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CRIME, VIOLÊNC IA I

UMA ABORDAGFM N V l^\

ORG. CÉLIA NONATA DA SILVA E


FRANCISCO LINHARES FONTELES NETO
DISCERE CRIMINUM
CRIME, VIOLÊNCIA E PODER UMA ABORDAGEM XACIONAL
DISCERE CRIMINUM
CRJME, VIOLÊNCIA E PODER: UMA ABORDAGEM NACIONAL

Maceió, 2017
Coletânea Oiycertí Critnimim - Grupo de pesquisa
Histeria Seda! d .1 Crime - CXTq.

Frojeto editorial:
Profa. Dra. Célia Nonata
Pró f. Dr. Francisco Ponteies Nelo

Conselho editorial:
Prof. Dr. Marcos Bretãs - UFRJ
Profa. Dra. Maíra Ines Vendrame - Unisinos
Profa. Dra. Claudia Mauch - UFRGS
prof. Dr. Flavio de Sá de Cavalcanti Neto - Instituto Federal de Pernambuco
Profa. Dra, Vanessa Spinosa - LTRN

Diagrama cão
Imprensa Oficia Gracilaino Ramos

Aos meus alunos

Catalogação na fonte
Bibliotecária Responsável: Fernanda Lins de Lima

Discere criminum : crime, violência e poder: uma abordagem nacional /


Organizado por] Célia Nonata da Silva, Francisco Linhares ponteies
Meto; autores Caiuá Cardoso AI-Alam . [et ai.]. - Maceió : [Imprensa
Oficiíl Graciliano Ramos], 2017.
273 p.. il.

Incluí bibliografia.
ISBN'978-85-9465-113-6.

1. História. 2 Crime- violência - Brasil. 3. Banditismo. I. Silva. Célia


Nonata, org. II Ponteies Xeto, Francisco Linhares, org

CDU. 343.97(81]
AGRADECIMENTOS

.V-r-ideço a colaboração dos pesquisadores e estudioso? do


( i r u p o de Pesquisa História Social do Crime que contribuí-
ram noite primeiro volume para a formatação desta cole-
tãnea. lambem, aos alunos iniciantes da pesquisa do crime
uuc tem proporcionado ao Grupo uma visibilidade cada vez
maior de responsabilidade académica e profissionalismo.

Queira ressaltar a ajuda valiosa e o companheirismo do meu


amigo Francisco Linhares que tem sido fundamental na con-
tribuição do Grupo, bem como todos que partilham esta ca-
minhada desde sua criação.

Agradeço a Fundação de Amparo a Pesquisa de Alagoas -


FAPEAL - que proporcionou esta publicação e a pesquisa so-
bre o tema apresentado. Parabéns pelo trabalho e empenho
que demonstram em salvaguardar a prática da pesquisa no
estado de Alagoas.

Também, agradeço a Gisele Simão pelo trabalho de arte grá-


fica da capa.
Sumaria

A5 HÁBIL! DADES DE DAMASIO; ENSAIOS SOBRE ATRAJETÓR1A


DE L'M CAPITÃO-DO-MATO 19

j Cardoso Al-Alam

O CRIME ENTRE ESCRAVOS, LIBERTOS E PESSOAS LIVRES EM


I N H A M B U P E - BAHIA (SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX) . .47

Edson Pereira da Silva

"SE TEM MANIFESTADO NAS QUATRO FREGUESIAS DESTA


CIDADE DIFERENTES CRIMES DE ROUBO E OUTROS":
CRIMINALIDADE, CONFLITOS URBANOS E POLICIAMENTO NO
RECIFE (1870-1889) ............................................. 81

Jeffrey Aislan de Souza Silva

APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA ELIASIANA DA


VIOLÊNCIA NO BRASIL 111

Deivy ferreira Carneiro

MOSSORÓ ENTRE A ORDEM E A DESORDEM NA PRIMEIRA


REPÚBLICA 145

Francisco Linhares Ponteies Neto


Rodrigo Rui

OS AGENTES SECRETOS DA POLÍCIA E SUA ATUAÇÃO NA


REPRESSÃO AO JOGO E AO TRÁFICO DE ENTORPECENTES -
PORTO ALEGRE/SÃO PAULO, 1889-1930 169

Carlos Eduardo Martins Torcato


O CONSÓRCIO DO CRIME: ESTADO E PRÁTICAS I L E G A I S EM
ALAGOAS: (3975-2008)
,195

Célia. Nonata da Silra li com muita satisfação que apresentamos aos leitores
FLORO GOMES NOVAES,'VINGADOR DAS ALAGOAS": UM a coletanea do Grupo de Pesquisa História Social do Crime:
ESTUDO DE CASO DA VIOLÊNCIA NO SERTÃO 221 DiíC-.rt Criminiun'. A proposta da coletânea é divulgar os tra-
balhos dos pesquisadores e alunos do Grupo de Pesquisa e
Victor Carneiro Lima fomentar estudos na área da violência e criminalidade, além
A RESSIGNIFICAÇÃO DOS CRIMINOSOS NA NARRATIVA J^ proporcionar maior visibilidade ao grupo e seus membros.
FÍLMICA
.255
A contribuição do Grupo de Pesquisa História Social do Cri-
me para a historiografia criminal está na proposta de traba-
Cristine de Andrade Pires lhos que ofereçam a problernatizacão da criminalidade e da
violência num diálogo interdisciplinar e atual, buscando nas
vertentes teóricas da Teoria da Privação, quanto da Escola de
Chicago ou da vertente da história cultural a ampliação da
discussão do nosso objeto de pesquisa.
A História Social do Crime, uma vertente da Historio-
grafia Inglesa orientada para as pesquisas sobre a temática da
criminalidade, a formação dos bandidos e dos motins na In-
glaterra iria contribuir para uma profusão de trabalhos sobre
o tema, e que ainda são registros para as análises de quaisquer
trabalhos. Um dos argumentos centrais nesta perspectiva de
análise demandou estudos exaustivos sustentados pela relação
pobreza-crime. A criminalidade seria analisada a partir do pro-
cesso de exclusão social, pauperização e desigualdades econó-
micas, que inevitavelmente incidiam sobre as classes operárias
e o lumpem proletariado. A proposta foi apurada pela Tese da
Privação Relativa1 e Absoluta-1, ainda vigentes para o entendi-

1. MERTON, Robert. "Estrutura Social e Anomia". In.: Sociologia: teoria e estrutura.


São Paulo: Mestre Jou, 1968. APUD: BEATO, Cláudio. Crime e Cidades. Belo Hori-
zonte: UFMG, 2012. Pp.: 144-145.
2. MESSNF.R, S. "Income Inequdlity and Mutder Ratei: Some Cross-setrtional Find-
12

mento da criminalidade nas sociedades modernas.


diMcrr^o com :i> nnrm.is de conduta e as regras morais que ca-
Já, no início dos anos 90, as análises da violência inter- racterizavam o Antigo Regime, cujo teor valorativo se eviden-
pessoal e do crime concentraram-se num diálogo com a ver-
ciava tanto nos \a\os amorosos, quanto n.is relações de ódio.
tente francesa da Escola dos Arma lês, buscando desta forma
A partir daí, elementos culturais passaram a ocupar
contribuir com elementos diferenciados para o tema. A im-
.is análises da violência cotidiana nas sociedades europeias
portância da cultura e dos aspectos rituais seriam valorizados, nre-industriais, relacionando-a aos conceitos de honra, infâ-
frente a dinâmica do conflito de classes. Metodologicamente mia, os insultos e até as celebrações festivas vigentes em sua
a violência seguiria uma proposta a partir de dois modelos época. Também, as análises de Pieter Spierenburg, Ted Curr,
interpretativos e interdependentes: a violência instrumental luian Pitt-Rivers, Robert Muchembled, Gregory Hanlon, Paul
(racional) que se traduz enquanto abordagem quantitativa. VIcLean, Jon Elster, Alan Hamlin, e outros têm possibilitado
Ou seja, consideram-se apenas os índices de homicídios como uma nova interpretação sobre a manifestação da violência
indicação do grau de violência nas sociedades passadas. Um interpessoal e da criminalidade no século XVIII, cujos resul-
aumento ou declínio da proporção de homicídios nas dadas tados demonstram uma relação íntima entre a agressividade
culturas traduz-se em resultados variáveis nos níveis de vio- humana, o conflito e a exigência em se manter um espaço de
lência. A outra abordagem qualitativa, por sua vez, situa-se aparências sustentado pela honra e pela virilidade masculina.
no estudo da violência impulsiva e suas variáveis culturais. A A conduta violenta dos indivíduos objetivava não apenas a
ênfase da pesquisa qualitativa situa-se no campo do compor- manutenção de uma posição de destaque frente aos demais.
tamento moral e ritual dos indivíduos; assim como o signifi- Buscava-se, antes de tudo, a distinção pessoal.
cado contemporâneo atribuído aos atos violentos. A importância do contexto histórico deve-se à capa-
Segundo Spierenburg3, a obra de Natalie Davis foi pio- cidade em se perceber os elementos valorativos e as formas
neira neste tipo de estudo. Ao analisar a violência enquanto ato culturais que contribuem para a manifestação ou perpetua-
simbólico para a purificação da comunidade francesa no sécu- ção das formas da violência. A descoberta dessas noções va-
lo XVI, Davis buscou não apenas constatar um fato histórico, lora ti vás possibilita um novo entendimento das formas mais
mas problematizar a manifestação da violência inserida dentro corriqueiras do viver em sociedade e a conjugação destas com
de um código moral religioso. Os estudiosos dessa linha têm a manifestação da violência, constatando-se não apenas os fa-
proclamado que, até meados do século XVTIÍ, a vida social dos tos históricos cruéis e sangrentos, mas uma trama histórica
indivíduos, suas atitudes e comportamentos eram moldados intimamente relacionada com as necessidades do homem.
Essa violência ritual manifestava-se tanto nos crimes passio-
íngs". In.: Comparative Social Research, 1980. APUD: BEATO, Cláudio. Crime e nais tidos como racionais, já que o assassino elaborava um
Cidades. Belo Horizonte: UFMG, 2012. Pp.: 144-145.
cálculo racional para cometer tal ato (mormente cometidos
3. SPIERENBLTKC, Pis ter. "Faces of Viok-nce: Hornicide trends and Cultural mean- contra as mulheres infiéis ern dias significativos, como o de
ings: Amsterdam, 1431-1816". In.: Joumal of Socijl History. 1994. Pp. 701-716. Santa Maria Madalena), quanto em duelos e rixas familiares.
Tais crimes u r o m dnísitk.idoí corro a tos irnDulsivos, cujo mo1- di.: 1300 a 19Si', constatou tanto uma m u d a n ç a na atitude
objetivo era o de lavar com sangue a honra dos envolvidos. riibhca perante o crime, quanto a publicação de novas leis e
Com feito, tanto a violência racional, que possui uma orienta- unia maior sensibilização da população, influindo negativa-
ção estratégica de meios e fins, quanto à violência impulsiva mente nos índices da agressão. O autor concluiu que a intro-
podem, de acordo o com contexto histórico, orientar-se, cada dução de uma força policial no século XIX na Inglaterra foi
qual, por um código ritual e moral das comunidades. responsável pelo declínio da violência e da agressão 5 . Autores
Clementos culturais como moral, ática, rituais, elemen- jue se inserem nessa perspectiva são sustentados pela tese de
tos simbólicos, as noções do lícito e o ilícito podem (e devem) Norbert Elias (1994) sobre o processo civilizador e reiteram,
ser utilizados na análise dos incidentes violentos de uma através de evidências documentais, um acentuado declínio
determinada sociedade, como defende Pieter Spierenburg dos homicídios a partir do século XVII e que se estende até
(1994). Porém, para este pesquisador, a tendência atual é a de o Oitocentos. O que só foi possível pela implementação de
uma marginalização crescente dos aspectos rituais da violên- políticas públicas de ordenação do tecido social e aumento
cia e uma ênfase progressiva no caráter instrumental da ação da força policial. Notadamente, a monopolização da violência
violenta, já que a produção recente tem elaborado análises se fez pela atuação crescente do Estado, acompanhada pela
superficiais e meramente estatísticas, que não respondem à organização de uma força policial e por um processo sócio
complexidade de tal fenómeno. Pois, a análise da violência psicológico de pacificação do instinto agressivo.
exclusivamente abordada em seu caráter quantitativo, atra- A coletânea do Grupo de Pesquisa pretende dar visibi-
vés de indícios documentais judiciais, apresenta inúmeros lidade aos estudos sobre a violência e a criminalidade, apre-
problemas: veracidade das fontes, poucos indícios, mudanças sentando trabalhos inéditos tanto relacionados ao contexto
nas atitudes públicas de repressão e nos padrões dos crimes histórico do país, quanto análises pertinentes para outras rea-
cometidos, aumento da população, sem mencionar as varia-
ções da economia, que influenciam as atitudes de sobrevivên- Jenn-Claude Chesnais, ao contrário, irá perceber a manifestação d,i violência como
cia dos agrupamentos humanos. uma ação invariavelmente objetivada sobre as famílias. Sem se preocupar com estes
modelos explicativos de aumento ou diminuição na incidência de crimes, Chesnais
A História Social do Crime considerava importante as apenas constata a permanência da violência nas sociedades ocidentais e suas múl-
tiplas formas de manifestação em cada momento histórico. Com efeito, as famílias,
análises sobre as classes excluídas, demandando não apenas estes pequenos núcleos humanos, sempre foram afetados em sua constituição ínti-
uma outra metodologia mais quantitativa, como também ma peio ódio humano em todas as épocas históricas. A desestru tu ração dos lares
se dá seguramente pela violência incontrolável que os margeia, justificada tanto
identificando as rupturas sociais nas mudanças da crimina- feia fome quanto pela idolatrada honra nos séculos passados. Cf.: CHESNAIS, Je-
an-Claude. Historie de Ia violence. Seiul. Paris, 1998. Beattie, por sua vez. defende
lidade. O historiador inglês, Lawrence Stone4, a este exem- um aumento na proporção dos crimes durante o século XVIII na Inglaterra graças
plo, ao analisar a violência interpessoal na Inglaterra entre os a criação da 'Reformation of Nauners', cujo objetivo era ajudar a conter os crimes
e demais desordens e violências. Porém, o resultado foi outro. Pois, a extensão da
pena de morte para os homicídios contra a propriedade e outros atos violentos con-
siderados insignificantes no períodu posterior, levou a um aumento gradual tanto
-1. STONE, Lawrence. "Inlerpesonal Violence in F.ngli.sh Society: 1300-1980". In.: PaSl dos registros das prisões, quanto dos julgamentos nos tribunais. Cf.: BEATTIt'., F M.
&Present 1983. Pp. 22-33. "The partem of crime in England": 1660-1800. In.: Past and Present. 62. Pp. 45-95.
lidados exteriores que possam c o n t r i b u i r para o entendimen- je lV;'.'v F t j r r e t r n CLirtu/iro e um estudo aprofundado sobre
to do fenómeno criminal. o pnKie^o civitizaclor e a violência ti m Minas Gerais na se-
Neste sentido, os trabalhos apresentados neste primei- auncia metade do Oitocentos até a primeira metade do sé-
ro volume suprem de maneira brilhante o nosso objetivo. A culo XX. O artigo 'Mossoró entre a ordem e a desordem na
temática: 'Crime, Violência e Poder: uma abordagem nacio- Primeira República' dos autores Francisco Linhares Ponteies
nal' busca a compreensão do crime nas suas várias manifesta- Meto e Rodrigo Rui trata da relação entre violência urbana e
ções através dos diferentes contextos históricos apresentados. L (informa cã o da Ordem pública representada em jornais da
Assim, a dimensão do estudo da criminalidade está abordada época na região do Rio Grande do Norte. Também o artigo
em várias regiões do país e em diferentes contextos históricos, 'Os agentes secretos da polícia e sua atuação na repressão
desde o século XVIII ao século XX. O rigor metodológico e ao jogo e ao tráfico de entorpecentes - Porto Alegre/São
teórico é identificado em cada trabalho, bem como o cuidado Paulo, 1889-1930' de Carlos Eduardo Martins Torça to é um
com as fontes documentais e bibliografia atualizada. A per- estudo comparado da atuação da polícia no enfrentamento
cepção historiográfica dos trabalhos apresentados conta com a criminalidade na região do Rio Grande do Sul e São Paulo
as abordagens culturalistas e da história social. Contamos entre a segunda metade do século XIX e início do século XX.
neste número com pesquisas de vários estados brasileiros, A seguir, o trabalho 'O Consórcio do crime: Estado e práti-
possibilitando o diálogo entre os membros do Grupo. cas ilegais em Alagoas: (1975-2008)' de Célia Nonata da Silva
Optamos por uma organização cronológica dos tra- trata da atuação da polícia em Alagoas na segunda metade
balhos selecionados para esta coletânea. Assim temos: 'As do século XX enquanto prática illegal em conformação aos
habilidades de Damásio: ensaios sobre a trajetória de um interesses do estado. Para o mesmo estado de Alagoas na se-
capitão-do-mato' de Caiuá Cardoso Al-Alam , levantando a gunda metade do século XX. A seguir, outro trabalho dando
problemática entre escravidão e criminalidade no Rio Gran- ênfase ao banditismo representado por Floro Novaes, tratado
de do Sul Setecentista. A seguir o trabalho 'O crime entre por Victor Carneiro 'Floro Gomes Novaes, "Vingador das
escravos, libertos e pessoas livres em Inhambupe - Bahia Alagoas": Um estudo de caso da violência no sertão'. E, fi-
(segunda metade do século XIX)' de Edson Pereira da Sil- nalmente o trabalho sobre cinema e banditismo retratado por
va é uma contribuição na mesma linha temática para a Bahia Cristine de Andrade Pires em 'A ressignificação dos crimi-
Oitocentista. O trabalho seguinte: '"Se tem manifestado as nosos na narrativa fílmica', mostrando a relação possível de
quatro freguesias desta cidade diferentes crimes de roubo abordagem do crime na narrativa cinematográfica.
e outros": criminalidade, conflitos urbanos e policiamento
no Recife (1870-1889)' de Jeffrey Aislan de Souza Silva é uma
reflexão da criminalidade urbana em Recife Oitocentista e a
problemática do controle sócia! da época. No artigo, 'Aponta-
mentos para uma História Eliasiana da Violência no Brasil'
AS HABILIDADES DE DAMÁSIO: ENSAIOS
SOBRE A TRAJETORIA DE UM CAPITÃO-DO-
MATO.
Caiiia Cardoso Al-Alam"

Há na história da escravidão nas Américas, um imagi-


nário intenso sobre a figura do capitão-do-mato. Responsável
nor resgatar trabalhadores escravizados fugidos, tinha seu
trabalho reconhecido pelo Estado, já que as Câmaras Munici-
pais, a partir do século XVIII, reconheciam e valorizavam seus
trabalhos. Viviam de gratificações pagas pelos senhores, que
geralmente as dispunham em anúncios públicos nas ruas e em
jornais junto à denúncia da fuga de pessoas escravizadas.
Conta Fernando Osório em seu livro A Cidade de Pe-
lotas, que houve um capitão-do-mato naquela cidade, locali-
zada no extremo sul do Rio Grande do Sul e destacada eco-
nomicamente na província pela produção do charque, que se
vangloriava de sua profissão, estampando na parede de sua
casa uma placa onde anunciava ser: "Empregado Publico do
Governo Capitão do Mato abei 7 (sic) para discubrir (sic) ne-
gros fugidos de dia ou de noite sempre as ordes (sic)" (OSÓ-
RIO, 1997, p. 157).
E difícil encontrarmos trabalhos de História que evi-
denciem trajetórias destes capitães-do-mato. Mas no campo
da literatura temos algumas narrativas, como o fez Machado

f. Doutor em História. Professor Adjunto do curso de História-Licenciatura no cam-


pus Jaguarão da Universidade Federal do Pampa.
'- Provavelmente "hábil".
de Assiã no M.-U conto Pai cor.tra ^/n?, por txemplu, que dá o-, vMpi^'5-do-n-MUi dos oitocentos eram inclinados a tais
o tom ,1 respeito daquela i n f a m e profissão, mas de extrema tarefas movidos pula pobreza, pela falta de oportunidade a
u t i l i d a d e no sistema escravista. outros trabalhos tidos corno mais qualificados, pela depen-
dência. Consideramos, assim, que tal atividade laborai, mes-
Or.i, pe^ar escravos fugidios era um ofício do tem-
po. Não seria nobre, mas por ser instrumento da íor- mo que não pudesse ser exercida por qualquer um (porque
s'n com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia necessitava de habilidades sociais específicas), era exercida
esta outra nobreza implícita das ações reivindicado-
paralelamente a outros exercícios sócio-profissionais, peque-
ras. Ninguém se metia em tal oficio por desfastio eu
estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a nas lavras de terras, ofícios semiespeciaiizados, e aqueles ti-
inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma dos como de baixa qualificação, como o trabalho de Polícia,
vez o gosto de servir também, ainda que por outra
via, davam o impulso ao homem que se sentia bas-
que caracterizarei adiante.
tante rijo para pôr ordem à desordem (ASSIS, 1997). Para quem realiza pesquisa em História Social é co-
mum alguns nomes persistirem em aparecer nas nossas in-
As análises sociais machadianas, atravessadas por certo vestigações, registrados em documentos diversos. Estas per-
cinismo e denúncia social (CHALHOUB, 2003), nos ajudam a sistências têm rendido obras interessantes, como no exemplar
perceber a utilidade social dos capitães-de-mato, reconhecida trabalho sobre Alufá Rufino, livro que contou com uma rede
comunitariamente naquela sociedade escravista como impres- de historiadores para além dos autores 8 .
cindível. Note-se que os cativos não são fugidos, mas fugidios, No caso, aqui neste texto, o nome persistente é o de
o que nos faz absorver uma sensação histórica no século XIX Damásio Marcos Durval (grafado algumas vezes Damazio,
de que estes indivíduos faziam parte das cenas, tanto ur- outras vezes Marques, Duval, DeTal), famoso capitão-do-ma-
banas como rurais, sugerindo uma certa confusão entre es- to que atuava em Pelotas. Evidenciamos na sua trajetória que
tes estratos sociais próximos, escravizados, forros, livres, que Damásio exercera em alguns momentos o trabalho policial e
caracterizavam a população negra brasileira. Nesse conto, pu- possivelmente possa ter também servido ao Exército, evidên-
blicado pela primeira vez em 1906, ele denuncia a sociedade cia ainda a ser comprovada. O objetivo deste texto é demons-
escravista que necessitava destes capitães-do-mato, que por si ; trar o quanto a carreira policial fora usada instrumentalmente
só não se dedicavam a uma arte tida como nobre, e eram vistos por diversos indivíduos, como um trabalho esporádico, mas
como essenciais à preservação da lei e da propriedade daquele que pode ter feito parte também de uma espécie de carreira,
contexto em que era permitida a maior exploração de um ser entendida como potenciaíizadora de acúmulo de experiên-
humano: a sua comercialização como escravo. : cias e certa legitimidade social, para exercer outros trabalhos
Por outro lado, aquele romancista negro transmitia aos l normativos, como o de capitão-do-mato.
leitores a impressão de que aquelas atividades não erarn de- '
S R5IS, João José; GOMES, Flavio dos Santos, CARVALHO, Marcus Joaquim de. O
senvolvidas por prazer ou ociosidade, ou fruto de uma dedi- Alufá Rufino; tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c. 1822-c. 1853).
cação intrínseca e exclusiva a um ofício. Segundo Machado, São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
U~ ..ripicãe^-do-matõ teriam surgido no período Colo- err Historia Social da F.scravidão sobre a
n i a l intrinsecamente relacionado? ao Q u i l o m b o de Palmares, região íLil do Rio Grande do Sul, evidenciam um perfil dos
evidenciando as putenciaiidades subversivas das fugas e da c jtivi_>5 fujõeí e que não destoam de outros estudos no país.
montagem dos acampamentos quilombolas. Segundo João Marcelo Farias Corrêa (2010), estudando o município de Pelo-
José Reis. foi nesta conjuntura que nasceu este famigerado Ub, e Tiago Rosa da Silva (2015) a cidade de Jaguarão, eviden-
profissional "(...] instituição disseminada por toda colónia ciam o predomínio de fugas individuais sobre as coietivas,
como milícia especializada na caça de escravos fugidos e em quase sua totalidade realizadas por homens predorninan-
destruição de quilombos" (1996, p. 17). O ofício de capitão- temente com até 25 anos de idade. O que diferencia esta re-
-do-mato, de acordo corn Silvia Lara, parece ter origem nas eião ao resto do Brasil é a condição fronteiriça, tendo muitas
atividades dos chamados quadrilheiros, que no século XVII destas fugas como destino o Uruguai. Tiago Silva constatou
executavam tarefas policiais das mais diversas nos diferentes cerca de 50% dos registros de fugas encontradas nos jornais
quarteirões das Vilas e Freguesias. Como havia dificuldades de Jaguarão terem se dado rumo ao país vizinho. A abolição
de recrutamento para esta tarefa, o nome capitão-do-mato te- da escravatura no Uruguai se deu na década de 1840 (decla-
ria surgido numa tentativa de atrair maiores voluntários, pois rada em 1842 e reiterada em 1846), e para lá foi lançada a sor-
a nomenclatura, destacando-se a palavra capitão, valorizaria o te por muitos trabalhadores escravizados que vislumbravam
ofício imprimindo uma difusa insígnia de prestígio. Também usufruir da Uberdade. O Uruguai tornava-se um espaço de
se encontra na bibliografia outras nomenclaturas como capi- refugo, possibilidade agudizada até o tratado final da Guer-
tão-do-carnpo, capitão-das-entradas ou capitão-de-assalto. ra Grande em 1851 que obrigava aquela nação a devolver os
Da ênfase dada ao controle dos moradores para a tare- escravos fugidos de senhores brasileiros (PETIZ, 2006, P.63).
fa de caçar escravos fugidos, tencionada conforme as práticas De forma inversa, foi instalada neste território de fronteira
subversivas destes e destas trabalhadoras escravizadas inten- uma rede de reescravização de uruguaios libertos ou livres
sificavam, surgiu o ofício de capitão-do-mato. De acordo com que eram sequestrados naquele lugar para serem vendidos
Lara "[...] o cargo, o provimento regular dos postos e a fixação como escravos no Brasil. Nestas redes de captura ilegal de
das quantias a serem pagas foram se estabelecendo aos poucos, negros e negras livres em território uruguaio, participaram
sendo sistematicamente normalizados apenas a partir das pri- pessoas influentes da sociedade jaguarense e arredores, como
meiras décadas do século XVIII." (LARA, 1996, P. 85). O temor vereadores, padres e juizes instalados naquele território limí-
de uma nova experiência como a de Palmares e o medo senho- trofe do Rio Grande do Sul9.
rial agudizado no século XIX a partir da revolta de São Do- Damásio aparece citado em diferentes tipologias do-
mingos, causaram impacto no processo de reformulação das cumentais. Em ofícios da Câmara Municipal de Pelotas e da
práticas de governo dos escravos. Silvia Lara sentencia "[...] a
figura do capitão-do-mato tornou-se praticamente indissociá-
A respeito destas práticas no território de fronteira ver os trabalhos de Jonatas Ca-
vel da escravidão no Brasil". (1996, p. 100). ratti (2013) e Ra f a d1.ima (2010).
Delegado loc.il, em processos crimes, nas páginas de jornais ; aleurna d i í t m c n o , Uive/ causad.i por certa hierarquia sócio-
da cidade, ó assídua SLUI participação nas fontes primárias das ,profissional e pulo seu letramento. Saber ler e escrever não
décadas de 70 e 80 do .século XIX. Surge como capitão-do-ma- t'M requisito para alistar-se no antigo Corpo Policial, ou Força
to em 1873, mas é possível que tenha realizado esta atividade policial como ficou conhecida a instituição a partir de 1873 no
antes. Em processo crime datado do mesmo ano, no qual já Rio Grande do Sul 13 . Mas era elemento importante inclusive
aparece descrito com a profissão capitão-do-mato, ficamos sã- l na lida com a burocracia institucional. Cerca de metade dos
bendo que contava na época 37 anos de idade e era casado 1 •'. praças e soldados na década de 1870 em Pelotas tinham este
Na lista de qualificação de votantes do ano de 1880, Damasio ' saber, e cruzando com o censo de l S72, Damasio compunha o
consta ter 50 anos de idade, casado, sabendo ler e escrever, erupo de 37,6% da população livre que sabia ler e escrever na
morador da Rua Paysandu atual Rua Barão de Santa Tecla, • cidade (AL-ALAM, 2016, P.66).
com renda presumida em torno de 200 mil réis11. Sem a cer- .' Ser policiai naquele contexto é contar com um espaço
tidão de nascimento, fica difícil apontar com certeza a idade ; de trabalho que pouco exigia de qualificação. Era uma ocu-
deste nosso personagem. Mas teria nascido na primeira meta- ; pação temporária e não profissional, enquanto o sujeito não
de dos anos de 1830, portanto, no contexto da guerra civil far- : encontrasse outra oportunidade de um emprego com melhor
roupilha, na primeira cidade a reconhecer o governo rebelde: rendimento (MOREIRA, 1995, P.65), sendo atrativa para uma
Jaguarão. De acordo com o interrogatório concedido ao juiz ; parcela da população cuja inserção no mercado de trabalho
no processo crime já mencionado acima, Damasio seria na- j era restrita, agudizada pelos momentos de crise (ROSEM-
tural justamente daquela cidade fronteiriça com o Uruguai e ; BERG, 2008, p. 135). Damasio antes de ser capitão-do-mato,
teria ido para Pelotas entre 1868-1869. Aquele capitão-do-ma- ' ofício que talvez lhe desse maior retorno financeiro, atuou
to já deveria conhecer as experiências de fugas na fronteira. : como soldado de polícia, ocupação que servia como porta
Antes de executar as tarefas de capitão-do-ma to, Da- . de entrada no mercado de trabalho para recém chegados nas
másio, com certas variações no nome apresentado nos pró- j regiões (ROSEMBERG, 2008, P. 181), tendo esta importante
cessos crime, como Damazio de Tal, Damasio Duval, aparece i distinção de saber ler e escrever.
testemunhando em diferentes conflitos como soldado de pó- ; Este trabalho no policiamento foi fundamental para
lícia 12 . Por saber ler e escrever, também assina interrogatórios capacitar Damasio na lida das ruas, mas fundamentalmen-
para outros soldados da corporação, evidenciando que tinha • te para lhe trazer contatos importantes que seriam bastante
utilizados na captura de trabalhadores escravizados fugidos,
10. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Fundo Comarca de
Pelotas- Subfundo 2' Vara Cível. Processo Cnme Número 4419. Comarca de Rio Grande. Subfundo Tribunal do Júri. Processo Crime Número 835.1870.
11. Biblioteca Pública Pelotense (BPP). Centro de Documentação e Obras Valiosas (CE- 13 A Força Policial foi criada em 1873 e substituiu o antigo Corpo Policial, trazendo
DOC). Lista de qualificação de votantes de Pelotas. 1880. Agradeço ao Jonas Vargas como novidade a criação de seções fixas no interior da Província de São Pedro do
por ter repassado esta informação. Rio Grande do Sul, o que era visto como importante pois poderia facilitar o alista-
12. APERS. Fundo Comarca de Rio Grande. Subfundo Tribunal do Júri. Processo Crime mento dos policiais já que estes permaneceriam trabalhando em suas localidades
Número 832. 1370; Fundo (AL-ALAM, 2016, P.60).
26 DISCERE CRIMINUM 27

sempre fugidios (difíceis de localizar). Mas um conflito de másio conhecia o Tenente, por isto recuou na abordagem po-
rua envolvendo um ex-Tenente do Exército e um pequeno licial e talvez seus caminhos tenham se cruzado na Guerra. O
grupo de jovens policiais nos evidencia questões importan- capitão-do-mato pode ter vindo a Pelotas logo depois de uma
tes. A contenda ocorrida em 27 de abril de 1873, na atual Rua baixa do conflito no Paraguai, o que também poderia ter lhe
General Osório, centro da cidade de Pelotas, se deu após a dado uma experiência e capital social importante. De acordo
abordagem dos policiais ao Tenente Francisco José Bernardes, com Paulo Moreira "[...] os soldados exigiam reconhecimento
sob a alegação de que ele estava armado na rua à noite. Este e legitimidade para suas experiências ligadas ao conflito com
não deixou por menos e enfrentou os jovens soldados ques- o Paraguai" (1995, p. 83). Se o retorno da Guerra não con-
tionando a forma da abordagem e certamente o direito que cretizou para estas pessoas as promessas feitas pelo Império
tinham em interpelá-lo. se atuassem enquanto voluntários, como o acesso a terras e
prémios, elas se utilizavam desta experiência para reivindicar
A tudo isto ele respondente caminhava calmo, e sem
fazer uso de suas armas, quando ao passar por ele certo status, um capital social relevante na época. Inclusive
o capitão do mato Damazio, encostou-lhe uma pis- em relação à Polícia, as autoridades desta instituição discuti-
tola aos peitos com a intimação de que se rendesse. ram as formas de recepção dos policiais que participaram da
Afastando ele respondente a pistola com a mão, per-
guntou a Damazio o que era aquilo, e se ele o não Guerra e que voltaram com distinções hierárquicas como a de
conhecia, a isto Damazio prontamente retirou-se tra- sargento, por exemplo. Tais distinções para alguns deveriam
tando-o por Tenente14.
ser reconhecidas dentro da própria estrutura policial15.
Uma função mal vista era esta do capitão-do-mato, mas
Damásio, certamente sentindo-se ainda autorizado ao extremamente importante para os senhores de escravos, que
trabalho policial, ajudou na interpelação, mas após reconhe- dependiam deste para recuperar seus cativos. A cidade de Pe-
cer o Tenente, recuou. Não me interessa neste momento tra- lotas concentrou um grande número de trabalhadores escravi-
balhar o caso em específico, mas um vestígio captado neste zados ocupados nos afazeres das charqueadas, mas também
processo crime. O Tenente ao ser julgado por reagir ao poder em outros espaços de labuta como as diversas atividades ur-
de autoridade dos jovens soldados, perante o Juiz apresentou banas, nas chácaras, dentre outras ocupações. Em 1858, Pelotas
um documento que justificava sua baixa como combatente na contava com 4.122 pessoas escravizadas num total de 10.757
Guerra do Paraguai, realçando assim sua experiência militar habitantes (GUTiEPvREZ, 2004, p.498). Em 1873, segundo os
e reivindicando talvez outro tratamento acionado pelo capital dados das matrículas de escravos construídas pela Diretoria
social acumulado no engajamento naquele conflito bélico. Da- Geral de Estatísticas (DGE), havia 7.687 escravos na cidade
(ARAÚJO, 2011). Em 1882 ainda existiam 6.781 pessoas escra-

14. AFERS. Fundo Comarca de Pelotas. Subfundo 2' vara cível. Processo Crime Nume
ro:4417.1873.
15. Ver capítulo l de AL-ALAM (2016).
r
vizadas 16 . e em 1.884 n cidade ainda contaria com 6.D2Ô escrj- eri'/..^^ como contra a urdem pública. R dentro dês-
vos. Ma década de 1880, às portas da abolição, os senhores de toy/ o registrado como "Vagar alta noite pelas ruas fora de
escravos de Pelota? continuavam a usar intensamente este tipo hora'. q u c evidencia a intensidade das formas de sociabili-
de mão-de-obra. Tonas Vargas pesquisando os charqueadores dade t' circulação das e dos escravizados que preocupavam a
da localidade demonstrou que aqueles que puderam segurar elite senhorial. Homens e mulheres escravizados que mesmo
suas propriedades o fizeram até o último momento, relativi- com todo um aparato repressivo na cidade, continuavam a
zando a ideia já tradicional de que os grandes proprietários do exercerem suas subjetividades, praticando suas experiências
Rio Grande do Sul teriam aberto mão de seus escravos já na de vida, na maioria das vezes mal vistas pelos senhores de
década de 1870 (Vargas, 2011). Entre 1860 e 1880 havia uma escravos. A estas redes de sociabilidade e solidariedade que
média de 30 charqueadas na região de Pelotas. passavam ao largo dos olhares dos senhores, Flavio Gomes
Esta intensidade da presença de africanos e afrodescen- chamou de Campo Negro. Uma:
dentes enquanto trabalhadores escravizados, e a necessidade
[...] complexa rede social permeada por aspectos
da manutenção do status quo da escravidão, levou a instala-
mu l ti facetados que envolveu, em determinadas re-
ção de um considerável contingente de instituições normativas giões do Brasil, inúmeros movimentos sociais e prá-
na região. Estavam organizados em Pelotas desde a década ticas económicas com interesses diversos. Tal arena
social foi palco de lutas e solidariedades entre as
de 1830, a Polícia Provincial, os Guardas Municipais Perma-
comunidades de fugitivos, cativos nas plantações e
nentes, a Guarda Nacional, o Exército, a Marinha, e a Polícia até nas áreas urbanas vizinhas, libertos, lavradores,
Particular. Em 1832, em consonância aos projetos carcerários fazendeiros, autoridades policiais e outros tantos
sujeitos históricos que vivenciaram os mundos da
liberais do Estado Nacional brasileiro recém fundado, foi inau- escravidão. (GOMES, 1995: p. 36)
gurada uma Casa de Correção na cidade, que logo fracassaria l
enquanto modelo punitivo transformando-se em uma prisão Mesmo pontuando as relações dos quilombolas na so-
como outra qualquer no Império (AL-ALAM, 2008). Afinal, ciedade escravista, esta ideia dá conta da mobilidade escrava
longe dos modelos corretivos europeus e norte-americanos, a em Pelotas, que mesmo cerceada por diversas práticas nor-
prisão tinha uma função objetiva no contexto da sociedade es- mativas, incendiava o imaginário da elite senhorial.
cravista, controlar e punir quando possível a escravaria. Ainda, importante salientar que dos cerca de 330 regis-
No único livro de entrada e saída de presos que sobrou tros no livro de entrada e saída de presos escravos da cadeia
desta prisão17, justamente o que registrava os escravos, des- civil da cidade, 10% eram relacionados a práticas de fugas.
taca-se aqueles registros vinculados aos motivos de prisões Portanto, toda esta conjuntura intensa da presença da mão-
-de-obra escrava em Pelotas, principalmente pela concentra-
t
16. BPP. CEDOC. Jornal Onze de /unho. Dia 24 de novembro de 1S82. Destes 6.7S1, j ção de um grande número de charqueadas na região, e os
4.251 eram homens e 2,530 eram mulheres. i
esforços realizados pela elite senhorial em manter o usufruto
17. BPP. CKDOC Livro de entrada e saída de escravos da cadeia civil de Pelotas. 1362- jl
1878. Ver capítulo 2.2 de AI.-ALAM (2016). i disciplinado deste tipo de trabalho, demandava os usos de di-
ferentes instituições normativas e profissionais relacionadas a por
estas, dentre eles, o imprescindível capitão-do-mato. -mato. entrou em uma taberna situada na Rua General Víc-
Pelo o que observamos na bibliografia o padrão geral torino1'1, onde estava presente uma mulher fazendo compras,
desta ocupação era de uma vida muito dificultosa financeira- descrita pelo jornal Diário de Pelotas- 1 como crioula. Damásio
mente, vivendo muitas vezes estes indivíduos de vencimentos tentou agarrá-la a pretexto de andar fugida, e a mulher correu
nem tão honestos, sendo acusados "[...] de roubar escravos, buscando ajuda na casa de um senhor chamado Orestes. Da-
usar indevidamente seu trabalho e prender e até matar cativos másio per segui n do-a de facão em punho entrou na residência
inocentes para obter recompensas." (REIS, 1996, p. 17).18 gritando ofensas e insultos às pessoas presentes, chamando
Em 1871, o Delegado de Polícia de PeJotas enviava ofício a atenção dos vizinhos e passantes na rua. Alguns homens
ao Presidente da Câmara Municipal, anunciando a prisão do intervirá m e segundo o jornal "[...] deram fim a esse escân-
capitão-do-mato Liborio Appolinario e pedia providências: dalo, provocado por aquele empregado da Polícia. Não é a
primeira queixa que temos recebido contra Damásio. Preciso
Previno a V. S-. que o Capitão-do-mato Liborio
Appolinario, nomeado ultimamente para exercer
se torna, pois, que o Sr. Delegado de Polícia dê providências,
aquelas funções, tem recebido quantias independen- para que se não reproduzam esses fatos"22. Interessante des-
te de escravos fugidos, por modo ilícito prendendo tacar que esta matéria de jornal, que poderia ser um artigo
a ordem de autoridades a indivíduos e soltando me-
diante pagamento, como ainda a bem pouco tempo ou um apedido, demonstra o quanto o reconhecimento social
aconteceu quando recebeu do aguadeiro António e comunitário era complexo, nunca homogéneo, e evidencia
Mendonça Mor que, mancomunado com outros,
questionamentos à legitimidade da atuação deste capitão-do-
obrigaram-no a este a dar 1QO$000 para o soltarem o
que tendo chegado ao meu conhecimento o fiz pren- -mato naquela sociedade do século XIX, diversificada social-
dê-lo bem como os outros cúmplices. Assim, pois, mente, num intenso e produtivo setor charqueador.
levando ao conhecimento de V. S*, tomara as provi-
dências que o caso urge."
No dia 5 de novembro do mesmo ano, o mesmo jornal
Diário de Pelotas, noticiaria a prisão de Damásio Duval:
Damásio não era uma exceção, e aparece em diver-
Foi ontem recolhido a cadeia civil Damásio Duval,
sos momentos na documentação envolvido em denúncias e que exerce o emprego de capitão-do-mato.
acusações. Teve três vezes caçado o título de capitão-do-rnato Motivou sua prisão o ter desrespeitado a autoridade
policial que admoestou por ter ele feito uma prisão
pela Câmara Municipal, em 1876, 1878 e 1880.
injusta e sem ordem legal.
Na noite do dia 2 de junho de 1876, numa sexta-feira, Damásio Duval, há muito que não deveria ocupar

18. Destaque-se que, para facilitar o trabalho dos capitaes-do- mato, os anúncios de
20 Atuaí rua Anchieta.
fuga de escravizados esmeravam-se no detalhamento nas características de identifi-
cação dos tidos como fujões, seja na sua descrição física, em hábitos de sociabilida- 21, O jornal Diário de Pelotas foi um órgão do Partido Liberal e circulou entre 1366 até
de, etc. Ver: FREYRE, 1979; SCHWARCZ, 1987. 1889. Sua tipografia ficava na Rua do Imperador, atual Félix da Cunha (LONER,
20Í O, P.95).
19. AHRS. Fundo Polícia. Maço 15. Ofício Delegado Prudencio ao Presidente da Câma-
ra Municipal Dr. João Chaves Campello. Dia 13 de novembro de 1871. 22. BPP. CHX3C Jornal Diário de Pelotas. Dia 3 de junho de 1876..
o cargo d s capitão-do-rraio por seu gfrtio dísculo e
provocante, e mi-.^mc pó;- andar constantem^nte em- Aí testemunhas de acusação informaram que Damá-
briagado.
sio havia invadido a casa do denunciante e quebrado a porta.
A Câmara Municipal prestaria um relevante serviço
se demitisse esse mau empregado, substituindo-o p0r Uma testemunha de defesa, Francisco Lobato Lopes, de 40
outro de costumes morigerados e de mais confiança 3 • anos, casado, negociante e morador da cidade de Rio Grande,
afirmou ter autorizado Damásio a capturar a sua escrava e
Cedendo a pressão, no dia 20 de novembro, o Subde- levá-la até a prisão. O caso teve divergências na Justiça, pois
legado de Polícia, Capitão Manoel Luís da Cunha, pedia a • o advogado de defesa do capitão-do-mato alegou que suas
bem do serviço público, a demissão de Damásio do cargo de testemunhas não haviam sido ouvidas. Já o Juiz entendeu que
capitao-do-mato. A Câmara Municipal mandou caçar o título estas testemunhas haviam sido apresentadas após o momento
do empregado público, tido como bêbado e provocador24. As < das inquirições. Em rneio a esta discussão, um ofício assinado
habilidades sociais de Damásio não estavam sendo reconhe- . por Joaquim Guilherme da Costa, alegava que estava sendo
cidas, afinal este capitão-do-mato deveria aliviar a tensão so- coagido por Damásio a prestar depoimento em seu favor e
cial com a prisão dos tidos fugidios cativos e não tencionar o .. que certamente teria acontecido com outras pessoas. A de-
espaço urbano capturando negros livres e forros. núncia foi considerada improcedente, pois o réu teria entrado
Em 1874, Damásio já havia se envolvido em conflitos, no corredor que dá acesso a casa do denunciante para pegar a
o que é evidenciado por um processo crime contra ele. Joa- escrava, e, portanto não teria invadido o seu domicílio. Além
quim Marques de Oliveira denunciou que no dia 16 de maio disto, inferiu o juiz que a porta teria sido quebrada por Clara,
de 1874, ao voltar do seu trabalho e entrar em sua casa: que teria a agarrado para não deixar-se levar pelo capitão-do-
-mato. O denunciante apelou, mas não temos registro poste-
"[...J notou sinais de violência ern uma pequena
cancela de balaustres torneados que tem na porta rior do caso e nem ao menos soubemos como ficou a situação
da rua, e, passando a indagar do que houvesse ocor- da trabalhadora escravizada Clara.
rido, soube que o suplicado, capitão-do-maío, às 10
horas da manhã, havia com todo o desrespeito e bru-
Mesmo sendo acusado por subdelegados, delegados,
talidade entrado na casa do suplicante para prender, e outras pessoas que dispunham de representações nas insti-
como prendeu, sem formalidade alguma, e a titulo tuições normativas que gerenciavam o policiamento na cida-
de fugida, uma parda de nome Clara, que o supli-
cante tomara a jornal desde o dia 11 do corrente, e
de, assim como bastante atacado pelo jornal liberal Diário de
que costumava todos os dias sair a rua."25. Pelotas, Damásio parecia ter um capital político importante
naquela sociedade pelotense do século XIX. Em abril de 1877,
ele é indicado pelo Delegado de Polícia António José de Aze-
23. BPP. CEDOC. Jornal Diário de Pelotas. Dia 5 de novembro de 1876. vedo para receber o título novamente e retorna às atividades
24. BPP. CEDOC. Atas da Câmara Municipal de Pelotas. Sessão do dia 20 de novembro de capitão-do-mato26.
de 1876.
25. APERS. Fundo Comarca de Pelotas. Subfundo Tribunal do júri. Processo Crime Nú-
mero 977. 1374. :&. BPP. CEDOC Atas da Câmara Municipal de Pelotas. Sessão do dia 30 de abril de 1877.
Mas Ls;o não sienÍh:^\ que os conflitos cessassem. Em
í
19 de outubro de 1878, o Jornal do Comércio 2 ' e o Diário de O Lil Sr. Cjftiij,' í/ii rn,ií;> tambum coadjuvou as pra-
cns na cena d,.> u s p a noa me n tu, naturalmente persua-
Pelotas noticiavam a prisão efetuada pela Polícia Particular dido de que d:iva caca a algum escravo rugido.
de Damásio Duval por invadir uma casa tarde da noite, ar- O Sr. Sargento GmiandanU' do Destacamento che-
mado de um facão e provocando desordem com o dono do gou, momentos depois, ao lugar dos conflitos, mas
não teve ocasião de presenciar a ru/tf:::'» de seus co-
lugar 23 . O despudor de invadir as casas à busca de fujões ou mandados.
para impor sua autoridade parecia ser urna prática corriquei- Sabemos, pela respectiva parte, que o soldado autor
ra para este capitão-do-mato. dos distúrbios foi recolhido á prisão, pelo que louva-
mos o Sr. Comandante da Policia; mas e preciso que
Como antigo soldado de Polícia, Damásio devia se o mesmo comandante não mande praças ébrias em
sentir autorizado a exercer demais tarefas de policiamento na serviço, e muito menos em lugares onde se acumula
gente de todas as classes.
cidade, ou ao menos coadjuvar os praças na luta repressiva Como o cidadão espancado foi preso á ordem do
cotidiana do trabalho de rua. Afinal, havia feito sua escola na honrado Sr. Subdelegado de Policia, de S.S, espe-
atuação na cidade a partir do trabalho policial. Em conflito ramos providências no sentido de se não repetirem
cenas iguais.
que descreveremos a seguir, podemos observar as dimensões Moderado, conciliador e cheio de bondade, o Sr. Ca-
do cotidiano deste tipo de labor, já que muitas vezes o que pitão Araújo deve recomendar á policia que cumpra
demandava o trabalho da Polícia eram justamente as práticas os seus deveres, mas não maltrate ninguém 2 ^.

cotidianas populares vistas como subversivas, mas efetuadas Damásio parecia ser uma pessoa pública bastante visa-
e vivenciadas pelos próprios policiais (MOREIRA, 2009). O da naquela sociedade pelotense do final do século XIX, já sen-
Diário de Pelotas, que é o jornal onde encontramos as críticas do tratado com certo "carinho" por este impresso da cidade,
contundentes a figura de Damásio na imprensa da cidade, que ajudava na construção deste personagem.
anunciava um conflito envolvendo praças da polícia e com a Na sessão da Câmara Municipal de Pelotas do dia 30
participação do "Senhor Capitão-do-mato", certamente Da- de dezembro de 1878, o Presidente da Casa lia requerimento
másio. Vaie a pena reproduzir a transcrição da notícia; do mesmo Delegado de Polícia requisitando a demissão de
Damásio do cargo de capitão-do-mato, justificada pela falta
A Polícia anteontem andou fazendo das suas-
A' porta do circo da companhia inglesa, uma das
de cumprimento de seus deveres, sendo atendido 30 .
praças da seção fixa, completamente embriagada, Mas parece que mesmo tendo seu título de capitão-do-
provocou um pobre cidadão, dando-lhe com um re- -mato caçado, Damásio continuava identificando-se com tal
lho, o que obrigou-o a usar do direito de represália.
Foi isso bastante para que outros policiais avanças- atividade, como se fizesse parte de sua pessoa este ethos da

27. O jornal do Comércio foi fundando em 1869 e funcionou até 1882. Em 1878 passou
a circular como órgão do Partido Liberal na cidade (LONER, 2010, P.156). 29 BPP. CEDOC. Jornal Diário de Pelotas. Dia 17 de marco de 1878.
28. BPP. CEDOC. Jomal do Comércio. Dia 19 de outubro de 1878; Jornal Diário de Pe- 30 HPR CEDOC. Atas da Câmara Municipal de Pelotas. Sessão do dia 30 de dezembro
lotas. Dia 19 de outubro de 1878. de 1378.
r
sociedade escravista. Unia íorrrn de pensar e agir em sociu- santo P." captura dos encravos, teria sido um sermão realizado
dade que estava extremamente vinculado a preservação da nor P a d r e António Vieira em São Luís do Maranhão no ano
ordem escravista, mas que também estava vinculada a atua- He Itió3. Descrevia Vieira as situações em que Santo António
cão policial. Aliás, a< instituições normativas no Brasil, como era reverenciado no cotídiano da América Portuguesa: "Se
a Polícia, nasceram intimamente ligadas à preservação da vos adoece uni rilho, Santo António! Se vos foge o escravo,
propriedade privada e a escravidão, e no final do século XIX Santo António! Se requereis um despacho, Santo António! Se
tiveram atuação destacada no período de crise para preser- aguardais a sentença, Santo António! Se perdeis a menor miu-
vação deste sistema compulsório de trabalho (ROSEMBERG, deza de vossa casa, Santo António! E talvez se quereis o bem
2008). O mesmo jorna! Diário de Pelotas anunciava a atuação alheio, Santo António!" (MOTT, 1996, P.lll). O autor eviden-
de Damásio, que continuava a policiar as ruas: cia diversos registros que retorçam este imaginário de Santo
António como caçador de fujões, tanto nas elites senhoriais
Um preto, escravo, foi anteontem, á noite, surpre-
endido, em uma taverna, pelo ex-capitão-do-mato
como nas camadas populares.
Damásio, na ocasião em que tentava negociar 16 gali- Em Pelotas, o Santo tinha capela específica. No ano de
nhas, mortas e guardadas em um saco. 1852 foi criada a Capela curada de Santo António da Boa Vista,
Tentando prendé-Io para o levar até á Policia, Damá-
sio nisso empregou alguns esforços, porém o negro que passou de curato a freguesia em 1858. Esta capela deveria
pôde escapar-se. ser sustentada pelos moradores do lugar, e se destacou nesta
Essas aves íoram furtadas do quintal da casa onde
obrigação nada mais nada menos que o charqueador e ex-mi-
reside o Sr. Cícero Oliveira.31
nistro farroupilha, Domingos José de Almeida. A região da Boa
Damásio parecia ser imprescindível, mesmo com todos Vista ficava a beira do Canal São Gonçalo, espaço privilegiado
os conflitos gerados nas suas experiências cotidianas. Era útil da produção saladeiril. A relação dos charqueadores com esta
para os senhores de escravos que buscavam aqueles traba- santidade na região era mais antiga e remonta ao século XVIII,
lhadores que rompiam com o cativeiro através das práticas quando o charqueador António José Gonçalves Chaves trouxe
de fuga. de Portugal uma imagem de Santo António de Padua e doou
Se no plano da realidade material, o capitão-do-mato para o oratório da charqueada de João Simões Lopes. Este últi-
era fundamental, no campo mágico religioso Santo António mo, posteriormente, com o aumento da devoção da população
era importante na proteção e ajuda na captura dos fujões. do lugar, construiu em sua propriedade um templo para este
Luiz Mott abordou os significados da representação de San- Santo. Foi neste espaço que alguns senhores da elite local reali-
to António nos diversos setores da sociedade escravista e in- zaram seus matrimónios, como o charqueador Domingos José
clusive o papel do santo na caça aos escravos fugidos e na de Almeida já citado aqui.
destruição de quilombos. O rnais antigo registro do poder do Assim, se fizéssemos um entramado das redes
sócio-familiares e políticas dos charqueadores locais,
31. BPP. CEDOC. Jornal Diário de Pelotas. Dia 27 de setembro de 1879.
no centro estaria Santo António! Claro que nem San-
38

Ati-nMJu - Fui rendo ontem, d^ 9 para as 10 ho-


LJÍ d'.; dia. com ;mia facada nas cobtdi o capitão do
com os poderosos locais, o milagreiro de Pádua era mato, Damásio Moreira, na ocasião em que afrouxa-
mais bc-m conhecido como Santo António das Char- va as cordas que amarravam os braços de um escra-
queadtis. Tratado com relevo por seus afortunados vo do Sr. Dr. Thomaz Rodrigues Pereira, que andava
hcií, homenageado com orações c doações, também fugido, e fora agarrado por Alexandre, companheiro
Santo António, como os meros mortais, eslava in- de Damásio.
serido em uma cadeia de reciprocidades. Além do O Sr. capitão Manuel Luiz da Cunha tomou conhe-
conforto espiritual os que financiaram a construção cimento do fato.
do templo esperavam saúde para a família, felici- O negro foi conduzido preso para a cadeia civil.
dade nos negócios e proteção contra os inimigos. Ao O ferimento de Damásio é grave, podendo produzir
pedirem isso, os prósperos simpatizantes de Santo a morte32.
António tinham cm mente os indivíduos cujas mãos
negras haviam erigido o templo em que rezavam, Num descuido, o capitão-do-mato quase foi executado.
aqueles que os sustentavam, com os quais conviv- j
Mas esta não foi a sorte de outro caçador de escravos fugidos.
iam e por vezes ameaçavam seriamente: os escravos.
A estes esperava-se que Santo António subjugasse, Alexandre, companheiro de ofício de Damásio, descrito in-
tomando-os satisfeitos e acomodados ao cativeiro, clusive acima na notícia, em fevereiro de 1882 acabaria sendo
que os devolvesse quando fugissem e que os enfra-
quecesse quando excessivamente rebeldes, para que
assassinado por um escravo fugido e sem nome identificado,
fossem facilmente aniquilados pelas abençoadas tido como propriedade do Sr. Felisberto Cunha33.
partidas que os perseguissem. (AL-ALAM; MOREE- Na sessão do dia 6 de agosto de 1880 da Câmara Mu-
RA; PINTO, 2013, p.72-73)
nicipal, o Presidente da Casa lia solicitação do Delegado de
Polícia que pedia a demissão de Damásio Duval por irregular
Santo António de Padua, Santo António da Boa Vista, conduta da prática como capitão-do-mato, acatando a propo-
Santo António das Charqueadas! Era íntima a relação entre o sição. No seu lugar fora nomeado Alexandre Pinto de Souza
Santo e os charqueadores, entre o mundo mágico religioso e * que faleceria dois anos depois assassinado pela resistência
a escravidão. ' de um trabalhador escravizado fugido34. Damásio, portanto,
Aliás, interessante destacar a importância da proteção mesmo sendo demitido em 1878, teria sido nomeado em 1879,
de Santo António na caça aos fugidos, pois ser capitão-do-ma- provavelmente no final deste ano, já que em matéria de jornal
to também era estar no limite da vida, já que podiam sofrer citado acima, ele ainda aparecia fora do cargo. Esta instabili-
represálias daqueles que eram objetos de suas caçadas. Em 31 dade demonstra a natureza contraditória do cargo de capitão-
de janeiro de 1878, o Jornal do Comércio denunciava ataque
a um capitão-do-mato, que aparenta ser inclusive o Damásio 32 BPP. CEDOC Jornal do Comércio. Dia 31 de janeiro de 1878.

tratado neste texto, mas infelizmente nos faltam elementos 33 BPP. CEDOC Jornal do Comércio. Dia 25 de fevereiro de 1882. "Assassinato-Cons-
ta ter sido ontem assassinado no Capão do Leão, Alexandre de ta!, que exercia o
para apontar uma certeza. cargo de capitão do mato nesse município. O assassino dizem foi um escravo do Sr.
Felisberto Cunha, que anda fugido. Faltam-nos outros pormenores.".
34. BPP. CEDOC. Atas da Câmara Municipal de Pelotas. Sessão do dia 6 de agosto de
1880.
-do-mato, porque se ao mesmo tempo os trabalhadores deste infame ocupação fez história.
posto acarretavam diversas experiências problemáticas, por Se politicamente a pauta da abolição veio a erodir a fi-
outro lado eram fundamentais na preservação da proprie- gura do capitão-do-mato como exemplo da tirania do sistema
dade escrava, úteis a senhores e ao governo. Uma profissão escravista, alguns destes indivíduos continuaram a capitali-
que dependia de certos atributos como de saber usar armas, zar socialmente a atuação nesta profissão.
conhecer a região, manejar o território e seus diferentes ha- Fernando Osório, como abordado no início deste texto,
bitantes buscando informações, mas que era vista como des- a partir das memórias do Major Tornas Francisco da Costa,
qualificada, pouco rentável e deveras estigmatizada. registrou este vá íor que os capitães-do-mato apresentavam de
As formas de atuaçào policial foram demarcadas peia sua atividade. E neste relato, está presente a figura de Damá-
escravidão, como dito anteriormente, e em 1886 o mesmo jor- =io, eternizado na memória popular da sociedade pelotense.
nal Diário de Pelotas noticiava as práticas repressivas marca-
O lugar de capitão do maio, lembramo-nos ter sido
das pelas relações raciais no sistema escravista. aqui desempenhado por Luiz Coxo, Libório Apoli-
nário e Damásio de tal, todos peritos e habilíssimos
Proezas policiais- Estamos atravessando uma queda no exercício das honrosas funções. E tanto assim é que,
de justiça e ordem, não há dúvida! por algumas vezes, tivemos ocasião de observar a
Os agentes policiais que exorbitando as suas atribui- sua entrada gloriosa e triunfal na cidade, a cavalo, tra-
ções, fazem desaparecer os infelizes que lhes caem nas zendo a cabresto o negro fugido, mãos atadas para
garras, arvoram-se agora em capitães-do-mato. as costas, e por um maneador ou corda no pescoço
Ontem ás 11 horas do dia, na esquina da Copa Ca- preso à argola da barrigueira dos arreios! O último
bana, duas praças de policia agarraram um infeliz desses capitães do mato tinha na parede da casa em
homem de cor e depois de o espancarem amarra- que residia, à rua Paissandu, este peregrino rótulo, em
ram-no e conduziram-no para o xadrez da policia. letras gordas como ele: 'Aqui mora o Sinhor Dama-
O crime praticado pelo preso, diziam os policiais, zio de... Empregado Publico do Governo Capitão do
era andar fugido, Mato abei para discubrir negros fugidos de dia ou de
Que moralidade! noite sempre as ordes'" (sic)36.
E viva o partido da ordem e os abolicionistas de oca- |

Damásio ficou monurnentalizado na memória da ci-


Cabe lembrar que um ano depois, em 1887, o Clube dade. Personagem infame, evidencia as experiências destes
Militar numa estratégia política de ataque a monarquia, se indivíduos que se submetiam a postos de trabalhos que não
oporia a prática de caçar escravos fugidos, mas a Polícia eram valorizados e nem tão pouco bem vistos na sociedade.
continuava a fazer abordagens como capitães-do-mato. Mas que eram úteis na manutenção do sistema escravista.
Convenhamos, práticas repressivas racializadas que até hoje Tratar da figura do capitão-do-mato é também discutir um
marcam o cotidiano das abordagens policiais no Brasil: a pouco mais sobre a história da Polícia, que nos últimos anos

35. BPP. CEDOC. Jornal Diário de Pelotas. Dia 26 de janeiro de 1880. 36. OSÓRIO, 1997, P.157.
E, O i l n e r to. O escravo nos anúncios de jornais
tem focado suai análises no cotidjano destes trabalhadores
, , as ileiros do século XIX. São Paulo: Nacional; Recife:
também pode desvendar um pouco do ethos racializado de'1
Insituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1979.
atuação desta instituição até os dias de hoje no Brasil.
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44

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O CRIME ENTRE ESCRAVOS, LIBERTOS E
PESSOAS LIVRES EM INHAMBUPE - BAHIA
(SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX)

Introdução

A terra sempre teve um valor inquestionável na his-


tória das sociedades, principalmente para aqueles que dire-
tamente dependiam dela para a sobrevivência. Dessa forma,
a disputa peia posse da terra, ao longo dos tempos, tem sido
fator de diversos conflitos entre os proprietários e aqueies
que almejavam terras alheias. Muitas vezes essas disputas
aconteciam entre os possuidores de grandes áreas querendo
alargar seus limites, como também entre pequenos proprietá-
rios almejando um pedaço de terra a mais para ampliar suas
plantações ou pequenas criações. Esse tipo de situação envol-
vendo pequenos proprietários, para o contexto do século XIX
no Brasil, geralmente acontecia entre homens livres e pobres,
í como também entre escravos e libertos que percebiam a opor-
! tunidade de garantir um bem de raiz. Foi o que aconteceu na
í Vila de ínhambupe no ano de 1883, quando ocorreu uma dis-
I puta por uma área de terra entre Marcai Seraphim dos Anjos
e Eugênio Alves de Souza.

37. Graduado em Licenciatura em História pela Pontifícia Universidade Católica do


Rio de Janeiro - PUC-RIO (2010); Especialista em Mídias na Educação pela Univer-
sidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB (2013); Especialista em História, Edu-
cação e Sociedade pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB (2014); professor
da Secretaria de Educação do Estado da Bahia, Mestrando em História Regional e
Local pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB. O presente estudo, financiado
pela CAPES, é fruto da pesquisa desenvolvida no mestrado.
r
De acordo com os autos do processo esta disputa já' nara a sobrevivência da população na Vila de Inhambupe.
vinha ocorrendo a mais de cinco anos, em que Eugênio per- Já foi discutido em vários estudos sobre escravidão na
segue Marcai, ora desmanchando suas cercas, ora colocando Bahia a condição do escravo que residindo na propriedade
animais dentro das plantações para serem destruídas, pelo Ho senhor, em algumas oportunidades, lhe era concedido o
fato deste não admitir que Eugênio tome posse das suas ter- direito de desenvolver a cultura de subsistência para o sus-
i
rãs. Entretanto, este conflito chegou a um momento muito tento de sua família e, a partir daí, produzir excedente, bem
tenso, como é descrito em um trecho da denúncia promovida como, poder criar alguns animais para sua própria econo-
pelo promotor público contra Eugênio Alves de Souza e seu mia. O estudo feito por Walter Fraga Filho, "Encruzilhadas
filho Marcos Alves de Souza: da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870
_ 1910) ", retrata muito bem as experiências de escravos que
No dia 20 de junho, do corrente ano, pelas 8 horas da
manhã, estando Marcai com um seu filho de menor vivendo nos engenhos e fazendas, conseguiam, nas oportu-
idade, carregando madeira para concluir, por ordem nidades que tinham, usufruir do espaço da fazenda ou enge-
do subdelegado, as cercas de sua roça, apresenta-se
nho, no propósito de produzir género de subsistência ou criar
Eugênio com um seu filho de nome Marcos e mais
4 ou 5 pessoas, e com eles destruíram as cercas de animais, na perspectiva de melhorar sua condição de vida e
Marcai, carregando as madeiras para dentro da mes- da sua família, ou até mesmo, com o objetivo de acumular
ma sua roça. Marcai sendo testemunha do roubo
pecúlio para a compra de alforria.
que Eugênio com a sua gente estava praticando, a
ele se opõe por meio de palavras, mas Eugênio en- O estudo feito por este autor retratando, principalmente,
sandecido por esta oposição, agride-o com um cace- o espaço de Salvador e Recôncavo, descreve vários casos desse
te, que se achava armado, fazendo-lhe os ferimentos
descripíos no auto de corpo de delicto.58
tipo de relação entre senhor e escravo, e sobre isso ele diz que:

Não podemos esquecer que os engenhos eram do-


Eugênio Alves de Souza conseguiu fugir e a polícia só tados de recursos naturais, sobretudo matas e man-
conseguiu prender seu filho Marcos Alves de Souza, por ter gues, de onde os cativos podiam retirar parte dos
géneros de subsistência. Nos engenhos próximos ao
também participado da agressão a Marcai. O agressor Marcos
mar, alguns escravos se especializaram na profissão
foi levado a júri popular no dia 31 de agosto de 1883, sendo de mariscador. Quando o cativeiro acabou, muitos
absolvido do crime contra Marcai. Após essa absolvição, Eugê- deles continuaram ligados a essas atividades como
alternativa ao trabalho nos canaviais. Além de am-
nio Alves de Souza também se entregou para que fosse a júri pliar o acesso a bens que não estavam incluídos nas
popular no dia 21 de maio de 1884, quando também foi absol- recompensas feitas pelos senhores, as atividades
vido. Assim, conclui-se depois da análise desse processo-crime independentes poderiam abrir possibilidades de al-
cançar a alforria.39
que a terra era um bem precioso, disputado e determinante

38. APEB -Arquivo Público do Estado da Bahia, Processo-crime de 09-07-1883, Estante


21, Caixa 868, Documento 02, Folhas 01-105.
39. FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e liber-
to* na Bahia (1370 -1910). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006, p. 40-41.
50
r
Alguns estudos discutem a questão de o escravo con- Um estudo feito no interior da Bahia, no século XIX,
quistar espaço de terra dentro da propriedade do senhor para "O cri'-'-' •'•-'' cjr: ^scra^os *. forros no alto sertão ií.i Hahia (1S30 -
poder plantar ou criar animais, estabelecendo, com isso, uma 15SS* ", à.£ Maria do F á t i m a Novaes Pires, também trata desta
espécie de economia autónoma. Sobre isso, Ciro Flamarion aufstãú. Segundo a autora, ; 'tor direito a plantações próprias
Santana Cardoso, em sua obra "Agricultura, escravidão e ca- e mesmo ao criatório de gado contribuía para que se amea-
pitalismo", diz que: lhasse recurso para a compra da própria liberdade, de paren-
tes ou parceiros, fato comurn na escravidão brasileira" 4 '.
Os proprietários de escravos cediam uma parcela de
terra o tempo (domingos e feriados) aos seus cativos Outra questão discutida neste estudo de Maria de Fáti-
para que eles produzissem alimentos (produção de ma Novaes Pires, pertinente ao trabalho de escravos e libertos
subsistência) e criassem pequenos animais. O exce-
nas áreas rurais, é sobre as várias habilidades e atividades
dente eventualmente produzido era comercializado
ern circuitos locais de troca, pertencendo ao cativo desenvolvidas por estes sujeitos. De acordo com a autora:
os ganhos obtidos com sua venda. Esta prática tinha
uma função bem definida dentro do quadro do es- A maioria dos escravos sertanejos trabalhava nas la-
cravismo colonial, qual seja a de minimizar o custo vouras (escravos de eito), outros serviam às tropas,
de manutenção e reprodução da força de trabalho w outros eram vaqueiros, outros trabalhavam como
escravos domésticos. Trabalhavam ao lado de forros
e trabalhadores livres pobres na policultura, com o
João José Reis e Eduardo Silva, na obra "Negociação e cultivo do algodão, milho, feijão, mandioca. Fabri-
conflito: a resistência negra no Brasil escravista", observam a im- cavam rapadura, farinha e aguardente, trabalhavam
também como ferreiros, latoeiros, carpinteiros, cos-
portância de escravos conquistarem um espaço dentro da pro- tureiras, lavadeiras, sapateiros, oficial e princípio de
priedade do senhor para poderem desenvolver uma economia sapateiro, pedreiros, trabalha de machado e eixada e
autónoma, destacando que para os senhores a concessão de um nos afazeres domésticos, como cozinheiras, engoma-
deiras e amas.43
pedaço de terra aos escravos, além de servir como um mecanis-
mo de segurança e controle, também era uma forma de minimi-
zar os custos com o sustento da escravaria, e para os escravos era Ainda sobre as profissões e ocupações de escravos, a
um avanço no caminho da liberdade. Segundo os autores: historiadora Maria José de Souza Andrade, que tem estudo
sobre o trabalho escravo na cidade de Salvador no século XIX,
Ao ceder um pedaço de terra em usufruto e a fol-
ga semanal para trabalha-la, o senhor aumentava a
diz que:
quantidade de géneros disponíveis para alimentar a
Muitos escravos tinham mais de uma ocupação,
escravaria numerosa, ao mesmo tempo que fornecia
dependendo da necessidade do senhor ou da pos-
uma válvula de escape para as pressões resultantes
sibilidade do mercado (...). Todo esse empenho do
da escravidão.11
escravo em trabalhar em várias atividades tinha

40. CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Agricultura, escravidão e capitalismo. Pttró-


polis, RJ: Editora Vozes, 1979, p. 193. 42 PIRES. Maria de FJtimj Novaes. O crime na cor: escravos e forros no alto sertão da
Bahia (1830-1888). São Paulo: AnnablurmVFapesp, 2003, p. 91.
41, REIS, João José e Silva, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Bra-
sil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 28 43 Ibidem.p. 91.
Pesquisadores brasileiros que foram influenciados pelo
historiador inglês E. P. 'l hompson vêm observando que essa
pratica de economia autónoma desenvolvida pelos cativos
De acordo com os dados levantados pelo recenseamen- estabeleceu entre senhores e escravo? um acordo pautado a
to feito em 1872 para a Vila de Inhambupe, observa-se qu e partir de costumes, que proporcionavam certos direitos aos
dentre as diversas profissões manuais exercidas por escravos cativos.^Assím, quando esses direitos eram infringidos, con-
e libertos na Freguesia do Divino Espírito Santo de Inham- sequentemente algum conflito era gerado.
bupe, as atividades agrícolas são as que detêm a maior parte Um trabalho realizado por Maria Helena P. T. Macha-
dessa população, pois dos 5275 trabalhadores escravos atu- do, intitulado "Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas
ando nos serviços manuais ou mecânicos, 3140 exerciam os ia-jouras paulistas (1830 - 1888) ", que pesquisou a criminali-
serviços da lavoura, ou seja, 59,53 % do total desses trabalha- dade escrava nos anos finais da escravidão, nos municípios
dores que atuavam em serviços manuais ou mecânicos. Desta paulista de Campinas e Taubaté, procurou mostrar que em
forma, podemos compreender que se a maioria da população diversas situações as razões dadas pelos escravos para seus
de escravos e libertos na Vila de Inhambupe trabalhavam nos crimes cometidos eram em função de seus direitos terem sido
serviços da lavoura, há possibilidades de boa parte dessa po- desrespeitados. Segundo a autora:
pulação, ainda na condição cativa, se dedicar a alguma ativi-
Um estudo desenvolvido a respeito da criminalida-
dade de interesse próprio ou de sua família, seja na lavoura de escrava nas áreas cafeeiras paulistas no século
ou criação de animais, dentro da propriedade de seu senhor. XIX, pude constatar a luta dos escravos para preser-
var, no sistema de trabalho vigiado característico das
Sobre essa questão de o senhor conceder um pedaço
grandes fazendas, margens de autonomia, entendi-
de terra ao escravo, temos o caso da escrava Joviniana, ca- das como possibilidades de usufruir de períodos de
bra, solteira, com idade de vinte e sete anos, pertencente ao tempo livre para a concretização de uma organiza-
ção social e económica independente do sistema da
Senhor Manoel Ferreira de Carvalho, que consegue negociar plantation. Pois, segundo o ponto de vista dos es-
sua carta de alforria fazendo a troca por um carro de fumo cravos, o que importava era defender das investidas
e mais um ano de serviço. Com este caso podemos concluir senhoriais os espaços de autonomia conquistados
por confrontos constantes: uma cadência de trabalho
que provavelmente foi dado à escrava Joviniana o direito de orgânica ao grupo, urna organização social indepen-
cultivar a lavoura de fumo nas terras do senhor a ponto de ter dente, uma incipiente produção de subsistência na
forma de roças e de uma microeconomia monetária,
uma colheita suficiente para ser produto de negociação por
proveniente tanto do pequeno comércio de géneros
sua liberdade. 45

46. E. P. Thompson tem estudos sobre a sociedade inglesa do século XVIII, com foco
44. ANDRADE, Maria José de Souza. A mão de obra escrava em Salvador, 1811 -1860. ; nas discussões sobre costumes, direitos consuetudinános, nos conflitos e na relação
São Paulo. Coirupio; Brasília, DF: CNPq, 1988, p. 131. entre as práticas sociais e as normas legais. Cf. THOMPSON, E. P. Costumes em
45. APER - Arquivo Público do Kstado da Bahia, Livro de Notas do Tabflionato de : comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das
Inhambupe, n1' 19, fls. 145, 09/04/1878. Letras, 1998.
r O pi-j.j:áno da Fazendo Tigre-. Segundo a d e n ú n n a feita pela
nroprb vítima na subdelegada d:i Freguesia di1 Aporá, foi co-
locado o seguinte:
Como se percebe., a autora deixa claro que além das
Serafim Pinto de Souza propnet.írio deste termo do
atividados desenvolvidas no espaço conquistado dentro da Inhjmbupt:, du acordo com o di.-.po^to do artigo 74 3
propriedade do senhor, das recompensas e pagamentos pelo 6J do Código do Processo C ri nu.- c1 artigo 15 da Lei rf
2033 de 20 d t? abri l d e 1871, vem denunciar a este juízo
trabalho nos dias livres, alguns escravos se utilizavam, ainda,
o indivíduo Fioriano, crioulo, escravo de Dona Cristi-
de furtos para adquirir algurn recurso. Assim, outra pesqui- na Maria de Jesus, preso em flagrante delicto e condu-
sadora, Elione Guimarães, que em seu livro "Terra de preto: zido à prisão desta vila, pelo fato seguinte: No dia 12
do corrente mós de junho, os denunciados (Floriano e
usos e ocupação da terra por escravos e libertos (Vale do Paraíba João Brás) saíram armados de espingarda e facas pe-
mineiro, 1850 - 1920) ", que trata dessa mesma questão, diz los campos de criação da Fazenda Tigre, propriedade
que "os furtos cometidos por escravos também são conside- do denunciante, e ali disparando em uma rês de cor
castanha, ferrada com o ferro da dita Fazenda Tigre,
rados uma forma de economia complementar (assim como de (...) morta com descrição, passa à casa do l- denuncia-
resistência ao sistema) ".4S do, Floriano, onde, depois de tratada, trataram de sua
partilha, enterrando o couro no fundo da casa.19

O crime de furto na vila de Inhambupe


Na diligência policial para dar flagrante aos acusados,
Na Vila de Inhambupe, no período ao qual este estudo só foi encontrado o escravo Floriano, pois o outro denuncia-
se compromete, de 1870 a 1888, nos processos-crimes pesqui- do, João Brás, tinha conseguido fugir. Quando no interrogató-
sados, foram encontrados diversos casos de furtos envolven- rio feito pelo subdelegado da Freguesia do Aporá ao primeiro
do escravos, que podem ser compreendidos tanto como ações acusado, ele foi qualificado com o nome de Floriano, escravo
que visavam uma renda complementar, como também uma de Dona Cristina Maria de Jesus, filho natural de Joana, maior
forma de resistência ao sistema. Como o caso do escravo Fio- de trinta e oito anos, solteiro, vive da lavoura, não sabe ler
riano, que aconteceu na Freguesia do Aporá, pertencente à nem escrever, mora no lugar denominado Saco do Matias,
Vila de Inhambupe, em 12 de junho de 1887, escravo de Cris- Freguesia do Aporá, e ao ser perguntado se era verdade o que
tina Maria de Jesus, que foi preso sob acusação de ter rou- acabaram de dizer as testemunhas e o que ele tinha a alegar
bado uma vaca do Tenente Coronel Serafim Pinto de Souza, em sua defesa, ele respondeu que foi verdade que João Brás
atirou na vaca pertencente ao Tenente Coronel Serafim Pinto
47. MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistêncij de Souza, tirada da Fazenda Tigre e que ele, justamente
nas lavouras paulistas (1830 - 1888). 1* edição. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 2014, p. 144 - 145.
48. GUIMARÃES, Elione Silva. Terra de preto: usos e ocupação da tetra por escravos e
libertos (Vale do Paraíba mineiro (1850 - 1920). Niterói, RJ; Editora da Universida- 49. APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia, Processo-crime de 20-06-1887, Estante
de Federal Fluminense, 2009, p. 37, 26 Caixa 923, Documento 03, Folha 2.
com seu companheiro, f i c a r a m com a carne para comer e que [890, mesmo ano do j u l g a m e n t o e condenação, ele veio a fale-
a carne tinha sido guardada em sua casa e o couro enterrado cer na prisão, e de acorde com o exame de corpo de delito, o
no quintal. E ainda foi perguntado a Floriano se ele antes des- e\-escravo faleceu de morte natural, em função de ter passa-
se episódio não tinha feito outros furtos dessa mesma nature- jo vários dias doente na prisão, provavelmente vítima de do-
za. Ele respondeu que apenas tinha roubado um porco de um ença adquirida por causa das condições precárias da prisão.
senhor chamado Angelo, morador da localidade do Gravata. Com tudo isso há de se concluir que o desvio de conduta do
Diante do depoimento do escravo Floriano, nota-se escravo Floriano, praticando f u r t o de animais, possivelmente
que apesar dele acusar seu parceiro João Brás de ser o prin- é uma resposta à falta de oportunidade dada por sua senhora
cipal personagem na prática desse crime, por ter dado o tiro dentro da fazenda, não permitindo que o escravo estabele-
que matou a vaca, ele não nega sua participação, como tam- cesse algum ganho próprio, ao mesmo tempo que, com essa
bém, declara já ter praticado outro furto. Assim, ao analisar prática, ele pode estar demostrando uma forma de resistên-
o processo nas suas 71 folhas, percebe-se que a condenação cia ao sistema. Sobre casos como este que envolveu o escravo
do escravo Floriano é algo incontestável, que todas as teste- Floriano e João Brás (indivíduo livre e pobre) que optaram
munhas de acusação descreveram o réu como um sujeito que pelo furto de animais como forma auxiliar ou exclusiva na
tinha como costume a prática do furto, mesmo porque, o pró- geração de uma economia autónoma, foi discutido por Ma-
prio Floriano confessou seus crimes. Entretanto, talvez esses ria Cristina Cortez Wissenbach, em seu trabalho intitulado de
furtos praticados por Floriano podem ser vistos como ações "Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Pau-
compensatórias pelo trabalho escravo que desenvolvia. lo, (1S50 - 1880) ", no qual, segundo a autora, sobre o crime de
Diante de um quadro totalmente desfavorável ao es- furto praticado por escravos em parceria com pessoas livres e
cravo acusado de furto, depois de três anos preso esperando sob o ponto de vista dos praticantes, diz que:
o julgamento, enfim, foi julgado no dia 28 de maio de 1890, Vistas do ângulo dos réus, as mesmas transgressões
já depois de abolida a escravidão, na condição de ex-escravo, denotam existência de práticas económicas de cará-
ter residual realizadas entre escravos e extensivas aos
e mesmo diante dos argumentos apresentados por seu advo-
homens livres pobres, instituindo, na maior parte das
gado, Elesbào José de Avelar, tentando mostrar razões que vezes, formas peias quais proviam suas necessidades
sustentavam a inocência de seu cliente, Floriano foi conde- básicas ou um pouco mais além do mero vestir e co-
mer. Consideradas por seus autores como maneiras
nado à prisão, por unanimidade do júri, sendo definido uma de complementar a sobrevivência, explica-se a apro-
pena de dois anos e um mês, a ser cumprida com trabalho em priação de produtos de pequeno valor, mas que se
Salvador, capital da Bahia, além da multa aplicada sob o valor revertiam em suplementarão monetária, importante
num regime de trabalho e numa sociedade nos quais
avaliado do furto. ausentavam fontes regulares de suprimento de di-
Contudo, o destino do condenado Floriano foi mais nheiro, ao mesmo tempo em que exigiam dos escra-
drástico do que o esperado, pois no dia 08 de outubro de
T
Olhoí d'Agua, localidade pertencente à Vila de Alagoinhas,
E é justamente dentro dessa argumentação contextuai onde João da Bebida foi acusado de ter vendido algumas re-
da autora, que nos possibilita compreender os motivos pelos ses, e as outras três testemunhas eram residentes na própria
quais levaram o escravo Fioriano a cometer o furto da vaca do fazenda Laranjeira, e todas as testemunhas interrogadas con-
Tenente Coronel Serafim Pinto de Souza, em sua Fazenda Ti- firmaram o crime praticado pelo réu João Alberto de Lima.
gre. Pois, de acordo com a análise feita nesse processo-crirne, Entretanto, o réu ao ser interrogado pelo juiz, acusa de
fica claro que o escravo residia sozinho numa casa dentro da ter comprado cinco reses desse gado ao escravo Leonardo,
fazenda de sua senhora, Cristina Maria de Jesus, onde tinha vaqueiro da própria Fazenda Laranjeira. Só que, em seu in-
que manter uma rotina de trabalho escravo para a mesma, terrogatório, o réu não conseguiu explicar ao juiz como ele
ao mesmo tempo em que, certamente, teria que criar outras adquiriu as outras vinte e tantas reses que foram roubadas
rendas para auxiliar na sua sobrevivência, em virtude da falta da Fazenda Laranjeira, se ele declarou que só comprou cinco
ou pouca condição proporcionada por esta senhora. delas ao escravo Leonardo, sendo que em seu depoimento, o
O furto de gado era algo muito comum na Vila de já liberto Leonardo nega toda a acusação, dizendo que nunca
Inhambupe durante a segunda metade do século XIX, e mui- fez negócio com João Alberto. Assim, o réu não tendo como
tas vezes esse tipo de crime ao ser praticado por pessoas li- provar a participação de Leonardo no furto desse gado e
vres, ao serem presos e interrogados, tentavam transferir a diante das evidências de que ele foi o próprio autor do crime,
culpa a escravos, pelo fato deste grupo estar socialmente mais o juiz entendeu que o escravo não teve participação.51
vulnerável e fácil de se atribuir qualquer culpa, como foi o Outro caso de furto de gado que chamou a atenção das
caso que aconteceu no ano de 1878, na Fazenda Laranjeira, autoridades da Vila Inhambupe, nesse mesmo ano de 1878,
propriedade do Tenente Manoel Ferreira de Carvalho, no qual pelo seu grau de premeditação, foi o que aconteceu na Fazen-
ele apresenta uma queixa na delegacia da Vila de Inhambupe, da Volta, propriedade de Manoel Ferreira Coelho, localizada
acusando João Alberto de Lima, mais conhecido como João na Freguesia de Inhambupe, quando, de acordo com o inqué-
da Bebida, ambos moradores na mesma Vila de Inhambupe, rito policial instaurado na delegacia daquela vila, no dia 30
de ter-lhe roubado mais de trinta cabeças de gado. Segundo o de junho do referido ano, por volta do meio dia, Manoel Al-
proprietário Manoel Ferreira de Carvalho, esse gado foi rou- berto do Espírito Santo, portando uma espingarda, disparou
bado aos poucos, e de acordo com as informações que con- um tiro em um garrote na Fazenda Voíta e, depois do animal
seguiu, soube que o dito João da Bebida foi o autor do crime morto, arrasto-o até sua residência, na Fazenda Cajá. Entre-
e que vendeu diversas reses pelos povoados da região. Das tanto, apesar dele ter se preocupado, logo em seguida, em
cinco testemunhas de acusação, duas residiam no Arraial dos esfolar o garrote, esconder a carne e enterrar o couro, não teve

50. W1SSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos 51 APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia, Processo-crime de 11-02-1878, Estante
e forros em São Paulo, (1850 -1880). São Paulo: Editora Hucitec Ltda, 1998, p. 52 24, Caixa 836, Documento 04, Folhas 01-66.
como apagar o rastro deixado pelo animal morto puxado da pretensão de justificar todos os casos de furtos de gado em
Fazenda Volta até sua casa. Pois, o vaqueiro desta fazenda, ao Inhambupe em função das secas que ocorreram, não há dú-
seguir este rastro, descobriu o autor do furto, como é descrito vidas de que, em alguns casos, a fome foi a motivação. De
neste trecho do inquérito: acordo com Graciela Rodrigues Gonçalves, que tem o estudo
"'As sscas na Bahia do século X/X; sociedade e política", diz que a
foi que tivesse o vaqueiro encarregado desta fazen-
da, Ladislau Correia da Silva, encontrado o arras- região nordeste da Bahia, na década de 1870, foi marcada por
tado, por onde foi conduzido o garrote, seguiu no períodos de secas significativas, e que as Comarcas de Feira
arrastado, que foi ter nas cercas da roça do queixa-
de Santana, Inhambupe, Itapicuru e Monte Santo estavam em
do, e dai voltando, tratou de procurar o auxílio do
inspector, Joaquim Adrião de Sousa, e com outras situação mais crítica entre as localidades dessa região. 53
pessoas seguiram o encalço do mesmo queixado, Também era uma prática comum daqueles que come-
sob o qual recaiam bem fundadas suspeitas de nele
tiam o furto de animais, ao serem flagrados em seus delitos,
assim em praticar arrimo de igual natureza, o quai
sendo encontrado e perguntado de que era aquele argumentarem que tinham comprado esses animais de al-
arrastado que havia até suas cercas, logo e com o guém. Foi o que aconteceu com Honorato José da Silva ao
maior arrimo, longe de ocultar seu crime, o confessa-
va declarando que forçado pela necessidade, atirou
furtar uma cabra de Angelo Alves de Azevedo. O Caso acon-
em um garrote e o arrastara para sua casa, onde o teceu na Fazenda Retiro, na Freguesia do Aporá e Vila de
esfolara, utiiizando-se da carne. Não ficou ainda o Inhambupe, no dia doze de maio de 1886, quando Honorato
cinismo do queixado nessa confissão, apresentando
mais o lugar onde enterrara o couro, que assim des- José da Silva foi flagrado esfolhando uma cabra, em sua resi-
coberto foi descavado, e verificado pelo ferro sendo dência na localidade do Retiro, pela vítima, o sr. Angelo Al-
do domínio do queixoso; à vista do que fora logo in- ves de Azevedo; o inspetor de quarteirão, José Maria de Brito;
timada a ordem de prisão em flagrante, e conduzido
à delegacia desta vila, onde mais clamando confessa e mais duas testemunhas, Salustiano Pereira Lima e Martinho
o seu crime, como se evidencia do inquérito, que a Crisóstimo de Araújo. Quando Honorato foi interrogado pelo
esta acompanha."
subdelegado Basílio José d'Oliveira como se deu o caso, ele
O furto de gado sendo usado como alternativa para disse que tinha comprado a cabra por mil e quinhentos reis,
se matar a fome foi o argumento de muitos que praticaram na localidade do Papagaio, a um sujeito cujo nome não sabia.
esse crime naquela época. E mesmo entendendo que a po- Entretanto, antes de ser conduzido para as autoridades em
pulação mais carente de Inhambupe naquele período passou Inhambupe, o inspetor levou Honorato até a Fazenda Papa-
por diversas dificuldades, incluindo a falta de alimentos, não gaio para localizarem o suposto vendedor da cabra, que não
se cogita a possibilidade de as autoridades aceitarem tais ar- foi encontrado, pois, provavelmente, não existia o dito vende-
gumentos na justificativa do crime. Entretanto, não tendo a dor, confirmando ser esta uma das estratégias daqueles que

52. APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia, Processo-crime de 03-07-1878, Estante 53. GONÇALVES, Graciela Rodrigues. As secas na Bahia do século XIX: sociedade e
21, Caixa 869, Documento 07, Folha 04. política. (Dissertação de Mestrado). Salvador, Bahia: UFBA, 2000, p. 85 - 86.
r
praticavam o f u r t o para podoroir se 3-iLir da culpa. Só que no avalia tirhsrn siJo f u r t a d o s , determinou algumas pessoa.--
caso de Honorato, tinha um agravante determinante: todas as na rã fazerem u m n varredura na região no propósito de obter
testemunha;; o descreveram como sendo um sujeito acostu- noticias dos animais, foi quando nessa investigação particu-
mado a cometer esse tipo de delito.54 lar começou a se formar unia suspeita do f u r t o dos animais
Já o caso do furto de duas vacas do Capitão Bento José aue, aos poucos, recaiam em um sujeito por nome de José Ro-
de Noronha, proprietário do Engenho Lagoa, localizado na tjritiues da Silva, conhecido por José Mineiro, pelo fato de já
Vila de Itapicuru, e da Fazenda Pajaú, localizada na Fregue- existir comentários de furto de animais atribuídos a ele e por
sia do Aporá, na Vila de Inhambupe, ocorrido em outubro de terem visto o mesmo rondando aquela região no dia em que
1884, aconteceu que o acusado Pedro Aprígio Pereira, depois os cavalos desapareceram.
de não ter como negar o crime, acertou com o Capitão Bento De acordo com os autos do processo, na medida em
que iria pagar as duas vacas no valor de 100SOOO (cem mil que as suspeitas do furto dos animais se direcionavam para
reis) para que o mesmo não levasse o caso para a justiça. En- José Mineiro, o Coronel Marcos Leão Veloso procurava, por
tretanto, como Pedro Aprígio não cumpriu com o combina- iniciativa própria, localizar o suposto infrator do delito. Na-
do, o Capitão Bento prestou queixa na delegacia. Na verdade, quela ocasião, as testemunhas arroladas no processo, Manoel
Pedro Aprígio, confessando que tinha furtado as duas vacas Gonçalves da Silva, morador no Engenho Santana, e Manoel
com o auxílio de outro companheiro, Joaquim José Mamede, Eloy de Souza, morador no arraial do Torto, ambos localiza-
e concordando em pagar depois a quantia de 100SOOO (cem dos na Vila de Inhambupe, foram contratados pelo Coronel
mil reis), só estava querendo um tempo e oportunidade sufi- Marcos Leão Velloso para irem ao encalço do suspeito José
ciente para poder fugir. E foi o que aconteceu, tanto ele corno Mineiro. Como consta no interrogatório da primeira testemu-
seu comparsa fugiram sem deixar vestígio algum.55 nha, Manoel Gonçalves da Silva:
Outro caso de furto de animais, que ocorreu no dia 02
E sendo inquerido sobre os factos constantes da peti-
de março de 1884, no Engenho Coité, propriedade do Coro- ção de denúncia que lhe foi lida. Respondeu que na
nel Marcos Leão Velloso, que a princípio envolvia pessoas li- ocasião em que o réu presente, passando no Engenho
Coité, em que se deu o furto dos cavalos do Coronel
vres, no transcorrer do processo a culpa acabou respingando Marcos Velloso, ele testemunha, estava no Sertão, e
em escravo. Segundo consta no processo, no dia seguinte do chegando em sua casa soube que ali tinha passado ele
furto, o Coronel Marcos ao ser comunicado do desapareci- com outro companheiro e comprado ali aguardente
e seguira para o dito Engenho Coité e na ocasião se
mento de dois cavalos de seu engenho, um rosilho e outro dera o furto dos animais, pelo que o Coronel Marcos
alazão, ao invés de em seguida prestar queixa na delegacia de Velloso mandou chamar ele testemunha, que seguiu
com Manoel Eloy ao encalço dos ladrões, e chegan-
Inhambupe, mesmo porque não tinha certeza se realmente os
do em casa de Manoel Pedro, em Laranjeiras, este lhe
disse que ali tinha passado José Rodrigues...56
54. APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia, Procusso-crime de 13-05-1386, Estante
24, Caixa 836, Documento 06, Folhas 1-8.
55. APEB - Arquivo Púbbco do Estado da Babia, Processo-crime de 04-02-1885, Estante 56. APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia, Processo-cnme de 03-OMS84, Estante
24, Cairá 837, Documento 05, Folhas 1-31. 24, Caixa 845, Documento 04, FolhdS 1-72.
Mnnoe! Pedro de A n d r a d e que residia na Freguesia de
Laranjeiras, Vila do Socorro, Província de Sergipe, era de fato
um dos receptores dos cavalos que João Mineiro furtava, g
ao ser interrogado ele diz que José Mineiro e seu comparsa, \1omentos turbulentos e o caso do escravo Bonifácio
de nome Francisco, mais conhecido como Chico do Norte, ao
chegarem em sua casa com quatro cavalos, pediu-lhe para Os últimos anos anteriores a abolição no Brasil foram
deixar esses animais em sua casa até ele negociá-los. Entre- anos muito tensos, marcados por algumas conturbadas movi-
tanto, no dia seguinte, um dos cavalos sumiu e Manoel Pedro mentações de ordem social, principalmente aquelas relacio-
acusou o cativo de nome Cândido de ter furtado o cavalo. nadas aos movimentos abolicionistas. Nesse contexto, após
Cândido era escravo de Eugenia, ambos moradores em La- Íeis aprovadas que consequentemente enfraqueceram o sis-
ranjeiras. Confirmando, mais uma vez, que dentro daquele tema escravista no Brasil, como a Lei Eusébio de Queirós, de
contexto sócia! era muito fácil atribuir culpa aos escravos, 04 de setembro de 1850, que proibia o tráfico de escravos, tor-
mesmo os indícios indicando outros culpados. E nesse caso, nando-se mais rígida que a Lei de 07 de novembro de 1831,
de acordo com o desenvolvimento do processo, com os depoi- como também a Lei do Ventre Livre de 28 de setembro de
mentos das testemunhas e interrogatórios dos réus, não teve 1871, que tornava "livre" os filhos de escravas nascidos após
como José Rodrigues da Silva e Manoel Pedro de Andrade essa data, e a Lei dos Sexagenários de 28 de setembro de 1885,
se eximirem da culpa. Mesmo tendo José Mineiro negado o que dava liberdade aos escravos idosos acima dos sessenta
furto dos cavalos do Coronel Marcos Leão Velloso, declaran- anos, foram mecanismos legais que abriram brechas para que
do que tinha comprado os animais a um tal de Manoei, que escravos lutassem por direitos e pelo fim de sua condição ca-
dizia ter trazido tais cavalos de Santo Amaro, no Recôncavo tiva. Todo esse aparato legal foi minando aos poucos o regi-
Baiano, no dia sete de julho de 1885 foi julgado e condenado me escravo no Brasil, que logo em seguida não pode se sus-
a quatro anos de prisão, tendo o seu termo de apelação de tentar. Notou-se naquela ocasião um aumento considerável
sentença negado pelo juiz. Esse caso demonstra que a influ- de processos na justiça envolvendo escravos reivindicando
ência do poder político local de um coronel era determinante alforria e outros direitos, como também, processos crimes que
para concretizar na justiça a condenação de acusados, inde- envolviam escravos expressando insatisfação com sua condi-
pendente desses serem escravos ou pessoas livres. ção cativa. Notou-se também um expressivo aumento no nú-
Assim, dentro da categoria do crime de furto ou roubo mero de fugas escravas, sendo que muitas dessas fugas não
praticados por escravos e libertos ou envolvendo ambos, na foi possível ser contornadas pelos senhores de escravos, pois,
Vila de Inhambupe e outras localidades na Bahia, percebe-se principalmente nos anos de 1880, devido a notada fragilidade
que em alguns casos essa prática era uma necessidade para se que o regime escravo apresentava, muitas desses cativos que
obter melhores condições de sobrevivência, expressando con- fugiram não foram encontrados, mesmo porque as autorida-
r
se nru'í"
rs Vila J<j I n h a m b u p e , (oram surpreendentemente
como antes. Sobre essa questão relata VValtcr Fraga Filho, etn nroU^tados peloí abolicionista K d u a r d o Carigé" e Pamphi-
"Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos lo d-i Santa Cruz, com \'arias pessoas que também tentaram
na Bahia (1S70-1910) ": impedir' o embarque. ' Analisando o documento que consta
a correspondência de Eduardo Carigé pard o chefe de po-
Nas últimas décadas da escravidão, as cidades do
Recôncavo, sobretudo Salvador, se tornaram rvtugio licia não dá para saber a real situação cio escravo, se ele já
de grande número de escravos fugidos dos enge- tinha sido alforriado pelo senhor antes de morrer ou se ele
nhos. Ao fugirem para os centros urbanos, os escra-
tinha fugido logo após a morte do senhor. Também não foi
vos levaram em consideração diversas condições a
seu favor - a interferência crescente das autoridades encontrado em outros documentos carta de alforria a favor
policiais nas relações enire eles e os senhores, as de- de Salustiano. O que ocorre é que os herdeiros do dito senhor
cisões muitas vezes favoráveis dos juizes e a vitali-
reivindicaram na justiça a posse do escravo, no qual foi fator
dade do movimento abolicionista."
de comoção e protesto popular para que o mesmo não voltas-
Por outro lado, por mais distante dos centros urbanos se à condição de cativo. De acordo com Ricardo Tadeu Caires
que vivessem os escravos, as notícias acabavam chegando. Silva, no texto "Eduardo Baraúna Carigé (1851 - 1905): o Antó-
Naquele período tinha-se notícias de várias conquistas de es- nio Bento baiano", depois de criada a Sociedade Libertadora
cravos nas suas demandas por liberdade, seja por meio legal, Baiana, em 8 de março de 1883, por vários jovens baianos,
via justiça, seja pelas fugas. E tudo isso incentivava e encora- entre eles Eduardo Carigé e Pamphilo da Santa Cruz, dono
java outros escravos a tomarem alguma iniciativa na busca da do jornal Gazeta da Tarde, principal órgão de divulgação das
liberdade. A confiança daqueles que defendiam o movimento ideias abolicionistas na Bahia, onde trabalhava Carigé, diver-
abolicionista era tanta naqueles tempos que muitos escravos sas ações na luta contra a escravidão aconteceu após surgir
foram resgatados das mãos de autoridades policiais ou seus esse movimento baiano.60
senhores por aqueles abolicionistas ou populares que simpa- Diante de todo esse contexto conturbado, em que es-
tizavam com o movimento, evitando que os cativos fossem
vendidos para outras localidades ou recuperados pelo senhor
58. Eduardo Carigé Baraúna era filho de Manoel Carigé Baraúna. Cujo pai formou-se
após uma fuga. Foi o que aconteceu em março de 1886 com o em medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia no ano de 1S45, quando defen-
deu a tese sobre a gravidez extra-uterina. Manoel Carigé íaleceu jovem, aos 28 anos
escravo Salustiano, apelidado por Pichita, que depois de ter de idade, em 1851, ano em que nascia seu primeiro e único filho. Com o falecimen-
to do pai, Eduardo Carigé passou a ser criado por sua mãe, dona Ernília Augusta
sido apreendido pelas autoridades policiais em Salvador e ao
Cartgé Baraúna. Cf. SILVA, Ricardo Tadeu Caires. Eduardo Baraúna Carigé (1851
tentarem embarcar o escravo no trem, na estação ferroviária - 1905): o António Bento baiano. In Anais do XXVI Simpósio Nacional de História,
ANPUH, São Paulo, julho de 2011, p. 3 - 4.
da Calçada, para ser entregue aos herdeiros do seu falecido 59. APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia, Série Polícia, Documento n5 6.505,1886,
Correspondência de Eduardo Carigé para chefe de polícia, 16 de março de 1886.
60. SILVA, Ricardo Tadeu Caires. Eduardo Baraúna Carigé (1851 - 1905): o António
57. FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e liber- Bento baiano. In Anais do XXVI Simpósio Nacional de História, ANPUH, São Pau-
tos na Bahia (1870 - 1910). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006, p. 99. lo, julho de 2011, p. l - 14.
r
- '"_•<-. j f">c-.-il'.T.l:i:í f j r.i ,]u,> .1 t-uni do --ervisC 1 pública,
cravo? apoiados por defensores do fim do regime cativo no ir.j[iur-;n<.V. J.i .-rderr c jj.tranti.i das autoridades í o
Brasi!, vivunciaram juntos com toda a sociedade cenas e mo- digne pnr.-iij^ncidr a tnn de MT augmentado com
bn2\'idjLÍL' ustc destacamento e poderem as autorida-
mentos de total desobediência e negação desse regime que
des cumprir com a lei, que é dever de seus CJrgos.';
não tinha mais vigor para se sustentar, era forte a pressão de
boa parte da sociedade para que a escravidão chegasse ao fim. Ter que controlar as inquietações da população escrava
De acordo com Walter Fraga Filho, "as cenas de desobediên- que almejava e reclamava por liberdade, como também man-
cia e insubordinação, assim vistas pelos senhores, resultavam ter a ordem sob os crimes cometidos por pessoas livres, era o
das iniciativas de homens e mulheres que decididamente se grande desafio das autoridades policiais naquele momento. E
recusavam a viver sob a condição escrava".61 vários atos de insubordinações e crimes cometidos por escra-
Em função desse nervosismo refletido por uma expec- vos naquele período se deu ern função da não mais aceitação
tativa de liberdade de uma numerosa população de escravos dessa população ao regime imposto pela escravidão. Vários
e que na visão dos governantes traria dificuldades para a ma- casos de rebeldia e violência de escravos contra senhores e
nutenção da ordem pública, foi motivação para que as autori- feitores aconteceram naquela época, como o caso que ocorreu
dades começassem a se preocupar com a questão da seguran- na Vila de Inhambupe, no ano de 1886, com o escravo Bonifá-
ça. Na Vila de Inhambupe o juiz de direito interino, Camillo cio. De acordo com o que foi arrolado nos autos do processo,
Acciole Silva, em uma correspondência enviada ao presiden- o escravo Bonifácio foi acusado e preso por tentativa de homi-
te da província, no dia l9 de setembro de 1875, reivindicando cídio contra o feitor Manoel José do Nascimento, na Fazenda
mais policiais, também expressa tais preocupações: Candeal, Vila de Inhambupe, propriedade do Major José Pe-
reira do Nascimento, senhor do acusado. O fato se deu nessa
Achando-se incompleto o destacamento d'esta vil Ia
e em número tão pequeno que não oferece garantia
mesma fazenda, onde, de acordo com o depoimento do feitor
alguma às autoridades para reprimirem o desenfrea- Manoel José do Nascimento, por volta das sete horas da noi-
mento e alluvião de turbulentos e vagabundos e réos te, no dia 13 de julho de 1886, depois dele ter dado algumas
de polícia, que a cada passo vivem se encontrando;
além de achar-se a cadea repleta de criminosos, não ordens aos escravos com o propósito que estes se acomodas-
só d'este município, como de outros, que aqui se sem nas senzalas e estando na varanda da casa de morada do
achão em custódia, alguns dos quais tem de serem
Major José Pereira do Nascimento, recebeu um tiro pelas cos-
submetidos a julgamento na próxima sessão do jury,
que começará no dia nove do corrente, e tendo o tas que caiu gravemente ferido. Logo após o exame de corpo
Delegado me comunicado que a força existente não de delito, feito no dia seguinte pelo Doutor Sátiro d'Oliveira
é sufficiente para reprimir e combater qualquer as-
Dias e por António Francelino das Virgens, foi verificado que
salto que esses criminosos tentem contra a dita for-
ça, buscando fugir das prisões; assim o comunico a
62 APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia, Sessão de Arquivo Colonial e Pro-
vincial, Série Justiça. Correspondências Recebidas de Juizes de Inhambupe, 1875,
61. FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e liber- Correspondência enviada do Juiz de Direito Interino Camillo Acciole Silva ao Presi-
tos na Bahia (1870 - 1910). Campinas, SP: Editora da UMCAMP, 200o, p. 113 dente da Província, 1J de setembro de 1875.
Q tiro seria de espingarda, por terem encontrado irims caro- cor branca, situação comum no mundo da escravidão."' Ain-
ços de chumbo nas costas do feitor. da sobre essa questão conceituai de cor, Hebe Mattos reforça
Voltando ao depoimento do feitor Manoel, ele disse o sentido da cor parda para o século XIX, quando diz que:
que ao cair após o tiro., conseguiu levantar a cabeça e perceber
Até meados do século, toda e qualquer pessoa, arra-
um homem de cor branca levantar-se e sair correndo do canto iada corno testemunha nos processos cueis ou cri-
de uma cerca em frente à casa do Major José Pereira. Apesar minais considerados, definia-se, entre outras coisas,
por sua "cor". A cor negra aparecia virtualmente
dos autos do processo não fornecer as características do réu
como sinónimo de escravo ou liberto (preto forro),
para saber se ele tinha cor clara ou escura, é de se presumir bem como os pardos apareciam geralmente dupla-
que o escravo Bonifácio tenha cor escura ou próxima disso, mente qualificados como pardos cativos, forros ou
livres. Apenas quando qualificava forros e escravos,
como era uma característica comum à maioria dos escravos, o termo "pardo" reduzia-se ao sentido de mulato ou
e esse engano pode ter ocorrido pelo fato da vítima estar um mestiço que frequentemente lhe é atribuído. Para os
pouco distante do agressor e o atentado ter acontecido à noi- homens livres, ele tomava uma acepção muito mais
geral de "não branco". Ser classificado como "bran-
te em um ambiente escuro. Entretanto, ao apelar para a li- co" era, portanto, por si só, indicador da condição
gação nominativa de fontes, analisando os livros de batismo de liberdade.64
de Inhambupe na referida época, só foi possível encontrar
um escravo de nome Bonifácio, nascido e batizado no ano de Retornando aos fatos, depois que o feitor sofreu o
1851, que estaria no ano de 1886 com 35 anos de idade, filho atentado no dia 13 de julho de 1886, o processo ficou alguns
de Alexandrina, escrava de Manoel Baptista Ferreira Mello, meses sem dar continuidade pelo motivo de não descobri-
que sendo este o Bonifácio, teria sido vendido posteriormen- rem logo em seguida o autor do disparo. Só vieram a ter essa
te para o Major José Pereira do Nascimento. No entanto, um confirmação no dia 15 de dezembro do mesmo ano, quan-
detalhe interessante na descrição desse assento de batismo do o Juiz Delegado de Polícia, o Alferes Justiniano Pinto de
revela que o batizando Bonifácio é de cor parda, que pode Meireles, confirma a denúncia contra o escravo Bonifácio
estar de acordo com a descrição do feitor Manoel José do Nas- e arrola como testemunhas o Alferes Francisco Xavier dos
cimento, pois a cor parda, de acordo com os conceitos de cor Santos Portátil, António Pinto Cardoso, Manoel Estanislau
empregados naquele contexto da segunda metade do século de Sousa, Joaquim Teles de Menezes, e António Mariano.
XIX, geralmente era atribuída aos mulatos, filhos do cruza- Assim, o Juiz Delegado faz o interrogatório com a primeira
mento do negro com o branco, e sendo assim, esse mulato testemunha, Manoel Estanislau de Sousa, que foi qualifica-
poderia ter uma cor de pele mais voltada para a cor escura,
ficando denominado de cabra, como também para a cor mais 63. https://familysearch, livro de assento de batismo da Paróquia de Inhambupe (1845
clara, classificado como pardo. E como no assento de batismo - 1S56), folha 162. Acesso em 02/ 03/2013.
M. MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste
não revela o nome do pai de Bonifácio, é possível que ele seja escravista (Brasil, século XIX). 3a edição revisada. Campinas, SP: Editora da Uni-
filho natural da escrava Alexandrina com algum homem de camp,2Q13, p. 104-105.
ir*
72

do como casado, de cor parda, natural da Freguesia do Apo-


rá, Vila de Inhambupe, morador nesta mesma vila, vive do
serviço de carpina e tendo idade de quarenta e seis anos. Foi Como se pode observar, muitos escravos ao praticarem
perguntado pelo juiz o que Manoel Estanislau sabia sobre Q algum ato reprovável, procuravam proteção de outros senho-
conteúdo da denúncia e ele respondeu que: res ou pessoas respeitadas na sociedade para que o conduzisse
a o seu senhor, na intenção de evitar maiores castigos. Foi o que
Na noite de treze de julho do ano próximo passado,
e não em outubro ou novembro, deu-se o facto cons- fez o escravo Bonifácio ao íeivindicar proteçào de João Pereira
tante da denúncia, tendo se procedido no dia que da Rocha, que ao desconfiar da gravidade do problema pren-
teve o corpo de delito na pessoa do ofendido, Mano-
deu o escravo e o reconduziu para o seu proprietário, no qual,
el José do Nascimento, não tendo se sabido naquela
ocasião quem foi o autor do crime. Passado algum provavelmente, aplicou em Bonifácio pesados castigos.
tempo, urn escravo de nome Bonifácio, de proprie- O juiz ainda perguntou a Manoel Estanislau se ele sou-
dade do Major José Pereira do Nascimento, fora a
be do ocorrido apenas pelos autos do corpo de delito ou por
Beritinga implorando a proteção de João Pereira da
Rocha, para o mandar para casa de seu senhor com outras vias, quando respondeu que soube através do feitor
proteção, a fim de não os castigasse por se achar fu- Manoel José do Nascimento e Joaquim Teles de Menezes,
gido. Então me procura João Pereira, saber que já
dono da garrucha usada no atentado, acrescentado esse úl-
soubesse de algum caso, ou por que desconfiasse
do escravo, tomou uma garrucha que trazia entre timo que o escravo Bonifácio lhe havia roubada a arma para
suas coisas e o encomendou amarrá-lo, e remeteu-o cometer o crime. Entretanto, nesse interrogatório deflagra-se
para o senhor do escravo, nesta Fazenda CandeaJ.
Ali chegando e interrogado pelo Major José Pereira,
um fato que no mínimo desqualifica a atitude do senhor do
declarou que Unha fugido no dia anterior ao facto escravo, o Major José Pereira do Nascimento, quando este ao
criminoso, tendo se conservado na imediação da confirmar o crime praticado por Bonifácio e ao tê-lo de vol-
Fazenda, à noite viera até o avarandado, ao cercado
na malhada, e dera um tiro no tal feitor que caíra ta em sua propriedade, tentou vende-lo no Recôncavo, não
no dito avarandado da casa, dizendo mais que as- dando informação alguma ao delegado de polícia, pois sabia
sim tinha desaparecido para evitar que o feitor fos- que se fizesse isso teria prejuízo com o escravo, não podendo
se ao seu encalço, depois que descobrisse que tinha
fugido. Disse mais, a testemunha, que o senhor do negociá-lo após a prisão.
escravo Bonifácio, ouvindo aquela narração do facto Do dia em que foi feito a ocorrência do atentado na
criminoso praticado pelo mesmo escravo, o manda-
delegacia em 14/07/1886 até o dia em que foi confirmado o
ra para o Recôncavo da Bahia, a fim de ser vendido, e
que lá chegando, o escravo, por nenhum valor pôde autor do crime pelo Juiz Justiniano Pinto de Meireles em
ser vendido, por já ter lá chegado a noticia do crime 15/12/1886, cinco meses depois, aconteceram vários fatos en-
que ele havia praticado, ficando em casa de Francis-
tre o escravo Bonifácio e seu senhor que não chegou ao co-
co Autocondares Pinto. Disse ainda a testemunha j
que não tendo o senhor conseguido fazer a venda de :
escravo, mandara o feitor busca-lo, sendo, vos justi- .
fica que o dito escravo acha-se neste termo, no Enge- 65 APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia, Processo-crime de 14-07-1886, Estante
23, Caixa 928, Documento 02, Folhas 17 - 18.
74

nhecimento da justiça. O Major José Pereira do Nascimento A? Sou?a Uantaà até encontrar uma solução ou destino para
procurou resolver o problema da sua forma, impondo suas o escravo Bonifácio. Só que durante essa estadia do escravo
próprias regras, sem o auxílio da justiça. Mesmo porque, no no Engenho Frade, provavelmente em alguma oportunidade

seu entendimento, se entregasse o escravo à justiça teria pre- niie surgiu, o escravo Bonifácio conseguiu fugir, conduzindo
juízos, pois não teria como vende-lo. Com essa atitude do Ma- a uma situação que forçou o Major José Pereira a confirmar na

jor José Pereira deixa-nos a acreditar que a ocorrência policial, justiça, em meados de dezembro de 1886, quem tinha come-
só foi feita naquele dia 14/07/1886 porque ele não sabia ainda tido o crime. Depois desse episódio, só vieram ter notícia do
quem tinha dado o tiro no feitor, caso ele já soubesse que o paradeiro de Bonifácio no início de 1889, depois de abolida a
autor do disparo era o escravo Bonifácio, certamente não teria escravidão, quando o mesmo já não era mais escravo do Ma-
feito a devida ocorrência. jor José Pereira, situação que não mudaria em nada a favor do
O que ocorreu foi que a partir daquela data começou a ex-escravo com relação ao fato criminoso.
surgir informações que levou à confirmação de ter sido o es- Hm uma carta precatória enviado do Juiz da Vila de
cravo Bonifácio o autor do atentado. Primeiramente, percebe- Inhambupe, António Calmon de Brito, em 08 de fevereiro de
ram na Fazenda Candeal que Bonifácio tinha fugido, dando « 1889, ao Juiz da Vila de Tucano, Júlio José de Brito, reivindi-
o primeiro indício de ter sido ele o culpado, depois tiveram cava nos seguintes termos:
a informação do furto de uma garrucha de Joaquim Teles de
Faço saber a Vossa Senhoria Eustrissimo Senhor
Menezes, arma que poderia ter sido utilizada no atentado e, Doutor Juiz Municipal do termo de Tucano, nesta
logo em seguida, tiveram a confirmação quando João Pereira Província da Bahia, a quem no seu impedimento e
seu muito honroso cargo exercendo estiver, que ten-
da Rocha, morador de Beritinga, a quem Bonifácio foi buscar do chegado ao conhecimento deste juízo, de achar-
proteção, trouxe o escravo e entregou ao Major José Pereira, -se pronunciado na Fazenda Barreiras, Freguesia
para que depois de interrogatório feito por este, ficasse con- do Raso, desse termo, o liberto de nome Bonifácio,
escravo que foi do Major José Pereira do Nascimen-
firmado a autoria do crime. to, cujo liberto se acha pronunciado por este juízo
Na sequência dos fatos, o que deixou a entender as en- (sustentado a mesma pronúncia pelo Merítíssimo
Senhor Doutor Juiz de Direito desta comarca), no
treiinhas da documentação, foi que depois de Bonifácio ter as-
artigo 192 do Código Criminal, com referência ao ar-
sumido a autoria do disparo contra o feitor Manoel, ao invés tigo 34 do mesmo código, por ter no dia 13 de julho
de o Major José Pereira entregar o escravo à justiça, ele o re- de mil oitocentos e oitenta e seis, na Fazenda Cande-
al, do dito Major José Pereira do Nascimento, neste
conduziu para o Recôncavo Baiano, na tentativa de vende-lo. termo, disparado um tiro no feitor Manoel José do
Mas, não obtendo sucesso nessa tentativa de comercio, pois Nascimento, peio que em vista do exposto, dependo
já se corria a notícia na região do Recôncavo que o referido o seguinte de Vossa Senhoria, que sendo este meu
precatório apresentado, sido por rnim assinado, se
escravo tinha tentado contra a vida de um feitor, o Major teve sirva na forma da lei expedir suas ordens para que
que retornar o escravo para a Vila de Inhambupe, deixando- seja capturado o indivíduo de nome Bonifácio, de
que acima faço menção, e remetido para as cadeias
-o no Engenho Frade, propriedade do Coronel Maurício José
76

desta vila, -i disposição deste i'_iÍ7O, tareando Vossa"'


Senhoria c -ou Respeitava! C^mpra-se, e depois Sobre es-a questão aborda Maria Helena P. T. Machado:
feita a diligência, lavrando os competentes lermos
será esta devolvida para ser junta aos autos. w Revelando-se como a tigura catalizadora dj? tensões
provenientes da disciplina do trabalho, pressionado
Depois de pouco mais de dois anos após ter fugido o já fortemente pelo senhor para fazer frente à resistên-
cia do escravo, o feitor transformava-se em alvo
liberto Bonifácio, enfim foi localizado e preso pelo Oficial de
privilegiado de ataques. As vicissitudes de sua fun-
Justiça Luiz Gonzaga da Silva, auxiliado por uma força poli- ção, a sua condição de homem livre dês possuído e a
cial composta por nove guardas fornecidos pela subdelegada \a Freguesia do Raso, necessidade
na Vila de de apresentar
Tucano, noumdiabom desempenho ao
12/03/1889.
senhor colaboravam para que o feitor, muitas vezes,
transgredisse perigosamente certas normas usuais,
Entretanto, essa prisão não demorou muito tempo, pois em infringindo os códigos aceitos como legítimos pelos
um comunicado enviado pelo Juiz da Vila de Tucano, Júlio escravos.67

José de Brito, para o Juiz da Vila de Inhambupe, datado de Dessa forma, podemos concluir que mesmo o feitor
24/03/1889, dava a informação que na noite do dia 19/03/1889,: não desencadeando um problema pessoal com o escravo a
o réu Bonifácio tinha conseguido arrombar uma das paredes l ponto de o persegui-lo, as determinações conferidas pelo seu
da cadeia e fugido. cargo de feitor por si só já traria aos cativos uma gratuita re-
Casos como esse do escravo Bonifácio aconteciam com :- jeição, acrescentando que, em muitas situações, o feitor era
muita frequência no mundo da escravidão no Brasil, quando > obrigado pelo senhor a fazer uso da violência.
em determinadas situações, escravos chegando ao limite da ';
tolerância, reagiam com violência contra senhores e feitores. ' REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Era uma forma extrema de expressar sua indignação e resis- ;
ANDRADE, Maria José de Souza. A mão de obra escrava
tência a um regime que não estava mais suportando. Foi o < em Salvador, 1811 -1860. São Paulo: Corrupio; Brasília, DF:
caso do escravo Bonifácio, pois mesmo o processo-crime não ; CNPq, 1988.
esclarecendo os motivos que levaram o escravo a cometer tal -í
ato, é difícil acreditar que ele atirou no feitor de forma gratui- • CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Agricultura, escravidão
ta e sem motivação alguma, por um simples ato de crueldade. : e capitalismo. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1979.
Certamente esse escravo estava sofrendo algum tipo de cons-
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade:
trangimento ou perseguição por parte do feitor Manoel José
histórias de escravos e libertos na Bahia (1870 -1910).
do Nascimento, algo que poderia estar agredindo sua moral;
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006.
ou autonomia para que ele reagisse de maneira violenta. Por
outro lado, a imagem do feitor, em função do oficio que de- í
sempenhava, provocava aos escravos uma natural rejeição.
MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e escravidão: trabalha, luta e resistência
nas lavouras paulistas (1830 - 1S88). 2 j edição. São Paulo: Editora da Universidade
66 Ibidem, Folhas 46 - 48. de São Paulo, 2014, p. 71 - 72.
GONÇALVES, C r j K Í e i a Rodivi.es. As secas rui Bahia do VVISSÍÃNBACH, Maria Cristina Corte/.. Sonhos africanos,
século XIX: sociedade e política. (Dissertação de Mestrado). vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo, (1850 -
Salvador, Bahia: UFBA, 2000. 1880). São Paulo: Editora Hucitec Ltda, 1998.

GUIMARÃES, Elione Silva. Terra de preto: usos e ocupação


da terra por escravos e libertos (Vale do Paraíba mineiro
(1850-1920). Niterói, RJ: Editora da Universidade Federal
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MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e escravidão:


trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas (1830 -
1888). 2- edição. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2014.

MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da


liberdade no Sudeste escravista (Brasil, século XIX), 35
edição revisada. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013.

PIRES, Maria de Fátima Novaes. O crime na cor: escravos


e forros no alto sertão da Bahia (1830 -1888). São Paulo:
Annablume/Fapesp, 2003.

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(1851 -1905): o António Bento baiano. In Anais do XXVI
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THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre


a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
"SE TEM MANIFESTADO NAS QUATRO
FREGUESIAS DESTA CIDADE DIFERENTES
CRIMES DE ROUBO E OUTROS":
CRIMINALIDADE, CONFLITOS URBANOS E
POLICIAMENTO NO RECIFE (1870-1889)
jtffrcy Aislan de Souza Silva68

O crime é um acontecimento histórico popular que


ocorre de repente na vida de pessoas ordinárias, suscitando
o inesperado, o extraordinário e se mostra como urna das
muitas formas de violência na coletividade. b4 No século XIX
houve uma constante generalização da criminalidade, como
também dos termos que se referiam a ela, decorrentes de uma
acentuação que se deu a partir da década de 1870, quando
elites políticas e económicas deixaram transparecer, mais do
que em épocas anteriores, suas preocupações com a questão
da transição do trabalho escravo para o trabalho livre e com o
problema da vadiagem. Para Chalhoub, houve um momento
de incerteza sobre o futuro, e a "teoria" da suspeição genera-
lizada surgiu como uma invenção que permitiria pensar as re-
lações de trabalho, criando a expressão "classes perigosas".70
A partir de então, as classes subalternas estariam muito mais
sujeitas à vigilância do Estado, que teria o "dever imperioso
de agir mais decididamente na política de controle social".71

£,•'••• $8. Doutorando em História na LÍFPE. E-mail: aislan.jy@gmail.com


'BV5?-* *^'-H:A' Dommique. História, crime e cultura de massa. Entrevista. Topoi. Revista
-X deHislória, Rio de Janeiro, v. 13, n. 25, p. 185-192, jul./dez. 2012. p. 187,
*?0- CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São
. .'^. Paulo. Companhia das Letras, 1996. p. 24.
/.'•"'jTl Idem, p. 25.
T

82

A questão do controle social direcionado para as classes mais i f-iltanrio munições e armamento^, sem contar os desfalques
pobres não foi uma invenção do século XIX, embora tenha * com deserções e prisões por participação em conflitos. Para
se aperfeiçoado com as tecnologias e formas disciplinares de- a s freguesias mais afastadas do centro, como Afogados, Vár-

senvolvidas no alvorecer da modernidade.72 zea e Poço da Panela, encontramos recorrentes solicitações de


Na cidade do Recife, espaço que nos deteremos em subdelegados, implorando o envio de praças para aumentar
nossa análise, o processo de consolidação das forças policiais o policiamento nesses espaços, assim como promover investi-
se iniciou na década de 1830, com a introdução do Corpo de gações sobre os crimes cometidos, questão que se repetia com
Polícia, mantido pela província e a principal órgão de uso das regularidade nas cidades do interior da província.
autoridades para combater a criminalidade e os demais con-
flitos, especialmente na primeira metade do século XIX.73 Na A criminalidade urbana - discursos e práticas
década de 1870, temporalidade a qual nos deteremos, a força
pública já se encontrava institucionalmente consolidada na Em 1870, Frederico de Almeida e Albuquerque, presi-
cidade, mas velhos problemas persistiam, dificultando a efe- dente da província, abriu a sessão de trabalhos da Assembleia
tiva ação policial. Os dados da batelada de crimes erarn altos Provincial tratando da tranquilidade pública, alegando que a
e a quantidade de praças do Corpo de Polícia insuficientes, o província "acha-se felizmente em completa paz, graças não
que diminuía a eficácia do combate a criminalidade. só a boa índole em geral de seus habitantes, com a convic-
O efetivo policial, que era aprovado a cada dois anos ção, fundada nos princípios e na experiência de que a paz e a
pela assembleia legislativa da província, deveria policiar a ci- ordem são os princípios elementares da prosperidade públi-
dade do Recife e todas as localidades do interior, e o quantita- ca".74 Almeida e Albuquerque, aparentemente como interino
tivo de praças para esse trabalho, como veremos mais a frente na presidência da província, apresentou uma visão bastante
era sempre muito inferior. Em relação ao Recife, as preocupa- otimista da paz que supostamente vigorava na região. Con-
ções dos grupos políticos - deputados, chefes de polícia e pre- tudo, nos mesmos relatórios, no que concerne as questões re-
sidentes da província - eram maiores, pois o contingente de ferentes à "Segurança Individual e de Propriedade" o mesmo
praças que se destacava para o interior era muito grande, res- apresentou um quadro diferente e considerado alarmante,
tando uma quantidade que às vezes chegava a menos de 100 afirmando que "desgraçadamente a segurança das pessoas e
homens para policiar a capital. Além da falta de contingen- das propriedades ainda não atinge aquele grau de perfeição",
te, o material de trabalho desses praças era pouco e precário, mas reafirma que a Província "é regida por sábias institui-
ções".75 No que concerne ao trabalho desenvolvido pelo Cor-

72. FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fonies,
2008; PECHMAN, Robert M. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urba- 74. Fala do Presidente da Província Frederico de Almeida e Albuquerque. 01 de abril de
1870, p. 03. http://brazil.cri.edu/bsd/bsd/685/000003.html. Acessado em 04 de junho
nista. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.
de 2017.
73. SILVA, Wellington Barbosa. Entre a liturgia e o salário; a formação dos aparatos
75. Relatório Provincial de 1870. p. 03.
policiais no Recife do século XIX (1830-1850). 1. ed. Jundiaí - SP: Paço Editorial, 2014.
pó de Polícia,, alegou que os vencimentos de 1$100 réis diários nela falta ^ e educação moral e intelectual das pessoas, uni
pagos aos praças era muito pouco para os serviços prestados ' fator bastante expressivo no século XIX. Segundo o recense-
pela instituição, sugerindo que houvesse economia em ai--, amento de 1372 as freguesias centrais da cidade do Recife,
guns pontos do tesouro provincial para que se realizasse um somando as freguesias de Nossa Senhora da Graça e Afoga-
aumento nos soldos das praças para 1$500 reis diários.76 dos possuíam em torno de 48.680 pessoas analfabetas, numa
Nos relatórios provinciais podemos perceber que a população que ao todo chegava a 80.162 habitantes, ou seja,
preocupação com a criminalidade e os conflitos, que atingia • mais de 50% da população central do Recife.79 Ainda no mes-
as diversas camadas sociais, era evidente entre os grupos po- mo relatório, o presidente se mostrou preocupado com o Cor-
líticos. Contudo, temos que levar em consideração que um ; no de Polícia, afirmando que os homens que compunham a
relatório policial está longe de ser um documento neutro e se ' instituição não conseguiam cumprir seu trabalho com o devi-
faz necessário atenção aos meandros e armadilhas de se inter- : do louvor, chegando a conclusão de que "a prevenção dos de-
pretar os dados como verdades imaculadas, mas não pode- * litos, missão especial da polícia, é quase nula, e a perseguição
mós esbarrar completamente no descrédito sobre esse tipo de l dos criminosos faz-se de modo pouco eficaz".80 Mas não foi
documento. Os dados nos servem como fonte de percepção í apenas nas décadas finais do Império que o corpo de polícia
de uma realidade, nos aparecem como sinais, mesmo que dis-. passou a ser criticado pelas autoridades provinciais. Desde
torcidos ou desfocados, mas que ainda assim nos permitem a sua formação a instituição é alvo de críticas tanto dos grupos
aproximação de fatos, homens, mulheres e instituições.77 políticos, quanto das classes trabalhadoras, devido entre ou-
Na fala de abertura da Assembleia em 1871 o presi- í tros fatores, aos excessos praticados nas abordagens, na falta
dente da província Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque de ação em locais públicos e nas arruaças em que as praças da
destila sua visão de classe letrada e política sobre as classes instituição se envolveram. Entretanto, no relatório provincial
trabalhadores, afirmando que que "os crimes de homicídio, de 1871 uma ressalva importante é feita, levando em conside-
ainda frequentes entre as classes ignorantes (...) demonstra ração os parcos soldos e os riscos que são submetidos aqueles
o quanto entre elas ainda predominam as paixões sem o cor- í que aceitavam essa ocupação.
retivo da educação moral e cultura intelectual".78 Cavalcanti
O serviço policial não é feito com toda a regularida-
e Albuquerque ainda ressaltou que os crimes eram causados ; de e eficácia que fora para desejar. Nem há que estra-
nhar que assim seja, quando há apenas que admirar
que ainda se faça mesmo incompletamente este ser-
76. Fala do Presidente da Província Frederico de Almeida e Albuquerque. 01 de abril de •;
1870, p. 09. http://brazil.cTl.edu/bsd/bsd/685/000009.htmI, Acessado em 04 de junho : viço, que além de gratuito é certamente um dos mais
de 2017.
77. GINZBURG, Cario. "Sinais: raízes de um paradigma indiciário". In: Mitos, emble- .
mas, sinais: Morfologia e História. 1a reimpressão. São Paulo: Companhia das Le- 79. Recenseamento de 1872. Pernambuco, https://archive.org/detaiIs/recenseamento-
tras, 1990. 1872pe, Acessado em 04 de junho de 2017.
78. Fala do Presidente da Província Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque. 1a de ma' 80. Fala do Presidente da Província Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque, l 5 de mar-
ço de 1871, p. 05. http://brazil.crI.edu/bsd/l3sd/686/000005.html. Acessado em 04 de '• ço de 1871, p. 08 http://brazil.CTl.edu/bsd/bsd/686/000018.html. Acessado em 04 de
junho de 2017. junho de 2017,
ivial f com contingente reduzido não seria capaz de prover
e relações particulares. 81 todo o serviço necessário. Fm 1872, João José de Oliveira Jun-
eira, presidente da Província afirmou que
O trabalho policial era de curta duração, além de não ser
Era, sem dúvida, conveniente que duas companhias,
uma carreira duradoura, era pouco promissora e os homens ou cerca de 200 praças estivessem sempre nesta ca-
que ingressavam no Corpo de Polícia procediam das classes piíal, já muito populosa, e onde encontram valiosos
interesses; mas não tem sido possível reunir mais de
trabalhadores, as mesmas que deveriam policiar. Ao se engaja-
100 praças, máximo que se obtém com esforço por
rem na instituição, o faziam por escolha, em busca de sustento poucos dias, e que imediatamente desce a metade,
e sobrevivência de si e suas famílias, diferente de muitos mem- ou ainda menos. Assim, não se pode fazer aqui re-
gularmente o serviço da polícia da cidade e nem dar
bros do Batalhão de Linha e da Guarda Nacional, onde havia (...) o número de patrulhas conveniente*4.
um sistema de recrutamento e uma boa parte era obrigada a
adentrar nessas instituições. Nas últimas décadas do século Mo contexto administrativo da instituição, depois da
XIX, quando se acentuava o curso do processo de transição do distribuição pelas cidades interioranas, de acordo com as
trabalho escravo para o trabalho livre e onde os postos e regi- necessidades "do serviço público", o contingente disponibi-
mes de trabalho se mostravam cada vez rnais instáveis, aden- lizado para o Recife era tido como insatisfatório. Para aquele
trar na polícia poderia ser uma forma mais ou menos sólida ano, o corpo de polícia dispunha de apenas 778 praças, dos
de sobrevivência.82 Para Reiner, "bem-vindos ou indesejáveis, quais 212 estavam em diligencias, 458 em destacamentos pe-
protetores, porcos ou párias, a polícia é um fator inevitável da las cidades da província e apenas 118 na capital, número bem
vida moderna"83 e a inserção da mesma no cotidiano do Recife abaixo dos 200, que segundo Oliveira Junqueira, seria o ideal
era um elemento indispensável para a cidade, mesmo quando para policiar a cidade.85 Essa situação obrigava as autoridades
a instituição não cumpria seu trabalho de forma satisfatória, na da província a recorrer a ajuda de outras instituições como
visão das elites dirigentes da província. a Guarda Nacional, além de outros aparatos paramiíitares,
E evidente que a preocupação dos presidentes de pro- como os Inspetores de Quarteirão que segundo Wellington
víncia com o policiamento da capital estava ligada a impor- Silva "compunham uma rede de policiamento que se estendia
tância política e económica da cidade, caracterizada como sobre toda a cidade".36
umas das principais do Império, onde um parco corpo po-

S4 Fala do presidente da província João José de Oliveira Junqueira. 1° de março de


81. Relatório Provincial de 1871. p. 06. http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u646/000006.html. 1372, p. 19. http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/687/000019.html. Acessado em 04 de junho
Acessado em 04 de junho de 2017. de 2017.
62. ROSEMBERG, André. Para quando o calo aperta - os trabalhador es-policiais do 85. Idem,p. 19.
Corpo Policial Permanente de São Paulo no final do Império. Locus (UFJF), v. 15, p. 86. SILVA, Wellington Barbosa. "Uma autoridade na porta das casas": os inspetores de
77-90, 2009. quarteirão e o policiamento no Recife do século XIX (1830-1850). Saeculum (UTPB),
83. REINER, Robert. A política da polícia. São Paulo; Edusp, 2004. p. 37 v. 17, p. 27-41, 2007.
A n o s em que f u r a m cometidos
QUADRO 'l - Crimes cometidos e contabilizados entre 1870-1875, 1ES TOTAL
1S7;J 1371 \f-~2 1S73 LS74 H75
segundo os relatórios policiais
Soma JW 201 609 ::: 338 441 Zo72

f ONTE - Falas e Relatórios Prcmnciuià. 67


Anos em q u e foram cometidos
CRIMES TOTAL Com base no quadro acima, analisaremos alguns dados
1870 1871 1872 1873 1874 1875
relativos a estatística criminal da província, que ainda segundo
Crimes Públicos: >Ã
Resislencia 13 3 13 7 9 4 49 João José de Oliveira Junqueira era deficiente, mas os dados
Tirada ou Fuga de Presos 12 3 14 34 12 1 76 pouco animadores de toda forma.88 Um aspecto interessante é
Desobediência - 9 6 - - 1 16 o aumento dos crimes cometidos em 1872, em relação ao ano
Moedas Falsas - - 6 8 - - 14 de 1871, promovendo uma disparidade a olhos vistos. Segun-
Crimes Particulares: í do o quadro de dados apresentado ern 1876 que contabilizou
Contra a Liberdade 609 ações criminosa para a província, comparando com o ano
- - 1 1 - - 2
Individual
anterior que apresentou um dado de apenas 201 ações, temos
Homicídio 103 64 87 97 110 84 545
Tentativa de Homicídio 42 20 20 31 12 9 134
um aumento de mais 200% da criminalidade, evidente entre os
Infanticídio - - 2 - 2 - 4 crimes de homicídio, ferimentos, ofensas físicas e furtos. Essa
Aborto 1 7 11 13 - - 32 situação nos deixa duas possibilidades de análise, ou houve
Ferimentos e ofensas
54 28 171 278 149 159 839
1 um registro muito mais eficaz dos delitos pela burocracia po-
físicas
licial entre esses dois anos ou um aumento significativo das
Ameaças 2 - 6 2 - - 10
2 práticas criminosas que assolou a província de Pernambuco,
Entrada em Casa Alheia 2 - - - - -
Estupro 1 - 8 3 2 1 15 em especial a capital, pois acreditamos que a coleta das infor-
Rapto - - - 1 - - 1 mações que compõem os dados era feita com muito mais fre-
Tentativa de Rapto - - - - 1 - 1 quência no Recife e seus arredores, do que nas áreas mais afas-
Calúnia e Injúria - - 6 1 2 1 10 tadas e cidades do interior. Não é difícil acreditar que tenha
Furto 31 9 120 56 22 49 287
ocorrido um aumento no índice dos crimes e delitos cometidos
Banca-rota, estelionato,
etc.
12 28 8 7 - 18 73 entre 1871 e 1872, contudo a disparidade entre os números é
Dano 1 5 2 1 - 0 9

Roubo 17 4 31 31 17 14 114
92
87. Os números referentes ao ano de 1870 foram coletados em uma tabela estatísticas
Tentativa de Roubo 63 17 2 10 - -
de crimes de 1874, na fala que o Presidente Henrique Pereira de Lucena abriu as
GSnes Policiais; ' :.'' ' ' ' ' ': ': ' •'• , . --^ i sessões legislativas daquele ano http://brazil.crl.edutosd/bsd/689/000005.htmI. As
76 120 196 estatísticas referentes a 1871-1875 foram coletadas na fala do Comendador João Pe-
Ofensas a Moral Pública - - - -
„' dro Carvalho de Moraes abertura dos trabalhos legislativos de 1876. http://brazU.crl.
Ajuntamentos ilícitos 4 - - 15 - - 20 Ê_-.. edu/bsd/bsd/691/000009.html.
Uso de Armas defesas - 4 19 2 - - 23 .88. Fala do Presidente da Província João José de Oliveira Junqueira, l- de março de
;- 1872, p. 05.
90
r
91

considerável. Dbnte dos dadu>, fica claro que a questão estava


relacionada as péssimas condições de coleta de informações e
a desorganização da burocracia policial. A crítica apresentada pelos deputados está ligada ao uso
Quando relacionamos os anos 1872 e 1873, também político que era feito da instituição, utilizada pelos dirigentes
apresentados no quadro acima, é apresentado um acréscimo da província para atacar seus adversários políticos. Um exem-
de 17,73%, principalmente devido ao aumento dos índices de ; plo é apresentado pelo jornal A Província, que se intitulava ór-
ferimentos e ofensas físicas que em 1872 contabilizou 171 casos eãodo Partido Liberal, e na edição de 14 de janeiro de 1873, em
e no ano seguinte 278 casos, um acréscimo 62,57%. Quando artigo intitulado "A perversão dos costumes políticos" tratan-
seguimos para os anos de 1874 e 1875 nos deparamos com do da violência que ocorria durante as eleições, alegou ''que os
grande estranhamento, pois é apresentada uma redução sig- quadros de sangue mostraram que do atual regime eleitoral,
nificativa da criminalidade, o que nos instiga a pensar na di- nada mais se pode esperar".90
ferença entre a criminalidade real e a criminalidade revelada No ano seguinte, o presidente Henrique Pereira de Lu-
e nos faz questionar a capacidade da burocracia policial em cena, posterior Barão de Lucena, ao se referir mais uma vez a
contabilizar os crimes cometidos na província, visto que a di- segurança individual de Pernambuco, afirmou que ela ainda
ferença entre os anos de 1873 e 1874 é de uma redução 52,86% estava longe de ser como desejada, promovendo fortes críticas
da criminalidade, mesmo o ano de 1875 tendo apresentado as instituições de controle social que atuavam na província.
um aumento 30,47% em relação ao ano de 1874, e quando
[...] o não estarem alguns criminosos sujeitos ao
comparamos 1873 e 1875 a diminuição é de 38,49%. procedimento oficial da justiça, e não quererem, ou
O Corpo de Polícia é visto como grande responsável não poderem os cidadãos, a maior parte das vezes,
dar queixa, nem depor em juízo; a insuficiência das
pelos sucessivos problemas referentes a criminalidade. Ain-
penas estabelecidas para a punição de certos delitos
da em 1872, no relatório apresentado pela Assembleia pro- [...]; a impunidade dos criminosos devido, em gran-
vincial, é apresentada uma crítica a instituição, que para os de parte, a proteção escandalosa de influência malé-
fica [...]; a falta de segurança das cadeias e de boas
deputados provinciais, estava muito mais preocupada com vias de comunicação; a insuficiência da força públi-
os problemas e querelas políticas, afastando-se do trabalho de ca; a frequente ausência de juizes letrados de seus
prevenção do crime. O relatório afirma que, termos e comarcas; o mal sistema de policia adotado
np país com a deficiência de termos preventivos."'
[Grifo Nosso]
Entre nós a polícia não é ainda o que deve ser. Se '
uma boa polícia moraliza e dá garantias a socieda- \, ela a corrompe e prostitue, se limita sua missão a •
89. Relatório Provincial, 1S72. p. 06. http:,/brazil.crl.edu/bsd,bsd/u647/000006.htrnl.
lutar contra os partidos políticos e espiar e perseguir Acessado em 04 de junho de 2017.
aos que supõe inimigos do governo. Para mim o mé- 90. BN-Hemeroteca Digita!. Jornal A Província, 14 de janeiro de 1873. Acessado em 04
rito de uma boa administração se revela mais em sa- de junho de 2017.
ber prevenir os males, do que em castiga-los; L:í-te é a 51. Fala do presidente da província Henrique Pereira de Lucena. l u de março de 1873, p.
05 http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/688 '000005.html. Acessado em 04 de junho de 2017.
No bóio do crítica? adotadas pelo relatório provincial das elites"/" 1 Pereira do l u cena ainda apresentou críticas a
em l872 e pelo presidente Pereira de Lucena em 1873 é levada falta do q u a l i d a d e mora! o roligiosa da população da cidade,
em consideração a questão da falta de uma polícia preventi- afirmando que
va, devido ao fato de os aparatos de polícia existentes não ;
[...] se juntarmos o inveterado hábito das bebidas al-
cumprirem essa função de forma satisfatória. Logo em segui- coólicas, o u^o frequente de armas proibidas e prin-
da ele faz críticas a reforma judiciária de 1871 que reduziu 35 cipalmente a falta absoluta do ensino religioso, único
capaz de conduzir o homem aos seus altos destino, e
ações da polícia, retirando o poder judiciário das mãos dos
de regenerá-lo, devemos ter por certo e desenganar-
delegados e subdelegados, reforma que era motivo de confli- mo-nos de uma vez por iodas, enquanto este esta-
to partidário entre liberais e conservadores.02 do de coisas não for melhorando gradualmente, tão
cedo não veremos decrescer a fúnebre estatística que
O Recife concentrava uma quantidade considerável de ' temos anfe os olhos, e que tanto deploramos.* 5
pessoas circulando pelos seus espaços. Brancos pobres, par-1
dos e negros ~ escravos ou libertos - que conviviam pela cida- ; Em fala de abertura dos trabalhos legislativos de 1874,
de em suas mais diversas ocupações: trabalhadores do porto, -r Pereira de Lucena volta a reiterar que a criminalidade não
vendedores, caixeiros, "mulheres públicas" etc. Esses homens ^'. tem diminuído, o que contradiz seriamente a estatística cri-
e mulheres - livres ou escravizados - compunham o grupo minal apresentada em sua gestão administrativa. Vai mais
tido como potencialmente criminógenos, e principal alvo das } além, alegando que esses dados são de causar admiração, e
ações dos aparatos de policiamento. Os escravos, que com- \m uma credita essaimportante
parte situação ao da analfabetismo e falia de da
vida social e económica ensino
. reli-
gioso, o que faz com que eles se entreguem ao elemento das
cidade, criavam uma rede de sociabilidade no qual muitos se l paixões de homens pouco esclarecidos e educados.96 Mais
beneficiavam e nessa ordem social, segundo Wellington Silva, 'l uma vez é levada em consideração a falta de policiamento na
"a dinâmica da economia recifense geralmente se sobrepunha ; cidade, pois no documento, o mesmo expõe uma considera-
às necessidades de controle, fazendo com que muitos escra- : ção expressa de formar uma força de polícia para as diversas
vos continuassem 'vivendo sobre si' em algum mocambo ou : localidades da província, dando a entender que essa força
sobra do-cortiço".93 Sem contar a necessidade que os comer- ' seria criada além do já existente e atuante Corpo de Polícia,
cios locais sentiam de mais segurança devido ao histórico de •< "já que ele mesmo afirma que com um quantitativo de 800 ho-
4

assaltos e arrombamentos a estabelecimentos de secos e mo- í


lhados e residências "povoando de fantasmas o imaginário SILVA, Wellmgton Barbosa. "Cada taberna nesta cidade é um quilombo...": repres-
são policial e resistência negra no Recife oitocentista (1830-1850). In: ALMEIDA,
Suely Creusa Cordeiro (org.). Histórias do mundo atlântico: Ibéria, América e
África: entre margens do XVI ao XXI. Recife: EDLTPE, 2009. p. 170.
92. Idem, p. 05. http://brazU.crl.edu/bsd/bsd/688/OMU05.htmI. Acessado em 04 de junho
de 2017 Idem, p. 05. http:/;brazil.crl.edu,bsd/bsd/688/000005.htmL Acessado em 04 de junho
de 2017.
93. SILVA, Wellingtun Barbosa. Entre sobrados e mocambos: fuga de escravos e a ação
polícia] no Recife oitocentista (1840-1850). In: CABRAL, Flávio Gomes & COSTA, Ro- Fala do Presidente da Província Henrique Pereira de Lucena. l u de março de 1874, p.
bson (Org.). História da Escravidão em Pernambuco. Recife: EDUFPE, 2012. p. 144. 04 http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/689/000004.html. Acessado em 04 de junho de 2017.
^e ;od:i :t provína.i e è justamente nestas freguesias
mens não seria possível conseguir os resultados esperados qu^ Tilg-jr.s industriosos ti;m procurado iludir a aeão
recomendando também um aumento no soldo dos praças da da polícia, perpetrando crimes e ofendendo a pro-
priedade. ]...] O país, Sr. presidente, mesmo a pro-
instituição. Em relação a capital recomendou "criar um corpo víncia de Pernambuco, acham-se em circunstâncias
de polícia, como hoje existe, com um menor número de pra- muito especiais: tem faltado trabalho a certas classes
da sociedade; tem vindo depois da guerra do Para-
ças, e nas outras comarcas ou seções, que, sem organização
guai homens que nenhum emprego buscam que an-
militar, mas composta de homens escolhidos, façam a polícia ^ tes procuram locupleíar-se à custa da propriedade
e guardem as prisões".97 Neste relato de 1874 é perceptível a alheia. [...] E misíer, por consequência, que sendo as
circunstâncias diversas das do outro tempo, o poder
intenção de criar uma outra estrutura policial para de promo-
encarregado de evitar a prática do crime disponha
ver mais tranquilidade para a capital. dos meios apropriados a estas circunstâncias."
O quadro de membros do corpo de polícia manteve-se
diminuto até o fim do Império - no intervalo de 1876 a 1890, o Alegando o desemprego de membros das camadas po-
seu efetivo oscilou entre um número máximo de 1000 praças, pulares, do aumento de crimes nas freguesias centrais (que
em alguns anos e 950 e 850 em outros.98 O aumento de crimes seriam os importantes centros económicos da cidade) e a de-
de roubo e furto, aliada a quantidade insuficiente de praças ficiência do corpo de polícia, o deputado defendeu na Assem-
foi um dos argumentos utilizados para a criação desse corpo bleia Provincial a aprovação da criação de uma instituição po-
policial civil. Como afirmou o deputado Graciliano Baptista, licial e desmilitarizada que ficou conhecida como a Guarda
em 1876: Cívica, criada em 1° de junho de 1876.100

V. Exc sabe, Sr. presidente que por motivos muito


especiais [...] se tem manifestado nas quatro fregue- A guarda cívica do Recife: policiamento urbano e
sias desta cidade diferentes crimes de roubo e ou- civilizado r
tros; [...] sabe que pela organização existente do cor-
po de polícia o seu número de praças não chega para
atender a todas as necessidades do serviço; [...] sabe Guarda Cívica foi criada semelhante aos modelos de
também que é nas quatro freguesias desta capitai -policiamento criados em contextos sociais diferentes do Reci-
que se acham grandes e importantes interesses, esta-
belecimentos com grandes capitais e a maior riqueza ?
fe oitocentista, como os bobbie da polícia de Londres e a guar-
da civil de Lisboa.101 Composta por policiais desmilitarizados

97. Fala do Presidente da Província Henrique Pereira de Lucena. l- de março de 1874, p.


17. http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/689/000017.htmI. Acessado em 04 de junho de 2017.
99. Arquivo da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco - ALEPE, AAP. Fala
98. APEJE. Coleção de Leis Provinciais de Pernambuco CLPPE, Lei ny. 1235 de l' de do Deputado Graciliano Baptista. V. 1876, p. 233.
junho de 1876, Lei n-, 1263 de 4 de julho de 1877, Lei rta. 1351 de 6 de março de 1879.
100.APEJE. CLPE, Lei ns. 1235 de 1B de junho de 1876.
Lei rí>. 1500 de 29 de junho de 1880, Lei nc. 1710 de 14 de julho de 1882, Lei n?. 1302
de 2 de junho de 1884 e a Lei n-. 1900 de 4 de junho de 1887. Para uma análiw da Wl.MAIA, Clarissa Nunes. Policiados: controle e disciplina das classes populares no
formação do Corpo de Polícia e dos outros aparatos de policiamento no Recife Im- Recife. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Pernambuco, Reci-
perial Ver: SILVA, Wellington Barbosa. Entre a Liturgia e o Salário, a formação dos fe, 2001; GONÇALVES, Gonçalo Rocha. A transformação liberal do sistema policial
aparatos policiais no Recife do século XIX (1830-1850). Tese de Doutorado. Recife' português, 1861-1868. In: CARVALHO, José Murilo... [et.alj. Linguagens e Frontei-
Universidade Federal de Pernambuco, 2003. ras do Poder. Rio de Janeiro, FGV Editora, 2011.
e encarregados de fazer a ronda regular e diária nos bairros, ronda dia e noite, dispondo apenas do Corpo de Polícia, soli-
centrais da cidade, que por terem a função de fazer um pó.; citando ao menos quatro praças para a 3° estação da fregue-
liciamento proativo com a intenção de inibir os delitos, de-'í sia de São José.106 Em 1877 Manuel Clementino Carneiro da
•s
veriam tratar a todos, suspeitos ou criminosos em flagrante} Cunha, presidente da província de Pernambuco afirmou que
!
com polidez e civilidade. 102 A instituição iniciou seus traba-
A guarda cívica não está completa. Ate está data es-
lhos com um possível contingente de 120 praças, e sua es- íão alistados no seu serviço 100 praças e nomeados o
trutura hierárquica era formada por um Comandante Geralç' comandante geral e os de distrito. Os guardas foram
distribuídos pelas 4 freguesias da cidade. [...] A fre-
quatro Comandantes de Distritos, posicionados em suas esta-
guesia de São José tern maior número de praças por-
ções localizadas nas freguesias de São Frei Pedro Gonçalves que está dividida em dois distritos policiais, arnbos
conhecido atualrnente como Bairro do Recife, Santo António/ compreendidos no centro da cidade.1

São José e Boa vista do Recife.103 Posteriormente, o efetivo de ' •


praças foi aumentado para atender outras localidades, e Em relatório de 13 de fevereiro de 1877 o Chefe de Polí-
1880 houve uma reformulação do regulamento, criando uma cia António Francisco Corrêa de Araújo reafirmou que desig-
estação da Guarda Cívica na freguesia de Nossa Senhora dal ; nou mais praças para a freguesia de São José porque a mesma
Graça.10 Em 1890, inicio do período republicano, tendo eml .possuía dois distritos policiais.108 Contudo, levamos em con-
' ^

vista a deficiência da força policial e as reclamações feitas porj í sideração que freguesia de São José possuía um considerável
diversas autoridades, foi criada outra estação na freguesia de -3 quantitativo de comerciantes de bebidas, era uma área de mo-
â
Afogados.105 Os números de praças eram estabelecidos pelai -'•.jadia habitada principalmente pelos mais pobres, e a freguesia
Assembleia provincial a cada dois anos e aumentados ou di-!"* onde se localizava o Mercado Público da cidade, o que explica
minuídos de acordo com a situação financeira da província, já \e mantero maior número de para
os praças praçaspoliciar
da Guarda Cívicaera
a capital na apresentado
localidade.
A falta de homens para o serviço pode ter possibilitado
como um ónus muito grande para os cofres provinciais. '-a ampliação das formas de inserção na instituição, deixando
Apesar de criada com um possível contingente estipu- -delado alguns requisitos básicos que eram exigidos nos regu-
lado em 120 praças, até julho de 1877 esse contingente se en-' lamentos, como a alfabetização dos candidatos, por exemplo.
contrava incompleto. O ofício do subdelegado do 2- distrito, ; Á urgência na composição dos efetivos causava apreensão
policial de São José afirmou que a Guarda Cívica estava sem para as autoridades policiais e dificultava a atuação de um

102.APEJE, l" Regulamento da Guarda Cívica. 27 de junho de 1876- p- 08.


103.APEJE, Regulamento da Guarda Cívica. Portaria do Palácio da Presidência de PCT-*| •-'•HK.APEJE, Fundo SSP, l 5 Delegacia da Capital, Ofício de 05 de julho de 1877.
nambuco. 27 de junho de 1876. ?t' j|l07.Fala do Presidente da Província Manoel Clementino Carneiro da Cunha. 2 de março
104.APEJE, Regulamento da Guarda Cívica. Portaria do Palácio da Presidência de Per-j de 1877. http://braziI.crl.edu/bsd/bsd/692/, Acessado em 04 de junho de 2017.
nambuco. 22 de dezembro de 1880. ambuco pelo chefe de
105.APEJE, Portaria do Palácio do Governo do Estado de Pernambuco. 22 de maio (ie> /bsd/bsd/692/Q0009ó.h tml.
1890.
policiamento ostensivo. ca, provavelmente para impedir outra tentativa de suicídio 111
A instituição foi criada com a função de diminuir a cri- e o incêndio na Igreja Madre de Deus, ocorrido em 24 de abrií

minalidade. Além desses conflitos, outro fator preocupante de 1887 na freguesia de São Frei Pedro Gonçalves, onde seis
estava relacionado ao fato de que a cortesia e a polidez, que praças compareceram na tentativa de ajudar/' 1 - são exemplos
deveriam ser características fundamentais, mas nem sempre dessas ações no qual as praças estavam envolvidas, buscando
estavam presentes nas abordagens dos praças, principalmen- o bem-estar da cidade e seus moradores.
te quando essas abordagens ocorriam com a população mais Entre os conflitos que movimentavam as ruas da ci-
pobre e escrava, as mais perseguidas peía atuação da força dade, principalmente à noite, as brigas e desentendimentos
policial no Império.109 eram comportamentos que, na maioria das vezes, eram apre-
Além de ajudar a conter a criminalidade ou, pelo me- sentadas como características das classes mais pobres, que
nos, deixá-la em níveis toleráveis, as praças deveriam prestar deveriam ser observadas de perto pelas instituições de con-
a população serviços de caráter social como socorrer pesso- trole social. Mas não era incomum que esses episódios fossem
as feridas e ajudar a conter incêndios, já que era função da iniciados ou tivessem participação de pessoas que pertenciam
instituição ajudar a reprimir possíveis danos ao bem-estar da ou circulavam pelas classes mais abastadas. Acreditamos que
população, como também se impor diante de casos que pode- o projeto civilizador no qual estava inserida a Guarda Cívica
riam ocasionar conflitos maiores, como interferir em brigas, buscava ser estendido a todas as pessoas da cidade, mesmo
apaziguando os ânimos dos mais exaltados. Casos documen- que o foco estivesse mais direcionado para as classes mais po-
tados como o incêndio na Rua do Comércio, ocorrido em 30 bres, justamente para promover maior segurança e circulação
de outubro de 1881, na freguesia de São Frei Pedro Gonçal- aos membros das classes mais abastadas.
ves, no prédio ns 05, ocupado pela Companhia Telegráfica;110 Contudo, a polidez dos costumes tinha que ser apre-
o socorro feito pelo comandante da estação da freguesia de sentada e preservada por todos, principalmente em lugares
Santo António a Leocádia Maria da Silva, tida como "mulher públicos como teatros e parques, ambientes prioritariamente
pública", após a mesma cair de uma sacada no 2° andar no frequentados pelas elites. Nesse ínterim, esses espaços tam-
Largo do Rosário, n- 44; o socorro a Josepha Maria Caetana de bém passaram a ser alvo do tipo de policiamento realizado
40 anos, que se jogou no Rio Capibaribe em tentativa de sui- pela Guarda Cívica. Duas ocorrências, ocasionadas num dos
cídio, em 10 de setembro de 1885, por alegar não ter meios de principais espaços de divertimento das elites provinciais, o
viver, sendo resgatada a tempo por um guarda da Alfândega Teatro de Santa Isabel, exemplificam essa tentativa de repre-
e conduzida a sua residência por uma praça da Guarda Cívi- ensão a práticas consideradas inadequadas, que estavam sen-
do impostas aos ambientes frequentados pelas classes mais

109.HOLLOWAY, Thomas. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa ci-


dade do século XIX. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997. lll.APEJE, Fundo SSP, l 5 Delegacia da Capital, Ofício de 10 de setembro de 1885.
110.APEJE, Fundo SSP, 1; Delegacia da Capital, Oficio de 30 de outubro de 1881. 112.APEJE, Fundo SSP, l" Delegacia da Capital, Ofício de 24 de abril de 1877.
100

abastadas do Recife. i\'a noite de 16 de maio de 18'/7, no inter- tações da Guarda como locais de recolhimento de suspeitos,
valo do 4 9 para o 52 ato de um espetaculo, o alferes Evaristose a ; e aando que para isso, havia a Casa de Detenção. 115

recusou a atender um pedido de não fumar nas dependências Em outra edição, do dia 17 de março de 1877, o mesmo
do teatro, feito por uma praça da Guarda Cívica, aparente- jornal apresenta a seguinte epígrafe "Proezas da Guarda Cí-
mente "com toda educação e esmero". Diante da recusa, se vica", afirmando que "o que antigamente sucedia com a polí-
dirigiram para o teatro o comandante da freguesia de Santo cja, sucede hoje corn a guarda urbana: onde comparece esta, é

António e o comandante geral da Guarda, que não consegui, logo desembainhado refes, [...] de forma que em avistando se
ram convencer o alferes, dando voz de prisão ao homem.'" £ soldados de guarda cívica, já se pode esperar barulho". Du-
em 24 de agosto de 1877 um ofício pediu a fixação de urna ou rante uma procissão realizada no dia 16 de março, na fregue-
duas praças da instituição na saída do Teatro para impedir sia de Santo António, o comandante de distrito da freguesia
tumultos entre os espectadores, devido ao manuseio dos car- começou a tomar as bengalas dos homens, alegando que seria
ros.114 Esses exemplos citados explicitam um dos aspectos do para evitar conflitos e segundo o jornal, os prejudicados re-
trabalho da instituição, mostrando que a criminalidade não clamaram, mas não apresentaram resistência. Após o fim da
era o único foco, talvez nem fosse o principal. Direcionando procissão, as praças da Guarda da estação de Santo António,
seus esforços para casos semelhantes aos citados acima, que somadas as praças de São José se posicionaram ern frente a
causavam distúrbios no dia-a-dia e precisavam de uma ten- banda de música para impedir a aglomeração de crianças e
tativa de resolução rápida para impedir ações que pudessem demais pessoas, que revoltados começaram a vaiar as pra-
gerar danos maiores, a Guarda Cívica fazia o papel de media- ças. Em represália, os guardas desembainharam os sabres e
dora, impedindo o conflito e apresentando a sociedade novas começaram a atacar a população cegamente, ferindo diver-
formas de se portar no espaço público. sos. O jornal ainda afirmou que no dia seguinte ao ocorrido,
Entretanto, nem sempre as praças agiam com toda a "homens artistas e pacíficos" foram ao escritório da tipogra-
presteza necessária e os desleixos se tornavam recorrentes, o fia mostrar as marcas da selvagería da Guarda Cívica, que se
que ocasionou tensões para os chefes de polícia e os presi- retirou do local com escolta do 2a Batalhão de linha, após ser
dentes da província. Na edição de 22 de fevereiro de 1877, praticamente expulsa pelos populares com pedras e garrafas.
o jornal 'A Província' apresentou um relato intitulado "Não O jornal ainda afirmou que não era "a primeira vez que são
Deve Continuar", alegando que comandante geral da Guarda levados à pedradas os urbanos, caindo assim em uma desmo-
Cívica estava consentindo que mulheres recolhidas nas esta- ralização que os inibe de fazer o serviço que se destinam".116
ções fizessem a faxina dos locais, caso ocorrido na estação da Já nos primeiros anos de existência da instituição, ela se
freguesia de São José, reclamando ainda da utilização das es-
115.BN - Hemeroteca Digital. A Província, 22 de fevereiro de 1877. Acessado em 04 de
junho de 2017
113.APEJE, Fundo SSP, 1a Delegacia da Capital, Oficio de 17 de maio de 1877. 116.BN - Hemeroteca Digital. A Província, 17 de março de 1877. Acessado em 04 de
114.APEJE, Fundo SSP, l1 Delegacia da Capital, Ofício de 24 de agosto de 1877. junho de 2017.
102

envolveu em vários conflitos p r o d u z i n d o o efeito inverso • HP


ais progresso e desenvolvimento. L\ relação ao relato cita-
ut r
esperado. O apazigua mento e a resolução dos casos de form a , ptí]o delegado, podemos concluir que o trabalho das praças
pacífica não faziam parte do relato do jornal, como provável- can^ati\o, e como não possuíam uma escala de trabalho ré-
mente era esperado pelo governo provincial, mas casos seme- lar, talvez estivessem dormindo em serviço como forma de
O

lhantes não foram relatados apenas pela imprensa periódica" diminuir o cansaço, que segundo o deputado provincial Ratis
as autoridades policiais também presenciaram várias ações e Silva, era extenso devido a escalas irregulares que poderiam
irregularidades cometidas pelas praças. Em 1881, o delegado chegar a 18h de trabalho por dia."8 Mas além disso, esse sono
Joaquim Rubem decidiu fazer uma ronda pelo centro da cida- noturno nas horas que deveriam estar de ronda pode apresen-
de, na intenção de observar o trabalho policial e relatou que, tar uma tentativa de burlar a imposição de seus regulamentos,
unia forma de resistir à ordem imposta a esses homens, talvez
Tendo saído das duas para as três horas da madru-
gada de hoje, [22 de abril de 1881] saído a [MC] as di-
por acharem que não sofreriam nenhum tipo de punição por
ferentes freguesias desta cidade, sucedeu que procu- desobediência ou. descumprimento do regulamento. As tenta-
rando verificar se os guardas cívicos permaneciam tivas de diligencia foram levadas em consideração e o delega-
em seus respectivos postos, notei que da Rua Duque
de Caxias, não acudiu ao meu sinal de apilo, o da
do ainda solicitou ao chefe de polícia "que se [designasse] de
Rua do Cabugá estava deitado a dormir em uma tomar providencias" para que os guardas tomassem ciência e
das portas da matriz de Santo António, o do pátio competência de seus deveres".119
do Carmo conservara-se dentro da escada de um
sobrado, os do largo do mercado Assumpção [sicl A desobediência dos membros da instituição, tanto
não responderam ao meu chamado e presumo te- praças quanto dirigentes, mostram como os componentes
rem abandonado os seus pontos, o do pátio do terço
desse aparato driblava os ordenamentos impostos e mostra-
estava dentro de uma padaria, a qual estando fecha-
da abaixo uma das portas para dar saída ao mesmo va o quanto aqueles homens estavam longe de ter o compor-
guarda e isto depois de repetidos apitos, o guarda tamento necessário, diante do modelo imposto pelo regula-
que fazia sentinela na estação estava deitado sobre
mento da Guarda Cívica. Outro caso, sobre a desobediência
um banco e também dormia.'1"
do Comandante Geral da Cívica em relação à ordem do De-
Os eventos apresentados acima deixam a mostra um > legado Adoípho Siqueira Castro, ocorrido em setembro de
pouco do cotidiano das forças policiais do Recife, e talvez seja 1877, é um dos principais exemplos que encontramos, onde o
um exemplo do que ocorria em várias cidades do Império. Nes- Delegado pediu ao chefe de polícia que informasse ao coman-
se projeto institucional imposto para o Recife, as praças que dante "que lhe [cabia] somente comandar a guarda, e não,
deveriam trabalhar para a manutenção do bem-estar público, como parece pretender, tomar conta as autoridades policiais
maculavam o comportamento indicado para homens que usa-
vam uma farda representando as elites provinciais e seus ide- |
118.Fala do Deputado Ratis e Silva. Anais da Assembleia Provincial, 1877. p. 200.

117. APEJE. Fundo SSP, }s Delegacia da Capital, Ofício de 22 cie afori! de 1881. 119-APF'JFi, Fundo SSP, l1 Delegacia da Capital, Ofício de 22 de abril de 1881.
!04 -.05

dos agentes que empregam ao serviço de polícia". 12r Welljn... aUumas prisões no loail, contudo havia uma "Guarda
gton Silva argumenta que ocorriam desavenças desse tin0 ,j0 Mercado", composta cm torno de oito homens armados c
entre o Corpo de Polícia e subdelegados, fazendo com qu e encarregados da segurança do local, alegando que a polícia
as autoridades civis apresentassem várias reivindicações ao não possuía ingerência espontânea naquele espaço.::-
Chefe de Polícia/- 1 No mesmo ano, em 12 de setembro o mesmo Delega-
Entre os vários espaços públicos que requeriam aten- do alegou que "são repetidamente levantados distúrbios e até
ção das autoridades, o Mercado de São José, tinha destaque praticados crimes" nas dependências do Mercado e que pra-
especial. Era o principal centro de comércio da localidade ç ças da Guarda Cívica ficavam de prontidão na porta, mas só
um dos principais símbolos de modernização ostentado pelos adentram quando são solicitadas, devido a permanência dos
governantes da província, tornando-se um alvo muito espe- "Guardas do Mercado" que alegaram serem suficientes para
cial para o policiamento, além de ter sido estruturado com o policiamento interno do estabelecimento.124 O Mercado era
uma arquitetura inovadora, pelo menos em relação aos ou- um espaço de circulação de mercadorias e pessoas, com fluxo
tros ambientes da cidade. Para Clarissa Maia, o Mercado era financeiro contínuo e alvo em potencial para roubos e furtos, o
uma experiência válida para as elites pernambucanas porque que poderia deixar os administradores e comerciantes insegu-
concentrava o comércio em um ambiente formalizado, higi- ros e com receio do policiamento que era realizado pelas ins-
énico e regulamentado, excluindo os outros mercados insa- tituições do governo provincial, fazendo com que os mesmos
lubres, com barracas ao ar livre e sem o mínimo de higiene desenvolvessem o interesse de criar uma guarda particular
proposta, mas não significa que o ambiente estivesse livre de para contenção de crimes e distúrbios. A existência de apa-
problemas, principalmente em relação a criminalidade.1- ratos policiais particulares, mantidos pela administração do
Em 20 de março de 1879 um ofício escrito pelo Delega- Mercado e sob interesse dos comerciantes do estabelecimento,
do Cândido J. de Lisboa e enviado ao Chefe de Polícia, alegou demonstrava tanto a insatisfação daquelas pessoas em relação
que no "Mercado e em suas adjacências circulavam abundan- ao policiamento realizado pela Guarda Cívica e pelo Corpo de
temente larápios e indivíduos afeitos a distúrbios e crimes", Polícia, quanto o desejo de terem o poder coercitivo em suas
alegando também que desde a época em que era subdele- mãos, já que não acreditavam na força pública do Estado.
gado de São José, mandava uma patrulha a mais para aquela A Freguesia de São José era palco de vários conflitos,
região, entretanto, indicava que só adentrassem no Mercado o que explica o porquê de inicialmente serem deslocados
se fossem solicitados. Segundo ele, a Guarda Cívica já efe- mais homens da instituição para essa região da cidade, como
vimo anteriormente. Outro exemplo ocorreu em 05 de agosto
de 1880, por volta das 15h, quando carregadores de água se
120.APEJE, Fundo SSP, l- Delegaria da Capital, Ofício de 05 de dezembro de 1877.
121.SILVA. Op. cif., pp. 181-182.
122.MAIA, Clarissa Nunes. Policiados: controle e disciplina das classes populares no
123 APEJE, Fundo SSP, r Delegacia da Capital, Oficio de 20 de março de 1879.
Recife. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Pernambuco, Reci-
fe, 2001, p. 48. 124 APEJE, Fundo SSP, 1 k 'Delegacia da Capital, Ofício de 12 de setembro de Iá79.
enfileiram no chafariz da Penha para encher seus baldes. Ern He l.inh::. r " Na freguesia de Santo António, unia daí áreas
um dado momento, João Joaquim Paes de Lima, também car- centrai? ca cidade e por isso mesmo uma das regiões mais
regador de água e o último a chegar, decidiu ser o primeiro bem policiadas devido aos de espaços de divertimento e pré-
a encher seus baldes e se pôs na frente dos outros, gerando dios públicos que existiam, não estava livre dos conflitos e
tumulto. Paes de Lirna não se intimidou e tentou agredir os crimes mesmo os de natureza pequena. Contudo, a Guarda
outros carregadores, e o conflito só foi resolvido com a chegada Cívica produziu exemplos de combate à criminalidade, como
de duas praças da Guarda Cívica, que renderam o "arruaceiro" os casos ocorridos, o primeiro no dia 05 de abril de 1887, por
e o levaram para a 3a estação da instituição, onde foi recolhido volta de 13h, em que o praça de ne 20 da Guarda prendeu na
no dia seguinte pelo subdelegado do distrito.1-5 Outro conflito Travessa da rua da Praia, o indivíduo Florêncio José dos San-
também sem grandes proporções, mas que elucida a preocupa- tos, perseguido pelo clamor da população por ter furtado do
ção das autoridades em relação a freguesia de São José ocorreu almocreve José Bento do Nascimento, uma sacola contendo
com os indivíduos conhecidos por Beraldo, Piloto, Feijoada e o dinheiro de suas vendas. Por ter sido pego em flagrante,
Manuel do Nascimento Cruz, que não tinha apelidos, ambos foi enviado a Casa de Detenção e o dinheiro devolvido ao
iniciaram uma briga entre si, no pátio do Mercado, bem em dono. E no mesmo dia, por volta das 9h da manhã, no Cais
frente a uma das bandas de música que tocava na novena da do Ramos, praças da Guarda Cívica conseguiram prender
Penha, causando ferimentos leves entre ambos.126 João Francisco de Carvalho por ter ferido com um coco João
Contudo, apesar dos casos apresentados, a desobedi- Francisco dos Santos, mestre da barcaça Rosinha. O acusado
ência não pode ser apresentada como a única característica também foi enviado a Casa de Detenção e a vítima vistoriada
da Guarda, já que em vários momentos, durante os anos de por médicos que alegaram que o ferimento era leve.135 Esses
atuacão da instituição, entre 1876 e 1890, as praças realiza- conflitos, mesmo não sendo de grande proporção, mas pode-
ram suas funções da forma correta e esperada pelas autori- riam ocasionar ferimentos graves e até mortes, que ocorriam
dades, mantendo certo efeito de eficácia, que ao menos foi plenamente à luz do dia, além de mostrar que não havia hora
suficiente para sustentar a instituição atuando por mais de certa para os distúrbios começarem, o que obrigavas as pra-
uma década. Exemplos como os ocorridos em 12 de outubro ças a estarem sempre alertas, apresentava exemplos de uma
de 1878, quando as praças Venerando José de Melo e Manoel polícia eficaz para a cidade.
Gomes de Souza, tiveram suas condutas elogiadas pelo Dele-
gado Sigismundo António Gonçalves ao efetuarem a prisão REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
de Aurélio José Gerônimo, indiciado por causar um grave fe-
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias
rimento que levou a morte de um soldado do IO2 Batalhão na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

125. APEJE, Fundo SSP, l' Delegacia da Capital, Ofício de 10 de março de 1880. 127 APEJK, Fundo SSP, \ Delegacia da Capital, Ofício de 12 de outubro de 1878.
126.APEJE, Fundo SSP, 1J Delegacia da Capital, Ofício de 20 de agosto de 1886. ; ;. 128.APEJE, Fundo SSP, l- Delegacia da Capital, Ofício de 6 de abril de 1887.
108 1(9

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APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA
ELIASIANA DA VIOLÊNCIA NO BRASIL.

Nos últimos 60 anos, a História da violência consoli-


dou-se entre historiadores, antropólogos e sociólogos como
um campo fundamental para a compreensão das formas de
interdependências dos atores sociais. E certo também que as
formas de análise relacionadas ao estudo da violência e da
criminalidade acabaram por gerar interpretações das mais
diversas. Neste sentido, eu gostaria inicialmente de destacar
três grandes modelos de análise acerca do fenómeno da vio-
lência e da criminalidade no campo da História.
No primeiro deles, ligado à tradição da História socio-
econômica, os crimes e a violência física são analisados esta-
tística e quantitativamente e são comparados, em seus con-
textos, com questões relativas a crises económicas, questões
demográficas, aumento de preços e de aumento da demanda
por bens de primeira necessidade, etc. Em suma, este tipo
de pesquisa procura explicar o comportamento criminal as-
sociando-o à questões económicas conjunturais; procurando
assim encontrar variações na criminalidade que coincidam
com flutuações no ciclo económico. Uma importante pesqui-
sa de Ernest Labrousse poderia ser lida desta forma130. Sim-

129.Doutor em História Social pela UFRJ. Pós-Doutor pelo Centre de Recherche d'Hisíoire
du XÍXe Sièck (Université Paris l - Panthéon Sorbcnne). Professor do Instituto de His-
tória da Universidade Federal de Uberlândia.
130.LABROUSSE, Ernest. La Crise de 1'économie française ã !a fin de J'ancien regime
et au début de Ia Révolurion. Paris: PUF, 1943.
112

plificando bastante a condução deste trabalho, uma relação íjern°s Llue I°nge de se preocuparem apenas com as questões
encontrada com certa frequência é a seguinte: em momentos do mundo do trabalho., o cerne da discussão se desloca para
de tranquilidade económica percebe-se o aumento de crimes os grandes processos sociais, tal como o processo cwilizador,

contra a ordem (sobretudo embriaguez). Já em períodos de desenvolvido por Norbert Elias. Eles se perguntam também
crise, observa-se o aumento de crimes contra a propriedade como o desenvolvimento do capitalismo e da chamada mo-
podendo ou não ter conotações políticas. dernização afetou tanto os comportamentos pessoais quanto
Já em um segundo modelo observa-se uma análise da a legislação, a ação da justiça e o controle social. É sobre este
criminalidade correlata a explicação das condições dos traba- último modelo que trataremos neste texto.
lhadores. Nesse tipo de pesquisa, a criminalidade subalterna Há quase 40 anos atrás, em um artigo que se tornou
é explicada em um quadro cultural no qual a açào dos popu- um clássico entre os historiadores do crime, Ted Robert Gurr
lares é justificada como uma forma de resistência ao avanço examinou a evidência empírica das tendências seculares da
de práticas capitalistas e à disciplinarização do trabalho. Uma violência criminal letal. O cerne da pesquisa foi a revisão de
grande inspiração a este tipo de interpretação veio da obra uma série de estudos históricos sobre homicídio na Inglater-
de E. P. Thompson131. Outros historiadores demonstraram ra medieval e moderna, cada um baseado em análises deta-
também que no século XIX houve uma grande expansão da lhadas dos casos para períodos e jurisdições específicas que
chamada classe média letrada que passou a se escandalizar forneceram dados fundamentais para a estimativa das taxas
com certas formas de agir dos grupos subalternos, classifi- criminais. Gurr traçou, em um gráfico, algo em torno de 20
cando-as corno atos criminosos e passando a enxergar esses estimativas para o período que ia do ano 1200 até 1800. Ele
grupos como "classes perigosas"132. verificou, para o caso londrino, que o gráfico começava com
Por fim, temos também abordagens preocupadas em uma taxa de 20 homicídios por 100.000 pessoas na alta idade
compreender a violência na longa duração. São interpretações média e terminava, após uma vertiginosa queda, com cerca
que procuram relacionar a criminalidade com determinadas de l homicídio por 100.000 habitantes no século XX. Gurr in-
fases do desenvolvimento de uma dada sociedade, fazendo terpretou então essa tendência secular como uma forma de
uso de métodos estatísticos e quantitativos, sem deixar de manifestação de mudança cultural na sociedade ocidental,
lado, é claro, a análise qualitativa. Nesses trabalhos133, perce-

Rcview of the Evidence". TONRY, Michael & NORVAL, Morris. Crime and Justice,
131.THOMPSON, E- P. Senhores e Caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1987 e THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. São Paulo: Cia. das
Letras, 1998.
l vol. 3, University Chicago Press, 1981; SPIERENBURG, Pieter. A History of murder
personal violence in Europe from the middle ages to the present. London: Polity
Press, 2008; FLETCHER, Jonathan. Violence and Civilization: an introductíon to
132,Ver, dentre outros: CHAVALIER, Louis. Classes laborieuses et classes dangere- the work of Norbert Elias. London: Polity Press, 2005; SPIERENBURG, Pieter &
uses. Paris: Ed. Perrin, 2007; WEINER, Martin J. Men of Blood: violence, manli- MUCCHIELLJ, Laurent. Histoire de !'homicide en Europe: de Ia fin du Moyen
ness and criminal justice in victorian Erigland. Cambridge: Cambridge Umversiry Age ã nous jours. Paris: La Découvert, 2009 e BODY-GENDROT, Sophie (org.) Vi-
Press, 2006; WOOD, J. Cárter. Violence and crime in nineteenth-century England: olence in Europe: histórica! and contemporary perspectives. London: Springer,
the shadow of our refinement. London: Roulledge, 2004. 2009 e SPIERENBURG, Pieter- "Faces of Violence: Homicide Trends and Cultural
133. Ver em especial: GURR, Ted Robert. "Historical Trends in Violent Crime: A Critica Meanings. Amsterdam 1431-1816"-Journal of Social History, 1994.
caracterizada por u m a u m e n t o de sensibilização acerca Ha
violência e o desenvolvimento do aumento do controle i n t er l redução na taxa de homicídios, ao longo dos último?
urna
no e externo sobre o comportamento agressivo 134 . OÍtO StH
loa, da razão de aproximadamente v i n t e para um
Desde então uma quantidade expressiva de pesquisas-í po, r lOU.000habitantes'-"' 1 .
em história do crime e da justiça criminal foi realizada, o que ( p nesse sentido, o trabalho de Norbert Illias fornece
aumentou significativamente nosso conhecimento acerca das ^ talvez o mais proeminente quadro teórico discutido pelos
manifestações históricas da violência letal131. Esses ustudos -: historiadores do crime que estão interessados em explicar a
mostraram que a história da violência deve estar bem firma- i tendência da violência na longa duração. Elias é bem conhe-
da no contexto de uma história social e cultural e na análise cido entre os historiadores pelo seu modelo do processo civi-
das instituições centrais da sociedade moderna na longa du- Hzador, modelo este que aborda a dinâmica social em longa
ração. Com base nisso, a maioria dos historiadores do crime duração e numa perspectiva macro, bem como analisa as rela-
passaram a aceitar a noção do declínio, ao longo dos séculos, ções entre as mudanças ocorridas nas estruturas da sociedade
da violência letal na Europa ocidental e do norte, baseados na e as mudanças psicológicas ocorridas ao longo do tempo e
reconstituição das taxas históricas de criminalidade, sobretu- l sua materialização em modos de comportamento. Em resu-
do de países como Inglaterra, Holanda, França e Suécia; de- mo, essa teoria sustenta que durante um período de vários
clínio este que se acentua nos séculos XVTII e XIX e cuja linha > séculos o tipo de personalidade, primeiro da elite e depois
desenhada só retoma um curso ascendente após a Segunda , dos setores médios, foi marcada pelo aumento do controle
Guerra Mundial. As evidências apontam então uma queda da em público, pela diminuição da impulsividade e pela racio-
nalização da maneira de se viver. Em suma; um aumento dos
níveis de autocontrole. Altos níveis de autocontrole implica-
134.GURR, Ted Robert. "Historical Trends in Violent Crime: A Criticai Review of lhe
Evidercc." Op. cil. ram assim na gradual pacificação das interacões cotidianas,
135.Ver, por exemplo: SPIERENBURG, Pieter. L'homicide et Ia loi em RépuH.que de; que passaram a se caracterizar por baixos níveis de compor-
Pays-Bas du Nord: un pays pacifique ? In : SPIERENBURG, Pieter & MUCCHIEL-
LI, Laurent. Histoire de !'homicide en Europe : de Ia fin du Moyen Age à noas tamento violento.
jours. Paris : La Découvert, 2009; SHARPE, Jim. Histoire de Ia violence en Angle-
terre (XIHe - XXe siècles). In : SPIERENBURG, Pieter & MUCCHIELLI, Laurtni.
Alguns historiadores do crime, como Spierenburg,
Histoire de 1'homicide en Europe : de Ia fin du Moyen Age à nous jours. Paris La aceitam o amplo modelo teórico de Eiias discutido acima e o
Decouvert, 2009; LINDSTRÕM, Dag. Lês homicides em Scandinavie, analyse à long
terme. In : SPIERENBUKG, Pieter & MUCCHIELLI, Laurent. Histoire de 1'homi- utiliza para explicar o declínio da violência em países da Eu-
cide en Europe : de Ia fui du Moyen Age à nous jours. Paris : La Decouvert, 2009;
ropa e também para explicar as razões de altas taxas de homi-
ROUSSEAUX, Xavier; DAUVEN, Bernard; MUSIN, Ande. Civilisation de mteurs
et/ou diciplinarisation sociale ? Lês sociétés utbaines face à Ia violence ern Europe
(1300-1800). In: SPIERE.MBURG, Pieter & MUCCHIELLI, Laurent- Histoire de 1'ho-
micide en Europe: de Ia fin du Moyen Age à nous jours. Paris: La Decouveri, 2009; 136.VELLASCO, Ivan de Andrade; ANDRADE, Cristiana Viegas de; CASTRO, José
O'DO.\NELL, lan. The fali and rise of homicide in Ireland. In: BODY-GENDKOT. Flávio Moraes. Mapa da criminalidade: reconstrução de estatísticas criminais e gê-
Sophie & SPIERENBURG, Pieter. (org.) Violence in Europe: histórica! and contem- op r oc essa mento no Brasil Imperial - Minas Gerais. In: Actas dei XVII Congreso
porary perspectives. London: Springer, 2009. COCKBLTRN, J. S. Patterns of Violence Internacional de Ia Asociación de Historiadores latinoamericanistas Europeos
in English Society: Homicide in Kent 1560-1985- Past & Present, No. 130 (Feb . 199!), 1AHILA) Freie Universitàt Berlín, 9-13 de septiembre de 2014, p. 4218.
pp. 70-106.
Para Ma\, o EítaJ. 1 >eria dijtinido pela monopo-
futam tal modelo, acusando-o de insuficiente e generalizante lização da violência. O Estado -uria uma comunidade humana
Mas um grande número de pesquisadores, e eu rne incluo en- , ;ipá limites de um dc-iénnínadc território reivindica com sutvs^i?,
" ^ _ , . , . . „ . - .
tre eles, consideram a teoria do processo civilizador tal qual rrn beneficio próprio, o monopólio da riotencia física legítima. E o
desenvolvida por Elias como urn ponto de partida frutífero monopólio da violência que submete e. de certa forma, obriga
na tentativa de interpretar a tendência secular de queda da à obediência de todos ao poder público e são as instituições do
violência letal descoberta por Gurr e por outros pesquisado- Estado, fundamentadas de legitimidade pelo poder central, as
res. Entretanto, algumas perguntas fundamentais devem ser únicas a praticar a violência legítima. Não importa, para We-
feitas antes de continuarmos nosso trabalho: esse declínio da ber, as múltiplas finalidades do Estado: é o controle exclusivo
violência letal seria um fenómeno apenas europeu ou pode da violência que caracteriza sua formação original 141 .
ser generalizado para outros contextos? Se a resposta for po- Para Norbert Elias, seguindo alguns dos passos de Max
sitiva, quais regiões do planeta apresentaram esse declínio? E VVeber, a formação do Estado é uma lenta e contínua constru-
o caso brasileiro? Pode ser visto ou analisado dentro de uma ção do monopólio da violência por parte da autoridade cen-
perspectiva eliasiana! tral em um processo secular de retirada dos direitos da elite
à violência. Em sua obra "O Processo Civilizador"142, Elias
Elias e a centralização dos Estados Nacionais demonstra, para o caso francês, como a formação do Estado
moderno passou por um longo processo rumo à centralização
De acordo com Xavier Crettiez, seria no mínimo ingé- administrativa, fiscal, burocrática e militar, caracterizando-se,
nuo não ver no Estado um importante mecanismo de violên- por fim, pelo monopólio real frente aos senhores e nobres ri-
cia140. Se para os marxistas, em suas mais variadas vertentes, o vais. A supremacia daquele que viria a se tornar o soberano
Estado não passa de um instrumento de dominação da classe permitiu um grande acumulo de dinheiro através da impo-
burguesa que se utiliza de seu aparelho repressivo (forças mi- sição coercitiva do recolhimento de impostos, fato este que
litares, justiça, polícia, etc.) para proteger seus interesses polí- o tornava cada vez mais poderoso. Isso porque tal situação
ticos e económicos, outros autores enfatizam em suas análises lhe assegurava os recursos financeiros necessários para criar
a relação entre a formação do Estado Moderno e a monopoli- um exército permanente que o ajudou a submeter os nobres
zação da violência. e a garantir o monopólio da violência. Isso fez com que os
rivais do monarca percebessem ser mais vantajoso renunciar
137. Ver, nesse sentido, a excelente coletânea de artigos de Pieter Spierenburg intitulada. a possibilidade de violência em prol de uma rede de proteção
Violence ff Punishment: civili^ing lhe body through time. Cambridge: Políty Press, 2013
138.SCHUSTER, P. Der gelobte Fricden. Tãter, Opfer und Herrschaft im spatauttel.il-
terlichen Konstanz, Konstanz, Universitàtsverlag, 1995.
139.SCHWERHOFF, G., Criminalized violence and the civilizing process - a rt>apprai- Hl.Idem, p. 60.
sa!. Crime, History & Societies, 2002, 6, 2, p. 103-126. 142. ELIAS, Norbert. O Processo Civilizadon a formação do estado e civilização. Vol. 2.
140.CRETTIEZ, Xavk-r- As formas da violência. Edições Loyola: São Paulo, 2011, f> 5-í São Paulo: Zahar, 1994.
baseada na corto e na burocratizaçao da gestão administrati- Cofvi base nos pressuposto^ oliasinnos explicitados aci-
va e fiscal do Estado moderno em nascimento. ma; D ingiês James Sharp' 1 3 argumenta que não ha muita dú-

Ao mesmo tempo, ao longo deste processo de rnonopo. vida acerca do declínio dos homicídios e da violência de san-
Hzação da violência tanto nos planos internos {com a polida) • gue na Inglaterra, especificamente entre os séculos XIV e XX.
e externo (exército e a guerra), o Estado passa a criar urna Todavia, ele discorda da tese que afirma que através da dimi-
sensação de segurança que modifica a estrutura psicológica nuição dos crimes de sangue e uma maior repressão a estes,
de seus membros. Este processo, chamado por Elias de p$U houve um aumento então dos crimes contra a propriedade,
cogênese, assegurou primeiramente entre a elite e depois aos sobretudo a partir do final do século XVIII, com os processos
setores burgueses, o recuo de valores como bravura, coragem de urbanização e industrialização. Este processo é chamado
e honra como fundamentos da violência interpessoal em um por ele de "modernização". Sharpe argumenta ainda que a
processo que durou vários séculos. Neste sentido, o monopó- tese de Norbert Elias é muito melhor para explicar o processo
lio da violência por parte do Estado acabou também gerando de desenvolvimento da violência na Inglaterra do que a tese
mudanças nas formas de civilidade no Ocidente, evento este da ''modernização". De acordo com o historiador inglês, as
que acabou por transformar as relações entre os indivíduos: _! evidências analisadas apontam que não houve um aumento
gerou um grande aumento do autocontrole. linear dos crimes contra a propriedade no período indicado.
Enquanto o Estado (em um longo, demorado e não-!i- Mais importante que apenas esse processo de modernização,
near processo que variou de um país para o outro) construiu Sharpe indica que a questão deve ser analisada na relação en-
o monopólio da violência e impôs a diminuição da agressão tre comunidade e criminalidade.
entre súditos, houve também um aumento na chamada di- O processo de modernização (saída do campo, indus-
visão social do trabalho e o aparecimento de cadeias de in- trialização, formação de uma população majoritariamente
terdependência, gerando assim uma modificação nas pulsões urbana) da sociedade e do crime (mudança de um padrão de
violentas: o medo do outro passa lentamente a ser substituído alta taxas de violência de sangue e homicídios para um padrão
pelo medo de si mesmo; o afloramento de impulsos outrora criminal pautado sobretudo em crimes contra a propriedade e
públicos lentamente passam a ser ocultados pela vergonha e uma diminuição dramática dos crimes de sangue) envolve não
pelo medo do ridículo. Para Elias, um fenómeno de restrições apenas o indivíduo, a comunidade e o Estado, mas principal-
emocionais se instaura. Esse processo de autocontrole puísio- mente a relação entre ambos. Assim, para uma compreensão
nal é o centro daquilo que ele nomeia de "civilização progres- mais aprimorada da criminalidade no passado devemos levar
siva dos costumes". Diminuindo a aceitação de violência en- , também em consideração outros vários fenómenos tais como:
tre amplos setores da sociedade, as agressões letais rotineiras o nível de desenvolvimento económico e a complexidade da
se tornam cada vez mais raras e o homicídio residual consiste ,;
143.SHARPE. Jim. Histoíre de Ia violence en Angleierre (XHIe-XXe siècles). In : SPIE-
em casos escassos e marginais ligadas sobretudo ao submun- RENBURG, Pieter & MUCCHIELTJ, Laurent. Histoire de 1'homicide en Europe :
do criminoso e a irrupção de violências pontuais. de Ia fin du Moyen Age à nous jours. Paris : La Découvert, 2009.
120

estrutura sócia'; os valorei ligados às questões dt família, relj. 'Í legislação de uma enorme gama de crimes, além de atuar nos
giào, percepção do papel social da comunidade, a natureza do ^ tribunais disciplinando certos tipos de comportamento com o
aparato legal e o padrão das pessoas que o compõe. • jntuito do ordenamento e pacificação da sociedade. Por fim,
Conclusões semelhantes a estas foram encontradas ern é import arite explicar que para Líndstròm o conceito de pro-
vários contextos europeus por outros pesquisadores, corno ' cesso civilizador de Norbert Elias tem um papel central para
por exemplo, Dag Lindsrrõm 144 e Pieter Spierenburg145. Cla- compreensão da violência na Escandinávia.
ramente esses dois trabalhos mostram que o caso inglês não Para Lindstrõm, o elemento central na obra de Elias é
está isolado no contexto europeu. As taxas de homicídio nos que com seu auxílio percebemos que as variações na crimina-
séculos XV e XVI tanto em Amsterdã quanto em Estocolmo lidade não são justificadas apenas na constituição psicológica
são muito similares ao padrão encontrado para o caso inglês. das pessoas e na resposta mecânica à algum estimulo eco-
A grande mudança na curva do gráfico se dá no século XVIII, nómico. Seu modelo mostra todo um processo controle das
embora tenha começado a algumas centenas de anos antes. pulsÕes que começa na Idade Média e que leva à compreen-
Depois disso, em ambos os países, as taxas mantiveram um são de que a criminalidade está ligada tanto ao monopólio da
suave e constante declínio até o início do século XX, sendo violência por parte do estado quanto às redes de interdepen-
que nos últimos 30 anos a curva mudou novamente. dências construídas pelo e para o sujeito, desde antes de seu
Em seu ensaio Lindstrõm analisa tanto os crimes de nascimento, que acabam inculcando em sua psique as formas
sangue como os crimes contra a propriedade, tanto na Suécia consideradas normais e aceitáveis de comportamento.
quanto em seus vizinhos escandinavos, desde o século XV. Pieter Spierenburg também segue na linha dos críti-
Suas evidências parecem indicar algum aumento nos crimes cos ao modelo "de Ia violence au vol" e concorda com os dois
contra a propriedade após a segunda guerra mundial. O que autores acima analisados acerca da importância da teoria do
o leva, assim como Sharpe, a recusar a teoria da modernização processo civilizador de Norbert Elias para explicar as taxas
que busca, de certa forma, igualar o aumento dos crimes con- de homicídio de longa duração na Holanda a partir do século
tra a propriedade com o surgimento da sociedade burguesa. XV. Examinando os coroner's inquests entre os anos de 1667 e
Segundo ele, a centralização e modernização do Estado sueco 1816, Spierenburg mostra elementos importantes acerca do
teve um papel fundamental sobre o controle social e judiciai papel da mulher nos casos de homicídio, a motivação dos
da sociedade: o Estado atuou como agente de mudanças na assassinos e o tipo de relações sociais entre vítimas e réus.
Nesse trabalho ele também afirma a importância do modelo
eliasiano acerca dos processos civilizador e sua relação com a
144.LINDISTRÕM, Dag. Lês homicides en Scandinave, analyse 'a long terme. In : SPIE-
RENBURG, Pieter & MUCCHIELU, Laurent. Histoire de 1'homicide en Europe : queda de crimes violentos na Holanda.
de Ia fin du Moyen Age à nous jours. Paris : La Découvert, 2009.
Com base no que foi dito acima, percebemos que refle-
145.SPIERENBURG. Pieter. Uhomicidc et Ia !oí en Republique dês Pays-Bas du Nord :
un pays pacifique ? In : SPIERENBURG, Pieter & MUCCHIELLI, Laurent. Histoire xões de Elias têm sido amplamente aceitas por pesquisadores
de l'homicide en Europe : de Ia fin du Moyen Age à nous jours. Paris : La Décou-
vert, 2009. europeus para pensar o processo histórico da violência. To-
122

davia, cabe aqui um importante questiona mento: é possível as

aplicar tal perspectiva para compreendermos o desenvolvi, 1'dade e da justiça no Brasil ainda estão por serem feitas. Até o
mento histórico da violência no Brasil? momento, e salvo engano, inexistem trabalhos que tenham se
As ideias de Norbert Elias sobre o processo civilizador nroposto a testar hipóteses eliasianas sobre alterações nas for-
e seu reverso tiveram pouca ressonância na historiografia bra- mas de violência numa perspectiva macro, de longa duração
sileira da violência até agora. Isso pelo fato de que certas pecu- re lacionando-as à crescente ampliação do controle estatal.

liaridades nas transições históricas do nosso país tornam difícil A única exceção neste quadro é a pesquisa de Ivan Vellasco
pensar a evolução da violência nos termos eliasianos. E para e Cristiana Andrade, que busca para o caso mineiro, correla-
adaptar as ferramentas conceituais de Elias certas precauções cionar os dados relativos à ampliação dos poderes de Estado
devem ser tomadas. Nesse sentido, devido ao alto grau da vio- com os dados fornecidos pelas estatísticas criminais, revelando
lência letal no Brasil ainda nos dias atuais, seria importante le- assim a forma pela qual esses processos estabelecem comple-
var em conta, ao meu ver, as ideias de Elias sobre o monopólio inentariedade146. Os autores definiram a região do que fora a
da violência, a pacificação da população, a interdependência comarca do Rio das Mortes como área central do projeto, vi-
social e a repressão aos impulsos de agressividade enquanto as sando o mapeamento dos arquivos históricos judiciais existen-
sociedades se "modernizam" ao longo do tempo. tes. Até o momento, eles trabalharam com os seguintes acervos:
vila de Queluz, contendo 2774 processos criminais com datas
Norbert Elias e a História da Violência no Brasil: uma limites entre 1792 e 1930; vila de São João del-Rei, contendo
História possível? 2294 processos criminais, rol dos culpados e livros de quere-
las com datas limites entre 1772 e 1900; vila de Oliveira num
Qual tipo de historia da violência seria a melhor para total de 1964 processos criminais com datas limites entre 1823
examinarmos a tese de Elias sobre o processo civilizador? Pri- e 1930; vila de Tamanduá, num total de 1134 processos crimi-
meiramente e sem sombra de dúvidas uma análise massiva nais com datas limites de 1829 a 1930 e a vila de Lavras, com
e quantitativa da evolução da violência na longa duração. A 969 processos criminais com datas entre 1839 e 1900. Tudo isso
partir daí, deveríamos nos concentrar não apenas na violên- perfazendo um total superior a nove mil registros entre finais
cia, mas no efeito dessa violência na sensibilidade e emoções do Setecentos e início do século XX147.
das pessoas. Em suma, compreender como os atos de vio- Vellasco e Andrade perceberam que quase 70% dos
lência no passado provocaram apatia, rejeição ou vergonha conflitos nessa região advinha de crimes resultantes de dis-
numa determinada população. putas entre conhecidos e familiares, envolvendo bebida, ciú-
Os estudos sobre criminalidade e atuação da justiça no
Brasil ainda não seguem esta perspectiva apontada acima. São I46.VELLASCO, Ivan de Andrade; ANDRADE, Cristiana Viegas de; CASTRO, José Flá-
vio Moraes. Mapa da criminalidade: reconstrução de estatísticas criminais e geopro-
raras as pesquisas realizadas com dados mais precisos e em cessamento no Brasil Imperial - Minas Gerais... op. cit., p. 4221.
maior quantidade e que permitam a composição de análises 147.1dem, p. 4222.

sobre as causas das altíssimas taxas de violência letal em nosso


mês e traições. A partir desses dados eles observaram q Ue j pm on?trando empiricamente as causai da mudança nesse
função precípua da máquina de justiça no Oitocentos era sn. adrão histórico (abolição? Coronelismo? Mudanças na rela-
bretudo arbitrar os conflitos entre aqueles que se colocavam" - j0 aparato repressivo e jurídico com a população?), mas
sob sua jurisdição, em acatamento às regras que lhes perrni JKJ
demos perceber que esta faceta mediadora da justiça di-
tiam administrar suas vidas e seus negócios. Nesta pesquisas minui consideravelmente a as taxas de violência, sobretudo
justiça se apresenta, portanto, corno uma instância de media- «violência física e letal e as tentativas de homicídio, crescem
cão dos conflitos que surgiam permanentemente entre os q ue vertiginosamente no país.
partilhavam um "acordo básico" sobre as normas, confor. É evidente que não podemos generalizar para todo o
mando um espaço para "o homem pobre e respeitável tornar -ais as conclusões encontradas por Vellasco e Andrade, mas
públicos seus conflitos". Desta maneira, diferente do padrão o exemplo trazido por esta massiva pesquisa aponta a neces-
de criminalidade que caracterizaria a modernização, no qual sidade da realização de centenas de pesquisa similares para
predominariam os crimes contra a propriedade em detrirnen-' 'compreendermos o desenvolvimento histórico da violência
to crescente da violência interpessoal, o que os pesquisado- letal no Brasil. Desta maneira, e de forma complementar ao
res verificaram em todo o período de aproximadamente um exemplo que acabamos de citar, os historiadores brasileiros
século foi a persistência de um padrão de criminalidade que deveriam ser capazes de conectar as mudanças de longa du-
se assemelha ao encontrado na Idade Média europeia. Ob- "ração e as sensibilidades e emoções acerca da violência com
servaram assim o predomínio da violência interpessoal entre ' p processo de formação do Estado e, em particular, com a
iguais, fortemente marcada por noções de honra e afirmação gradual imposição do monopólio da violência pelo Estado.
da masculinidade148. Vellasco e Andrade notaram então uma Uma história seguindo as proposições de Elias deveria ne-
constante crescente na ação do sistema de justiça no contro- • cessariamente interrogar a extensão da vigilância do Estado
le da violência interpessoal, concentrando sua ação ao longo sobre a sociedade civil, incluindo aí a expansão das capaci-
do tempo na contenção dessa violência em níveis não letais dades do Estado em punir e disciplinar, associada ao decrés-
Á medida que a justiça ganhou capacidade em processar e, cimo da violência administrada de forma privada. Por fim,
em alguma medida, vigiar e punir as condutas agressivas, i deveriam analisar também os processos de internalização das
ela exerceu maior controle sobre as condutas, dissuadindo os normas de conduta que envolvem a diminuição da violência
agressores e conseguindo conter seus efeitos mais drásticos, pelos indivíduos, famílias e grupos pequenos: tudo isso com
como o homicídio149. Todavia, os pesquisadores em questão a transmissão entre as classes e entre a população de compor-
apontam também que este padrão muda consideravelmente tamentos pacíficos e harmoniosos, observando que tipos de
no final do período imperial e sobretudo no período conhe- sensibilidades produzem esses comportamentos150.
cido como República Velha. Ainda não existem pesquisas
' 450 As mesmas questões foram originalmente propostas para a América Latina em um
excelente ensaio de SALVATORE, Ricardo D. Conclusion: Violence and th e "Civili-
MS.Idem., p. 4228. siiig Process" in Modem Latin America. In: SALVATORE, Ricardo D. & SPIEREN-
149.1dem., p. 4229.
Por fim qual seria a documentação necessária para li concernentes à violência no Brasil, apesar de não
dar com uma história de tal natureza? A precariedade dos termos ainda dados e pesquisas significativas para tal. Cabe-
nossos arquivos e a enorme quantidade de documentos limita ria assim a cada historiador especialista nas várias regiões do
a efetivação dessa história na longa duração. Além disso, inú- naís analisar o impacto que as regulamentações, pedagogia,
meras formas de violência não deixam muitos registros, corno acão do aparato repressivo e normas estatais tiveram sobre a

por exemplo violência doméstica e infanticídio. Por enquan- população governada.


to, processos criminais ainda são as melhores fontes de infor- Outra questão importante: como generalizar essas ques-
mações disponíveis como deixa claro a pesquisa de Vellasco tões para ° mosaico de culturas e práticas que chamamos de
e Andrade, bem como a minha própria pesquisa151, que será Brasil? Quais seriam então os principais obstáculos para a uti-
analisada oportunamente. Entretanto, esse corpus documen- lização da história eliasiana da violência no Brasil? Para com-
ta! não é o único possível. Em uma história da violência que parar um estado ou província com outros, devemos considerar
incorpora os principais insights de Elias, as principais coisas mudanças no controle estatal da violência, nos modelos resi-
a se estudar seriam as mudanças de longa duração na vigi- denciais e de deslocamento de força de trabalho, natureza das
lância do Estado e também as transformações das emoções ocupações, sua sociabilidade e recreação, a retórica da honra,
e sensibilidades populares; a interdependência social criada, e a tolerância da sociedade com a violência. Como fazer uma
as sociabílídades e a transmissão de cima para baixo das re- história comparada em um país de dimensões continentais?
gras de conduta. Para tal, os historiadores deveriam analisar, Para além de tudo que dissemos até agora, seria funda-
de forma complementar às informações contidas nas fontes mental analisar as principais mudanças de relações entre elites
judiciais, sobretudo os processos criminais, os manuais de e não-elites. Grupos subalternos no Brasil variam em termos
boa conduta; o material de disciplinarização nas escolas; os de etnicidade, género, idade, origem regional, ocupação ur-
conselhos que pais e mães dão a seus filhos; as regras de ação bana-rural e outros fatores. Se estivermos preocupados com a
ensinadas nas academias de policia; códigos de posturas refe- violência que os grupos dominantes impõem aos subalternos,
rentes as relações sociais na cidade, as táticas utilizadas pelas devemos estar atentos a existência de varias subalternidades,
mulheres para diminuir a violência doméstica, etc152. com distintas sensibilidades e ressentimentos. E não podemos
Desta forma, é extremamente legitimo pensar em ter- nos esquecer que os tipos de coerções disponíveis para a elite
mo eliasianos as tendências de longo prazo nas sensibilidades impor aos subalternos (mulheres, crianças, imigrantes, traba-
lhadores, minorias raciais, etc.) muda de acordo com o tempo e
BURG, Pieter. Murder and Violence in Modern Latin America. OXFORD: Wiley- o espaço. Não se pode falar de violência e homicídio no Brasil
-Blackwell, 2013; e é nelas que nos baseamos aqui. sem analisarmos o papel que a escravidão teve nesse país153.
151.CARNEIRO, Deivy Ferreira. Conflitos verbais em uma cidade em transformação:
justiça, cotidiano e os usos sociais da linguagem em Juiz de Fora (1854-1941). Tese Em suma, é fundamental que pensemos o papel que
de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, PPGHIS, 2008.
152.SALVATORE, Ricardo D. Conclusion: Violence and the "Civilising Process" in Mo-
dern Latin America... op. cit. 153.Idem., p. 264-269.
12* 129

a centralização do Estado Brasileiro teve (ou não, peio ^SQ grande, mas busquei reduzir a escala de observação no
nos parece) na monopolização estatal da violência. A construi de perceber como a população de um importante mu-
cão de estados centralizados e a gradual monopolização H.' rácipio de Minas Gerais se utilizava do aparato jurídico para
violência pelos monarcas absolutistas são momentos crucia»' sua honra pública e se vingar de seus inimigos. Ou
para o entendimento de Elias sobre a sociogênese envol através de uma perspectiva de análise micro, examinei,
no processo civilizador. No Brasil este processo deve ser verti ijgptre outras coisas, o impacto que uma interação mais pró-
ficado no longo século XIX. E bom lembrarmos que apesar de ^«ma e mais eficaz da justiça em relação à população trouxe
uma tentativa de centralização ocorrida no Segundo Reinado «n termos de controle da violência verbal.
até o século XX os "coronéis" continuam dominando o poder • ;, Em um trabalho de fôlego, analisei inúmeros jornais e
.£1
local, sobretudo nas cidades mais afastadas do poder central jf •«rca de 300 processos criminais de calunia e injúria ocorridos
questionando a legitimidade do Estado e a monopolização da -na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, entre os anos de 1854
violência por este. Além disso, o século XIX é marcado por ré- s| 'g 1941154. Observei a evolução da legislação criminal brasileira
beliões em várias partes do território nacional ainda em *,mais especificamente, a evolução das leis referentes aos cri-
de centralização administrativa e burocrática. A questão é: o"*| jjies de calúnia e injúria. Reconstituí o perfil do tribunal local
Estado conseguiu o monopólio da violência (lembrando 'c de seus profissionais e verifiquei como se deu a tentativa de
este nunca é absoluto!) em relação às elites locais? Transfor-H '"Imposição da ordem por parte da justiça e o uso pragmático
mando os potentados locais em políticos o Estado conseguiu "l --í ida mesma pela população. Além disso, analisei os resultados
o monopólio da violência? Isso repercute de alguma forma na j; dos processos e sua possível relação com as doutrinas do di-
violência entre as classes baixas? A todas essas questões, as -j reito penal. Por último, fiz algumas considerações a respeito
respostas muito provavelmente serão negativas, mas carece- •dos motivos que levaram ao aumento do número de proces-
mos ainda de pesquisas que possam nos mostrar como se deu 'j sos no final do XIX e seu declínio no século XX, bem como
esse longo processo. percebi a inviabilidade de tratarmos o sistema judiciário do
ponto de vista puramente estruturalista, institucional ou
Insights eliasianos para a História da Violência no Brasil: as :4, como apenas um órgão de dominação de classe. E sobre este
ofensas verbais em um município da Zona da Mata mineira | último ponto que tratarei agora.
A partir da década de 1980, alguns pesquisadores bra-
Nesta parte do texto eu gostaria de trazer alguma con- ,j sileiros repensaram o papel da justiça nas relações sociais e
tribuição para o debate proposto. Parto de uma perspectiva na intermediação dos conflitos entre iguais. Se antes ela era
um pouco diferente daquela presente na pesquisa de Veilasco ,'; vista como um instrumento de dominação da elite no intuito
e Andrade, mas acredito que ela possa funcionar de forma j
i 154.CARNEIRO, Deivy Ferreira. Conflitos verbais em uma cidade em transformação:
complementar àquilo realizado pelos dois pesquisadores. ; justiça, cotidiano e os usos sociais da linguagem em Juiz de Fora (1854-1941)... op.
Não realizei uma análise pautada numa quantidade de dados | cit.
de impor ordem e disciplina para 35 classes subalternas, es T possuído:? pela eiice,
"^i
autores, com forte base documental advinda do aparato JUH- intervir no d o m í n i o estatal, t u n d o acesso então a única
ciário, mostraram que a justiça funcionou como um noder público que lhes era acessível -'.
público de mediação de conflitos que surgiam entre krn Juiz de Fora, principalmente entre as décadas de
que partilhavam um acordo sobre as normas sociais, de 1890, também observamos o funcionamento dessa
palmente para os homens pobres155. Emerge assim a imagem ^faceta da justiça. E nesse sentido que se observa nos processos
de uma atividade da justiça cotidianamente voltada para n -•Analisados a presença de negociantes, lavradores, trabalhado-
encaminhamento de pequenas contendas entre vizinhos, d» —s manuais, costureiras e lavadeiras não apenas comoobjetos
rixas que na maioria das vezes revelam a natureza da condi- da ação de controle social e imposição da ordem, mas como
ção daqueles que a reclamam. A justiça passa então a revestii- demandantes da lei e da ordem, com o intuito de obterem
-se de funções fortemente reguladoras nas interaçòes sociais direitos e garantias legais. Em suma, as camadas subalter-
apresentando um poder de contenção dos conflitos ínterpes- nas da localidade procuravam a justiça para solucionar seus
soais de diferentes estratos sociais em busca de solução para -{onflitos verbais, demandando assim, um espaço de ordem e
suas disputas156. • previsibilidade para viver e trabalhar. Havia assim uma con-
Desta maneira, mesmo a justiça assumindo uma fun-' fluência de interesses tanto da justiça quanto dos atores para
cão diretamente relacionada com as formas de dominação, ã construção da ordem. Isso teria assegurado as bases de legi-
de manutenção da ordem e do controle social, estas não se timação da lei e o acatamento dos preceitos reguladores das
assentaram exclusivamente nos recursos à violência e às for- relações sociais, na medida em que a atuação dos juizes, pro-
ças de repressão. O aparato judiciário parece ter efetivamente motores e advogados construíram as possibilidades de sua
construído um canal através do qual o Estado não só regulava implementação e avalizavam as expectativas sociais quanto
as disputas e os conflitos entre os grupos sociais (pelo menos à ordem legal,
até o advento da República Velha), bem como absorvia e res- Nos casos encontrados nos processos criminais de injú-
pondia às demandas dos grupos dominados, destituídos de rias e calúnias, levando o outro à justiça, a vítima demonstra-
va publicamente sua disposição de refrear o comportamento
153. L ARA, Silvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na capital do Rio de
do ofensor, respondendo às ofensas com um ato que os pro-
Janeiro (1750-1808). São Paulo: Paz e Terra, 1988; CASTRO, Hebe Maria de Mattos. jetava além e acima do rival perante os demais, e em restabe-
As cores do silêncio... op, cit.; ZENHA, Celeste. As Praticas da Justiça no CotidU-
no da Pobreza,., op. cit.; VELLASCO, Ivan de Andrade- As Seduções da Ordem . lecer a ordem quebrada e a honra atacada. O simples fato de
op. cit.
ser citado pela justiça em algum delito, como vimos anterior-
156. VELLASCO, Ivan de Andrade. As Seduções da Ordem .. op cit., p. 18-9. Resumida-
mente, o embate em torno da melhor forma de adequar as mudanças institucionais mente, já implicaria transtornos e custos, inclusive materiais,
atravessa os anos que se seguem à lei de 1827, quando se cria o juiz de paz. com
amplos poderes judiciais e policiais, que de urna forma ou de outra leva a ]usjica aos
capazes de dissuadir e refrear as ações futuras daqueles que
populares, passando pelo Código Criminal de 1830 e pelo Código Penal de 1832,
que completam as reformas liberais, seguindo até a reação conservadora, com «
a tos adicionais de 1840 e a reforma de 1841. 157 kiem., p. 22-5.
se viam e v i v i a m sob a esfera de açao e alcance dos - oc^A 2 - Tempo daí penas aplicadas nos crimes de calúnia e
Mesmo se levarmos em consideração que recorrer à justi
£•<_ -—
implicava custos e despesas, é certo que estes eram colocar! [ímpo d*- I^nas N úmero di 1 L' .is o s "o

para os réus, e, em caso de condenação, essas despesas seriam' ^í um mês ds prisão 5S 32 '^ '

ampliadas para o total dos custos do processo. p* hfc 3 -«is meses 93 ^ S-

p,, Arneses a um ano 25 14 2 :.


Assim, o poder judiciário mostrou-se acessível exata-
'•" fnnte >i.":W-r- Fundo Benjamim Colucci, Processos criminais de Calúnia f? Injúria, séries
mente aos que necessitavam de proteção e mediação do Es- "^^9,1.854-1941.
tado, visto que os envolvidos nos processos se enquadravam
nas categorias de trabalhadores braçais, pequenos e médios Percebe-se que entre os casos julgados, a grande maio-
comerciantes, lavadeiras, entre outros. Sua função ia, portan- pa se resolveu num período de até três meses, o que pode ser
to, além de uma mera engrenagem a serviço dos poderosos. • considerado urn tempo muito satisfatório, podendo assim ter
Mesmo porque, para assim atuar, necessitava constituir-se ...funcionado como aspecto sedutor da justiça e criador de um
como arena legítima cujos procedimentos pudessem ser to- - .fcjffifus 158 entre a população local. O conceito de habitus nos
mados como razoavelmente neutros e universais. Além dis- -'permite fazer a ligação entre a individualidade e a sociedade,
so, era necessário que se tornasse cada vez mais presente no -.descrevendo a maneira como são individualmente incorpora-
i
cotidiano daqueles sobre os quais teria de impor suas regras das as modalidades de percepção e de ação coletivamente de-
e procedimentos, transformando-se em mediadora preferen- '"senvolvidas no sistema de interações. Por meio dele compre-
cial das soluções privadas. Tal fato se torna visível na rapidez ' endemos que as escolhas dos atores sociais, suas emoções e as
com que os juizes julgavam os casos de ofensas verbais, bem .' disposições vividas no nível individual são devidas também
como no tempo em que os réus condenados passavam na ca- a processos coletivos de incorporação amplamente incons-
deia, como atestam as tabelas abaixo: ' cientes. O habitus concretizaria as relações praticadas entre
vários níveis de experiência. O uso deste conceito nos possi-
TABELA l - Tempo entre a denúncia e o julgamento bilita ver o ator sócia! como um sujeito que persegue objetivos
Período Quantidade de casos D e as regras e os limites impostos às suas próprias capacidades
Até um mês 81 27,6 de escolha estão essencialmente inscritos nas relações sociais
De um a três meses 70 23,8
De três a seis meses 20
que ele mantém159.
6,8
De seis meses a um ano 5 1,7
Assim, como a relação da população local com a justiça,
Não houve julgamento* 118 40,1
Total 294 100%
Fonte: Arquivo Hiátórico da Cidade de Juiz de Fora. Processos de Calúnia e Injúria, séries 15H. Esse conceito aparece desenvolvido em ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indi-
20 e 29, 1854/1941. * Nesses casos a ausência de julga mento ocorre porque o processo foi víduos... op. cit., p. 150-3, e é aplicado sistematicamente em ELIAS, Norbert. Os
arquivado, por falta de andamento por parte do autor, ou porcjue o autor, em alguma Alemães. A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de
parte do processo, decide perdoar o réu e desiste da acusação. Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
15°.ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos... op. dt., p. 150-3.
J 34

nos casos de c a l ú n i a e injúria, era extremamente pragmática varn com os mecanismo? da disciplina e da ordem c não se
funcionamento satisfatório da mesma, pautada na sua rapidp. nforniavam a eia. Como o crime contra a honra era e ainda
de julgamento e no alto número de condenações resultou na i considerado privado, os envolvidos não eram obrigados ou
formação de um habitus entre a população local. Esse habitus gidos pela justiça de forma direta; eles negociavam com
consistiu na regulamentação da escolha de se procurar a me." " Ia AS práticas então se constituem na maneira pelas quais os
tiça por parte da população local quando um indivíduo fosse usuários se apropriam dos espaços organizados pelo Estado.
ofendido verbalmente em certas situações e de certas formas Essas práticas (engenhosidade dos fracos para tirar partido
Por outro lado, como mostra a Tabela 3, a baixa con- dos fortes163) desembocam na politização do cotidiano, como
denação a partir da década de 1890, levou as vítimas a dei- hustarnos demonstrar até aqui. Desta maneira, em relação
xar de procurar à justiça160 devido ao retorno social que não aos casos analisados temos o seguinte quadro:
era mais alcançado, gerando uma modificação no habitus an-
terior, ou melhor, gerando a criação de um novo. Portanto TABELA 3 - Resultado dos processos por década
quando uma interação social deixa de ser bem-sucedida, ou Resultado dos Processos de Caiúnia/In una
Década Total
seja, quando uma das partes ou ambas deixam de maximizar Anulado
Condenado Absolvido Arquivado Desistência
seus ganhos, os valores compartilhados serão modificados e
2 0 2 2 2 8
corrigidos na direção de uma maior consistência e integração USO
25% 0% 25% 25% 25% 100%
e outro padrão de escolha e comportamento será gerado su- 21 9 7 10 4 51
1860 7,8% 100%
41,2% 17,6% 13,7% 19,6%
cessivamente. Esses novos valores então serão institucionali- 31 23 5 11 3 75
1870 6,6% 100%
zados quando forem usados reciprocamente em transações, 41,4% 30,7% 6,6% 14,7%
13 9 20 6 o 53
ou seja, quando eles passarem a reger as escolhas161. 1880
24,5% 17% 37,7% 11,3% 9,4% 100%
Sendo assim, esta foi a forma de "consumo" da justiça 1890
1 10 19 9 3 42
2,4% 23,8% 45,2% 21,4% 7,1% 100%
encontrada pelos subalternos de Juiz de Fora, de acordo com 3 6 1 12
1 1
1900
a teoria de Michel De Certeau162, no que diz respeito a utili- 8,3% 8,3% 25% 50% 8,4% 100%
5 5 6 3 1 20
zação da justiça em certos crimes privados: os populares jo- 1910 100%
25% 25% 30% 15%
1 3 8 6 2 20
1920
5% 15% 40% 30% 10% 100%
160.Lembremos que, de acordo com Max VVeber, para que a ordem seja consentida é ne- 0 3 3 3 2 11
cessário que ela seja considerada legítima, seja por entrega sentimental, pela crença 1930
0% 27,2% 27,270 27,2% 18,1% 100%
em sua vigência absoluta, por motivos religiosos ou por interesses. WEBER, Max.
0 0 1 1 0 2
Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasiba: Ed. 1940
UNB, vol. l, 4a ed. 2000, p. 20-1. 0% 0% 50% 50% 0% 100%
161.BARTH, Fredrik. "Models of social organization E: Processes of integration in cul-
ture." In: Process and form in social life. London: Routledgc Kegan & Pau:, 1931, p.
51-2.
162.CERTEAU, Michel de. A Invenção do Coddiano: as artes de fazer. Vol. l: 8? edição. 163 A este respeito ver: SCOTT, James C. Weapons of the Weak: everyday forms of
Petrópolis: Ed. Vozes, 1994. peasant resistance. New Haven: Yale University Press, 1985.
e
r~~~~"*\]
Resultado ri jb FrocojEcs de Caíórir./Injúnr i edíação dos conflitos, contudo de maneira a obter algum
6 J
Condonado Absolvido Arquivada Desistência Anulado J o com essa situação. Enquanto a população esteve sa-
75 63 74 57 25
ísfeita com os resultados de suas relações com a justiça, en-
Tola! 2Q-1
100% 100% 100% 100% 1 00% 100%
•-Quanto maximizavam seus ganhos, a interação permaneceu.
-.
:.-:'r Neste sentido, o grande meio sedutor da justiça estava
Percebe-se através dos dados da tabela acima que0 -"«n assegurar certos e possíveis benefícios sobretudo para ca-
-síFr .
número de condenações foi relevante durante as décadas ímada mais carente da população. A justiça assim representava
de 1860, 1870 e 1880. Tais números podem ser considerados «campo possível de luta pela efetivação de direitos e isso ocor-
ainda maiores se levarmos ern conta os processos arquivados ria em função da capacidade do aparato judiciário tornar-se
ou aqueles em que houve desistências por parte dos autores. -acessível às camadas subalternas, o que por sua vez represen-
Sendo alto o número de difamadores condenados, aumenta- " tou uma pressão no sentido de fazê-lo operar em níveis razo-
va a legitimidade da justiça perante aqueles que a acionavarn, .'~àveís de atendimento à lógica jurídica. A atuação da justiça
gerando uma maior procura por ela em situações semelhan- "-levelou-se em vários momentos capaz de garantir um qua-
tes, criando entre a população subalterna um habitus próprio £dio estável de referências e previsibilidades nos quais muitos
através da adoção e institucionalização de novos valores em !ííe pautaram, gerando a maximização de ganhos - e urn certo
°f&
relação à justiça responsável pela aplicação da legislação refe- tíçquilíbrio de poderes, nos dizeres de Norbert Elias165 - espera-
rente às ofensas verbais. Ijja pelos subalternos em sua interação com ela. Cumpriu, entre
Na verdade, as pessoas envolvidas nos processos não í;as décadas de 1850 e início da década de 1890, a sua função
estavam se comportando como alienados ou como simples "/.pedagógica de convencer os homens de que as regras podem
cordeirinhos nas mãos da justiça e do Estado. As pessoas que ^jjer vantajosas e o arbitramento desejável166. Contudo, quando
acionavam a justiça por meio de processos criminais de calu- Vdeixou de condenar significativamente, a partir da década de
nia e injúria, na verdade subvertiam aquilo que lhes era im- ^1890, perdeu a legitimidade de mediar os conflitos, mudando a
posto, não rejeitando diretamente aquilo que era dado, mas .^configuração do habitus, fato este demonstrado na diminuição
utilizavam-se do aparato jurídico para fins e em função de ^da abertura de processos a partir de então,
referências estranhas a urn sistema do qual não podiam fu- v Além da diminuição das condenações, outro argumen-
gir164. Em outras palavras, a justiça foi utilizada claramente de ;jto que pode explicar o declínio das ofensas verbais mediadas
forma pragmática pela população subalterna de Juiz de Fora ípela justiça no período em que ocorreu é a preocupação da
enquanto ela respondia à suas expectativas. Agiam de acordo :\;ínesma, e até mesmo da população como um todo, com for-
com os interesses da justiça na medida em que a trazia para clnas de violências mais ameaçadoras do ponto de vista físico.

164.CKRTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. 17' edição. Perrópo- .:||p3I65-EUAS' Norbert. Introdução à Sociologia. Lisboa: edições 70, 2005, p. 90 e seguintes.
lis: Editora Vozes, 2014, p. 39. ., p. 305-
138

Assim, de forma paralela ao declínio da procura j c e impossível aplicar mecanicamente o modelo eliasiano
mediação judiciária nos casos de calúnia e injúria, observad- ara compreendermos a evolução histórica da violência no
um aumento da percepção de que o que deve ser punido é Brasil- ConstÍtuÍ-se assim uma lacuna na nossa historiografia
violência física e também a ameaça contra a propriedade priva, *análi se macro da violência ao longo dos últimos séculos. As
da. Seria resultado daquilo que o sociólogo Norbert Elias Chá- análises dos homicídios brasileiros são historicamente limita-
mou de "Processo Civilizador"? Para responder tal pergunta das sendo poucos os dados confiáveis anteriores a 1960. Não
não possuímos dados empíricos suficientes. O que sabemos é "oossuímos também, além dos trabalhos clássicos de Raymun-
que com a baixa condenação contra ofensas verbais a partir da AQ Faoro, Vítor Nunes Leal e as grandes sínteses produzidas
década de 1890, a justiça perdeu legitimidade. Somado a isto na primeira metade do século XX, obras de fôlego que ana-
com o passar do tempo o poder das palavras em manter a re- lisem o processo de monopolização da violência relativa à
putação das pessoas diminuiu devido a uma maior difusão dos construção do nosso Estado Nacional e nos fornecesse assim
relacionamentos comunitários. Anteriormente chamar uma um panorama minimamente confiável deste processo. Nesse
mulher de "puta" poderia diminuir suas chances de se casar . sentido, são fundamentais estudos que observem a estrutura
da mesma forma que chamar um homem de "ladrão" poderia 'dos homicídios nas cidades brasileiras ao longo das décadas e
diminuir suas chances de negociar e conseguir rendimentos (as r séculos para percebermos de que forma a construção do Esta-
próprias testemunhas vão mostrando que a reputação deixa de ndo nacional e suas instituições se relacionaram com o fenóme-
ser abalada com o uso desses termos com o passar do tempo, no do homicídio e da violência em geral, tanto em nível local
pois a honra teria fundamento também em outras questões). quanto em nível nacional. A pesquisa de Vellasco e Andrade
Com a fragmentação das comunidades no final do é apenas um oásis no desértico terreno das análises rnassivas
século XIX, esse peso decai e os insultos deixam de colocar e quantitativas acerca da violência no nosso país. E somente
barreiras nas relações sociais. Assim, o número de processos quando mais resultados forem apresentados e mais pesquisas
diminui devido à perda de poder da comunidade e da legi- nessa perspectiva forem realizadas por historiadores brasilei-
timidade da justiça enquanto órgão mediador. Contudo, a ros é que poderemos realmente testar efetivamente o modelo
abertura de processos não acaba totalmente, pois o tribunal eliasiano no cenário brasileiro.
continuou sendo, mesmo em menor escala, uma arena procu- Por fim, é necessário dizer que também são fundamen-
rada para causar problemas materiais e jurídicos aos ofenso- tais pesquisas que articulem os níveis macro e micro para ob-
res da honra alheia. servarmos de fato, como se dava a relação cotidiana entre a
população e a justiça criminal e verificarmos como as mudan-
Conclusões? ças no padrão da violência no Brasil se davam nas relações
1
interpessoais. Por este procedimento, uma revisão de certas
O objetivo deste texto foi, antes de tudo, uma provoca- afirmações e generalizações acerca do Estado Moderno tor-
ção. Dadas as condições de pesquisa e os resultados já obri- naram-se possíveis e fundamentais. O conceito de contexto
e in Kent 1560-19S5. Past & Present, N'o. 130 (Feb.,
adquire então uma centralidade importante, ainda que ^3»'
1991) pp. 70-106.
seja visto da mesma forma que a história social de recorte ma-
cro o trata. Na pesquisa micro-histórica o contexto é sempre rRETTIEZ, Xavier. As formas da violência. Edições Loyola:
multifacetado e o lugar de um jogo relacionai onde a ação dos gão Paulo, 2011.
sujeitos históricos efetivos é capaz de definir soluções e prf>
por encaminhamentos que apriorinão estariam dados. Neste F[Í<\S, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de
janeiro: Zahar, 1994.
sentido a narrativa histórica produzida nesta perspectiva não
seria apenas o relato do acontecido, mas também o relato das ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: a formação do
alternativas possíveis postas num jogo a ser decidido pelos estado e civilização. Vol. 2. São Paulo: Zahar, 1994.
atores históricos em questão. Sua retórica permaneceria as-
sim solidária às representações que imprimem sua marca nos FLETCHER, Jonathan. Violence and Civilization: an
objetos submetidos à análise. A retórica prioriza o processo á íiitroduction to the work of Norbert Elias. London: Polity
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cie âe Mossoró e O Mossoroense170. O primeiro não perdurou
ZENHA, Celeste. As Práticas da Justiça no Cotidiano da por muito tempo, sendo impresso por cinco anos, de 1902 a
Pobreza: um estudo sobre a pobreza, o trabalho e a riqueza Sr. 1907. Publicava notícias voltadas ao interesse dos comercian-
a través dos processos penais. Dissertação de Mestrado:
", tes da cidade, em sua maioria componentes da elite letrada. Já
Niterói. UFF, 1984.
O Mossoroense, periódico mais antigo do Rio Grande do Nor-
te, foi impresso pela primeira vez no ano de 1872, porém en-
cerrou sua produção em 1875 e só retomou em 1902. Ambos
. eram jornais destinados à elite letrada da cidade, que detinha
o poder do comércio local.
No intuito de compreender os crimes que ocorreram
• na cidade de Mossoró, nesse período, como também de anali-
sar a forma como estes dois jornais os noticiavam, este artigo
abarca os anos de 1902 a 1930, momento em que a cidade pas-
sava por intenso crescimento, chegando a quase 10 mil habi-

168.Professor Dr. Adjunto IV- UERN.


•r, 169. Aluno do curso de História-UERN, bolsista do PIBIC/UERN, coordenado pelo pruf.
i' Dr. Francisco Linhares Ponteies Neto.
. 170 O jornal, que passou por algumas fases, hoje está disponível somente na versão
digital.
tantes. Um dos grandes fatores deste aumento populacional Mós informes ''tecia-se comentários sobre a suposta
foi a seca, que provocou a migração, de muitas pessoas do 'onda cie criminalidade' [...], de forma a apelar para as emoções
carnpo para a cidade, fugindo da fome que assolava a região Ho público"'7-'. Assim como ocorreu no Rio de Janeiro, local de
interessado no progresso, O jornal O Mossoroense fez pesquisa de Ana Ottoni, a atenção do público mossoroense se
muita questão de divulgar aquilo que representava esse vo jtava cada vez mais para estas ditas "ondas de crime" que

avanço. Segundo Paula Rejane Fernandes: ocorriam pela cidade com um bom ritmo de desenvolvimento
cara os mcldes da época. Ana Ottoni traz, em sua tese de dou-
Ao escrever sobre a cidade, o jornai criava uma iden-
toramento, uma visão sobre como os jornais do inicio do século
tidade para a mesma, definindo-a e estabelecendo
um convite para que os outros a vissem, a visitas- XX falavam sobre a criminalidade; como as notícias eram esco-
sem, a conhecessem e a reconhecessem. Sendo as- lhidas, entre inúmeros fatores, para serem publicadas.
sim, o jornal era uma forma de divulgar a cidade, de
delimitá-la e delineá-la para os seus, principalmente
Diante da criminalidade, que segundo os impressos
para os que compartilhavam das mesmas ideias de parecia amentar de forma descontrolada, a população citadi-
uso e consumo do espaço; e para os outros, fossem na ficava face a face com o medo, que se alastrava aos poucos
eles forasteiros advindos de outras plagas, sejam os
outros internos, isto é, habitantes da cidade conside- e afligia as pessoas que ali viviam. Por meio das notícias, a
rados como destoantes da norma.1"1 população era informada sobre os crimes ocorridos na cida-
de, sendo levada a pensar que qualquer um poderia ser a pró-
Se por urn lado o periódico noticiava o "progresso", ele xima vítima. Segundo Doriam Borges:
também registrava as transgressões, conforme se pode obser- O medo do crime tem sido vivenciado por muitos
var na nota impressa transcrita abaixo, a qual relata as ocor- grupos sociais em diferentes contextos. Diferentes
rências policiais do último mês do ano de 1902, sete no total. estímulos têm influenciado populações a mudarem
suas rotinas ou viverem aterrorizadas. Um desses
Em sua maioria, eram pequenas transgressões que ofendiam estímulos é a crença de que se é um alvo atrativo
a "moral" e os "bons costumes". para uma ocorrência criminal17*.

Pelo Delegado José Gomes Franco foram erfecruadas


A partir de 1904, tem-se uma perspectiva maior do que
neste mez as seguintes prisões: Dia 12 - Vicencia Fi-
deliz, por imbriaguez e offensa a moral publica; Dia acontecia na cidade naquela época, pois trata-se do ano em
13 - Thornaz Acta por insolência; Dia 19 - Margarida que foi inaugurado O Comércio àe Mossoró, um jornal voltado
de Tal e Felesmina Pereira, ambas por insolências;
Dia 25 - Salustiano Pedreiro, por embriaguez; Dia
aos interesses do bem-estar da sociedade mossoroense.
29-José Avelino, por insolências praticadas no Upa-
nerna, deste districto.37* 173.0TTONI, Ana Vasconcelos. "O paraíso dos ladrões": Crime e criminosos nas repor-
tagens policiais da imprensa (Rio de Janeiro, 1900-1920). 2012. 326 f. Tese (Douto-
rado em História Social) - Programa de pós-graduação em História, Universidade
171.REJANE FERNANDES, Paula. Mossoró: uma cidade impressa nas páginas de Federal Fluminense, Niterói. 2012.
O Mossoroense (1872-1930). Dissertação (Mestrado em História) - Programa de 174.BORGES, Doriam. O medo do crime na cidade do Rio de janeiro. Curitiba: Appris,
pós-graduação em História, Campina Grande: Universidade Federal de Campina 2011.
Grande, 2009.
172.0 Mossoroense, 31 cie dezembro de 1902, p. 4.
148

c Lie socbrn es Snrí. Vicente Morta & C. e Francisco


António M. de M i r a n d a e dali roubando na noite de
era de notar a falta de um órgão de publicidade de- 11 para 12 do corrente 56 volumes de farinha, mi-
dicado aos interesses do commercio, da industria p lho, arroz e café, únicos que restavam das vendas
da lavoura. daquelle dia.
Esta lacuna é hoje prehenchida pelo O Comnieron Cumpre as auctoridades empregar a sua actividade
de Mossoró, que vai satisfazer uma necessidade pof e vigilância afim de que não nos falte, em uma Cida-
todas sentida, realisando uma idéa que trabalhava to- de policiada as necessárias garantidas e segurança
dos os espíritos sãos do nosso meio social. ao direito de propriedade.176
Tem agora í.s classes conservadoras um órgão seu no
jornalismo do Estado, exclusivamente dedicado aos Diante do flagelo provocado pela seca, que chicoteava
altos interesses do commercio e das industrias.
Sob este largo descortino abordaremos tudo que diga
os norte-rio-grandenses de forma impiedosa, várias notícias
respeito aos interesses do bem estar social, empe- relatam a migração de pessoas de suas cidades para Mossoró
nhamos pelos melhoramentos da nossa Pátria, acom- em busca de melhores condições de vida. A invasão dessas pes-
panharemos as ideias adiantadas, sem descairmos
nunca para o estreito terreno das facções ou do apar- soas na cidade provocou um aumento nos índices de crimes,
tidarismo, que tem seus órgãos próprios de combate sendo registrados nos jornais alguns "saques" aos armazéns,
de já montamos em outros prelos do Estado.1'"3
como também "depredações a carros de legumes que vinham
Com a produção de impressos e sua circulação em vá- do porto". A fome virou, então, o codinome de Mossoró.
rios espaços na cidade, houve a ampliação dos registros que Com os crescentes problemas na cidade era somente
ajudam a construir um panorama maior da vida citadina. uma questão de tempo para a circulação de dinheiro falso e o
Com o auxílio dessas fontes, é possível entender a "lógica edi- roubo se alastrarem, o que, de fato, ocorreu a partir de 1905,
torial": apresentar a necessidade de controle constante sobre conforme registra O Comércio de Mossoró.
as pessoas que poderiam apresentar perigo para a manuten- Tem apparecido pelo sertão notas falsas da nova
ção da ordem. emissão, dos valores de 5$000, 10$, 50$000.
Atestam os jornais que, no início do século, a cidade foi Distinguem-se facilmente as notas falsas das verda-
deiras pelo seguinte modo: olhando-as através da
assolada por uma terrível seca. Tanto O Mossoroense quanto O luz não apresentam o algarismo branco do seu valor
Comércio de Mossoró noticiavam pessoas que "caiam mortas" que as verdadeiras têm, isto nas notas de 5$000 e 10$.
As de 50$000, falsas, conhecem-s e pelo grosseiro das
nas calçadas em decorrência da fome causada pela escassez.
tintas, pois são mal acabadas ao passo que as verda-
Decerto, a cidade não estava em seu melhor momento. deiras são bem feitas.17"

Pela primeira vez, nesta terra, mesmo na crise actual,


De forma rápida, informes que alertavam a população
o povo infringiu os seus hábitos de reconhecida fiel-
dade e praticou uma acção reprovada e criminosa, para tomar cuidado com os criminosos que passavam dinhei-
arrombando urna porta do armazém de cereais em ro falso ocuparam diversas páginas de algumas edições d'O

175.0 Comércio de Mossoró, 17 de janeiro de 1904, p. 1. 176,/bid., 14 de fevereiro de 1904, p. 3.


177.0 Comércio de Mossoró, 29 de janeiro de 1905, p. 3.
Comerão de Mossoró. O problema foi recorrente nas décadas je que o passado de Mossoró, marcado pela ordem, simpli-
de 1910 e 1920, seguido por outros que começaram a se alas- cidade e tranquilidade, havia sido corrompido pela moderni-
trar por Mossoró. Com efeito, a urbe estava ern ascensão, mas dade e seus males. A pequena cidade, ordeira, estava sendo
esse crescimento foi acompanhado por problemas que neces- sacudida pelos novos tempos, eram necessários esforços para
sitavam de controle, com destaque para os crimes de roubo combater a ameaça da delinquência que parecia se alastrar
que começaram a tomar conta da região. Sobre essa questão pelo espaço citadino.
assim registra O Comércio áe Mossoró: Os jornais da cidade demonstravam preocupação com
a vadiagem e com seus males. Por conseguinte, notícias desse
Vez por outra os amigos do alheio estão saqueando
os negociantes retalhistas nesta Cidade. Não há mui-
porte eram estampadas na primeira ou segunda página, com
to o sr. Francisco Duarte estabelecido com a venda a o título da matéria em letras garrafais para chamar a atenção
retalho na rua do Rio, foi victima dessa Brincadeira do leitor.
O Sr. Honorato Sant'Anna, um homem pobre, com
pesada família, teve a sua venda roubada por al^urn Como grande parte da população de Mossoró não era
perverso desconhecido. letrada, tudo que o jornal publicava chamava primeiramente
Ultimamente os Srs. Faschoai & Borges, uns mocos a atenção da classe privilegiada, em sua maioria letrados e
que agora escarreiravam a sua vida commercial.
Foram roubados em Rs...949$000, dinheiro que na com posses. Ciente do púbiico que atingia, por um bom tem-
véspera deveriam ter remettido para Pernambuco, po O Mossoroense publicou notícias de crimes relacionados à
e tem encontrado saque sobre aquella Praça, como
política, prática comum a época e que se desdobrava em pis-
procuraram.
Cumpre que a policia esteja attenta para que não se tolagem. Na segunda fase do jornal, iniciada em 1902, esse
desenvolva nesta Cidade, a perigosa indústria do costume arrefeceu, mas ainda era recorrente.
roubo, até ha pouco desconhecida nesta honrada
No recorte temporal pesquisado, ocorreram vários cri-
terra.'73
mes em Mossoró, os quais, em sua maioria, feriam o código
O jornal deixa bem claro que este tipo de crime come- de postura da cidade. Havia, entre essas transgressões, os cri-
çava a ganhar adeptos na cidade, produzindo uma perigosa mes de sangue, como o que fora registrado em O Mossoroense,
"indústria do roubo". As principais vítimas eram os comer- no ano de 1903, com o título "Facadas". Segue um trecho da
ciantes, e, como o jornal tinha como objetivo fomentar o co- notícia:
No "sereno" de um baile, lá para as pontas da rua,
mércio e indústria da cidade, tudo que provocava prejuízo a na noite de 7 do corrente, Eusebio de tal, sapateiro,
estas organizações assanhava a indignação dos editores, que furou um filho de Simão de João José, com uma faca,
cobravam da polícia o reestabelecimento da ordem. que entrou em duas partes do corpo do offendido,
que se acha enfermo.
A vida pacata, pautada em sua rotineira monotonia O offensor acha-se preso: e esta licção deve apro-
não existia mais. As notícias dos jornais produziam a ideia veitar aos pães de família que gostam de dormir em
casa, em quanto os filhos brincam pelas ruas.179

178.1bid., 5 de maio de 1905, p. 3.


179.0 Mossoroense, 12 de junho de 1903, p. 3.
Essa nota mostra como a área urbana da cidade crime foi apresentado como "Perversidade". Segundo O
ficando mais violenta depois da virada do século. Por certo n fossoroense:
jornal O Mossoroeiise quis deixar isso bem claro para a
O indivíduo Manoel Luiz Dantas, vulgarmente co-
cão. Um dado marcante na notícia refere-se ao perigo nhecido péla denominação - Padre - aggrediu, no
vens brincarem na rua durante a noite sozinhos e à responsa, dia 22 do corrente o cidadão João Pinto de Freitas, no
logar Picada deste município, onde ambos residem,
bilidade imposta aos pais, que não deveriam permitir que isto
fazendo-lhe ferimentos na cabeça e peito esquerdo,
acontecesse. O medo era implantado na população, que era e ferindo também a mulher do mesmo paciente com
induzida a proibir os filhos de saírem à noite. Como podemos um golpe na mão, dado com o mesmo facão com que
vibrara os golpes em seu inditoso marido que, por
ver, a matéria além de informar sobre o crime e o local onde
felicidade pode escapar à fúria de seu malfeitor, fu-
aconteceu, apresenta uma perspectiva moral, alertando aos gindo do theatro da agressão.
pais para o cuidado que deveriam ter para com seus filhos. Padre acha-se preso e é de esperar-se que da acção
da justiça de nossa terra emane a verdadeira puni-
Ainda no ano de 1903, fora registrada uma nota rela- ção, para o tal indivíduo cujos rnáos bofes são co-
tando distúrbios e ofensas à moral, a qual resultou em mais nhecidos por gente que relata factos desta ordem,
praticados por tal scelerado: tendo elle uma filha
um crime de sangue. Um indivíduo chamado Euzebio B. de
que chupava o dedo pollegar da rnão direita, esse
Oliveira, no dia 8 de junho deferiu duas punhaladas em An- carinhoso pai cortava-lhe a extremidade desse dedo,
tónio Simão.180 em cruz, espremia-o e salgava-o em seguida, como
castigo por tão innocente habito, da criança.
Seguem as publicações de crimes dessa ordem, sendo E' o terror dos próprios filhos a quem costuma casti-
registrado, em novembro de 1906, um desentendimento en- gar barbaramente.
tre dois salineiros, próximo ao porto de Mossoró. O local era E' merecedor de severa punição um tal indivíduo.I!:

um lugar perigoso quando o sol baixava, haja vista a falta de


iluminação e policiamento. Noticiado outras vezes em notas Em 1919, outra grande tragédia tomou conta das pági-
de crime, no decorrer dos anos, o lugar era considerado al- nas do jornal. Um homem conhecido como Bispo, entrou na
tamente violento. Ali mesmo os dois salineiros do crime em casa de uma jovem de 22 anos e tentou induzi-la a praticar com
destaque entraram em discussão por causa de uma enxada e ele atos sexuais. A jovem se negou e foi esfaqueada no peito
um deles vibrou uma facada no companheiro de trabalho, em pelo indivíduo, que se esvaiu da cena do crime e correu para
seu peito. A vítima foi mandada para um hospital, para tratar sua casa, onde foi capturado pela polícia local183. O crime ficou
do ferimento, enquanto o criminoso fugiu da cena do crime, ; conhecido na cidade como "A tragédia na Rua da Cadeia", pois
saindo a polícia em sua busca.181 r. a jovem morta morava na rua da cadeia pública de Mossoró.
No ano de 1911, com o objetivo de chocar a população, •. Sem dúvida, crimes de sangue eram os que mais cha-

180.O Mossoroense, 01 de julho de 1903, p. 4. 181.1bid., 30 de novembro de 1911, p. 2.


181,/búf., 21 de novembro de 1906, p. 4. m.Ibid., 25 de junho de 1919, p. 2.
cinirnategrapiiiccí permitidos pela censura policial
mavam a atenção dos leitores. Eles poderiam gerar entretp. e orort/adoi aos escola reb da capitai da Suissa.
nimento, partindo da vida real para os jornais ou cinemas Frequentam habitualmente 1750 escolares os cine-
mas para menores O que tem visto esses menores
Todo esse espetáculo macabro era fomentado pela imprensa é o seguinte:
local, que categorizou os crimes em passionais, assassinatos 1914 rixas, 1286 scenas familiares inconvenientes,
1350 espectáculos de embriaguez, 1165 raptos, 1120
não podendo deixar de citar também aqueles que envolviam
dramas impuros, 1224 homicios; 1645 actos de ban-
a honra, iguaria das mais finas, cujos repórteres andavam ditismos, 1179 furtos, 1171 crimes de incêndios, 763
sempre à procura para rechear seus noticiários 184 . suicídios, raramente uma acção boa.
O cinema é ou não uma escola de vicio? Todavia se
Em 1928, o cinema ganhou forças como ponte entre um governo forte e cônscio de suas responsabilida-
a ficção e a modernidade experenciada na cidade. Grandes des moraes ordena uma fiscalização rigorosa e urna
produções receberam destaque e levaram grupos maiores de repressão enérgica dos abusos do film, surge o ber-
reiro dos incumbidos do progresso moderno.
pessoas às salas de projeção para se deslumbrarem com a sé- Qual será a frequência dos cinemas? Segundo uma
tima arte. Entretanto, o jornal O Mossoroense atentava para estatística ainda bastante incompleta existiam em
princípios de 1927, neste abençoado globo terres-
outra questão relacionada ao cine, segundo ele, uma escola
te: 52.000 cinemas registrados auctorizados pelos
do vício. Mas, o que, exatamente, afirmava o jornal? respectivos governos; contavam esses cinemas 24
milhões de cadeiras [...]. Ainda se pode duvidar do
São do Osservatore Romano os seguintes dados es- perigo que corre a moral, a fé, a religão, a sociedade
tatísticos próprios para encher de pavor uiru socie- em vista da enorme frequência da escola do vicio,
dade menos depravada ou embotada do que aquella que é cinema? Autoridades responsáveis que medi-
em que vivemos. das pretendeis tomar?'"
Em 500 programmas cinematographicos encontrou
a commissão fiscaliz adora: 200 scenas de homicídios
e suicídios, cada qual mais refinada em perversida- Como se pode notar, o jornal, que tentava ter influência
des; 120 furtos, com todas as instrucções para abrir sobre a população citadina mossoroense, tentou colocar na
cofres fortes, escrinios, portas, paara chloroformizar
pessoas, comprehendido o systema pratico de não
mente das pessoas que o cinema era um tipo de catalisador
deixar traços de impressões digitaes; 50 irtfidelida- do crime. Segundo o periódico, grande parte dos crimes que
des conjugaes; 40 envenenamentos corn as respecti- estavam ocorrendo pelo mundo afora tinham influência dire-
vas receitas.
Não é isso um grilo da estatística de que o cinema- ta das produções cinematográficas, que induziam as pessoas
tographo degenerou praticamente, numa escola de a cometerem homicídios, roubos, a ingerir bebida alcoólica,
crime, enquanto podia ser um meio educativo efi-
entre outras coisas.
cacíssimo?!
Na revista pedagógica do Pantão de Berne (suissal O ano de 1928, no quai a matéria acima fora publicada,
encontramos a seguinte estatística dos espetáculos foi consideravelmente violento na cidade de Mossoró. Conse-
quentemente, o jornal intensificou o alerta à população sobre
184.FONTELES NETO, F. L. Crimes impressos: Uma história social dos noticiários
criminais em Fortaleza nos anos vinte. 2015. 210 f. Tese (Doutorado em História) -
Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2015. 185.O Mossoroense, 20 de maio de 1928, p. 1.
156

o grande perigo que o cinema trazia. Todavia, nas páginas xjorte, à época, Mossoró estava recebendo diversas pessoas
outras edições do mesmo ano, O Mossoroense parabenizou outras localidades, inclusive estrangeiros, que buscavam,
bicões cinematográficas que estavam ocorrendo na cidade alguma forma, lucrar com o comércio. Isso, é claro, cha-
quais deixaram a população maravilhada. pou muito a atenção de migrantes que fugiam da seca, can-
Como se pode ver, havia duas vertentes relacionadas ao eaceiros e bandoleiros. A cidade estava vulnerável.
D
cinema de um lado era a sétima arte que maravilhava as pés- No ano de 1903, há o primeiro registro de cangaceiros
soas, do outro era repudiado por exibir obras que possuíam nos jornais. A matéria relata que atacaram uma fazenda perto
conteúdo impróprio e que poderiam corromper as pessoas. da cidade, causando um tiroteio. Mais notas sobre o bandi-
Mas, afinal, de qual lado o jornal estava, da elite, qu e tismo só apareceram novamente no ano de 1912, quando um
inaugurava salas de cinema pela cidade, para trazerem entre- famoso cangaceiro chamado António Silvino, atacou o sertão
tenimento para os moradores da cidade, mas acima de tudo do Rio Grande do Norte.
lucrar com isto, ou da moral e dos bons costumes, que esta- Anos depois, em 1925, se tern o primeiro registro do
vam sendo diretamente aíetados por conta da escola do vício? temido cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.
Na verdade, podemos ver uma trama cheia de conflitos Isfacural do Pernambuco, ele andava com seu bando tirando o
que se constituem no cotidiano dos moradores da cidade. Em sossego do sertão nordestino. No estado da Paraíba, ceifaram
outras palavras, "a questão criminal se relaciona então com almas e a paz de pequenos vilarejos e cidades. No entanto,
a posição de poder e as necessidades de ordem de uma de- "notícias do Recife trazem-nos a morte do celebre cangaceiro
terminada classe social"186. Porém, os antigos costumes ainda Lampeão, em custodia no Estado de Pernambuco, sob a acção
residiam em muitas pessoas da época que se viam ofendidas da policia pernambucana"157.
por muitas práticas presentes nas obras cinematográficas. Por A notícia, que aparece no final da página do jornal O
isso, o jornal queria deixar bem claro que o cinema influencia- Mossoroense, diz que o cangaceiro estava morto, porém não
va sim nas práticas criminosas. contém detalhes que provassem o ocorrido. Teria parte da po-
Talvez sob essa influência, diversos outros crimes ain- pulação de Mossoró acreditado nessa nota? Não é possível ter
da tomaram conta das páginas do Jornal nos anos posteriores, certeza. O fato é que, no ano seguinte, houve grande pânico
alguns com maior visibilidade, outros com somente uma pe- com as notícias de que o bando se aproximava da cidade.
quena nota solta em alguma página, porém todos chamavam Em 1927, o banditismo tomou conta das páginas d'O
a atenção do público leitor que, ferozmente, lia aquelas notí- Mossoroense. Demasiada porção de notas sobre o bando de
cias chocantes. Lampião foram publicadas. E certo que o crime e a violência
Por ser a maior cidade do interior do Rio Grande do que acometem o espaço citadino podem ser notados nos re-
latos de jornais que acompanham o crescimento das grandes
186.MALAGUTI BATISTA, Vera. Criminologia e política criminal. Passagens: Revista
Internacional de História Política e Cultura Jurídica, v. l, p. 20-39 (julho/dezem-
bro, 2009). 187.0 Mossoroense, 16 de fevereiro de 1926, p.2.
158

íisti±rr.a nervoso, ^or.svn fadiga, cansaço intelectual,


cidades. A mídia impressa, cujo papei é informar, acaba e.-ítaUi. i r rir iicão, desatenção, perturbação d=i memó-
vando a situação, gerando o medo entre as pessoas. No ria, distúrbios na motricidade, perda do raciocínio e
díi razão, levando á falta de- vontade, quecía na pro-
de Mossoró, por exemplo, no início do século XX, os jornais dução e no trabalho, tornando us alcoólatras pouco
faziam questão de ocupar páginas diárias com informações produtivos e aumentando os riscos de acidentes de
trabalho' J °.
sobre o bando do cangaceiro Lampião, alertando a população
sobre seus passos. O intuito era tranquilizar a população para
que não ficasse apavorada, mas, ao fazer isso, o jornal ater- Além de mostrarem os malefícios do álcool à saúde,
rorizava as pessoas relatando mais e mais notícias sobre as os jornais, comumente, apontavam os prejuízos que seu con-
atrocidades do bando. sumo causava para a moral e os bons costumes. Não raro,
Aparentemente, uma das obsessões dos jornais da épo- a cachaça era relacionada à promiscuidade. Na visão da im-
ca era descobrir uma forma de acabar com a criminalidade prensa, homens e mulheres que se envolviam com a bebida
sempre cobrando da polícia o seu papel de defensora da or- estavam condenados a uma série de fatores, dentre eles a pre-
dem. A criminalidade era um tsunamí que se alastrava pela guiça, a improdutividade e o crime. Isso explica a crença de
urbe Mossoroense, no começo do século XX, causando frene- que esses sujeitos, quando cometiam algum ato criminoso,
si na população. Por consequência, diversas práticas sociais estavam sob a influência da bebida. Por consequência, pes-
precisavam ser modificadas, objetivando uma redefinição no soas eram presas somente pelo fato de estarem embriagadas,
cotidiano das pessoas255. andando pelas ruas da cidade, algo muito comum no começo
do século XX, não só em Mossoró, mas em todo Brasil.
Bebendo com o diabo: o álcool como o pai do crime Já mencionada anteriormente, uma nota policiai lan-
çada em 1902 relata pessoas presas por cometerem alguns
O discurso da época contra a bebida alcoólica era muito crimes, entre eíes o de embriaguez. Muitas outras notas de
intenso. Sanitaristas, jornalistas, médicos, todos davam suas anos posteriores citam cidadãos que foram presos por esta-
opiniões, muitas vezes contrária à cachaça. Constantemente, rem embriagados e outros que praticaram atos como desor-
explicações eram lançadas para o público a respeito dos ma- dem ou assassinato sob influência do álcool. Por suposto, a
lefícios que a bebida trazia para as pessoas. embriaguez era tida como a catalisadora dos atos criminosos.
Em outras palavras, o hábito de ingerir bebidas alcoólicas era
Para os médicos da época, além dos prejuízos para
visto como um dispositivo maléfico no sentido de influenciar
o fígado, coração, pulmões e da desintegração dos
tecidos, o álcool desorganizava profundamente o a população a cometer atos infratores.
Mas, será que o álcool realmente era um problema para
l.SOARES, Eloyza Tolentino. O Comércio de Mossoró e O Mossoroense: comporta-
mentos e criminalidade através da imprensa (1902-1907). Trabalho de Conclusão
de Curso (Graduação em História) - Universidade do Estado do Rio Grande du 189.MATOS, Maria Izilda Santos. Meu lar é o botequim: Alcoolismo e masculinidade.
Norte, Mossoró, 2014. 52 f. São Paulo: Editora Companhia Nacional, 2000.
O ioço aiMiti como .13 demais vícios, aproxima o ho-
a época no Brasil? Para as autoridades sim, a bebida rr>em pobr-; do tirirrunoso. \fssc canário a trontuira
era a matriz de diversos males e conflitos. Quanto aos jornal torna-st; ténue t1 não é difícil de encontrar a denomi-
nação de vadio ou vagabundo do jogador, sem levar
queriam passar para a população a mensagem de que o alcoo em conàiJtfníção aquele que trabalhe ou não [...].'9i
lismo provocava o embrutecimento dos homens, tornando-os
indivíduos sem controle e sem domínio sobre seus instintos Com ênfase nesse problema, os jornais noticiavam com
Os códigos de postura de Mossoró apresentam claramente regularidade a prisão de indivíduos por estarem fazendo uso
essa preocupação com bebidas espirituosas, conforme se vê- dos jogos de azar. Quando havia a repressão da polícia, elogia-
rifíca no trecho abaixo: va, quando não, cobrava. Assim, o jornal agia como fiscalizador
e regulador da vida na cidade. No que se refere a essa questão,
Art. 105 - Os que se apresentarem embriagados pro-
os Códigos de Postura da cidade impunham o seguinte:
movendo desordem nas ruas da cidade, serão reco-
lhidos a cadeia pública por 24 horas,
Art. 36 - Jogar a dinheiro, com cartas ou quaesquer
l - Esta disposição é applicável aos que em tal esta-
outros objectos, apresentando valores, jogos de para-
do se encontrarem em reuniões publicas, theatros e
da, sorte, roda da fortuna, dados, e outros semelhan-
circos.
tes, em cartas cujos darmos percebam estupendio, à
Art. 106 - Os que proferirem palavras obscenas pelas
titulo de barato: pena de quinze mil reis (15:000) de
ruas, ou insultarem e injuriarem alguém, pagarão a
multa ou nove (9) dias de cadeia, ao dona da casa,
multa de 5:000.™
ou quem suas vezes fizer e cada um dos jogadores.
Art. 37 - Nas mesmas pennas encorrerão as casas de
Decerto, o referido documento buscava regular o com- jogo Licito, que admirarem, (ilegível) famílias, crea-
portamento diário das pessoas na cidade, portanto, cometer dos, (ilegível) ou escravos além d'obrigação de resti-
tuírem o dinheiro que por ventura haver perdido.I9:
os atos por ele condenados era uma transgressão que punha
em xeque a ordem naquele espaço. Para a polícia da época,
era necessário estar atenta a essas demandas rotineiras, uma Contrariando a ordem desejada pela elite, em 1905 se
vez que recolher indivíduos transgressores para as delegacias tem o primeiro indício de que o famoso Jogo do Bicho chegara
no prazo de 24h ou aplicar multas fazia parte do exercício do à cidade de Mossoró. Em uma matéria com o título sugestivo
controle social. "Moloch em Mossoró" o jornal procurou passar a mensagem
Uma outra prática comum na sociedade da época era de que o jogo era algo diabólico:
a jogatina, praticada pelos "vadios", pessoas que não tinham
trabalho ou aquelas que, quando possuíam emprego, não ti-
nham boa índole e eram constantemente influenciadas pelo
191.ALVES, ítala Raiane Trajano. Sociabilidades Transgressoras: Álcool, Jogos e Va-
álcool. É fato que: diagem em Mossoró na Primeira República (1880-1920). Trabalho de conclusão de
curso (Graduação em História) - Universidade do Estado do Rio Grande do Norte,
Mossoró, 2010. 73 f.
190.Códigos de Postura do Município de Mossoró: 1908. Fundação Vingt-un Rosado 192.Códigos de Postura do Município de Mossoró: 1881 Fundação Vingt-un Rosado,
Mossoró, 2002. p. 83. 2002-p. 46, 47.
162

Infclizrnont..? •'-. UIT.TI verdade s existência do JOCn


DOBTCHOuí-tr^nf.s. teor dossas matérias, é comum a presença da ironia, sobretu-
Como já dissemos em uma local sobre este niesm do no que diz respeito à cobrança e à participação policial no
assumpta em nosso numero passado, não nos poH,
chegar desgraça maior.
rombate das práticas transgressoras.194
A tranquilidade garantida de nossos lares modestos Matérias relacionadas aos jogos de azar acompanhadas
mas honrados, a paz encantadora de nossos espiri da prisão de várias pessoas viciadas nessa prática, bem como
tos, readiquerida tão penosamente pela esperança
com que nos acenam os indícios animadores dn
«elos relatos dos males que esses tipos de jogos causavam
extermínio deste estio horroroso, a alegria de nossa são observadas até 1930. As autoridades policiais se esforça-
vida sem ambições apaixonadas, tudo quanto ternos vam para dar conta dessa demanda, embora, muitas vezes,
de mis extremecido ern nossos dias, acha-se inevi-
tavelmente em risco iminente com a presença ater-
esbarrassem no envolvimento de seus próprios membros na
radora d'esse deshumano Moloch em nosso meio prática de delitos. Isso revela que a grande parte dos praças
social.--3 também vinha das chamadas classes populares e tinham que
A matéria adjetiva o jogo de forma pejorativa para des- controlar "praticas delituosas" que, muitas vezes, faziam par-
crever o que era e o que ele causava à população. Ademais, te de seu universo e de sua sociabilidade.
alerta a população de que em cidades grandes, como o Rio de
Janeiro, o "jogo maldito" estava levando famílias abastadas a Considerações finais
quase total miséria, fazendo com que essas pessoas pedissem
esmola, e até se prostituíssem. O jornal também relata que Com tantas "práticas criminosas" ocorrendo na cidade
mulheres foram vistas praticando a jogatina e que isto as esta- no começo do século XX, comerciantes, médicos e a polícia
va corrompendo. Por fim, diz que a polícia não deveria deixar procuravam métodos que reestabelecessem a ordem e tran-
passar tudo isso que estava acontecendo, que era sua obriga- quilidade. Com o mesmo objetivo, no ano de 1905, o jornal O
ção prender todos os criminosos que fornecessem a prática Comércio de Mossoró publicou uma matéria com a assinatu-
dos jogos e as pessoas que estavam jogando. Nesse sentido, ra do famoso antropólogo e criminologista Cesare Lombroso,
os jornais locais passaram a ser fiscalizadores da ordem de- ainda vivo na época. A matéria, intitulada "Qual é o metho-
sejada na cidade, cobrando da polícia e das autoridades de do de philatropia mais efficaz contra o crime? ", prometia ser
Mossoró a repressão às práticas transgressoras. uma bela resposta para o combate às práticas criminosas.
É importante frisar que as matérias jornalísticas que Por isso quando rne perguntam qual é o meio mais
tratam de jogo e álcool trazem em seu conteúdo mensagens effícaz de lutar contra a criminalidade e qual é a
moralistas. Não obstante, os redatores assumiam a postura de obra philantropica que julgo prestar maiores servi-

defensores dos "bons costumes" da sociedade mossoroense


e, por isso, ressaltavam valores familiares, honra e defesa da 194.FONTELES NETO, F. Linhares, "Crime, violência e sociabilidade: Mossoró nas últi-
mas décadas do Império", In: História Social e História Cultural de Mossoró: mé-
propriedade, minadas com as apostas. No que se refere ao todos e possibilidades. MENDES, Fabiano; FONTELES NETO, F. Linhares; LINS,
Lindercy (Org). Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado, 2009. p. 116.
193.0 Mossoroense, 24 de fevereiro de 1905, p. 2
cos á sociedade, não hesito em dizer que é
que cuida das crianças orphans, pobres ou abando. hídas alcoólicas. A partir dessa proposta, vem à tona, nova-
nadas. Toda a instituição philantropica que recolha mente, a questão das bebidas alcoólicas, segundo Lombroso,
creariças, as guarda, protege e acostuma ao trabalhe,
ingeridas somente por quem não é um cidadão honrado, pois
representa para mim a forma mais efricaz e mau
conforme ao seu fim therapeutico contra o crime. a bebida transforma o indivíduo em um monstro, o instigan-

Corresponde a este princípio, soberano na economia do a cometer vários tipos de crimes, até mesmo os de sangue.
social, de obter o maior rendimento com o menor de-
Com um crescimento populacional bastante significa-
sembolso. Não podemos, de certo deixar de louvar
as instituições que procuram corrigir o homem que tivo, nos primeiros anos do século XX, a cidade de Mossoró
roubou, inspirando lhe o amor do trabalho, livrart- teve o número de problemas sociais multiplicados. O crime
do-o da embriaguez e do alcoolismo, arranjando lhe
um albergue, mas devemos ter em conta que esse
cada vez mais tomava conta das páginas dos jornais, que nar-
homem já causou damno á sociedade, porque rou- raram os acontecimentos de modo a estereotipar os crimino-
bou, mentiu e não trabalhou; é pois impossível des- sos. Em consequência disso, a população foi lançada em um
truir os efeitos desse mal; fazem-se muitos esforços
e gasta se muita energia para entregar á sociedade profundo poço de medo, o que a fez recuar diante dos pro-
(e é muito difícil entregarlh'o completamente) um blemas da cidade.
homem que tem quasi terminada a carreira; sob o As matérias aqui analisadas permitiram entender como
ponto de vista moral ou ethico obtem-se de certa al-
guma vantagem mas sob o ponto de vista social qua- as transgressões eram noticiadas pelos jornais de Mossoró no
si nenhuma. Pelo contrario, quando se trata durna mício do século XX e quais os interesses da imprensa ao re-
criança que se habitua ao trabalho, a honradez e ao
velar aquilo que lhe convinha. Em síntese, notícias de crime e
horror á bebida, entrega se á sociedade um membro
que não só nenhum prejuízo lhe causará, si não que transgressões se apresentam como um "ataque" aos bons cos-
lhe poderá ser útil durante toda a sua vida. Obter-se tumes. Desse modo, é possível afirmar que os jornais foram
a este resultado com muito menos trabalho e despe-
responsáveis por ampliar o "caos", noticiando e passando a
za, pois é muito mais fácil desenraizar uma planta
débil que arrancar da terra uma arvore grande para imagem de uma cidade sem lei.
transplantai-a, as probabilidades de êxito são muito
maiores no primeiro caso. :35
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Para o criminologista Cesare Lombroso, segundo o tex- Fontes primárias


to que fora publicado no jornal, a forma mais eficaz de acabar O Mossoroense. 31 de dezembro de 1902, p. 4.
com a criminalidade começava pela educação do indivíduo,
algo que deveria acontecer desde a infância, para não se tor- _. 24 de fevereiro de 1905, p.2
nar um adulto delinquente. Desde cedo, a criança teria que
trabalhar, honrar sua casa e ser ensinada a ter horror a be- .. 12 de junho de 1903, p.3.

_. 01 de julho de 1903, p.4.


195.0 Comércio de Mossoró 13 de maio de 1905, p. 2.
__. 21 de novembro de 1906, p.4. ! -FONTELÊS NETO, F. Linhares, Crime, violência e
--''•"sociabilidade: Mossoró nas últimas décadas do Império. In:
_. 30 de novembro de 1911, p.2. História Social e História Cultural de Mossoró: métodos
:' e possibilidades. MENDES, Fabiano; FONTELES NETO, F.
_. 25 de junho de 1919, p.2. •;. Linhares; LINS, Lindercy (Org.). Mossoró: Fundação Vingt-un
-Rosado, 2009.
_. 16 de fevereiro de 1926, p.2.
; -jtALAGUTI BATISTA, Vera. Criminologia e política
_. 20 de maio de 1928, p.l.
criminal. Passagens: Revista Internacional de História
O Comércio de Mossoró. 17 de janeiro de 1904, p.l. política e Cultura Jurídica, v. l, p. 20-39. julho/dezembro,
' 2009.
. 14 de fevereiro de 1904, p.3.
MATOS, Maria Izilda Santos. Meu lar é o botequim:
_____ 29 de janeiro de 1905, p.3. ..Alcoolismo e masculinidade. São Paulo: Editora Companhia
•: Nacional, 2000.
_. 5 de maio de 1905, p.3.
' OTTONL Ana Vasconcelos. "O paraíso dos ladrões": Crime
.13 de maio de 1905, p. 2. • .ecriminosos nas reportagens policiais da imprensa (Rio de
..Janeiro, 1900-1920). Tese (Doutorado em História Social),
CÓDIGOS DE POSTURA DO MUNICÍPIO DE MOSSORÓ. • Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2012.
1908. Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado, 2002.
• REJANE FERNANDES, Paula. Mossoró: uma cidade
. 1881. Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado, 2002. impressa nas páginas de O Mossoroense (1872-1930).
Dissertação (Programa de pós-graduação em História),
Bibliografia Campina Grande: Universidade Federal de Campina
Grande, 2009.
ALVES, ítala Raiane Trajano. Soriabilidades
Transgressoras: Álcool, Jogos e Vadiagem em Mossoró na SOARES, Eloyza Tolentino. O Comércio de Mossoró e O
Primeira República (1880-1920). Trabalho de conclusão de Mossoroense: comportamentos e criminalidade através
curso (Graduação em História), Mossoró: Universidade do da imprensa (1902-1907). Trabalho de Conclusão de Curso
Estado do Rio Grande do Norte, 2010. (graduação), Mossoró: Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte, 2014.
BORGES, Doriam. O Medo do Crime na Cidade do Rio
de Janeiro: Uma análise sob a perspectiva das Crenças de
Perigo. Rio de Janeiro: Appris, 2011
0S
AGENTES SECRETOS DA POLÍCIA E SUA
ATUAÇÃO NA REPRESSÃO AO JOGO E AO
TRÁFICO DE ENTORPECENTES - PORTO
ALEGRE/SÃO PAUEO, 1889-1930.

Com a profissionalização da História, desde final da


década de 1970, os historiadores passaram cada vez mais a
utilizar as fontes criminais, sejam elas processos-crimes ou os
documentos produzidos pela polícia. Em urn primeiro mo-
mento, essas fontes eram usadas para compreender o cotidia-
no popular, os conflitos nascidos da consolidação do Estado
e a criminalidade escrava (percebida como uma forma de re-
sistência). Grã dativa mente, entretanto, foi se ampliando o in-
teresse em compreender as instituições que produzem essas
fontes, além dos questionamentos sobre o lugar do crime e
da violência na sociedade. Esse interesse, sem dúvida, é mo-
tivado pelo aumento da criminalidade na sociedade atual. O
campo da história do crime, da polícia, da justiça e suas práti-
cas tem mostrado um grande vigor, tanto no âmbito dos sim-
pósios da Associação Nacional de História (ANPUH), quanto
de maneira independente através de Simpósios Nacionais.
Este artigo procura dialogar com esse profícuo campo de
estudos históricos, principalmente com os trabalhos que têm a
polícia como objeto de pesquisa. Ele nasceu de uma inquieta-
ção, nascida ao longo das pesquisas de campo, frente a um tipo
de personagem que passa quase esquecido pela historiografia:

196.Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte


os agentes secretos, "secretas ' ou t r a b a l h a d o r e s ocasionais H - rtl conseguir esse objetivo o--; policiai? podiam recorrer até
polícia. Isso pode ser percebido de forma exemplar na ausên- mesmo a ex-críminosos, como o caso do antigo vendedor de
cia de referências sobre esse tema na principal publicação de carteias do jogo do bicho de nome Francisco Pereira da Sil-
balanço sobre a história da polícia publicada por Marcos Bretãs va. Curiosamente, o "Relatório Policial" usado para construir
e André Rosemberg recentemente." 7 A final de contas, quem es$ainterpretação também mostrou que a contratação desse
são esses agentes? Como atuam? Quais os vínculos que eles agente era desconhecida dos demais inspetores da Delegacia,
estabelecem com a instituição policial? São perguntas difíceis cabendo exclusivamente ao Delegado o seu recrutamento.'^
de responder, pois a própria natureza de suas atividades, "se- Outro tipo de fonte capaz de trazer informações sobre
cretas", dificulta a perpetuação de registros para a posteridade os agentes secretos são os processos-crímes, particularmente
Ao longo da minha trajetória de formação no mestrado e no as peças de defesa. Não raro, os advogados constróem suas
doutorado recolhi algumas pistas que pretendo compartilhar estratégias argumentativas em torno da ilegalidade dos pro-
neste artigo, fato que exigirá uma exposição que combine de- cedimentos policiais. No Rio Grande do Sul, entretanto, tal
bate historiográfico, fontes e relato de pesquisa. estratégia não era eficaz, pois quase sempre havia a prepon-
A primeira vez que expus reflexões sobre esse tema foi derância da versão policial e da confissão feita na Delegacia
no XXXVI Encontro Nacional da ANPUH, ocorrido na Uni- para comprovar o delito. Independentemente do resultado
versidade de São Paulo, na comunicação intitulada Mecanis- final dos processos-crimes, tais peças podem ajudar a compor
mos de controle social em Porto Alegre no pós-abolição: uma leitura elementos sobre os "secretas" a partir de um viés não policial.
a partir dos jogos de azar. O objetivo daquela fala era mapear O primeiro processo-crime que será apresentado para
quais eram os recursos disponíveis às autoridades policiais e essa análise nasceu de uma ação policial do Capitão Orlando
judiciárias na contenção da criminalidade, que era represen- Morta, principal responsável pela caça aos banqueiros do jogo
tada como sempre crescente naquela época. Percebeu-se que do bicho ern Porto Alegre IW , em uma repartição pública em
o primeiro recurso utilizado pelos Delegados era a intimação 1904. A operação resultou na prisão em flagrante de Joaquim
ou a advertência oral. Mostrou-se que tal procedimento era Monteiro de Albuquerque. A brutalidade da autoridade po-
usado tanto em pessoas com respeitabilidade, quanto com os licial no interior de um ambiente respeitável, descrita nos
"vagabundos" que não mereciam respeito. Era o insucesso depoimentos, levou a indignação dos funcionários do local,
dessas medidas que levavam a outro procedimento: o empre- que se colocaram como testemunhas de defesa de Joaquim.
go de agentes secretos com objetivo de observar a movimen- Foram dez testemunhas. A peça de defesa, além de explorar
tação diária dos suspeitos e, também, estabelecer relações
delituosas com os mesmos. Mostrou-se, naquela ocasião, que 198.TORCATO, Carlos Eduardo Martins. Mecanismos ds controle social em Porto Ale-
gre no pós-abolição: uma leitura a partir da repressão aos jogos de azar. XXVI Sim-
pósio Nacional de História. Universidade de São Paulo. Anais. 2011c, 01-15 p.
197.BRETÃS, Marcos Luiz; ROSEMBERG, André. A história d.i polícia no Brasil: 1W.TORCATO, Carlos Eduardo Martins. A história do Jogo do Bicho e dos jogos de
co e perspectivas. Topoi. V.14, n.26, p.163-173, 2013. azarem Porto Alegre: (1385-1916). Curitiba: Editora Prismas, 2016a.
a b r u t a l i d a d e do citado Capitão, procurou desqualificar se dedizí!' da parcela de A u t o r i d a d e que lhes cabe". A autorida-
s
testemunhas arroladas pela Prometeria Pública. Segundo 0 de pública tentou remediar as denúncias realizadas por esseá
advogado, existem dois lados nesse processo, "a dos emprç. ; 0 rnais a f i r m a d o que ''são dois ou três os secretas envolvidos
gados da Mesa de Rendas, homens sérios e respeitáveis e a nessa vergonhosa traficância, tendo todos estado presos e in-

dos secretos policiais dirigidos pelo capitão Orlando Motta" C0 niunicáveis, nos xadrezes da chefatura de polícia [...) A po-

Por isso, o advogado solicita que o julgador não se dfixe in- - ifcia, que está agindo em segredo, trata de tirar a limpo esse
fluenciar por aqueles que vivem "perseguindo pais de família edificante caso de prevaricação". Para o advogado, entretan-
que necessitam lutar para darem pães aos seus filhos", pés- to, não se trata de uma ou duas macas podres, mas de todo
soas que "não tem coragem para trabalharem honestamente, o sistema de produção de provas. Mais uma vez, seguindo a
vivendo na degradante espionagem"2"". Como é de costume tradição da justiça gaúcha, tais argumentos foram considera-
na Justiça gaúcha do período, as provas policiais foram consi- dos inválidos e o réu condenado. 2 " 1
deradas legítimas e o réu foi condenado. Fica bastante evidente, na exposição realizada acima,
Esse resultado não foi aceito pela defesa, levando o ad- que os agentes secretos eram detestáveis do ponto de vista
vogado a protocolar um recurso contra a decisão da primeira 1 da legalidade do direito, não gozando de boa reputação entre

instância. Nesse documento, novas considerações são feitas o advogado e seus clientes que ficavam sujeitos a suas ações.
sobre os agentes secretos. Segundo o advogado, joga-se dia e - Outro processo-crime, que será apresentado a partir de ago-
noite em Porto Alegre e ninguém é preso ou condenado, prin- ra, pode nos ajudar a completar essa caracterização. Ele foi
cipalmente se os jogadores possuem dinheiro. Ele se pergunta o resultado da maior ação realizada contra o jogo do bicho
se um dia as pessoas poderão escrever em um papel números pela polícia do Rio Grande do Sul, levando para o banco dos
e nomes de bichos sem ter medo de algum espião da polícia, réus João Serrão e mais dez pessoas presas em flagrante. O
pois "além de falsificarem depoimentos na polícia, os secre- Delegado Augusto Cézar de Medeiros, responsável pela ação,
tos prevaricam cada passo, soltando banqueiros ricos que lhe apresentou a "história policial desse audacioso banqueiro",
custam os focinhos com um pouco de dinheiro" e perseguem que teria chegado de Rio Grande à Porto Alegre sem ocupa-
pobres coitados, homens do povo como o réu Joaquim Mon- ção lícita, empregando-se "como criado em casa de tavola-
teiro de Albuquerque. Para provar sua afirmação, apresenta gem, passando em seguida a porteiro e logo depois a sócio".
duas denúncias dos jornais O Independente e Correio do Povo. Ele teria se conservado "nessa vida de aventuras" até tomar
Nessas matérias são mostradas provas de que "esses agentes conhecimento do jogo do bicho "e dos lucros fabulosos que
quando não praticam as prevaricações de que falamos, usam oferecia a sua especulação". Ele juntou tanta fortuna com o
da mais ilegal violência, abusando como já tivemos a ocasião - famigerado jogo que obteve notoriedade pública, além desse

200. Excertos retirados da peça de defesa. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do
Sul (APERGS). Processo-crime n u 2115, movido contra Joaquim Monteiro do Albu- 201,Excertos retirados da peça de apelação e dos jornais anexados a ela. APERGS. Pro-
querque. cesso Crime n1' 2115.
174

fato ser confirmado por diversos vendedores presos ern ou igação desse Capítulo. A estratégia da defesa foi tentar
trás ocasiões. Para conseguir surpreendê-lo em plena execu mostrar que os réus da Promotoria, todos eles, teriam sido
cão da atividade criminosa, o citado Delegado teve que atuar induzidos a testemunhar contra Serrão e seus companheiros.
em sigilo inclusive de muitos agentes policiais, pois esses não António Pereira Maciel, 35 anos, comerciante de renome na
raro precipitavam informações privilegiadas para Serrão. Q cidade, disse conhecer todas as testemunhas e que elas eram
flagrante delito foi realizado. Na ocasião foi recolhido um agentes secretos da polícia. O Promotor Público, quando teve
cofre para a Chefatura de Polícia. Depois de inúmeros sub- a palavra, perguntou como ele sabia que eles eram agentes
terfúgios usados por Serrão para adiar a sua abertura, ela foi secretos. "Respondeu que tem visto eles fazerem serviço de
realizada à revelia com auxílio de profissionais aptos para polícia, como prisões e intimidações". Octaviano Manuel
essa tarefa. Os documentos ali encontrados eram incontestes de Oliveira, 42 anos, casado, jornalista, declarou que algu-
em mostrar "os lucros fabulosos provenientes da especulação mas testemunhas arroladas eram agentes secretos da polícia.
criminosa, a exploração da contravenção, lucros que só por Disse que não conhece todos, mas aquele que conhece "não
meios criminosos podem ser obtidos"202. goza de bom conceito" e que tem prova que outra testemunha
A defesa protestou, pois, a retirada de um cofre da casa ganhava propina de casa de jogos depois que foi demitido
de um comerciante, da forma violenta como ocorreu, não po- da Casa de Correção. Outras testemunhas também defende-
deria ser realizada da forma que foi. Sem nenhum mandato, ram serem eles agentes secretos e que não gozavam de bom
apenas na suposição que ali ocorria um crime. Com base nessa conceito na sociedade.204 Depois desse confronto de versões,
alegação foi solicitada a devolução do cofre. A Justiça, que no opondo testemunhas de acusação e de defesa, chega a vez dos
Rio Grande do Sul geralmente dava sinal verde para toda a advogados de Serrão apresentarem a defesa perante o juiz.
ação policial, negou o pedido da defesa. Ao longo do processo, Para eles, esse processo é legalmente nulo, pois as testemu-
foram arroladas dez testemunhas de acusação que se qualifi- nhas eram agentes policiais que acompanhavam o delegado.
caram de diferentes formas: agência, comércio, alfaiate, pintor, Citando decisão da justiça do Rio de Janeiro, aponta que eles
entre outras ocupações manuais.203 Ou seja, todos eles procura- não podem ser testemunhas imparciais porque são influen-
ram se colocar como trabalhadores respeitáveis em juízo. ciados pelo argumento da acusação. Além disso, a invasão
É a partir desse ponto que o processo analisado co- domiciliar faria sem efeito qualquer prova posteriormente
meça a apresentar elementos que podem nos ajudar a com- obtida, porque provas produzidas de forma ilegal são nulas.
preender melhor quem eram os agentes secretos, objeto de O juiz, entretanto, seguindo a tradição da justiça gaúcha con-
siderou as provas válidas e condenou os réus.205

202.Excertos retirados do relatório policial anexado ao processo-crime n- 125, movi-


do contra João Serrão e outros. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Suí 204.Peças de qualificação e de depoimento das testemunhas de acusação. Processo-cri-
(APERGS). me n5125. APERGS.
203.Petição solicitando a devolução do cofre, despacho do juiz e peças de qualificação e 205.Peças de qualificação e de depoimento das testemunhas de defesa, manifestação da
de depoimento das testemunhas de acusação. Processo-crime n-125. APERGS defesa e sentença. Processo-crime ns 125. APERGS.
Todos os outros processos, em geral, acabam com essa "sobre a polícia paulista no Império, procurou diferenciar o
decisão; porém, esse processo analisado tem uma particula- recrutamento da polícia e do exército, demonstrando que a
ridade. Um recurso foi protocolado e aceito pelo Supremo primeira opção era uma saída interessante para os homens
Tribunal Federal no Rio de Janeiro. O parecer, escrito p0r jas classes mais baixas que desejavam escapar do exército.
Epitácio Pessoa - que depois seria presidente da República O policial era um voluntário imbuído de missão civilizadora,
- também possui urna consideração a respeito dos agentes se- diferente do soldado que era recrutado a força para trabalhar
cretos. Depois de comparar as qualificações das testemunhas e m uma instituição que funcionava também como uma for-

da Promotoria Pública e da defesa, Epitácio afirma que as ma de punição. Essa mesma constatação foi percebida por
segundas são "de outra responsabilidade moral pela posição floreira210 analisando a polícia gaúcha em idêntico período.
social que eles ocupam, não são desocupados nem agentes Ele mostrou também que as corporações policiais locais eram
secretos da polícia".2* Fica bastante claro nessas colocações e uma ocupação aberta para os ex-escravos.
na tentativa das próprias testemunhas de acusação de escon- Sabe-se que o final dos anos de 1860 e início dos anos
derem sua real vinculação com a polícia que tal atividade, a 1870 foi caracterizado por uma reorganização das polícias
de agentes secretos, não gozava de bom conceito social. Isso militares em todo o Império. No âmbito da Província de São
pode ser explicado, em parte, pela origem social e as formas Pedro do Rio Grande do Sul, a organização da força policial
de recrutamento dos policiais de uma maneira geral. foi alvo de disputas entre o Partido Conservador (PC) e o Par-
A baixa remuneração dos policiais e demais mem- tido Liberal (PL). Um fenómeno muito particular dessa Pro-
bros das corporações responsáveis pela segurança pública víncia foi o predomínio, durante a década de 1870 e 1880, do
faziam estas ocupações se caracterizarem pela extrema ro- PL. As mudanças de gabinete na Corte, que alteravam os dois
tatividade de seus quadros, podendo ser consideradas um partidos no poder, não afetavam a hegemonia dos liberais
subemprego. Autores que estudaram a polícia gaúcha no Im- no sul. O PL, seguindo seus princípios doutrinários, tentou
pério207 e no início da República208 vêm chamando a atenção constantemente ampliar o poder municipal sobre a polícia,
para a precariedade material que caracterizava o exercício enquanto os conservadores defendiam a manutenção das in-
da função policial. Os ganhos monetários não pareciam ser dicações pela Corte. Essa particular situação política permitiu
os principais arrativos deste cargo. Rosemberg209, em estudo a exposição, nos debates registrados nos anais da Assembleia
Provincial e nos relatórios dos Presidentes da Província, tanto
das concepções (representações) de policiamento vigente na-
206.Peça com parecer proferido pelo Supremo Tribunal Federal. Processo-crime n5125.
APERGS. quele período, quanto dos diferentes conflitos que ocorriam
207.MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Entre o deboche e a rapina: os cenários sociais da entre a polícia judiciária e a polícia militarizada nos diferen-
criminalidade popular em Porto Alegre. Porto Alegre: Armazém Digital, 2009.
208.MAUCH, Cláudia. Dizendo-se autoridade: polícia e policiais em Porto Alegie tes níveis hierárquicos. Importante destacar, para o propósito
(1896-1929). São Leopoldo: Oikos, 2017.
209 -ROSE MB E R G, André. De chumbo e festim: Uma história da polícia paulista no
final do Império. São Paulo: Edusp, 2010. 21 O.MOREIRA, Paulo Roberto Staudt, op. cit., p.32-62.
178

deste Capítulo, que, durante rocio o Império, a polícia milit a . Hessas pessoas e n5 formas de recrutamento. C' O ratice l apre-
não conseguiu engajar o número de praças previstos na ]e. sentado abaixo, retirado desse trabalho, pode nos ajudar a pro-
gislacão por falta cie voluntários. Essa falta de quadros pa ra ar alguns aspectos relevantes para nossa discussão.
compor a Força Pública servia de pretexto para as autorida-
des judiciárias contratarem "policiais locais", cuja forma de
recrutamento era próxima aquelas que serão usadas com os
"secretas" no período republicano.
Maiores informações sobre os policiais forarn obtidas no
período republicano. Sabe-se, graças ao trabalbo de Mauch-11,
que os agentes secretos eram indivíduos contratados pelas
autoridades, temporariamente, para missões especiais, sendo
pago pela vultosa quantia destinada à despesa secreta da Po-
lícia. Esse corpo policial era recrutado para atividades tempo-
Gráfico l - Total de funcionários efetivos e evtranumerários da Polícia Administrativa
rárias sem estar devidamente incorporado na instituição, fato de Porto Alegre entre 1397 e 1928:"
que gerava consequências importantes para a prática do poli-
ciamento. Provavelmente, a principal delas foi a contribuição Os policiais que faziam trabalhos temporários, pa-
para aquiio que denominei de "cultura do achaque". Isso ocor- gos por dia ou por serviço, são denominados de "extranu-
ria porque a existência desses "secretas" criava a prerrogativa merários" nesse gráfico e pelas autoridades da época. Tais
de pessoas à paisana não vinculadas à polícia darem voz de trabalhadores seriam utilizados quando os policiais efetivos
prisão ou intimarem os demais cidadãos sem que houvesse ne- estavam ausentes ou em momentos em que o policiamento
nhum controle institucional sobre esses atos.2i: precisava de reforço, como em festas populares e greves. Fica
Um maior entendimento sobre as formas de recruta- claro nos dados trazidos por Cláudia Mauch que a prática
mento dos policiais foi possível depois da defesa da Tese de de contratar policiais por jornada, mais do que algo tangen-
Cláudia Mauch, em 2011, que foi publicada na forma de livro cial, era parte estruturante da Polícia Administrativa de Porto
em 2017. Trata-se do trabalho intitulado Dizendo-se autoridade: Alegre; eles eram utilizados recorrentemente no policiamen-
polícia e policiais em Porto Alegre (1896-1929). Utilizando um tipo to ostensivo. É preciso, porém, que tomemos cuidado para
de fonte inédito para estudos sobre as polícias republicanas não fazermos associações demasiadamente rápidas. Existem
(Códices de Matrícula dos Agentes), ela traçou um perfil social algumas diferenças entre os "extranumerários" e os "agentes
secretos" propriamente ditos. Ambos eram contratados para
211.MAUCH, Cláudia. Ordem Pública e Moralidade: imprensa e policiamento urbant- trabalhos temporários, porém sua diferença residia no caráter
em Porto Alegre na década de 1890. Santa Cruz do Sul: Editora da UNISO ANPLH-
-RS, 2004, p.149-150.
212-TORCATO, Carlos Eduardo Martins, opt. cit., 2016a, p. 103-107. 213.MAUCH, Cláudia, Op. cit., 2017, p.128.
d u a l da polícia g a ú c h a - Administrativa e J u d i c i á r i a . Os n r j_ viviani uma relação a m b í g u a com a lei. vivendo em contato
meiros eram os policiais por jornada ligados ao policiamento com as autoridades policiais o o m u n d o da criminalidade. Hm
ostensivo, enquanto os segundos eram utilizados na obtenção consonância ao discurso dos advogados de defesa apresenta-
de provas, como testemunhas ern processos, para conseguir do durante a análise dos processos-crimes acima realizada,
informações sobre os crimes através da espionagem. A rele- nercebe-se que a imprensa paulista não poupava críticas ao
vância desses dados para nossa problemática reside no cará- serviço e à respeitabilidade de tais agentes. O jornal Estado
ter ordinário do recurso à contratação de pessoas alheias a & São Paulo, por exemplo, publicou em 1896 uma dura mani-
corporação para execução de tarefas, que podia ser tanto para festação ao Chefe de Polícia, solicitando que o mesmo "con-
policiamento nas ruas, quanto para investigações. siga elevar o moral dos secretas, que tanto desgostos causam
Se o trabalho de Cláudia Mauch traz importantes ele- sempre às autoridades, praticando abusos de toda a casta,
mentos para pensarmos o contexto de aruação e de recruta- por serem, em sua quase totalidade, indivíduos mal prepa-
mento da polícia gaúcha, principalmente a ostensiva, outra rados para o desempenho de tão melindrosas funções" 2 ' 3 Os
pesquisa vem contribuir para a compreensão da polícia judi- frequentes choques entre secretas e populares enchiam as pá-
ciária ou investiga ti vá. Dessa vez, entretanto, o foco é a polí- ginas dos jornais paulistas, e não raro surgiam "notícias de
cia paulista. Marcelo Thadeu Quintanilha Martins defendeu 3 secretas acusados de achacar transeuntes"216 Em 1896 a Polí-
Tese intitulada A civilização do Delegado: Modernidade, políaa e cia paulista passou por uma reestruturação e os secretas pas-
sociedade em São Paulo nas primeiras décadas da República, 1889- saram a ser denominados de Agentes de Segurança, sendo in-
1930, trazendo nela alguns elementos úteis para nossa inves- cluídos no quadro de funcionários da polícia. Mesmo assirn,
tigação. Ele aponta que a Delegacia de Polícia era formada a fama desses agentes não parece ter melhorada.
por Delegados e Subdelegados com formação mais adequada A mudança de denominação não parece ter alterado o
e conhecedores das normas jurídicas, os escrivães responsá- padrão de atuação de tais agentes quando a questão era a ob-
veis pela parte burocrática, os inspetores de quarteirão e, por tenção de provas para os processos-crimes. Em 1929, ocorreu
fim, auxiliando todos esses "estavam os agentes secretos, os a primeira prisão em flagrante de um vendedor de maconha
famosos 'secretas', assim chamados por não usarem uniforme que se tem notícia no Brasil. Foi levado ao xadrez Diomero de
e misturarem-se à multidão" 214 . Esses agentes existiam desde Oliveira, que era comerciante de ervas com estabelecimento
o período imperial, porém seu número cresceu consideravel- de nome Hervanaria Oriental, localizado na Praça da Sé n y 63-
mente durante a República. Eles auxiliavam a polícia e ser- A. Sobre esse indivíduo recaía outras suspeitas, como a prá-
viam como informantes. tica ilegal da medicina e a venda de garrafadas medicinais.
Marcelo Martins ainda destaca que tais indivíduos

215.Estado de São Paulo, 07 de junho de 1986 apud MARTINS, Marcelo Thadeu Quin-
214 MARTINS, Marcelo Thadeu Quintanilha Martins. A civilização do Delegado Mo-
tanilha, opt. cit., p.120.
dernidade, polícia e sociedade em São Paulo nas primeiras décadas da República,
1889-1930. Tese. (PPG - História Socul/USP), 2012, p.119. 216.MARTINS, Marcelo Thadeu Quintanilha, opt. cit., p.121.
Uma diligência foi p r e p a r a d a pela polícia, ser.cio e n v i a d o an c orn fc.-tudos e respeitáveis ^ociain^TiiL'. 1 -"
local "um viciado" a serviço da polícia para c o m p r a r a famo- Esse tipo de situação não era exclusivo do contexto
sa erva; depois de analisada no laboratório do serviço po|j. 0-aúcho. Entre 1912 e 1918, alguns jornais de São Paulo colo-
ciai, ficou constado que se tratava de camwbia-indica. Levado caram na agenda pública o problema dos "tóxicos" exigindo
ao tribunal, ele acabou absolvido com o argumento que Se atuação forte da polícia contra a venda de "entorpecentes"
tratava de uma p l a n t a medicinal. 217 Esse caso mostra que a para fins não médicos. A incapacidade do poder público em
polícia podia recrutar para serviços secretos pessoas habitu- acabar com a venda ilegal dessas substâncias fazia o eficien-
adas ao uso de substâncias "entorpecentes", como sugere o te serviço sanitário paulista alvo das críticas dos jornais. A
emprego de um "viciado" para obter a droga nesse exernplo resposta a esse e outros problemas não tardou e em 1917 foi
Como veremos mais abaixo quando o foco se dirigir promulgado novo regulamento sanitário, prevendo maior
para o caso da repressão aos entorpecentes em Porto Alegre, nunitividade e menos tolerância com hábitos indesejados-7^,
os "secretas" podiam ser recrutados nos meios de sociabili- entre eles os "hábitos elegantes" de usar drogas. Com o poder
dade dos usuários de drogas e usados para forjar o flagrante de fechar as farmácias, a polícia tomou a frente na solução
necessário para justificar a acão policial. Talvez o caso mais desse problema público. Utilizando os odiosos "secretas", os
interessante do uso desse tipo de subterfúgio tenha sido no policiais estabeleceram um controle mais rigoroso sobre esses
controle das farmácias. Na comunicação intitulada A campa- estabelecimentos, multando e fechando aqueles que descum-
nhapolidal contra os tóxicos em Porto Alegre no final de 2920, rea- priam a proibição de vender "entorpecentes" fora do uso mé-
lizada no XIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RS, j dico. Os jornais acompanharam vivamente as acões da polícia
ocorrido na Universidade de Santa Cruz do Sul entre 18 e 21 e exaltavam a atuação do Delegado Alves Ferreira220.
de julho de 2006, procurei explorar um pouco os dilemas da Esta ação dos agentes secretos, mais especificamente,
utilização desses métodos de incriminação contra pessoas das e da polícia, de uma maneira geral, no controle das farmácias
classes mais altas. O uso de agentes secretos para construir remete de modo pertinente às reflexões teóricas desenvolvi-
a prova é feito sem maiores questionamentos quando utili- das por Foucault em torno do conceito de governamentalidade.
zados para incriminar pessoas das classes populares, porém Na França, em fins do século XVIII, o controle sobre a circula-
acabam gerando um tensionamentos extras quando voltados ção de pessoas e de mercadorias era incluído no rol das atri-
às pessoas das classes mais altas. Isso pode ser percebido na
recusa de alguns juizes a receberem a denúncia contra os far- 218.TORCATO, Carlos Eduardo Martins. A campanha policial contra os tóxicos em Por-
macêuticos, donos de estabelecimentos comerciais, pessoas to Alegre no final dos anos de 1920. XHI Encontro Estadual de História da ANPUH-
-RS - Ensino, Direitos e Democracia. Universidade de Santa Cruz. Anais. 2Q16b,
p.01-10.
219.MOTA, André. Tropeços da Medicina Bandeirante: medicina paulista entre 1882-
1920. São Paulo: EDUSP, 2005, p.100-102.
217.FONSECA, Cuido. O submundo dos tóxicos em São Paulo: séculos XVHI, XIX t 220.CARNEIRO, Beatriz H. 5. A vertigem dos venenos elegantes. Dissertação. (PPG-
XX. São Paulo: Resenha Tributária, 1994, p.108-111. -História/PUCSP), 1993, p.129-164.
buições policiais. O mesmo acontecia com a organi/ação da dade do Vale aos Sinos í L \~H\OS) em 2016. Nessa ocasião
mão de obra (relação capitaí-trabalho), a saúde física e moral procurei apresentar alguns aspecto? da repressão policial às
da população e o controle da criminalidade e dos distúrbios farmácias. O crime de tráfico de drogas, ao contrário do jogo
Era um modelo de sociedade policial que, se levado ao limite ilícito tratado anteriormente, era levado ao Tribunal do Júri.
pressupunha a intervenção do Estado em amplos aspectos da Embora as pessoas detidas em flagrante ficassem presas até o
vida dos homens a partir da ótica da disciplina e da regulação julgamento, em geral elas acabavam absolvidas quando jul-
característica principal de uma governamentnlidade policial lj- gadas em tribunais desse tipo.-3
gada à razão de Estado."' O uso de agentes secretos no con- A questão do combate à venda ilegal dessas substân-
trole das farmácias, no Brasil do início do século XX, mostra cias entra tardiamente na agenda política do governo gaúcho
que, apesar do problema do uso de psicoativos ter sido cons- se compararmos com a repressão policial em São Paulo e no
truído com base nas práticas discursivas médicas, as formas Rio de Janeiro. A partir de 1924, depois de assinado o Pacto
de enfrentar tal problema eram predominantemente tratadas de Pedras Altas que colocou fim à guerra civil, os opositores
como uma questão policial e jurídica. As políticas públicas do Partido Republicano Rio-grandense (PRR) passaram a ter
nessa área eram uma prática imposta pelos governantes aos maior liberdade para criticar o poder público e a polícia foi
governados, pois os primeiros se julgam no direito de esco- um alvo constante. Foi a partir dessa data, também, que os
lher os hábitos adequados aos segundos. Trata-se, portanto, intendentes municipais - Octávio Rocha e Alberto Bins - ini-
de uma questão racionalizada por uma governamentalidade ciaram uma campanha pela estadualização da polícia que era
policial como a descrita por Foucault ern outro contexto.— de responsabilidade do município desde a reforma policial
A política pública de restrição ao uso de drogas, no de 1896-4. Paralelamente a essa campanha, ainda existia um
início do século XX, foi sentida pela população como a im- posicionamento bastante singular do governo do Estado do
posição de um regime heteronômico sobre os meios de admi- Rio Grande do Sul referente à questão da liberdade profis-
nistrar a dor. A automedicação era uma prática sancionada sional da medicina.225 Os médicos, através da revista Archivos
socialmente em uma cultura farmacológica menos tolerante Rio-grandense de medicina, mostravam-se bastante críticos ao
a dor. Isso explica o alto índice de absolvição apresentado na governo. Em 1926, por exemplo, na ocasião do IX Congresso
comunicação intitulada A repressão às drogas em Porto Alegre Médico Brasileiro, houveram muitas manifestações desses pro-
no final dos anos de 1920 realizada no II Colóquio Discente de
Estudos Históricos Latino Americanos ocorrido na Universi- 223.TORCATO, Carlos Eduardo Martins. A repressão às drogas em Porto Alegre no
final dos anos de 1920. II Colóquio Discente de Estudos Históricos Latino-Ameri-
canos (CEHLA) - Conexões Brasil e América Latina. UX1SINOS (São Leopoldo/RS).
221.FOUCAULT, Michael. Nascimento da Biopolítica; Curso no Collège de France
Anais. 20í6b, p.1679-1689.
(1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.454-456.
224.MAUCH, Cláudia, opt. cit., 2017.
222.Sobre esse debate ver: TORCATO, Carlos Eduardo Martins. A proibição das drogai
ontem e hoje: (des)continuidades a partir de um diálogo com Michael Foucaul! 225. WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar, medicina, religião, magia e positivismo
XXVTII Simpósio Nacional de História - Lugares dos Historiadores: Velhos e Noves na republica rio-granden.se (1389-1928). Santa Maria / Bauru, SP: UFSM / EDUSC
Desafios. Florianópolis - SC. Anais. 2015, p. 01-13. 1999.
fissionais contra a política liberal vigente no sul. 2 - 6 ío da classe medica com o governo do Estado. Embora
A introdução da questão do controle sobre o tráfico de ainda precise de uma pesquisa mais aprofundada, vários in-
"entorpecentes" na agenda pública gaúcha ocorreu graças dícios apontam que a criação de uma Delegacia especializada
às mudanças que envolveram a polícia e a relação dos go- no combate aos "entorpecentes" esteve entre as mudanças
vernantes com a classe médica. Foi com objetivo de dar uma institucionais promovidas por Getúlio na polícia em 1929. Os
resposta para as constantes críticas que a polícia ia receben- diversos processos-crime encontrados também apontam para
do que o presidente do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas a utilização de "secretas" nas diversas ações policiais contra os
em 1929, reformulou essa instituição e a passou para controle "entorpecentes" em fins da década de 1920.231
estadual, atendendo aos anseios dos antigos intendentes. Se- É dentro desse contexto tardio de repressão ao tráfico de
gundo Monteiro227, essa nova polícia se pretendia mais téc- drogas que apresentarei o último processo-crime para analisar
nica e científica. Santos228, por outro lado, chama a atenção a atuação dos agentes secretos. Em 26 de novembro de 1930
para o importante papel exercido por essa guarda no início estavam de tocaia próximo à Farmácia Caridade dois inspeto-
do golpe que resuitou na Revolução de 1930. res policiais, observando o movimento. Não demorou muito
A presidência estadual de Getúlio Vargas também se ca- para um indivíduo "conhecidíssimo como comprador de co-
racterizou por mudanças na forma de relacionamento com a caína para várias decaídas da Rua Três de Novembro"232, ou
classe médica. Atendendo aos pedidos expressos no Archivos seja, para meretrizes, entrasse na citada farmácia. Foi nessa
Rio-grandense de medicina, revista oficial da Sociedade Médica do ocasião que eles penetraram no estabelecimento e prenderam
Rio Grande do Sul, o governo ampliou o controle sobre o co- os dois farmacêuticos que trabalhavam no local. Foram arrola-
mércio de "entorpecentes". Foram trocadas e publicadas car- das como testemunhas algumas meretrizes que confirmaram
tas com Getúlio Vargas com mútuos elogios graças a um "ato" serem eles famigerados vendedores de cocaína. Contando com
publicado pelo governo garantindo maior empenho no con- o serviço de advogados, o que não era obrigatório na época, foi
trole do comércio dessas substâncias229. Segundo Kummer130, protocolado um pedido de habeas corpus, negado pelo juiz.
esses ofícios representaram um marco da mudança de relacio- Sem êxito, novo pedido foi protocolado, dessa vez para trans-
feri-los da Casa de Correção para o Manicômio Judiciário, ale-
gando que os citados farmacêuticos eram "morfinômanos" e
226.KUMMER, Lizete Oliveira. A medicina social e a liberdade profissional: os médico?
gaúchos na primeira república. Dissertação. (PPG - História / UKRGS), 2002, p 76-79. que precisavam de tratamento médico. Esse pedido foi aceito
227.MONTEIRO, Rejane Penna. A nova polícia: a guarda civil em Porto Alegre (1929- e os dois ficaram nesse estabelecimento até o julgamento no
1938). Dissertação. (PPG - História / PUCRS), 1991, p.46-47.
228.SANTOS, Allysson Arthur Roque. A polícia gaúcha na era vargas (1930-1945); diretri-
zes cientificas s tecnológicas. Dissertação. (PPG - História / PUCRS), 2005, p.89-94.
229.TORCATO, Carlos Eduardo Martins. A Repressão aos "entorpecentes" em Porto 231.TORCATO, Carlos Eduardo Martins. A história das drogas e sua proibição no Bra-
Alegre no Governo de Getúlio Vargas: discurso médico e prática forense, n Simpó- sil: da Colónia à República. Tese. (Programa de Pós-Graduação em História Social/
sio Nacional de História do Crime, Polícia e Justiça Criminal. Universidade Federal Universidade de São Paulo), 2016.
de Uberlândia (URJ). Anais. 17 a 19 de outubro de 2012. 01-15 p. 232.Excerto retirado do Relatório Policial. APERGS. Processo Crime nu 4401, movido
230.KUMMER, Lizete Oliveira, op. cit., p.85. contra João Marques Pereira e Pedro Carriconde.
Tribunal do Júri, quando foram absolvidos. percebe, portanto, é que a polícia inverte os papéis, pois ao in-
Para nosso propósito, mais importante são as coloca- vés de perseguir os contraventores, seguindo seus passos, ela
ções da peça de Defesa e de um curioso documento anexado faz o contrário; facilita o contraventor para prendê-lo através
pelo advogado dos dois farmacêuticos. Trata-se do panfleto de uma encenação.233
intitulado As falhas ao nosso aparelhamento policial: um pouco Essa longa descrição crítica dos procedimentos poli-
de inquisição, um dedo de sherlockismo e muita aparência... para o ciais da polícia gaúcha sugere que o recrutamento de indiví-
chefe apreciar e o público aplaudir. Segundo esse documento, os duos para provocar crimes e flagrantes não pode se restringir
vendedores de cocaína estão em todos os recantos da cidade a uma amistosa relação entre policiais, ex-policiais e pessoas
e nem mesmo as autoridades são capazes de contê-los porque que vivem nas margens da sociedade. Igual à polícia de São
o aparelhamento policial é insuficiente. As técnicas de inves- Paulo, no caso de Diomero de Oliveira, descrito acima, tam-
tigação não evoluem, continuam as mesmas de trinta anos bém em Porto Alegre a repressão aos "entorpecentes" podia
atrás. "No corpo de investigadores, ultimamente criado, só "engajar" viciados para provocar flagrantes. A forma de fazê-
tem ingresso indivíduos pouco recomendáveis, quase anal- -los aderir à causa policial pode não envolver ganhos mate-
fabetos, e que não possuem a mais leve noção do cargo que riais ou a possibilidade de alistamento na corporação policial,
desempenham". Incapazes de investigar e prender viciados e e sim simplesmente uma forma de garantir a integridade físi-
vendedores de entorpecentes, os inspetores policiais utilizam ca do colaborador.
outros meios para mostrar trabalho. Eles andam pela cidade Esse Capítulo procurou apresentar e sistematizar algu-
e recolhem a l1 Delegacia Auxiliar algum viciado, "um des- mas evidências esparsas recolhidas ao longo de uma trajetó-
ses tantos infelizes que pupulam (sic) pela cidade". Depois de ria de pesquisa em torno da repressão aos jogos ilícitos e a
interrogado por mais de uma hora, perguntam para o infeliz venda irregular de "entorpecentes". Embora ainda inexistam
quem é o seu fornecedor. Para convencê-lo a falar, os poli- pesquisas que tratem exclusivamente desses agentes secretos,
ciais apelam para ameaças, dizendo "que será esbordoado e também foram adicionadas nessa reflexão algumas reflexões
colocado no xadrez junto corn as ratazanas. Sobre esse lugar, pontuais feitas por trabalhos inseridos no campo da História
o médico legista da polícia declara que as pessoas ali encarce- da Polícia. A natureza da atividade dos agentes secretos di-
radas são capazes de morrer, pois não existe entrada de sol". ficulta muito a obtenção de dados capazes de problematizar
Com todos esses argumentos, o viciado resolve colaborar; a a atuação desses curiosos personagens policiais. Apesar des-
polícia dá 20$000 e pede para ele ir até o local da compra; sas dificuldades, foi possível mostrar nos dados apresenta-
os policiais ficam de tocaia e tão logo é efetuado o negócio o dos que eles eram usados para a execução de "serviços espe-
flagrante é realizado, a polícia faz a revista no local e o ven- ciais", como meio de obter informações sobre os crimes, para
dedor é preso. No outro dia os jornais aparecem repletos de completar a tropa regular no caso das polícias ostensivas e,
elogios às autoridades competentes, com vivas exaltações à
233. Anexo da peça de defesa- APERGS. Processo-crime nu 4401.
campanha contra a venda clandestina de "tóxicos". O que se
190

CARNEIRO, 8eat;riz H. S. A vertigem dos venenos elegantes,


até mesmo, como meio de intimidar farmacêutico? e outro
pissertação. (PFG-História / PUCSP), 1993.
profissionais da saúde com objetivo de diminuir o comércio
ilegal de substâncias "entorpecentes". Embora muitos dês FONSECA, Cuido. O submundo dos tóxicos em São Paulo:
sés serviços fossem pagos, a relação íntima que alguns des- séculos XVIII, XIX e XX. São Paulo: Resenha Tributária, 1994.
ses agentes sociais tinham com a criminalidade as vezes os
faziam alvo de intimidações por parte das autoridades poli- FOUCAULT, Michael. Nascimento da Biopolítica: Curso no
Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes,
ciais, fazendo que seus serviços se tornassem uma forma de
2008.
evitar agressões e punições por parte da polícia. Além disso
as suas atividades anteriores variavam bastante, podendo KUMMER, Lizete Oliveira. A medicina social e a liberdade
ser desde antigos empregados da polícia até criminosos com profissional: os médicos gaúchos na primeira república.
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O CONSORCIO DO CRIME: ESTADO E
PRÁTICAS ILEGAIS LM ALAGOAS: (1975-
2008F4

Autoritarismo real ou democracia violenta?

Este artigo analisa a atuação das gangues militares em


Alagoas entre as décadas de 80 e 90, como um legado das
práticas autoritárias no país ainda persistentes. Contrapon-
do-se às análises historiográficas sobre o período republica-
no, que discutem o processo de ruptura do autoritarismo e
a consolidação de uma nova democracia no país pós regime
militar enquanto uma transição democrática, minimizando as
'continuidades' na nova distribuição de poder político entre
as elites, percebemos a manutenção de estruturas de domina-
ção autoritárias vigentes em práticas ilegais na manutenção
de poder político. Pensar o processo de transição democrático
no país é perceber também os legados persistentes do autori-
tarismo militar, enquanto elementos não distoantes da cuíru-
ra política democrática brasileira. Assim, "o que significa, para.
uma nova democracia, herder do anterior regime autoritário uma
parte significativa de sua classe política?" (COSTA PINTO, A.
C. & MARTINHO, F. C., 2013, p.21). Neste aspecto, COSTA

234.0 presente artigo é resultado do Pro]t>to de Pesquisa financiado pela Fundação de


Amparo a Pesquisa do estado de Alagoas - FAPEAL - intitulado: Práticas autoritá-
rias' as gangues militares em Alagoas (1980-2008). Aprovado em 2016.
235.Professora Adjunta do curso de História da Universidade Federal de Alagoas, coor-
denadora do Grupo de Pesquisa: História social do crime - CNPq, coordenadora e
autora da Coletânea do Grupo de Pesquisa HSC: Discere Critninum.
P[\'TO (2013) faz uma reflexão contundente sobre as 'tran-
sições pactuadas' 236 e os inalterados privilégios políticos em Apostos teóricos: ou os estados Latino Americanos viveram
seus domínios de poder nos tipos de transição democrática u ma democracia que., fragilizou-se pelo passado autoritário

pós regime autoritário. do regime militar, impondo uma herança histórica para as
Levando-se em conta nossa herança colonial, a aliança democracias latino-americanas. E, sendo assim, a percepção
entre o autoritarismo e o coorporativismo torna-se uma práti- de um passado democrático e o conflito com o legado militar
ca de longa duração presente na história da estrutura política estão no bojo das questões para entender a fragilidade das
da América Latina. O coorporativismo latino-americano, he- democracias atuais na América Latina. De outro lado, a ar-
rança de uma tradição ibérica, não apenas caracterizou todo gumentação c se realmente houve um regime democrático na
o sistema de dominação colonial, quer seja da ocupação mi- América Latina, que suplantou a herança colonial do conser-
litar dos territórios conquistados, quer seja na dinâmica de vadorismo, do patrimonialismo e do corporativismo. Neste
uma burocracia colonial. Mas, fundamentalmente propiciou sentido, o período militar apenas recrudesceu um regime au-
a emergência de elites políticas conservadoras, que ao longo toritário frente às mudanças sociais e económicas pelo siste-
da história mativeram suas estruturas de dominação (WIAR- ma capitalista238. Qual democracia então? Autores que defen-
DA, 2004). Estas elites políticas conservadoras mantém uma dem a transição entendem a fragilidade da nova democracia
estrutura de dominação ao longo da história, cuja prática po- e os impecilhos para sua consolidação, conformando-se as te-
lítica se caracteriza pelo clientelismo, particularismo, patri- ses de O'Donnell, G. de uma transição do autoritarismo para
monialismo e pelo abuso de poder. Dentre as estratégias de a democracia239.
dominação, o uso da violência e da força policial faz parte da Analisar a transição democrática não é exatamente o
prática de poder, contrapondo-se ou não a democracia. Neste objetivo deste trabalho. Entretanto, como não ir à origem do
aspecto, Alagoas pode ser entendida como um complexo con- problema indagando sobre a o processo de democratização na
traditório do indicativo autoritário permanente. América Latina e no Brasil? A existência de uma contradição
Recentemente alguns autores tem feito a inquietante
pergunta sobre as democracias na América Latina e o con-
238.WIARDA, H. Authoritarianism and corporatism in Latin America - Revisted.
tinuo e permanente repertório da violência política137. As Florida, 2004. Também, COSTA PINTO, A. & MORLINO, L. Dealing with the
Legacy of Authoritarianism. New York, 2011; KTrSCHELT, H. & WTLKINSON, S.
Patrons, clientes and policies: patterns os democracy accountability ans political
compettion. Cambridge University Press, 2009; KITSCHELT, H. & WILKINSON,
236.A esse respeito ver: PINTO, A. C. & MARTINHO, F. C. "O passado autoritário e as Steven. Patrons, Clients, and Policies: pattems os democractic accounlabilily and
democracias da Europa do Sul: uma introdução". In.: O passado que não passa. Rio política! competition. New York: Cambridge University Press, 2007; BURT, Jo-Ma-
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. Pp. 17-45. rie. Political violence and the authoritarian state in Peru. Ingland, 20CS; TALA-
CIOS, M. Between legitimacy and violence: a history of Colômbia (1875-2002).
237.ARIAS, Enrique Dcsmond e GOLDSTEIN, Daniel, (orgs). Violent Democracies in
Duke University Press, 2006.
Latin America. London: Duke University Press, 2010. Também, KALMANOVVTEC-
KI, L. 'Tolice, Politics, and repression in Modem Argentina". In.: AGUIRRE, Ca; 239.Ver COSTA PINTO, A. & MARTINHO, Francisco. O passado que não passa: a
los & BUTFINGTON, Robert. Reconstructing Criminality in Latin America. EUA, sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina. São Paulo: Civiliza-
2000. Pp.: 195-218. ção Brasileira, 2013.
198

entre o ideal democrático e a permanência da insegurança nu. A permanente insegurança pública e o uso multiplu-
blica e do aumento da criminalidade no Brasil constata-se pelos ra l da violência pelo estado em quanto experiência social e

estudos sobre a polícia, conduta policial e segurança pública política foi analisada em artigo recente como um fenómeno
são recentes no país 24G . Uma temática que tem se concentrado caracterizado como,
mais num período histórico da repressão militar, merecendo
'patologia política autoritária', decorrente do uso do
outros enfoques e questionamentos. Neste sentido, nossa aná- terror negociado e ou arbitrário das gangues mili-
lise perpassa o contexto histórico da transição democrática no tares da instituição de segurança pública no estado
de Alagoas entre 1975 à 2008. Ou seja, trata-se de um
país, perfazendo uma problemática do tempo presente. Urna 'pathos' autoritário idiossincrático, que se mantém
situação contraditaria por si só, visto que ao mesmo tempo que pelo enfraquecimento do aparato público estatal
pelo uso predatório das elites políticas locais244.
falamos no fim das formas ditatoriais militares, presenciamos
a continuidade das mesmas estruturas e práticas autoritárias,
exemplarmente retratas na sociedade alagoana. Alagoas se torna um dos exemplo mais contundentes
Alguns estudos sobre comportamento policial perce- de práticas políticas advindas de uma herança colonial, ca-
bem as gangues militares como um tipo de desvio de conduta racterizando as elites agrárias do açúcar aos procedimentos
policial241. Outros, porém, entendem este tipo de ação violenta políticos conservadores e autoritários.
como uma fragilidade ou uma 'falha' do estado democrático242.
Entretanto, para a América Latina, o uso da força policial e da O minotauro alagoano.
violência são fundamentais no sistema politico contemporâ-
neo243. O que oportuniza a existência de grupos de extermínio Na história do nordeste, especialmente Alagoas, a
e de justiceiros militares na conformação das redes clíenteía- economia do açúcar empreendeu um sistema de produção
res, que sustentam as elites políticas locais e seus interesses no combinando elementos da herança colonial ibérica à dinâ-
poder. Isto torna visível a discrepância entre a democracia e mica produtiva do capitalismo comercial incipiente. Neste
um sistema politico autoritário, bem como a ausência modelos processo histórico as elites agrárias reconciliaram elementos
teóricos que discutam o fenómeno. Ao mesmo tempo, a pro- paradoxais num mesmo complexo sistemático produtivo, or-
blematização sobre a transição e consolidação da nova demo- ganizando a seu modo repositórios adaptáveis à dinâmica da
cracia na América Latina se faz cada vez mais urgente. acumulação do Capital245. Neste sentido, a herança barroca
e ibérica definiu a história política e a sociedade alagoana,
240.BRETAS, M & ROSEMBERG, A. "A história da polícia no Brasil: balanço e perspec-
tivas". In.: Revista Topoi. Rio de Janeiro, v. 14, n* 26. 2013. Pp: 162-173.
241.PUNCH, Maurice. Folice Corniption: deviance, accountability and refonn in 244.5ILVA, Célia Nonata. Op. Cit.
policing. Britísh: Willan Publishing, 2009. 245. A esse respeito ver: STERN, Steve. "Feudalism, Capitalism, and the World-System
242. Ver ÁRIAS, E. D. & GOLDSTEIN, D. "Violent PLuralism". In.; Violent democracies in the perspective of Latin America and the Caribbean". In.: COOPER, F.; ISAAC-
in Latin America. London: Duke University Press, 2010. Pp.: 01-34. MAN, A, MALLON, F. ROSEBERRY, W. STERN, S. Confronting Historical Para-
243.1dem, ibidem. digms. London, 1993. Pp.: 23-83.
20:

através das práticas políticas patrimonialistas, clientelistas ', violentos que não foram transformados com a implantação
coorporativistas ao inevitável processo de transformação eco á República, nem tão pouco por um projeto de civilização e
nômica. Uma elite agrária conservadora, avessa e resistente ?;'- nação, trazidos pela modernidade. Assim, vate ressaltar que
aos processos de transformação social da modernidade e dos í* este 'habitus' viril é um elemento fundamental da cultura da
iV
alcances democráticos da modernização, mantém-se no ÍOPO C honra em Alagoas, mesmo com as alternâncias de poder polí-
político por procedimentos autoritários e violentos, que mar- '-" tico no estado. Com isto,
caram a história política de Alagoas.
O exclusivo açucareiro relacionou-se intimamente
A conservação desta estrutura de dominação agre- à população agraria do Nordeste, condicionou as
gou outros valores modernos posteriormente, sem contudo linhas de sua formação, as diretrizes de seu desen-
perder a essência de uma tradição regional. Nos estados do volvimento; condicionou também seu meio de vida,
seu padrão social, suas contingências económicas.
Nordeste, de modo especifico, em Alagoas percebemos a per- Domínio quase absoluto que, desde cedo, sujeitou a
manência desta tradição, caracterizada por uma sociedade população da área açucareira do Nordeste, este im-
\. plantado pela monocultura da cana.24"
arcaica e agrária, originada das primeiras povoações trazidas
pelos currais de gado, com o vaqueiro e sua forma rústica de
viver2*6; bem como dos engenhos, que como unidades produ- As dinâmicas burocráticas não revelaram nenhum
tivas, sistematizou a dinâmica da ocidentalização. Assim, o í processo de ruptura efetiva com as velhas práticas políticas.
processo de colonização portuguesa não deve ser entendido ; Diégues Jr. (2012) acentua o alto índice de analfabetismo, as
unicamente como a implantação de um sistema de 'planta- í condições sociais de vida miseráveis e a fragilidade económi-
tion', estabelecendo-se no nordeste brasileiro enquanto em- ca e o empobrecimento de Alagoas associado à dinâmica do
preendimento comercial do monopólio do açúcar, base para a " modo de produção açucareiro. Uma economia que se sobre-
economia capitalista comercial da época. Mas, principalmen- / pôs no século XIX por arranjos de poder e interesses locais,
te pela formação de uma comunidade política que afirmava ^ determinando um ciclo económico, bem como suas famílias e
seu poder no mando, mantendo uma burocracia colonial fun- ; sua cultura política de poder e domínio, com intensa ligação
dada no patrimonialísmo, coorporativismo e clientelismo. > ao latifúndio e a monocultura do cultivo da cana-de-açúcar.
Esta estrutura de poder consolidou as redes de poder loca] Este ciclo económico preponderante manterá uma cultura
e as relações de dominação, calcadas numa dinâmica de con- política arcaica e agrária, perpetuando-se até o século XXI,
luios, capangagem e mandonismo que marcam as estruturas juntamente com suas famílias tradicionais e o seu jogo políti-
políticas ainda hoje. * co autoritário. A caracterização das elites agrárias açucareiras
Definiu também um modo de viver rústico, com traços identifica-se claramente ao cenário formulado por Barrington
Moore Jr. (2010), quanto à ausência de estruturas democráti-
246. A esse respeito ver: LINDOSO, D. O Grande Sertão: os currais de boi e os índios
de corso. Brasília; Fundação Astrojildo Pereira, 2011. Também, VIANNA, Urbina
Bandeirantes e sertanistas baianos. São Paulo, Coleçâo Brasiliana, 1933. 247.1dem, Ibidom. P.: 157.
202

cãs e projctos de inclusão social, donde tsrio, as e ^ te£ Alagoanas tentam resolver o problema social
r barganhas políticas feitas com o Senado Federal, através
por natureza não são harmoniosos nem polir,
nem tem inclinações sociais. A única maneira d
Âe programas assistencialistas. Xeste sentido, Cabral (2005)
frear suas intermináveis disputas e fazê-los chco». áao analisar os Planos de Desenvolvimento para o estado de
a um acordo é por meio de pactos. Dado o eonlc™.
6tjismo , Alagoas revela que:
natural dos homens os pactos são construções artifi- ij.
ciais, da mesma forma que a comunidade ou o Esta- Os Estados brasileiros, principalmente os mais po-
do erigido sobre eles.2J8
bres como Alagoas, sempre dependeram dos recur-
sos federais para a sua sobreviwncia e desenvolvi-
mento (...). No caso particular de Alagoas, um Estado
Esta estrutura de dominação autoritária, mantida ain- caracterizado pela dependência de poucas ativida-
da pelas famílias tradicionais alagoanas, serve-se do estado des económicas, como a cana de açúcar e a pecuária,
como aves de rapina, tanto na utilização do braço armado com uma estrutura fundiária em que predomina até
hoje uma forte concentração de terras nas mãos de
da polícia para manter o domínio dos territórios políticos poucas famílias, as estratégias de desenvolvimento
quanto dos benefícios públicos destinados à sociedade. Tal l foram sempre reflexo de projetos nacionais24',
í.'
comportamento político continua sendo eficaz, engendrando
formas autoritárias de poder no campo, posto que esse mode- ; Portanto, as elites agrárias alagoanas ao reelaborarem
lo, - senão em todas as suas características, mas ern boa parte ,seu jogo de poder autoritário, adverso ao capitalismo liberal
delas -, ainda é facilmente detectável nas áreas rurais do esta- í|eas formas democráticas da modernidade, criam novas teias
do alagoano: nas suas usinas e fazendas. •*e redes de condicionamento moral, encarcerando não apenas
Este tipo de poder, sustentado pelas elites agrárias, "*as estruturas de classes, como a massa de trabalhadores aos
avesso ao moderno e a urbanidade, resiste ao capitalismo li- Jepaços de submissão e silêncio. Reduzem as margens de mu-
beral e as suas mudanças estruturais no poder mais demo- |
i*,
danças sociais e culturais capazes de romper com conceito de
crático. Os custos para a população são imensos e incalcula /mundo e de relações sociais tradicionais. Estas formas autori-
veis, somando-se a pobreza quase absoluta da população, as tárias de poder são traduzidas nas cifras dos extermínios de
formas brutais de alienação pela baixíssima escolaridade e o homens e mulheres, dos homicídios não contabilizados pelos
uso do terror no campo, implementado pelas quadrilhas ar- órgãos públicos, e pela costumeira prática do pistoleirismo
madas de políticos locais. Ressalte-se ainda a inexistência de político que ainda ceifam famílias inteiras.
uma economia de mercado, um projeto de industrialização, Como foi visto, a herança colonial e o valor arcaico
que sustente uma dinâmica social de classes e suas formas que identificam o comportamento político das elites alagoa-
de trabalho. Na manutenção deste projeto arcaico e autori- nas mantém e conservam os valores tradicionais numa busca

248.MORSE, Richard. O espelho de Próspero: cultura e ideias nas Américas. São Paula 249.CABRAL, Luiz António Palmeira. Planos de Desenvolvimento de Alagoas: 1960-
Cia. Das Letras, 2000. P.: 61. 2000. Maceió: Edufal, 2005. P. 23.
pela sobrevivência do regionalismo conservador. A resistên ?j «brigan do o sctorsucroatcooleiro à produção voltada ao Mer-
cia aos processos de mudanças e transformações moderno :'., _ a do externo. Nesta medida, os interesses agrários alagoanos
que poderiam contribuir para a ruptura de uma conduta e HP ;• .pantiveram-se estreitos à criação do PROÁLCOOL criado
uma moral conservadora, é baseada ainda na sobrevivência -pelo governo em 1975, proporcionando adaptações necessá-
do barroquismo provinciano. A vigência deste arcaísmo im- ' rias no campo como a concentração do latifúndio na busca
pede que o processo civilizador redefina as relações sociais p -," por mais das terras de produção do álcool, e a impíementa-
as formas de reciprocidade entre os indivíduos, bem corno a " cão de mecanismo tecnológicos no carnpo que favorecessem
in terna liza cão das Leis e o uso do monopólio legal da violên- a alta produtividade 230 . Neste mesmo tempo, os movimentos
cia pelo estado de Direito. No retrocesso destes acontecimen- sociais no campo expandem-se com propostas de melhorias
tos existe apenas a usurpação do estado e o fortalecimento sociais, agregando trabalhadores rurais descontentes com
do poder de mando das elites políticas locais, sustentado por .- a situação de vida no espaço rural. A CPT terá uma grande
quadrilhas militares e pistoleiros de elite. participação nas formas de contenção política no período,
Esta dinâmica conservadora e arcaica, mantida pelas ; motivando a massa de trabalhadores rurais em direção à luta
elites agrárias, condicionam Alagoas a um espaço atemporal, • pela posse da terra. Certamente, o espaço de confronto criado
em que os níveis de expectativas de mudanças se reduzem ,f entre os interesses do capital e a proposta transformadora das
cada vez mais pela baixa ou nula experiência social de mo- <s lideranças da CPT criaram uma dinâmica de conflito, que ain-
vimentação política ou de contenção, mantidas por um pro- :~ da se perpetua no contexto histórico-social do país.

cesso de alienação social pela prática arbitrária do terror per- Em Alagoas a criação da CPT na década de 80 promo-
petrada pelas milícas e grupos de extermínio. A conservação veu mudanças até então idealizadas pelos trabalhadores ru-
deste ethos 'arcaico alagoano' reduz o estado e seu aparelho rais. Dado um contexto social de opressão e violência ao lon-
ideológico aos interesses predatórios e usurpadores das elites • go da estrutura agrária da produção do açúcar, as lideranças
agrárias, engendrando formas autoritárias no campo e redu- leigas e religiosas que se propunham como contenção desta
zindo os níveis de expectative de mudança da vida urbana, dominação criaram o seu revés nas formas de recrudescimen-
submetendo a sociedade aos seus vícios privados. to do regime autoritário. As lideranças irão sentir o peso des-
Uma sociedade onde os direitos individuais e a liber- ta estrutura arcaica com os números de homicídios no campo
dade política foram progressivamente destruídos, sufoca- e as formas de repressálias do poder político pelos braços ar-
dos pelo enaltecimento de um regionalismo mantido apenas mados da polícia local, principalmente localizados em Porto
como propaganda ilusória das elites locais. Calvo, Campestre e Novo Lino. Estes municípios localizados
Neste viés, o contexto histórico mais nítido e conturba- no Litoral Norte e parte da Mata Norte destacaram-se como
do foi marcado tanto pela circunstância do regime militar que pólos de violência no estado durante o período de 1986/93,
se expandiu para a América Latina, como pelas investidas do
Mercado internacional e a crise do petróleo na década de 70, 250.Ver: ALBUQUERQUE, Cícero. Cana, casa e poder. Maceió: Edufal, 2009.
206

com ocorrência de inúmeros casos de morte e ameaças ao Boa Esperança na Usina Santana em Porto Calvo, onde se
líderes dos assentamentos, bern como as famílias dos assen utilizando de forma da Lei (art. 172) o juiz autoriza a "soli-
tados ou acampados pela atuação de pistoleiros e ganeu e c citação da força pública, para promover arrombamento, der-
fardadas na região. A exemplo, o caso que ocorreu no munid rubada e remoção para o depósito público de todos os bens
pio de Porto Calvo, onde aproximadamente 300 famílias q ue eobjetos porventura encontrados nos locais invadidos."^ As
ocuparam uma fazenda, foram vitimas da ação de um grun 0 reintegrações em Alagoas são marcadas ainda pela ação da
de 40 pistoleiros fortemente armados que aterrorizaram du- violência, como destruições de roçados e queima de barra-
rante uma hora os acampados.25' cos pela ação da Polícia Militar do estado e do batalhão de
As interpretações das leis e as determinações do poder choque armados. Também, por uma campanha midiática de
judiciário, colocando o direito à propriedade acima do direito criminalização dos movimentos sociais.
à vida, em sua maioria corroboram e sustentam as ações des- A união entre usineiros, elites políticas e a polícia em
tes grupos, que não hesitam em colocar o aparato público em Alagoas é uma experiência histórica, que tem demonstrado
favor dos grandes proprietários de terras e contra os trabalha- sua longevidade pela permanência das relações de domina-
dores. A frequência dos crimes cometidos pelos policiais e pe- ção autoritárias mantidas por uma estrutura política agrária,
las milícias privadas praticados com a certeza da impunidade merecendo uma análise cuidadosa das milícias e dos grupos
em Alagoas, como os ocorridos em Campestre na década de de extermínio deste braço armado.
1990, revelam não apenas uma estrutura de poder agrária
forte, bem corno uma ausência de análises para os conflitos Democracia violenta ou o 'palhas' autoritário.
rurais que ainda permanecem. Entre os casos encontrados ern
Campestre ocorreu o sepultamento de um trabalhador vivo As origens motivacionais dos grupos de extermínio em
pela PM local252, e o caso do trabalhador João José que mesmo Alagoas estão alicerçadas na dinâmica deste repertório po-
depois de três meses morto o corpo permaneceu exposto num lítico conservador, registradas contundentemente durante a
matagal sem que nenhuma medida tivesse sido adotada.253 segunda metade do século XX e começo do século XXI, pelos
A utilização da força policial em favor dos interesses inúmeros crimes efetuados pelas ações de quadrilhas milita-
do latifúndio é visível também nos cumprimentos dos man- res, cuja atuação basicamente advinha das facções criminosas
dados de reintegração de posse. Foi o que observamos no conhecidas como a Gangue Fardada e a Gangue dos Ninjas.
documento de liminar de reintegração de posse do Engenho A primeira atuava sob o comando do Tenente coronel Caval-
cante que, aliado à figuras políticas locais, alguns empresários
e policiais militares e civis, comandou o extermínio de vários
251 .Arquivo Eclesiástico de Alagoas. Fundo: Relatórios da CPT.
252. Arquivo Eclesiástico de Alagoas. Fundo: Relatório sobre a violência contra os traba-
lhadores rurais de Alagoas - 1993.
254,Polícia Militar de Alagoas. Centro de Gerenciamento de Crises. Liminar de reinte-
253. Arquivo Eclesiástico de Alagoas. Fundo: Jornais e imprensa alagoana: "Ação de gru-
gração de posse - Engenho Boa Esperança/U sina Santana -Porto Calvo -04/10/2005
pos de extermínios" - reportagem do jornal O Diário 19/12/1993
208

trabalhadores rurais e outro? indivíduos, recrudescendo a A gangue do Bira era composta por 21 oficiais militares
atuação política no estado de Alagoas durante as décadas de e civis259, tais como soldados e cabos, incluindo a participação
80 e 90, além de aperfeiçoar as práticas autoritárias dentro da de alguns militares de Pernambuco. A particularidade deste
instituição policial255. grupo estava no "profissionalismo, requintes de perversidade, trai-
Um dos braços desta gangue estava no sertão alagoano ções e tantas outras crueldades praticadas"™ pelos membros da
representado pelo prefeito de Major Isidoro conhecido corno quadrilha de seus crimes cometidos na zona rural de Alagoas:
'Zé Miguel', considerado o maior articulador de Cavalcante Movo Lino, Campestre, Jundiá, Jacuípe e imediações. Dentre
no sertão. O prefeito de Major Isidoro ficaria conhecido por as ações estão listadas: esquarteja mento das vítimas, torturas,
seus crimes de pistolagem, tráfico de armas e envolvimen- uso do terror, ameaça, roubos, assaltos e crimes de pistolagem.
to no crime organizado256. Outra rede criminosa da Gangue Decretado a prisão dos membros da gangue, misteirosamente
Fardada estava na Mata Norte e Litoral alagoano. Podemos somem de Maceió os militares Felizardo dos Santos (Cicão),
perceber que a quadrilha do Cavalcante dividia-se em várias Gabriel e Everaldo Pereira. Foragidos por mais de 18 anos re-
redes criminosas de subgrupos locais sob o seu comando, e aparecem novamente no cenário de Alagoas depois de presos
que atuavam de maneira articulada em diversos locais do es- em São Paulo, capita!2". Na proporção de tais crimes o coman-
tado de Alagoas, desde o sertão até a Mata Norte, Maceió, do da polícia militar de Alagoas foi caracterizado por ser "o
Porto Calvo, Pindoba, Paripueira, e outros. principal promotor e executor da violência no estado" (MA-
A 'Gangue do B ira', era a grande rede de poder do JELLA, 2006, p. 22) sob a ação das torturas, dos homicídios e do
Coronel Cavalcante na Mata Norte, ficando conhecida pe- terror praticado pelos policiais militares. Pois, "dos 173 assas-
los muitos assassinatos de trabalhadores rurais na região do sinatos regrisírados pela imprensa alagoana em 1974, primeiro
Novo Lino e Campestre na Mata Norte de Alagoas durante ano do governo Suruagy, pelo menos um quinto resuitou do
quase dez anos257. Entre os policiais envolvidos destacam-se: envolvimento de policiais da secretaria de segurança".262
o ex-Tenente coronel Manoel Francisco Cavalcante, conhe- A ação da Gangue Fardada só iria ter fim com a pri-
cido como 'Coronel Cavalcante' {líder do grupo), o tenente são do Coronel Cavalcante e de seus irmãos o major Adelmo
Silva Filho, o cabo Cicero Felizardo (Cicão), o cabo Everaldo Cavalcante e o soldado Marcos Cavalcante em 19982"3. Neste
Pimentel, o cabo Daniel de Oliveira, o cabo Gabriel, os solda-
Ano: 1998. R: 93.
dos militares: Ubirajara José da Silva, conhecido como 'Bira',
259.Tribunal de Justiça de Alagoas. Comarca de Colónia Leopoldina. Processo judicial.
Nal e Laudenor25S. Ano: 1998. P.: 93.
26G.Idem.P.42.Ano:1993.
261 .http://www.alagoas24horas.com.br/781o97/prn-da-gangue-fardada-ficara-preso-
255.Tribuna de Alagoas, 07 de fevereiro de 1998. N. 447. P. C 4. -na-pf/. Acessado em 20 de outubro de 2015.
256.Tribuna de Alagoas, 13 de fevereiro de 1998. P. 10. 262.Tribuna de Alagoas. Suplemento: Alagoas terra da morte. Maceió, 1982. APUD:
257.Arquivo Eclesiástico de Alagoas: CPT de Alagoas - Fundo documental: pasta MAJELLA, G. Execuções Sumárias e Grupos de Extermínio em Alagoas. Edufal:
dos relatórios de atividades, ano: 1993-1996. Maceió, 2006. P.: 58.
258.Tribunal de Justiça de Alagoas. Comarca de Colónia Leopoldina. Processo judicial. 2ó3.Jornal Tribuna de Alagoas, 17 de janeiro de 1998. N. 429. P.12.
210

mesmo ano vários cemitério? clandestinos foram descobert O 'íiribitus'2''8 des>a prática autoritária, aprimorada
no estado de Alagoas, usados como 'queima de arquivo' nei Coronel Cavalcante, ficaria intatacto no aparelho militar
t
quadrilha 2 6 4 : s,,OIno experiência histórica recorrente. Um processo de cor-

!v nipção sistematizado sob a forma de extorçÕes e pagamentos,


Os cemitérios clandestinos que alcançaram maior
i sustentado em barganhas políticas e cooperação com alguns
repercussões em Alagoas foram localizados em én.,
ca diferentes e tiveram significados políticos qn e ^segmentos do crime organizado. A esse respeito podemos
dearam processos de denúncias. O primeiro foi o d •^constatar que a prática dos grupos de extermínio sempre
Tabuleiro dos Martins, encontrado onde foi constn
; . se mantiveram no estado. Assim, entre os anos de 2001 a
ida a fábrica de refrigerantes da coca-cola (Jornal de
Alagoas, 02\09\1977. P.08), e os outros (...) na ci- 2002 foram constatadas duas chacinas no estado de Alago-
dade de Pindoba (Gazeta de Alagoas, 22\03'\i •. as/ praticadas por gangues de militares, conhecida como a
Esses cemitérios, encontrados durante o ano de 1993
eram utilizados peio grupo de extermínio que ficou :", 'Gangue dos Ninjas' de União.
conhecido como a Cangue Fardada, por str maiori- Em 2001 dois jovens foram mortos pelos 'Ninjas' de
tariamente composto de policiais militares de várias
':, :- União no centro comercial da cidade de União dos Palma-
patentes e policiais civis, inclusive com a participa-
ção de um delegado2"5. .?.' rés. Em 2002 outros 4 jovens foram executados pela mesma
.:;gangue formada por militares, os 'Ninjas de União'269, ou
Sobre esta prática rotineira dos policiais militares, a im- í também conhecidos como 'os justiceiros de União'. Esta gan-
prensa alagoana noticiou várias ações criminosas da Cangue ? gue atuava desde 2001 tanto na cidade de Maceió, na chacina
Fardada durante as décadas de 70 à 80, inclusive a denúncia \o Conjunto Margarida Procópio, quanto em União, e seus
da ação dos grupos de extermínio e de execuções sumárias integrantes identificados são: Soldado Eraldo Tadeu Vieira
realizadas pela orientação do Coronel Cavalcante260. Além í dos Santos, Soldado Fernando Gomes de Lima Filho, Soldado
disso, atribui-se a Gangue Fardada os mais diversos crimes: Sandro Jorge da Silva, Cabo Valdir, Tenente António Batista
assassinato, sequestro, extorsão, assalto a banco, roubo de • Neto, entre outros.270 Uma característica deste grupo era seu
cargas, entre outros delitos267. Contudo, são os 'crimes de en- lema de 'limpeza social', qual podemos completar: étnica e
comenda', executados por policiais como forma de repressão racial, visto que eram jovens de periferia, pobres e negros271.
a quem tentasse impedir os interesses dos mandantes locais, No quadro geral da estatística criminal em Alago-
que mais repercutiram no estado. as, as áreas de Maceió, União dos Palmares, Novo Lino,

264. Jornal Tribuna de Alagoas, 07 de feveiro de 1998. N. 447. P. 12; O Jornal, 28 de feve-
reiro de 1998. N. 1039. R: 01. 268.Ver BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Berrrand Brasil, 2001.
265.MAJELLA, G. Execuções Sumárias e Grupos de Extermínio em Alagoas. Eduía! 269.hrrp://www.me!homoticia.com.br/indev/?head=noticia.mht&node=mn55293. Aces-
Maceió, 2006. P.: 40 sado em 20 de outubro de 2015.
266-Jornal Tribuna de Alagoas, 07 de fevereiro de 1998. N. 447. P. C 12. 270.CÍ.: Jornal: http://cadaminuto.com.br. Data: 26/06/2011. Acessado: 30/10/2014.
267.Jornal Tribuna de Alagoas, 17 de janeiro de 1998. P, 12; Jornal 'O Jornal', 15dejariei- 271.http://gazetaweb.globo.com/gazetadealagoas/noticia.php?c=224559. Acessado em
ro de 1998. N. 1003. P.08. 21 de outubro de 2015.
Campestre, J o a q u i m tornes e Major Isidoro são considera- reduzindo a instituição policial a uni instrumento bruto das
das como 'zonas quentes', onde a maioria dos assassinatos elites políticas criminosas. Neste sentido, Alagoas reduz os
foram encomendados contra os trabalhadores rurais e a níveis de mobilização social pela ausência de oposição e dos
população pobre do local, jovens e trabalhadores, durante espaços de contenção política. As gangues militares são par-
as décadas de 80 e 90. Estas atividades criminosas foram tes vitais dessa engenharia de poder sistemática na conserva-
relatadas pela CPT de Alagoas272. Entretanto, a formação ção deste ethos 'autoritário alagoano'.
da violência no estado não advém apenas de uma reali-
dade sócio- económica, que caracteriza Alagoas como um Conclusão.
dos estados rnais pobres do país. Uma pobreza que não é
apenas económica. O uso de uma violência sistematizada, visível corno
A estrutura agrária e a política autoritária fomentam a experiência histórica pela prática do terror, e que pode ser
concentração do desenvolvimento económico apenas ao âm- identificada pelas gangues militares estão adequadas à di-
bito do interesse sucro-alcooleiro das 20 famílias usineiras do nâmica de uma estrutura de dominação autoritária, opor-
estado, reduzindo as margens da sobrevivência da população tunizando o surgimento de 'condutas criminais' no meio
pobre local. Com isto, Alagoas ainda permanece como um militar. Estas gangues militares, portanto, seriam mani-
dos maiores importadores de alimentos necessários ao seu festações sociais derivadas da permanência das relações
abastecimento interno, com alto índice de analfabetismo e sociais de dominação inseridas na dinâmica da domina-
subnutrição, que caracteriza a população pobre. Ainda, ção autoritária alagoana, calcada no mandonismo local, na
formação de redes clientelares e na troca de favores entre a
A combinação de violência política e policial tem
sido utilizada pelas elites para conseguir a manu-
política local e os militares (coronéis).
tenção do controle do poder político, fragilízando, Esta estrutura de poder autoritário ainda permanece
portanto, as instituições do Estado, quando não numa realidade contemporânea que lhe é completamen-
subjugando-as a determinações de governos auto-
ritários.^
te favorável no estado. Donde se deduz que as investidas
de modernização política para o estado foram superficiais
Neste ambiente, as relações sociais de dominação, ex- ou ausentes. As gangues militares são, na verdade, o ter-
pressão do poder das elites locais pela manutenção de uma mómetro do vigor de uma dominação por parte das elites
cultura política autoritária, condiciona Alagoas a um lugar agrárias, cuja operacionalidade política autoritária ainda
de manifestações extremas e perversas da agência de polícia. teima em permanecer no mundo contemporâneo.
Neste sentido, a perpetuação desta prática política
autoritária corresponde a um modo de viver, um ideário de
272. Arquivo Eclesiástico de Alagoas: CPT de Alagoas - Fundo documental: pasta mundo conflitante com o novo, que tenta manter tudo ao seu
dos relatórios de atividades, ano: 1993-1996.
273.MAJELLA, G. Op.Cit. p.: 21. redor num espectro temporal imóvel, impedindo os avanços
•j
214

da transformação social, entendida como empecilho ao sei REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


domínio político. Isto não quer dizer que o estado não foi n ro
pícío às políticas de modernização realizadas em tempos es- : fontes primárias
parsos. Isto podemos perceber em determinados momentos
da história de Alagoas. Porém, os processos de modernização fontes impressas: Jornais.
técnica, principalmente identificadas no campo e com pro-
}- jornal: http://cadaminuto.com.br. Acessado: 30/10/2014.
jetos da economia usineira não devem ser confundidas com
mudanças na estrutura social como umtodo. Arquivo Eclesiástico de Alagoas: CPT: Fundo - Relatórios
Neste conplexo sistemático de dominação, a propensão de atividades da CPT de Alagoas.
de uma sociedade habituada ao uso do terror tende não ape-
nas ao aumento das cifras criminais, o aumento da violência Jornal Tribuna de Alagoas, 07 de fevereiro de 1998. N. 447. P.
cotidiana e em todos os níveis sociais. Esta banalização da vio- - C 4.
lência cotidiana e o uso do terror institucionalizado propicia í Jorna! Tribuna de Alagoas, 13 de fevereiro de 1998. P. 10.
não apenas um enfraquecimento do estado, mas consequente
enfraquecimento da internalização das Leis por políticas pú- ' Jornal Tribuna de Alagoas, 17 de janeiro de 1998. N. 429.
blicas adequadas, capazes de gerar confiança e credibilidade ,-- P.12.
públicas. Isto se revela no trabalho de Majella (2006) quan-
Jornal Tribuna de Alagoas, 07 de feveiro de 1998. N. 447. P.
do percebe que o estado enquanto instituição burocrática de
12; O Jornal, 28 de fevereiro de 1998. N. 1039. P.: 01.
Alagoas perde sua função política para servir aos interesses
das elites locais, sendo a polícia seu braço crimininoso (MA- Gazeta de Alagoas, 23 de julho de 1999. n. 126. Capa.
JELLA, 2006, p.22). E, a recorrência deste comportamento a
total transformação burocrática em espaços de perversidade. Jornal Tribuna de Alagoas, 07 de fevereiro de 1998. N. 447. P.
O resultado desta experiência histórica revela a presen- C 12.
ça de um 'pathos' autoritário presente nas formas de trans-
Jornal Tribuna de Alagoas, 17 de janeiro de 1998. P.12.
gressão e nas ações perversas e arbitrárias da política local,
configurando a burocracia estatal numa mistura de cinismos, Jornal 'O Jornal', 15 de janeiro de 1998. N. 1003. P. 08.
conluios e lealdades que se extendem ao aparato militar.
1.2. Fontes jurídicas:

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; Leopoldina. Processo judicial. Ano: 1998.
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FLORO GOMES NOVAES, "VINGADOR DAS
ALAGOAS": UM ESTUDO DE CASO DA
VIOLÊNCIA NO SERTÃO.
l ictor Carneiro Lima~'

Introdução

E possível que quando usados os verbetes "violência" e


"sertão" em qualquer escrito, seja ele académico ou diletante,
venha a mente do leitor outros verbetes frequentes como os
de "cangaço", "jagunço", "capangas" e até outros distintos
referentes à personagens da nossa história, como "Lampião".
Porém essa enciclopédia histórica ilustrativa abarca em suas
categorias, figuras e conceitos de um período ademais sim-
bolicamente finalizado em 1938 com a morte de Virgutino
Ferreira (1898-1938) e seu bando na Grota do Angicos - SE.
Evidentemente esse fenómeno endémico que despontou nos
sertões de quase todos os Estados nordestinos não expirou
naquela data, reverberações continuaram, outros bandos, no-
tadamente o acanhado bando do famigerado Corisco e Dada,
sua esposa, ainda lutaram por um tempo na ânsia de susten-
tar a permanência do costume no qual foram nutridos, e na
azarada volição de vingar a morte do "capitão" Virgulino.
Contudo os tiros dos seus revolveres, seus e de outros bandos
rarefeitos se configurariam na metáfora do canto do cisne,
que após seu último entoar, morreu.

274.Mestrandoem História Social pela Universidade Federal de Alagoas, PPGH. Mem-


bro da História do Grupo de Pesquisa História Social do Crime. Pesquisador sobre
a violência nos sertões alagoano e pernambucano no século XX.
O Estado Novo estava decidido desde o princípio a calha;' com uma das noções do b : \ n d i d i ' -ocial clu f - i o b - h n \ v m
suprimir qualquer tipo de desordem no território nacional e ; de que o programa de tal Ladrão Nobru não e progressista. : J
não era absolutamente apropriado que grupos de "bandidos" \a mesma opinião é o Pernambucano de Mello, d i / que o
armados assolassem vastos territórios, quais fossem suas j sertanejo reza pela "restaiirjçJlQ drt? c;A?iis tnidiLÍtnuii? 'como
motivações ou alvos, ganhando sempre grande notoriedade { deve ser'" (MELLO, 2015, p.80). As análises e conclusões para
midiática, isso era visto pela República como afronta e sub- l tal arcaísmo são das mais variadas: resistência ao latifúndio,
versão da ordem, em um Estado progressista que intentava j distanciamento dos centros de poder estatal, etc., mas não é
combater as oligarquias e consolidar a unidade nacional. Era ] o que nos propomos explanar aqui, nosso recorte temporal e
inaceitável um fora da lei ser chamado de rei. Essa grei de j fenomenológico é outro.
bandoleiros deveria ser imediatamente extinta, e seus "coi-
teiros" como eram chamados seus apoiadores abastados, por O período "Pós-Lampiônico": nostalgia ou continuidade
vezes até poderosos politicamente, punidos. nas rupturas
Todavia, para a historiografia, não é difícil prever que
tais fenómenos não simplesmente desaparecem totalmente As aspas usadas para definir esse período que inicia
por repressão do Estado, ele se transmuta dentro da mesma após o massacre do bando de Lampião não se dão pela pecu-
estrutura de onde nasceu e vicejou, nesse caso uma estrutura liaridade do neologismo, fato é que a historiografia do tema
secular de no mínimo três séculos; eles se adaptam, obtém não é unanime em usá-lo, justo por não perceber ou talvez
nuances diferenciadas, mas continuam. O sertão nordestino concordar com o "pós", que representaria ruptura, alguns
é um exemplo deste costume de longa duração que a muito historiadores preterem a continuidade maneirista do fenóme-
insiste em se manter em detrimento de qualquer coibição ex- no do cangaço, dentre eles o próprio F. P. de Mello, Costa Pin-
terna. Tudo isso tem interpretações das mais variadas, desde to (1920-2002) e Ulysses Lins de Albuquerque (1889-1979). So-
a forma de como ocorreu a colonização do chamado sertão bre isso não podemos discordar de todo, dado a plena gama
oriental, até o resultado comportamental que adveio do em- jornalística que trata desses grupos até os anos 90, em outros
bate entre colonos brancos com os autóctones, os índios ser- moldes, como seria natural.
tanejos fugidos do litoral. Frederico Pernambucano de Mello
diz que o povo do sertão não é somente arcaico no seu modo
fruto de isolamento de séculos. É conhecida a religiosidade medieval do sertanejo,
de vida e nas relações sociais e com o ambiente físico que os capaz de facilmente resvalar em fanatismo. Também o são a sua rigidez em questões
de família, o admirável sentido fundiário das relações negociais, o conservadorismo
cercam, mas também arcaizante como ator da permanência político arraigado e o precioso classicismo vocabular, ..." Frederico Pernambucano
de uma cultura ancestral20, percebemos que isso bem vem a de Mello. Guerreiros do só!, p.46
276. "O motivo de seu protesto não é o fato de os camponeses serem pobres e oprimidos.
O que ele procura estabelecer ou restabelecer é a justiça ou 'os velhos costumes',
275. "Realmente é a imagem de um retrógrado que estamos pintando na tentativa de ca- ou seja, atitudes correias numa sociedade de opressão. Ele desagrava as ofensas.
racterização do homem sertanejo do Nordeste. Retrógrado porque envolto por toda Não procura criar uma sociedade de liberdade e igualdade. " HOBSBAWM, Eric.
uma estrutura familiar, política, económica, moral e religiosa arcaica e arcaizante. Bandidos. São Paulo: Paz e Terra. 2015. p. 79/80
Não obstante, n escolha do termo neste artigo concilia consentimento. Hobsbawm discordaria di>so, nos seus Ban-
com a época e atos do bandido, do vingador a que queremos didos ele diz que "No Nordeste do Brasil, onde o banditismo
expor em um humilde esboço biográfico. entrou em fase epidêmica após 1870, atingiu o apogeu no pri-
Há algo mais que justifica o uso do termo para pOr meiro terço do século XX, o Fenómeno chegou ao fim em 40 e
nosso sujeito histórico, a presença dele como agente e pro- . desde então extinguiu-se". Nem se precisa afirmar que quan-
pagador de um Código de Honra 277 particular, dito sertanejo do ele fala de "banditismo" e " epidêmico", está se referindo
iniciado desde muito antes do cangaço e que ainda hoje, ou- ao cangaço, e que quando ele define os anos 40 como época de
samos dizer, continua presente nos nossos sertões, com suas extinção dessa "epidemia". 2 '"-'
variações inda que com ligames que nos permitam trata-lo Floro possuía bando, não tão numeroso corno o dos 'ca-
como algo de mesma nomenclatura. bras' que um Senhor Pereira (1896-1979), um Corisco (1.907-
1940) ou Lampião possuíam. Contudo o tinha, como bem
Floro, do Capim ao riacho do Mel: Intriga retrata a foto cortesmente cedida ao Diário de Pernambuco
por Valdir Oliveira, onde estão figurados o famoso Valdere-
Floro Gomes Novaes2rs autodenominou-se certa vez do, "vingador sem máculas" da Várzea da Dona Joana -AL,
um cangaceiro, um daqueles que viriam para continuar uma que era lugar-tenente de Floro e o grande atirador dos sertões
tradição dos que lutavam contra os desmandos dos coronéis ". alagoanos, Faísca, tendo servido Floro no seu prelo contra os
em que as oligarquias poderosas tinham o poder a si conce- inimigos durante muito tempo. Frederico Pernambucano de
didos pelo Estado, num ato para além do desdém, um claro Mello, em seus Guerreiros do Sol, ainda dar-nos outros nomes,
mas entendemos que estes não eram parte permanente do
bando de Floro, já que os jornais lidos para este artigo não
277.Não temos conhecimento de alguma obra que tenha conseguido decodificar de for-
ma ordenada o que venha a ser este "código de honra sertanejo". Mas é possível en- citam nenhum deles.
xerga-lo à partir dos caracteres que são dados aos povos que habitam a região atra- Naturalmente há uma anacronia em níveis conceitu-
vés da literatura, da historiografia, da antropologia e mesmo dos relatos de viagens
que desde o século XVIII nos regala comportamentos ditos "sertanejos". Uma obra ais e práticos do cangaço de Lampião e do de Floro Gomes
indicada neste ponto seria: CASCUDO, Luís d<i Câmara. Viajando o sertão N'aíat
Fundação José Augusto, 1975. • Novaes, entretanto uma coisa é certa, entraram no crime pe-
278.Sobre as fontes: o programa que intentamos para entender Floro Gomes e seu tem- las armas e por elas morreram, ambos traídos. Eis uma das
po, baseou-se, via de regra em duas qualidades de fontes, a primeira, e conside-
ramos a mais rica e detalhada foi a jornalística, pois como o caso tornou-se afa- características do bandido social delineado por Hobsbawm
mado em seu tempo, jornais, periódicos e semanários de todo o Brasil quase que e outros tantos teóricos daqui e de fora: sua invulnerabilida-
obrigatoriamente mencionavam-no com destaque. Nossa segunda fonte digna de
nota foram as orais e audiovisuais, percorremos vários municípios entre Alagoas de, só sendo sua morte possível através de estratagemas, pois
e Pernambuco por onde Floro passou na diligencia de conhecer, respeitando os li-
mites mnemónicos dos que o que o conheceram, além de minudencias mais colon- este é comumente queridíssimo - ou ao menos temido - por
das da vida desse vingador, o espaço em si onde ele nasceu, atuou e morreu No; ; aqueles que lhes cercam, por sua comunidade, onde apenas
quedamos surpresos como as fontes eram muitas e como a imagem do fora da lei
permanece quase que sacra para a maioria dos entrevistados. Percebemos ter sid^
muito pertinente essa empreitada na ciOncia de termos a certeza que em anális?
sócio espacial supracitado, acabamos por fazer história do tempo presente. j 279.HOBSBAWM, Eric. Bandidos. São Paulo: Paz e Terra, 2015. p. 44
226

um deslize dele próprio ou indisciplina em suas proteções A maior tragédia que o povoado do Capim presenciou
conseguidas através dos rezadores com suas mágicas, jejuns até então ocorreu em 1935, era terça-feira (dia de feira no po-
e sortilégios poderia sitiá-lo numa situação limite, de morte.'so voado) e os Vieira, uma das famílias mais influentes do sertão
Floro nasceu na fazenda Boa Vista, zona rural de um alagoano, provocou um tiroteio no centro do local, o prelo
povoado à época pertencente ao município de Santana do acabou com um carro-de-boi carregando os corpos dos pis-
Ipanema, chamado Capim, que somente foi desmembrado e toleiros Temazinho Nunes, Neco Paraibano e Pedro Firmino.
tomou c título de cidade em 1959. Pequeno torrão que não Os cadáveres foram inumados, diga-se jogados, numa valeta
somava 8.000 habitantes. A fazenda Boa Vista era um conglo- qualquer por detrás da rua principal do vilarejo. Os pistolei-
merado que casas humildes, o é ainda hoje, raramente cons- ros eram inimigos de Enéias Vieira de Oliveira, homem tão
truídas em alvenaria, maioria das residências dando-se prefe- temido quanto odiado em todo o município de Santana do
rência à taipa. Ao menos na geração a que nos referimos, não Ipanema. Conta-se que o homem era envolto em tantas intri-
houve nenhum Novaes importante, gente muito humilde. O gas que todos os domingos em que se trajava para ir à missa
desafortunado Ulisses Gomes Novaes era um machante, tra- dominical, na sede do município ou nos povoados, na segun-
balhador que operava matando e curtindo as carnes dos bovi- da-feira aparecia um morto. 2S7 E foi com essa família que Floro
nos e caprinos para nos dias de feira no Capim (que ocorriam se dispôs na briga, e não se acovardou um só momento, assim
às terças) ir vende-las e assim sustentar a família. Seus filhos contam-se em relatos de conhecidos e dos jornais. Os Vieira
Floro, João, António e Maurício ainda eram muito jovens para mandavam e desmandavam no município e naturalmente so-
poderem ajudar na renda familiar. friam represálias cotidianamente, todavia lidavam bem com
Claro que por ser um habitue das feiras e ser de uma todas elas. Não esperavam que seus poderes políticos, econó-
família humilde, porém respeitada pela hombridade, Ulisses micos e bélicos seriam desafiados por um menino franzino de
invariavelmente teria de conhecer muita gente, pobre e rica, 18 anos de idade, prometendo vingança à fidalguia enquanto
de influência ou não, inclusive a pessoa de Enéias Vieira, fu- olhava a massa cefálica do seu pai ser lambida por cachorros
turo arqui-inimigo de Floro, era padrinho de um dos filhos e pelas moscas varejeiras no meio de uma estrada enquanto
de dona Guiomar Novaes, Maurício. Ironicamente foi este estava indo cumprir sua religiosa tarefa de trazer o pão de
fato de conhecer toda a gente e ser também conhecido que lhe cada dia para casa.
danou, e transformou algo cotidiano numa rixa que duraria Por volta de novembro de 1951, Ediberto Vieira, cunha-
quase 20 anos. do de Enéias, segredou a Ulisses que pretendia mandar ma-
tar Manoel Roberto, moço afamado como encrenqueiro na
280."Contudo, a invulnerabilidade do bandido não é apenas simbólica. Quase invaria- região, e que não havia nada no mundo que lhe impedisse
velmente ela se deve a artes mágicas, o que reflete o interesse benevolente das divin-
dades em suas atividades. Os bandidos do sul da Itália portavam amuletos bentos
pelo papa ou pelo rei, e consideravam-se sob a proteção da virgem; os do sul do
Peru apelavam para nossa senhora de Louren, e os do Nordeste brasileiro para os 281.OLIVEIRA, Jorge. Uma história do cangaço. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3 de
beatos locais. HOBSBAWM, Eric. Bandidos. São Paulo: Paz e Terra, 2015. p. 70,7". março de 1971. Anexo, p. 2 e 3.
228

de cumprir o ato. Ulisses, pai de Floro, próximo como era de ricos, Floco, mesmo desarmado., levando consigo apenas um
ambos, do feroz e do jurado de morte, teve pena de Manoel punhal de cano longo, os impediu.
Roberto e aconselhou-lhe a passar um tempo fora do lugar Ao repórter do Jornal do Commercio, aproximada-
até a raiva de Ediberto arrefecer um pouco. Nisso, Manoel mente um ano antes da emboscada que seria vítima na caçada
Roberto em um rompante de desespero, quem sabe se por de veados, Fioro ainda recordava pesaroso: "Frarn mais ou
recusar-se a fugir e abandonar sua fazenda, ou quiçá imagi- menos sete e meia ou oito horas da manhã de uma terça-feira
nando não ter nem mais tempo de fugir, rumou a Santana que nunca mais vou esquecer, dia 4 de dezembro de 1951.,
para falar com o delegado, chamado Caroula, em busca de quando nós todos já pensávamos no Natal, nas festas de fim
proteção do Estado: de ano". Diz que soube do ocorrido por ter chegado um mo-
rador a contar-lhe de pronto: "-Floro, seu pai morreu". 2S3
O delegado prometeu assistência, todavia chamou
para prestar depoimentos a família Vieira, Ulisses e No prefácio da obra de Clerisvaldo Chagas Floro No-
Manoel. vais, herói ou bandido?, o também escritor António Machado
Os Vieira, como era de esperar-se, tudo negaram:
rememora que quando criança ainda lembra de Floro falando
"-Isto é safadeza de Ulisses. Esse cabra tá mentindo,
seu Caroula!".2K ao seu pai, que também se chamava Floro: "-Xará, quando eu
apanhei os miolos de meu pai, espalhados pelo chão, não cho-
Pois bem, oito dias depois deste encontro na delegacia rei, mas senti dentro de mim uma revolta." Sobre o caráter de
de Santana, Ulisses é assassinado quando no caminho da sua seu pai numa entrevista ao Jornal do commercio disse floro:
fazenda para a feira de Olivença, bem como também é morto "-Até dos bichos ele tinha pena. Sua arma era o machado de
15 dias após o próprio Manoel Roberto. abater os bois. Quando a terra cobriu meu pai, eu jurei que
Mataram o senhor Ulisses de tocaia, em uma fina tri- aquilo não ficaria assim. Eu preferia não viver nem mais um
lha ao lado de uma umburana. Deram vários tiros de rifle em minuto se não pudesse vinga-lo".
sua cabeça e depois a esmagaram com coronhadas. Crânio e Mais um dos crimes que, segundo o jornal Correio da
face ficaram tão desfigurados que, segundo o próprio Floro, Manhã, Enéias foi acusado. Foi preso apenas uma vez, mas
só reconhecera o pai pelas roupas e pelas mãos. Até mesmo por motivo menor comparado aos de assassinato, logo depois
os oito contos de reis que o velho levava no bolso, tomararn- solto pela influência de Adaildo Nepomuceno, ex-prefeito de
-Ihe. Floro pegou o lenço vermelho que o pai sempre levava Santana do Ipanema. Dentre os crimes que o cartório de Santa-
consigo para assoar o nariz e começou a recolher os miolos do na alia a Enéias estão os de, em 1951 mandar executar Ulisses
pai enquanto chegava gente mais e mais, e entre essa gente o Gomes Novaes; logo depois o fazendeiro Manoel Roberto em
delegado Zé Viana junto com o soldado Zé Darca; queriam Olho d'Água das Flores -AL; o de emboscar e atingir com cin-
levar o corpo à Major Isidoro - AL, para os exames cadavé-
2S3.CALHE1KOS, Vladimir Maia. De editor-gcral a repórter no sertão. Jornal do
282.1bidem, p. 3. Commercio, Recife, outubro de 1970.
ia 18 d f feve- a pessoa e mata-se oi^'í varãoiõesj próximo*s) teoricamente
reiro de 1965 mandar matar na Fazenda Nova o então vereador predisposto à vingança e. tem até aqueles que saem para fa-
José Nogueira, usando o pistoleiro Adeildo Lourcnço Fontana zer algum tipo de treinamento de combate e auto defesa.-^
onde no lugar morreram outros pistoleiros que prestavam ser- Enquanto isso dona Guiomar a dizer: "-Enquanto eu for viva,
viços ao primeiro: José Terto e Cicero Cazuza; somente em 26 meu filho Floro não há de ser morto por Enéias. Só sossegarei
de abril de 1965, foi Enéias preso pela Polícia Federal inquirido quando ver o corpo do desgraçado indo para cova".233 Como
por ter em suas mãos armas privativas do Exército Brasileiro. verão mais à frente talvez a emboscada que quase 20 anos
Depois de solto, o que aconteceu muito rapidamente, respon- depois matou Floro, não tenha vindo da família Vieira (nes-
deu o inquerido na Sétima Região Militar. ta época Enéias já havia sido assassinado por um Novaes),
Depois de todo o rebuliço da morte de Ulisses, toda a mas sim por problemas outros, criados na fazenda Mamoei-
gente ainda chocados de como um homem tão honrado e tão ro, município de Itaíba - PE, derradeiro retiro de um Floro já
à parte das brigas políticas que ali ocorriam poderia ter sido vingado e tranquilo à respeito dos antigos inimigos.
morto daquela forma e por motivo tão tacanho, de uma cruel- Regressando ao Capim, Floro continua trabalhando
dade supérflua. Seguiu-se os protocolos imediatos de lobuto, na roça do seu pai, mas percebeu que continuando ali todos
o corpo foi levado e enterrado no cemitério da cidade alagoa- correriam perigo, então sua família foi para Arapiraca - AL,
na de Jacaré dos Homens. Família e cidade chorosas ainda, e e ele procurou emprego no povoado de Carneiros, também
os Vieira espalhando por toda a cidade que tinham sido eíes pertencente a Santana. Vendeu uma vaca por cinco contos de
mesmos os mandantes e que de nada adiantaria o choro. reis e comprou um revólver. Diz-se que treinava tiro todos os
Cerca de l mês após o ocorrido, Floro sai momentanea- domingos mirando em caixas de fósforo e conseguia acertar
mente para São Paulo, se queda lá vinte e dois dias trabalhan- a cabeça de uma catenga (lagartixa) com um rifle a 30 metros
do em fazenda ou sabe-se lá o que maquinando, enquanto de distância. Mas só descansou nessa empreitada de autodis-
isso não para de receber cartas de sua mãe Guiomar a dizer-se ciplina quando conseguiu cortar um cigarro com um revolver
constantemente ameaçada por homens de Enéias e que passa- de calibre 45. Era canhoto, mas atirava com as duas mãos e
va fome. Floro volta de São Paulo. É importante que se fale a era capaz de acertar o mesmo alvo ao mesmo tempo. Apesar
respeito disto, do costume de um vingador no sertão se auto disso tudo ainda não se considerava um grande atirador, di-
exilar durante certo tempo logo após o ato que o tornará no zia sempre haver melhores que ele. Suas armas eram nomea-
futuro vingador de fato. Alguns o fazem para reflexão e pla- das: a Smith e Wesson, 38, era a "Salamanta" (uma espécie de
nejamento da vingança, sempre a manter contato com o seu
torrão natal a fim de poder escrevinhar a lista de acusados i 284."O exílio voluntário dos parentes da própria vítima do atentado, que desse modo
se furtam às obrigações da vingança, na falta de maiores detalhes só se explica pela
aos quais vai se vingar, outros por medo de morte pelos mes- impossibilidade material de exercer a represália,[...]" PINTO, Luiz de Aguiar Costa
Lutas de família no Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1980. p. 53
mo que mataram seu ente, pois como o costume de vingança 285.GONÇALVES, Roberto. Dona Guiomar, Mãe de Floro: vida de lutas e sofrimentos.
é endémico no sertão - e tem costumes próprios -, mata-se Gazeta de Alagoas, Maceió, 9 de março de 1996.
cobra m u i t o c o m u m no Sertão), o mosquetão era "Alecrim" i Em 1957, Enéij> tntfio Je.lesadc do Capim, contratos:
e o inseparável revolver 45 era ''Cobra Preta" que di/ia ser a alguns pistoleiros para nutar Floro, [osé Veridiano jacinto,
melhor arma do mundo. Entre as armas brancas, não se sepa- irmão de João José, aquela p r i m e i r a vítima; José Izídio e mais
rava da sua faca de 12 polegadas e de um facão. í um desconhecido na região. Estava tudo marcado para o dia
Já aí Floro tinha sua lista, sabia que João José e seu ir- . 27 de julho do mesmo ano, numa quarta-feira, porém na ter-
mão António Jacinto (Cintinho), com mais dois pistoleiros ti- ra-feira Floro foi avisado e se preparou, escolheu um bom
nham sido os executores do crime, aliás sua lista continuava' lugar e emboscou os capangas, morreram os dois primeiros,
Enéias Vieira de Oliveira; seu irmão João Vieira de Oliveira cada um com dois tiros na testa, o desconhecido conseguiu
o Janjão; Ediberto Barros, cunhado de Enéias e à época vere- i fugir caatinga adentro. Floro ainda teve tempo de interrogar
ador de Anadia, outra cidade alagoana; Telesso, que já dizia Izídio e descobrir que de fato haviam sido contratados por
aos quatro cantos que havia fornecido as armas para o crime; Enéias, e ainda que havia recebido de José Jacinto trinta con-
e José Izídío, mais Artur, que estavam envolvidos também de tos para cumprir a missão. Mais dois riscados da lista.
forma intelectual no crime. Um outro Vieira, chamado António, poderoso dono da
Por volta de dez meses após o assassinato de Ulisses, em fazenda Massapé e de um ramo diferente da família, muito
5 de outubro de 1952, Floro começa a passar os riscos em sua respeitado pela retidão e pela pouca afeição às rixas, tentou
lista. Em Major Isidoro - AL, há um povoado chamado Cape- fazer as pazes - ao menos momentaneamente - entre os Viei-
línha e Floro através de uma rede de informações que já tinha ra e o Novaes. A reunião entre as duas partes aconteceu na
criado para os seus propósitos de vingança soube que o João sua própria fazenda, Floro compareceu, mas Enéias mandou
José, um dos pistoleiros que estavam presentes na morte do o pai, Manuel Vieira. A contenda até que teve urna pausa de
seu pai estava lá, procurou-o nas cercanias e o viu entrando aproximadamente um ano, quando o próprio António Vieira
numa mercearia. A cena deve ter sido interessante, entra Floro, aparece morto de forma misteriosa. Bandeira branca em bai-
menino de 19 anos, muito magro em um semblante ao mesmo xo mastro, recomeça a briga.
tempo zangado e frio, a dizer para todos os presentes, incluin- Não demorou muito a jeito de Enéias preparar mais
do urn delegado que lá estava proseando, a João José: "-Prepara um ardil para Floro. Contratou um cigano afamado chama-
seu caixão. Você nunca mais mata pai de homem". João José ainda do Daniel, que costumava viver e montar acampamentos no
tentou sacar o revólver, mas Floro mais rápido lhe acertou dois sítio Pantas, município de Itaíba - PE, zona onde nesta época
tiros na testa. O finado caiu nos braços do delegado. Logo de- Floro já vivia, por quinze contos de reis. Mais uma vez ou-
pois saiu correndo se livrando das balas das armas de todos tro capanga de Enéias morto, e mais uma vez com dois tiros
que ali estavam. "-Quando corri, ouvi mais de 30 disparos. Até na testa. Acredito que já podemos tomar esse modo de matar
o delegado, com um mosquetão, errou o alvo".25" "do vingador das Alagoas" como um modus operandi, quase

Commércio, Recife, outubro de 1970.


286. C ALHEIROS, Vladimir Maia. De editor-geral a repórter no sertão. Jornal do
234

uma demonstração de soberba de excelência :T3 [ de como fora poucas aéVacijs :.]ti\^.
Pouco antes dííso, na (azenda Mamoeiro, recebia Floro Dona Isaura era viúva e "inha uma filha chamada Ma-
o pistoleiro José A l vê? com a proposição de que pela sua òti- ria das Graças, essa escudava em G n r a n h u n s - PH, no famoso
ma pontaria e perícia receberia 200 contos do próprio Enéias colégio católico para internas, o Santa Sofia. Dona Isauro teria
para matar um desafeto. Floro não a n u i u e disse que jamais provavelmente outro filho mais com Floro alem de fc'.zequiel.
mataria por dinheiro. Depois veio a descobrir que aquilo nada se não fosse um evento que veio a perturbar a tranquilidade
mais era do que uma a r m a d i l h a , se tivesse ido junto com José que já durava meses.
Aives, teria sido pego por Enéias, o cigano Daniel e Fdiberto Como já foi dito alguns parágrafos acima, Floro pos-
assassinado e posto numa barraca em feira livre na Olivenca suía um bando permanente muito parco (dois ou três camara-
para que todos soubessem que ele era pistoleiro de aluguel, das, no máximo), ainda que sempre estivesse acompanhado
pondo abaixo todo o mito que já se tinha criado sobre o "ban- de pessoas que cuidavam-lhe de proteger e ajudar pelos mais
dido sem máculas". variados motivos também já supracitados. Em 1962 albergou
Abreviando mais nomes da lista, neste entremeio, dois em sua residência um pistoleiro baiano chamado António de
autores intelectuais do crime que ceifou a vida do Senhor Diná. Mas, no dia 5 de janeiro viu sua casa ser cercada por
Ulisses foram mortos por Floro, e claro, com dois tiros na tes- mais de trinta policiais vindo da Bahia, e como aquela ética
ta. João Vieira de Oliveira, em 16 de novembro de 1960 e Edi- de prender bandido afamado e mandar para o judiciário era
berto Vieira Barros em 6 de fevereiro de 1961. irreal naquelas paragens, tais agentes estavam preparados
Houve um pequeno período de paz, no qual Floro ca- para prender ou matar o Diná e quem quer que ousasse se
sou-se - malgrado não sabermos ao certo a data do casório, interpor em defende-lo, em especial Floro que já era um dos
mas julgando que numa publicação de 1971 2S7 ofilho do casal, bandidos mais procurados do Brasil. Houve um longuíssimo
Ezequiel já contava os 11 anos, podemos supor que desposa- tiroteio e Dona Isaura foi baleada numa das coxas e um dos
ram no início da década de 60 - e vivia com sua esposa Dona projéteis atravessou-lhe a barriga, matando um filho do casal
Isaura e seu único herdeiro na fazenda Mamoeiro, numa casa que faltava pouco para ver a luz. Isaura ainda andou de mu-
rusticamente bela, toda construída em tijolos de barro verme- letas durante vários meses, e ainda hoje, quando se fala dela
lho sem nenhum revestimento externo, essa casa encontra-se na região ,mencionam esse seu traço que a acompanhou até a
hoje em ruínas, mas os que se aventurarem à adentrar a caa- morte, ser coxa de uma das pernas, independentemente de a
tinga fechada nas imediações do Mamoeiro, saindo do meio partir do ocorrido ela passar a adaptar todos os seus calçados
do mato e como que por magica encontrarem uma clareira de com um pedaço de borracha ou couro volumoso.
relevo plano, ainda a poderão ver e ter um linda impressão Volvendo a narrativa ao povoado do Capim, a par-
tir de 1959 - que junto com outros sete povoados já se tinha
emancipado de Santana do Ipanema- agora município cha-
287.GRANJA, Paulo. Floro Xovaes, o último vingador Gazeta de Alagoas, Maceió, 29
de agosto de 1975. Opinião. mado Olivenca, a cidade em inícios da década de 70 tinha
cerca de S.35b h a b i t a n í u á , teve uni decréscimo cie "].M)0 habi- tío passo seguinte, --ao as armas.'" O terceiro prefeito foi José
tantes aproximadamente comparado a 10 anos antes da época Maria de Menezes Neto., conhecido como Zé Duca, e o quarto
citada, J 971, tomando como fonte o jornal Correio da Manha representante do executivo na cidade foi a Senhora Maria de
O amedrontamento de pessoas, o ré ver t i mento de capital de LOurdes Cavalcante, que fora viúva do primeiro prefeito.
produção dos detentores da terra e de produção económica No Mamoeiro, em 1962, Floro chegou a um ponto tão
sendo revertido para fins bélicos e a própria taxa de mortali- alto de provocar, usando um termo de eufemismo, os pode-
dade/assassinatos altíssimas podem ser explicações possíveis rosos, que criou-se uma operação da PM chamada Caça Flo-
para essa emigração/desaparecimento da população. Na mes- ro. Com o comando do Sargento Rainere, cinco soldados se
ma revista supracitada Floro desabafa que governo não está embrenharam na caatinga tentando encontrar o famigerado.
vendo de fato quem é o prefeito de Olivença: Enéias, aproveitando o ensejo contratou um pistoleiro, que
também era Sargento de polícia, um tal de Silva, mas real-
Enéias é um pistoleiro, um assassino e tem polícia
para servi-lo. O sargento Silva e o Barros f a/iam
mente conhecido como "Cavalo Batizado" que, por sua vez
absurdos na região, em nome do Governo. Ainda liderou 15 soldados, e foram-se todos à perseguição de Floro
hoje, o Enéias anda pelas ruas, pelas feiras, com Gomes. Floro catingueiro como era, logo se pôs em fuga com
um jipe cheio de soldados com metralhadoras rara
amedrontar o povo. O homem causa nojo, ninsuém a família, e a operação se mostrou completamente inútil. Tal-
gosta dele em Alagoas. Sei muito bem que a polícia vez por muita falta de perícia dos oficiais ao tentarem pegar
não aceita suas manobras, mas o ajudam por ordem
Floro em um local onde tudo era feito para evitar estes ti-
superior. Não posso dizer, no entanto, que ele seja
ladrão. Apesar de já me haver chamado disf-o, sem pos de embocadas: várias rotas de fuga, locais próximos com
provar, eu não o ofendo dessa maneira.2*8 suprimentos, esconderijos profundos... tudo isso Floro tinha
a sua disposição no Mamoeiro. Nesse dia contam que Floro
O primeiro prefeito da cidade, recém emancipada, foi encontrou na estrada uma cobra, matou-a a tiros, alimentou
nomeado pelo então Governador Muniz Falcão (1915-1966) e seus companheiros com a carne, e a banha guardou para pre-
se chamava Gilberto de Oliveira Cavalcante, foi assassinado. parar unguentos para casos de ferimentos leves. Quando o
Levando-se em conta que o segundo prefeito foi o próprio ferimento era de baia ele usava raspa de quixabeira, planta
Enéias Vieira, não precisamos pensar muito sobre a motivação muito comum na região, ou quando alguém do seu grupo era
ou o mandante do assassínio do primeiro, sabendo-se com já ofendido (picado) por cobra peçonhenta, era importante sem-
sabemos das ambições que fazia muito Enéias tinha em domi- pre ter "pedra de veado" (parte arredondada da bílis do ani-
nar a região. Ter o poder do voto é somente o primeiro passo
para se conseguir dominar, de forma legítima; o segundo, que
289.Costa Pinto parafraseia Aires de casal (1754-1321): "'A recíproca oposição entre
duas famílias, querendo cada uma ocupar exclusivamente todos os cargos da Repú-
blica, pô-las no campo di? batalha, cada uma na frente de seu exército de estúpidos
288. OLIVEIRA, Jorge. Um.lhisíória do cangaço. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3 de partidaristas."' PINTO, I.uizde Aguiar Costa. Lutas de família no Brasil. São Paulo;
março de 1971. Anexo, p 2. Ed. Nacional, 1980. p. 43
mal), para colocar no locai da picada e tentar s "K".:; r o ferido e dos Albuquerque M ara n h ,.10 onde na>cci_; iirr dos i^n n oíús
Perto de 1965 houve a primeira e única prisão de Floro "alagoanos", o ilustre Lourenço Tennrío do Albuquerque Ma-
Gomes, acontecida sob vias, modos e desfecho absolutamente ranhão ou simplesmente Barão de -Malaia. Enfim, o Quintella
interessantes, como bem atestam uma matéria do extinto jornal era um homem altamente respeitável por todos, meliantes ou
Tribuna de Alagoas, publicada em 31 de janeiro de 1999, pe|0 governadores, mas o que em especial lhe dava mais prestígio
jornalista Roberto Vilanova e outra escrita pelo repórter Leio era a fama de ser homem de palavra imutável, uma frase do
Macena em 3 de janeiro de 2010 para o Gazeta de Alagoas.-'*' Dr. Rubens servia de documento carimbado, e foi justamente
Valderedo (lugar-tenente de Floro), nascido município por isso que o vingador Valderedo resolveu entregar-se a ele
de Poço das Trincheiras - AL, à época lugar mais violento do mediante acordo. Mas eis onde Floro entra nessa história...
Estado, resolveu entregar-se. As motivações, através dos es- Bem, Valderedo manda uma carta lá da Várzea da
tudos de Costa Pinto de como findar uma rixa de família, po- Dona Joana (zona rural da cidade onde nascera) para o Dr.
demos interpretar como tentativa de cessar uma situação de Rubens dizendo que se entregaria se fosse ele julgado em sua
perigo constante à qual passava, falta de dinheiro para conti- terra natal e se Rubens viesse sozinho o prender. Rubens res-
nuar sua vingança, possibilidade de ser absolvido pela justiça pondeu-lhe lacónico que aceitava o trato, porém, iria com o
e poder sentir-se homem livre novamente, dentre outras. E motorista do Jipe que neste tempo era o veículo padrão das
sabia que feita da maneira certa essa rendição poderia ser-lhe polícias interioranas. Trato feito. Encontrar-se-iam num local
vantajosa. O trato foi feito com Rubens Quintella. próximo à Santana do Ipanema. Segue-se o diálogo segundo
Rubens Quintella, homem sertanejo que conhecia a re- o Tribuna de Alagoas:
gião como ninguém, diríamos um misto de soldado de von- Quintella diegou ao local marcado para o encontro,
tante com Estadista, que aliava a si uma perícia invejável de abrindo um cenário regional que marcaria, no final
da década de 1960, a trégua das brigas e das mortes
milico e um traquejo político que lhe dava acesso a todos os ga-
por vingança em AJagoas. O delegado se aproximou
binetes dos poderes do Estado. Era delegado e foi o criador da cauteloso, e entre xiques-xiques e mandacarus, uma
Polinter, braço da polícia civil nos interiores e zonas rurais de voz quebrou o silêncio:
-"Doutor Rubens?"
Alagoas e que varava os sertões em busca de ladrões de gado
-"Pronto. Que é que há? "
dando cabo de inumeráveis foras da lei. Era casado com Tere- -"Espere aí".
sinha Lucena, filha de criação de um dos mais importantes e
influentes "coronéis" que o sertão pernambucano viu no sécu- Surge Valderedo do meio dos alastrados e juazeiros,
lo XX, o Dr. Audálio Tenório de Albuquerque, dono da Fazen- estatura mediana, chapéu de vaqueiro, armado, porém em
da Nova, antigo rincão interiorano dos Tenório Albuquerque gestos pacíficos. Finalmente o "pistoleiro" da Várzea iria se
entregar. Não esperava Rubens que próximo a ele, escondido,
290.MACENA, Leio. Quintella: "Um Homem de Palavra"/ O homem que prendeu um estava. Floro, e disposto a também fazer um trato para entre-
dos maiores "pistoleiros" de AJagoas era respeitado, no meio policial e no crimo
por cumprir o que dizia. Gazeta de Alagoas. Maceió, 3 de janeiro de 2010.
gar-se, o mesmo de ser julgado em Santana, onde o corpo de
240

jurados decerto por conhecerem suei história lhe absolveriam ! Oli^enca e que cinciava a contar a quem tivesse om klus para
Rubens aceita o trato e leva o dois no Jipe, não os alternou j escutar que tora ele me>mo que havia fornecido as u r n u r que
Ao chegarem à Santana, foram envolvidos por toda a garng j mataram Ulisses, e "que o molecote do í ; loro não viesse a ter-
de policiais civis, federais, militares, pasmos com o ocorrido í -lhe, afora teria o mesmo destino do pai''. Não se sabe por que
e questionando o delegado em tom de reclamo não ter alge- Floro tanto demorou a ceifar este, que no mais não passava de
mado os acusados. Preciso como sempre foi Rubens "-Fu não um débil comparado aos que já enfrentara durante sua longa
prendi ninguém. Eles que se entregaram".- J: jornada. Enfim o dia chegara, e junto com ele uma dor de ca-
Mas as coisas não aconteceram como havia de se es- j beça em Floro, ou esta antes daquela, enfim... eis como narra
perar, os acusados foram enviados para a prisão ern Maceió \ Correio da Manhã:
t
e de lá, dividindo a mesma cela, esperavam que o "Anjos da *í -Seu Telecio, o senhor tem melhora!?
Morte" (alcunha dada a Rubens pelo ex-Cel. Cavalcante num O homem não teve nem ternpo de responder. Quan-
dos julgamentos na década de 90 quando estava sendo julga- Í do se virou recebeu seis tiros no rosto e caiu morto.
Mas os crimes de Floro estavam chegando ao rim.
do por participar e liderar a "Cangue fardada") cumprisse o
Enéias Vieira era o último a morrer. Cincinto, outro
trato e o ievassem de volta para o interior, para lá serem julga- criminoso de seu pai, foi morto no Rio. O último era
dos. A família Enéias usou de toda sua influência na Capital e Enéias, que com 55 anos batia nos peitos e dizia que
era homem para enfrentar Floro Novaes.
o caso não foi transferido, ali mesmo ficariam eles, e a tomar
de exemplo de outros vingadores/bandidos famosos, dali não Enéias seria morto, mas não por Floro, seu arqui-inimi-
sairiam vivos dadas as penas enormes que receberiam e a go, mas pelo seu irmão, o mais jovem deles, António Gomes
iminência de serem mortos por inimigos dentro de suas celas. Novaes. Não que Floro viesse a se afligir com o acontecido,
Escreve Pedro Jorge no artigo da Gazeta de Alagoas muito pelo contrário, se sentira aliviado da mesma maneira.
que Rubens havia dado a sua palavra ao "pistoleiro" e não Como já havíamos visto em teoria, as rixas de família são to-
a cumprira. O desfecho do caso acontece nos bastidores e é talizantes na participação de membros e agregados, não é de
confirmado por policiais e figuras da imprensa à época. Ru- um apenas a tarefa de corrigir os agravos feitos. Não custa-nos
bens Quintella teria facilitado a fuga de Foro Novaes e crava- recordar o que Costa Pinto diz à respeito disso: "A vingança
do definitivamente seu conceito entre a "bandidagem", e na privada é, antes de mais nada, uma violência coletiva que põe
polícia, como um "Homem de Palavra". frente a frente grupos, e não indivíduos" (PINTO, 1980, p. 5.)
Valderedo também fugiu com Floro, e ambos voltaram Mais uma vez recorrendo ao Correio da Manhã, segue-
para terminar o que haviam começado. Para Floro ainda falta- -se como ocorreu a morte de Enéias. Pouco menos de um ano
vam alguns, principalmente o odiado Enéias Vieira. antes da emboscada que mataria Floro, um jovem de apenas
Um tal de Telecio, farmacêutico muito afamado em 20 anos iria consumar a vingança. António Gomes Novaes,
sempre incentivado por sua mãe na rixa com os Vieira, disse
291.1bidem. que viu Enéias pela primeira vez, na feira de Arapiraca onde
242

a família Novaes, com exceçao de Floro, se radicara. Sua mãe idade, muito choroso por cima do corpo do pai, bradava aos
Dona Guiomar lhe apontara o sujeito e repetiu-lhe algumas transeuntes: "Eu não quero vingança. Quero que as autori-
vezes que aquele fora o mandante do assassinato do seu pai dades dêem segurança a minha família, que pretende vender
Ele guardou aquele semblante na mente, e começou a ma- tudo em Oiivença e ir embora. Não quero saber de matança."^3
quinar, corno poderia auxiliar sua família a reconquistar sua Isso que António Vieira faiou é significativo de algu-
honra. Passou a todas as segundas-feiras (dia de feira em Ara- mas maneiras, a primeira é a de ver a poderosa família Vieira
piraca - AL) ir flanar para ver se reencontrava o dito cujo. finalmente amedrontada pelos filhos de um simples machan-
Nessa feira citada onde Guiomar lhe apontara Enéias pela te, que no passado foi brutalmente assassinaram por causa
primeira vez, António contava apenas 16 anos. Por quatro fútil; segundo ver como as rixas de família podem se extin-
anos guardou isso na mente. guir com uma mudança de pensamento geracional intima-
Cerca de oito meses antes do dia em que mataria Enéias, mente influenciado pela educação que tiverem os indivíduos
vendeu dois rolos de fumo, foi a feira do passarinho de Arapi- que nascerem após o início da peleja.29"1 Muito provavelmen-
raca e comprou um revólver. Esperou a oportunidade. te esse António Vieira não tivera uma educação à sertaneja,
Soube por informantes que Enéias estaria na terça-feira tendo estudado nos melhores colégios da Capital e absolvido
na feira de Oiivença. Era terça-feira, 22 de setembro de 1970: uma noção de lei que colocou para trás o costume jurisnatural
de vingança privada como algo legítimo, e por último esse
Terça-feira pela manhã coloquei o revólver na cintu-
ra e fui procura Enéias. Peguei um caminhão, passei
discurso dele vem a cooperar com o que sertanejos da região
por Santana do Ipanema e desci numa estrada pró- já têm certeza, a emboscada que vitimou Floro lá nas proxi-
xima à Oiivença. A primeira cara que vi foi a dele. midades da fazenda Mamoeiro, no riacho do Mel, não partiu
Fiquei calmo, não podia errar o alvo. Era chegada
a hora. Em certo momento ele parou e fui me apro- de Alagoas e tampouco da família Vieira.
ximando. Quando cheguei bem pertinho, puxei o Agora a versão dos que moravam em Oiivença e pre-
revólver e disse: "Enéias cabra da peste, vire-se para
senciaram o assassinato de Enéias: logo após prenderem An-
morrer". Quando ele virou acertei o primeiro no pei-
ro. Enquanto me dava as costas e saía em direção a tónio Novaes, o que aconteceu foi uma verdadeira tortura,
sua casa, disparei toda a carga de revólver nas suas aqueles policiais, delegados e toda a grei de oficiais de cole-
costas e só parei quando ele caiu na porta da barbea-
gas/comparsas de Enéias, brutalizaram tanto o jovem Antó-
ria. Corri para fugir e a polícia me pegou. Fui levado
no mesmo jipe que conduzia o corpo do matador do nio que quase não lhes sobraram dentes na boca. O objetivo
rneu pai. Estava cumprida a missão.292 principal era não mais tratar o caso como crime de vingança,

293.1bidem.
Enquanto isso o filho de Enéias, de também 20 anos de
294."O medo ante a violência das retaliações, o enfraquecimento dos laços de família e
de clã, o aparecimento dos neutros no seio da comunidade que se desenvolve, o for-
talecimento da política são fatoces que conduzem ao desaparecimento progressivo
292.GONÇALVES, Roberto. Dono Guiomar, Mae de Floro: vida de lutas e sofrimentL da vingança privada. " PINTO, Luiz de Aguiar Costa. Lutas de família no Brasii.
Gazeta de Alagoas, Maceió, 9 de março de 1996. São Paulo: Ed. Nacional, 1980. p 16.
mas político, insistiram sob tortura que António contessas.se preso, José Porfírio, o coitado do moço do faca levou um tiro
que havia matado Enéias a mando da prefeita da cidade Ma- na boca; em 62 foi atingido, onde morava em Olivença, Rua
ria de Lourdes Cavalcante e do seu marido ex-cabo da PM Belarmino Vieira de Oliveira por um tiro de mosquetão, nas
Braz de Oliveira Souza, por ambições políticas desses dois ci- costas, manteve-se 30 dias internado na casa de saúde São Se-
tados. Aqueles que quiserem saber mais informações sobre o bastião e ficou completamente curado; em 65 quando saía da
caso basta pegar os jornais Gazeta de Alagoas das duas sema- igreja de Poço da Cacimba -AL, foi emboscado por Floro, a
nas seguintes ao assassinato de Enéias que verão as fotos da praça esvaziou ao perceber a presença das duas figuras no
prefeita e do marido estampadas como possíveis mandantes. mesmo local. Floro atirou várias vezes, mas não conseguiu
Essa estratégia não carece de inteligência, daria um ar de par- o atingir; em 69 quando num momento despreocupado foi
cimônia à rixa entre os Vieira e os Novaes ao mesmo tempo pescar no açude de um dos cunhados, levou um balaço, que
que poria a família Vieira em crédito para disputar as próxi- como os outros, não foi letal; e por fim em 22 de março de
mas eleições na cidade, além, é claro, de eliminar eticamente 1970, levou um tiro no braço direito, na porta da casa do ve-
e juridicamente rivais em próximos pleitos, digo a prefeita reador de Olivença, António Felizardo, tiro dado pelo seu
Maria de Lourdes e família. afilhado Maurício Gomes Novaes, um dos irmãos de Floro.
António Novaes mesmo sob toda a flagelação, negou Maurício se tornaria muito conhecido nas décadas de 80, 90
terminantemente a tese que as autoridades locais queriam e anos 2000 como "Chapéu de Couro", o mais afamado dos
impor-lhe: "Matei o assassino de meu pai pelas costas porque pistoleiros alagoanos nos tempos recentes.
soube que ele era muito valente. Mata-lo era juramento. Não Nisso, com a vingança já cumprida e a família Novaes
estou arrependido. Vinguei 21 anos de sofrimento de minha vitoriosa, se é que haja vitória em tal circunstância, Floro agora
mãe, a quem Enéias e seus capangas deixaram viúva com em outra casa mas na mesma fazenda Mamoeiro, aproveitava
quatro filhos pequenos."295 a estabilidade para escrever, contar os casos ocorridos, receber
Enéias, sem sombra de dúvidas não era um homem amigos, repórteres. Foi nesta época feita a famosa entrevista
fácil de morrer, mesmo quando surpreendido e alvejado, por Tobias Granja, onde vemos um Floro mais sereno, não me-
conseguia sobreviver de alguma maneira. Foram 5 as em- nos desconfiado, porém na mansidão de um dever cumprido.
boscadas colocadas por inimigos -e os tinha bastante -, e por Numa entrevista dada ao repórter Paulo Granja (irmão
Floro, para cima dele antes da única e certeira colocada pelo do Tobias) para o jornal Gazeta de Alagoas, aproximadamente
irmão mais novo. Em 58, quando era subdelegado de Santa- 30 dias antes da emboscada do riacho do Mel, nem consegui-
na foi fazer uma apreensão em Fazenda Nova, nas cercanias mos acreditar no Floro divertido que encontramos. Não mais
de Olivença e foi ameaçado com uma faca pelo que iria ser um vingador, apenas um agricultor bem-sucedido, orgulhoso
do que fez e construiu. Não abandonara de todo a segurança
que desde muito procurava estar favorecido. Sempre na com-
295.OLIVEIRA, Jorge. Uma história do cangaço. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3 de
março de 1971. Anexo, p. 3. panhia de D. Neném, sua mãe de criação - sua mãe Guiomar
vivia em Arapiraca - e diz-se também curandeira, aquela que
da Sudene (Í98I i. H á r.n;;:x> Jo quu tirar-se de^i publicado
prira concar como ocorreu os últimos momentos do "pistolei-
ro sem máculas". Nos jornais - Correio da Manhã c Gazeta
Hloro já tinha conhecimento cie que um jipe .se dirijm
a sua caía. Uni controle que ele nunca me revelou o de Alagoas -, por exemplo, talvez pela brevidade com que to-
informa com antecedência da presença cV estranhos maram para interpretação do episódio, encontramos citações
nas proximidades.
parcas e por vezes sem nexo algum, como dizer que na manhã
Saboreando uma boa pinga com casca de boni-norne
(uma árvore da região) Floro, íalador com u sempre da sinistra cacada de veados, Floro declarou a Dona Isaura,
foi contando as novidades. sua mulher, que iria visitar amigos, depois da barragem de
-Terminou minha vingança. A morte de Enéias Viei-
Praquió. Algo completamente distinto do quem dirão depois
ra (assassinado por seu irmão António, de 20 anosi
me deixou com um dever cumprido com meu pai os mesmos jornais, mais ainda, do já diziam e dizem aqueles
-Quantos matei? Ora, nunca matei ninguém. Eu tava que testemunharam ou estavam próximo no dia fatídico.
caçando nambu e os sujeitos escondidos no meiu do
mato. A gente atira e quando vai buscar o nambu
Chovia naqueia quarta-feira de cinzas do dia 24 de fe-
tava lá mais um sem sorte... vereiro de 1971, como que por aqueles presságios que o grego
Explodia em gargalhadas. A morte pouco importava Plutarco (46 d.C. - 120 d.C.) descreve antes da morte dos seus
para os seus valores.
-A polícia de Águas Belas fez um trato comigo: eu
biografados, tudo intuía para que Floro não aceitasse o con-
não pareço na cidade e eles não pisam nos meus vite de Mane Miúdo, marido da Senhora Edivirges e muito
calos. Outro dia é que me deixaram rneio cabreiro. amigo da família Novaes - homem de confiança- para ir caçar
Precisei ir a cidade tomar uma cervejínha e quando
me preparava para voltar, vi na estrada um monte veados no riacho de Mel. Iriam também a esta caçada os ir-
de policiais. Tinha uns 20 homens. mãos Wilson e Américo Lins de Carvalho, filhos do João Lins,
-O que você fez?
que como Mane Miúdo, moravam nas bordas da serra dos
-Acendi um charuto e passei com o jipe no meio dos
meganhas. Cavalos, muito perto do Mamoeiro.
Assim era Floro. Costumava dizer que "covarde Inicialmente iam à caçada em um jipe que Floro pos-
morre muitas vezes e homem de coragem só uma".
suía, o carro simplesmente não pegava, ainda pensavam que
Um Floro bem mais tranquilo, divertido, dado às bebi- fosse a má qualidade do combustível, esvaziaram o tanque
das, talvez confiante demais... com uma mangueira e puseram outro combustível que havia
Se inicia agora a última parte da narrativa, que começa em um tonel guardado para necessidades. Resolveram ir de
lá no Capim e findará no riacho do Mel, ou "me", no dizer burra mesmo, que ele tentava selar e ela empinava e bufava.
sertanejo. Tomo como fonte literária um livro de Reginaldo Floro mesmo pediu para o ajudante sair que ele mesmo se-
Heráclito A morte de Floro Gomes Novaes e o aniversário lava: "Sai daí fí da peste, deixe que eu selo" {Op. Cit, 1981).
Floro limpou a espingarda calibre 12, contou os car-
tuchos, colocou 14 no aio - espécie de bolsa que o sertanejo
296.GRANJA, Paulo. Floro Novaes, o último vingador. Gazeta de Alagoas, Maceió, 29
de agosto de 1975. Opinião. usa para caçar, algo semelhante a um alforje - e dois no cano.
Calçou as botinas, colocou uma roupa mais grossa ck-vido a Wilson corresse para não morrer, qutj de mesmo ficaria e resol-
água da chuva e os matos de espinheiros, ajeitou seu chapéu veria a situação. E foi o que Wilson fez, disparou na montaria c
de sumé que lhe tinha presenteado Sebastião Trovão, admi- correu de volta à fazenda Mamouiro a toda pres>a.
nistrador da Fazenda Carie, e reforçou o café da manhã. A parada que teve Ftoro ao receber o primeiro tiro em
Dona Neném, a senhora que era como mãe dele na au- seu chapéu, e o cornando de mandar Wilson fugir,, propiciou
sência de Dona Cuiomar e que além do carinho materno que Alfredo acíonar seu mosquetão e acertar um balaco nas cos-
nutria por ele, ainda era responsável pelas proteções máo-j- telas mindinhas de Floro que até lhe queimaram o braço. A
cas, já vinha lhe pedindo desde o café da manhã para que dupla de pistoleiros correu caatinga adentro enquanto Floro
ele não saísse. E pediu novamente na porta da casa quando sentia uma dor forte asfixiando seu peito, e o ódio ainda o
juntamente com Wilson de Carvalho, já iam cada qual em sua mantendo de pé. Os sons de bala em meio á caatinga eram
burra em direção à caçada. D. Neném já vinha reclamando há tão corriqueiros que não houve alma que de imediato pro-
muito o fato dele não estar respeitando as orações e ingerindo curasse investigar o que estava acontecendo. Enquanto isso
muita bebida, isso segundo os costumes locais, abre o corpo, e Floro, sem conseguir enxergar de onde vinham os tiros, ati-
o expõe às piores mazelas, sem falar que era uma quarta-fei- rava para cima, sempre a praguejar "-Vem para cá, amarelo
ra de cinzas, um pecado fazer caçada nesse dia, porém Floro safado, para gente morrer trocando tiro". E nisso tiro e mais
andava muito indisciplinado no cumprimento dos aconselha- tiro. (Op, Cit, 1981). A burra de Floro havia fugido e lhe dei-
mentos da curandeira. xado lá, ferido e sem saber o que fazer, a não ser praguejar
Nisso Wilson apressando Floro, dizendo que já estavam e pensar por qual lado da clareira entraria caatinga adentro
todos a espera-los no riacho. A chuva começou a serenar e de- para procurar os atiradores.
pois o céu abriu. Fazia um dia muito bonito, os bem-te-vis à Enquanto isso, estavam Jurandir e Alfredo aflitos pela
cantarem em seus tristes trinos, os colibris à saborearem as flo- possibilidade de o atentado não ter sido fatal e de terem sido
res vermelhas do cardeiro, as baraúnas e os flamboyants pujan- reconhecidos. Pois como todos já sabiam, Floro só morreria por
tes no caminho prometiam um dia de belo divertimento. emboscada, ninguém ousaria enfrenta-lo homem à homem,
A aproximadamente l quilómetro da fazenda, escon- tão perito e afamado ele era. Ainda deu tempo de tomarem um
dido por detrás de uma moita na caatinga, de tocaia estavam gole de cachaça que traziam num cantil quando quase como
Jurandir Valença com espingarda 20 e Alfredo Godoy de que por mágica aparece Floro na frente deles. Os dois, Alfredo
mosquetão, ambos com 38 e facas à cinta. Eram inimigos de e Jurandir atiraram ao mesmo tempo em Floro, que de tanta
Floro na região. dor já havia perdido o reflexo. O tiro de mosquetão atingiu a
Floro jamais poderia imaginar que naquele descampado perna esquerda partindo-a, e o da espingarda do Jurandir, re-
poderia vir algo de perigoso, até que Jurandir com sua espin- cheada de rolimãs cravou o peito de Floro. Diz-se que nesta
garda direcionou um projétil que varou a aba do seu chapéu de hora o homem urrou como um bicho. Caiu abaixo da copa de
Sumé. Logo a perceber o que estava ocorrendo, pediu para que uma umburana. "-Tu me paga, filho da peste!", (Op. Cit, 1981)
na região dizem tor íiJo ;>s suas ú l t i m a s palavras. exame foi contestado peia iu.-t;c:i posteriormente, por esse
Wilson chegou do riacho, Américo e Mane -Miúdo fo- médico não ter cur^o superior nci área. não passando de um
ram logo p e r g u n t a n d o onde estava Floro, Wilson respondeu farmacêutico. O cortejo saiu da sua casa na fa/enda, hoje per-
que quando estavam vindo receberam tiros e Floro os tinha tencente à família Marinheiro. Dizem na região que o cadáver
ordenado a fugir. Iodos foram para o local do tiroteio, en- mesmo na sexta-feira já dentro do caixão para ser enterrado,
quanto Mane pede para Américo ir no Mamoeiro avisar a lá na cidade de Jacaré dos Homens-AL, não exalava nenhum
dona Nenen. No loca! do tiroteio nada encontraram, nem mal cheiro. Foi enterrado ao lado de seu pai.
sangue. Havia a possibilidade de terem o matado e levado o Muita gente foi detida para averiguações, desde os que
corpo, ou a polícia alagoana tê-lo encontrado ainda vivo e o o convidaram para cacada até os que de fato provocaram a
levado para as autoridades. Ninguém achou Floro nesse dia. emboscada. Jurandir e Enéias Boiadeiro confessaram, Alfredo
D. Nenen chorosa sempre dizendo que se Floro tivesse res- Godoy desapareceu. Os dois primeiros condenados, mas com
peitado as "orações" nada daquilo teria ocorrido. pouco tempo de reclusão. Enéias Boiadeiro como mandante,
Apenas na quinta-feira Floro rói encontrado encostado Jurandir como executor. Aqueles já citados como amigos de
numa árvore, com a espingarda 12 no colo e olhos arregalados. confiança: Wilson, Américo, Mane Miúdo... todos inocenta-
O frio da noite aliado com a chuva deixou o cadáver tão intac- dos antes mesmo de irem à investigação mais profunda.
to de um dia para o outro que quando o avistaram - em um Através das entrevistas que tivemos, ouvimos versões
local um pouco afastado de onde ocorrera o tiroteio - os que muito diferentes do porquê do assassinato de Floro Gomes, a
procuravam-no temeram aproximar-se, e o morto, ainda vivo, principal delas foi uma rixa que teve ele com a família Paes,
pensar que eram os inimigos e abrir fogo. Percorreram o cami- mais especificamente com um indivíduo chamado António
nho do tiroteio até onde encontraram Floro, e na trilha depara- Paes, ou mais conhecido como António Bigodão, agregado da-
ram-se com 12 cartuchos detonados, ficando apenas 2 no aio. quele mesmo povo que ele julgava "de confiança", e que mo-
O velho João Paes, amigo dos Novaes do Mamoeiro, ravam na fazenda Cachoeira Grande. Essa versão que ouvimos
que residiam na fazenda Cachoeira Grande, vestiu o magro do início ao fim é muito plausível, tendo até ocorrido um episó-
cadáver e mandou pedir um caixão em Garanhuns - PE. Os dio em que António Bigodão é perguntado por Floro se aguen-
exames cadavéricos foram feitos pelo médico João Secundino taria l mês de briga com ele, e António por sua vez responde
de Souza, de Águas Belas, e a causa mortis: hemorragia interna que l mês não, mas l ano. Esse episódio sincroniza-se com a
por vários ferimentos transfixiantes perto do coração.297 Esse caçada de veados, cerca de um mês após o diálogo morre Flo-
ro. Em suma, este artigo não se pretende ser uma investigação
histórica de caráter criminal, apenas a exposição duma saga
297."Na manhã seguinte, ontem, a poliria iniciava as investigações em torno do crime
Muito temido na região, Floro teria sido apanhado numa emboscada, quando se
como estudo de caso para a violência no sertão nordestino.
preparava para caçar veados. A policia pretendia ouvir alguns dos mais notórios Ezequiel Novaes, filho único de Floro, a quem o pai
inimigos do pistoleiro que nos últimos tempos se dedicava as atividades de fazen
deiro." P.3 in: Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3 de Março de 1971. gostaria que fosse doutor e não se envolvesse nesses prelos,
GONÇALVES, Roberto ' L T i:. ^erMnejo vingador e
-s B e i a s - P E , vingar o justiceiro'': assim se a u t o d e n o m i n a v a Pioro Conus Nuvae;,.
pai. Como todos os que conheceram de perto a história, Eze- jornal a Tribuna, Maceió, 31 de janeiro de 199L>.
quiel sabia que a f a m í l i a Paes-ou seja, nada coma antiga rixa
com os Vieira - fora a ordenadora. Repetindo: Ezequiel Nova- VTLANOVA, Roberto. Com Henrique, a trégua rompida nos
es, filho único de Floro foi... apenas foi. Hoje desde quando crimes de vingança em Alagoas. Gazeta de Alagoas, Maceió,
foi, está junto ao pai, e ao avô, em covas vizinhas, lá na cidade [sem datação].
alagoana de Jacaré dos Homens.
MACENA, Leio. Quintella: "Um Homem de Palavra"/
O homem que prendeu um dos maiores "pistoleiros" de
REFERÊNCIAS
Alagoas era respeitado, no meio policial e no crime, por
cumprir o que dizia. Gazeta de Alagoas, Maceió, 3 de
Fontes primárias janeiro de 2010.
OLIVEIRA, Jorge. Uma história do cangaço. Correio da
Bibliografia
Manhã, Rio de Janeiro, 3 de março de 1971. Anexo, p. 2 e 3.
CHAGAS, Clerisvaldo; FRANÇA FILHO,. Fforo Novais,
GRANJA, Paulo. Floro Novaes, o último vingador. Gazeta Herói ou Bandido?. Alagoas: A Trolha, 1985.
de Alagoas, Maceió, 29 de agosto de 1975. Opinião, p,6.
CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião: o rei dos
GRANJA, Tobias. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 21 de abril de cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
1971. P. 94-98.
GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do
CALHEIROS, Vladimir Maia. De editor-geral a repórter no século XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997.
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GREGÓRIO, José. Cangaceiro e Herói: Jesuíno
EDITORIAL. Crimes e Processos insolúveis em Alagoas Brilhante. Campina Grande: A União, 1976.
(sinopse). Jornal Extra, Maceió, 8 de julho de 2011.
HERÁCLITO, Reginaldo. A Morte de Floro Gomes Novaes
GONÇALVES, Roberto. Dona Guiornar, Mae de Floro: vida e o Aniversário da Sudene. Maceió: Cepe, 1981.
de lutas e sofrimentos. Gazeta de Alagoas, Maceió, 9 de
março de 1996. HOBSBAVVM, Eric J.. Bandidos. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra,
2015.
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está praticamente inerte. Jornal a Tribuna, Maceió, 12 de LAMBERT, Jacques. La vengeance privée et lês fondements
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254

MEÍ.LO, Frederico P e r n a m b u c a n o de. Guerreiros do Sol- A RESS1GNIFICACAO DOS CRIMINOSOS NA


Violência e banditismo no Nordeste do Brasil. 5. cd. bão NARRATIVA FÍf.MlCA ; y s
Paulo: A Girafa, 2011.

PINTO, Luiz de Aguiar Costa. Lutas de famílias no Brasil.


São Paulo: Ed. Nacional, 19SO.

SLATTA, Richard W. Bandido: Varieties of Latin America


banditry. New York: Greenwood Press, 1987
A história do cinema está intrinsicamente ligada aos
filmes criminais. O género é um dos primeiros a despertar
não só a atenção de produtores e de espectadores, mas tam-
bém de pensadores e pesquisadores das Ciências Humanas.
Aumonte Marie (2006) destaca a obra.Histoired'um crime (Fer-
dinand Zecca, 1901) como pioneira na representação do tema,
apenas seis anos após os irmãos Lumière fazerem a primeira
projeção fílmica na França. A presença do género não só mar-
cou a história da cinematografia desde os seus primórdios,
como manteve espaço em salas de cinema e no imaginário
dos espectadores.

O filme criminal è um género que atravessa toda


a história do cinema e foi ilustrado na produção de
muitos países. Ele não parou de prosperar, resistindo
a todas as flutuações dos modos cinematográficos e a
todos os abalos das estruturas de produção. Seu rosto
hoje é multiforme. (AUMONT e MARIE, 2006, p. 67).

No Brasil não foi diferente. As primeiras imagens a


serem rodadas em um cinematógrafo foram registradas em

298.Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Audiovisual e Visual, integrante


do IO' Encontro Nacional de História da Mídia, 2015.
299.Mestra em Práticas Culturais nas Mídias, Comportamentos e Imaginários da Socie-
dade da Comunicação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail; crispires*
terra.com.br.
'•".-'^•-". -'.x. croiii ..'S dc historicidade, cunvcrlundo-
1898. Lego depois, surge d primeira p e l í c u l a p o l i c i a l , em 19Q8- -j'., :?."• - ;| -1 r u n c j » MXI.I! em testemunho- v i s u m s
Os estrangiilaàores, do Giuseppe Labanca e A n t ó n i o Leal. A d», u in,i d õ d,-i época c lu^ar. Como LIÍ.S, permitem a
cr-rnpr.iijr.fãi; de come o •s homens constróem a vida
obra tinha quase 40 minutos de projeção o que, segundo Go-
social, uma vi?z qu-j estes exprçs-am e. deixam re-
mes (1996), era incomum para a época. Contava a história de gisirados par;i a posteridade, práticas suciais, modas
um fato verídico que chocou o Rio de Janeiro do início dos de pensar, valores, símbolos, sentimentos, compor-
tamento;., tensões, expectativas, temores, próprios
anos 1900: o assassinato de dois meninos por um bando de de uma determinada sociedade. Abrem, assim, no-
criminosos. A obra ganhou destaque na época e foi exibida vas perspectivas para que o homem conheça seu mo-
mento hisiónco, sua relação com outros homens, o
mais de 800 vezes, "constituindo um empreendimento sem
como e o porquê os homens se educam, subsidiando
precedentes no cinema brasileiro" (COMES, 1996, p. 26). a reconstrução histórica do objeto educação (CAR-
O pioneirismo do género e sua aceitação junto ao pú- VALHO, 1998, p. 121).
blico tornaram os filmes criminais objeto de estudos que
buscam decifrar os parâmetros narrativos estabelecidos e a Para Jameson (1995), a historicidade é fundamental na
consequente estilização da violência pelo cinema. Silva (2013) análise crítica dos filmes. "[...]A única maneira de pensar o
nos ajuda a entender que essas matrizes inesgotáveis de sig- visual, de inteirar-se de uma situação em que a visualidade
nificações, quando bem recebidas pelo espectador, acabam é uma tendência cada vez mais abrangente, generalizada e
sendo repetidas em outras obras e, desta forma, as caracterís- difundida, é compreender sua emergência histórica" (jAME-
ticas se perpetuam nesse tipo de filme. SON, 1995, p. 1).
Para analisar os efeitos e elementos presentes no gc- A dimensão histórico-cinematográfica é, segundo Ja-
nero, é necessário levar em conta o período histórico em que meson, uma forma de buscar a historicidade da percepção,
os filmes foram produzidos. Com efeito, esse olhar sobre o que possibilita processar o conteúdo de cada período. Nesse
passado acaba impregnado com as significações do presente, contexto, O poderoso chefão (Francis Ford Coppola, 1972, EUA)
que levam à reconstrução da história com bases em visões do e Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (Hector Babenco, 1977,
mundo como forma de imaginação. "O passado é reconstru- Brasil) são obras que retratam, por meio da experiência esté-
ído como espaço mítico, porque há um distanciamento em tica, a complexidade das relações e, assim, tornam-se fontes
relação a ele" BARBOSA (2014). No entanto, Barbosa desta- inesgotáveis de significação.
ca que texto e imagens ficcionais vão além desse imaginário, A representação cinematográfica dos protagonistas
uma vez que se constituem também em documento de histó- Lúcio Flávio (figura 1), vivido por Reginaldo Faria na obra de
ria, encharcados pelo olhar do tempo em que foram produzi- Babenco, e Michae! Corleone (figura 2), interpretado por Al
dos, entendimento compartilhado por Carvalho: Pacino no filme de Coppola, é construída com uma imagem
de identidade baseada em valores como incorruptibilidade,
Trata-se de iançar mão da imagem para a discussão
honestidade e combate ao crime, questões que preocupavam
de temas históricos, de utilizar o cinema como fonte
para o conhecimento da história. Isto porque suas norte-americanos e brasileiros no período em que os filmes
foram feitos. Em 197_ o? Furados Unidos \i\*iam os dilemas Lúcio H á v i o t f i m K j i n cr.i um mor.iro sonhador como
da guerra do Vietnam, enquanto o Brasil, em 1977, estava em conta o pai de s tinto D o n d i n h o K~!randu Otelo') ao policial
plena d i t a d u r a do regime m i l i t a r . Nas duas narrativas, eata 132 (Milton Gonçalves), em uma cki^ primeira--, sequências
ambiguidade entre censura, conflitos políticos, falência do do filme.
Estado e guerra, vivida pela população dos dois países, refle-
Policial 132: "A lá u O ir. ai conhece o Lúcij Flnvio?"
tia-se nas telas.
Dondinho: "Boquinha?"
Policial 132: "Kequinha?"
Dondinho: "E isso mesmo, moco. E um menino so-
nhador." Policial 132: "Esse bandido é gente, vovô?"
Dondinho: "Eu não to falando do bandido, eu to fa-
lando de um menino que eu conheci. Se deu no que
deu não foi culpa dele, foi culpa da mãe dele que não
apelou para lemanjá."
Policial 132: "Assim a gente não prendo ninguém,
vovô."
Dondinho: "Ah, e isso interessa alguma coisa? Pra
polícia a gente é o que a polícia quer que a gente
'seje'. Por exemplo, qualquer negro pra polícia é
malandro. Hahahahah!" flÚCIO FLÁVIO, O PAS-
SAGEIRO DA AGONIA, 1977).

Ao mesmo tempo em que as obras utilizam uma lin-


Figura l - Lúcio Flávio Figura 2 - Michael Corleont 1 guagem e a estrutura fílmicas que contemplam o papel pa-
ternalista dos personagens, as cenas também revelam o lado
Além disso, o discurso social das obras conta a histó- mais obscuro e violento. Lúcio Flávio mata dois bandidos que
ria de personagens que atribuem sua entrada ao mundo do traíram a gangue. Michael também comete assassinatos e or-
crime não por vontade própria, mas pela situação em que se dena a morte do próprio cunhado. Mesrno essas mortes estão
encontram naquele momento. Essa humanização explica, em ligadas à tão defendida lealdade: os homens que perdem a
parte, a aceitação do público pelos protagonistas. Michael vida descumpriram com o que haviam prometido.
Corleone não quer assumir os negócios criminosos, e só o faz Essas cenas de violência também podem contribuir
quando o pai, Don Vito (Marlon Brando) sofre uma tentativa com a fascinação dos espectadores, possibilitando a quem as
de assassinato. "Fique deitado, papai. Cuidarei de você ago- assiste que goze das vias proibidas do submundo do crime,
ra. Estou com você agora. Estou com você" (O poderoso chefão, mesmo que no âmbito da recepção cinematográfica. Este fe-
1972). O diálogo é quase um sussurro ao patriarca, que está nómeno, segundo o Colégio de Sociologia (1937 e 1939), faz
hospitalizado e vulnerável e, emocionado, chora ao ouvir as parte da valorização do homem a certos instantes raros, fu-
palavras do filho. gitivos e violentos de sua experiência íntima, como explicam
Legros, Momeyron, Renard e Tncusse! (20]4). 'r.ente libada ao género criminal. A exMêncLi de a-^assinatos,
Battaile, personagem central do grupo de pensadores usurpação c experiências M.>.\uai> com quem e o que se quiser
entendia que a sociedade precisa viver fenómenos desprovi- exerce uni fascínio inegável, ainda que repleto de conflitos.
dos de utilidade, como o erotismo, a violência, a festa, os ritos Carroil (2004) a t r i b u i a fascinação por esse tipo do persona-
religiosos, o derrame de sangue, o sexo sem finalidade di> re- o-ens à realização simbólica de nossos desejos mais obscuros e
produção, os chamados elementos heterogéneos, para extra- de nossas profundas fantasias: o personagem come, faz sexo,
vasar toda sua energia. Se não tivesse esse escape, o homem bebe c fuma sempre que deseja, permite que a raiva flua, tem
morreria (JORON, 2004). O estudo batailliano levou em conta sua própria versão de justiça e consegue escapar das contra-
o fenómeno na literatura, mas pode ser aplicado no cinema, venções que comete.
uma vez que os filmes também permitem ao público provar Além disso, dentro da estrutura das narrativas, os per-
um repertório repleto desses elementos. sonagens principais são mais morais dentro da história do que
Embora se estabeleça essa relação de tensão entre as outras figuras. Lúcio Flávio e Michael Corleone lidam com
transgressões do criminoso e o que é moralmente aceito pela uma polícia sem escrúpulos. Lúcio Flávio é torturado por po-
sociedade, Mann (2013) completa que o fora da lei busca coi- liciais corruptos (figura 3), enquanto Michael tem a mandíbula
sas semelhantes às que as pessoas querem em suas vidas: quebrada por um capitão da polícia (figura 4) quando o acusa
melhorar sua condição social e a satisfação de desejos. Isso de suborno. Os espectadores, em vez de encontrar característi-
não significa dizer que os espectadores queiram vivenciar si- cas heróicas nos agentes que deveriam prover a sua segurança,
tuações de angústia, de derrame de sangue ou de medo no os vêem envolvidos em questões imorais e abuso de poder.
dia a dia, mas, por meio da narrativa cinematográfica, elas
podem viver isso sem correr qualquer risco, ou seja, "podem
viver por procuração", conforme define Joron. Hikiji (2012)
corrobora com a interpretação, ao entender que a violência é
matéria-prima dos filmes porque aponta "as fronteiras fraca-
mente demarcadas entre real e imaginário, o que tememos ser
e o que somos".
Para Martin (2012), que se apropria do seriado Família
Soprano300 e seu protagonista, Tony Soprano, como objeto de
estudo deste paradoxo, essa realização de desejos está intima-
Figura 3 - Lúcio Flávio é torturado por policias corruptos

300.Seriado ficcional de TV norte-americano com o titulo original The Sopranos, produ-


zido pela tevê por assina tuia HBO, entre 1999 e 2006, cujo personagem principal é o
chefão da máfia de Nova Jersey, Tony Soprano, interpretado por James Gandolfini.
A série se tornou referência do género criminal nas produções feitas para a tevê.
Figura 4 - Michael Corleone tem a mandíbula quebrada Figura 5 - Lúcio Flávio e a esposa Jnnice

Eu sou bandido, sim. Eu roubo dinheiro de banco,


que não tem dono. Se eu preciso da grana, eu vou
lá e tomo ela. Por isso que eu sou bandido. Agora,
se for preciso atirar, eu atiro, porque eu to me de-
fendendo. Eu nunca saí pra assaltar banco pensando
em matar alguém, não. Agora, os nossos amigxiinhos
não só ganham como tèrn alvará para sair matando
por ai. (LÚCIO FLÁVTO, O PASSAGLERO DA AGO-
NIA, 1977).

Ao mesmo tempo, tentam preservar a família, especial-


mente os filhos, e deixá-la fora do mundo do crime. Lúcio
Flávio mente para a esposa, Janice (Ana Maria Magalhães), Figura 6 - Michael Corleone e a esposa Kay

que nunca matou alguém {figura 5), como forma de tranquili-


zá-la e deixá-la de fora dos negócios do grupo. E promete: "Se Ao expor os dilemas dos personagens com essas ques-
Deus quiser, um dia desses, eu vou dar um golpe e a gente vai tões, as duas obras também trazem à tona, por meio da lin-
mudar de vida". Diálogo semelhante é travado por Michael e guagem e a estrutura fílmicas, valores familiares, honra e
a esposa Kay (Diane Keaton), ao negar a autoria de assassina- amizade. A obra de Coppola, adaptada para as telas do ro-
tos e prometer que os negócios estarão legalizados em cinco mance ficcional de Mário Puzzo, manteve o título origina! The
anos (figura 6). godfather que, na tradução literal, significa "o padrinho", pala-
vra que remete à segurança protetora no imaginário utópico.

[...] O filme de máfia era constitutivamente orga-


nizado em tomo da solidariedade entre o chefe
individual t1 a gangue, família ou grupo étnico do
;jiui cmèri.;^. O glíiT1.',, .ir secr^o Je tniã obrrií podi-
[•oubos a banco. F r e í > > em 1 ^ / j foi j-.-.^ií-sin.ado dentro da cel.i.
ser t'Xphi:;Klu peLis maneiras em que cia.-, desvelam
fantasias inconMjientes do comunidade c uiilizani a A narrativa é um;t das características que torna a pelí-
traje to n n i n d i v i d u a l do gíngsler como um pretexto cula de Babenco s i n g u l a r . Tudo á contado a partir do ponto
para vivenciar a representação de uma intenda vidj
cole l K d em grupo que está faltando nas experiências
de vista do bandido. Para Ramos (20(14), o manto social de
pri\ati7.adas dos próprios espectadores (JAMESON romance-reportagem dá ao filme o reconhecimento e garante
1995, p. 150). a possibilidade de cumprir sua função social de denúncia.
O poderoso chefão se destacou como um dos principais O filme' de Heitor Bubenco movia muito bom suas
representantes da categoriapor impor essa função ideológica peças imagéticas c narrativas. [...] Não podemos es-
quecer que Lúcio Flávio foi realizado com cuidados
ao mito da má fia. Jameson301 (1995) preconiza que o filme de
de produção que apontavam para um padrão em
Coppola reinventa este mito e representa a permutação de formação. Temos um exemplo df um produto bem
uma convenção de género ao expor antagonismos populistas, confeccionado em seus diversos aspectos, dentro
dos limites possíveis dos limites cinematográficos
como crimes do colarinho branco ou hostilidade em relação da era de 1970. Uma ficção atrativa em termos narra-
às companhias de serviço, comuns nos Estados Unidos à épo- tivos e sintonizada com as novas condições audiovi-
ca do lançamento da película. Para Jameson (1995), a narra- suais (RAMOS, 2004, p. 156 c 157).

tiva em torno da máfia em O poderoso chefão proporciona um


deslocamento estratégico de toda a ira gerada pelo sistema Embora Babenco tenha obtido autorização, em plena
norte-americano que levou à deterioração da vida nos Esta- ditadura militar brasileira, para manter na fita as cenas de
dos Unidos dos anos 1970. tortura sofridas por Lúcio Flávio, uma vez que elas foram
Assim como O poderoso chefão. Lúcio Flávio, o passageiro cometidas por servidores corruptos e não por policiais far-
da agonia também é fruto de uma adaptação literária. Babenco dados ou homens do Exército, a película precisou passar por
levou para o cinema o livro homónimo de José Loureiro. Con- várias adaptações para receber permissão para ser exibida. O
ta a história verídica do criminoso Lúcio Flávio (Reginaldo próprio Departamento de Censura de Diversões Públicas
(DCDP) do governo militar preocupava-se com a capacidade
Faria) e sua gangue, que era conhecida no Brasil por roubos a
de comunicação do cinema, especialmente para criar mitos,
bancos, noticiados constantemente pelos meios de comunica-
ção. Lúcio Flávio denunciou o esquema de corrupção dentro conforme destaca Reimão (2014):
da polícia, que recebia boa parte do dinheiro proveniente dos "(».) consideramos viável a transformação do livro
em roteiro cinematográfico, desde que sejam con-
figurados, de forma clara, o arrependimento do
301.0 Poderoso Chefão é considerado o melhor filme de gângsteres de todos os tempos criminoso com seu estilo de vida (...) e, finalmente,
e o segundo melhor filme entre todos os géneros da história pelo American Fitm seu propósito em tentar regenerar-se, dias antes de
ínstititte Figura em oitava posição no ranking da revista de cinema do British Film ser morto por seu companheiro de cela" (REDvtÃO,
Institute, Sight & Sound Magazine, divulgada em 2013, entre os 10 melhores filmes
da história da Sétima Arte. A partir do sucesso da produção, a obra se tornou uma
2014, p. 15).
trilogia, com O Podera-to Chefão U (The Godfathir: Part U, 1974) e O Poderoso Chefão IU
(Thf Gmifather: Part III, 1990.
a argumentação de que o filmo fala do presente, apresentj
o protagonista como vítima e que não mostra a sanção ao*, sona^ens
o da trama.
policiais corruptos. Para resolver o impasse, Babenco acres- Isso inclui, em ambas a? produções cinematográficas, a
centou, no final do filme, a informação de que os policiais que própria polícia, que se revela mais corrupta do que os bandi-
participaram da ocorrência não pertenciam mais aos quadros dos. "Que ladrão, minha gente? Ladrão é quem faz grandes
da instituição e que tinham sofrido as sanções penais adequa- negócios, 'tá' sempre com grana no bolso, jantando em lugar
das. Com as adequações, o filme foi liberado para maiores de bacana. Não fica se escondendo 'pelai', não", classifica Lígia
18 anos e sofreu quatro cortes, indicados no parecer. (Lady Francisco), amante de um dos integrantes da gangue.
Mesmo com todas as preocupações e exigências da Lúcio Flávio emenda: "A gente faz o assalto e eles ficam com a
censura, Lúcio Flávio, o passageiro da agonia foi um sucesso de porra da grana. [...] Moretti leva 30 mi! limpinho, sem sair de
público 302 . O criminoso que ganhou vida na interpretação de casa, e a gente é que se ferra.", referindo-se ao policial corrup-
Reginaldo Faria teve o público como aliado, reação que tam- to (Paulo César Peréio) para quem "polícia e bandido é tudo a
bém ocorreu em relação ao protagonista da obra de Coppola, mesma coisa, 'tá' tudo no mesmo barco." Já Michael Corleone
Michael Corleone. dispara contra o capitão McCluskey: "Quanto o Turco está
Para Carrol (2004), a questão de um personagem de fic- pagando a você para deixar meu pai 'descoberto'", referin-
ção, cujo correspondente na vida real despertaria ódio, acabar do-se aos pagamentos recebidos pelo policia! para proteger o
se tornando simpático envolve diversos dilemas. A fascina- criminoso de uma família rival.
ção e a pró-atitude em relação a essas figuras se dá porque, Assim, as características presentes nas narrativas fílmi-
dentro da estrutura relacional do mundo fictício, comparadas cas de O poderoso chefão e Lúcio Flávio, o passageiro da agonia são
a outros personagens elas são relativamente mais justas ou um exemplo claro dessa influência, uma vez que fazem com
até mesmo mais morais, e apresentam capacidade de com- que os protagonistas fiquem longe de se assumir o papel de
paixão, mesmo que não desenvolvida por completo. "Outros vilão no contexto com outros personagens e, assim, tornam-se
representantes da autoridade moral também têm a imagem mais agradáveis (CARROL, 2004). Lúcio Flávio rouba dos ban-
manchada. Vemos líderes defensores dos direitos civis em cos, tira dos poderosos, nunca da população. Michael busca
uma maneira de legalizar a família Corleone, saindo do mun-
302,Lúcio Flávio, o passageiro da agonia, figura até hoje entre as maiores bilheterias de
do do crime. Mesmo transgredindo regras socialmente aceitas,
filmes brasileiros, segundo dados da Ancine: ocupa a sexta colocação entre todas as eles questionam a postura daqueles que deviam proteger a po-
produções nacionais, com mais de 5,4 milhões de espectadores. De acordo com o
Centro Técnico de Artes e Ciências do Ministério da Cultura, a produção venceu o pulação, levam para as telas sentimentos antagónicos.
Festival Internacional de São Paulo - 1977, com o prémio de público Melhor Longa-
Metragem (Hector Babenco). Também saiu vencedor do Festival de Gramado de
Além disso, embora descumprissem a lei, mantinham
1978, com Kikitos de melhor ator (Reginaldo Fanas), melhor fotografia (Lauro Esco- valores como lealdade aos amigos e atenção especial à famí-
rei), melhor montagem (Silvio Renoldi), melhor ator coadjuvante (Ivan Cândido).
lia, fosse investindo na tentativa de ser um bom pai, traçar
CARVALHO, lilma J ú l i a Gonçalves di'. Cinema, história c
planos de u m a vida m e l h o r para seus filhos ou seguindn educação. Revista Teoria u Prática da Lxiu^icão - Rex l-?;a
certas regras, mesmo que fossem as regras dos criminosos. do Departamento de Teoria e Prática da Educação da
Essa combinação de mensagens, por meio de diálogos orais Universidade Estadual de Maringá, Vol. 3, n c 5, 501,1998, p.
e visuais que permitem ao espectador viver no limiar da pa- 121-131.
lavra e da imagem, também acaba por seduzi-lo a favor dos
protagonistas. As narrativas fílmicas das duas obras propor- CARROL, Noel. Simpatia pelo diabo. In IRWIN, \Villiam
cionam inversão de papéis, o que Messenger (2002) classifica (org). A família Soprano e a filosofia. São Paulo: Madras,
como "espelho representaciona! do chefe" pelo papel cativan- 2004.
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espectador e conquistam sua simpatia, estabelecendo cumpli- Nome, 2012, 200 p.
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video]. Produção e direçào de David Chase (HBO). Estados
Unidos, 1999 - 2007. 86 episódios, 6 temporadas, color. son.
Formato 130mm x 210mm
Fonte: Família Palatino Linotype
Miolo: Papel Lux Cream imune 8Qg/m!
Capa: Papel triplex 250g/mJ
Tiragem: 100 exemplares.
Maceió, 2017

Impresso e diagramado por:

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OFICIAL
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