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FALSAS MEMÓRIAS NO PROCESSO PENAL: CONTAMINAÇÃO DA PROVA

NOS CRIMES DE NATUREZA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS

Alice Passos Simoni

RESUMO
O presente trabalho aborda o surgimento das falsas memórias em crianças que supostamente
sofreram abuso sexual. A abordagem visa sanar as dúvidas sobre qual a importância da
identificação dessas falsas lembranças durante o curso do processo penal. Durante a pesquisa,
resta perceptível que a prova testemunhal, apesar de ser o meio probatório mais acessível ao
curso do processo, é bastante frágil. Estudos da psicologia e da neurociência comprovam que a
mente humana pode criar as chamadas falsas memórias, tanto por implicações internas como
externas, fazendo com que o indivíduo passe a ter recordações de fatos que na realidade não
ocorreram, tais lembranças podem trazer vícios ao processo, naqueles casos em que o único
meio de provar a materialidade do fato é através da palavra da vítima/testemunha. Ainda, no
desenvolvimento deste trabalho, é possível observar que a formação das falsas memórias é mais
recorrente em crianças, pois estas estão mais suscetíveis à sugestionabilidade, principalmente
no que tange a crimes contra a dignidade sexual, em razão do trauma que estes podem ocasionar.
Por fim, será trazido o relato de um caso notório acerca do tema proposto neste artigo.
Palavras-chave: Falsas memórias, prova testemunhal, abuso sexual, depoimento infantil,
processo penal.

ABSTRACT
The present research shows an emergence of false memories in children who were allegedly
sexually abused. The approach aims at addressing doubts about the importance of identifying
these false memories during the course of criminal process. During this research, it remains
perceptible that the testimonial evidence, although it is the most accessible evidential medium
in the process, is quite fragile. tudies prove that the human
mind can create the so-called false memories, both by internal and external implications,
leading the individual to have memories of facts that did not actually occur, such memories can
bring addictions to the process, especially, in those cases where the only way of proving the
materiality of the fact is through the word of the victim/witness. Still, in the development of
this work, it is possible to observe that the formation of false memories is more recurrent in
children, because they are more susceptible to suggestibility, mainly in relation to crimes
against sexual dignity, due to the trauma they can cause. Finally, an account of a notorious case
about subject proposed in this article will be brought.
Key-words: False memories, testimonial evidence, sexual abuse, child testimonial, criminal
process.
INTRODUÇÃO

Neste artigo é feita uma análise das implicações que o fenômeno das falsas memórias
pode trazer ao processo penal durante a obtenção da prova testemunhal, especialmente em casos
de abuso sexual contra crianças. Tal análise se deu através de pesquisa doutrinária no âmbito
jurídico e psicológico, bem como análise de caso concreto.
A escolha do tema deve-se à observância de que, o assunto Falsas Memórias ainda é
pouco abordado em nosso ordenamento jurídico, apesar de ser de fundamental importância para
o processo penal, uma vez que seus operadores lidam constantemente com as lembranças de
indivíduos durante a obtenção da prova testemunhal, buscando a elucidação de determinados
processos.
É preciso salientar quais são as implicações que as falsas memórias podem acarretar
ao processo penal, especialmente no que tange a crimes de abuso sexual praticados contra
crianças, pois estas se encontram mais suscetíveis a influências externas ou internas em suas
recordações. Tal fato é de importante valor social visto que, como consequência das lembranças
falsas, podem restar decisões judiciais que possuam vícios, podendo trazer prejuízos à vida de
terceiros.
Este trabalho tem como objetivo analisar como ocorre o surgimento das falsas
memórias, bem como métodos para que elas não sejam criadas ou então sejam abrandadas,
durante a inquirição de crianças que alegam ter sofrido abuso sexual. Buscando entender qual
a importância das falsas memórias dentro do Processo Penal.
Inicialmente há uma introdução acerca da prova no processo penal, dando enfoque
especial a prova testemunhal, e a inquirição de crianças. Também é abordado o método de
depoimento sem dano, técnica utilizada para colher o depoimento de crianças que foram vítimas
de abuso sexual, e que visa não apenas uma diminuição na criação de falsas lembranças, como
também elucidar de forma mais clara o fato, tornando o momento da oitiva menos traumático
para o menor, deixando-o mais a vontade para que conte com maior riqueza de detalhes o
ocorrido. Embora ainda se mostre um pouco frágil, o método do depoimento sem dano é sem
dúvidas um avanço em nosso ordenamento, pois minimiza de forma considerável a incidência
das falsas memórias.
Há também uma análise acerca dos crimes contra a dignidade sexual, abordando com
mais especificidade aqueles praticados contra crianças. A partir desse exame, é possível
estabelecer uma relação com as falsas memórias, seu surgimento e maneiras de contorna-las.
Por fim, são referidas as falsas memórias, em uma análise de como elas surgem durante
a oitiva de testemunhas, bem como qual sua importância para processo penal, especificamente
nos depoimentos infantis acerca de crimes contra a dignidade sexual.
O foco do trabalho foram as falsas memórias em crianças, pois estas se mostram mais
suscetíveis à sugestionabilidade de terceiros, bem como influências temporais em sua memória.
E no que diz respeito a crimes de natureza sexual, o trauma também é fator relevante ao
surgimento de falsas recordações.
Encerra-se o presente artigo com o relato de um caso concreto acera do tema, ocorrido
na Escola Base em São Paulo, no ano de 1994, fato este de grande notoriedade, e que mostra
com clareza a influência que as falsas memórias podem trazer ao curso do processo penal.
Neste episódio, ouve a instauração de um inquérito contra três casais, por abuso sexual
de crianças que faziam parte da Escola de Educação Infantil Base. A partir da criação de falsas
memórias das supostas vítimas, juntamente com a influência da mídia. Mais tarde fora
comprovada a falta de materialidade e com isso arquivado o inquérito.
É importante ressaltar que, apesar de não ter havido processo judicial, a implicação
que as falsas memórias trouxeram a vida dos acusados foram irreparáveis. Isto mostra o quão
importante é o estudo mais aprofundado das falsas lembranças, assim como quais danos elas
podem causar ao nosso ordenamento jurídico.
É também, de suma importância, não apenas aprimorar o método do depoimento sem
dano, como também o desenvolvimento de outras técnicas que auxiliem a sanar esse grave
problema que surge ao curso de alguns processos judiciais conhecido como falsas memórias,
para que cada vez mais a busca pela verdade ocorra de forma idônea, sem que haja prejuízo da
prova apresentada ao magistrado, e com isso da sentença.

1 A PROVA NO PROCESSO PENAL

probatio, que significa verificar,


examinar (GRECO FILHO, 2013, p. 212). O objeto da prova é uma reconstrução da maneira
mais fiel possível da realidade, através dos elementos que forem investigados ao longo do
processo (PACELLI, 2015, p. 327), e trazidos até o juiz através das partes.
O processo penal, por meio da prova, almeja fornecer ao juiz, meios para que este
possa, a partir dos fatos reconstruídos, aplicar a sentença. Terá o ônus da prova aquele que
estiver fazendo a acusação, conforme o artigo 156 do Código de Processo Penal Brasileiro,
podendo ser este acusador público ou privado. Fica a cargo deste, durante o contraditório,
apresentar provas do que fora alegado na inicial, e é de sua responsabilidade demonstrar que o
fato narrado está tipificado na lei penal, indicando também sua autoria (AQUINO, NALINI,
2015, p. 201).
O processo penal faz, através da prova, uma retrospectiva do ocorrido, através de uma
atividade recognitiva. Esta reconstrução dos fatos é levada até o juiz, pelas partes, e visa
persuadi-lo (GESU, 2014, p. 87).
No tocante a prova e a seu modo de obtenção, é importante ressaltar que ambos devem
respeitar os meios juridicamente cabíveis, bem como o que está disposto na lei. Esta deverá ser
apresentada de maneira formal, e sua aquisição deve ser idônea, para que não restem vícios no
processo (GRECO FILHO, 2013, p. 212).
Um dos modos mais utilizados para a obtenção de provas no processo penal é a prova
testemunhal (PACELLI, 2015, p. 412), e sua qualidade é fundamental para formar a convicção
do juiz, propiciando com isso, que o magistrado profira uma sentença justa ao fato (GESU,
2014, p. 206).

1.1 Prova Testemunhal

A prova testemunhal será fruto da declaração de alguém, em juízo, acerca dos fatos
litigados no curso do processo penal em questão. Só será prova testemunhal, aquela produzida
em juízo. Deverá ser sustentada de maneira oral, salvo exceções conforme disposto no artigo
221, § 1º do Código de Processo Penal Brasileiro. A testemunha deve ser objetiva em seu
depoimento, atendo-se aos fatos, sem externar sua opinião (SMANIO, 2007, p. 74).
Entende-se por testemunha aquela pessoa que declara ter conhecimento acerca de algo
que é fruto de litigio, e esta possui compromisso com a veracidade dos fatos, bem como deverá
ser imparcial em suas declarações (NUCCI, 2013, p. 470). As testemunhas deverão obedecer
ao disposto no artigo 203 do dispositivo legal supracitado.
As testemunhas arroladas podem ainda ser impugnadas, conforme artigo 214 do
Código de Processo Penal Brasileiro, e devem ser apontados os motivos para que se
desconstitua aquela testemunha, antes que esta inicie seu depoimento (LOPES JR., 2011, p.
660).
A prova testemunhal deverá obedecer algumas características, sendo estas
judicialidade, oralidade, objetividade e retrospectividade (SMANIO, 2007, p. 74).
a. judicialidade: tecnicamente, só é prova testemunhal aquela prestada em juízo (prova
é aquela produzida perante o juiz);
b. oralidade: o depoimento deve ser prestado de viva voz, sempre que possível,
embora deva ser reduzido a termo. Exceções: surdos-mudos, Presidente da República,
Vice-presidente, Presidentes de Câmara, Senado e STF (art.221, § 1º, CPP);
c. objetividade: a testemunha deve limitar-se a depor sobre os fatos, sem emitir suas
opiniões ou externar juízos valorativos;
d. retrospectividade: a testemunha depõe sobre fatos passados; não pode fazer
prognósticos futuros (SMANIO, 2007, p. 74).

Tal meio de prova é de suma importância para o tema proposto no presente trabalho,
visto que as falsas memórias aparecem circunstancialmente durante a oitiva das testemunhas.
Ademais, quando se fala em depoimento infantil acerca de crimes sexuais, abordagem deste
artigo, a incidência dessas falsas lembranças encontram-se ainda mais presentes, conforme será
expresso no decorrer da monografia.

1.2 Depoimento Infantil

É importante ressaltar o cuidado que se deve ter na oitiva de crianças, pois em razão
do modo como estas forem entrevistadas as declarações acerca dos fatos podem restar com
deficiências, visto que durante a infância existe um nível elevado de propensão a
sugestionabilidade, o que pode acarretar na formação de falsas memórias. O modo com o qual
o entrevistador irá se dirigir a criança durante sua oitiva deve também deve ter especial atenção,
para que não haja manipulação dos questionamentos, tentando atender a uma determinada
hipótese (GESU, 2014, p. 176).
O crescente número de acusações por delitos sexuais, comumente praticados na
clandestinidade e sem evidencias materiais, fomentou os estudos sobre o modo como
as entrevistas são conduzidas. A partir disso, os pesquisadores passaram a sugerir que,
muitas vezes, as respostas das crianças aos questionamentos dos adultos refletiam o
que elas pensavam que o adulto queria ouvir, correspondendo às expectativas do
adulto entrevistador, ao invés de relatarem suas lembranças, sendo, portanto, infiéis
ao fato efetivamente ocorrido. Também foi constatado que as crianças raramente
respondem não saber sobre o que estão sendo questionadas ou assumem não entender
a pergunta, em franca tentativa de cooperação com o adulto. Ademais, a repetição de
um mesmo questionamento é interpretada pelo infante como modo de fornecer novas
informações, por não ter dado uma resposta correta e, buscando ser mais agradável e
sociável, mudam a resposta (PISA e STEIN, 2006, p. 220 apud GESU, 2014, p. 177).

Para avaliar a veracidade do depoimento infantil, é preciso observar se o nível de


conhecimentos sexuais que aquela criança possui é compatível a sua idade, se seu relato possui
riqueza em de detalhes, se a linguagem empregada, bem como a visão dos fatos, condiz com a
infância, entre outros fatores. É preciso atentar para relatos curtos e de forma mecânica,
repetidos por muitas vezes sem sofrer mudanças, pois podem ter sido imprimidos na memória
da criança (DOBKE, 2001, p. 38-39).
O ideal é que o relato da criança seja tomado em seguida ao fato, pois com o passar do
tempo há uma diminuição na qualidade desta memória. Não quer dizer que um depoimento com
poucos detalhes significará que o abuso não ocorreu, pois em função do trauma sofrido, as
lembranças podem restar prejudicadas (DOBKE, 2001, p. 40).
No momento da oitiva da criança, é necessário que o entrevistador estabeleça um
vínculo de confiança com a vítima, que sejam feitas perguntas abertas, e que seja transmitida a
ideia de que há a permissão para falar acerca do fato (DOBKE, 2001, p. 50).
Deve-se ressaltar que:
É de crucial importância comunicar-se ao nível real de desenvolvimento cognitivo,
intelectual, psicossocial e psicossexual da criança. Nós precisamos levar em conta que
as crianças pequenas podem responder às perguntas sobre fatos objetivos no contexto
dos aspectos de relacionamento com o entrevistador. Dessa forma, uma criança pode
facilmente nos dizer aquilo que ela pensa que queremos ouvir (FURNISS, 1993, p.
197 apud DOBKE, 2001, p. 49).

A oitiva de crianças de forma inadequada pode trazer não só vícios a prova no processo
penal, bem como causar dano psicológico à vítima/testemunha (DOBKE, 2001, p. 49). É de
suma importância que o Estado se utilize de técnicas mais especializadas, assim como
profissionais com melhor qualificação para colher os depoimentos principalmente de crianças
que sofreram violência sexual (BITENCOURT, 2013, p. 97). Um exemplo de solução a ser
adotada é o Método do Depoimento sem Dano.

1.3 Método do Depoimento sem Dano

A partir da observância ao aumento de casos judiciais que trazem como supostas


vítimas crianças e adolescentes, é necessário que se busque técnicas mais avançadas para a
oitiva desses testemunhos, para que os fatos sejam esclarecidos de maneira fiel à realidade
(CAMBI, 2014), uma delas é o depoimento sem dano.
O Depoimento sem Dano é uma medida alternativa para a oitiva de crianças, quando
estas forem vítimas ou testemunhas de um crime sexual. Este método é utilizado desde 2003
(GESU, 2014, p. 190) e está previsto na Lei 13.431 de 2017.
Tal método consiste num sistema de escuta judicial, para que sejam ouvidas crianças
e adolescentes que foram testemunhas de alguma infração, em um espaço adequado à idade,
onde o menor sinta-se protegido para relatar seu testemunho (TJ RS, 2009).
É um trabalho conjunto que engloba o Poder Judiciário, a Defensoria Pública, o
Ministério Público, a Polícia e um serviço técnico especializado, para fazer a oitiva infanto-
juvenil (TJ RS, 2009).
Tal prática é adotada para que a criança ou adolescente possua o direito de esclarecer
ao judiciário, à sua maneira, fatos que tenha presenciado e que possam ter relevância junto ao
processo judicial (TJ RS, 2009). Conforme visto na Convenção Sobre os Direitos da Criança,
em seu artigo 12:
1. Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular
seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre
todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em
consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade da criança.
2. Com tal propósito, se proporcionará à criança, em particular, a
oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que
afete a mesma, quer diretamente quer por intermédio de um representante ou
órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais da legislação
nacional.

É explicado ao menor e a seus responsáveis que o local onde este dará seu depoimento
será filmado, e que em uma sala a parte estará o juiz, o promotor, os advogados e as partes,
incluindo o acusado. Fica esclarecido que estes poderão assistir, ter acesso ao áudio e enviar
perguntas através de um ponto eletrônico, para que a pessoa capacitada transmita à esse menor
de uma maneira adequada o questionamento (TJ RS, 2009).
O responsável pela inquirição da criança ou adolescente através do Depoimento sem
Dano será alguém qualificado, para que colete o depoimento da maneira mais clara possível,
atentando à veracidade dos fatos (TJ RS, 2009). As partes irão formular questionamentos, os
quais serão avaliados pelo juiz e repassados ao profissional especializado para que este conduza
o interrogatório (GESU, 2014, p. 190-191).
A técnica de depoimento sem dano tem como principal objetivo facilitar com que a
criança relate os fatos, de um modo que não haja sentimento de culpa e/ou vergonha. E que a
partir desse relato se possa identificar a ocorrência ou não de algum crime contra a dignidade
sexual (CAMBI, 2014).
Acerca da utilização do depoimento sem dano:
O Conselho Nacional de Justiça, na 116.ª Reunião, de 09.11.2010, editou a

e gravação de áudio e vídeo dos depoimentos dos


menores que devem ser tomados em ambiente separado da sala de audiências, com a

A utilização deste método não evita que haja uma vitimização da criança e do
adolescente, visto que até o momento da audiência judicial estes irão passar por diversas oitivas
e interrogatórios, e em cada uma destas poderá haver a incorporação de elementos inexistentes,
o sua veracidade (CAMBI, 2014). Tais
fatos podem acarretar na formação de falsas lembranças, o que prejudica a elucidação do
processo em questão.
Destarte, para que se obtenham melhores resultados a partir da utilização da técnica
do depoimento sem dano, é preciso que haja uma ampliação no número de psicólogos e
assistentes sociais que compõem o judiciário. Bem como deve haver um preparo não apenas
para estes profissionais, mas também para aqueles funcionários do Poder Judiciário que irão
trabalhar nos casos de violência sexual à vulnerável, para que os vícios possam ser identificados
e a colheita do depoimento se dê da melhor forma possível, sempre visando à proteção da vítima
(CAMBI, 2014).

2 CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL

A dignidade sexual é um conjunto de fatos, ocorrências e aparências que estão ligadas


a sexualidade de cada indivíduo. Está intimamente conectada a respeitabilidade e autoestima
do particular, sem qualquer interferência do Estado ou da sociedade (NUCCI, 2013, p. 40).
Para Guilherme de Souza Nucci:
A dignidade da pessoa humana constitui princípio regente do ordenamento jurídico,
inclusive do Direito Penal. Sob o prisma subjetivo, implica no sentimento de
respeitabilidade e autoestima do ser humano, constituindo presença marcante na
formação da sua personalidade (2013, p. 40).

Outro fator a ser considerado componente da intimidade e da vida privada é atividade


sexual, seja esta individual ou com relação a terceiros, portanto merece respeito e liberdade.
Portanto, não deve ser admitida relação sexual que invada a intimidade ou a vida privada de
outrem, sem que este dê seu consentimento, além da inadmissibilidade quanto ao emprego de
violência ou grave ameaça, (NUCCI, 2013, p. 40).
tolerar a realização da
sensualidade da pessoa adulta, maior de 18 anos, sem obstáculos ou entraves, desde que se faça

que a formação moral de crianças e adolescentes deve ser vista como bem jurídico penal, de tal
forma que, seu amadurecimento sexual deve restar salvaguardado pelo Estado (NUCCI, 2013,
p. 40).
Será vítima de crime contra a dignidade sexual todo aquele que for coagido física ou
moralmente, a participar da satisfação de lascívia de outro indivíduo, sem que dê seu
consentimento ao ato. Além daqueles que, para satisfazer outros interesses do agente forem
conduzidos a praticar atos sexuais contra sua vontade (NUCCI, 2013, p. 41).
Nos casos de crimes contra a dignidade sexual, a ação penal será pública condicionada
à representação da vítima, contendo apenas uma exceção, quando a vítima for menor de 18 anos
ou vulnerável, a ação penal será pública incondicionada (NUCCI, 2013, p. 217). Tais crimes
podem ainda ser considerados hediondos, como é o caso do estupro e estupro de vulnerável
(NUCCI, 2013, p. 228).

2.1 Crimes de Natureza Sexual Praticados Contra Crianças

Anteriormente à Lei 12.015 de 2009, a tipificação dos crimes se dava da seguinte


forma no Código Penal Brasileiro: no artigo 213 e 214 estavam o estupro e o atentado violento
ao pudor, com violência presumida quando da prática de ato de conjunção carnal ou qualquer
ato libidinoso com vulnerável. Tal matéria tratava-se de tipificação por extensão, visto que
dependia do artigo 224, do mesmo dispositivo legal, onde estavam elencadas as causas de
presunção de violência. Com a nova redação, surgindo o artigo 217-A, passa a compor o Código
Penal Brasileiro um tipo penal autônomo, chamado estupro de vulnerável (FLORES, LOPES,
2015, p.459).
Nos artigos 217-A, 218-A e 218-B do Código Penal Brasileiro estão previstos os
crimes sexuais contra vulnerável. Estes vetam a prática de ato sexual com menores de 14 anos,
com o enfermo ou deficiente mental, sem discernimento para a prática da ação. O sujeito ativo
será qualquer pessoa física, sendo o objeto jurídico a dignidade sexual, visando à proteção da
liberdade sexual do vulnerável (NUCCI, 2013, p. 115-120).
Quando se fala em abuso sexual infantil, há uma linha tênue que separam os contatos
físicos normais para o desenvolvimento da criança, e aqueles que tendem a satisfazer os desejos
sexuais dos adultos. O fato é que, na prática abusiva, sempre estarão presentes o emprego de
violência física e/ou psicológica, bem como a falta de consentimento da criança (DOBKE,
2001, p. 26).
No abuso sexual contra crianças, o sujeito ativo busca favorecer-se da posição superior
que ocupa em relação ao menor e/ou da confiança que nele é depositada por parte do vulnerável,
para que haja a satisfação sexual do abusador. (DOBKE, 2001, p. 27).
Esse tipo de violência pode ocorrer de forma extrafamiliar ou intrafamiliar. No
primeiro caso, aquele que comete o abuso não faz parte da família do vulnerável, já no segundo,
este possui laço familiar com a criança (DOBKE, 2001, p. 27).
Quando se constata a ocorrência de crime sexual contra criança, é necessário ter
cautela no momento da inquirição, devendo observar qual o grau de veracidade das declarações
dadas pela vítima, tentando evitar que restem traumas após a colheita do depoimento (NUCCI,
2013, p. 121). Neste momento poderão surgir as falsas memórias.

3 FALSAS MEMÓRIAS

Antes de se falar em falsas memórias, é importante compreender o significado da


é do que a formação, cognição, conservação e evocação de
determinadas informações (GESU, 2014, p.105).

quivar ideias, impressões


e conhecimentos adquiridos, é a lembrança de cada indivíduo (GESU, 2014, p. 105).
As Falsas Memórias podem surgir a partir da mistura de uma série de lembranças,
somadas à extinção parcial de grande parte delas (IZQUIERDO, 2011, p. 42). Seu surgimento
pode se dar também através da alteração do conteúdo da memória, com a inclusão de
reminiscências em outros momentos, deturpando a lembrança até que esta se torne uma falsa
memória.
Sobre a importância dessas memórias falsas ao âmbito jurídico, Izquierdo ressalta que:
Durante o interrogatório de uma testemunha, um advogado astuto pode introduzir
mudanças no material evocado através das palavras usadas na própria interrogação
(onde o estava o assassino no momento do disparo perdão, senhor Juiz, quis dizer o
acusado...) (2011, p. 79).

século XIX e início do século XX em alguns países da Europa (STEIN, 2010, p. 20). Os erros
de memória foram estudados também por Freud, em uma análise de sua teoria da repressão, no
início do século XX. De acordo com Freud, lembranças de eventos traumáticos ocorridos
durante a infância poderiam ser reprimidas, e posteriormente surgir em algum momento da vida
adulta, ou ainda, algumas memórias de seus pacientes poderiam ser fruto de recordações ou
desejos primitivos da infância, sendo, portanto consideradas falsas memórias (STEIN, 2010, p.
21).
Os estudos precursores acerca das falsas memórias falam sobre a possível
sugestionabilidade da memória, isto é, a inclusão de falsas informações (tanto de origem interna
quanto externa), fazendo com que o indivíduo as assimile como se verdadeiras fossem. Tais
pesquisas foram conduzidas por Alfred Binet, pedagogo e psicólogo, na França. Em suas
pesquisas, ele classificou a sugestão de memória em dois tipos: auto sugerida e deliberadamente
sugerida. A primeira é fruto de processos internos de cada indivíduo, já a segunda advém do
ambiente. Posteriormente as Falsas Memórias passam a ser classificadas como espontâneas e
sugeridas (STEIN, 2010, p. 21-23).
As falsas memórias não são mentiras criadas pelo indivíduo, elas estão bem próximas
às memórias verdadeiras, tanto em relação a sua base cognitiva quanto neurofisiológica, a
diferença está no fato de que falsas memórias são formadas em sua totalidade ou parcialmente
por lembranças de informações ou eventos que não ocorreram de fato (STEIN, 2010, p. 20).
As falsas memórias são fruto do funcionamento normal da memória, e não podem ser
consideradas uma patologia (STEIN, 2010, p. 20). Elas podem inclusive serem mais detalhadas
e parecerem mais vívidas do que as memórias verdadeiras (STEIN, 2010, p. 19).
Falsas recordações podem trazer implicações determinantes na vida das pessoas. Nos
casos de recuperação de lembranças acerca de abuso infantil, por exemplo, existem episódios
onde um indivíduo é acusado, vai a julgamento e é condenado por um crime que não cometeu,
e apenas posteriormente surgem fatos apontando que as acusações eram baseadas em falsas
memórias (STEIN, 2010, p. 20).
É possível apontar que a mesma memória que é responsável pela qualidade de vida
dos indivíduos, pode apresentar distorções, e estas tendem a alterar o curso das ações e reações
dos mesmos, podendo inclusive causar implicações a terceiros, e ainda trazer sérios efeitos ao
processo penal (STEIN, 2010, p. 20).

3.1 Falsas Memórias e o Processo Penal

A prova penal e as falsas memórias estão diretamente ligadas à prova oral, sendo esta
de suma importância para o processo penal, tendo em vista que, constantemente, as recordações
dos indivíduos são necessárias para que se obtenham provas acerca de determinado delito
(GESU, 2014, p. 153).
Porém, o que resta muitas vezes é uma fragilidade na elucidação destes casos, pois por
muitas vezes a prova testemunhal será o único meio para que se embase a acusação, bem como
a condenação. Tendo em vista os fatos apontados, há uma necessidade de que tal prova seja
colhida de forma bastante cautelosa, a fim de evitar não só testemunhos falsos ou errôneos, mas
também as falsas memórias (GESU, 2014, p. 154).
O momento de inquirição de uma testemunha ou vítima pode ser visto como um teste
de memória em relação àquele evento, portanto, devem-se adotar técnicas adequadas para
colher essas lembranças, garantindo então a qualidade do depoimento (STEIN, 2010, p. 204).
Deve haver tal cautela na coleta de depoimentos para evitar o surgimento das falsas
memórias, visto que esse problema ocorre tanto na produção da prova testemunhal, quanto antes
da mesma. Em muitos casos a busca pela elucidação do processo penal leva a um interrogatório
sem qualquer cautela ou técnica, e isto pode acarretar vícios à veracidade do testemunho
(GESU, 2014, p. 155).
Uma das grandes problemáticas que existem quando se fala em prova é a contaminação
desta, no momento em que são reconstruídas lembranças de fatos passados, em grande parte
pela maneira com a qual estas memórias são requisitadas. A busca por uma verdade literal do
ocorrido faz com que, em muitos casos, a memória daquele indivíduo reste influenciada (GESU,
2014, p. 165).
O mais adequado seria colher e analisar a prova testemunhal sem que houvesse
qualquer tipo de influência endógena e exógena, porém não é o que ocorre, visto que as pessoas
não vivem isoladas de tais influências internas e externas, ou ainda sem incidência das
modificações temporais sob suas memórias (GESU, 2014, p. 166).
Quando se estuda a memória através de uma ótica social, e não apenas neurológica, é
possível compreender o quanto esta pode ser influenciada pelo ritmo acelerado da sociedade na
qual o individuo está inserido. A rapidez com que os eventos se multiplicam diante das pessoas
faz com que nem sempre os fatos sejam fixados na lembrança de maneira correta (GESU, 2014,
p. 170).
Poderá ocorrer indução ou sugestionamento tanto no momento de serem ouvidas as
vítimas, quanto no curso da inquirição de testemunhas, na forma de questionamentos com viés
acusatório, ou ainda por influência da mídia (GESU, 2014, p. 155).
Outra influência bastante presente na formação das falsas memórias é o estímulo
externo por parte não somente da indução de outrem, mas também das notícias midiáticas, por
exemplo. Por isso é tão importante que o momento da coleta dos depoimentos tanto de uma
vítima quanto de uma testemunha seja feito de modo que vise reduzir da melhor forma tais
influências, para que os fatos atentem à veracidade com maior precisão (GESU, 2014, p. 198).
Muitas vezes são utilizadas técnicas inadequadas durante a entrevista da testemunha
e/ou vítima, e isto pode acarretar uma limitação na quantidade de informações e detalhes que
este irá transmitir ao entrevistador acerca do fato que presenciou no passado (GESU, 2014, p.
200).
O principal assunto a ser analisado é a contaminação da prova, pois esta terá incidência
direta nas decisões que deverão ser tomadas pelo judiciário (GESU, 2014, p. 165).
Cristina di Gesu ainda afirma em sua obra que:
De acordo com o sistema acusatório, toda a atividade processual gira em torno da
busca pelo convencimento do julgador (função persuasiva). Daí a importância de se
relacionar o estudo da prova penal com os temas referentes à memória e às falsas
memórias (2014, p. 165).

De modo geral, aqueles profissionais que estão incumbidos de realizar a investigação


prévia dos fatos bem como a instrução processual acerca da psicologia do testemunho não se
preocupam de maneira incisiva com a coleta de depoimentos (GESU, 2014, p. 199). Porém é
importante levar em consideração que quanto mais restritas forem as questões, maior a chance
de a resposta ser induzida (GESU, 2014, p. 201).
Em razão deste panorama surge a chamada entrevista cognitiva. Esta funciona como
um meio alternativo para realizar o interrogatório das vítimas e testemunhas e tem como
principal característica a obtenção de um maior número de informações, estas possuindo maior
propriedade, de modo diferente ao que costuma ocorrer nos interrogatórios tradicionais. Este
procedimento é formado por quatro técnicas gerais, somadas a estratégias, para que haja a
lembrança de detalhes específicos (PISA, STEIN, 2006, p. 223, apud GESU, 2014, p. 202). São
estas:

cenário do crime, através de aspectos físicos e pessoais.

b) Informar sobre tudo: requer-se à testemunha que conte tudo o que recorda,
incluindo as informações parciais ou aparentemente relevantes.

c) Mudança de perspectivas: solicita-se a testemunha sair de sua posição de fala, ou


seja, que se coloque em outro lugar da cena do crime e que informe o que teria visto
nessa nova posição, objetivando-se recuperar o maior número de detalhes.

d) Diferente ordem: demanda que a testemunha lembre do fato seguindo ordens


diferentes, v.g., do fim para o começo. (PISA, STEIN, 2006, p. 223, apud GESU,
2014, p. 202).

A entrevista cognitiva tem como principal objetivo a aquisição de depoimentos com


uma maior riqueza de detalhes, contendo mais informações e de mais elevada precisão. Tal
entrevista se baseia em estudos científicos da psicologia social e da psicologia cognitiva. No
que se refere a primeira, os conhecimentos abrangidos são das relações humanas, de maneira
especial o modo como a testemunha se comunica. Já no que tange a segunda, utilizam-se
estudos psicológicos acerca da maneira como são recordados os fatos, no funcionamento da
memória (STEIN, 2010, p. 205).

fidedignas sobre como o fato ocorreu e quem dele participou, entre ouras, diminuindo os riscos
de criação de falsas
Devido a uma necessidade de treinamento extensivo, condições físicas e tecnológicas,
e ainda de recursos cognitivos do entrevistado para que sejam aplicadas as técnicas cognitivas,
a utilização de tal entrevista ainda é limitada (STEIN, 2010, p. 219).
O fenômeno das falsas memórias não pode ser ignorado pelo processo penal, visto que
as consequências que podem ser acarretadas por um depoimento onde estejam presentes
lembranças infiéis à realidade são imensuráveis, estas podem levar a condenação errônea de
alguém, bem como sua estigmatização perante a sociedade apenas pelo fato de este estar
respondendo a um processo criminal (GESU, 2014, p. 203).
Em função de tais observações, é de suma importância que os profissionais que
exercem o direito juntamente com aqueles das áreas da psicologia e psiquiatria possuam preparo
para enfrentar tal situação, possuindo conhecimento para que possam minimizar os danos de
um depoimento mal colhido e do que possa decorrer durante o curso processual (GESU, 2014,
p. 203).
Os estudos acerca das falsas memórias em depoimentos de vítimas e/ou testemunhas
durante o processo penal têm por finalidade evitar que indivíduos sejam investigados, presos,
acusados e até mesmo condenados com base em uma prova frágil como é a testemunhal (GESU,
2014, p. 203).
Os indivíduos possuem uma tendência a alterarem suas lembranças através de
passagens temporais, bem como por influência de outrem. Estes fatos podem ocorrer tanto em
adultos quanto em crianças, ocasionando a formação de falsas recordações (STEIN, 2003).

3.2 Falsas Memórias no Depoimento Infantil

No aspecto das falsas memórias dentro do processo penal, há uma parcela de pessoas
que são altamente sugestionáveis, as crianças. Estas tendem a responder o que for questionado
pelo entrevistador de maneira a suprir as expectativas do mesmo (GESU, 2014, p. 205).
Para que se possa evitar induzir as crianças, quando questionadas acerca de um fato o
qual foram vítimas ou testemunhas, é de suma importância que o entrevistador deixe a criança
falar livremente, apenas questionando-a quando necessário, com poucas perguntas (GESU,
2014, p. 205).
Também é necessário manter-se distante de questionamentos que possam levar a
sugestionabilidade, inclusive de algo que o interrogador acredita. Aquele que conduz o

o interrogador não deve induzir a criança a dar detalhes da história (GESU, 2014, p. 206).
No que tange acerca da psicologia cognitiva tratando-se da oitiva de crianças, Pisa e

simples, evitar duplos negativos e perguntas múltiplas, bem como prestar atenção se a criança
comp
É cada vez mais comum à presença de crianças nas ações penais que tratam de
denúncias de abusos sexuais, tal fato incentivou pesquisas científicas sobre a memória das
crianças nas décadas de 80 e 90. Buscando suprir as dúvidas existentes não só no campo
psicológico e outras áreas, mas especialmente no jurídico, pesquisadores vêm tentando
compreender como funciona a lembrança das crianças, pois estas restam mais suscetíveis a
erros de memória (STEIN, 2010, p. 182).

3.3 O Caso da Escola Base

Um dos casos mais notórios que ocorreram no Brasil acerca de falsas memórias
relacionadas a crimes sexuais praticados contra crianças, e que relata com precisão o tema
proposto neste trabalho, é o que ocorreu em 1994 em São Paulo, na Escola Base. Apesar de não
ter havido um processo, apenas uma investigação, os relatos decorrentes das falsas memórias
das crianças envolvidas geraram prejuízos imensuráveis a vida dos acusados. Fica nítida a
influência das falsas memórias no processo penal, bem como o que isto pode acarretar (GESU,
2014, p. 210).
No dia 27 de março de 1994, compareceram à 6ª Delegacia de Polícia, do 6º Distrito
Policial da capital de São Paulo as mães de dois alunos da Escola Infantil de Base, informando
à autoridade policial que seus filhos haviam sido vítimas de abuso sexual por parte dos dois
casais donos da Escola, juntamente com um terceiro casal, que era pai de um aluno que
frequentava o mesmo educandário. No relato foi dito que as crianças eram levadas para o
apartamento do aludido casal, e lá eram obrigadas a assistir filmes de cunho sexual, presenciar
relações sexuais praticadas pelos adultos supostamente envolvidos, bem como praticar, com
eles, atos libidinosos enquanto eram fotografados (GESU, 2014, p. 208).
O início dos acontecimentos se deu quando a mãe de um dos meninos, na época com
04 anos, surpresa com gestos feitos pelo filho, começou a questioná-lo. O menino, buscando
atender as expectativas da mãe, fantasiou a história de que havia sofrido abuso por membros da
escolinha que frequentava. Sem ter a intenção, a genitora acabou por induzir o surgimento de
falsas memórias em seu filho, visto que crianças estão mais suscetíveis criarem falsas
lembranças a partir de sugestionamento (GESU, 2014, p. 210-211-212).
Após o início da investigação, o caso tomou uma proporção imensurável, pois a mídia
passou a exercer influência sobre a história, distorcendo os fatos, dificultando a elucidação do
caso (GESU, 2014, p. 215). Houve displicência por parte da polícia durante o inquérito, já que
não havia nenhum indício material do fato. A investigação foi baseada apenas nos relatos das
vítimas, no que as mães acreditavam ter ocorrido, e em um laudo provisório dado pelo Instituto
Médico Legal (IML), após exame feito nos menores (GESU, 2014, p. 213). Mais tarde, médicos
afirmaram que as lesões anais que apareciam no laudo do IML eram comuns em crianças,
podendo ser ocasionadas por fezes endurecidas ou verminoses, afastando a ideia de ato
libidinoso (GESU, 2014, p. 219).
Cristina di Gesu aponta que:
Mesmo não havendo sequer indícios suficientes para justificar a propositura da ação
penal, pois a investigação preliminar foi calcada em frágeis indicativos, destroçaram-
se as vidas de pessoas comprovadamente inocentes. A inocência dos suspeitos veio a
justificar o pedido de arquivamento do inquérito policial. Ressaltamos, inclusive, ter-
se chegado à conclusão de que as vítimas foram induzidas, culminando com uma falsa
lembrança de um fato que nunca existiu.

Após observar casos como o que ocorreu na Escola Base em São Paulo, é possível ver
com clareza a influência que as falsas memórias podem acarretar ao curso do processo. É de
suma importância que haja um cuidado especial no tocante a crimes sexuais contra crianças,
quando o único meio probatório for o depoimento daquele que foi vítima, pois este tem uma
maior suscetibilidade à formação de lembranças falsas, dificultando a busca pela verdade, e
podendo trazer vícios acerca da materialidade do fato.

CONCLUSÃO

Após uma análise acerca dos estudos sobre falsas memórias, é possível perceber
claramente as implicações que estas podem trazer ao processo penal. Bem como o quão
importante é a identificação destas, para que não ocorram vícios processuais e à vida dos
envolvidos.
É através da prova que o processo penal busca oferecer ao magistrado meios para que
este possa reconstruir os fatos e aplicar a sentença cabível. Um dos métodos mais comuns de
obtenção da prova é através da oitiva de vítimas e testemunhas, a chamada prova testemunhal.
Sua qualidade é fundamental para que o juiz possa proferir uma sentença justa ao fato.
É no momento da obtenção da prova testemunhal que podem surgir as falsas memórias,
em especial no tocante a crianças figurando como testemunhas, pois estas estão mais suscetíveis
a sugestionabilidade, tanto externa quanto interna, estando portanto mais propensas a criar
falsas recordações.
Através da pesquisa realizada na doutrina, e na análise de casos concretos, foi possível
observar que o modo com o qual as crianças são questionadas acerca dos fatos é o maior
responsável pela criação de falsas memórias. Os menores buscam muitas vezes atender à
expectativa de seu entrevistador, baseando-se em falsas lembranças para estabelecer uma
conexão e conseguir responder o que lhe é questionado.
Por estes motivos, é de suma importância que haja muito cuidado ante a entrevista de
crianças, em especial quando se trata de crimes sexuais, pois se feita de maneira displicente,
pode acarretar na criação de falsas memórias, e estas além de prejudiciais a prova penal, podem
causar traumas a vítima/testemunha.
Um meio que vem sendo utilizado para suprimir os efeitos das falsas memórias em
crianças, no tocante a crimes de natureza sexual é o depoimento sem dano. Este consiste em
uma medida alternativa para a oitiva desta parcela da população. Tal depoimento será tomado
por um profissional qualificado, em ambiente especial, e este fará os questionamentos do
magistrado, do ministério público e das partes de maneira que a criança compreenda, e de um
modo a deixa-la à vontade para responder aquilo que lhe for questionado.
É importante apontar que tal método não é livre de vícios, pois até que haja a audiência
judicial, a criança irá passar por diversos interrogatórios, podendo incorporar elementos antes
não existentes em seu relato, e gerando com isso falsas memórias.
Porém, apesar de ainda haverem alguns problemas no método do depoimento sem
dano, como o apontado anteriormente, é notório que tal meio de interrogatório é uma evolução
em nosso ordenamento jurídico, e está no caminho certo para diminuir a criação de falsas
memórias, bem como de traumas resultantes da inquirição de crianças no processo penal quando
se tratar de crimes de cunho sexual.

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