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Do mítico-mágico ao logos.

Texto para aula


Dr. Luiz Gilberto Kronbauer.

Pode-se comparar a mentalidade mítico-mágica dos povos antigos com a


imaginação infantil, desde que se reconheça o valor tanto duma quanto doutra. Desde
muito cedo as crianças conferem vida e poder às coisas, desde enormes árvores e
montanhas a minúsculos insetos, bem como a pertences e utensílios familiares ao
cotidiano. Mas ao ingressarem na aventura de ler o mundo as crianças já estão envoltas
por um mundo-linguagem, que modula o modo de perceber as coisas.
O Filósofo da Educação Anísio Teixeira escreveu que as comunidades humanas
da antiguidade viveram eexperiências semelhantes às de cada criança quando foram
gradativamente ingressaram na linguagem. Ou quando substituíram o “envoltório
protetor do meio natural” e fizeram da linguagem a sua morada. Diz ainda que esse
rompimento com o mundo natural possibilitou o distanciamento epistemológico e a
manipulação do mundo, o seu domínio técnico, fazendo com que o ser humano pudesse
afirmar-se como sujeito, que se dirige aos outros sujeitos pela linguagem e que se dirige
à realidade exterior (natureza) pelo trabalho.
Mas por muito tempo prevaleceu a mentalidade mítico-mágica que, ao modo das
crianças que ainda não conseguem abstrair-se do concreto, não distingue as palavras das
coisas que elas designam. Essa é a característica da palavra-mito: ela se identifica com
a coisa por ela designada.1 E isso é tão decisivo que dizer é fazer acontecer. É por isso
que certas palavras que não devem ser ditas. Ou retomando a mentalidade da criança,
também ela imagina que o que se diz acontece. É a imaginação criativa da criança que
inventa histórias reais.
Coisa semelhante acontece nas narrativas dos povos primitivos. As
confabulações sobre os seus feitos, tornando-os presentes, era uma forma de mantê-los
vivos e de se deleitar com a memória das próprias façanhas. De início não havia nesses
„causos‟ a intenção de exercício intelectual. Tinham por objetivo o deleite no „fumo
envolvente e delicioso das suas emoções revividas no prazer ou na pena das lembranças
de perturbações e dores da realidade‟. A recordação tem o „feitio místico e fantasioso de
drama e de poesia, permitindo ao homem primitivo viver em um reino de memórias no,
“reconto fantasiado de sua vida”.2
As histórias fabulosas de rememoração do cotidiano dão origem a um mundo
fabuloso, que pode ser narrado e repetido de geração em geração. E assim foram
surgindo os mitos, as superstições, as religiões, que são o resíduo consolidado das
histórias que os homens de imaginação contavam para a comunidade, nos momentos de
lazer e de folguedo, ou em situações dramáticas do cotidiano.
Mas as narrativas transmitidas para as novas gerações ocasionaram o surgimento
de uma divisão social de conhecimentos e de práticas, ocasionando o surgimento de
uma classe dominante, que tinha a tarefa de guardar a tradição mitológica, e que
consolida seu poder inventando a prática de ritos e cerimônias para lidar com o sagrado.
A outra classe, majoritária, ganhava a vida pelo trabalho e gerava um conhecimento

1
A palavra grega „onoma” acena para a característica mítica da linguagem, que identifica o nome com a
coisa, como se o nome pertencesse ao ser da própria coisa. Gadamer mostra que o surgimento da filosofia
é o momento da suspeita e da virada no sentido de supor que a palavra é nome; ela não diz a constituição
ontológica da coisa designada. In Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 590.
2
TEIXEIRA, Anísio. Pequena introdução à filosofia da educação. 6´. Ed. Rio de Janeiro: DP&A
Editora, 2000, p. 155-156.
prático, de base empírica.3 Aos poucos essa separação entre saber e fazer estruturou-se e
assumiu a forma de sociedades divididas em escravos(obrigados a trabalhar) e homens
livre (do trabalho), caracterizando a separação e até mesmo a oposição entre essas duas
instâncias: o poder mítico-mágico dominador e a atividade prático-produtiva dominada.
Teixeira continua sua argumentação dizendo que a atividade produtiva se mais
complexa devido ao progresso do comércio e das artes, e exigiu novos conhecimentos,
novas formas de legitimar o exercício do poder, que ao poucos denunciaram a
precariedade da tradição diante das novas situações. Então, num processo gradativo de
racionalização em todos os setores da vida, desenvolveram-se as condições para o
surgimento de uma nova forma de saber, caracteristicamente conceitual, que se situou
no entremeio da contradição entre o mítico e o empírico. A racionalização iniciou pela
re-significação da própria mitologia e foi abrindo o caminho para o gradativo
distanciamento da mentalidade mítica na economia (pela adoção de um parâmetro
racional de medida – a moeda), na política (no lugar da legitimação teocrática dos povos
antigos, surge a necessidade do argumento racional na Polis Grega), e a própria
linguagem conceitual foi substituindo a palavra mito (onoma), de tal forma que as
palavras tornaram-se independentes das coisas.
Então os desenhos das coisas e os sinais associados às coisas vão cedendo lugar
a outros sinais, abstratos, sem relação com as coisas, cujo resultado mais acabado é a
invenção do “alfa-beto” grego. Essa fantástica racionalização, verdadeira revolução
cultural, que permite „grafar‟ todos os sons e todas as palavras utilizando-se apenas de
vinte e quatro rabiscos. Em outras palavras, no mundo grego aconteceu o gradativo
afastamento do “imaginário mítico-mágico”, rompeu-se a harmonia entre a palavra e a
coisa, entre o mundo-linguagem e o mundo real. Esse afastamento impregnou-se na
mentalidade e se fez cultura; um modo específico de cultura, que, paradoxalmente, se
legitima através do mesmo logos que a constitui: a cultura da razão.
Pode-se fazer uma analogia entre esse longo processo de passagem do mito à
razão, com o desenvolvimento mental das crianças. Primeiramente, elas percebem que
dizer não é o mesmo que fazer acontecer em carne e osso, então o “uáu-uáu” já pode ser
chamado de cachorro. Depois elas vão entendendo que não há proporcionalidade entre a
extensão da palavra e o tamanho do “bicho” que ela designa. Tendo desenvolvido um
grau mínimo de abstração, elas compreendem que se pode separar as palavras das
coisas; escrever palavras, etc.
A mentalidade mítico-mágica visa dar conta dos acontecimentos e o faz supondo
que as causas e explicações dos mesmos se situam em outra instância. Por exemplo, o
trovão é uma manifestação ruidosa da ira de Tupã. A racionalidade filosófica procura
colocar as coisa na esfera da razão: explicar as coisas a partir delas mesmas, mediante
conceitos racionais, sem apelo à realidade externa (uma divindade, por exemplo).
Marilena Chauí indica fatores que contribuíram para o surgimento da filosofia na
Antiga Grécia, mas isso não significa que ela estabeleça uma relação direta de causa-
efeito entre as navegações marítimas (que desmistificam as narrativas sobre monstros
do mar), o comércio e a adoção da moeda, a forma de organização social e o exercício
do poder (na Polis: a política), a invenção do alfabeto, e o nascimento da filosofia.
Não. Acontece que esses fatores já representam uma racionalização da vida, em
substituição às legitimações mitológicas; uma forma racional de legitimação, ao modo
da filosofia, como tentativa de entender as coisas, a partir delas mesma, mediante
conceitos.

3
Cf. Teixeira, Anísio. Op. cit. p. 156.

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