio nisso empregou alguns esforços, porém o negro que passou de curato a freguesia em 1858. Esta capela deveria
pôde escapar-se. ser sustentada pelos moradores do lugar, e se destacou nesta
Essas aves íoram furtadas do quintal da casa onde
obrigação nada mais nada menos que o charqueador e ex-mi-
reside o Sr. Cícero Oliveira.31
nistro farroupilha, Domingos José de Almeida. A região da Boa
Damásio parecia ser imprescindível, mesmo com todos Vista ficava a beira do Canal São Gonçalo, espaço privilegiado
os conflitos gerados nas suas experiências cotidianas. Era útil da produção saladeiril. A relação dos charqueadores com esta
para os senhores de escravos que buscavam aqueles traba- santidade na região era mais antiga e remonta ao século XVIII,
lhadores que rompiam com o cativeiro através das práticas quando o charqueador António José Gonçalves Chaves trouxe
de fuga. de Portugal uma imagem de Santo António de Padua e doou
Se no plano da realidade material, o capitão-do-mato para o oratório da charqueada de João Simões Lopes. Este últi-
era fundamental, no campo mágico religioso Santo António mo, posteriormente, com o aumento da devoção da população
era importante na proteção e ajuda na captura dos fujões. do lugar, construiu em sua propriedade um templo para este
Luiz Mott abordou os significados da representação de San- Santo. Foi neste espaço que alguns senhores da elite local reali-
to António nos diversos setores da sociedade escravista e in- zaram seus matrimónios, como o charqueador Domingos José
clusive o papel do santo na caça aos escravos fugidos e na de Almeida já citado aqui.
destruição de quilombos. O rnais antigo registro do poder do Assim, se fizéssemos um entramado das redes
sócio-familiares e políticas dos charqueadores locais,
31. BPP. CEDOC. Jornal Diário de Pelotas. Dia 27 de setembro de 1879.
no centro estaria Santo António! Claro que nem San-
38
tratado neste texto, mas infelizmente nos faltam elementos 33 BPP. CEDOC Jornal do Comércio. Dia 25 de fevereiro de 1882. "Assassinato-Cons-
ta ter sido ontem assassinado no Capão do Leão, Alexandre de ta!, que exercia o
para apontar uma certeza. cargo de capitão do mato nesse município. O assassino dizem foi um escravo do Sr.
Felisberto Cunha, que anda fugido. Faltam-nos outros pormenores.".
34. BPP. CEDOC. Atas da Câmara Municipal de Pelotas. Sessão do dia 6 de agosto de
1880.
-do-mato, porque se ao mesmo tempo os trabalhadores deste infame ocupação fez história.
posto acarretavam diversas experiências problemáticas, por Se politicamente a pauta da abolição veio a erodir a fi-
outro lado eram fundamentais na preservação da proprie- gura do capitão-do-mato como exemplo da tirania do sistema
dade escrava, úteis a senhores e ao governo. Uma profissão escravista, alguns destes indivíduos continuaram a capitali-
que dependia de certos atributos como de saber usar armas, zar socialmente a atuação nesta profissão.
conhecer a região, manejar o território e seus diferentes ha- Fernando Osório, como abordado no início deste texto,
bitantes buscando informações, mas que era vista como des- a partir das memórias do Major Tornas Francisco da Costa,
qualificada, pouco rentável e deveras estigmatizada. registrou este vá íor que os capitães-do-mato apresentavam de
As formas de atuaçào policial foram demarcadas peia sua atividade. E neste relato, está presente a figura de Damá-
escravidão, como dito anteriormente, e em 1886 o mesmo jor- =io, eternizado na memória popular da sociedade pelotense.
nal Diário de Pelotas noticiava as práticas repressivas marca-
O lugar de capitão do maio, lembramo-nos ter sido
das pelas relações raciais no sistema escravista. aqui desempenhado por Luiz Coxo, Libório Apoli-
nário e Damásio de tal, todos peritos e habilíssimos
Proezas policiais- Estamos atravessando uma queda no exercício das honrosas funções. E tanto assim é que,
de justiça e ordem, não há dúvida! por algumas vezes, tivemos ocasião de observar a
Os agentes policiais que exorbitando as suas atribui- sua entrada gloriosa e triunfal na cidade, a cavalo, tra-
ções, fazem desaparecer os infelizes que lhes caem nas zendo a cabresto o negro fugido, mãos atadas para
garras, arvoram-se agora em capitães-do-mato. as costas, e por um maneador ou corda no pescoço
Ontem ás 11 horas do dia, na esquina da Copa Ca- preso à argola da barrigueira dos arreios! O último
bana, duas praças de policia agarraram um infeliz desses capitães do mato tinha na parede da casa em
homem de cor e depois de o espancarem amarra- que residia, à rua Paissandu, este peregrino rótulo, em
ram-no e conduziram-no para o xadrez da policia. letras gordas como ele: 'Aqui mora o Sinhor Dama-
O crime praticado pelo preso, diziam os policiais, zio de... Empregado Publico do Governo Capitão do
era andar fugido, Mato abei para discubrir negros fugidos de dia ou de
Que moralidade! noite sempre as ordes'" (sic)36.
E viva o partido da ordem e os abolicionistas de oca- |
35. BPP. CEDOC. Jornal Diário de Pelotas. Dia 26 de janeiro de 1880. 36. OSÓRIO, 1997, P.157.
E, O i l n e r to. O escravo nos anúncios de jornais
tem focado suai análises no cotidjano destes trabalhadores
, , as ileiros do século XIX. São Paulo: Nacional; Recife:
também pode desvendar um pouco do ethos racializado de'1
Insituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1979.
atuação desta instituição até os dias de hoje no Brasil.
rOMES, Flávio dos Santos. Histórias de Quilombolas.
REFERÂNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro -
í século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
AL-ALAM, Caiuá. Cardoso. A negra forca da princesa: f
polícia, pena de morte e correçao em Pelotas (1830-1857). f GUTIERREZ, Ester. Barro e Sangue: rnão-de-obra,
Pelotas: Edição do autor / Sebo Içaria, 2008. f arquitetura e urbanismo em Pelotas (1777-1888). Pelotas:
t
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Introdução
46. E. P. Thompson tem estudos sobre a sociedade inglesa do século XVIII, com foco
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São Paulo. Coirupio; Brasília, DF: CNPq, 1988, p. 131. entre as práticas sociais e as normas legais. Cf. THOMPSON, E. P. Costumes em
45. APER - Arquivo Público do Kstado da Bahia, Livro de Notas do Tabflionato de : comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das
Inhambupe, n1' 19, fls. 145, 09/04/1878. Letras, 1998.
r O pi-j.j:áno da Fazendo Tigre-. Segundo a d e n ú n n a feita pela
nroprb vítima na subdelegada d:i Freguesia di1 Aporá, foi co-
locado o seguinte:
Como se percebe., a autora deixa claro que além das
Serafim Pinto de Souza propnet.írio deste termo do
atividados desenvolvidas no espaço conquistado dentro da Inhjmbupt:, du acordo com o di.-.po^to do artigo 74 3
propriedade do senhor, das recompensas e pagamentos pelo 6J do Código do Processo C ri nu.- c1 artigo 15 da Lei rf
2033 de 20 d t? abri l d e 1871, vem denunciar a este juízo
trabalho nos dias livres, alguns escravos se utilizavam, ainda,
o indivíduo Fioriano, crioulo, escravo de Dona Cristi-
de furtos para adquirir algurn recurso. Assim, outra pesqui- na Maria de Jesus, preso em flagrante delicto e condu-
sadora, Elione Guimarães, que em seu livro "Terra de preto: zido à prisão desta vila, pelo fato seguinte: No dia 12
do corrente mós de junho, os denunciados (Floriano e
usos e ocupação da terra por escravos e libertos (Vale do Paraíba João Brás) saíram armados de espingarda e facas pe-
mineiro, 1850 - 1920) ", que trata dessa mesma questão, diz los campos de criação da Fazenda Tigre, propriedade
que "os furtos cometidos por escravos também são conside- do denunciante, e ali disparando em uma rês de cor
castanha, ferrada com o ferro da dita Fazenda Tigre,
rados uma forma de economia complementar (assim como de (...) morta com descrição, passa à casa do l- denuncia-
resistência ao sistema) ".4S do, Floriano, onde, depois de tratada, trataram de sua
partilha, enterrando o couro no fundo da casa.19
50. W1SSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos 51 APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia, Processo-crime de 11-02-1878, Estante
e forros em São Paulo, (1850 -1880). São Paulo: Editora Hucitec Ltda, 1998, p. 52 24, Caixa 836, Documento 04, Folhas 01-66.
como apagar o rastro deixado pelo animal morto puxado da pretensão de justificar todos os casos de furtos de gado em
Fazenda Volta até sua casa. Pois, o vaqueiro desta fazenda, ao Inhambupe em função das secas que ocorreram, não há dú-
seguir este rastro, descobriu o autor do furto, como é descrito vidas de que, em alguns casos, a fome foi a motivação. De
neste trecho do inquérito: acordo com Graciela Rodrigues Gonçalves, que tem o estudo
"'As sscas na Bahia do século X/X; sociedade e política", diz que a
foi que tivesse o vaqueiro encarregado desta fazen-
da, Ladislau Correia da Silva, encontrado o arras- região nordeste da Bahia, na década de 1870, foi marcada por
tado, por onde foi conduzido o garrote, seguiu no períodos de secas significativas, e que as Comarcas de Feira
arrastado, que foi ter nas cercas da roça do queixa-
de Santana, Inhambupe, Itapicuru e Monte Santo estavam em
do, e dai voltando, tratou de procurar o auxílio do
inspector, Joaquim Adrião de Sousa, e com outras situação mais crítica entre as localidades dessa região. 53
pessoas seguiram o encalço do mesmo queixado, Também era uma prática comum daqueles que come-
sob o qual recaiam bem fundadas suspeitas de nele
tiam o furto de animais, ao serem flagrados em seus delitos,
assim em praticar arrimo de igual natureza, o quai
sendo encontrado e perguntado de que era aquele argumentarem que tinham comprado esses animais de al-
arrastado que havia até suas cercas, logo e com o guém. Foi o que aconteceu com Honorato José da Silva ao
maior arrimo, longe de ocultar seu crime, o confessa-
va declarando que forçado pela necessidade, atirou
furtar uma cabra de Angelo Alves de Azevedo. O Caso acon-
em um garrote e o arrastara para sua casa, onde o teceu na Fazenda Retiro, na Freguesia do Aporá e Vila de
esfolara, utiiizando-se da carne. Não ficou ainda o Inhambupe, no dia doze de maio de 1886, quando Honorato
cinismo do queixado nessa confissão, apresentando
mais o lugar onde enterrara o couro, que assim des- José da Silva foi flagrado esfolhando uma cabra, em sua resi-
coberto foi descavado, e verificado pelo ferro sendo dência na localidade do Retiro, pela vítima, o sr. Angelo Al-
do domínio do queixoso; à vista do que fora logo in- ves de Azevedo; o inspetor de quarteirão, José Maria de Brito;
timada a ordem de prisão em flagrante, e conduzido
à delegacia desta vila, onde mais clamando confessa e mais duas testemunhas, Salustiano Pereira Lima e Martinho
o seu crime, como se evidencia do inquérito, que a Crisóstimo de Araújo. Quando Honorato foi interrogado pelo
esta acompanha."
subdelegado Basílio José d'Oliveira como se deu o caso, ele
O furto de gado sendo usado como alternativa para disse que tinha comprado a cabra por mil e quinhentos reis,
se matar a fome foi o argumento de muitos que praticaram na localidade do Papagaio, a um sujeito cujo nome não sabia.
esse crime naquela época. E mesmo entendendo que a po- Entretanto, antes de ser conduzido para as autoridades em
pulação mais carente de Inhambupe naquele período passou Inhambupe, o inspetor levou Honorato até a Fazenda Papa-
por diversas dificuldades, incluindo a falta de alimentos, não gaio para localizarem o suposto vendedor da cabra, que não
se cogita a possibilidade de as autoridades aceitarem tais ar- foi encontrado, pois, provavelmente, não existia o dito vende-
gumentos na justificativa do crime. Entretanto, não tendo a dor, confirmando ser esta uma das estratégias daqueles que
52. APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia, Processo-crime de 03-07-1878, Estante 53. GONÇALVES, Graciela Rodrigues. As secas na Bahia do século XIX: sociedade e
21, Caixa 869, Documento 07, Folha 04. política. (Dissertação de Mestrado). Salvador, Bahia: UFBA, 2000, p. 85 - 86.
r
praticavam o f u r t o para podoroir se 3-iLir da culpa. Só que no avalia tirhsrn siJo f u r t a d o s , determinou algumas pessoa.--
caso de Honorato, tinha um agravante determinante: todas as na rã fazerem u m n varredura na região no propósito de obter
testemunha;; o descreveram como sendo um sujeito acostu- noticias dos animais, foi quando nessa investigação particu-
mado a cometer esse tipo de delito.54 lar começou a se formar unia suspeita do f u r t o dos animais
Já o caso do furto de duas vacas do Capitão Bento José aue, aos poucos, recaiam em um sujeito por nome de José Ro-
de Noronha, proprietário do Engenho Lagoa, localizado na tjritiues da Silva, conhecido por José Mineiro, pelo fato de já
Vila de Itapicuru, e da Fazenda Pajaú, localizada na Fregue- existir comentários de furto de animais atribuídos a ele e por
sia do Aporá, na Vila de Inhambupe, ocorrido em outubro de terem visto o mesmo rondando aquela região no dia em que
1884, aconteceu que o acusado Pedro Aprígio Pereira, depois os cavalos desapareceram.
de não ter como negar o crime, acertou com o Capitão Bento De acordo com os autos do processo, na medida em
que iria pagar as duas vacas no valor de 100SOOO (cem mil que as suspeitas do furto dos animais se direcionavam para
reis) para que o mesmo não levasse o caso para a justiça. En- José Mineiro, o Coronel Marcos Leão Veloso procurava, por
tretanto, como Pedro Aprígio não cumpriu com o combina- iniciativa própria, localizar o suposto infrator do delito. Na-
do, o Capitão Bento prestou queixa na delegacia. Na verdade, quela ocasião, as testemunhas arroladas no processo, Manoel
Pedro Aprígio, confessando que tinha furtado as duas vacas Gonçalves da Silva, morador no Engenho Santana, e Manoel
com o auxílio de outro companheiro, Joaquim José Mamede, Eloy de Souza, morador no arraial do Torto, ambos localiza-
e concordando em pagar depois a quantia de 100SOOO (cem dos na Vila de Inhambupe, foram contratados pelo Coronel
mil reis), só estava querendo um tempo e oportunidade sufi- Marcos Leão Velloso para irem ao encalço do suspeito José
ciente para poder fugir. E foi o que aconteceu, tanto ele corno Mineiro. Como consta no interrogatório da primeira testemu-
seu comparsa fugiram sem deixar vestígio algum.55 nha, Manoel Gonçalves da Silva:
Outro caso de furto de animais, que ocorreu no dia 02
E sendo inquerido sobre os factos constantes da peti-
de março de 1884, no Engenho Coité, propriedade do Coro- ção de denúncia que lhe foi lida. Respondeu que na
nel Marcos Leão Velloso, que a princípio envolvia pessoas li- ocasião em que o réu presente, passando no Engenho
Coité, em que se deu o furto dos cavalos do Coronel
vres, no transcorrer do processo a culpa acabou respingando Marcos Velloso, ele testemunha, estava no Sertão, e
em escravo. Segundo consta no processo, no dia seguinte do chegando em sua casa soube que ali tinha passado ele
furto, o Coronel Marcos ao ser comunicado do desapareci- com outro companheiro e comprado ali aguardente
e seguira para o dito Engenho Coité e na ocasião se
mento de dois cavalos de seu engenho, um rosilho e outro dera o furto dos animais, pelo que o Coronel Marcos
alazão, ao invés de em seguida prestar queixa na delegacia de Velloso mandou chamar ele testemunha, que seguiu
com Manoel Eloy ao encalço dos ladrões, e chegan-
Inhambupe, mesmo porque não tinha certeza se realmente os
do em casa de Manoel Pedro, em Laranjeiras, este lhe
disse que ali tinha passado José Rodrigues...56
54. APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia, Procusso-crime de 13-05-1386, Estante
24, Caixa 836, Documento 06, Folhas 1-8.
55. APEB - Arquivo Púbbco do Estado da Babia, Processo-crime de 04-02-1885, Estante 56. APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia, Processo-cnme de 03-OMS84, Estante
24, Cairá 837, Documento 05, Folhas 1-31. 24, Caixa 845, Documento 04, FolhdS 1-72.
Mnnoe! Pedro de A n d r a d e que residia na Freguesia de
Laranjeiras, Vila do Socorro, Província de Sergipe, era de fato
um dos receptores dos cavalos que João Mineiro furtava, g
ao ser interrogado ele diz que José Mineiro e seu comparsa, \1omentos turbulentos e o caso do escravo Bonifácio
de nome Francisco, mais conhecido como Chico do Norte, ao
chegarem em sua casa com quatro cavalos, pediu-lhe para Os últimos anos anteriores a abolição no Brasil foram
deixar esses animais em sua casa até ele negociá-los. Entre- anos muito tensos, marcados por algumas conturbadas movi-
tanto, no dia seguinte, um dos cavalos sumiu e Manoel Pedro mentações de ordem social, principalmente aquelas relacio-
acusou o cativo de nome Cândido de ter furtado o cavalo. nadas aos movimentos abolicionistas. Nesse contexto, após
Cândido era escravo de Eugenia, ambos moradores em La- Íeis aprovadas que consequentemente enfraqueceram o sis-
ranjeiras. Confirmando, mais uma vez, que dentro daquele tema escravista no Brasil, como a Lei Eusébio de Queirós, de
contexto sócia! era muito fácil atribuir culpa aos escravos, 04 de setembro de 1850, que proibia o tráfico de escravos, tor-
mesmo os indícios indicando outros culpados. E nesse caso, nando-se mais rígida que a Lei de 07 de novembro de 1831,
de acordo com o desenvolvimento do processo, com os depoi- como também a Lei do Ventre Livre de 28 de setembro de
mentos das testemunhas e interrogatórios dos réus, não teve 1871, que tornava "livre" os filhos de escravas nascidos após
como José Rodrigues da Silva e Manoel Pedro de Andrade essa data, e a Lei dos Sexagenários de 28 de setembro de 1885,
se eximirem da culpa. Mesmo tendo José Mineiro negado o que dava liberdade aos escravos idosos acima dos sessenta
furto dos cavalos do Coronel Marcos Leão Velloso, declaran- anos, foram mecanismos legais que abriram brechas para que
do que tinha comprado os animais a um tal de Manoei, que escravos lutassem por direitos e pelo fim de sua condição ca-
dizia ter trazido tais cavalos de Santo Amaro, no Recôncavo tiva. Todo esse aparato legal foi minando aos poucos o regi-
Baiano, no dia sete de julho de 1885 foi julgado e condenado me escravo no Brasil, que logo em seguida não pode se sus-
a quatro anos de prisão, tendo o seu termo de apelação de tentar. Notou-se naquela ocasião um aumento considerável
sentença negado pelo juiz. Esse caso demonstra que a influ- de processos na justiça envolvendo escravos reivindicando
ência do poder político local de um coronel era determinante alforria e outros direitos, como também, processos crimes que
para concretizar na justiça a condenação de acusados, inde- envolviam escravos expressando insatisfação com sua condi-
pendente desses serem escravos ou pessoas livres. ção cativa. Notou-se também um expressivo aumento no nú-
Assim, dentro da categoria do crime de furto ou roubo mero de fugas escravas, sendo que muitas dessas fugas não
praticados por escravos e libertos ou envolvendo ambos, na foi possível ser contornadas pelos senhores de escravos, pois,
Vila de Inhambupe e outras localidades na Bahia, percebe-se principalmente nos anos de 1880, devido a notada fragilidade
que em alguns casos essa prática era uma necessidade para se que o regime escravo apresentava, muitas desses cativos que
obter melhores condições de sobrevivência, expressando con- fugiram não foram encontrados, mesmo porque as autorida-
r
se nru'í"
rs Vila J<j I n h a m b u p e , (oram surpreendentemente
como antes. Sobre essa questão relata VValtcr Fraga Filho, etn nroU^tados peloí abolicionista K d u a r d o Carigé" e Pamphi-
"Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos lo d-i Santa Cruz, com \'arias pessoas que também tentaram
na Bahia (1S70-1910) ": impedir' o embarque. ' Analisando o documento que consta
a correspondência de Eduardo Carigé pard o chefe de po-
Nas últimas décadas da escravidão, as cidades do
Recôncavo, sobretudo Salvador, se tornaram rvtugio licia não dá para saber a real situação cio escravo, se ele já
de grande número de escravos fugidos dos enge- tinha sido alforriado pelo senhor antes de morrer ou se ele
nhos. Ao fugirem para os centros urbanos, os escra-
tinha fugido logo após a morte do senhor. Também não foi
vos levaram em consideração diversas condições a
seu favor - a interferência crescente das autoridades encontrado em outros documentos carta de alforria a favor
policiais nas relações enire eles e os senhores, as de- de Salustiano. O que ocorre é que os herdeiros do dito senhor
cisões muitas vezes favoráveis dos juizes e a vitali-
reivindicaram na justiça a posse do escravo, no qual foi fator
dade do movimento abolicionista."
de comoção e protesto popular para que o mesmo não voltas-
Por outro lado, por mais distante dos centros urbanos se à condição de cativo. De acordo com Ricardo Tadeu Caires
que vivessem os escravos, as notícias acabavam chegando. Silva, no texto "Eduardo Baraúna Carigé (1851 - 1905): o Antó-
Naquele período tinha-se notícias de várias conquistas de es- nio Bento baiano", depois de criada a Sociedade Libertadora
cravos nas suas demandas por liberdade, seja por meio legal, Baiana, em 8 de março de 1883, por vários jovens baianos,
via justiça, seja pelas fugas. E tudo isso incentivava e encora- entre eles Eduardo Carigé e Pamphilo da Santa Cruz, dono
java outros escravos a tomarem alguma iniciativa na busca da do jornal Gazeta da Tarde, principal órgão de divulgação das
liberdade. A confiança daqueles que defendiam o movimento ideias abolicionistas na Bahia, onde trabalhava Carigé, diver-
abolicionista era tanta naqueles tempos que muitos escravos sas ações na luta contra a escravidão aconteceu após surgir
foram resgatados das mãos de autoridades policiais ou seus esse movimento baiano.60
senhores por aqueles abolicionistas ou populares que simpa- Diante de todo esse contexto conturbado, em que es-
tizavam com o movimento, evitando que os cativos fossem
vendidos para outras localidades ou recuperados pelo senhor
58. Eduardo Carigé Baraúna era filho de Manoel Carigé Baraúna. Cujo pai formou-se
após uma fuga. Foi o que aconteceu em março de 1886 com o em medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia no ano de 1S45, quando defen-
deu a tese sobre a gravidez extra-uterina. Manoel Carigé íaleceu jovem, aos 28 anos
escravo Salustiano, apelidado por Pichita, que depois de ter de idade, em 1851, ano em que nascia seu primeiro e único filho. Com o falecimen-
to do pai, Eduardo Carigé passou a ser criado por sua mãe, dona Ernília Augusta
sido apreendido pelas autoridades policiais em Salvador e ao
Cartgé Baraúna. Cf. SILVA, Ricardo Tadeu Caires. Eduardo Baraúna Carigé (1851
tentarem embarcar o escravo no trem, na estação ferroviária - 1905): o António Bento baiano. In Anais do XXVI Simpósio Nacional de História,
ANPUH, São Paulo, julho de 2011, p. 3 - 4.
da Calçada, para ser entregue aos herdeiros do seu falecido 59. APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia, Série Polícia, Documento n5 6.505,1886,
Correspondência de Eduardo Carigé para chefe de polícia, 16 de março de 1886.
60. SILVA, Ricardo Tadeu Caires. Eduardo Baraúna Carigé (1851 - 1905): o António
57. FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e liber- Bento baiano. In Anais do XXVI Simpósio Nacional de História, ANPUH, São Pau-
tos na Bahia (1870 - 1910). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006, p. 99. lo, julho de 2011, p. l - 14.
r
- '"_•<-. j f">c-.-il'.T.l:i:í f j r.i ,]u,> .1 t-uni do --ervisC 1 pública,
cravo? apoiados por defensores do fim do regime cativo no ir.j[iur-;n<.V. J.i .-rderr c jj.tranti.i das autoridades í o
Brasi!, vivunciaram juntos com toda a sociedade cenas e mo- digne pnr.-iij^ncidr a tnn de MT augmentado com
bn2\'idjLÍL' ustc destacamento e poderem as autorida-
mentos de total desobediência e negação desse regime que
des cumprir com a lei, que é dever de seus CJrgos.';
não tinha mais vigor para se sustentar, era forte a pressão de
boa parte da sociedade para que a escravidão chegasse ao fim. Ter que controlar as inquietações da população escrava
De acordo com Walter Fraga Filho, "as cenas de desobediên- que almejava e reclamava por liberdade, como também man-
cia e insubordinação, assim vistas pelos senhores, resultavam ter a ordem sob os crimes cometidos por pessoas livres, era o
das iniciativas de homens e mulheres que decididamente se grande desafio das autoridades policiais naquele momento. E
recusavam a viver sob a condição escrava".61 vários atos de insubordinações e crimes cometidos por escra-
Em função desse nervosismo refletido por uma expec- vos naquele período se deu ern função da não mais aceitação
tativa de liberdade de uma numerosa população de escravos dessa população ao regime imposto pela escravidão. Vários
e que na visão dos governantes traria dificuldades para a ma- casos de rebeldia e violência de escravos contra senhores e
nutenção da ordem pública, foi motivação para que as autori- feitores aconteceram naquela época, como o caso que ocorreu
dades começassem a se preocupar com a questão da seguran- na Vila de Inhambupe, no ano de 1886, com o escravo Bonifá-
ça. Na Vila de Inhambupe o juiz de direito interino, Camillo cio. De acordo com o que foi arrolado nos autos do processo,
Acciole Silva, em uma correspondência enviada ao presiden- o escravo Bonifácio foi acusado e preso por tentativa de homi-
te da província, no dia l9 de setembro de 1875, reivindicando cídio contra o feitor Manoel José do Nascimento, na Fazenda
mais policiais, também expressa tais preocupações: Candeal, Vila de Inhambupe, propriedade do Major José Pe-
reira do Nascimento, senhor do acusado. O fato se deu nessa
Achando-se incompleto o destacamento d'esta vil Ia
e em número tão pequeno que não oferece garantia
mesma fazenda, onde, de acordo com o depoimento do feitor
alguma às autoridades para reprimirem o desenfrea- Manoel José do Nascimento, por volta das sete horas da noi-
mento e alluvião de turbulentos e vagabundos e réos te, no dia 13 de julho de 1886, depois dele ter dado algumas
de polícia, que a cada passo vivem se encontrando;
além de achar-se a cadea repleta de criminosos, não ordens aos escravos com o propósito que estes se acomodas-
só d'este município, como de outros, que aqui se sem nas senzalas e estando na varanda da casa de morada do
achão em custódia, alguns dos quais tem de serem
Major José Pereira do Nascimento, recebeu um tiro pelas cos-
submetidos a julgamento na próxima sessão do jury,
que começará no dia nove do corrente, e tendo o tas que caiu gravemente ferido. Logo após o exame de corpo
Delegado me comunicado que a força existente não de delito, feito no dia seguinte pelo Doutor Sátiro d'Oliveira
é sufficiente para reprimir e combater qualquer as-
Dias e por António Francelino das Virgens, foi verificado que
salto que esses criminosos tentem contra a dita for-
ça, buscando fugir das prisões; assim o comunico a
62 APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia, Sessão de Arquivo Colonial e Pro-
vincial, Série Justiça. Correspondências Recebidas de Juizes de Inhambupe, 1875,
61. FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e liber- Correspondência enviada do Juiz de Direito Interino Camillo Acciole Silva ao Presi-
tos na Bahia (1870 - 1910). Campinas, SP: Editora da UMCAMP, 200o, p. 113 dente da Província, 1J de setembro de 1875.
Q tiro seria de espingarda, por terem encontrado irims caro- cor branca, situação comum no mundo da escravidão."' Ain-
ços de chumbo nas costas do feitor. da sobre essa questão conceituai de cor, Hebe Mattos reforça
Voltando ao depoimento do feitor Manoel, ele disse o sentido da cor parda para o século XIX, quando diz que:
que ao cair após o tiro., conseguiu levantar a cabeça e perceber
Até meados do século, toda e qualquer pessoa, arra-
um homem de cor branca levantar-se e sair correndo do canto iada corno testemunha nos processos cueis ou cri-
de uma cerca em frente à casa do Major José Pereira. Apesar minais considerados, definia-se, entre outras coisas,
por sua "cor". A cor negra aparecia virtualmente
dos autos do processo não fornecer as características do réu
como sinónimo de escravo ou liberto (preto forro),
para saber se ele tinha cor clara ou escura, é de se presumir bem como os pardos apareciam geralmente dupla-
que o escravo Bonifácio tenha cor escura ou próxima disso, mente qualificados como pardos cativos, forros ou
livres. Apenas quando qualificava forros e escravos,
como era uma característica comum à maioria dos escravos, o termo "pardo" reduzia-se ao sentido de mulato ou
e esse engano pode ter ocorrido pelo fato da vítima estar um mestiço que frequentemente lhe é atribuído. Para os
pouco distante do agressor e o atentado ter acontecido à noi- homens livres, ele tomava uma acepção muito mais
geral de "não branco". Ser classificado como "bran-
te em um ambiente escuro. Entretanto, ao apelar para a li- co" era, portanto, por si só, indicador da condição
gação nominativa de fontes, analisando os livros de batismo de liberdade.64
de Inhambupe na referida época, só foi possível encontrar
um escravo de nome Bonifácio, nascido e batizado no ano de Retornando aos fatos, depois que o feitor sofreu o
1851, que estaria no ano de 1886 com 35 anos de idade, filho atentado no dia 13 de julho de 1886, o processo ficou alguns
de Alexandrina, escrava de Manoel Baptista Ferreira Mello, meses sem dar continuidade pelo motivo de não descobri-
que sendo este o Bonifácio, teria sido vendido posteriormen- rem logo em seguida o autor do disparo. Só vieram a ter essa
te para o Major José Pereira do Nascimento. No entanto, um confirmação no dia 15 de dezembro do mesmo ano, quan-
detalhe interessante na descrição desse assento de batismo do o Juiz Delegado de Polícia, o Alferes Justiniano Pinto de
revela que o batizando Bonifácio é de cor parda, que pode Meireles, confirma a denúncia contra o escravo Bonifácio
estar de acordo com a descrição do feitor Manoel José do Nas- e arrola como testemunhas o Alferes Francisco Xavier dos
cimento, pois a cor parda, de acordo com os conceitos de cor Santos Portátil, António Pinto Cardoso, Manoel Estanislau
empregados naquele contexto da segunda metade do século de Sousa, Joaquim Teles de Menezes, e António Mariano.
XIX, geralmente era atribuída aos mulatos, filhos do cruza- Assim, o Juiz Delegado faz o interrogatório com a primeira
mento do negro com o branco, e sendo assim, esse mulato testemunha, Manoel Estanislau de Sousa, que foi qualifica-
poderia ter uma cor de pele mais voltada para a cor escura,
ficando denominado de cabra, como também para a cor mais 63. https://familysearch, livro de assento de batismo da Paróquia de Inhambupe (1845
clara, classificado como pardo. E como no assento de batismo - 1S56), folha 162. Acesso em 02/ 03/2013.
M. MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste
não revela o nome do pai de Bonifácio, é possível que ele seja escravista (Brasil, século XIX). 3a edição revisada. Campinas, SP: Editora da Uni-
filho natural da escrava Alexandrina com algum homem de camp,2Q13, p. 104-105.
ir*
72
nhecimento da justiça. O Major José Pereira do Nascimento A? Sou?a Uantaà até encontrar uma solução ou destino para
procurou resolver o problema da sua forma, impondo suas o escravo Bonifácio. Só que durante essa estadia do escravo
próprias regras, sem o auxílio da justiça. Mesmo porque, no no Engenho Frade, provavelmente em alguma oportunidade
seu entendimento, se entregasse o escravo à justiça teria pre- niie surgiu, o escravo Bonifácio conseguiu fugir, conduzindo
juízos, pois não teria como vende-lo. Com essa atitude do Ma- a uma situação que forçou o Major José Pereira a confirmar na
jor José Pereira deixa-nos a acreditar que a ocorrência policial, justiça, em meados de dezembro de 1886, quem tinha come-
só foi feita naquele dia 14/07/1886 porque ele não sabia ainda tido o crime. Depois desse episódio, só vieram ter notícia do
quem tinha dado o tiro no feitor, caso ele já soubesse que o paradeiro de Bonifácio no início de 1889, depois de abolida a
autor do disparo era o escravo Bonifácio, certamente não teria escravidão, quando o mesmo já não era mais escravo do Ma-
feito a devida ocorrência. jor José Pereira, situação que não mudaria em nada a favor do
O que ocorreu foi que a partir daquela data começou a ex-escravo com relação ao fato criminoso.
surgir informações que levou à confirmação de ter sido o es- Hm uma carta precatória enviado do Juiz da Vila de
cravo Bonifácio o autor do atentado. Primeiramente, percebe- Inhambupe, António Calmon de Brito, em 08 de fevereiro de
ram na Fazenda Candeal que Bonifácio tinha fugido, dando « 1889, ao Juiz da Vila de Tucano, Júlio José de Brito, reivindi-
o primeiro indício de ter sido ele o culpado, depois tiveram cava nos seguintes termos:
a informação do furto de uma garrucha de Joaquim Teles de
Faço saber a Vossa Senhoria Eustrissimo Senhor
Menezes, arma que poderia ter sido utilizada no atentado e, Doutor Juiz Municipal do termo de Tucano, nesta
logo em seguida, tiveram a confirmação quando João Pereira Província da Bahia, a quem no seu impedimento e
seu muito honroso cargo exercendo estiver, que ten-
da Rocha, morador de Beritinga, a quem Bonifácio foi buscar do chegado ao conhecimento deste juízo, de achar-
proteção, trouxe o escravo e entregou ao Major José Pereira, -se pronunciado na Fazenda Barreiras, Freguesia
para que depois de interrogatório feito por este, ficasse con- do Raso, desse termo, o liberto de nome Bonifácio,
escravo que foi do Major José Pereira do Nascimen-
firmado a autoria do crime. to, cujo liberto se acha pronunciado por este juízo
Na sequência dos fatos, o que deixou a entender as en- (sustentado a mesma pronúncia pelo Merítíssimo
Senhor Doutor Juiz de Direito desta comarca), no
treiinhas da documentação, foi que depois de Bonifácio ter as-
artigo 192 do Código Criminal, com referência ao ar-
sumido a autoria do disparo contra o feitor Manoel, ao invés tigo 34 do mesmo código, por ter no dia 13 de julho
de o Major José Pereira entregar o escravo à justiça, ele o re- de mil oitocentos e oitenta e seis, na Fazenda Cande-
al, do dito Major José Pereira do Nascimento, neste
conduziu para o Recôncavo Baiano, na tentativa de vende-lo. termo, disparado um tiro no feitor Manoel José do
Mas, não obtendo sucesso nessa tentativa de comercio, pois Nascimento, peio que em vista do exposto, dependo
já se corria a notícia na região do Recôncavo que o referido o seguinte de Vossa Senhoria, que sendo este meu
precatório apresentado, sido por rnim assinado, se
escravo tinha tentado contra a vida de um feitor, o Major teve sirva na forma da lei expedir suas ordens para que
que retornar o escravo para a Vila de Inhambupe, deixando- seja capturado o indivíduo de nome Bonifácio, de
que acima faço menção, e remetido para as cadeias
-o no Engenho Frade, propriedade do Coronel Maurício José
76
José de Brito, para o Juiz da Vila de Inhambupe, datado de Dessa forma, podemos concluir que mesmo o feitor
24/03/1889, dava a informação que na noite do dia 19/03/1889,: não desencadeando um problema pessoal com o escravo a
o réu Bonifácio tinha conseguido arrombar uma das paredes l ponto de o persegui-lo, as determinações conferidas pelo seu
da cadeia e fugido. cargo de feitor por si só já traria aos cativos uma gratuita re-
Casos como esse do escravo Bonifácio aconteciam com :- jeição, acrescentando que, em muitas situações, o feitor era
muita frequência no mundo da escravidão no Brasil, quando > obrigado pelo senhor a fazer uso da violência.
em determinadas situações, escravos chegando ao limite da ';
tolerância, reagiam com violência contra senhores e feitores. ' REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Era uma forma extrema de expressar sua indignação e resis- ;
ANDRADE, Maria José de Souza. A mão de obra escrava
tência a um regime que não estava mais suportando. Foi o < em Salvador, 1811 -1860. São Paulo: Corrupio; Brasília, DF:
caso do escravo Bonifácio, pois mesmo o processo-crime não ; CNPq, 1988.
esclarecendo os motivos que levaram o escravo a cometer tal -í
ato, é difícil acreditar que ele atirou no feitor de forma gratui- • CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Agricultura, escravidão
ta e sem motivação alguma, por um simples ato de crueldade. : e capitalismo. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1979.
Certamente esse escravo estava sofrendo algum tipo de cons-
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade:
trangimento ou perseguição por parte do feitor Manoel José
histórias de escravos e libertos na Bahia (1870 -1910).
do Nascimento, algo que poderia estar agredindo sua moral;
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006.
ou autonomia para que ele reagisse de maneira violenta. Por
outro lado, a imagem do feitor, em função do oficio que de- í
sempenhava, provocava aos escravos uma natural rejeição.
MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e escravidão: trabalha, luta e resistência
nas lavouras paulistas (1830 - 1S88). 2 j edição. São Paulo: Editora da Universidade
66 Ibidem, Folhas 46 - 48. de São Paulo, 2014, p. 71 - 72.
GONÇALVES, C r j K Í e i a Rodivi.es. As secas rui Bahia do VVISSÍÃNBACH, Maria Cristina Corte/.. Sonhos africanos,
século XIX: sociedade e política. (Dissertação de Mestrado). vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo, (1850 -
Salvador, Bahia: UFBA, 2000. 1880). São Paulo: Editora Hucitec Ltda, 1998.
82
A questão do controle social direcionado para as classes mais i f-iltanrio munições e armamento^, sem contar os desfalques
pobres não foi uma invenção do século XIX, embora tenha * com deserções e prisões por participação em conflitos. Para
se aperfeiçoado com as tecnologias e formas disciplinares de- a s freguesias mais afastadas do centro, como Afogados, Vár-
72. FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fonies,
2008; PECHMAN, Robert M. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urba- 74. Fala do Presidente da Província Frederico de Almeida e Albuquerque. 01 de abril de
1870, p. 03. http://brazil.cri.edu/bsd/bsd/685/000003.html. Acessado em 04 de junho
nista. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.
de 2017.
73. SILVA, Wellington Barbosa. Entre a liturgia e o salário; a formação dos aparatos
75. Relatório Provincial de 1870. p. 03.
policiais no Recife do século XIX (1830-1850). 1. ed. Jundiaí - SP: Paço Editorial, 2014.
pó de Polícia,, alegou que os vencimentos de 1$100 réis diários nela falta ^ e educação moral e intelectual das pessoas, uni
pagos aos praças era muito pouco para os serviços prestados ' fator bastante expressivo no século XIX. Segundo o recense-
pela instituição, sugerindo que houvesse economia em ai--, amento de 1372 as freguesias centrais da cidade do Recife,
guns pontos do tesouro provincial para que se realizasse um somando as freguesias de Nossa Senhora da Graça e Afoga-
aumento nos soldos das praças para 1$500 reis diários.76 dos possuíam em torno de 48.680 pessoas analfabetas, numa
Nos relatórios provinciais podemos perceber que a população que ao todo chegava a 80.162 habitantes, ou seja,
preocupação com a criminalidade e os conflitos, que atingia • mais de 50% da população central do Recife.79 Ainda no mes-
as diversas camadas sociais, era evidente entre os grupos po- mo relatório, o presidente se mostrou preocupado com o Cor-
líticos. Contudo, temos que levar em consideração que um ; no de Polícia, afirmando que os homens que compunham a
relatório policial está longe de ser um documento neutro e se ' instituição não conseguiam cumprir seu trabalho com o devi-
faz necessário atenção aos meandros e armadilhas de se inter- : do louvor, chegando a conclusão de que "a prevenção dos de-
pretar os dados como verdades imaculadas, mas não pode- * litos, missão especial da polícia, é quase nula, e a perseguição
mós esbarrar completamente no descrédito sobre esse tipo de l dos criminosos faz-se de modo pouco eficaz".80 Mas não foi
documento. Os dados nos servem como fonte de percepção í apenas nas décadas finais do Império que o corpo de polícia
de uma realidade, nos aparecem como sinais, mesmo que dis-. passou a ser criticado pelas autoridades provinciais. Desde
torcidos ou desfocados, mas que ainda assim nos permitem a sua formação a instituição é alvo de críticas tanto dos grupos
aproximação de fatos, homens, mulheres e instituições.77 políticos, quanto das classes trabalhadoras, devido entre ou-
Na fala de abertura da Assembleia em 1871 o presi- í tros fatores, aos excessos praticados nas abordagens, na falta
dente da província Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque de ação em locais públicos e nas arruaças em que as praças da
destila sua visão de classe letrada e política sobre as classes instituição se envolveram. Entretanto, no relatório provincial
trabalhadores, afirmando que que "os crimes de homicídio, de 1871 uma ressalva importante é feita, levando em conside-
ainda frequentes entre as classes ignorantes (...) demonstra ração os parcos soldos e os riscos que são submetidos aqueles
o quanto entre elas ainda predominam as paixões sem o cor- í que aceitavam essa ocupação.
retivo da educação moral e cultura intelectual".78 Cavalcanti
O serviço policial não é feito com toda a regularida-
e Albuquerque ainda ressaltou que os crimes eram causados ; de e eficácia que fora para desejar. Nem há que estra-
nhar que assim seja, quando há apenas que admirar
que ainda se faça mesmo incompletamente este ser-
76. Fala do Presidente da Província Frederico de Almeida e Albuquerque. 01 de abril de •;
1870, p. 09. http://brazil.cTl.edu/bsd/bsd/685/000009.htmI, Acessado em 04 de junho : viço, que além de gratuito é certamente um dos mais
de 2017.
77. GINZBURG, Cario. "Sinais: raízes de um paradigma indiciário". In: Mitos, emble- .
mas, sinais: Morfologia e História. 1a reimpressão. São Paulo: Companhia das Le- 79. Recenseamento de 1872. Pernambuco, https://archive.org/detaiIs/recenseamento-
tras, 1990. 1872pe, Acessado em 04 de junho de 2017.
78. Fala do Presidente da Província Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque. 1a de ma' 80. Fala do Presidente da Província Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque, l 5 de mar-
ço de 1871, p. 05. http://brazil.crI.edu/bsd/l3sd/686/000005.html. Acessado em 04 de '• ço de 1871, p. 08 http://brazil.CTl.edu/bsd/bsd/686/000018.html. Acessado em 04 de
junho de 2017. junho de 2017,
ivial f com contingente reduzido não seria capaz de prover
e relações particulares. 81 todo o serviço necessário. Fm 1872, João José de Oliveira Jun-
eira, presidente da Província afirmou que
O trabalho policial era de curta duração, além de não ser
Era, sem dúvida, conveniente que duas companhias,
uma carreira duradoura, era pouco promissora e os homens ou cerca de 200 praças estivessem sempre nesta ca-
que ingressavam no Corpo de Polícia procediam das classes piíal, já muito populosa, e onde encontram valiosos
interesses; mas não tem sido possível reunir mais de
trabalhadores, as mesmas que deveriam policiar. Ao se engaja-
100 praças, máximo que se obtém com esforço por
rem na instituição, o faziam por escolha, em busca de sustento poucos dias, e que imediatamente desce a metade,
e sobrevivência de si e suas famílias, diferente de muitos mem- ou ainda menos. Assim, não se pode fazer aqui re-
gularmente o serviço da polícia da cidade e nem dar
bros do Batalhão de Linha e da Guarda Nacional, onde havia (...) o número de patrulhas conveniente*4.
um sistema de recrutamento e uma boa parte era obrigada a
adentrar nessas instituições. Nas últimas décadas do século Mo contexto administrativo da instituição, depois da
XIX, quando se acentuava o curso do processo de transição do distribuição pelas cidades interioranas, de acordo com as
trabalho escravo para o trabalho livre e onde os postos e regi- necessidades "do serviço público", o contingente disponibi-
mes de trabalho se mostravam cada vez rnais instáveis, aden- lizado para o Recife era tido como insatisfatório. Para aquele
trar na polícia poderia ser uma forma mais ou menos sólida ano, o corpo de polícia dispunha de apenas 778 praças, dos
de sobrevivência.82 Para Reiner, "bem-vindos ou indesejáveis, quais 212 estavam em diligencias, 458 em destacamentos pe-
protetores, porcos ou párias, a polícia é um fator inevitável da las cidades da província e apenas 118 na capital, número bem
vida moderna"83 e a inserção da mesma no cotidiano do Recife abaixo dos 200, que segundo Oliveira Junqueira, seria o ideal
era um elemento indispensável para a cidade, mesmo quando para policiar a cidade.85 Essa situação obrigava as autoridades
a instituição não cumpria seu trabalho de forma satisfatória, na da província a recorrer a ajuda de outras instituições como
visão das elites dirigentes da província. a Guarda Nacional, além de outros aparatos paramiíitares,
E evidente que a preocupação dos presidentes de pro- como os Inspetores de Quarteirão que segundo Wellington
víncia com o policiamento da capital estava ligada a impor- Silva "compunham uma rede de policiamento que se estendia
tância política e económica da cidade, caracterizada como sobre toda a cidade".36
umas das principais do Império, onde um parco corpo po-
Roubo 17 4 31 31 17 14 114
92
87. Os números referentes ao ano de 1870 foram coletados em uma tabela estatísticas
Tentativa de Roubo 63 17 2 10 - -
de crimes de 1874, na fala que o Presidente Henrique Pereira de Lucena abriu as
GSnes Policiais; ' :.'' ' ' ' ' ': ': ' •'• , . --^ i sessões legislativas daquele ano http://brazil.crl.edutosd/bsd/689/000005.htmI. As
76 120 196 estatísticas referentes a 1871-1875 foram coletadas na fala do Comendador João Pe-
Ofensas a Moral Pública - - - -
„' dro Carvalho de Moraes abertura dos trabalhos legislativos de 1876. http://brazU.crl.
Ajuntamentos ilícitos 4 - - 15 - - 20 Ê_-.. edu/bsd/bsd/691/000009.html.
Uso de Armas defesas - 4 19 2 - - 23 .88. Fala do Presidente da Província João José de Oliveira Junqueira, l- de março de
;- 1872, p. 05.
90
r
91
vista a deficiência da força policial e as reclamações feitas porj í sideração que freguesia de São José possuía um considerável
diversas autoridades, foi criada outra estação na freguesia de -3 quantitativo de comerciantes de bebidas, era uma área de mo-
â
Afogados.105 Os números de praças eram estabelecidos pelai -'•.jadia habitada principalmente pelos mais pobres, e a freguesia
Assembleia provincial a cada dois anos e aumentados ou di-!"* onde se localizava o Mercado Público da cidade, o que explica
minuídos de acordo com a situação financeira da província, já \e mantero maior número de para
os praças praçaspoliciar
da Guarda Cívicaera
a capital na apresentado
localidade.
A falta de homens para o serviço pode ter possibilitado
como um ónus muito grande para os cofres provinciais. '-a ampliação das formas de inserção na instituição, deixando
Apesar de criada com um possível contingente estipu- -delado alguns requisitos básicos que eram exigidos nos regu-
lado em 120 praças, até julho de 1877 esse contingente se en-' lamentos, como a alfabetização dos candidatos, por exemplo.
contrava incompleto. O ofício do subdelegado do 2- distrito, ; Á urgência na composição dos efetivos causava apreensão
policial de São José afirmou que a Guarda Cívica estava sem para as autoridades policiais e dificultava a atuação de um
minalidade. Além desses conflitos, outro fator preocupante de 1887 na freguesia de São Frei Pedro Gonçalves, onde seis
estava relacionado ao fato de que a cortesia e a polidez, que praças compareceram na tentativa de ajudar/' 1 - são exemplos
deveriam ser características fundamentais, mas nem sempre dessas ações no qual as praças estavam envolvidas, buscando
estavam presentes nas abordagens dos praças, principalmen- o bem-estar da cidade e seus moradores.
te quando essas abordagens ocorriam com a população mais Entre os conflitos que movimentavam as ruas da ci-
pobre e escrava, as mais perseguidas peía atuação da força dade, principalmente à noite, as brigas e desentendimentos
policial no Império.109 eram comportamentos que, na maioria das vezes, eram apre-
Além de ajudar a conter a criminalidade ou, pelo me- sentadas como características das classes mais pobres, que
nos, deixá-la em níveis toleráveis, as praças deveriam prestar deveriam ser observadas de perto pelas instituições de con-
a população serviços de caráter social como socorrer pesso- trole social. Mas não era incomum que esses episódios fossem
as feridas e ajudar a conter incêndios, já que era função da iniciados ou tivessem participação de pessoas que pertenciam
instituição ajudar a reprimir possíveis danos ao bem-estar da ou circulavam pelas classes mais abastadas. Acreditamos que
população, como também se impor diante de casos que pode- o projeto civilizador no qual estava inserida a Guarda Cívica
riam ocasionar conflitos maiores, como interferir em brigas, buscava ser estendido a todas as pessoas da cidade, mesmo
apaziguando os ânimos dos mais exaltados. Casos documen- que o foco estivesse mais direcionado para as classes mais po-
tados como o incêndio na Rua do Comércio, ocorrido em 30 bres, justamente para promover maior segurança e circulação
de outubro de 1881, na freguesia de São Frei Pedro Gonçal- aos membros das classes mais abastadas.
ves, no prédio ns 05, ocupado pela Companhia Telegráfica;110 Contudo, a polidez dos costumes tinha que ser apre-
o socorro feito pelo comandante da estação da freguesia de sentada e preservada por todos, principalmente em lugares
Santo António a Leocádia Maria da Silva, tida como "mulher públicos como teatros e parques, ambientes prioritariamente
pública", após a mesma cair de uma sacada no 2° andar no frequentados pelas elites. Nesse ínterim, esses espaços tam-
Largo do Rosário, n- 44; o socorro a Josepha Maria Caetana de bém passaram a ser alvo do tipo de policiamento realizado
40 anos, que se jogou no Rio Capibaribe em tentativa de sui- pela Guarda Cívica. Duas ocorrências, ocasionadas num dos
cídio, em 10 de setembro de 1885, por alegar não ter meios de principais espaços de divertimento das elites provinciais, o
viver, sendo resgatada a tempo por um guarda da Alfândega Teatro de Santa Isabel, exemplificam essa tentativa de repre-
e conduzida a sua residência por uma praça da Guarda Cívi- ensão a práticas consideradas inadequadas, que estavam sen-
do impostas aos ambientes frequentados pelas classes mais
abastadas do Recife. i\'a noite de 16 de maio de 18'/7, no inter- tações da Guarda como locais de recolhimento de suspeitos,
valo do 4 9 para o 52 ato de um espetaculo, o alferes Evaristose a ; e aando que para isso, havia a Casa de Detenção. 115
recusou a atender um pedido de não fumar nas dependências Em outra edição, do dia 17 de março de 1877, o mesmo
do teatro, feito por uma praça da Guarda Cívica, aparente- jornal apresenta a seguinte epígrafe "Proezas da Guarda Cí-
mente "com toda educação e esmero". Diante da recusa, se vica", afirmando que "o que antigamente sucedia com a polí-
dirigiram para o teatro o comandante da freguesia de Santo cja, sucede hoje corn a guarda urbana: onde comparece esta, é
António e o comandante geral da Guarda, que não consegui, logo desembainhado refes, [...] de forma que em avistando se
ram convencer o alferes, dando voz de prisão ao homem.'" £ soldados de guarda cívica, já se pode esperar barulho". Du-
em 24 de agosto de 1877 um ofício pediu a fixação de urna ou rante uma procissão realizada no dia 16 de março, na fregue-
duas praças da instituição na saída do Teatro para impedir sia de Santo António, o comandante de distrito da freguesia
tumultos entre os espectadores, devido ao manuseio dos car- começou a tomar as bengalas dos homens, alegando que seria
ros.114 Esses exemplos citados explicitam um dos aspectos do para evitar conflitos e segundo o jornal, os prejudicados re-
trabalho da instituição, mostrando que a criminalidade não clamaram, mas não apresentaram resistência. Após o fim da
era o único foco, talvez nem fosse o principal. Direcionando procissão, as praças da Guarda da estação de Santo António,
seus esforços para casos semelhantes aos citados acima, que somadas as praças de São José se posicionaram ern frente a
causavam distúrbios no dia-a-dia e precisavam de uma ten- banda de música para impedir a aglomeração de crianças e
tativa de resolução rápida para impedir ações que pudessem demais pessoas, que revoltados começaram a vaiar as pra-
gerar danos maiores, a Guarda Cívica fazia o papel de media- ças. Em represália, os guardas desembainharam os sabres e
dora, impedindo o conflito e apresentando a sociedade novas começaram a atacar a população cegamente, ferindo diver-
formas de se portar no espaço público. sos. O jornal ainda afirmou que no dia seguinte ao ocorrido,
Entretanto, nem sempre as praças agiam com toda a "homens artistas e pacíficos" foram ao escritório da tipogra-
presteza necessária e os desleixos se tornavam recorrentes, o fia mostrar as marcas da selvagería da Guarda Cívica, que se
que ocasionou tensões para os chefes de polícia e os presi- retirou do local com escolta do 2a Batalhão de linha, após ser
dentes da província. Na edição de 22 de fevereiro de 1877, praticamente expulsa pelos populares com pedras e garrafas.
o jornal 'A Província' apresentou um relato intitulado "Não O jornal ainda afirmou que não era "a primeira vez que são
Deve Continuar", alegando que comandante geral da Guarda levados à pedradas os urbanos, caindo assim em uma desmo-
Cívica estava consentindo que mulheres recolhidas nas esta- ralização que os inibe de fazer o serviço que se destinam".116
ções fizessem a faxina dos locais, caso ocorrido na estação da Já nos primeiros anos de existência da instituição, ela se
freguesia de São José, reclamando ainda da utilização das es-
115.BN - Hemeroteca Digital. A Província, 22 de fevereiro de 1877. Acessado em 04 de
junho de 2017
113.APEJE, Fundo SSP, 1a Delegacia da Capital, Oficio de 17 de maio de 1877. 116.BN - Hemeroteca Digital. A Província, 17 de março de 1877. Acessado em 04 de
114.APEJE, Fundo SSP, l1 Delegacia da Capital, Ofício de 24 de agosto de 1877. junho de 2017.
102
lhantes não foram relatados apenas pela imprensa periódica" diminuir o cansaço, que segundo o deputado provincial Ratis
as autoridades policiais também presenciaram várias ações e Silva, era extenso devido a escalas irregulares que poderiam
irregularidades cometidas pelas praças. Em 1881, o delegado chegar a 18h de trabalho por dia."8 Mas além disso, esse sono
Joaquim Rubem decidiu fazer uma ronda pelo centro da cida- noturno nas horas que deveriam estar de ronda pode apresen-
de, na intenção de observar o trabalho policial e relatou que, tar uma tentativa de burlar a imposição de seus regulamentos,
unia forma de resistir à ordem imposta a esses homens, talvez
Tendo saído das duas para as três horas da madru-
gada de hoje, [22 de abril de 1881] saído a [MC] as di-
por acharem que não sofreriam nenhum tipo de punição por
ferentes freguesias desta cidade, sucedeu que procu- desobediência ou. descumprimento do regulamento. As tenta-
rando verificar se os guardas cívicos permaneciam tivas de diligencia foram levadas em consideração e o delega-
em seus respectivos postos, notei que da Rua Duque
de Caxias, não acudiu ao meu sinal de apilo, o da
do ainda solicitou ao chefe de polícia "que se [designasse] de
Rua do Cabugá estava deitado a dormir em uma tomar providencias" para que os guardas tomassem ciência e
das portas da matriz de Santo António, o do pátio competência de seus deveres".119
do Carmo conservara-se dentro da escada de um
sobrado, os do largo do mercado Assumpção [sicl A desobediência dos membros da instituição, tanto
não responderam ao meu chamado e presumo te- praças quanto dirigentes, mostram como os componentes
rem abandonado os seus pontos, o do pátio do terço
desse aparato driblava os ordenamentos impostos e mostra-
estava dentro de uma padaria, a qual estando fecha-
da abaixo uma das portas para dar saída ao mesmo va o quanto aqueles homens estavam longe de ter o compor-
guarda e isto depois de repetidos apitos, o guarda tamento necessário, diante do modelo imposto pelo regula-
que fazia sentinela na estação estava deitado sobre
mento da Guarda Cívica. Outro caso, sobre a desobediência
um banco e também dormia.'1"
do Comandante Geral da Cívica em relação à ordem do De-
Os eventos apresentados acima deixam a mostra um > legado Adoípho Siqueira Castro, ocorrido em setembro de
pouco do cotidiano das forças policiais do Recife, e talvez seja 1877, é um dos principais exemplos que encontramos, onde o
um exemplo do que ocorria em várias cidades do Império. Nes- Delegado pediu ao chefe de polícia que informasse ao coman-
se projeto institucional imposto para o Recife, as praças que dante "que lhe [cabia] somente comandar a guarda, e não,
deveriam trabalhar para a manutenção do bem-estar público, como parece pretender, tomar conta as autoridades policiais
maculavam o comportamento indicado para homens que usa-
vam uma farda representando as elites provinciais e seus ide- |
118.Fala do Deputado Ratis e Silva. Anais da Assembleia Provincial, 1877. p. 200.
117. APEJE. Fundo SSP, }s Delegacia da Capital, Ofício de 22 cie afori! de 1881. 119-APF'JFi, Fundo SSP, l1 Delegacia da Capital, Ofício de 22 de abril de 1881.
!04 -.05
dos agentes que empregam ao serviço de polícia". 12r Welljn... aUumas prisões no loail, contudo havia uma "Guarda
gton Silva argumenta que ocorriam desavenças desse tin0 ,j0 Mercado", composta cm torno de oito homens armados c
entre o Corpo de Polícia e subdelegados, fazendo com qu e encarregados da segurança do local, alegando que a polícia
as autoridades civis apresentassem várias reivindicações ao não possuía ingerência espontânea naquele espaço.::-
Chefe de Polícia/- 1 No mesmo ano, em 12 de setembro o mesmo Delega-
Entre os vários espaços públicos que requeriam aten- do alegou que "são repetidamente levantados distúrbios e até
ção das autoridades, o Mercado de São José, tinha destaque praticados crimes" nas dependências do Mercado e que pra-
especial. Era o principal centro de comércio da localidade ç ças da Guarda Cívica ficavam de prontidão na porta, mas só
um dos principais símbolos de modernização ostentado pelos adentram quando são solicitadas, devido a permanência dos
governantes da província, tornando-se um alvo muito espe- "Guardas do Mercado" que alegaram serem suficientes para
cial para o policiamento, além de ter sido estruturado com o policiamento interno do estabelecimento.124 O Mercado era
uma arquitetura inovadora, pelo menos em relação aos ou- um espaço de circulação de mercadorias e pessoas, com fluxo
tros ambientes da cidade. Para Clarissa Maia, o Mercado era financeiro contínuo e alvo em potencial para roubos e furtos, o
uma experiência válida para as elites pernambucanas porque que poderia deixar os administradores e comerciantes insegu-
concentrava o comércio em um ambiente formalizado, higi- ros e com receio do policiamento que era realizado pelas ins-
énico e regulamentado, excluindo os outros mercados insa- tituições do governo provincial, fazendo com que os mesmos
lubres, com barracas ao ar livre e sem o mínimo de higiene desenvolvessem o interesse de criar uma guarda particular
proposta, mas não significa que o ambiente estivesse livre de para contenção de crimes e distúrbios. A existência de apa-
problemas, principalmente em relação a criminalidade.1- ratos policiais particulares, mantidos pela administração do
Em 20 de março de 1879 um ofício escrito pelo Delega- Mercado e sob interesse dos comerciantes do estabelecimento,
do Cândido J. de Lisboa e enviado ao Chefe de Polícia, alegou demonstrava tanto a insatisfação daquelas pessoas em relação
que no "Mercado e em suas adjacências circulavam abundan- ao policiamento realizado pela Guarda Cívica e pelo Corpo de
temente larápios e indivíduos afeitos a distúrbios e crimes", Polícia, quanto o desejo de terem o poder coercitivo em suas
alegando também que desde a época em que era subdele- mãos, já que não acreditavam na força pública do Estado.
gado de São José, mandava uma patrulha a mais para aquela A Freguesia de São José era palco de vários conflitos,
região, entretanto, indicava que só adentrassem no Mercado o que explica o porquê de inicialmente serem deslocados
se fossem solicitados. Segundo ele, a Guarda Cívica já efe- mais homens da instituição para essa região da cidade, como
vimo anteriormente. Outro exemplo ocorreu em 05 de agosto
de 1880, por volta das 15h, quando carregadores de água se
120.APEJE, Fundo SSP, l- Delegaria da Capital, Ofício de 05 de dezembro de 1877.
121.SILVA. Op. cif., pp. 181-182.
122.MAIA, Clarissa Nunes. Policiados: controle e disciplina das classes populares no
123 APEJE, Fundo SSP, r Delegacia da Capital, Oficio de 20 de março de 1879.
Recife. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Pernambuco, Reci-
fe, 2001, p. 48. 124 APEJE, Fundo SSP, 1 k 'Delegacia da Capital, Ofício de 12 de setembro de Iá79.
enfileiram no chafariz da Penha para encher seus baldes. Ern He l.inh::. r " Na freguesia de Santo António, unia daí áreas
um dado momento, João Joaquim Paes de Lima, também car- centrai? ca cidade e por isso mesmo uma das regiões mais
regador de água e o último a chegar, decidiu ser o primeiro bem policiadas devido aos de espaços de divertimento e pré-
a encher seus baldes e se pôs na frente dos outros, gerando dios públicos que existiam, não estava livre dos conflitos e
tumulto. Paes de Lirna não se intimidou e tentou agredir os crimes mesmo os de natureza pequena. Contudo, a Guarda
outros carregadores, e o conflito só foi resolvido com a chegada Cívica produziu exemplos de combate à criminalidade, como
de duas praças da Guarda Cívica, que renderam o "arruaceiro" os casos ocorridos, o primeiro no dia 05 de abril de 1887, por
e o levaram para a 3a estação da instituição, onde foi recolhido volta de 13h, em que o praça de ne 20 da Guarda prendeu na
no dia seguinte pelo subdelegado do distrito.1-5 Outro conflito Travessa da rua da Praia, o indivíduo Florêncio José dos San-
também sem grandes proporções, mas que elucida a preocupa- tos, perseguido pelo clamor da população por ter furtado do
ção das autoridades em relação a freguesia de São José ocorreu almocreve José Bento do Nascimento, uma sacola contendo
com os indivíduos conhecidos por Beraldo, Piloto, Feijoada e o dinheiro de suas vendas. Por ter sido pego em flagrante,
Manuel do Nascimento Cruz, que não tinha apelidos, ambos foi enviado a Casa de Detenção e o dinheiro devolvido ao
iniciaram uma briga entre si, no pátio do Mercado, bem em dono. E no mesmo dia, por volta das 9h da manhã, no Cais
frente a uma das bandas de música que tocava na novena da do Ramos, praças da Guarda Cívica conseguiram prender
Penha, causando ferimentos leves entre ambos.126 João Francisco de Carvalho por ter ferido com um coco João
Contudo, apesar dos casos apresentados, a desobedi- Francisco dos Santos, mestre da barcaça Rosinha. O acusado
ência não pode ser apresentada como a única característica também foi enviado a Casa de Detenção e a vítima vistoriada
da Guarda, já que em vários momentos, durante os anos de por médicos que alegaram que o ferimento era leve.135 Esses
atuacão da instituição, entre 1876 e 1890, as praças realiza- conflitos, mesmo não sendo de grande proporção, mas pode-
ram suas funções da forma correta e esperada pelas autori- riam ocasionar ferimentos graves e até mortes, que ocorriam
dades, mantendo certo efeito de eficácia, que ao menos foi plenamente à luz do dia, além de mostrar que não havia hora
suficiente para sustentar a instituição atuando por mais de certa para os distúrbios começarem, o que obrigavas as pra-
uma década. Exemplos como os ocorridos em 12 de outubro ças a estarem sempre alertas, apresentava exemplos de uma
de 1878, quando as praças Venerando José de Melo e Manoel polícia eficaz para a cidade.
Gomes de Souza, tiveram suas condutas elogiadas pelo Dele-
gado Sigismundo António Gonçalves ao efetuarem a prisão REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
de Aurélio José Gerônimo, indiciado por causar um grave fe-
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias
rimento que levou a morte de um soldado do IO2 Batalhão na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
125. APEJE, Fundo SSP, l' Delegacia da Capital, Ofício de 10 de março de 1880. 127 APEJK, Fundo SSP, \ Delegacia da Capital, Ofício de 12 de outubro de 1878.
126.APEJE, Fundo SSP, 1J Delegacia da Capital, Ofício de 20 de agosto de 1886. ; ;. 128.APEJE, Fundo SSP, l- Delegacia da Capital, Ofício de 6 de abril de 1887.
108 1(9
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MAIA, Clarissa Nunes. Policiados: controle e disciplina das
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Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001.
129.Doutor em História Social pela UFRJ. Pós-Doutor pelo Centre de Recherche d'Hisíoire
du XÍXe Sièck (Université Paris l - Panthéon Sorbcnne). Professor do Instituto de His-
tória da Universidade Federal de Uberlândia.
130.LABROUSSE, Ernest. La Crise de 1'économie française ã !a fin de J'ancien regime
et au début de Ia Révolurion. Paris: PUF, 1943.
112
plificando bastante a condução deste trabalho, uma relação íjern°s Llue I°nge de se preocuparem apenas com as questões
encontrada com certa frequência é a seguinte: em momentos do mundo do trabalho., o cerne da discussão se desloca para
de tranquilidade económica percebe-se o aumento de crimes os grandes processos sociais, tal como o processo cwilizador,
contra a ordem (sobretudo embriaguez). Já em períodos de desenvolvido por Norbert Elias. Eles se perguntam também
crise, observa-se o aumento de crimes contra a propriedade como o desenvolvimento do capitalismo e da chamada mo-
podendo ou não ter conotações políticas. dernização afetou tanto os comportamentos pessoais quanto
Já em um segundo modelo observa-se uma análise da a legislação, a ação da justiça e o controle social. É sobre este
criminalidade correlata a explicação das condições dos traba- último modelo que trataremos neste texto.
lhadores. Nesse tipo de pesquisa, a criminalidade subalterna Há quase 40 anos atrás, em um artigo que se tornou
é explicada em um quadro cultural no qual a açào dos popu- um clássico entre os historiadores do crime, Ted Robert Gurr
lares é justificada como uma forma de resistência ao avanço examinou a evidência empírica das tendências seculares da
de práticas capitalistas e à disciplinarização do trabalho. Uma violência criminal letal. O cerne da pesquisa foi a revisão de
grande inspiração a este tipo de interpretação veio da obra uma série de estudos históricos sobre homicídio na Inglater-
de E. P. Thompson131. Outros historiadores demonstraram ra medieval e moderna, cada um baseado em análises deta-
também que no século XIX houve uma grande expansão da lhadas dos casos para períodos e jurisdições específicas que
chamada classe média letrada que passou a se escandalizar forneceram dados fundamentais para a estimativa das taxas
com certas formas de agir dos grupos subalternos, classifi- criminais. Gurr traçou, em um gráfico, algo em torno de 20
cando-as corno atos criminosos e passando a enxergar esses estimativas para o período que ia do ano 1200 até 1800. Ele
grupos como "classes perigosas"132. verificou, para o caso londrino, que o gráfico começava com
Por fim, temos também abordagens preocupadas em uma taxa de 20 homicídios por 100.000 pessoas na alta idade
compreender a violência na longa duração. São interpretações média e terminava, após uma vertiginosa queda, com cerca
que procuram relacionar a criminalidade com determinadas de l homicídio por 100.000 habitantes no século XX. Gurr in-
fases do desenvolvimento de uma dada sociedade, fazendo terpretou então essa tendência secular como uma forma de
uso de métodos estatísticos e quantitativos, sem deixar de manifestação de mudança cultural na sociedade ocidental,
lado, é claro, a análise qualitativa. Nesses trabalhos133, perce-
Rcview of the Evidence". TONRY, Michael & NORVAL, Morris. Crime and Justice,
131.THOMPSON, E- P. Senhores e Caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1987 e THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. São Paulo: Cia. das
Letras, 1998.
l vol. 3, University Chicago Press, 1981; SPIERENBURG, Pieter. A History of murder
personal violence in Europe from the middle ages to the present. London: Polity
Press, 2008; FLETCHER, Jonathan. Violence and Civilization: an introductíon to
132,Ver, dentre outros: CHAVALIER, Louis. Classes laborieuses et classes dangere- the work of Norbert Elias. London: Polity Press, 2005; SPIERENBURG, Pieter &
uses. Paris: Ed. Perrin, 2007; WEINER, Martin J. Men of Blood: violence, manli- MUCCHIELLJ, Laurent. Histoire de !'homicide en Europe: de Ia fin du Moyen
ness and criminal justice in victorian Erigland. Cambridge: Cambridge Umversiry Age ã nous jours. Paris: La Découvert, 2009 e BODY-GENDROT, Sophie (org.) Vi-
Press, 2006; WOOD, J. Cárter. Violence and crime in nineteenth-century England: olence in Europe: histórica! and contemporary perspectives. London: Springer,
the shadow of our refinement. London: Roulledge, 2004. 2009 e SPIERENBURG, Pieter- "Faces of Violence: Homicide Trends and Cultural
133. Ver em especial: GURR, Ted Robert. "Historical Trends in Violent Crime: A Critica Meanings. Amsterdam 1431-1816"-Journal of Social History, 1994.
caracterizada por u m a u m e n t o de sensibilização acerca Ha
violência e o desenvolvimento do aumento do controle i n t er l redução na taxa de homicídios, ao longo dos último?
urna
no e externo sobre o comportamento agressivo 134 . OÍtO StH
loa, da razão de aproximadamente v i n t e para um
Desde então uma quantidade expressiva de pesquisas-í po, r lOU.000habitantes'-"' 1 .
em história do crime e da justiça criminal foi realizada, o que ( p nesse sentido, o trabalho de Norbert Illias fornece
aumentou significativamente nosso conhecimento acerca das ^ talvez o mais proeminente quadro teórico discutido pelos
manifestações históricas da violência letal131. Esses ustudos -: historiadores do crime que estão interessados em explicar a
mostraram que a história da violência deve estar bem firma- i tendência da violência na longa duração. Elias é bem conhe-
da no contexto de uma história social e cultural e na análise cido entre os historiadores pelo seu modelo do processo civi-
das instituições centrais da sociedade moderna na longa du- Hzador, modelo este que aborda a dinâmica social em longa
ração. Com base nisso, a maioria dos historiadores do crime duração e numa perspectiva macro, bem como analisa as rela-
passaram a aceitar a noção do declínio, ao longo dos séculos, ções entre as mudanças ocorridas nas estruturas da sociedade
da violência letal na Europa ocidental e do norte, baseados na e as mudanças psicológicas ocorridas ao longo do tempo e
reconstituição das taxas históricas de criminalidade, sobretu- l sua materialização em modos de comportamento. Em resu-
do de países como Inglaterra, Holanda, França e Suécia; de- mo, essa teoria sustenta que durante um período de vários
clínio este que se acentua nos séculos XVTII e XIX e cuja linha > séculos o tipo de personalidade, primeiro da elite e depois
desenhada só retoma um curso ascendente após a Segunda , dos setores médios, foi marcada pelo aumento do controle
Guerra Mundial. As evidências apontam então uma queda da em público, pela diminuição da impulsividade e pela racio-
nalização da maneira de se viver. Em suma; um aumento dos
níveis de autocontrole. Altos níveis de autocontrole implica-
134.GURR, Ted Robert. "Historical Trends in Violent Crime: A Criticai Review of lhe
Evidercc." Op. cil. ram assim na gradual pacificação das interacões cotidianas,
135.Ver, por exemplo: SPIERENBURG, Pieter. L'homicide et Ia loi em RépuH.que de; que passaram a se caracterizar por baixos níveis de compor-
Pays-Bas du Nord: un pays pacifique ? In : SPIERENBURG, Pieter & MUCCHIEL-
LI, Laurent. Histoire de !'homicide en Europe : de Ia fin du Moyen Age à noas tamento violento.
jours. Paris : La Découvert, 2009; SHARPE, Jim. Histoire de Ia violence en Angle-
terre (XIHe - XXe siècles). In : SPIERENBURG, Pieter & MUCCHIELLI, Laurtni.
Alguns historiadores do crime, como Spierenburg,
Histoire de 1'homicide en Europe : de Ia fin du Moyen Age à nous jours. Paris La aceitam o amplo modelo teórico de Eiias discutido acima e o
Decouvert, 2009; LINDSTRÕM, Dag. Lês homicides em Scandinavie, analyse à long
terme. In : SPIERENBUKG, Pieter & MUCCHIELLI, Laurent. Histoire de 1'homi- utiliza para explicar o declínio da violência em países da Eu-
cide en Europe : de Ia fui du Moyen Age à nous jours. Paris : La Decouvert, 2009;
ropa e também para explicar as razões de altas taxas de homi-
ROUSSEAUX, Xavier; DAUVEN, Bernard; MUSIN, Ande. Civilisation de mteurs
et/ou diciplinarisation sociale ? Lês sociétés utbaines face à Ia violence ern Europe
(1300-1800). In: SPIERE.MBURG, Pieter & MUCCHIELLI, Laurent- Histoire de 1'ho-
micide en Europe: de Ia fin du Moyen Age à nous jours. Paris: La Decouveri, 2009; 136.VELLASCO, Ivan de Andrade; ANDRADE, Cristiana Viegas de; CASTRO, José
O'DO.\NELL, lan. The fali and rise of homicide in Ireland. In: BODY-GENDKOT. Flávio Moraes. Mapa da criminalidade: reconstrução de estatísticas criminais e gê-
Sophie & SPIERENBURG, Pieter. (org.) Violence in Europe: histórica! and contem- op r oc essa mento no Brasil Imperial - Minas Gerais. In: Actas dei XVII Congreso
porary perspectives. London: Springer, 2009. COCKBLTRN, J. S. Patterns of Violence Internacional de Ia Asociación de Historiadores latinoamericanistas Europeos
in English Society: Homicide in Kent 1560-1985- Past & Present, No. 130 (Feb . 199!), 1AHILA) Freie Universitàt Berlín, 9-13 de septiembre de 2014, p. 4218.
pp. 70-106.
Para Ma\, o EítaJ. 1 >eria dijtinido pela monopo-
futam tal modelo, acusando-o de insuficiente e generalizante lização da violência. O Estado -uria uma comunidade humana
Mas um grande número de pesquisadores, e eu rne incluo en- , ;ipá limites de um dc-iénnínadc território reivindica com sutvs^i?,
" ^ _ , . , . . „ . - .
tre eles, consideram a teoria do processo civilizador tal qual rrn beneficio próprio, o monopólio da riotencia física legítima. E o
desenvolvida por Elias como urn ponto de partida frutífero monopólio da violência que submete e. de certa forma, obriga
na tentativa de interpretar a tendência secular de queda da à obediência de todos ao poder público e são as instituições do
violência letal descoberta por Gurr e por outros pesquisado- Estado, fundamentadas de legitimidade pelo poder central, as
res. Entretanto, algumas perguntas fundamentais devem ser únicas a praticar a violência legítima. Não importa, para We-
feitas antes de continuarmos nosso trabalho: esse declínio da ber, as múltiplas finalidades do Estado: é o controle exclusivo
violência letal seria um fenómeno apenas europeu ou pode da violência que caracteriza sua formação original 141 .
ser generalizado para outros contextos? Se a resposta for po- Para Norbert Elias, seguindo alguns dos passos de Max
sitiva, quais regiões do planeta apresentaram esse declínio? E VVeber, a formação do Estado é uma lenta e contínua constru-
o caso brasileiro? Pode ser visto ou analisado dentro de uma ção do monopólio da violência por parte da autoridade cen-
perspectiva eliasiana! tral em um processo secular de retirada dos direitos da elite
à violência. Em sua obra "O Processo Civilizador"142, Elias
Elias e a centralização dos Estados Nacionais demonstra, para o caso francês, como a formação do Estado
moderno passou por um longo processo rumo à centralização
De acordo com Xavier Crettiez, seria no mínimo ingé- administrativa, fiscal, burocrática e militar, caracterizando-se,
nuo não ver no Estado um importante mecanismo de violên- por fim, pelo monopólio real frente aos senhores e nobres ri-
cia140. Se para os marxistas, em suas mais variadas vertentes, o vais. A supremacia daquele que viria a se tornar o soberano
Estado não passa de um instrumento de dominação da classe permitiu um grande acumulo de dinheiro através da impo-
burguesa que se utiliza de seu aparelho repressivo (forças mi- sição coercitiva do recolhimento de impostos, fato este que
litares, justiça, polícia, etc.) para proteger seus interesses polí- o tornava cada vez mais poderoso. Isso porque tal situação
ticos e económicos, outros autores enfatizam em suas análises lhe assegurava os recursos financeiros necessários para criar
a relação entre a formação do Estado Moderno e a monopoli- um exército permanente que o ajudou a submeter os nobres
zação da violência. e a garantir o monopólio da violência. Isso fez com que os
rivais do monarca percebessem ser mais vantajoso renunciar
137. Ver, nesse sentido, a excelente coletânea de artigos de Pieter Spierenburg intitulada. a possibilidade de violência em prol de uma rede de proteção
Violence ff Punishment: civili^ing lhe body through time. Cambridge: Políty Press, 2013
138.SCHUSTER, P. Der gelobte Fricden. Tãter, Opfer und Herrschaft im spatauttel.il-
terlichen Konstanz, Konstanz, Universitàtsverlag, 1995.
139.SCHWERHOFF, G., Criminalized violence and the civilizing process - a rt>apprai- Hl.Idem, p. 60.
sa!. Crime, History & Societies, 2002, 6, 2, p. 103-126. 142. ELIAS, Norbert. O Processo Civilizadon a formação do estado e civilização. Vol. 2.
140.CRETTIEZ, Xavk-r- As formas da violência. Edições Loyola: São Paulo, 2011, f> 5-í São Paulo: Zahar, 1994.
baseada na corto e na burocratizaçao da gestão administrati- Cofvi base nos pressuposto^ oliasinnos explicitados aci-
va e fiscal do Estado moderno em nascimento. ma; D ingiês James Sharp' 1 3 argumenta que não ha muita dú-
Ao mesmo tempo, ao longo deste processo de rnonopo. vida acerca do declínio dos homicídios e da violência de san-
Hzação da violência tanto nos planos internos {com a polida) • gue na Inglaterra, especificamente entre os séculos XIV e XX.
e externo (exército e a guerra), o Estado passa a criar urna Todavia, ele discorda da tese que afirma que através da dimi-
sensação de segurança que modifica a estrutura psicológica nuição dos crimes de sangue e uma maior repressão a estes,
de seus membros. Este processo, chamado por Elias de p$U houve um aumento então dos crimes contra a propriedade,
cogênese, assegurou primeiramente entre a elite e depois aos sobretudo a partir do final do século XVIII, com os processos
setores burgueses, o recuo de valores como bravura, coragem de urbanização e industrialização. Este processo é chamado
e honra como fundamentos da violência interpessoal em um por ele de "modernização". Sharpe argumenta ainda que a
processo que durou vários séculos. Neste sentido, o monopó- tese de Norbert Elias é muito melhor para explicar o processo
lio da violência por parte do Estado acabou também gerando de desenvolvimento da violência na Inglaterra do que a tese
mudanças nas formas de civilidade no Ocidente, evento este da ''modernização". De acordo com o historiador inglês, as
que acabou por transformar as relações entre os indivíduos: _! evidências analisadas apontam que não houve um aumento
gerou um grande aumento do autocontrole. linear dos crimes contra a propriedade no período indicado.
Enquanto o Estado (em um longo, demorado e não-!i- Mais importante que apenas esse processo de modernização,
near processo que variou de um país para o outro) construiu Sharpe indica que a questão deve ser analisada na relação en-
o monopólio da violência e impôs a diminuição da agressão tre comunidade e criminalidade.
entre súditos, houve também um aumento na chamada di- O processo de modernização (saída do campo, indus-
visão social do trabalho e o aparecimento de cadeias de in- trialização, formação de uma população majoritariamente
terdependência, gerando assim uma modificação nas pulsões urbana) da sociedade e do crime (mudança de um padrão de
violentas: o medo do outro passa lentamente a ser substituído alta taxas de violência de sangue e homicídios para um padrão
pelo medo de si mesmo; o afloramento de impulsos outrora criminal pautado sobretudo em crimes contra a propriedade e
públicos lentamente passam a ser ocultados pela vergonha e uma diminuição dramática dos crimes de sangue) envolve não
pelo medo do ridículo. Para Elias, um fenómeno de restrições apenas o indivíduo, a comunidade e o Estado, mas principal-
emocionais se instaura. Esse processo de autocontrole puísio- mente a relação entre ambos. Assim, para uma compreensão
nal é o centro daquilo que ele nomeia de "civilização progres- mais aprimorada da criminalidade no passado devemos levar
siva dos costumes". Diminuindo a aceitação de violência en- , também em consideração outros vários fenómenos tais como:
tre amplos setores da sociedade, as agressões letais rotineiras o nível de desenvolvimento económico e a complexidade da
se tornam cada vez mais raras e o homicídio residual consiste ,;
143.SHARPE. Jim. Histoíre de Ia violence en Angleierre (XHIe-XXe siècles). In : SPIE-
em casos escassos e marginais ligadas sobretudo ao submun- RENBURG, Pieter & MUCCHIELTJ, Laurent. Histoire de 1'homicide en Europe :
do criminoso e a irrupção de violências pontuais. de Ia fin du Moyen Age à nous jours. Paris : La Découvert, 2009.
120
estrutura sócia'; os valorei ligados às questões dt família, relj. 'Í legislação de uma enorme gama de crimes, além de atuar nos
giào, percepção do papel social da comunidade, a natureza do ^ tribunais disciplinando certos tipos de comportamento com o
aparato legal e o padrão das pessoas que o compõe. • jntuito do ordenamento e pacificação da sociedade. Por fim,
Conclusões semelhantes a estas foram encontradas ern é import arite explicar que para Líndstròm o conceito de pro-
vários contextos europeus por outros pesquisadores, corno ' cesso civilizador de Norbert Elias tem um papel central para
por exemplo, Dag Lindsrrõm 144 e Pieter Spierenburg145. Cla- compreensão da violência na Escandinávia.
ramente esses dois trabalhos mostram que o caso inglês não Para Lindstrõm, o elemento central na obra de Elias é
está isolado no contexto europeu. As taxas de homicídio nos que com seu auxílio percebemos que as variações na crimina-
séculos XV e XVI tanto em Amsterdã quanto em Estocolmo lidade não são justificadas apenas na constituição psicológica
são muito similares ao padrão encontrado para o caso inglês. das pessoas e na resposta mecânica à algum estimulo eco-
A grande mudança na curva do gráfico se dá no século XVIII, nómico. Seu modelo mostra todo um processo controle das
embora tenha começado a algumas centenas de anos antes. pulsÕes que começa na Idade Média e que leva à compreen-
Depois disso, em ambos os países, as taxas mantiveram um são de que a criminalidade está ligada tanto ao monopólio da
suave e constante declínio até o início do século XX, sendo violência por parte do estado quanto às redes de interdepen-
que nos últimos 30 anos a curva mudou novamente. dências construídas pelo e para o sujeito, desde antes de seu
Em seu ensaio Lindstrõm analisa tanto os crimes de nascimento, que acabam inculcando em sua psique as formas
sangue como os crimes contra a propriedade, tanto na Suécia consideradas normais e aceitáveis de comportamento.
quanto em seus vizinhos escandinavos, desde o século XV. Pieter Spierenburg também segue na linha dos críti-
Suas evidências parecem indicar algum aumento nos crimes cos ao modelo "de Ia violence au vol" e concorda com os dois
contra a propriedade após a segunda guerra mundial. O que autores acima analisados acerca da importância da teoria do
o leva, assim como Sharpe, a recusar a teoria da modernização processo civilizador de Norbert Elias para explicar as taxas
que busca, de certa forma, igualar o aumento dos crimes con- de homicídio de longa duração na Holanda a partir do século
tra a propriedade com o surgimento da sociedade burguesa. XV. Examinando os coroner's inquests entre os anos de 1667 e
Segundo ele, a centralização e modernização do Estado sueco 1816, Spierenburg mostra elementos importantes acerca do
teve um papel fundamental sobre o controle social e judiciai papel da mulher nos casos de homicídio, a motivação dos
da sociedade: o Estado atuou como agente de mudanças na assassinos e o tipo de relações sociais entre vítimas e réus.
Nesse trabalho ele também afirma a importância do modelo
eliasiano acerca dos processos civilizador e sua relação com a
144.LINDISTRÕM, Dag. Lês homicides en Scandinave, analyse 'a long terme. In : SPIE-
RENBURG, Pieter & MUCCHIELU, Laurent. Histoire de 1'homicide en Europe : queda de crimes violentos na Holanda.
de Ia fin du Moyen Age à nous jours. Paris : La Découvert, 2009.
Com base no que foi dito acima, percebemos que refle-
145.SPIERENBURG. Pieter. Uhomicidc et Ia !oí en Republique dês Pays-Bas du Nord :
un pays pacifique ? In : SPIERENBURG, Pieter & MUCCHIELLI, Laurent. Histoire xões de Elias têm sido amplamente aceitas por pesquisadores
de l'homicide en Europe : de Ia fin du Moyen Age à nous jours. Paris : La Décou-
vert, 2009. europeus para pensar o processo histórico da violência. To-
122
aplicar tal perspectiva para compreendermos o desenvolvi, 1'dade e da justiça no Brasil ainda estão por serem feitas. Até o
mento histórico da violência no Brasil? momento, e salvo engano, inexistem trabalhos que tenham se
As ideias de Norbert Elias sobre o processo civilizador nroposto a testar hipóteses eliasianas sobre alterações nas for-
e seu reverso tiveram pouca ressonância na historiografia bra- mas de violência numa perspectiva macro, de longa duração
sileira da violência até agora. Isso pelo fato de que certas pecu- re lacionando-as à crescente ampliação do controle estatal.
liaridades nas transições históricas do nosso país tornam difícil A única exceção neste quadro é a pesquisa de Ivan Vellasco
pensar a evolução da violência nos termos eliasianos. E para e Cristiana Andrade, que busca para o caso mineiro, correla-
adaptar as ferramentas conceituais de Elias certas precauções cionar os dados relativos à ampliação dos poderes de Estado
devem ser tomadas. Nesse sentido, devido ao alto grau da vio- com os dados fornecidos pelas estatísticas criminais, revelando
lência letal no Brasil ainda nos dias atuais, seria importante le- assim a forma pela qual esses processos estabelecem comple-
var em conta, ao meu ver, as ideias de Elias sobre o monopólio inentariedade146. Os autores definiram a região do que fora a
da violência, a pacificação da população, a interdependência comarca do Rio das Mortes como área central do projeto, vi-
social e a repressão aos impulsos de agressividade enquanto as sando o mapeamento dos arquivos históricos judiciais existen-
sociedades se "modernizam" ao longo do tempo. tes. Até o momento, eles trabalharam com os seguintes acervos:
vila de Queluz, contendo 2774 processos criminais com datas
Norbert Elias e a História da Violência no Brasil: uma limites entre 1792 e 1930; vila de São João del-Rei, contendo
História possível? 2294 processos criminais, rol dos culpados e livros de quere-
las com datas limites entre 1772 e 1900; vila de Oliveira num
Qual tipo de historia da violência seria a melhor para total de 1964 processos criminais com datas limites entre 1823
examinarmos a tese de Elias sobre o processo civilizador? Pri- e 1930; vila de Tamanduá, num total de 1134 processos crimi-
meiramente e sem sombra de dúvidas uma análise massiva nais com datas limites de 1829 a 1930 e a vila de Lavras, com
e quantitativa da evolução da violência na longa duração. A 969 processos criminais com datas entre 1839 e 1900. Tudo isso
partir daí, deveríamos nos concentrar não apenas na violên- perfazendo um total superior a nove mil registros entre finais
cia, mas no efeito dessa violência na sensibilidade e emoções do Setecentos e início do século XX147.
das pessoas. Em suma, compreender como os atos de vio- Vellasco e Andrade perceberam que quase 70% dos
lência no passado provocaram apatia, rejeição ou vergonha conflitos nessa região advinha de crimes resultantes de dis-
numa determinada população. putas entre conhecidos e familiares, envolvendo bebida, ciú-
Os estudos sobre criminalidade e atuação da justiça no
Brasil ainda não seguem esta perspectiva apontada acima. São I46.VELLASCO, Ivan de Andrade; ANDRADE, Cristiana Viegas de; CASTRO, José Flá-
vio Moraes. Mapa da criminalidade: reconstrução de estatísticas criminais e geopro-
raras as pesquisas realizadas com dados mais precisos e em cessamento no Brasil Imperial - Minas Gerais... op. cit., p. 4221.
maior quantidade e que permitam a composição de análises 147.1dem, p. 4222.
a centralização do Estado Brasileiro teve (ou não, peio ^SQ grande, mas busquei reduzir a escala de observação no
nos parece) na monopolização estatal da violência. A construi de perceber como a população de um importante mu-
cão de estados centralizados e a gradual monopolização H.' rácipio de Minas Gerais se utilizava do aparato jurídico para
violência pelos monarcas absolutistas são momentos crucia»' sua honra pública e se vingar de seus inimigos. Ou
para o entendimento de Elias sobre a sociogênese envol através de uma perspectiva de análise micro, examinei,
no processo civilizador. No Brasil este processo deve ser verti ijgptre outras coisas, o impacto que uma interação mais pró-
ficado no longo século XIX. E bom lembrarmos que apesar de ^«ma e mais eficaz da justiça em relação à população trouxe
uma tentativa de centralização ocorrida no Segundo Reinado «n termos de controle da violência verbal.
até o século XX os "coronéis" continuam dominando o poder • ;, Em um trabalho de fôlego, analisei inúmeros jornais e
.£1
local, sobretudo nas cidades mais afastadas do poder central jf •«rca de 300 processos criminais de calunia e injúria ocorridos
questionando a legitimidade do Estado e a monopolização da -na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, entre os anos de 1854
violência por este. Além disso, o século XIX é marcado por ré- s| 'g 1941154. Observei a evolução da legislação criminal brasileira
beliões em várias partes do território nacional ainda em *,mais especificamente, a evolução das leis referentes aos cri-
de centralização administrativa e burocrática. A questão é: o"*| jjies de calúnia e injúria. Reconstituí o perfil do tribunal local
Estado conseguiu o monopólio da violência (lembrando 'c de seus profissionais e verifiquei como se deu a tentativa de
este nunca é absoluto!) em relação às elites locais? Transfor-H '"Imposição da ordem por parte da justiça e o uso pragmático
mando os potentados locais em políticos o Estado conseguiu "l --í ida mesma pela população. Além disso, analisei os resultados
o monopólio da violência? Isso repercute de alguma forma na j; dos processos e sua possível relação com as doutrinas do di-
violência entre as classes baixas? A todas essas questões, as -j reito penal. Por último, fiz algumas considerações a respeito
respostas muito provavelmente serão negativas, mas carece- •dos motivos que levaram ao aumento do número de proces-
mos ainda de pesquisas que possam nos mostrar como se deu 'j sos no final do XIX e seu declínio no século XX, bem como
esse longo processo. percebi a inviabilidade de tratarmos o sistema judiciário do
ponto de vista puramente estruturalista, institucional ou
Insights eliasianos para a História da Violência no Brasil: as :4, como apenas um órgão de dominação de classe. E sobre este
ofensas verbais em um município da Zona da Mata mineira | último ponto que tratarei agora.
A partir da década de 1980, alguns pesquisadores bra-
Nesta parte do texto eu gostaria de trazer alguma con- ,j sileiros repensaram o papel da justiça nas relações sociais e
tribuição para o debate proposto. Parto de uma perspectiva na intermediação dos conflitos entre iguais. Se antes ela era
um pouco diferente daquela presente na pesquisa de Veilasco ,'; vista como um instrumento de dominação da elite no intuito
e Andrade, mas acredito que ela possa funcionar de forma j
i 154.CARNEIRO, Deivy Ferreira. Conflitos verbais em uma cidade em transformação:
complementar àquilo realizado pelos dois pesquisadores. ; justiça, cotidiano e os usos sociais da linguagem em Juiz de Fora (1854-1941)... op.
Não realizei uma análise pautada numa quantidade de dados | cit.
de impor ordem e disciplina para 35 classes subalternas, es T possuído:? pela eiice,
"^i
autores, com forte base documental advinda do aparato JUH- intervir no d o m í n i o estatal, t u n d o acesso então a única
ciário, mostraram que a justiça funcionou como um noder público que lhes era acessível -'.
público de mediação de conflitos que surgiam entre krn Juiz de Fora, principalmente entre as décadas de
que partilhavam um acordo sobre as normas sociais, de 1890, também observamos o funcionamento dessa
palmente para os homens pobres155. Emerge assim a imagem ^faceta da justiça. E nesse sentido que se observa nos processos
de uma atividade da justiça cotidianamente voltada para n -•Analisados a presença de negociantes, lavradores, trabalhado-
encaminhamento de pequenas contendas entre vizinhos, d» —s manuais, costureiras e lavadeiras não apenas comoobjetos
rixas que na maioria das vezes revelam a natureza da condi- da ação de controle social e imposição da ordem, mas como
ção daqueles que a reclamam. A justiça passa então a revestii- demandantes da lei e da ordem, com o intuito de obterem
-se de funções fortemente reguladoras nas interaçòes sociais direitos e garantias legais. Em suma, as camadas subalter-
apresentando um poder de contenção dos conflitos ínterpes- nas da localidade procuravam a justiça para solucionar seus
soais de diferentes estratos sociais em busca de solução para -{onflitos verbais, demandando assim, um espaço de ordem e
suas disputas156. • previsibilidade para viver e trabalhar. Havia assim uma con-
Desta maneira, mesmo a justiça assumindo uma fun-' fluência de interesses tanto da justiça quanto dos atores para
cão diretamente relacionada com as formas de dominação, ã construção da ordem. Isso teria assegurado as bases de legi-
de manutenção da ordem e do controle social, estas não se timação da lei e o acatamento dos preceitos reguladores das
assentaram exclusivamente nos recursos à violência e às for- relações sociais, na medida em que a atuação dos juizes, pro-
ças de repressão. O aparato judiciário parece ter efetivamente motores e advogados construíram as possibilidades de sua
construído um canal através do qual o Estado não só regulava implementação e avalizavam as expectativas sociais quanto
as disputas e os conflitos entre os grupos sociais (pelo menos à ordem legal,
até o advento da República Velha), bem como absorvia e res- Nos casos encontrados nos processos criminais de injú-
pondia às demandas dos grupos dominados, destituídos de rias e calúnias, levando o outro à justiça, a vítima demonstra-
va publicamente sua disposição de refrear o comportamento
153. L ARA, Silvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na capital do Rio de
do ofensor, respondendo às ofensas com um ato que os pro-
Janeiro (1750-1808). São Paulo: Paz e Terra, 1988; CASTRO, Hebe Maria de Mattos. jetava além e acima do rival perante os demais, e em restabe-
As cores do silêncio... op, cit.; ZENHA, Celeste. As Praticas da Justiça no CotidU-
no da Pobreza,., op. cit.; VELLASCO, Ivan de Andrade- As Seduções da Ordem . lecer a ordem quebrada e a honra atacada. O simples fato de
op. cit.
ser citado pela justiça em algum delito, como vimos anterior-
156. VELLASCO, Ivan de Andrade. As Seduções da Ordem .. op cit., p. 18-9. Resumida-
mente, o embate em torno da melhor forma de adequar as mudanças institucionais mente, já implicaria transtornos e custos, inclusive materiais,
atravessa os anos que se seguem à lei de 1827, quando se cria o juiz de paz. com
amplos poderes judiciais e policiais, que de urna forma ou de outra leva a ]usjica aos
capazes de dissuadir e refrear as ações futuras daqueles que
populares, passando pelo Código Criminal de 1830 e pelo Código Penal de 1832,
que completam as reformas liberais, seguindo até a reação conservadora, com «
a tos adicionais de 1840 e a reforma de 1841. 157 kiem., p. 22-5.
se viam e v i v i a m sob a esfera de açao e alcance dos - oc^A 2 - Tempo daí penas aplicadas nos crimes de calúnia e
Mesmo se levarmos em consideração que recorrer à justi
£•<_ -—
implicava custos e despesas, é certo que estes eram colocar! [ímpo d*- I^nas N úmero di 1 L' .is o s "o
para os réus, e, em caso de condenação, essas despesas seriam' ^í um mês ds prisão 5S 32 '^ '
nos casos de c a l ú n i a e injúria, era extremamente pragmática varn com os mecanismo? da disciplina e da ordem c não se
funcionamento satisfatório da mesma, pautada na sua rapidp. nforniavam a eia. Como o crime contra a honra era e ainda
de julgamento e no alto número de condenações resultou na i considerado privado, os envolvidos não eram obrigados ou
formação de um habitus entre a população local. Esse habitus gidos pela justiça de forma direta; eles negociavam com
consistiu na regulamentação da escolha de se procurar a me." " Ia AS práticas então se constituem na maneira pelas quais os
tiça por parte da população local quando um indivíduo fosse usuários se apropriam dos espaços organizados pelo Estado.
ofendido verbalmente em certas situações e de certas formas Essas práticas (engenhosidade dos fracos para tirar partido
Por outro lado, como mostra a Tabela 3, a baixa con- dos fortes163) desembocam na politização do cotidiano, como
denação a partir da década de 1890, levou as vítimas a dei- hustarnos demonstrar até aqui. Desta maneira, em relação
xar de procurar à justiça160 devido ao retorno social que não aos casos analisados temos o seguinte quadro:
era mais alcançado, gerando uma modificação no habitus an-
terior, ou melhor, gerando a criação de um novo. Portanto TABELA 3 - Resultado dos processos por década
quando uma interação social deixa de ser bem-sucedida, ou Resultado dos Processos de Caiúnia/In una
Década Total
seja, quando uma das partes ou ambas deixam de maximizar Anulado
Condenado Absolvido Arquivado Desistência
seus ganhos, os valores compartilhados serão modificados e
2 0 2 2 2 8
corrigidos na direção de uma maior consistência e integração USO
25% 0% 25% 25% 25% 100%
e outro padrão de escolha e comportamento será gerado su- 21 9 7 10 4 51
1860 7,8% 100%
41,2% 17,6% 13,7% 19,6%
cessivamente. Esses novos valores então serão institucionali- 31 23 5 11 3 75
1870 6,6% 100%
zados quando forem usados reciprocamente em transações, 41,4% 30,7% 6,6% 14,7%
13 9 20 6 o 53
ou seja, quando eles passarem a reger as escolhas161. 1880
24,5% 17% 37,7% 11,3% 9,4% 100%
Sendo assim, esta foi a forma de "consumo" da justiça 1890
1 10 19 9 3 42
2,4% 23,8% 45,2% 21,4% 7,1% 100%
encontrada pelos subalternos de Juiz de Fora, de acordo com 3 6 1 12
1 1
1900
a teoria de Michel De Certeau162, no que diz respeito a utili- 8,3% 8,3% 25% 50% 8,4% 100%
5 5 6 3 1 20
zação da justiça em certos crimes privados: os populares jo- 1910 100%
25% 25% 30% 15%
1 3 8 6 2 20
1920
5% 15% 40% 30% 10% 100%
160.Lembremos que, de acordo com Max VVeber, para que a ordem seja consentida é ne- 0 3 3 3 2 11
cessário que ela seja considerada legítima, seja por entrega sentimental, pela crença 1930
0% 27,2% 27,270 27,2% 18,1% 100%
em sua vigência absoluta, por motivos religiosos ou por interesses. WEBER, Max.
0 0 1 1 0 2
Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasiba: Ed. 1940
UNB, vol. l, 4a ed. 2000, p. 20-1. 0% 0% 50% 50% 0% 100%
161.BARTH, Fredrik. "Models of social organization E: Processes of integration in cul-
ture." In: Process and form in social life. London: Routledgc Kegan & Pau:, 1931, p.
51-2.
162.CERTEAU, Michel de. A Invenção do Coddiano: as artes de fazer. Vol. l: 8? edição. 163 A este respeito ver: SCOTT, James C. Weapons of the Weak: everyday forms of
Petrópolis: Ed. Vozes, 1994. peasant resistance. New Haven: Yale University Press, 1985.
e
r~~~~"*\]
Resultado ri jb FrocojEcs de Caíórir./Injúnr i edíação dos conflitos, contudo de maneira a obter algum
6 J
Condonado Absolvido Arquivada Desistência Anulado J o com essa situação. Enquanto a população esteve sa-
75 63 74 57 25
ísfeita com os resultados de suas relações com a justiça, en-
Tola! 2Q-1
100% 100% 100% 100% 1 00% 100%
•-Quanto maximizavam seus ganhos, a interação permaneceu.
-.
:.-:'r Neste sentido, o grande meio sedutor da justiça estava
Percebe-se através dos dados da tabela acima que0 -"«n assegurar certos e possíveis benefícios sobretudo para ca-
-síFr .
número de condenações foi relevante durante as décadas ímada mais carente da população. A justiça assim representava
de 1860, 1870 e 1880. Tais números podem ser considerados «campo possível de luta pela efetivação de direitos e isso ocor-
ainda maiores se levarmos ern conta os processos arquivados ria em função da capacidade do aparato judiciário tornar-se
ou aqueles em que houve desistências por parte dos autores. -acessível às camadas subalternas, o que por sua vez represen-
Sendo alto o número de difamadores condenados, aumenta- " tou uma pressão no sentido de fazê-lo operar em níveis razo-
va a legitimidade da justiça perante aqueles que a acionavarn, .'~àveís de atendimento à lógica jurídica. A atuação da justiça
gerando uma maior procura por ela em situações semelhan- "-levelou-se em vários momentos capaz de garantir um qua-
tes, criando entre a população subalterna um habitus próprio £dio estável de referências e previsibilidades nos quais muitos
através da adoção e institucionalização de novos valores em !ííe pautaram, gerando a maximização de ganhos - e urn certo
°f&
relação à justiça responsável pela aplicação da legislação refe- tíçquilíbrio de poderes, nos dizeres de Norbert Elias165 - espera-
rente às ofensas verbais. Ijja pelos subalternos em sua interação com ela. Cumpriu, entre
Na verdade, as pessoas envolvidas nos processos não í;as décadas de 1850 e início da década de 1890, a sua função
estavam se comportando como alienados ou como simples "/.pedagógica de convencer os homens de que as regras podem
cordeirinhos nas mãos da justiça e do Estado. As pessoas que ^jjer vantajosas e o arbitramento desejável166. Contudo, quando
acionavam a justiça por meio de processos criminais de calu- Vdeixou de condenar significativamente, a partir da década de
nia e injúria, na verdade subvertiam aquilo que lhes era im- ^1890, perdeu a legitimidade de mediar os conflitos, mudando a
posto, não rejeitando diretamente aquilo que era dado, mas .^configuração do habitus, fato este demonstrado na diminuição
utilizavam-se do aparato jurídico para fins e em função de ^da abertura de processos a partir de então,
referências estranhas a urn sistema do qual não podiam fu- v Além da diminuição das condenações, outro argumen-
gir164. Em outras palavras, a justiça foi utilizada claramente de ;jto que pode explicar o declínio das ofensas verbais mediadas
forma pragmática pela população subalterna de Juiz de Fora ípela justiça no período em que ocorreu é a preocupação da
enquanto ela respondia à suas expectativas. Agiam de acordo :\;ínesma, e até mesmo da população como um todo, com for-
com os interesses da justiça na medida em que a trazia para clnas de violências mais ameaçadoras do ponto de vista físico.
164.CKRTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. 17' edição. Perrópo- .:||p3I65-EUAS' Norbert. Introdução à Sociologia. Lisboa: edições 70, 2005, p. 90 e seguintes.
lis: Editora Vozes, 2014, p. 39. ., p. 305-
138
Assim, de forma paralela ao declínio da procura j c e impossível aplicar mecanicamente o modelo eliasiano
mediação judiciária nos casos de calúnia e injúria, observad- ara compreendermos a evolução histórica da violência no
um aumento da percepção de que o que deve ser punido é Brasil- ConstÍtuÍ-se assim uma lacuna na nossa historiografia
violência física e também a ameaça contra a propriedade priva, *análi se macro da violência ao longo dos últimos séculos. As
da. Seria resultado daquilo que o sociólogo Norbert Elias Chá- análises dos homicídios brasileiros são historicamente limita-
mou de "Processo Civilizador"? Para responder tal pergunta das sendo poucos os dados confiáveis anteriores a 1960. Não
não possuímos dados empíricos suficientes. O que sabemos é "oossuímos também, além dos trabalhos clássicos de Raymun-
que com a baixa condenação contra ofensas verbais a partir da AQ Faoro, Vítor Nunes Leal e as grandes sínteses produzidas
década de 1890, a justiça perdeu legitimidade. Somado a isto na primeira metade do século XX, obras de fôlego que ana-
com o passar do tempo o poder das palavras em manter a re- lisem o processo de monopolização da violência relativa à
putação das pessoas diminuiu devido a uma maior difusão dos construção do nosso Estado Nacional e nos fornecesse assim
relacionamentos comunitários. Anteriormente chamar uma um panorama minimamente confiável deste processo. Nesse
mulher de "puta" poderia diminuir suas chances de se casar . sentido, são fundamentais estudos que observem a estrutura
da mesma forma que chamar um homem de "ladrão" poderia 'dos homicídios nas cidades brasileiras ao longo das décadas e
diminuir suas chances de negociar e conseguir rendimentos (as r séculos para percebermos de que forma a construção do Esta-
próprias testemunhas vão mostrando que a reputação deixa de ndo nacional e suas instituições se relacionaram com o fenóme-
ser abalada com o uso desses termos com o passar do tempo, no do homicídio e da violência em geral, tanto em nível local
pois a honra teria fundamento também em outras questões). quanto em nível nacional. A pesquisa de Vellasco e Andrade
Com a fragmentação das comunidades no final do é apenas um oásis no desértico terreno das análises rnassivas
século XIX, esse peso decai e os insultos deixam de colocar e quantitativas acerca da violência no nosso país. E somente
barreiras nas relações sociais. Assim, o número de processos quando mais resultados forem apresentados e mais pesquisas
diminui devido à perda de poder da comunidade e da legi- nessa perspectiva forem realizadas por historiadores brasilei-
timidade da justiça enquanto órgão mediador. Contudo, a ros é que poderemos realmente testar efetivamente o modelo
abertura de processos não acaba totalmente, pois o tribunal eliasiano no cenário brasileiro.
continuou sendo, mesmo em menor escala, uma arena procu- Por fim, é necessário dizer que também são fundamen-
rada para causar problemas materiais e jurídicos aos ofenso- tais pesquisas que articulem os níveis macro e micro para ob-
res da honra alheia. servarmos de fato, como se dava a relação cotidiana entre a
população e a justiça criminal e verificarmos como as mudan-
Conclusões? ças no padrão da violência no Brasil se davam nas relações
1
interpessoais. Por este procedimento, uma revisão de certas
O objetivo deste texto foi, antes de tudo, uma provoca- afirmações e generalizações acerca do Estado Moderno tor-
ção. Dadas as condições de pesquisa e os resultados já obri- naram-se possíveis e fundamentais. O conceito de contexto
e in Kent 1560-19S5. Past & Present, N'o. 130 (Feb.,
adquire então uma centralidade importante, ainda que ^3»'
1991) pp. 70-106.
seja visto da mesma forma que a história social de recorte ma-
cro o trata. Na pesquisa micro-histórica o contexto é sempre rRETTIEZ, Xavier. As formas da violência. Edições Loyola:
multifacetado e o lugar de um jogo relacionai onde a ação dos gão Paulo, 2011.
sujeitos históricos efetivos é capaz de definir soluções e prf>
por encaminhamentos que apriorinão estariam dados. Neste F[Í<\S, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de
janeiro: Zahar, 1994.
sentido a narrativa histórica produzida nesta perspectiva não
seria apenas o relato do acontecido, mas também o relato das ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: a formação do
alternativas possíveis postas num jogo a ser decidido pelos estado e civilização. Vol. 2. São Paulo: Zahar, 1994.
atores históricos em questão. Sua retórica permaneceria as-
sim solidária às representações que imprimem sua marca nos FLETCHER, Jonathan. Violence and Civilization: an
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cie âe Mossoró e O Mossoroense170. O primeiro não perdurou
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Pobreza: um estudo sobre a pobreza, o trabalho e a riqueza Sr. 1907. Publicava notícias voltadas ao interesse dos comercian-
a través dos processos penais. Dissertação de Mestrado:
", tes da cidade, em sua maioria componentes da elite letrada. Já
Niterói. UFF, 1984.
O Mossoroense, periódico mais antigo do Rio Grande do Nor-
te, foi impresso pela primeira vez no ano de 1872, porém en-
cerrou sua produção em 1875 e só retomou em 1902. Ambos
. eram jornais destinados à elite letrada da cidade, que detinha
o poder do comércio local.
No intuito de compreender os crimes que ocorreram
• na cidade de Mossoró, nesse período, como também de anali-
sar a forma como estes dois jornais os noticiavam, este artigo
abarca os anos de 1902 a 1930, momento em que a cidade pas-
sava por intenso crescimento, chegando a quase 10 mil habi-
avanço. Segundo Paula Rejane Fernandes: ocorriam pela cidade com um bom ritmo de desenvolvimento
cara os mcldes da época. Ana Ottoni traz, em sua tese de dou-
Ao escrever sobre a cidade, o jornai criava uma iden-
toramento, uma visão sobre como os jornais do inicio do século
tidade para a mesma, definindo-a e estabelecendo
um convite para que os outros a vissem, a visitas- XX falavam sobre a criminalidade; como as notícias eram esco-
sem, a conhecessem e a reconhecessem. Sendo as- lhidas, entre inúmeros fatores, para serem publicadas.
sim, o jornal era uma forma de divulgar a cidade, de
delimitá-la e delineá-la para os seus, principalmente
Diante da criminalidade, que segundo os impressos
para os que compartilhavam das mesmas ideias de parecia amentar de forma descontrolada, a população citadi-
uso e consumo do espaço; e para os outros, fossem na ficava face a face com o medo, que se alastrava aos poucos
eles forasteiros advindos de outras plagas, sejam os
outros internos, isto é, habitantes da cidade conside- e afligia as pessoas que ali viviam. Por meio das notícias, a
rados como destoantes da norma.1"1 população era informada sobre os crimes ocorridos na cida-
de, sendo levada a pensar que qualquer um poderia ser a pró-
Se por urn lado o periódico noticiava o "progresso", ele xima vítima. Segundo Doriam Borges:
também registrava as transgressões, conforme se pode obser- O medo do crime tem sido vivenciado por muitos
var na nota impressa transcrita abaixo, a qual relata as ocor- grupos sociais em diferentes contextos. Diferentes
rências policiais do último mês do ano de 1902, sete no total. estímulos têm influenciado populações a mudarem
suas rotinas ou viverem aterrorizadas. Um desses
Em sua maioria, eram pequenas transgressões que ofendiam estímulos é a crença de que se é um alvo atrativo
a "moral" e os "bons costumes". para uma ocorrência criminal17*.
o grande perigo que o cinema trazia. Todavia, nas páginas xjorte, à época, Mossoró estava recebendo diversas pessoas
outras edições do mesmo ano, O Mossoroense parabenizou outras localidades, inclusive estrangeiros, que buscavam,
bicões cinematográficas que estavam ocorrendo na cidade alguma forma, lucrar com o comércio. Isso, é claro, cha-
quais deixaram a população maravilhada. pou muito a atenção de migrantes que fugiam da seca, can-
Como se pode ver, havia duas vertentes relacionadas ao eaceiros e bandoleiros. A cidade estava vulnerável.
D
cinema de um lado era a sétima arte que maravilhava as pés- No ano de 1903, há o primeiro registro de cangaceiros
soas, do outro era repudiado por exibir obras que possuíam nos jornais. A matéria relata que atacaram uma fazenda perto
conteúdo impróprio e que poderiam corromper as pessoas. da cidade, causando um tiroteio. Mais notas sobre o bandi-
Mas, afinal, de qual lado o jornal estava, da elite, qu e tismo só apareceram novamente no ano de 1912, quando um
inaugurava salas de cinema pela cidade, para trazerem entre- famoso cangaceiro chamado António Silvino, atacou o sertão
tenimento para os moradores da cidade, mas acima de tudo do Rio Grande do Norte.
lucrar com isto, ou da moral e dos bons costumes, que esta- Anos depois, em 1925, se tern o primeiro registro do
vam sendo diretamente aíetados por conta da escola do vício? temido cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.
Na verdade, podemos ver uma trama cheia de conflitos Isfacural do Pernambuco, ele andava com seu bando tirando o
que se constituem no cotidiano dos moradores da cidade. Em sossego do sertão nordestino. No estado da Paraíba, ceifaram
outras palavras, "a questão criminal se relaciona então com almas e a paz de pequenos vilarejos e cidades. No entanto,
a posição de poder e as necessidades de ordem de uma de- "notícias do Recife trazem-nos a morte do celebre cangaceiro
terminada classe social"186. Porém, os antigos costumes ainda Lampeão, em custodia no Estado de Pernambuco, sob a acção
residiam em muitas pessoas da época que se viam ofendidas da policia pernambucana"157.
por muitas práticas presentes nas obras cinematográficas. Por A notícia, que aparece no final da página do jornal O
isso, o jornal queria deixar bem claro que o cinema influencia- Mossoroense, diz que o cangaceiro estava morto, porém não
va sim nas práticas criminosas. contém detalhes que provassem o ocorrido. Teria parte da po-
Talvez sob essa influência, diversos outros crimes ain- pulação de Mossoró acreditado nessa nota? Não é possível ter
da tomaram conta das páginas do Jornal nos anos posteriores, certeza. O fato é que, no ano seguinte, houve grande pânico
alguns com maior visibilidade, outros com somente uma pe- com as notícias de que o bando se aproximava da cidade.
quena nota solta em alguma página, porém todos chamavam Em 1927, o banditismo tomou conta das páginas d'O
a atenção do público leitor que, ferozmente, lia aquelas notí- Mossoroense. Demasiada porção de notas sobre o bando de
cias chocantes. Lampião foram publicadas. E certo que o crime e a violência
Por ser a maior cidade do interior do Rio Grande do que acometem o espaço citadino podem ser notados nos re-
latos de jornais que acompanham o crescimento das grandes
186.MALAGUTI BATISTA, Vera. Criminologia e política criminal. Passagens: Revista
Internacional de História Política e Cultura Jurídica, v. l, p. 20-39 (julho/dezem-
bro, 2009). 187.0 Mossoroense, 16 de fevereiro de 1926, p.2.
158
Corresponde a este princípio, soberano na economia do a cometer vários tipos de crimes, até mesmo os de sangue.
social, de obter o maior rendimento com o menor de-
Com um crescimento populacional bastante significa-
sembolso. Não podemos, de certo deixar de louvar
as instituições que procuram corrigir o homem que tivo, nos primeiros anos do século XX, a cidade de Mossoró
roubou, inspirando lhe o amor do trabalho, livrart- teve o número de problemas sociais multiplicados. O crime
do-o da embriaguez e do alcoolismo, arranjando lhe
um albergue, mas devemos ter em conta que esse
cada vez mais tomava conta das páginas dos jornais, que nar-
homem já causou damno á sociedade, porque rou- raram os acontecimentos de modo a estereotipar os crimino-
bou, mentiu e não trabalhou; é pois impossível des- sos. Em consequência disso, a população foi lançada em um
truir os efeitos desse mal; fazem-se muitos esforços
e gasta se muita energia para entregar á sociedade profundo poço de medo, o que a fez recuar diante dos pro-
(e é muito difícil entregarlh'o completamente) um blemas da cidade.
homem que tem quasi terminada a carreira; sob o As matérias aqui analisadas permitiram entender como
ponto de vista moral ou ethico obtem-se de certa al-
guma vantagem mas sob o ponto de vista social qua- as transgressões eram noticiadas pelos jornais de Mossoró no
si nenhuma. Pelo contrario, quando se trata durna mício do século XX e quais os interesses da imprensa ao re-
criança que se habitua ao trabalho, a honradez e ao
velar aquilo que lhe convinha. Em síntese, notícias de crime e
horror á bebida, entrega se á sociedade um membro
que não só nenhum prejuízo lhe causará, si não que transgressões se apresentam como um "ataque" aos bons cos-
lhe poderá ser útil durante toda a sua vida. Obter-se tumes. Desse modo, é possível afirmar que os jornais foram
a este resultado com muito menos trabalho e despe-
responsáveis por ampliar o "caos", noticiando e passando a
za, pois é muito mais fácil desenraizar uma planta
débil que arrancar da terra uma arvore grande para imagem de uma cidade sem lei.
transplantai-a, as probabilidades de êxito são muito
maiores no primeiro caso. :35
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
dos secretos policiais dirigidos pelo capitão Orlando Motta" C0 niunicáveis, nos xadrezes da chefatura de polícia [...) A po-
Por isso, o advogado solicita que o julgador não se dfixe in- - ifcia, que está agindo em segredo, trata de tirar a limpo esse
fluenciar por aqueles que vivem "perseguindo pais de família edificante caso de prevaricação". Para o advogado, entretan-
que necessitam lutar para darem pães aos seus filhos", pés- to, não se trata de uma ou duas macas podres, mas de todo
soas que "não tem coragem para trabalharem honestamente, o sistema de produção de provas. Mais uma vez, seguindo a
vivendo na degradante espionagem"2"". Como é de costume tradição da justiça gaúcha, tais argumentos foram considera-
na Justiça gaúcha do período, as provas policiais foram consi- dos inválidos e o réu condenado. 2 " 1
deradas legítimas e o réu foi condenado. Fica bastante evidente, na exposição realizada acima,
Esse resultado não foi aceito pela defesa, levando o ad- que os agentes secretos eram detestáveis do ponto de vista
vogado a protocolar um recurso contra a decisão da primeira 1 da legalidade do direito, não gozando de boa reputação entre
instância. Nesse documento, novas considerações são feitas o advogado e seus clientes que ficavam sujeitos a suas ações.
sobre os agentes secretos. Segundo o advogado, joga-se dia e - Outro processo-crime, que será apresentado a partir de ago-
noite em Porto Alegre e ninguém é preso ou condenado, prin- ra, pode nos ajudar a completar essa caracterização. Ele foi
cipalmente se os jogadores possuem dinheiro. Ele se pergunta o resultado da maior ação realizada contra o jogo do bicho
se um dia as pessoas poderão escrever em um papel números pela polícia do Rio Grande do Sul, levando para o banco dos
e nomes de bichos sem ter medo de algum espião da polícia, réus João Serrão e mais dez pessoas presas em flagrante. O
pois "além de falsificarem depoimentos na polícia, os secre- Delegado Augusto Cézar de Medeiros, responsável pela ação,
tos prevaricam cada passo, soltando banqueiros ricos que lhe apresentou a "história policial desse audacioso banqueiro",
custam os focinhos com um pouco de dinheiro" e perseguem que teria chegado de Rio Grande à Porto Alegre sem ocupa-
pobres coitados, homens do povo como o réu Joaquim Mon- ção lícita, empregando-se "como criado em casa de tavola-
teiro de Albuquerque. Para provar sua afirmação, apresenta gem, passando em seguida a porteiro e logo depois a sócio".
duas denúncias dos jornais O Independente e Correio do Povo. Ele teria se conservado "nessa vida de aventuras" até tomar
Nessas matérias são mostradas provas de que "esses agentes conhecimento do jogo do bicho "e dos lucros fabulosos que
quando não praticam as prevaricações de que falamos, usam oferecia a sua especulação". Ele juntou tanta fortuna com o
da mais ilegal violência, abusando como já tivemos a ocasião - famigerado jogo que obteve notoriedade pública, além desse
200. Excertos retirados da peça de defesa. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do
Sul (APERGS). Processo-crime n u 2115, movido contra Joaquim Monteiro do Albu- 201,Excertos retirados da peça de apelação e dos jornais anexados a ela. APERGS. Pro-
querque. cesso Crime n1' 2115.
174
fato ser confirmado por diversos vendedores presos ern ou igação desse Capítulo. A estratégia da defesa foi tentar
trás ocasiões. Para conseguir surpreendê-lo em plena execu mostrar que os réus da Promotoria, todos eles, teriam sido
cão da atividade criminosa, o citado Delegado teve que atuar induzidos a testemunhar contra Serrão e seus companheiros.
em sigilo inclusive de muitos agentes policiais, pois esses não António Pereira Maciel, 35 anos, comerciante de renome na
raro precipitavam informações privilegiadas para Serrão. Q cidade, disse conhecer todas as testemunhas e que elas eram
flagrante delito foi realizado. Na ocasião foi recolhido um agentes secretos da polícia. O Promotor Público, quando teve
cofre para a Chefatura de Polícia. Depois de inúmeros sub- a palavra, perguntou como ele sabia que eles eram agentes
terfúgios usados por Serrão para adiar a sua abertura, ela foi secretos. "Respondeu que tem visto eles fazerem serviço de
realizada à revelia com auxílio de profissionais aptos para polícia, como prisões e intimidações". Octaviano Manuel
essa tarefa. Os documentos ali encontrados eram incontestes de Oliveira, 42 anos, casado, jornalista, declarou que algu-
em mostrar "os lucros fabulosos provenientes da especulação mas testemunhas arroladas eram agentes secretos da polícia.
criminosa, a exploração da contravenção, lucros que só por Disse que não conhece todos, mas aquele que conhece "não
meios criminosos podem ser obtidos"202. goza de bom conceito" e que tem prova que outra testemunha
A defesa protestou, pois, a retirada de um cofre da casa ganhava propina de casa de jogos depois que foi demitido
de um comerciante, da forma violenta como ocorreu, não po- da Casa de Correção. Outras testemunhas também defende-
deria ser realizada da forma que foi. Sem nenhum mandato, ram serem eles agentes secretos e que não gozavam de bom
apenas na suposição que ali ocorria um crime. Com base nessa conceito na sociedade.204 Depois desse confronto de versões,
alegação foi solicitada a devolução do cofre. A Justiça, que no opondo testemunhas de acusação e de defesa, chega a vez dos
Rio Grande do Sul geralmente dava sinal verde para toda a advogados de Serrão apresentarem a defesa perante o juiz.
ação policial, negou o pedido da defesa. Ao longo do processo, Para eles, esse processo é legalmente nulo, pois as testemu-
foram arroladas dez testemunhas de acusação que se qualifi- nhas eram agentes policiais que acompanhavam o delegado.
caram de diferentes formas: agência, comércio, alfaiate, pintor, Citando decisão da justiça do Rio de Janeiro, aponta que eles
entre outras ocupações manuais.203 Ou seja, todos eles procura- não podem ser testemunhas imparciais porque são influen-
ram se colocar como trabalhadores respeitáveis em juízo. ciados pelo argumento da acusação. Além disso, a invasão
É a partir desse ponto que o processo analisado co- domiciliar faria sem efeito qualquer prova posteriormente
meça a apresentar elementos que podem nos ajudar a com- obtida, porque provas produzidas de forma ilegal são nulas.
preender melhor quem eram os agentes secretos, objeto de O juiz, entretanto, seguindo a tradição da justiça gaúcha con-
siderou as provas válidas e condenou os réus.205
da Promotoria Pública e da defesa, Epitácio afirma que as ma de punição. Essa mesma constatação foi percebida por
segundas são "de outra responsabilidade moral pela posição floreira210 analisando a polícia gaúcha em idêntico período.
social que eles ocupam, não são desocupados nem agentes Ele mostrou também que as corporações policiais locais eram
secretos da polícia".2* Fica bastante claro nessas colocações e uma ocupação aberta para os ex-escravos.
na tentativa das próprias testemunhas de acusação de escon- Sabe-se que o final dos anos de 1860 e início dos anos
derem sua real vinculação com a polícia que tal atividade, a 1870 foi caracterizado por uma reorganização das polícias
de agentes secretos, não gozava de bom conceito social. Isso militares em todo o Império. No âmbito da Província de São
pode ser explicado, em parte, pela origem social e as formas Pedro do Rio Grande do Sul, a organização da força policial
de recrutamento dos policiais de uma maneira geral. foi alvo de disputas entre o Partido Conservador (PC) e o Par-
A baixa remuneração dos policiais e demais mem- tido Liberal (PL). Um fenómeno muito particular dessa Pro-
bros das corporações responsáveis pela segurança pública víncia foi o predomínio, durante a década de 1870 e 1880, do
faziam estas ocupações se caracterizarem pela extrema ro- PL. As mudanças de gabinete na Corte, que alteravam os dois
tatividade de seus quadros, podendo ser consideradas um partidos no poder, não afetavam a hegemonia dos liberais
subemprego. Autores que estudaram a polícia gaúcha no Im- no sul. O PL, seguindo seus princípios doutrinários, tentou
pério207 e no início da República208 vêm chamando a atenção constantemente ampliar o poder municipal sobre a polícia,
para a precariedade material que caracterizava o exercício enquanto os conservadores defendiam a manutenção das in-
da função policial. Os ganhos monetários não pareciam ser dicações pela Corte. Essa particular situação política permitiu
os principais arrativos deste cargo. Rosemberg209, em estudo a exposição, nos debates registrados nos anais da Assembleia
Provincial e nos relatórios dos Presidentes da Província, tanto
das concepções (representações) de policiamento vigente na-
206.Peça com parecer proferido pelo Supremo Tribunal Federal. Processo-crime n5125.
APERGS. quele período, quanto dos diferentes conflitos que ocorriam
207.MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Entre o deboche e a rapina: os cenários sociais da entre a polícia judiciária e a polícia militarizada nos diferen-
criminalidade popular em Porto Alegre. Porto Alegre: Armazém Digital, 2009.
208.MAUCH, Cláudia. Dizendo-se autoridade: polícia e policiais em Porto Alegie tes níveis hierárquicos. Importante destacar, para o propósito
(1896-1929). São Leopoldo: Oikos, 2017.
209 -ROSE MB E R G, André. De chumbo e festim: Uma história da polícia paulista no
final do Império. São Paulo: Edusp, 2010. 21 O.MOREIRA, Paulo Roberto Staudt, op. cit., p.32-62.
178
deste Capítulo, que, durante rocio o Império, a polícia milit a . Hessas pessoas e n5 formas de recrutamento. C' O ratice l apre-
não conseguiu engajar o número de praças previstos na ]e. sentado abaixo, retirado desse trabalho, pode nos ajudar a pro-
gislacão por falta cie voluntários. Essa falta de quadros pa ra ar alguns aspectos relevantes para nossa discussão.
compor a Força Pública servia de pretexto para as autorida-
des judiciárias contratarem "policiais locais", cuja forma de
recrutamento era próxima aquelas que serão usadas com os
"secretas" no período republicano.
Maiores informações sobre os policiais forarn obtidas no
período republicano. Sabe-se, graças ao trabalbo de Mauch-11,
que os agentes secretos eram indivíduos contratados pelas
autoridades, temporariamente, para missões especiais, sendo
pago pela vultosa quantia destinada à despesa secreta da Po-
lícia. Esse corpo policial era recrutado para atividades tempo-
Gráfico l - Total de funcionários efetivos e evtranumerários da Polícia Administrativa
rárias sem estar devidamente incorporado na instituição, fato de Porto Alegre entre 1397 e 1928:"
que gerava consequências importantes para a prática do poli-
ciamento. Provavelmente, a principal delas foi a contribuição Os policiais que faziam trabalhos temporários, pa-
para aquiio que denominei de "cultura do achaque". Isso ocor- gos por dia ou por serviço, são denominados de "extranu-
ria porque a existência desses "secretas" criava a prerrogativa merários" nesse gráfico e pelas autoridades da época. Tais
de pessoas à paisana não vinculadas à polícia darem voz de trabalhadores seriam utilizados quando os policiais efetivos
prisão ou intimarem os demais cidadãos sem que houvesse ne- estavam ausentes ou em momentos em que o policiamento
nhum controle institucional sobre esses atos.2i: precisava de reforço, como em festas populares e greves. Fica
Um maior entendimento sobre as formas de recruta- claro nos dados trazidos por Cláudia Mauch que a prática
mento dos policiais foi possível depois da defesa da Tese de de contratar policiais por jornada, mais do que algo tangen-
Cláudia Mauch, em 2011, que foi publicada na forma de livro cial, era parte estruturante da Polícia Administrativa de Porto
em 2017. Trata-se do trabalho intitulado Dizendo-se autoridade: Alegre; eles eram utilizados recorrentemente no policiamen-
polícia e policiais em Porto Alegre (1896-1929). Utilizando um tipo to ostensivo. É preciso, porém, que tomemos cuidado para
de fonte inédito para estudos sobre as polícias republicanas não fazermos associações demasiadamente rápidas. Existem
(Códices de Matrícula dos Agentes), ela traçou um perfil social algumas diferenças entre os "extranumerários" e os "agentes
secretos" propriamente ditos. Ambos eram contratados para
211.MAUCH, Cláudia. Ordem Pública e Moralidade: imprensa e policiamento urbant- trabalhos temporários, porém sua diferença residia no caráter
em Porto Alegre na década de 1890. Santa Cruz do Sul: Editora da UNISO ANPLH-
-RS, 2004, p.149-150.
212-TORCATO, Carlos Eduardo Martins, opt. cit., 2016a, p. 103-107. 213.MAUCH, Cláudia, Op. cit., 2017, p.128.
d u a l da polícia g a ú c h a - Administrativa e J u d i c i á r i a . Os n r j_ viviani uma relação a m b í g u a com a lei. vivendo em contato
meiros eram os policiais por jornada ligados ao policiamento com as autoridades policiais o o m u n d o da criminalidade. Hm
ostensivo, enquanto os segundos eram utilizados na obtenção consonância ao discurso dos advogados de defesa apresenta-
de provas, como testemunhas ern processos, para conseguir do durante a análise dos processos-crimes acima realizada,
informações sobre os crimes através da espionagem. A rele- nercebe-se que a imprensa paulista não poupava críticas ao
vância desses dados para nossa problemática reside no cará- serviço e à respeitabilidade de tais agentes. O jornal Estado
ter ordinário do recurso à contratação de pessoas alheias a & São Paulo, por exemplo, publicou em 1896 uma dura mani-
corporação para execução de tarefas, que podia ser tanto para festação ao Chefe de Polícia, solicitando que o mesmo "con-
policiamento nas ruas, quanto para investigações. siga elevar o moral dos secretas, que tanto desgostos causam
Se o trabalho de Cláudia Mauch traz importantes ele- sempre às autoridades, praticando abusos de toda a casta,
mentos para pensarmos o contexto de aruação e de recruta- por serem, em sua quase totalidade, indivíduos mal prepa-
mento da polícia gaúcha, principalmente a ostensiva, outra rados para o desempenho de tão melindrosas funções" 2 ' 3 Os
pesquisa vem contribuir para a compreensão da polícia judi- frequentes choques entre secretas e populares enchiam as pá-
ciária ou investiga ti vá. Dessa vez, entretanto, o foco é a polí- ginas dos jornais paulistas, e não raro surgiam "notícias de
cia paulista. Marcelo Thadeu Quintanilha Martins defendeu 3 secretas acusados de achacar transeuntes"216 Em 1896 a Polí-
Tese intitulada A civilização do Delegado: Modernidade, políaa e cia paulista passou por uma reestruturação e os secretas pas-
sociedade em São Paulo nas primeiras décadas da República, 1889- saram a ser denominados de Agentes de Segurança, sendo in-
1930, trazendo nela alguns elementos úteis para nossa inves- cluídos no quadro de funcionários da polícia. Mesmo assirn,
tigação. Ele aponta que a Delegacia de Polícia era formada a fama desses agentes não parece ter melhorada.
por Delegados e Subdelegados com formação mais adequada A mudança de denominação não parece ter alterado o
e conhecedores das normas jurídicas, os escrivães responsá- padrão de atuação de tais agentes quando a questão era a ob-
veis pela parte burocrática, os inspetores de quarteirão e, por tenção de provas para os processos-crimes. Em 1929, ocorreu
fim, auxiliando todos esses "estavam os agentes secretos, os a primeira prisão em flagrante de um vendedor de maconha
famosos 'secretas', assim chamados por não usarem uniforme que se tem notícia no Brasil. Foi levado ao xadrez Diomero de
e misturarem-se à multidão" 214 . Esses agentes existiam desde Oliveira, que era comerciante de ervas com estabelecimento
o período imperial, porém seu número cresceu consideravel- de nome Hervanaria Oriental, localizado na Praça da Sé n y 63-
mente durante a República. Eles auxiliavam a polícia e ser- A. Sobre esse indivíduo recaía outras suspeitas, como a prá-
viam como informantes. tica ilegal da medicina e a venda de garrafadas medicinais.
Marcelo Martins ainda destaca que tais indivíduos
215.Estado de São Paulo, 07 de junho de 1986 apud MARTINS, Marcelo Thadeu Quin-
214 MARTINS, Marcelo Thadeu Quintanilha Martins. A civilização do Delegado Mo-
tanilha, opt. cit., p.120.
dernidade, polícia e sociedade em São Paulo nas primeiras décadas da República,
1889-1930. Tese. (PPG - História Socul/USP), 2012, p.119. 216.MARTINS, Marcelo Thadeu Quintanilha, opt. cit., p.121.
Uma diligência foi p r e p a r a d a pela polícia, ser.cio e n v i a d o an c orn fc.-tudos e respeitáveis ^ociain^TiiL'. 1 -"
local "um viciado" a serviço da polícia para c o m p r a r a famo- Esse tipo de situação não era exclusivo do contexto
sa erva; depois de analisada no laboratório do serviço po|j. 0-aúcho. Entre 1912 e 1918, alguns jornais de São Paulo colo-
ciai, ficou constado que se tratava de camwbia-indica. Levado caram na agenda pública o problema dos "tóxicos" exigindo
ao tribunal, ele acabou absolvido com o argumento que Se atuação forte da polícia contra a venda de "entorpecentes"
tratava de uma p l a n t a medicinal. 217 Esse caso mostra que a para fins não médicos. A incapacidade do poder público em
polícia podia recrutar para serviços secretos pessoas habitu- acabar com a venda ilegal dessas substâncias fazia o eficien-
adas ao uso de substâncias "entorpecentes", como sugere o te serviço sanitário paulista alvo das críticas dos jornais. A
emprego de um "viciado" para obter a droga nesse exernplo resposta a esse e outros problemas não tardou e em 1917 foi
Como veremos mais abaixo quando o foco se dirigir promulgado novo regulamento sanitário, prevendo maior
para o caso da repressão aos entorpecentes em Porto Alegre, nunitividade e menos tolerância com hábitos indesejados-7^,
os "secretas" podiam ser recrutados nos meios de sociabili- entre eles os "hábitos elegantes" de usar drogas. Com o poder
dade dos usuários de drogas e usados para forjar o flagrante de fechar as farmácias, a polícia tomou a frente na solução
necessário para justificar a acão policial. Talvez o caso mais desse problema público. Utilizando os odiosos "secretas", os
interessante do uso desse tipo de subterfúgio tenha sido no policiais estabeleceram um controle mais rigoroso sobre esses
controle das farmácias. Na comunicação intitulada A campa- estabelecimentos, multando e fechando aqueles que descum-
nhapolidal contra os tóxicos em Porto Alegre no final de 2920, rea- priam a proibição de vender "entorpecentes" fora do uso mé-
lizada no XIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RS, j dico. Os jornais acompanharam vivamente as acões da polícia
ocorrido na Universidade de Santa Cruz do Sul entre 18 e 21 e exaltavam a atuação do Delegado Alves Ferreira220.
de julho de 2006, procurei explorar um pouco os dilemas da Esta ação dos agentes secretos, mais especificamente,
utilização desses métodos de incriminação contra pessoas das e da polícia, de uma maneira geral, no controle das farmácias
classes mais altas. O uso de agentes secretos para construir remete de modo pertinente às reflexões teóricas desenvolvi-
a prova é feito sem maiores questionamentos quando utili- das por Foucault em torno do conceito de governamentalidade.
zados para incriminar pessoas das classes populares, porém Na França, em fins do século XVIII, o controle sobre a circula-
acabam gerando um tensionamentos extras quando voltados ção de pessoas e de mercadorias era incluído no rol das atri-
às pessoas das classes mais altas. Isso pode ser percebido na
recusa de alguns juizes a receberem a denúncia contra os far- 218.TORCATO, Carlos Eduardo Martins. A campanha policial contra os tóxicos em Por-
macêuticos, donos de estabelecimentos comerciais, pessoas to Alegre no final dos anos de 1920. XHI Encontro Estadual de História da ANPUH-
-RS - Ensino, Direitos e Democracia. Universidade de Santa Cruz. Anais. 2Q16b,
p.01-10.
219.MOTA, André. Tropeços da Medicina Bandeirante: medicina paulista entre 1882-
1920. São Paulo: EDUSP, 2005, p.100-102.
217.FONSECA, Cuido. O submundo dos tóxicos em São Paulo: séculos XVHI, XIX t 220.CARNEIRO, Beatriz H. 5. A vertigem dos venenos elegantes. Dissertação. (PPG-
XX. São Paulo: Resenha Tributária, 1994, p.108-111. -História/PUCSP), 1993, p.129-164.
buições policiais. O mesmo acontecia com a organi/ação da dade do Vale aos Sinos í L \~H\OS) em 2016. Nessa ocasião
mão de obra (relação capitaí-trabalho), a saúde física e moral procurei apresentar alguns aspecto? da repressão policial às
da população e o controle da criminalidade e dos distúrbios farmácias. O crime de tráfico de drogas, ao contrário do jogo
Era um modelo de sociedade policial que, se levado ao limite ilícito tratado anteriormente, era levado ao Tribunal do Júri.
pressupunha a intervenção do Estado em amplos aspectos da Embora as pessoas detidas em flagrante ficassem presas até o
vida dos homens a partir da ótica da disciplina e da regulação julgamento, em geral elas acabavam absolvidas quando jul-
característica principal de uma governamentnlidade policial lj- gadas em tribunais desse tipo.-3
gada à razão de Estado."' O uso de agentes secretos no con- A questão do combate à venda ilegal dessas substân-
trole das farmácias, no Brasil do início do século XX, mostra cias entra tardiamente na agenda política do governo gaúcho
que, apesar do problema do uso de psicoativos ter sido cons- se compararmos com a repressão policial em São Paulo e no
truído com base nas práticas discursivas médicas, as formas Rio de Janeiro. A partir de 1924, depois de assinado o Pacto
de enfrentar tal problema eram predominantemente tratadas de Pedras Altas que colocou fim à guerra civil, os opositores
como uma questão policial e jurídica. As políticas públicas do Partido Republicano Rio-grandense (PRR) passaram a ter
nessa área eram uma prática imposta pelos governantes aos maior liberdade para criticar o poder público e a polícia foi
governados, pois os primeiros se julgam no direito de esco- um alvo constante. Foi a partir dessa data, também, que os
lher os hábitos adequados aos segundos. Trata-se, portanto, intendentes municipais - Octávio Rocha e Alberto Bins - ini-
de uma questão racionalizada por uma governamentalidade ciaram uma campanha pela estadualização da polícia que era
policial como a descrita por Foucault ern outro contexto.— de responsabilidade do município desde a reforma policial
A política pública de restrição ao uso de drogas, no de 1896-4. Paralelamente a essa campanha, ainda existia um
início do século XX, foi sentida pela população como a im- posicionamento bastante singular do governo do Estado do
posição de um regime heteronômico sobre os meios de admi- Rio Grande do Sul referente à questão da liberdade profis-
nistrar a dor. A automedicação era uma prática sancionada sional da medicina.225 Os médicos, através da revista Archivos
socialmente em uma cultura farmacológica menos tolerante Rio-grandense de medicina, mostravam-se bastante críticos ao
a dor. Isso explica o alto índice de absolvição apresentado na governo. Em 1926, por exemplo, na ocasião do IX Congresso
comunicação intitulada A repressão às drogas em Porto Alegre Médico Brasileiro, houveram muitas manifestações desses pro-
no final dos anos de 1920 realizada no II Colóquio Discente de
Estudos Históricos Latino Americanos ocorrido na Universi- 223.TORCATO, Carlos Eduardo Martins. A repressão às drogas em Porto Alegre no
final dos anos de 1920. II Colóquio Discente de Estudos Históricos Latino-Ameri-
canos (CEHLA) - Conexões Brasil e América Latina. UX1SINOS (São Leopoldo/RS).
221.FOUCAULT, Michael. Nascimento da Biopolítica; Curso no Collège de France
Anais. 20í6b, p.1679-1689.
(1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.454-456.
224.MAUCH, Cláudia, opt. cit., 2017.
222.Sobre esse debate ver: TORCATO, Carlos Eduardo Martins. A proibição das drogai
ontem e hoje: (des)continuidades a partir de um diálogo com Michael Foucaul! 225. WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar, medicina, religião, magia e positivismo
XXVTII Simpósio Nacional de História - Lugares dos Historiadores: Velhos e Noves na republica rio-granden.se (1389-1928). Santa Maria / Bauru, SP: UFSM / EDUSC
Desafios. Florianópolis - SC. Anais. 2015, p. 01-13. 1999.
fissionais contra a política liberal vigente no sul. 2 - 6 ío da classe medica com o governo do Estado. Embora
A introdução da questão do controle sobre o tráfico de ainda precise de uma pesquisa mais aprofundada, vários in-
"entorpecentes" na agenda pública gaúcha ocorreu graças dícios apontam que a criação de uma Delegacia especializada
às mudanças que envolveram a polícia e a relação dos go- no combate aos "entorpecentes" esteve entre as mudanças
vernantes com a classe médica. Foi com objetivo de dar uma institucionais promovidas por Getúlio na polícia em 1929. Os
resposta para as constantes críticas que a polícia ia receben- diversos processos-crime encontrados também apontam para
do que o presidente do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas a utilização de "secretas" nas diversas ações policiais contra os
em 1929, reformulou essa instituição e a passou para controle "entorpecentes" em fins da década de 1920.231
estadual, atendendo aos anseios dos antigos intendentes. Se- É dentro desse contexto tardio de repressão ao tráfico de
gundo Monteiro227, essa nova polícia se pretendia mais téc- drogas que apresentarei o último processo-crime para analisar
nica e científica. Santos228, por outro lado, chama a atenção a atuação dos agentes secretos. Em 26 de novembro de 1930
para o importante papel exercido por essa guarda no início estavam de tocaia próximo à Farmácia Caridade dois inspeto-
do golpe que resuitou na Revolução de 1930. res policiais, observando o movimento. Não demorou muito
A presidência estadual de Getúlio Vargas também se ca- para um indivíduo "conhecidíssimo como comprador de co-
racterizou por mudanças na forma de relacionamento com a caína para várias decaídas da Rua Três de Novembro"232, ou
classe médica. Atendendo aos pedidos expressos no Archivos seja, para meretrizes, entrasse na citada farmácia. Foi nessa
Rio-grandense de medicina, revista oficial da Sociedade Médica do ocasião que eles penetraram no estabelecimento e prenderam
Rio Grande do Sul, o governo ampliou o controle sobre o co- os dois farmacêuticos que trabalhavam no local. Foram arrola-
mércio de "entorpecentes". Foram trocadas e publicadas car- das como testemunhas algumas meretrizes que confirmaram
tas com Getúlio Vargas com mútuos elogios graças a um "ato" serem eles famigerados vendedores de cocaína. Contando com
publicado pelo governo garantindo maior empenho no con- o serviço de advogados, o que não era obrigatório na época, foi
trole do comércio dessas substâncias229. Segundo Kummer130, protocolado um pedido de habeas corpus, negado pelo juiz.
esses ofícios representaram um marco da mudança de relacio- Sem êxito, novo pedido foi protocolado, dessa vez para trans-
feri-los da Casa de Correção para o Manicômio Judiciário, ale-
gando que os citados farmacêuticos eram "morfinômanos" e
226.KUMMER, Lizete Oliveira. A medicina social e a liberdade profissional: os médico?
gaúchos na primeira república. Dissertação. (PPG - História / UKRGS), 2002, p 76-79. que precisavam de tratamento médico. Esse pedido foi aceito
227.MONTEIRO, Rejane Penna. A nova polícia: a guarda civil em Porto Alegre (1929- e os dois ficaram nesse estabelecimento até o julgamento no
1938). Dissertação. (PPG - História / PUCRS), 1991, p.46-47.
228.SANTOS, Allysson Arthur Roque. A polícia gaúcha na era vargas (1930-1945); diretri-
zes cientificas s tecnológicas. Dissertação. (PPG - História / PUCRS), 2005, p.89-94.
229.TORCATO, Carlos Eduardo Martins. A Repressão aos "entorpecentes" em Porto 231.TORCATO, Carlos Eduardo Martins. A história das drogas e sua proibição no Bra-
Alegre no Governo de Getúlio Vargas: discurso médico e prática forense, n Simpó- sil: da Colónia à República. Tese. (Programa de Pós-Graduação em História Social/
sio Nacional de História do Crime, Polícia e Justiça Criminal. Universidade Federal Universidade de São Paulo), 2016.
de Uberlândia (URJ). Anais. 17 a 19 de outubro de 2012. 01-15 p. 232.Excerto retirado do Relatório Policial. APERGS. Processo Crime nu 4401, movido
230.KUMMER, Lizete Oliveira, op. cit., p.85. contra João Marques Pereira e Pedro Carriconde.
Tribunal do Júri, quando foram absolvidos. percebe, portanto, é que a polícia inverte os papéis, pois ao in-
Para nosso propósito, mais importante são as coloca- vés de perseguir os contraventores, seguindo seus passos, ela
ções da peça de Defesa e de um curioso documento anexado faz o contrário; facilita o contraventor para prendê-lo através
pelo advogado dos dois farmacêuticos. Trata-se do panfleto de uma encenação.233
intitulado As falhas ao nosso aparelhamento policial: um pouco Essa longa descrição crítica dos procedimentos poli-
de inquisição, um dedo de sherlockismo e muita aparência... para o ciais da polícia gaúcha sugere que o recrutamento de indiví-
chefe apreciar e o público aplaudir. Segundo esse documento, os duos para provocar crimes e flagrantes não pode se restringir
vendedores de cocaína estão em todos os recantos da cidade a uma amistosa relação entre policiais, ex-policiais e pessoas
e nem mesmo as autoridades são capazes de contê-los porque que vivem nas margens da sociedade. Igual à polícia de São
o aparelhamento policial é insuficiente. As técnicas de inves- Paulo, no caso de Diomero de Oliveira, descrito acima, tam-
tigação não evoluem, continuam as mesmas de trinta anos bém em Porto Alegre a repressão aos "entorpecentes" podia
atrás. "No corpo de investigadores, ultimamente criado, só "engajar" viciados para provocar flagrantes. A forma de fazê-
tem ingresso indivíduos pouco recomendáveis, quase anal- -los aderir à causa policial pode não envolver ganhos mate-
fabetos, e que não possuem a mais leve noção do cargo que riais ou a possibilidade de alistamento na corporação policial,
desempenham". Incapazes de investigar e prender viciados e e sim simplesmente uma forma de garantir a integridade físi-
vendedores de entorpecentes, os inspetores policiais utilizam ca do colaborador.
outros meios para mostrar trabalho. Eles andam pela cidade Esse Capítulo procurou apresentar e sistematizar algu-
e recolhem a l1 Delegacia Auxiliar algum viciado, "um des- mas evidências esparsas recolhidas ao longo de uma trajetó-
ses tantos infelizes que pupulam (sic) pela cidade". Depois de ria de pesquisa em torno da repressão aos jogos ilícitos e a
interrogado por mais de uma hora, perguntam para o infeliz venda irregular de "entorpecentes". Embora ainda inexistam
quem é o seu fornecedor. Para convencê-lo a falar, os poli- pesquisas que tratem exclusivamente desses agentes secretos,
ciais apelam para ameaças, dizendo "que será esbordoado e também foram adicionadas nessa reflexão algumas reflexões
colocado no xadrez junto corn as ratazanas. Sobre esse lugar, pontuais feitas por trabalhos inseridos no campo da História
o médico legista da polícia declara que as pessoas ali encarce- da Polícia. A natureza da atividade dos agentes secretos di-
radas são capazes de morrer, pois não existe entrada de sol". ficulta muito a obtenção de dados capazes de problematizar
Com todos esses argumentos, o viciado resolve colaborar; a a atuação desses curiosos personagens policiais. Apesar des-
polícia dá 20$000 e pede para ele ir até o local da compra; sas dificuldades, foi possível mostrar nos dados apresenta-
os policiais ficam de tocaia e tão logo é efetuado o negócio o dos que eles eram usados para a execução de "serviços espe-
flagrante é realizado, a polícia faz a revista no local e o ven- ciais", como meio de obter informações sobre os crimes, para
dedor é preso. No outro dia os jornais aparecem repletos de completar a tropa regular no caso das polícias ostensivas e,
elogios às autoridades competentes, com vivas exaltações à
233. Anexo da peça de defesa- APERGS. Processo-crime nu 4401.
campanha contra a venda clandestina de "tóxicos". O que se
190
ROSEMBERG André. De chumbo e festim: Uma história da . A repressão às drogas em Porto Alegre no final dos
polícia paulista no final do império. São Pauio: Edusp, 2010. anos de 1920. íl Colóquio Discente de i:studos Históricos
Latino-Americanos (CEHLA) - Conexões Brasil e América
SANTOS, Allysson Arthur Roque. A polícia gaúcha na era L atina. UNISINOS (São Leopoldo/RS). Anais. 20l6cy p.1679-
Vargas (1930-1945): diretrizes científicas e tecnológicas. 16S9.
Dissertação. (PPG - História / PUCRS), 2005.
\YEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar: medicina,
TORCATO, Carlos Eduardo Martins. Mecanismos de religião, magia e positivismo na república rio-grandense
controle social em Porto Alegre no pós-abolição: uma leitura 3-1928). Santa Maria / Bauru, SP: UFSM / EDUSC, 1999.
a partir da repressão aos jogos de azar. XXVI Simpósio
Nacional de História - ANPUH: 50 anos. Universidade de
São Paulo (USP). Anais. 17 a 22 de julho de 2011. 01-15 p.
pós regime autoritário. do regime militar, impondo uma herança histórica para as
Levando-se em conta nossa herança colonial, a aliança democracias latino-americanas. E, sendo assim, a percepção
entre o autoritarismo e o coorporativismo torna-se uma práti- de um passado democrático e o conflito com o legado militar
ca de longa duração presente na história da estrutura política estão no bojo das questões para entender a fragilidade das
da América Latina. O coorporativismo latino-americano, he- democracias atuais na América Latina. De outro lado, a ar-
rança de uma tradição ibérica, não apenas caracterizou todo gumentação c se realmente houve um regime democrático na
o sistema de dominação colonial, quer seja da ocupação mi- América Latina, que suplantou a herança colonial do conser-
litar dos territórios conquistados, quer seja na dinâmica de vadorismo, do patrimonialismo e do corporativismo. Neste
uma burocracia colonial. Mas, fundamentalmente propiciou sentido, o período militar apenas recrudesceu um regime au-
a emergência de elites políticas conservadoras, que ao longo toritário frente às mudanças sociais e económicas pelo siste-
da história mativeram suas estruturas de dominação (WIAR- ma capitalista238. Qual democracia então? Autores que defen-
DA, 2004). Estas elites políticas conservadoras mantém uma dem a transição entendem a fragilidade da nova democracia
estrutura de dominação ao longo da história, cuja prática po- e os impecilhos para sua consolidação, conformando-se as te-
lítica se caracteriza pelo clientelismo, particularismo, patri- ses de O'Donnell, G. de uma transição do autoritarismo para
monialismo e pelo abuso de poder. Dentre as estratégias de a democracia239.
dominação, o uso da violência e da força policial faz parte da Analisar a transição democrática não é exatamente o
prática de poder, contrapondo-se ou não a democracia. Neste objetivo deste trabalho. Entretanto, como não ir à origem do
aspecto, Alagoas pode ser entendida como um complexo con- problema indagando sobre a o processo de democratização na
traditório do indicativo autoritário permanente. América Latina e no Brasil? A existência de uma contradição
Recentemente alguns autores tem feito a inquietante
pergunta sobre as democracias na América Latina e o con-
238.WIARDA, H. Authoritarianism and corporatism in Latin America - Revisted.
tinuo e permanente repertório da violência política137. As Florida, 2004. Também, COSTA PINTO, A. & MORLINO, L. Dealing with the
Legacy of Authoritarianism. New York, 2011; KTrSCHELT, H. & WTLKINSON, S.
Patrons, clientes and policies: patterns os democracy accountability ans political
compettion. Cambridge University Press, 2009; KITSCHELT, H. & WILKINSON,
236.A esse respeito ver: PINTO, A. C. & MARTINHO, F. C. "O passado autoritário e as Steven. Patrons, Clients, and Policies: pattems os democractic accounlabilily and
democracias da Europa do Sul: uma introdução". In.: O passado que não passa. Rio política! competition. New York: Cambridge University Press, 2007; BURT, Jo-Ma-
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. Pp. 17-45. rie. Political violence and the authoritarian state in Peru. Ingland, 20CS; TALA-
CIOS, M. Between legitimacy and violence: a history of Colômbia (1875-2002).
237.ARIAS, Enrique Dcsmond e GOLDSTEIN, Daniel, (orgs). Violent Democracies in
Duke University Press, 2006.
Latin America. London: Duke University Press, 2010. Também, KALMANOVVTEC-
KI, L. 'Tolice, Politics, and repression in Modem Argentina". In.: AGUIRRE, Ca; 239.Ver COSTA PINTO, A. & MARTINHO, Francisco. O passado que não passa: a
los & BUTFINGTON, Robert. Reconstructing Criminality in Latin America. EUA, sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina. São Paulo: Civiliza-
2000. Pp.: 195-218. ção Brasileira, 2013.
198
entre o ideal democrático e a permanência da insegurança nu. A permanente insegurança pública e o uso multiplu-
blica e do aumento da criminalidade no Brasil constata-se pelos ra l da violência pelo estado em quanto experiência social e
estudos sobre a polícia, conduta policial e segurança pública política foi analisada em artigo recente como um fenómeno
são recentes no país 24G . Uma temática que tem se concentrado caracterizado como,
mais num período histórico da repressão militar, merecendo
'patologia política autoritária', decorrente do uso do
outros enfoques e questionamentos. Neste sentido, nossa aná- terror negociado e ou arbitrário das gangues mili-
lise perpassa o contexto histórico da transição democrática no tares da instituição de segurança pública no estado
de Alagoas entre 1975 à 2008. Ou seja, trata-se de um
país, perfazendo uma problemática do tempo presente. Urna 'pathos' autoritário idiossincrático, que se mantém
situação contraditaria por si só, visto que ao mesmo tempo que pelo enfraquecimento do aparato público estatal
pelo uso predatório das elites políticas locais244.
falamos no fim das formas ditatoriais militares, presenciamos
a continuidade das mesmas estruturas e práticas autoritárias,
exemplarmente retratas na sociedade alagoana. Alagoas se torna um dos exemplo mais contundentes
Alguns estudos sobre comportamento policial perce- de práticas políticas advindas de uma herança colonial, ca-
bem as gangues militares como um tipo de desvio de conduta racterizando as elites agrárias do açúcar aos procedimentos
policial241. Outros, porém, entendem este tipo de ação violenta políticos conservadores e autoritários.
como uma fragilidade ou uma 'falha' do estado democrático242.
Entretanto, para a América Latina, o uso da força policial e da O minotauro alagoano.
violência são fundamentais no sistema politico contemporâ-
neo243. O que oportuniza a existência de grupos de extermínio Na história do nordeste, especialmente Alagoas, a
e de justiceiros militares na conformação das redes clíenteía- economia do açúcar empreendeu um sistema de produção
res, que sustentam as elites políticas locais e seus interesses no combinando elementos da herança colonial ibérica à dinâ-
poder. Isto torna visível a discrepância entre a democracia e mica produtiva do capitalismo comercial incipiente. Neste
um sistema politico autoritário, bem como a ausência modelos processo histórico as elites agrárias reconciliaram elementos
teóricos que discutam o fenómeno. Ao mesmo tempo, a pro- paradoxais num mesmo complexo sistemático produtivo, or-
blematização sobre a transição e consolidação da nova demo- ganizando a seu modo repositórios adaptáveis à dinâmica da
cracia na América Latina se faz cada vez mais urgente. acumulação do Capital245. Neste sentido, a herança barroca
e ibérica definiu a história política e a sociedade alagoana,
240.BRETAS, M & ROSEMBERG, A. "A história da polícia no Brasil: balanço e perspec-
tivas". In.: Revista Topoi. Rio de Janeiro, v. 14, n* 26. 2013. Pp: 162-173.
241.PUNCH, Maurice. Folice Corniption: deviance, accountability and refonn in 244.5ILVA, Célia Nonata. Op. Cit.
policing. Britísh: Willan Publishing, 2009. 245. A esse respeito ver: STERN, Steve. "Feudalism, Capitalism, and the World-System
242. Ver ÁRIAS, E. D. & GOLDSTEIN, D. "Violent PLuralism". In.; Violent democracies in the perspective of Latin America and the Caribbean". In.: COOPER, F.; ISAAC-
in Latin America. London: Duke University Press, 2010. Pp.: 01-34. MAN, A, MALLON, F. ROSEBERRY, W. STERN, S. Confronting Historical Para-
243.1dem, ibidem. digms. London, 1993. Pp.: 23-83.
20:
através das práticas políticas patrimonialistas, clientelistas ', violentos que não foram transformados com a implantação
coorporativistas ao inevitável processo de transformação eco á República, nem tão pouco por um projeto de civilização e
nômica. Uma elite agrária conservadora, avessa e resistente ?;'- nação, trazidos pela modernidade. Assim, vate ressaltar que
aos processos de transformação social da modernidade e dos í* este 'habitus' viril é um elemento fundamental da cultura da
iV
alcances democráticos da modernização, mantém-se no ÍOPO C honra em Alagoas, mesmo com as alternâncias de poder polí-
político por procedimentos autoritários e violentos, que mar- '-" tico no estado. Com isto,
caram a história política de Alagoas.
O exclusivo açucareiro relacionou-se intimamente
A conservação desta estrutura de dominação agre- à população agraria do Nordeste, condicionou as
gou outros valores modernos posteriormente, sem contudo linhas de sua formação, as diretrizes de seu desen-
perder a essência de uma tradição regional. Nos estados do volvimento; condicionou também seu meio de vida,
seu padrão social, suas contingências económicas.
Nordeste, de modo especifico, em Alagoas percebemos a per- Domínio quase absoluto que, desde cedo, sujeitou a
manência desta tradição, caracterizada por uma sociedade população da área açucareira do Nordeste, este im-
\. plantado pela monocultura da cana.24"
arcaica e agrária, originada das primeiras povoações trazidas
pelos currais de gado, com o vaqueiro e sua forma rústica de
viver2*6; bem como dos engenhos, que como unidades produ- As dinâmicas burocráticas não revelaram nenhum
tivas, sistematizou a dinâmica da ocidentalização. Assim, o í processo de ruptura efetiva com as velhas práticas políticas.
processo de colonização portuguesa não deve ser entendido ; Diégues Jr. (2012) acentua o alto índice de analfabetismo, as
unicamente como a implantação de um sistema de 'planta- í condições sociais de vida miseráveis e a fragilidade económi-
tion', estabelecendo-se no nordeste brasileiro enquanto em- ca e o empobrecimento de Alagoas associado à dinâmica do
preendimento comercial do monopólio do açúcar, base para a " modo de produção açucareiro. Uma economia que se sobre-
economia capitalista comercial da época. Mas, principalmen- / pôs no século XIX por arranjos de poder e interesses locais,
te pela formação de uma comunidade política que afirmava ^ determinando um ciclo económico, bem como suas famílias e
seu poder no mando, mantendo uma burocracia colonial fun- ; sua cultura política de poder e domínio, com intensa ligação
dada no patrimonialísmo, coorporativismo e clientelismo. > ao latifúndio e a monocultura do cultivo da cana-de-açúcar.
Esta estrutura de poder consolidou as redes de poder loca] Este ciclo económico preponderante manterá uma cultura
e as relações de dominação, calcadas numa dinâmica de con- política arcaica e agrária, perpetuando-se até o século XXI,
luios, capangagem e mandonismo que marcam as estruturas juntamente com suas famílias tradicionais e o seu jogo políti-
políticas ainda hoje. * co autoritário. A caracterização das elites agrárias açucareiras
Definiu também um modo de viver rústico, com traços identifica-se claramente ao cenário formulado por Barrington
Moore Jr. (2010), quanto à ausência de estruturas democráti-
246. A esse respeito ver: LINDOSO, D. O Grande Sertão: os currais de boi e os índios
de corso. Brasília; Fundação Astrojildo Pereira, 2011. Também, VIANNA, Urbina
Bandeirantes e sertanistas baianos. São Paulo, Coleçâo Brasiliana, 1933. 247.1dem, Ibidom. P.: 157.
202
cãs e projctos de inclusão social, donde tsrio, as e ^ te£ Alagoanas tentam resolver o problema social
r barganhas políticas feitas com o Senado Federal, através
por natureza não são harmoniosos nem polir,
nem tem inclinações sociais. A única maneira d
Âe programas assistencialistas. Xeste sentido, Cabral (2005)
frear suas intermináveis disputas e fazê-los chco». áao analisar os Planos de Desenvolvimento para o estado de
a um acordo é por meio de pactos. Dado o eonlc™.
6tjismo , Alagoas revela que:
natural dos homens os pactos são construções artifi- ij.
ciais, da mesma forma que a comunidade ou o Esta- Os Estados brasileiros, principalmente os mais po-
do erigido sobre eles.2J8
bres como Alagoas, sempre dependeram dos recur-
sos federais para a sua sobreviwncia e desenvolvi-
mento (...). No caso particular de Alagoas, um Estado
Esta estrutura de dominação autoritária, mantida ain- caracterizado pela dependência de poucas ativida-
da pelas famílias tradicionais alagoanas, serve-se do estado des económicas, como a cana de açúcar e a pecuária,
como aves de rapina, tanto na utilização do braço armado com uma estrutura fundiária em que predomina até
hoje uma forte concentração de terras nas mãos de
da polícia para manter o domínio dos territórios políticos poucas famílias, as estratégias de desenvolvimento
quanto dos benefícios públicos destinados à sociedade. Tal l foram sempre reflexo de projetos nacionais24',
í.'
comportamento político continua sendo eficaz, engendrando
formas autoritárias de poder no campo, posto que esse mode- ; Portanto, as elites agrárias alagoanas ao reelaborarem
lo, - senão em todas as suas características, mas ern boa parte ,seu jogo de poder autoritário, adverso ao capitalismo liberal
delas -, ainda é facilmente detectável nas áreas rurais do esta- í|eas formas democráticas da modernidade, criam novas teias
do alagoano: nas suas usinas e fazendas. •*e redes de condicionamento moral, encarcerando não apenas
Este tipo de poder, sustentado pelas elites agrárias, "*as estruturas de classes, como a massa de trabalhadores aos
avesso ao moderno e a urbanidade, resiste ao capitalismo li- Jepaços de submissão e silêncio. Reduzem as margens de mu-
beral e as suas mudanças estruturais no poder mais demo- |
i*,
danças sociais e culturais capazes de romper com conceito de
crático. Os custos para a população são imensos e incalcula /mundo e de relações sociais tradicionais. Estas formas autori-
veis, somando-se a pobreza quase absoluta da população, as tárias de poder são traduzidas nas cifras dos extermínios de
formas brutais de alienação pela baixíssima escolaridade e o homens e mulheres, dos homicídios não contabilizados pelos
uso do terror no campo, implementado pelas quadrilhas ar- órgãos públicos, e pela costumeira prática do pistoleirismo
madas de políticos locais. Ressalte-se ainda a inexistência de político que ainda ceifam famílias inteiras.
uma economia de mercado, um projeto de industrialização, Como foi visto, a herança colonial e o valor arcaico
que sustente uma dinâmica social de classes e suas formas que identificam o comportamento político das elites alagoa-
de trabalho. Na manutenção deste projeto arcaico e autori- nas mantém e conservam os valores tradicionais numa busca
248.MORSE, Richard. O espelho de Próspero: cultura e ideias nas Américas. São Paula 249.CABRAL, Luiz António Palmeira. Planos de Desenvolvimento de Alagoas: 1960-
Cia. Das Letras, 2000. P.: 61. 2000. Maceió: Edufal, 2005. P. 23.
pela sobrevivência do regionalismo conservador. A resistên ?j «brigan do o sctorsucroatcooleiro à produção voltada ao Mer-
cia aos processos de mudanças e transformações moderno :'., _ a do externo. Nesta medida, os interesses agrários alagoanos
que poderiam contribuir para a ruptura de uma conduta e HP ;• .pantiveram-se estreitos à criação do PROÁLCOOL criado
uma moral conservadora, é baseada ainda na sobrevivência -pelo governo em 1975, proporcionando adaptações necessá-
do barroquismo provinciano. A vigência deste arcaísmo im- ' rias no campo como a concentração do latifúndio na busca
pede que o processo civilizador redefina as relações sociais p -," por mais das terras de produção do álcool, e a impíementa-
as formas de reciprocidade entre os indivíduos, bem corno a " cão de mecanismo tecnológicos no carnpo que favorecessem
in terna liza cão das Leis e o uso do monopólio legal da violên- a alta produtividade 230 . Neste mesmo tempo, os movimentos
cia pelo estado de Direito. No retrocesso destes acontecimen- sociais no campo expandem-se com propostas de melhorias
tos existe apenas a usurpação do estado e o fortalecimento sociais, agregando trabalhadores rurais descontentes com
do poder de mando das elites políticas locais, sustentado por .- a situação de vida no espaço rural. A CPT terá uma grande
quadrilhas militares e pistoleiros de elite. participação nas formas de contenção política no período,
Esta dinâmica conservadora e arcaica, mantida pelas ; motivando a massa de trabalhadores rurais em direção à luta
elites agrárias, condicionam Alagoas a um espaço atemporal, • pela posse da terra. Certamente, o espaço de confronto criado
em que os níveis de expectativas de mudanças se reduzem ,f entre os interesses do capital e a proposta transformadora das
cada vez mais pela baixa ou nula experiência social de mo- <s lideranças da CPT criaram uma dinâmica de conflito, que ain-
vimentação política ou de contenção, mantidas por um pro- :~ da se perpetua no contexto histórico-social do país.
cesso de alienação social pela prática arbitrária do terror per- Em Alagoas a criação da CPT na década de 80 promo-
petrada pelas milícas e grupos de extermínio. A conservação veu mudanças até então idealizadas pelos trabalhadores ru-
deste ethos 'arcaico alagoano' reduz o estado e seu aparelho rais. Dado um contexto social de opressão e violência ao lon-
ideológico aos interesses predatórios e usurpadores das elites • go da estrutura agrária da produção do açúcar, as lideranças
agrárias, engendrando formas autoritárias no campo e redu- leigas e religiosas que se propunham como contenção desta
zindo os níveis de expectative de mudança da vida urbana, dominação criaram o seu revés nas formas de recrudescimen-
submetendo a sociedade aos seus vícios privados. to do regime autoritário. As lideranças irão sentir o peso des-
Uma sociedade onde os direitos individuais e a liber- ta estrutura arcaica com os números de homicídios no campo
dade política foram progressivamente destruídos, sufoca- e as formas de repressálias do poder político pelos braços ar-
dos pelo enaltecimento de um regionalismo mantido apenas mados da polícia local, principalmente localizados em Porto
como propaganda ilusória das elites locais. Calvo, Campestre e Novo Lino. Estes municípios localizados
Neste viés, o contexto histórico mais nítido e conturba- no Litoral Norte e parte da Mata Norte destacaram-se como
do foi marcado tanto pela circunstância do regime militar que pólos de violência no estado durante o período de 1986/93,
se expandiu para a América Latina, como pelas investidas do
Mercado internacional e a crise do petróleo na década de 70, 250.Ver: ALBUQUERQUE, Cícero. Cana, casa e poder. Maceió: Edufal, 2009.
206
com ocorrência de inúmeros casos de morte e ameaças ao Boa Esperança na Usina Santana em Porto Calvo, onde se
líderes dos assentamentos, bern como as famílias dos assen utilizando de forma da Lei (art. 172) o juiz autoriza a "soli-
tados ou acampados pela atuação de pistoleiros e ganeu e c citação da força pública, para promover arrombamento, der-
fardadas na região. A exemplo, o caso que ocorreu no munid rubada e remoção para o depósito público de todos os bens
pio de Porto Calvo, onde aproximadamente 300 famílias q ue eobjetos porventura encontrados nos locais invadidos."^ As
ocuparam uma fazenda, foram vitimas da ação de um grun 0 reintegrações em Alagoas são marcadas ainda pela ação da
de 40 pistoleiros fortemente armados que aterrorizaram du- violência, como destruições de roçados e queima de barra-
rante uma hora os acampados.25' cos pela ação da Polícia Militar do estado e do batalhão de
As interpretações das leis e as determinações do poder choque armados. Também, por uma campanha midiática de
judiciário, colocando o direito à propriedade acima do direito criminalização dos movimentos sociais.
à vida, em sua maioria corroboram e sustentam as ações des- A união entre usineiros, elites políticas e a polícia em
tes grupos, que não hesitam em colocar o aparato público em Alagoas é uma experiência histórica, que tem demonstrado
favor dos grandes proprietários de terras e contra os trabalha- sua longevidade pela permanência das relações de domina-
dores. A frequência dos crimes cometidos pelos policiais e pe- ção autoritárias mantidas por uma estrutura política agrária,
las milícias privadas praticados com a certeza da impunidade merecendo uma análise cuidadosa das milícias e dos grupos
em Alagoas, como os ocorridos em Campestre na década de de extermínio deste braço armado.
1990, revelam não apenas uma estrutura de poder agrária
forte, bem corno uma ausência de análises para os conflitos Democracia violenta ou o 'palhas' autoritário.
rurais que ainda permanecem. Entre os casos encontrados ern
Campestre ocorreu o sepultamento de um trabalhador vivo As origens motivacionais dos grupos de extermínio em
pela PM local252, e o caso do trabalhador João José que mesmo Alagoas estão alicerçadas na dinâmica deste repertório po-
depois de três meses morto o corpo permaneceu exposto num lítico conservador, registradas contundentemente durante a
matagal sem que nenhuma medida tivesse sido adotada.253 segunda metade do século XX e começo do século XXI, pelos
A utilização da força policial em favor dos interesses inúmeros crimes efetuados pelas ações de quadrilhas milita-
do latifúndio é visível também nos cumprimentos dos man- res, cuja atuação basicamente advinha das facções criminosas
dados de reintegração de posse. Foi o que observamos no conhecidas como a Gangue Fardada e a Gangue dos Ninjas.
documento de liminar de reintegração de posse do Engenho A primeira atuava sob o comando do Tenente coronel Caval-
cante que, aliado à figuras políticas locais, alguns empresários
e policiais militares e civis, comandou o extermínio de vários
251 .Arquivo Eclesiástico de Alagoas. Fundo: Relatórios da CPT.
252. Arquivo Eclesiástico de Alagoas. Fundo: Relatório sobre a violência contra os traba-
lhadores rurais de Alagoas - 1993.
254,Polícia Militar de Alagoas. Centro de Gerenciamento de Crises. Liminar de reinte-
253. Arquivo Eclesiástico de Alagoas. Fundo: Jornais e imprensa alagoana: "Ação de gru-
gração de posse - Engenho Boa Esperança/U sina Santana -Porto Calvo -04/10/2005
pos de extermínios" - reportagem do jornal O Diário 19/12/1993
208
trabalhadores rurais e outro? indivíduos, recrudescendo a A gangue do Bira era composta por 21 oficiais militares
atuação política no estado de Alagoas durante as décadas de e civis259, tais como soldados e cabos, incluindo a participação
80 e 90, além de aperfeiçoar as práticas autoritárias dentro da de alguns militares de Pernambuco. A particularidade deste
instituição policial255. grupo estava no "profissionalismo, requintes de perversidade, trai-
Um dos braços desta gangue estava no sertão alagoano ções e tantas outras crueldades praticadas"™ pelos membros da
representado pelo prefeito de Major Isidoro conhecido corno quadrilha de seus crimes cometidos na zona rural de Alagoas:
'Zé Miguel', considerado o maior articulador de Cavalcante Movo Lino, Campestre, Jundiá, Jacuípe e imediações. Dentre
no sertão. O prefeito de Major Isidoro ficaria conhecido por as ações estão listadas: esquarteja mento das vítimas, torturas,
seus crimes de pistolagem, tráfico de armas e envolvimen- uso do terror, ameaça, roubos, assaltos e crimes de pistolagem.
to no crime organizado256. Outra rede criminosa da Gangue Decretado a prisão dos membros da gangue, misteirosamente
Fardada estava na Mata Norte e Litoral alagoano. Podemos somem de Maceió os militares Felizardo dos Santos (Cicão),
perceber que a quadrilha do Cavalcante dividia-se em várias Gabriel e Everaldo Pereira. Foragidos por mais de 18 anos re-
redes criminosas de subgrupos locais sob o seu comando, e aparecem novamente no cenário de Alagoas depois de presos
que atuavam de maneira articulada em diversos locais do es- em São Paulo, capita!2". Na proporção de tais crimes o coman-
tado de Alagoas, desde o sertão até a Mata Norte, Maceió, do da polícia militar de Alagoas foi caracterizado por ser "o
Porto Calvo, Pindoba, Paripueira, e outros. principal promotor e executor da violência no estado" (MA-
A 'Gangue do B ira', era a grande rede de poder do JELLA, 2006, p. 22) sob a ação das torturas, dos homicídios e do
Coronel Cavalcante na Mata Norte, ficando conhecida pe- terror praticado pelos policiais militares. Pois, "dos 173 assas-
los muitos assassinatos de trabalhadores rurais na região do sinatos regrisírados pela imprensa alagoana em 1974, primeiro
Novo Lino e Campestre na Mata Norte de Alagoas durante ano do governo Suruagy, pelo menos um quinto resuitou do
quase dez anos257. Entre os policiais envolvidos destacam-se: envolvimento de policiais da secretaria de segurança".262
o ex-Tenente coronel Manoel Francisco Cavalcante, conhe- A ação da Gangue Fardada só iria ter fim com a pri-
cido como 'Coronel Cavalcante' {líder do grupo), o tenente são do Coronel Cavalcante e de seus irmãos o major Adelmo
Silva Filho, o cabo Cicero Felizardo (Cicão), o cabo Everaldo Cavalcante e o soldado Marcos Cavalcante em 19982"3. Neste
Pimentel, o cabo Daniel de Oliveira, o cabo Gabriel, os solda-
Ano: 1998. R: 93.
dos militares: Ubirajara José da Silva, conhecido como 'Bira',
259.Tribunal de Justiça de Alagoas. Comarca de Colónia Leopoldina. Processo judicial.
Nal e Laudenor25S. Ano: 1998. P.: 93.
26G.Idem.P.42.Ano:1993.
261 .http://www.alagoas24horas.com.br/781o97/prn-da-gangue-fardada-ficara-preso-
255.Tribuna de Alagoas, 07 de fevereiro de 1998. N. 447. P. C 4. -na-pf/. Acessado em 20 de outubro de 2015.
256.Tribuna de Alagoas, 13 de fevereiro de 1998. P. 10. 262.Tribuna de Alagoas. Suplemento: Alagoas terra da morte. Maceió, 1982. APUD:
257.Arquivo Eclesiástico de Alagoas: CPT de Alagoas - Fundo documental: pasta MAJELLA, G. Execuções Sumárias e Grupos de Extermínio em Alagoas. Edufal:
dos relatórios de atividades, ano: 1993-1996. Maceió, 2006. P.: 58.
258.Tribunal de Justiça de Alagoas. Comarca de Colónia Leopoldina. Processo judicial. 2ó3.Jornal Tribuna de Alagoas, 17 de janeiro de 1998. N. 429. P.12.
210
mesmo ano vários cemitério? clandestinos foram descobert O 'íiribitus'2''8 des>a prática autoritária, aprimorada
no estado de Alagoas, usados como 'queima de arquivo' nei Coronel Cavalcante, ficaria intatacto no aparelho militar
t
quadrilha 2 6 4 : s,,OIno experiência histórica recorrente. Um processo de cor-
264. Jornal Tribuna de Alagoas, 07 de feveiro de 1998. N. 447. P. 12; O Jornal, 28 de feve-
reiro de 1998. N. 1039. R: 01. 268.Ver BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Berrrand Brasil, 2001.
265.MAJELLA, G. Execuções Sumárias e Grupos de Extermínio em Alagoas. Eduía! 269.hrrp://www.me!homoticia.com.br/indev/?head=noticia.mht&node=mn55293. Aces-
Maceió, 2006. P.: 40 sado em 20 de outubro de 2015.
266-Jornal Tribuna de Alagoas, 07 de fevereiro de 1998. N. 447. P. C 12. 270.CÍ.: Jornal: http://cadaminuto.com.br. Data: 26/06/2011. Acessado: 30/10/2014.
267.Jornal Tribuna de Alagoas, 17 de janeiro de 1998. P, 12; Jornal 'O Jornal', 15dejariei- 271.http://gazetaweb.globo.com/gazetadealagoas/noticia.php?c=224559. Acessado em
ro de 1998. N. 1003. P.08. 21 de outubro de 2015.
Campestre, J o a q u i m tornes e Major Isidoro são considera- reduzindo a instituição policial a uni instrumento bruto das
das como 'zonas quentes', onde a maioria dos assassinatos elites políticas criminosas. Neste sentido, Alagoas reduz os
foram encomendados contra os trabalhadores rurais e a níveis de mobilização social pela ausência de oposição e dos
população pobre do local, jovens e trabalhadores, durante espaços de contenção política. As gangues militares são par-
as décadas de 80 e 90. Estas atividades criminosas foram tes vitais dessa engenharia de poder sistemática na conserva-
relatadas pela CPT de Alagoas272. Entretanto, a formação ção deste ethos 'autoritário alagoano'.
da violência no estado não advém apenas de uma reali-
dade sócio- económica, que caracteriza Alagoas como um Conclusão.
dos estados rnais pobres do país. Uma pobreza que não é
apenas económica. O uso de uma violência sistematizada, visível corno
A estrutura agrária e a política autoritária fomentam a experiência histórica pela prática do terror, e que pode ser
concentração do desenvolvimento económico apenas ao âm- identificada pelas gangues militares estão adequadas à di-
bito do interesse sucro-alcooleiro das 20 famílias usineiras do nâmica de uma estrutura de dominação autoritária, opor-
estado, reduzindo as margens da sobrevivência da população tunizando o surgimento de 'condutas criminais' no meio
pobre local. Com isto, Alagoas ainda permanece como um militar. Estas gangues militares, portanto, seriam mani-
dos maiores importadores de alimentos necessários ao seu festações sociais derivadas da permanência das relações
abastecimento interno, com alto índice de analfabetismo e sociais de dominação inseridas na dinâmica da domina-
subnutrição, que caracteriza a população pobre. Ainda, ção autoritária alagoana, calcada no mandonismo local, na
formação de redes clientelares e na troca de favores entre a
A combinação de violência política e policial tem
sido utilizada pelas elites para conseguir a manu-
política local e os militares (coronéis).
tenção do controle do poder político, fragilízando, Esta estrutura de poder autoritário ainda permanece
portanto, as instituições do Estado, quando não numa realidade contemporânea que lhe é completamen-
subjugando-as a determinações de governos auto-
ritários.^
te favorável no estado. Donde se deduz que as investidas
de modernização política para o estado foram superficiais
Neste ambiente, as relações sociais de dominação, ex- ou ausentes. As gangues militares são, na verdade, o ter-
pressão do poder das elites locais pela manutenção de uma mómetro do vigor de uma dominação por parte das elites
cultura política autoritária, condiciona Alagoas a um lugar agrárias, cuja operacionalidade política autoritária ainda
de manifestações extremas e perversas da agência de polícia. teima em permanecer no mundo contemporâneo.
Neste sentido, a perpetuação desta prática política
autoritária corresponde a um modo de viver, um ideário de
272. Arquivo Eclesiástico de Alagoas: CPT de Alagoas - Fundo documental: pasta mundo conflitante com o novo, que tenta manter tudo ao seu
dos relatórios de atividades, ano: 1993-1996.
273.MAJELLA, G. Op.Cit. p.: 21. redor num espectro temporal imóvel, impedindo os avanços
•j
214
1.3. Fontes eclesiásticas: 'í Brasil: balanço e perspectivas". In.: Revista Topoi, Rio de
janeiro, v. 14, n 9 26, 2013, pp: 162-173.
Arquivo eclesiástico de Alagoas. Fundo C PT. Relatórios.
BURT, jo-Marie. Political violence and the authoritarian
1.4. Fontes policiais: state in Peru. Ingland, 2008.
Polícia Militar de Alagoas. Centro de gerenciamento de CABRAL, Luiz António Palmeira. Planos de
Crises. Relatórios sobre os processos de reintegração de Desenvolvimento de Alagoas: 1960-2000. Maceió: Edufal,
posse. 2005.
MAJELLA, Geraldo. Execuções sumárias e Grupos de ; vVIARDA, H. Authoritarianism and corporatism in Latin
extermínio em Alagoas (1975-1998). Maceió: Edufal, 2006 - America-Revisted. Florida, 2004.
Introdução
um deslize dele próprio ou indisciplina em suas proteções A maior tragédia que o povoado do Capim presenciou
conseguidas através dos rezadores com suas mágicas, jejuns até então ocorreu em 1935, era terça-feira (dia de feira no po-
e sortilégios poderia sitiá-lo numa situação limite, de morte.'so voado) e os Vieira, uma das famílias mais influentes do sertão
Floro nasceu na fazenda Boa Vista, zona rural de um alagoano, provocou um tiroteio no centro do local, o prelo
povoado à época pertencente ao município de Santana do acabou com um carro-de-boi carregando os corpos dos pis-
Ipanema, chamado Capim, que somente foi desmembrado e toleiros Temazinho Nunes, Neco Paraibano e Pedro Firmino.
tomou c título de cidade em 1959. Pequeno torrão que não Os cadáveres foram inumados, diga-se jogados, numa valeta
somava 8.000 habitantes. A fazenda Boa Vista era um conglo- qualquer por detrás da rua principal do vilarejo. Os pistolei-
merado que casas humildes, o é ainda hoje, raramente cons- ros eram inimigos de Enéias Vieira de Oliveira, homem tão
truídas em alvenaria, maioria das residências dando-se prefe- temido quanto odiado em todo o município de Santana do
rência à taipa. Ao menos na geração a que nos referimos, não Ipanema. Conta-se que o homem era envolto em tantas intri-
houve nenhum Novaes importante, gente muito humilde. O gas que todos os domingos em que se trajava para ir à missa
desafortunado Ulisses Gomes Novaes era um machante, tra- dominical, na sede do município ou nos povoados, na segun-
balhador que operava matando e curtindo as carnes dos bovi- da-feira aparecia um morto. 2S7 E foi com essa família que Floro
nos e caprinos para nos dias de feira no Capim (que ocorriam se dispôs na briga, e não se acovardou um só momento, assim
às terças) ir vende-las e assim sustentar a família. Seus filhos contam-se em relatos de conhecidos e dos jornais. Os Vieira
Floro, João, António e Maurício ainda eram muito jovens para mandavam e desmandavam no município e naturalmente so-
poderem ajudar na renda familiar. friam represálias cotidianamente, todavia lidavam bem com
Claro que por ser um habitue das feiras e ser de uma todas elas. Não esperavam que seus poderes políticos, econó-
família humilde, porém respeitada pela hombridade, Ulisses micos e bélicos seriam desafiados por um menino franzino de
invariavelmente teria de conhecer muita gente, pobre e rica, 18 anos de idade, prometendo vingança à fidalguia enquanto
de influência ou não, inclusive a pessoa de Enéias Vieira, fu- olhava a massa cefálica do seu pai ser lambida por cachorros
turo arqui-inimigo de Floro, era padrinho de um dos filhos e pelas moscas varejeiras no meio de uma estrada enquanto
de dona Guiomar Novaes, Maurício. Ironicamente foi este estava indo cumprir sua religiosa tarefa de trazer o pão de
fato de conhecer toda a gente e ser também conhecido que lhe cada dia para casa.
danou, e transformou algo cotidiano numa rixa que duraria Por volta de novembro de 1951, Ediberto Vieira, cunha-
quase 20 anos. do de Enéias, segredou a Ulisses que pretendia mandar ma-
tar Manoel Roberto, moço afamado como encrenqueiro na
280."Contudo, a invulnerabilidade do bandido não é apenas simbólica. Quase invaria- região, e que não havia nada no mundo que lhe impedisse
velmente ela se deve a artes mágicas, o que reflete o interesse benevolente das divin-
dades em suas atividades. Os bandidos do sul da Itália portavam amuletos bentos
pelo papa ou pelo rei, e consideravam-se sob a proteção da virgem; os do sul do
Peru apelavam para nossa senhora de Louren, e os do Nordeste brasileiro para os 281.OLIVEIRA, Jorge. Uma história do cangaço. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3 de
beatos locais. HOBSBAWM, Eric. Bandidos. São Paulo: Paz e Terra, 2015. p. 70,7". março de 1971. Anexo, p. 2 e 3.
228
de cumprir o ato. Ulisses, pai de Floro, próximo como era de ricos, Floco, mesmo desarmado., levando consigo apenas um
ambos, do feroz e do jurado de morte, teve pena de Manoel punhal de cano longo, os impediu.
Roberto e aconselhou-lhe a passar um tempo fora do lugar Ao repórter do Jornal do Commercio, aproximada-
até a raiva de Ediberto arrefecer um pouco. Nisso, Manoel mente um ano antes da emboscada que seria vítima na caçada
Roberto em um rompante de desespero, quem sabe se por de veados, Fioro ainda recordava pesaroso: "Frarn mais ou
recusar-se a fugir e abandonar sua fazenda, ou quiçá imagi- menos sete e meia ou oito horas da manhã de uma terça-feira
nando não ter nem mais tempo de fugir, rumou a Santana que nunca mais vou esquecer, dia 4 de dezembro de 1951.,
para falar com o delegado, chamado Caroula, em busca de quando nós todos já pensávamos no Natal, nas festas de fim
proteção do Estado: de ano". Diz que soube do ocorrido por ter chegado um mo-
rador a contar-lhe de pronto: "-Floro, seu pai morreu". 2S3
O delegado prometeu assistência, todavia chamou
para prestar depoimentos a família Vieira, Ulisses e No prefácio da obra de Clerisvaldo Chagas Floro No-
Manoel. vais, herói ou bandido?, o também escritor António Machado
Os Vieira, como era de esperar-se, tudo negaram:
rememora que quando criança ainda lembra de Floro falando
"-Isto é safadeza de Ulisses. Esse cabra tá mentindo,
seu Caroula!".2K ao seu pai, que também se chamava Floro: "-Xará, quando eu
apanhei os miolos de meu pai, espalhados pelo chão, não cho-
Pois bem, oito dias depois deste encontro na delegacia rei, mas senti dentro de mim uma revolta." Sobre o caráter de
de Santana, Ulisses é assassinado quando no caminho da sua seu pai numa entrevista ao Jornal do commercio disse floro:
fazenda para a feira de Olivença, bem como também é morto "-Até dos bichos ele tinha pena. Sua arma era o machado de
15 dias após o próprio Manoel Roberto. abater os bois. Quando a terra cobriu meu pai, eu jurei que
Mataram o senhor Ulisses de tocaia, em uma fina tri- aquilo não ficaria assim. Eu preferia não viver nem mais um
lha ao lado de uma umburana. Deram vários tiros de rifle em minuto se não pudesse vinga-lo".
sua cabeça e depois a esmagaram com coronhadas. Crânio e Mais um dos crimes que, segundo o jornal Correio da
face ficaram tão desfigurados que, segundo o próprio Floro, Manhã, Enéias foi acusado. Foi preso apenas uma vez, mas
só reconhecera o pai pelas roupas e pelas mãos. Até mesmo por motivo menor comparado aos de assassinato, logo depois
os oito contos de reis que o velho levava no bolso, tomararn- solto pela influência de Adaildo Nepomuceno, ex-prefeito de
-Ihe. Floro pegou o lenço vermelho que o pai sempre levava Santana do Ipanema. Dentre os crimes que o cartório de Santa-
consigo para assoar o nariz e começou a recolher os miolos do na alia a Enéias estão os de, em 1951 mandar executar Ulisses
pai enquanto chegava gente mais e mais, e entre essa gente o Gomes Novaes; logo depois o fazendeiro Manoel Roberto em
delegado Zé Viana junto com o soldado Zé Darca; queriam Olho d'Água das Flores -AL; o de emboscar e atingir com cin-
levar o corpo à Major Isidoro - AL, para os exames cadavé-
2S3.CALHE1KOS, Vladimir Maia. De editor-gcral a repórter no sertão. Jornal do
282.1bidem, p. 3. Commercio, Recife, outubro de 1970.
ia 18 d f feve- a pessoa e mata-se oi^'í varãoiõesj próximo*s) teoricamente
reiro de 1965 mandar matar na Fazenda Nova o então vereador predisposto à vingança e. tem até aqueles que saem para fa-
José Nogueira, usando o pistoleiro Adeildo Lourcnço Fontana zer algum tipo de treinamento de combate e auto defesa.-^
onde no lugar morreram outros pistoleiros que prestavam ser- Enquanto isso dona Guiomar a dizer: "-Enquanto eu for viva,
viços ao primeiro: José Terto e Cicero Cazuza; somente em 26 meu filho Floro não há de ser morto por Enéias. Só sossegarei
de abril de 1965, foi Enéias preso pela Polícia Federal inquirido quando ver o corpo do desgraçado indo para cova".233 Como
por ter em suas mãos armas privativas do Exército Brasileiro. verão mais à frente talvez a emboscada que quase 20 anos
Depois de solto, o que aconteceu muito rapidamente, respon- depois matou Floro, não tenha vindo da família Vieira (nes-
deu o inquerido na Sétima Região Militar. ta época Enéias já havia sido assassinado por um Novaes),
Depois de todo o rebuliço da morte de Ulisses, toda a mas sim por problemas outros, criados na fazenda Mamoei-
gente ainda chocados de como um homem tão honrado e tão ro, município de Itaíba - PE, derradeiro retiro de um Floro já
à parte das brigas políticas que ali ocorriam poderia ter sido vingado e tranquilo à respeito dos antigos inimigos.
morto daquela forma e por motivo tão tacanho, de uma cruel- Regressando ao Capim, Floro continua trabalhando
dade supérflua. Seguiu-se os protocolos imediatos de lobuto, na roça do seu pai, mas percebeu que continuando ali todos
o corpo foi levado e enterrado no cemitério da cidade alagoa- correriam perigo, então sua família foi para Arapiraca - AL,
na de Jacaré dos Homens. Família e cidade chorosas ainda, e e ele procurou emprego no povoado de Carneiros, também
os Vieira espalhando por toda a cidade que tinham sido eíes pertencente a Santana. Vendeu uma vaca por cinco contos de
mesmos os mandantes e que de nada adiantaria o choro. reis e comprou um revólver. Diz-se que treinava tiro todos os
Cerca de l mês após o ocorrido, Floro sai momentanea- domingos mirando em caixas de fósforo e conseguia acertar
mente para São Paulo, se queda lá vinte e dois dias trabalhan- a cabeça de uma catenga (lagartixa) com um rifle a 30 metros
do em fazenda ou sabe-se lá o que maquinando, enquanto de distância. Mas só descansou nessa empreitada de autodis-
isso não para de receber cartas de sua mãe Guiomar a dizer-se ciplina quando conseguiu cortar um cigarro com um revolver
constantemente ameaçada por homens de Enéias e que passa- de calibre 45. Era canhoto, mas atirava com as duas mãos e
va fome. Floro volta de São Paulo. É importante que se fale a era capaz de acertar o mesmo alvo ao mesmo tempo. Apesar
respeito disto, do costume de um vingador no sertão se auto disso tudo ainda não se considerava um grande atirador, di-
exilar durante certo tempo logo após o ato que o tornará no zia sempre haver melhores que ele. Suas armas eram nomea-
futuro vingador de fato. Alguns o fazem para reflexão e pla- das: a Smith e Wesson, 38, era a "Salamanta" (uma espécie de
nejamento da vingança, sempre a manter contato com o seu
torrão natal a fim de poder escrevinhar a lista de acusados i 284."O exílio voluntário dos parentes da própria vítima do atentado, que desse modo
se furtam às obrigações da vingança, na falta de maiores detalhes só se explica pela
aos quais vai se vingar, outros por medo de morte pelos mes- impossibilidade material de exercer a represália,[...]" PINTO, Luiz de Aguiar Costa
Lutas de família no Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1980. p. 53
mo que mataram seu ente, pois como o costume de vingança 285.GONÇALVES, Roberto. Dona Guiomar, Mãe de Floro: vida de lutas e sofrimentos.
é endémico no sertão - e tem costumes próprios -, mata-se Gazeta de Alagoas, Maceió, 9 de março de 1996.
cobra m u i t o c o m u m no Sertão), o mosquetão era "Alecrim" i Em 1957, Enéij> tntfio Je.lesadc do Capim, contratos:
e o inseparável revolver 45 era ''Cobra Preta" que di/ia ser a alguns pistoleiros para nutar Floro, [osé Veridiano jacinto,
melhor arma do mundo. Entre as armas brancas, não se sepa- irmão de João José, aquela p r i m e i r a vítima; José Izídio e mais
rava da sua faca de 12 polegadas e de um facão. í um desconhecido na região. Estava tudo marcado para o dia
Já aí Floro tinha sua lista, sabia que João José e seu ir- . 27 de julho do mesmo ano, numa quarta-feira, porém na ter-
mão António Jacinto (Cintinho), com mais dois pistoleiros ti- ra-feira Floro foi avisado e se preparou, escolheu um bom
nham sido os executores do crime, aliás sua lista continuava' lugar e emboscou os capangas, morreram os dois primeiros,
Enéias Vieira de Oliveira; seu irmão João Vieira de Oliveira cada um com dois tiros na testa, o desconhecido conseguiu
o Janjão; Ediberto Barros, cunhado de Enéias e à época vere- i fugir caatinga adentro. Floro ainda teve tempo de interrogar
ador de Anadia, outra cidade alagoana; Telesso, que já dizia Izídio e descobrir que de fato haviam sido contratados por
aos quatro cantos que havia fornecido as armas para o crime; Enéias, e ainda que havia recebido de José Jacinto trinta con-
e José Izídío, mais Artur, que estavam envolvidos também de tos para cumprir a missão. Mais dois riscados da lista.
forma intelectual no crime. Um outro Vieira, chamado António, poderoso dono da
Por volta de dez meses após o assassinato de Ulisses, em fazenda Massapé e de um ramo diferente da família, muito
5 de outubro de 1952, Floro começa a passar os riscos em sua respeitado pela retidão e pela pouca afeição às rixas, tentou
lista. Em Major Isidoro - AL, há um povoado chamado Cape- fazer as pazes - ao menos momentaneamente - entre os Viei-
línha e Floro através de uma rede de informações que já tinha ra e o Novaes. A reunião entre as duas partes aconteceu na
criado para os seus propósitos de vingança soube que o João sua própria fazenda, Floro compareceu, mas Enéias mandou
José, um dos pistoleiros que estavam presentes na morte do o pai, Manuel Vieira. A contenda até que teve urna pausa de
seu pai estava lá, procurou-o nas cercanias e o viu entrando aproximadamente um ano, quando o próprio António Vieira
numa mercearia. A cena deve ter sido interessante, entra Floro, aparece morto de forma misteriosa. Bandeira branca em bai-
menino de 19 anos, muito magro em um semblante ao mesmo xo mastro, recomeça a briga.
tempo zangado e frio, a dizer para todos os presentes, incluin- Não demorou muito a jeito de Enéias preparar mais
do urn delegado que lá estava proseando, a João José: "-Prepara um ardil para Floro. Contratou um cigano afamado chama-
seu caixão. Você nunca mais mata pai de homem". João José ainda do Daniel, que costumava viver e montar acampamentos no
tentou sacar o revólver, mas Floro mais rápido lhe acertou dois sítio Pantas, município de Itaíba - PE, zona onde nesta época
tiros na testa. O finado caiu nos braços do delegado. Logo de- Floro já vivia, por quinze contos de reis. Mais uma vez ou-
pois saiu correndo se livrando das balas das armas de todos tro capanga de Enéias morto, e mais uma vez com dois tiros
que ali estavam. "-Quando corri, ouvi mais de 30 disparos. Até na testa. Acredito que já podemos tomar esse modo de matar
o delegado, com um mosquetão, errou o alvo".25" "do vingador das Alagoas" como um modus operandi, quase
uma demonstração de soberba de excelência :T3 [ de como fora poucas aéVacijs :.]ti\^.
Pouco antes dííso, na (azenda Mamoeiro, recebia Floro Dona Isaura era viúva e "inha uma filha chamada Ma-
o pistoleiro José A l vê? com a proposição de que pela sua òti- ria das Graças, essa escudava em G n r a n h u n s - PH, no famoso
ma pontaria e perícia receberia 200 contos do próprio Enéias colégio católico para internas, o Santa Sofia. Dona Isauro teria
para matar um desafeto. Floro não a n u i u e disse que jamais provavelmente outro filho mais com Floro alem de fc'.zequiel.
mataria por dinheiro. Depois veio a descobrir que aquilo nada se não fosse um evento que veio a perturbar a tranquilidade
mais era do que uma a r m a d i l h a , se tivesse ido junto com José que já durava meses.
Aives, teria sido pego por Enéias, o cigano Daniel e Fdiberto Como já foi dito alguns parágrafos acima, Floro pos-
assassinado e posto numa barraca em feira livre na Olivenca suía um bando permanente muito parco (dois ou três camara-
para que todos soubessem que ele era pistoleiro de aluguel, das, no máximo), ainda que sempre estivesse acompanhado
pondo abaixo todo o mito que já se tinha criado sobre o "ban- de pessoas que cuidavam-lhe de proteger e ajudar pelos mais
dido sem máculas". variados motivos também já supracitados. Em 1962 albergou
Abreviando mais nomes da lista, neste entremeio, dois em sua residência um pistoleiro baiano chamado António de
autores intelectuais do crime que ceifou a vida do Senhor Diná. Mas, no dia 5 de janeiro viu sua casa ser cercada por
Ulisses foram mortos por Floro, e claro, com dois tiros na tes- mais de trinta policiais vindo da Bahia, e como aquela ética
ta. João Vieira de Oliveira, em 16 de novembro de 1960 e Edi- de prender bandido afamado e mandar para o judiciário era
berto Vieira Barros em 6 de fevereiro de 1961. irreal naquelas paragens, tais agentes estavam preparados
Houve um pequeno período de paz, no qual Floro ca- para prender ou matar o Diná e quem quer que ousasse se
sou-se - malgrado não sabermos ao certo a data do casório, interpor em defende-lo, em especial Floro que já era um dos
mas julgando que numa publicação de 1971 2S7 ofilho do casal, bandidos mais procurados do Brasil. Houve um longuíssimo
Ezequiel já contava os 11 anos, podemos supor que desposa- tiroteio e Dona Isaura foi baleada numa das coxas e um dos
ram no início da década de 60 - e vivia com sua esposa Dona projéteis atravessou-lhe a barriga, matando um filho do casal
Isaura e seu único herdeiro na fazenda Mamoeiro, numa casa que faltava pouco para ver a luz. Isaura ainda andou de mu-
rusticamente bela, toda construída em tijolos de barro verme- letas durante vários meses, e ainda hoje, quando se fala dela
lho sem nenhum revestimento externo, essa casa encontra-se na região ,mencionam esse seu traço que a acompanhou até a
hoje em ruínas, mas os que se aventurarem à adentrar a caa- morte, ser coxa de uma das pernas, independentemente de a
tinga fechada nas imediações do Mamoeiro, saindo do meio partir do ocorrido ela passar a adaptar todos os seus calçados
do mato e como que por magica encontrarem uma clareira de com um pedaço de borracha ou couro volumoso.
relevo plano, ainda a poderão ver e ter um linda impressão Volvendo a narrativa ao povoado do Capim, a par-
tir de 1959 - que junto com outros sete povoados já se tinha
emancipado de Santana do Ipanema- agora município cha-
287.GRANJA, Paulo. Floro Xovaes, o último vingador Gazeta de Alagoas, Maceió, 29
de agosto de 1975. Opinião. mado Olivenca, a cidade em inícios da década de 70 tinha
cerca de S.35b h a b i t a n í u á , teve uni decréscimo cie "].M)0 habi- tío passo seguinte, --ao as armas.'" O terceiro prefeito foi José
tantes aproximadamente comparado a 10 anos antes da época Maria de Menezes Neto., conhecido como Zé Duca, e o quarto
citada, J 971, tomando como fonte o jornal Correio da Manha representante do executivo na cidade foi a Senhora Maria de
O amedrontamento de pessoas, o ré ver t i mento de capital de LOurdes Cavalcante, que fora viúva do primeiro prefeito.
produção dos detentores da terra e de produção económica No Mamoeiro, em 1962, Floro chegou a um ponto tão
sendo revertido para fins bélicos e a própria taxa de mortali- alto de provocar, usando um termo de eufemismo, os pode-
dade/assassinatos altíssimas podem ser explicações possíveis rosos, que criou-se uma operação da PM chamada Caça Flo-
para essa emigração/desaparecimento da população. Na mes- ro. Com o comando do Sargento Rainere, cinco soldados se
ma revista supracitada Floro desabafa que governo não está embrenharam na caatinga tentando encontrar o famigerado.
vendo de fato quem é o prefeito de Olivença: Enéias, aproveitando o ensejo contratou um pistoleiro, que
também era Sargento de polícia, um tal de Silva, mas real-
Enéias é um pistoleiro, um assassino e tem polícia
para servi-lo. O sargento Silva e o Barros f a/iam
mente conhecido como "Cavalo Batizado" que, por sua vez
absurdos na região, em nome do Governo. Ainda liderou 15 soldados, e foram-se todos à perseguição de Floro
hoje, o Enéias anda pelas ruas, pelas feiras, com Gomes. Floro catingueiro como era, logo se pôs em fuga com
um jipe cheio de soldados com metralhadoras rara
amedrontar o povo. O homem causa nojo, ninsuém a família, e a operação se mostrou completamente inútil. Tal-
gosta dele em Alagoas. Sei muito bem que a polícia vez por muita falta de perícia dos oficiais ao tentarem pegar
não aceita suas manobras, mas o ajudam por ordem
Floro em um local onde tudo era feito para evitar estes ti-
superior. Não posso dizer, no entanto, que ele seja
ladrão. Apesar de já me haver chamado disf-o, sem pos de embocadas: várias rotas de fuga, locais próximos com
provar, eu não o ofendo dessa maneira.2*8 suprimentos, esconderijos profundos... tudo isso Floro tinha
a sua disposição no Mamoeiro. Nesse dia contam que Floro
O primeiro prefeito da cidade, recém emancipada, foi encontrou na estrada uma cobra, matou-a a tiros, alimentou
nomeado pelo então Governador Muniz Falcão (1915-1966) e seus companheiros com a carne, e a banha guardou para pre-
se chamava Gilberto de Oliveira Cavalcante, foi assassinado. parar unguentos para casos de ferimentos leves. Quando o
Levando-se em conta que o segundo prefeito foi o próprio ferimento era de baia ele usava raspa de quixabeira, planta
Enéias Vieira, não precisamos pensar muito sobre a motivação muito comum na região, ou quando alguém do seu grupo era
ou o mandante do assassínio do primeiro, sabendo-se com já ofendido (picado) por cobra peçonhenta, era importante sem-
sabemos das ambições que fazia muito Enéias tinha em domi- pre ter "pedra de veado" (parte arredondada da bílis do ani-
nar a região. Ter o poder do voto é somente o primeiro passo
para se conseguir dominar, de forma legítima; o segundo, que
289.Costa Pinto parafraseia Aires de casal (1754-1321): "'A recíproca oposição entre
duas famílias, querendo cada uma ocupar exclusivamente todos os cargos da Repú-
blica, pô-las no campo di? batalha, cada uma na frente de seu exército de estúpidos
288. OLIVEIRA, Jorge. Um.lhisíória do cangaço. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3 de partidaristas."' PINTO, I.uizde Aguiar Costa. Lutas de família no Brasil. São Paulo;
março de 1971. Anexo, p 2. Ed. Nacional, 1980. p. 43
mal), para colocar no locai da picada e tentar s "K".:; r o ferido e dos Albuquerque M ara n h ,.10 onde na>cci_; iirr dos i^n n oíús
Perto de 1965 houve a primeira e única prisão de Floro "alagoanos", o ilustre Lourenço Tennrío do Albuquerque Ma-
Gomes, acontecida sob vias, modos e desfecho absolutamente ranhão ou simplesmente Barão de -Malaia. Enfim, o Quintella
interessantes, como bem atestam uma matéria do extinto jornal era um homem altamente respeitável por todos, meliantes ou
Tribuna de Alagoas, publicada em 31 de janeiro de 1999, pe|0 governadores, mas o que em especial lhe dava mais prestígio
jornalista Roberto Vilanova e outra escrita pelo repórter Leio era a fama de ser homem de palavra imutável, uma frase do
Macena em 3 de janeiro de 2010 para o Gazeta de Alagoas.-'*' Dr. Rubens servia de documento carimbado, e foi justamente
Valderedo (lugar-tenente de Floro), nascido município por isso que o vingador Valderedo resolveu entregar-se a ele
de Poço das Trincheiras - AL, à época lugar mais violento do mediante acordo. Mas eis onde Floro entra nessa história...
Estado, resolveu entregar-se. As motivações, através dos es- Bem, Valderedo manda uma carta lá da Várzea da
tudos de Costa Pinto de como findar uma rixa de família, po- Dona Joana (zona rural da cidade onde nascera) para o Dr.
demos interpretar como tentativa de cessar uma situação de Rubens dizendo que se entregaria se fosse ele julgado em sua
perigo constante à qual passava, falta de dinheiro para conti- terra natal e se Rubens viesse sozinho o prender. Rubens res-
nuar sua vingança, possibilidade de ser absolvido pela justiça pondeu-lhe lacónico que aceitava o trato, porém, iria com o
e poder sentir-se homem livre novamente, dentre outras. E motorista do Jipe que neste tempo era o veículo padrão das
sabia que feita da maneira certa essa rendição poderia ser-lhe polícias interioranas. Trato feito. Encontrar-se-iam num local
vantajosa. O trato foi feito com Rubens Quintella. próximo à Santana do Ipanema. Segue-se o diálogo segundo
Rubens Quintella, homem sertanejo que conhecia a re- o Tribuna de Alagoas:
gião como ninguém, diríamos um misto de soldado de von- Quintella diegou ao local marcado para o encontro,
tante com Estadista, que aliava a si uma perícia invejável de abrindo um cenário regional que marcaria, no final
da década de 1960, a trégua das brigas e das mortes
milico e um traquejo político que lhe dava acesso a todos os ga-
por vingança em AJagoas. O delegado se aproximou
binetes dos poderes do Estado. Era delegado e foi o criador da cauteloso, e entre xiques-xiques e mandacarus, uma
Polinter, braço da polícia civil nos interiores e zonas rurais de voz quebrou o silêncio:
-"Doutor Rubens?"
Alagoas e que varava os sertões em busca de ladrões de gado
-"Pronto. Que é que há? "
dando cabo de inumeráveis foras da lei. Era casado com Tere- -"Espere aí".
sinha Lucena, filha de criação de um dos mais importantes e
influentes "coronéis" que o sertão pernambucano viu no sécu- Surge Valderedo do meio dos alastrados e juazeiros,
lo XX, o Dr. Audálio Tenório de Albuquerque, dono da Fazen- estatura mediana, chapéu de vaqueiro, armado, porém em
da Nova, antigo rincão interiorano dos Tenório Albuquerque gestos pacíficos. Finalmente o "pistoleiro" da Várzea iria se
entregar. Não esperava Rubens que próximo a ele, escondido,
290.MACENA, Leio. Quintella: "Um Homem de Palavra"/ O homem que prendeu um estava. Floro, e disposto a também fazer um trato para entre-
dos maiores "pistoleiros" de AJagoas era respeitado, no meio policial e no crimo
por cumprir o que dizia. Gazeta de Alagoas. Maceió, 3 de janeiro de 2010.
gar-se, o mesmo de ser julgado em Santana, onde o corpo de
240
jurados decerto por conhecerem suei história lhe absolveriam ! Oli^enca e que cinciava a contar a quem tivesse om klus para
Rubens aceita o trato e leva o dois no Jipe, não os alternou j escutar que tora ele me>mo que havia fornecido as u r n u r que
Ao chegarem à Santana, foram envolvidos por toda a garng j mataram Ulisses, e "que o molecote do í ; loro não viesse a ter-
de policiais civis, federais, militares, pasmos com o ocorrido í -lhe, afora teria o mesmo destino do pai''. Não se sabe por que
e questionando o delegado em tom de reclamo não ter alge- Floro tanto demorou a ceifar este, que no mais não passava de
mado os acusados. Preciso como sempre foi Rubens "-Fu não um débil comparado aos que já enfrentara durante sua longa
prendi ninguém. Eles que se entregaram".- J: jornada. Enfim o dia chegara, e junto com ele uma dor de ca-
Mas as coisas não aconteceram como havia de se es- j beça em Floro, ou esta antes daquela, enfim... eis como narra
perar, os acusados foram enviados para a prisão ern Maceió \ Correio da Manhã:
t
e de lá, dividindo a mesma cela, esperavam que o "Anjos da *í -Seu Telecio, o senhor tem melhora!?
Morte" (alcunha dada a Rubens pelo ex-Cel. Cavalcante num O homem não teve nem ternpo de responder. Quan-
dos julgamentos na década de 90 quando estava sendo julga- Í do se virou recebeu seis tiros no rosto e caiu morto.
Mas os crimes de Floro estavam chegando ao rim.
do por participar e liderar a "Cangue fardada") cumprisse o
Enéias Vieira era o último a morrer. Cincinto, outro
trato e o ievassem de volta para o interior, para lá serem julga- criminoso de seu pai, foi morto no Rio. O último era
dos. A família Enéias usou de toda sua influência na Capital e Enéias, que com 55 anos batia nos peitos e dizia que
era homem para enfrentar Floro Novaes.
o caso não foi transferido, ali mesmo ficariam eles, e a tomar
de exemplo de outros vingadores/bandidos famosos, dali não Enéias seria morto, mas não por Floro, seu arqui-inimi-
sairiam vivos dadas as penas enormes que receberiam e a go, mas pelo seu irmão, o mais jovem deles, António Gomes
iminência de serem mortos por inimigos dentro de suas celas. Novaes. Não que Floro viesse a se afligir com o acontecido,
Escreve Pedro Jorge no artigo da Gazeta de Alagoas muito pelo contrário, se sentira aliviado da mesma maneira.
que Rubens havia dado a sua palavra ao "pistoleiro" e não Como já havíamos visto em teoria, as rixas de família são to-
a cumprira. O desfecho do caso acontece nos bastidores e é talizantes na participação de membros e agregados, não é de
confirmado por policiais e figuras da imprensa à época. Ru- um apenas a tarefa de corrigir os agravos feitos. Não custa-nos
bens Quintella teria facilitado a fuga de Foro Novaes e crava- recordar o que Costa Pinto diz à respeito disso: "A vingança
do definitivamente seu conceito entre a "bandidagem", e na privada é, antes de mais nada, uma violência coletiva que põe
polícia, como um "Homem de Palavra". frente a frente grupos, e não indivíduos" (PINTO, 1980, p. 5.)
Valderedo também fugiu com Floro, e ambos voltaram Mais uma vez recorrendo ao Correio da Manhã, segue-
para terminar o que haviam começado. Para Floro ainda falta- -se como ocorreu a morte de Enéias. Pouco menos de um ano
vam alguns, principalmente o odiado Enéias Vieira. antes da emboscada que mataria Floro, um jovem de apenas
Um tal de Telecio, farmacêutico muito afamado em 20 anos iria consumar a vingança. António Gomes Novaes,
sempre incentivado por sua mãe na rixa com os Vieira, disse
291.1bidem. que viu Enéias pela primeira vez, na feira de Arapiraca onde
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a família Novaes, com exceçao de Floro, se radicara. Sua mãe idade, muito choroso por cima do corpo do pai, bradava aos
Dona Guiomar lhe apontara o sujeito e repetiu-lhe algumas transeuntes: "Eu não quero vingança. Quero que as autori-
vezes que aquele fora o mandante do assassinato do seu pai dades dêem segurança a minha família, que pretende vender
Ele guardou aquele semblante na mente, e começou a ma- tudo em Oiivença e ir embora. Não quero saber de matança."^3
quinar, corno poderia auxiliar sua família a reconquistar sua Isso que António Vieira faiou é significativo de algu-
honra. Passou a todas as segundas-feiras (dia de feira em Ara- mas maneiras, a primeira é a de ver a poderosa família Vieira
piraca - AL) ir flanar para ver se reencontrava o dito cujo. finalmente amedrontada pelos filhos de um simples machan-
Nessa feira citada onde Guiomar lhe apontara Enéias pela te, que no passado foi brutalmente assassinaram por causa
primeira vez, António contava apenas 16 anos. Por quatro fútil; segundo ver como as rixas de família podem se extin-
anos guardou isso na mente. guir com uma mudança de pensamento geracional intima-
Cerca de oito meses antes do dia em que mataria Enéias, mente influenciado pela educação que tiverem os indivíduos
vendeu dois rolos de fumo, foi a feira do passarinho de Arapi- que nascerem após o início da peleja.29"1 Muito provavelmen-
raca e comprou um revólver. Esperou a oportunidade. te esse António Vieira não tivera uma educação à sertaneja,
Soube por informantes que Enéias estaria na terça-feira tendo estudado nos melhores colégios da Capital e absolvido
na feira de Oiivença. Era terça-feira, 22 de setembro de 1970: uma noção de lei que colocou para trás o costume jurisnatural
de vingança privada como algo legítimo, e por último esse
Terça-feira pela manhã coloquei o revólver na cintu-
ra e fui procura Enéias. Peguei um caminhão, passei
discurso dele vem a cooperar com o que sertanejos da região
por Santana do Ipanema e desci numa estrada pró- já têm certeza, a emboscada que vitimou Floro lá nas proxi-
xima à Oiivença. A primeira cara que vi foi a dele. midades da fazenda Mamoeiro, no riacho do Mel, não partiu
Fiquei calmo, não podia errar o alvo. Era chegada
a hora. Em certo momento ele parou e fui me apro- de Alagoas e tampouco da família Vieira.
ximando. Quando cheguei bem pertinho, puxei o Agora a versão dos que moravam em Oiivença e pre-
revólver e disse: "Enéias cabra da peste, vire-se para
senciaram o assassinato de Enéias: logo após prenderem An-
morrer". Quando ele virou acertei o primeiro no pei-
ro. Enquanto me dava as costas e saía em direção a tónio Novaes, o que aconteceu foi uma verdadeira tortura,
sua casa, disparei toda a carga de revólver nas suas aqueles policiais, delegados e toda a grei de oficiais de cole-
costas e só parei quando ele caiu na porta da barbea-
gas/comparsas de Enéias, brutalizaram tanto o jovem Antó-
ria. Corri para fugir e a polícia me pegou. Fui levado
no mesmo jipe que conduzia o corpo do matador do nio que quase não lhes sobraram dentes na boca. O objetivo
rneu pai. Estava cumprida a missão.292 principal era não mais tratar o caso como crime de vingança,
293.1bidem.
Enquanto isso o filho de Enéias, de também 20 anos de
294."O medo ante a violência das retaliações, o enfraquecimento dos laços de família e
de clã, o aparecimento dos neutros no seio da comunidade que se desenvolve, o for-
talecimento da política são fatoces que conduzem ao desaparecimento progressivo
292.GONÇALVES, Roberto. Dono Guiomar, Mae de Floro: vida de lutas e sofrimentL da vingança privada. " PINTO, Luiz de Aguiar Costa. Lutas de família no Brasii.
Gazeta de Alagoas, Maceió, 9 de março de 1996. São Paulo: Ed. Nacional, 1980. p 16.
mas político, insistiram sob tortura que António contessas.se preso, José Porfírio, o coitado do moço do faca levou um tiro
que havia matado Enéias a mando da prefeita da cidade Ma- na boca; em 62 foi atingido, onde morava em Olivença, Rua
ria de Lourdes Cavalcante e do seu marido ex-cabo da PM Belarmino Vieira de Oliveira por um tiro de mosquetão, nas
Braz de Oliveira Souza, por ambições políticas desses dois ci- costas, manteve-se 30 dias internado na casa de saúde São Se-
tados. Aqueles que quiserem saber mais informações sobre o bastião e ficou completamente curado; em 65 quando saía da
caso basta pegar os jornais Gazeta de Alagoas das duas sema- igreja de Poço da Cacimba -AL, foi emboscado por Floro, a
nas seguintes ao assassinato de Enéias que verão as fotos da praça esvaziou ao perceber a presença das duas figuras no
prefeita e do marido estampadas como possíveis mandantes. mesmo local. Floro atirou várias vezes, mas não conseguiu
Essa estratégia não carece de inteligência, daria um ar de par- o atingir; em 69 quando num momento despreocupado foi
cimônia à rixa entre os Vieira e os Novaes ao mesmo tempo pescar no açude de um dos cunhados, levou um balaço, que
que poria a família Vieira em crédito para disputar as próxi- como os outros, não foi letal; e por fim em 22 de março de
mas eleições na cidade, além, é claro, de eliminar eticamente 1970, levou um tiro no braço direito, na porta da casa do ve-
e juridicamente rivais em próximos pleitos, digo a prefeita reador de Olivença, António Felizardo, tiro dado pelo seu
Maria de Lourdes e família. afilhado Maurício Gomes Novaes, um dos irmãos de Floro.
António Novaes mesmo sob toda a flagelação, negou Maurício se tornaria muito conhecido nas décadas de 80, 90
terminantemente a tese que as autoridades locais queriam e anos 2000 como "Chapéu de Couro", o mais afamado dos
impor-lhe: "Matei o assassino de meu pai pelas costas porque pistoleiros alagoanos nos tempos recentes.
soube que ele era muito valente. Mata-lo era juramento. Não Nisso, com a vingança já cumprida e a família Novaes
estou arrependido. Vinguei 21 anos de sofrimento de minha vitoriosa, se é que haja vitória em tal circunstância, Floro agora
mãe, a quem Enéias e seus capangas deixaram viúva com em outra casa mas na mesma fazenda Mamoeiro, aproveitava
quatro filhos pequenos."295 a estabilidade para escrever, contar os casos ocorridos, receber
Enéias, sem sombra de dúvidas não era um homem amigos, repórteres. Foi nesta época feita a famosa entrevista
fácil de morrer, mesmo quando surpreendido e alvejado, por Tobias Granja, onde vemos um Floro mais sereno, não me-
conseguia sobreviver de alguma maneira. Foram 5 as em- nos desconfiado, porém na mansidão de um dever cumprido.
boscadas colocadas por inimigos -e os tinha bastante -, e por Numa entrevista dada ao repórter Paulo Granja (irmão
Floro, para cima dele antes da única e certeira colocada pelo do Tobias) para o jornal Gazeta de Alagoas, aproximadamente
irmão mais novo. Em 58, quando era subdelegado de Santa- 30 dias antes da emboscada do riacho do Mel, nem consegui-
na foi fazer uma apreensão em Fazenda Nova, nas cercanias mos acreditar no Floro divertido que encontramos. Não mais
de Olivença e foi ameaçado com uma faca pelo que iria ser um vingador, apenas um agricultor bem-sucedido, orgulhoso
do que fez e construiu. Não abandonara de todo a segurança
que desde muito procurava estar favorecido. Sempre na com-
295.OLIVEIRA, Jorge. Uma história do cangaço. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3 de
março de 1971. Anexo, p. 3. panhia de D. Neném, sua mãe de criação - sua mãe Guiomar
vivia em Arapiraca - e diz-se também curandeira, aquela que
da Sudene (Í98I i. H á r.n;;:x> Jo quu tirar-se de^i publicado
prira concar como ocorreu os últimos momentos do "pistolei-
ro sem máculas". Nos jornais - Correio da Manhã c Gazeta
Hloro já tinha conhecimento cie que um jipe .se dirijm
a sua caía. Uni controle que ele nunca me revelou o de Alagoas -, por exemplo, talvez pela brevidade com que to-
informa com antecedência da presença cV estranhos maram para interpretação do episódio, encontramos citações
nas proximidades.
parcas e por vezes sem nexo algum, como dizer que na manhã
Saboreando uma boa pinga com casca de boni-norne
(uma árvore da região) Floro, íalador com u sempre da sinistra cacada de veados, Floro declarou a Dona Isaura,
foi contando as novidades. sua mulher, que iria visitar amigos, depois da barragem de
-Terminou minha vingança. A morte de Enéias Viei-
Praquió. Algo completamente distinto do quem dirão depois
ra (assassinado por seu irmão António, de 20 anosi
me deixou com um dever cumprido com meu pai os mesmos jornais, mais ainda, do já diziam e dizem aqueles
-Quantos matei? Ora, nunca matei ninguém. Eu tava que testemunharam ou estavam próximo no dia fatídico.
caçando nambu e os sujeitos escondidos no meiu do
mato. A gente atira e quando vai buscar o nambu
Chovia naqueia quarta-feira de cinzas do dia 24 de fe-
tava lá mais um sem sorte... vereiro de 1971, como que por aqueles presságios que o grego
Explodia em gargalhadas. A morte pouco importava Plutarco (46 d.C. - 120 d.C.) descreve antes da morte dos seus
para os seus valores.
-A polícia de Águas Belas fez um trato comigo: eu
biografados, tudo intuía para que Floro não aceitasse o con-
não pareço na cidade e eles não pisam nos meus vite de Mane Miúdo, marido da Senhora Edivirges e muito
calos. Outro dia é que me deixaram rneio cabreiro. amigo da família Novaes - homem de confiança- para ir caçar
Precisei ir a cidade tomar uma cervejínha e quando
me preparava para voltar, vi na estrada um monte veados no riacho de Mel. Iriam também a esta caçada os ir-
de policiais. Tinha uns 20 homens. mãos Wilson e Américo Lins de Carvalho, filhos do João Lins,
-O que você fez?
que como Mane Miúdo, moravam nas bordas da serra dos
-Acendi um charuto e passei com o jipe no meio dos
meganhas. Cavalos, muito perto do Mamoeiro.
Assim era Floro. Costumava dizer que "covarde Inicialmente iam à caçada em um jipe que Floro pos-
morre muitas vezes e homem de coragem só uma".
suía, o carro simplesmente não pegava, ainda pensavam que
Um Floro bem mais tranquilo, divertido, dado às bebi- fosse a má qualidade do combustível, esvaziaram o tanque
das, talvez confiante demais... com uma mangueira e puseram outro combustível que havia
Se inicia agora a última parte da narrativa, que começa em um tonel guardado para necessidades. Resolveram ir de
lá no Capim e findará no riacho do Mel, ou "me", no dizer burra mesmo, que ele tentava selar e ela empinava e bufava.
sertanejo. Tomo como fonte literária um livro de Reginaldo Floro mesmo pediu para o ajudante sair que ele mesmo se-
Heráclito A morte de Floro Gomes Novaes e o aniversário lava: "Sai daí fí da peste, deixe que eu selo" {Op. Cit, 1981).
Floro limpou a espingarda calibre 12, contou os car-
tuchos, colocou 14 no aio - espécie de bolsa que o sertanejo
296.GRANJA, Paulo. Floro Novaes, o último vingador. Gazeta de Alagoas, Maceió, 29
de agosto de 1975. Opinião. usa para caçar, algo semelhante a um alforje - e dois no cano.
Calçou as botinas, colocou uma roupa mais grossa ck-vido a Wilson corresse para não morrer, qutj de mesmo ficaria e resol-
água da chuva e os matos de espinheiros, ajeitou seu chapéu veria a situação. E foi o que Wilson fez, disparou na montaria c
de sumé que lhe tinha presenteado Sebastião Trovão, admi- correu de volta à fazenda Mamouiro a toda pres>a.
nistrador da Fazenda Carie, e reforçou o café da manhã. A parada que teve Ftoro ao receber o primeiro tiro em
Dona Neném, a senhora que era como mãe dele na au- seu chapéu, e o cornando de mandar Wilson fugir,, propiciou
sência de Dona Cuiomar e que além do carinho materno que Alfredo acíonar seu mosquetão e acertar um balaco nas cos-
nutria por ele, ainda era responsável pelas proteções máo-j- telas mindinhas de Floro que até lhe queimaram o braço. A
cas, já vinha lhe pedindo desde o café da manhã para que dupla de pistoleiros correu caatinga adentro enquanto Floro
ele não saísse. E pediu novamente na porta da casa quando sentia uma dor forte asfixiando seu peito, e o ódio ainda o
juntamente com Wilson de Carvalho, já iam cada qual em sua mantendo de pé. Os sons de bala em meio á caatinga eram
burra em direção à caçada. D. Neném já vinha reclamando há tão corriqueiros que não houve alma que de imediato pro-
muito o fato dele não estar respeitando as orações e ingerindo curasse investigar o que estava acontecendo. Enquanto isso
muita bebida, isso segundo os costumes locais, abre o corpo, e Floro, sem conseguir enxergar de onde vinham os tiros, ati-
o expõe às piores mazelas, sem falar que era uma quarta-fei- rava para cima, sempre a praguejar "-Vem para cá, amarelo
ra de cinzas, um pecado fazer caçada nesse dia, porém Floro safado, para gente morrer trocando tiro". E nisso tiro e mais
andava muito indisciplinado no cumprimento dos aconselha- tiro. (Op, Cit, 1981). A burra de Floro havia fugido e lhe dei-
mentos da curandeira. xado lá, ferido e sem saber o que fazer, a não ser praguejar
Nisso Wilson apressando Floro, dizendo que já estavam e pensar por qual lado da clareira entraria caatinga adentro
todos a espera-los no riacho. A chuva começou a serenar e de- para procurar os atiradores.
pois o céu abriu. Fazia um dia muito bonito, os bem-te-vis à Enquanto isso, estavam Jurandir e Alfredo aflitos pela
cantarem em seus tristes trinos, os colibris à saborearem as flo- possibilidade de o atentado não ter sido fatal e de terem sido
res vermelhas do cardeiro, as baraúnas e os flamboyants pujan- reconhecidos. Pois como todos já sabiam, Floro só morreria por
tes no caminho prometiam um dia de belo divertimento. emboscada, ninguém ousaria enfrenta-lo homem à homem,
A aproximadamente l quilómetro da fazenda, escon- tão perito e afamado ele era. Ainda deu tempo de tomarem um
dido por detrás de uma moita na caatinga, de tocaia estavam gole de cachaça que traziam num cantil quando quase como
Jurandir Valença com espingarda 20 e Alfredo Godoy de que por mágica aparece Floro na frente deles. Os dois, Alfredo
mosquetão, ambos com 38 e facas à cinta. Eram inimigos de e Jurandir atiraram ao mesmo tempo em Floro, que de tanta
Floro na região. dor já havia perdido o reflexo. O tiro de mosquetão atingiu a
Floro jamais poderia imaginar que naquele descampado perna esquerda partindo-a, e o da espingarda do Jurandir, re-
poderia vir algo de perigoso, até que Jurandir com sua espin- cheada de rolimãs cravou o peito de Floro. Diz-se que nesta
garda direcionou um projétil que varou a aba do seu chapéu de hora o homem urrou como um bicho. Caiu abaixo da copa de
Sumé. Logo a perceber o que estava ocorrendo, pediu para que uma umburana. "-Tu me paga, filho da peste!", (Op. Cit, 1981)
na região dizem tor íiJo ;>s suas ú l t i m a s palavras. exame foi contestado peia iu.-t;c:i posteriormente, por esse
Wilson chegou do riacho, Américo e Mane -Miúdo fo- médico não ter cur^o superior nci área. não passando de um
ram logo p e r g u n t a n d o onde estava Floro, Wilson respondeu farmacêutico. O cortejo saiu da sua casa na fa/enda, hoje per-
que quando estavam vindo receberam tiros e Floro os tinha tencente à família Marinheiro. Dizem na região que o cadáver
ordenado a fugir. Iodos foram para o local do tiroteio, en- mesmo na sexta-feira já dentro do caixão para ser enterrado,
quanto Mane pede para Américo ir no Mamoeiro avisar a lá na cidade de Jacaré dos Homens-AL, não exalava nenhum
dona Nenen. No loca! do tiroteio nada encontraram, nem mal cheiro. Foi enterrado ao lado de seu pai.
sangue. Havia a possibilidade de terem o matado e levado o Muita gente foi detida para averiguações, desde os que
corpo, ou a polícia alagoana tê-lo encontrado ainda vivo e o o convidaram para cacada até os que de fato provocaram a
levado para as autoridades. Ninguém achou Floro nesse dia. emboscada. Jurandir e Enéias Boiadeiro confessaram, Alfredo
D. Nenen chorosa sempre dizendo que se Floro tivesse res- Godoy desapareceu. Os dois primeiros condenados, mas com
peitado as "orações" nada daquilo teria ocorrido. pouco tempo de reclusão. Enéias Boiadeiro como mandante,
Apenas na quinta-feira Floro rói encontrado encostado Jurandir como executor. Aqueles já citados como amigos de
numa árvore, com a espingarda 12 no colo e olhos arregalados. confiança: Wilson, Américo, Mane Miúdo... todos inocenta-
O frio da noite aliado com a chuva deixou o cadáver tão intac- dos antes mesmo de irem à investigação mais profunda.
to de um dia para o outro que quando o avistaram - em um Através das entrevistas que tivemos, ouvimos versões
local um pouco afastado de onde ocorrera o tiroteio - os que muito diferentes do porquê do assassinato de Floro Gomes, a
procuravam-no temeram aproximar-se, e o morto, ainda vivo, principal delas foi uma rixa que teve ele com a família Paes,
pensar que eram os inimigos e abrir fogo. Percorreram o cami- mais especificamente com um indivíduo chamado António
nho do tiroteio até onde encontraram Floro, e na trilha depara- Paes, ou mais conhecido como António Bigodão, agregado da-
ram-se com 12 cartuchos detonados, ficando apenas 2 no aio. quele mesmo povo que ele julgava "de confiança", e que mo-
O velho João Paes, amigo dos Novaes do Mamoeiro, ravam na fazenda Cachoeira Grande. Essa versão que ouvimos
que residiam na fazenda Cachoeira Grande, vestiu o magro do início ao fim é muito plausível, tendo até ocorrido um episó-
cadáver e mandou pedir um caixão em Garanhuns - PE. Os dio em que António Bigodão é perguntado por Floro se aguen-
exames cadavéricos foram feitos pelo médico João Secundino taria l mês de briga com ele, e António por sua vez responde
de Souza, de Águas Belas, e a causa mortis: hemorragia interna que l mês não, mas l ano. Esse episódio sincroniza-se com a
por vários ferimentos transfixiantes perto do coração.297 Esse caçada de veados, cerca de um mês após o diálogo morre Flo-
ro. Em suma, este artigo não se pretende ser uma investigação
histórica de caráter criminal, apenas a exposição duma saga
297."Na manhã seguinte, ontem, a poliria iniciava as investigações em torno do crime
Muito temido na região, Floro teria sido apanhado numa emboscada, quando se
como estudo de caso para a violência no sertão nordestino.
preparava para caçar veados. A policia pretendia ouvir alguns dos mais notórios Ezequiel Novaes, filho único de Floro, a quem o pai
inimigos do pistoleiro que nos últimos tempos se dedicava as atividades de fazen
deiro." P.3 in: Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3 de Março de 1971. gostaria que fosse doutor e não se envolvesse nesses prelos,
GONÇALVES, Roberto ' L T i:. ^erMnejo vingador e
-s B e i a s - P E , vingar o justiceiro'': assim se a u t o d e n o m i n a v a Pioro Conus Nuvae;,.
pai. Como todos os que conheceram de perto a história, Eze- jornal a Tribuna, Maceió, 31 de janeiro de 199L>.
quiel sabia que a f a m í l i a Paes-ou seja, nada coma antiga rixa
com os Vieira - fora a ordenadora. Repetindo: Ezequiel Nova- VTLANOVA, Roberto. Com Henrique, a trégua rompida nos
es, filho único de Floro foi... apenas foi. Hoje desde quando crimes de vingança em Alagoas. Gazeta de Alagoas, Maceió,
foi, está junto ao pai, e ao avô, em covas vizinhas, lá na cidade [sem datação].
alagoana de Jacaré dos Homens.
MACENA, Leio. Quintella: "Um Homem de Palavra"/
O homem que prendeu um dos maiores "pistoleiros" de
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IMPRENSA
OFICIAL
GBACILIANO RAMOS