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ISSN: 1807-1112
revistapraksis@feevale.br
Centro Universitário Feevale
Brasil
Resumo
O artigo analisa a contribuição da avaliação psicológica nos casos de suspeita de abuso sexual em crianças.
As características do fenômeno do abuso sexual dificultam a revelação por parte da vítima e a confirmação
do fato pelos agentes de segurança e justiça, resultando na expectativa de que o psicólogo possa auxiliar
na investigação através da produção de provas técnicas baseadas nos efeitos da vivência traumática. São
avaliados os riscos da produção de tais provas se não forem respeitados o contexto e os limites da ciência.
São abordadas as limitações na análise dos sintomas clínicos da criança e de sua verbalização.
Palavras-chave: Abuso sexual. Avaliação psicológica forense. Laudo psicológico.
Abstract
This paper analyzes the contribution of psychological evaluation in cases of suspected sexual abuse in
children. The characteristics of the phenomenon of sexual abuse hinder the revelation by the victim and the
confirmation of the fact by security and justice, resulting in the expectation that the psychologist can assist
in the investigation by evidence-based techniques about the effects of traumatic experience. Respect of the
evaluation context and the limits of science are discussed, addressing clinical symptoms of the children and
they verbalization.
Keywords: Sexual abuse. Forensic psychological assessment. Psychological report.
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Psicóloga Especialista em Psicologia Jurídica (CFP), Mestre em Psicologia Social e da Personalidade (PUC-RS), Doutora
em Psicologia Clínica e da Saúde (Universidade de Santiago de Compostela-ES), CRP 07/1792.
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direta a demanda legal sobre a ocorrência ou não sexualizados”. Assim, pode-se dizer que este é
de um determinado fato. um indicador válido, pois se associa a este tipo
Em decorrência do exposto, é possível de vivência traumática. Conforme os autores, essa
concluir que avaliação clínica e forense divergem variável pode ser considerada como válida, mesmo
substancialmente quanto aos objetivos e a se estiver associada a uma minoria das crianças
metodologia empregada. Resultados encontrados que foram abusadas sexualmente, pois estará
em uma avaliação clínica não possuem os critérios relacionada a essa vivência.
mínimos de validade que são exigidos num processo O valor de diferenciação, de modo diferente
de avaliação forense. O clínico estabelece uma ao anterior, é determinado quando uma variável
relação baseada no bem-estar (o melhor interesse) auxilia na separação ou discriminação de crianças
de seu paciente e na confidencialidade – aspectos abusadas sexualmente das outras em geral que
que colocam em risco a objetividade do avaliador também foram encaminhadas para avaliação. A
forense. Crianças que passam por situações de diferenciação perfeita seria dada quando a variável se
denúncia de abuso sexual necessitam os dois tipos manifestasse apenas nas crianças abusadas e nunca
de intervenções. A abordagem clínica voltada ao ocorresse por outros motivos. A ocorrência deste
seu mundo interno, apoiando-a no sofrimento tipo de indicador permitiria garantir que aquele que
psíquico (independente da compatibilidade com os o manifestasse teria passado, necessariamente, por
fatos reais), e a abordagem forense, no sentido de esta experiência específica. Portanto, pode-se dizer
buscar indicadores que têm a validade necessária que uma variável que não é válida, nunca terá poder
para fundamentar inferências quanto à questão legal de diferenciação, mas uma variável pode ser válida
(ocorrência do fato). Essas abordagens, em função e não ter o poder de diferenciação. Retomamos aqui
das diferenças de metodologia e vínculo com o o exemplo já citado da exacerbação da sexualidade
entrevistador, precisam ser realizadas por pessoas em crianças. Enquanto alguns estudos têm mostrado
distintas e não se substituem uma a outra. uma maior sexualização associada a crianças que
foram abusadas sexualmente, outros referem esta
3 ESTUDO DAS VARIÁVEIS QUE CONFIRMAM mesma forma de comportamento em crianças que
SITUAÇÕES DE ABUSO SEXUAL passaram por diferentes tipos de estresse, como
Em função das limitações de provas mais brigas familiares e separação conjugal, mas não
objetivas quanto à ocorrência de um possível abuso abuso sexual (FRIEDRICH e col., 1998). Assim,
sexual, incluindo aqui a falta de um relato da criança podemos concluir que este tipo de indicador possui
sobre a sua vivência traumática, seja pela sua validade, mas não poder de diferenciação.
incapacidade ou negativa em fazê-lo, a avaliação O grande risco quanto à validade dos achados
da criança, suposta vítima, é dirigida pelo psicólogo do psicólogo é a possibilidade de se confundir
para o levantamento de indicadores indiretos que indicadores de validade com aqueles que teriam
possam ser associados a vivências traumáticas, de também o poder de diferenciação. Essa situação
modo a permitir inferências a fatos que tenham tende a ocorrer com mais frequência quando o
ocorrido na vida real. técnico é chamado para avaliar uma criança com
Para Faust, Bridges e Ahern (2009), toda o objetivo de encontrar nela indicadores de uma
variável de comportamento ou um dado de testagem situação que é verbalizada como verdadeira por
psicológica para ter o valor de indicador da vivência aquele que a acompanha e que faz a denúncia. Nestes
de um determinado tipo de trauma, deverá, casos, o psicólogo pode considerar desnecessário
necessariamente, possuir duas características: ouvir a versão do acusado e passa simplesmente a
validade e valor de diferenciação. A validade é confirmar hipóteses prévias trazidas por terceiros
dada quando, através de estudos empíricos, pode- (familiares ou autoridades investigativas). Para
se associar determinado indicador psíquico a um Amendola (2009) esta seria uma situação de grande
determinado grupo de sujeitos. Por exemplo, risco, pois o profissional passa a segregar e julgar o
quando se compara um grupo de crianças que acusado por antecipação. A autora acrescenta que,
foram abusadas sexualmente com outro de crianças na prática de muitos psicólogos, a certeza é tanta
não-abusadas, e constata-se que no primeiro grupo de que o abuso tenha acontecido que estes passam
houve uma maior frequência de “comportamentos a prolongar no tempo seus atendimentos até que
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a criança venha expressar-se verbalmente sobre o apresentada uma “Lista de Controle de Validade”,
ocorrido, sem considerar em nenhum momento com 11 perguntas relacionadas ao declarante, às
a possibilidade da não-ocorrência do fato. Aqui, características da entrevista realizada, à motivação
de modo contrário ao que foi explicado sobre os da vítima para dar sua declaração e outras de cunho
requisitos da metodologia da avaliação forense investigativo relacionando inconsistências com
(ampla investigação de fontes), a recusa em falar outras evidências e declarações. É praticamente
fica restrita a uma única interpretação – a resistência impossível checar as questões desta lista com
interna da criança em expor os fatos. entrevistas que se restrinjam apenas à criança
vítima e ao seu acompanhante. Assim, pela
4 A verbalização da criança sobre a própria técnica, não se podem considerar a priori
vivência do abuso sexual os critérios de credibilidade do discurso (CBCA)
O desenvolvimento atual de pesquisas na como conclusivos, sem antes verificar os fatores
área da investigação de ocorrência de situações contextuais. Estudos mostram que histórias criadas,
traumáticas tem demonstrado a importância de se e não vivenciadas, podem se apresentar ricas em
obter com a vítima a verbalização de sua vivência. detalhes, produzidos por entrevistas anteriores
Inúmeras associações de profissionais e grupos sugestivas ou por um imaginário familiar decorrente
de pesquisa, em diversos países, desenvolveram de conflitos originados em situações diversas do
protocolos de orientação de como a entrevista abuso sexual (KÖHNKEN, 2005). Cabe lembrar que,
com a vítima deve ser conduzida, principalmente falsas memórias podem ocorrer não só na criança,
quando esta é criança. De maneira geral, as mas, também, nos demais adultos que a cercam,
propostas apresentam um alto nível de coincidência além da possibilidade de se fazerem interpretações
no desenvolvimento da entrevista em mais de uma errôneas sobre a conduta do suposto abusador.
sessão (ainda que não devam se prolongar demais), Conforme Köhnken (2008), basta uma intervenção
seguir uma determinada sequência, ser realizada sugestiva à criança para que se prejudique de forma
por profissional capacitado, de preferência sem a definitiva e irremediavelmente a prova da oitiva da
presença dos pais e ser sempre gravada. A orientação mesma. Isto porque, as falsas memórias substituem
destes protocolos segue duas diretrizes básicas: as memórias verdadeiras dos fatos realmente
evitar técnicas sugestivas ou que prejudiquem a acontecidos, inviabilizando o acesso posterior às
exatidão da declaração e propor procedimentos primeiras.
que estimulem a narrativa das vítimas (DUARTE; Assim, ainda que a entrevista com a criança
ARBOLEDA, 2000). seja feita dentro de parâmetros estabelecidos pelos
Uma metodologia muito utilizada nesses casos, protocolos, sem o uso de técnicas sugestivas,
para verificar se o discurso seria representativo cuidados devem ser dispensados em uma análise
de uma vivência real, é o sistema de Avaliação do contexto em que este discurso foi construído.
da Validade da Declaração (Statement Validity Conforme Amendola (2009, p. 20), “a relação
Assessment - SVA, VRIJ, 2000). Conforme Vrij, familiar torna-se parte fundamental no contexto
para realizar este tipo de avaliação é necessário de análise de alegações de abuso sexual contra
se cumpram três etapas. Primeiro, uma entrevista a criança”. Situações onde existem separações
que favoreça uma verbalização rica em detalhes, litigiosas com vínculos de lealdade da criança com
sem produzir elementos inverídicos; segundo, um dos genitores podem gerar falsos testemunhos,
que sejam identificados critérios de credibilidade de forma intencional ou não. Isto quer dizer,
- CBCA2 (são 19 ao todo); terceiro, que se faça a criança pode em algumas situações mentir
uma avaliação do contexto da entrevista, num (FURNISS, 1993) e, em outras, trazer relatos
domínio mais amplo, envolvendo outras fontes de baseados em falsas memórias construídas durante
informação, sempre com o objetivo de considerar o processo de investigação (STEIN e col., 2010). As
explicações alternativas para os dados trazidos falsas memórias devem ser compreendidas como
pela criança. Nesta terceira etapa do processo, é distorções nas lembranças dos fatos vivenciados pela
criança, sendo produzidas por fatores endógenos
(características da personalidade da criança) ou
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CBCA – “Criteria-Based Content Analysis”. exógenos (influências externas, como entrevistas
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sugestivas), mas que, para a criança, permanecem processos de tomada de decisão que venha utilizar.
como lembrança de vivências reais. Conforme Pelisoli, Gava e Dell’Aglio (2011), deve
Atualmente, em nossa realidade, tem-se o psicólogo ter consciência de que suas crenças
observado uma crescente valorização da palavra da podem influenciar a percepção das evidências,
criança vítima, em detrimento ao contexto social/ produzir a construção de uma sequência plausível
familiar em que foi construído, num direcionamento de eventos, determinar a avaliação da credibilidade
contrário ao que vem sendo alertado pelos estudos do acusado e da alegada vítima e, também, definir
científicos. A crescente adoção dos depoimentos o padrão mínimo de exigência para convencer-
especiais em vários estados brasileiros (CEZAR, se sobre a culpabilidade de uma pessoa acusada.
2007) e o uso cada vez mais comum da entrevista Em outras palavras, é fundamental que possa
com a criança como procedimento único de discriminar aquilo que pode ser justificado pela
avaliação psicológica (AMENDOLA, 2009), tem ciência daquilo que é produzido, pelas suas crenças
criado um viés interpretativo de confirmação de e pelo conhecimento do senso comum.
hipóteses previamente construídas. Conforme
Pelisoli, Gava e Dell’Aglio (2011, p.334), “fica claro
que apenas uma entrevista não sugestiva e cuidadosa
não garante que outras variáveis deixem de exercer
suas influências”; neste caso, as crenças prévias dos
profissionais que realizam a avaliação da criança Referências
exerceriam um papel preponderante e a atuação
dos mesmos se exerceria mais como defensores da AMENDOLA, M. F. Crianças no labirinto das
criança do que como avaliadores neutros. acusações: falsas alegações de abuso sexual.
Curitiba: Juruá, 2009.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo dessa apresentação crítica sobre o ADED, N. L. O.; DALCIN, B. L. G. S.; MORAES,
uso das principais técnicas de avaliação de crianças T. M.; CAVALCANTI, M. T. Abusos sexual em
em situação de suposto abuso sexual é alertar para os crianças e adolescentes: revisão de 100 anos da
riscos de se utilizarem indicadores (seja de conduta, literatura. Revista de Psiquiatria Clínica, v. 33, n.
sintoma ou verbalização) de forma isolada, sem 4, p. 204-213, 2006.
uma inserção dos mesmos no histórico de vida da
criança e no histórico da revelação e da denúncia.
ASSIS, S. G.; AVANCI, J. Q.; PESCE, R. P.;
Quando a discussão é a produção de documentos
XIMENES, L. F. Situação de crianças e adolescentes
para o judiciário, onde os dados psicológicos irão
brasileiros em relação à saúde mental e à violência.
produzir provas processuais, é necessário mais
Ciência e Saúde Coletiva, v. 14, n. 2, p. 349-361,
do que simplesmente validar hipóteses que foram
2009.
trazidas por aqueles que denunciaram o abuso.
Conforme Köhnken (2008), é necessário que o
psicólogo avaliador, primeiramente, investigue CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. A escuta
e descarte todas as outras possibilidades de de crianças e adolescentes envolvidos em situação
ocorrências que possam ter gerado a denúncia, de violência e a rede de proteção. Brasília: CFP,
para, depois, poder afirmar aquela propriamente do 2010.
abuso. Realizar esse tipo de trabalho supõe sempre
uma avaliação mais ampla e com todos os sujeitos DOBKE, V. M.; SANTOS, S. S.; DELL’AGLIO, D.
envolvidos no conflito, sejam autores, vítimas ou D. Abuso sexual intrafamiliar: da notificação ao
supostos abusadores. depoimento no contexto processual-penal. Temas
Para que o psicólogo venha a emitir laudos em Psicologia, v. 18, n. 1, p. 167-176, 2010.
sobre situações de investigação de vitimização
sexual, ele deve receber treinamento não só DUARTE, J. C; ARBOLEDA, M. R. C. Guía para
sobre o fenômeno em questão e suas formas de la evaluación del abuso sexual infantil. Madrid:
avaliação, mas, também, deve ter ciência sobre os Piramide, 2000.
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