Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ISSN: 1413-389X
comissaoeditorial@sbponline.org.br
Sociedade Brasileira de Psicologia
Brasil
Resumo
Este estudo investigou o abuso sexual perpetrado por adultos e adolescentes em processos judiciais de
natureza criminal encaminhados à 1ª e 2ª Varas da Infância e Juventude de Porto Alegre entre os anos
de 2003 e 2007. Foram coletadas informações sobre abusadores, vítimas, tipos de abuso e desfecho
dos processos objetivando caracterizar os abusadores e comparar o perfil das vítimas e o tipo de abuso
(intrafamiliar ou extrafamiliar). Foram encontrados 241 processos, sendo 229 elegíveis para a pesquisa.
Os resultados indicaram que entre abusadores adultos predominou o abuso sexual intrafamiliar contra
vítimas do sexo feminino, sendo os principais abusadores pais e padrastos das vítimas. Entre abusadores
adolescentes houve predomínio do abuso sexual extrafamiliar contra vítimas do sexo masculino, espe-
cialmente vizinhos. Estes resultados sugerem que pode haver diferenças no perfil das vítimas e no tipo
de abuso perpetrado por adultos e adolescentes, hipótese que merece ser testada em estudos futuros.
Palavras-chave: Abuso sexual, abusadores sexuais adultos, abusadores sexuais adolescentes.
Abstract
This study investigated sexual abuse perpetrated by adults and teenagers in the criminal proceedings
referred to the1st and 2nd Childhood and Youth’s Courts of Porto Alegre between 2003 and 2007.
The information collected for abusers, victims, types of abuse and the outcomes of processes aiming
to characterize and compare the profile of abusers and victims and the type of abuse (intrafamilial or
extrafamilial). After being collected, the data were tabulated and categorized, and of the 241 cases, 229
were eligible for the study. The results indicated that among adult abusers there was a predominance of
intrafamilial sexual abuse against female victims and that the main abusers were fathers and stepfathers.
Among adolescents abusers, extrafamilial sexual abuse against male victims predominated, especially
against neighbors. These results suggest that there may be differences in the profile of the victims and the
type of abuse perpetrated by adults and adolescents, a hypothesis that should be tested in future studies.
Keywords: Sexual abuse, adult sexual abusers, adolescent sexual abusers.
1
Endereço para correspondência: Rua Mário de Boni, 1894, Apto. 1001, Bairro Floresta, Caxias do Sul, RS,
Brasil 95012-580. E-mail: anissyma@yahoo.com.br
Agradecimento: Esse estudo foi autorizado judicialmente e contou com o apoio dos Magistrados Dr. Daltoé
Cezar e Dr. Breno Beutler Jr. e de duas profissionais da 1ª e 2ª Varas da Infância e Juventude de Porto Alegre,
a Assistente Social Vânea Maria Visnievski e a Psicóloga Betina Tabajaski.
302 Pincolini, A. M. F., Hutz, C. S.
cias variaram de 8,5% a 40,7% de vitimização para garantir o sigilo e sentimentos de culpa e
no sexo masculino. Os autores enfatizam que constrangimento da criança com relação à ativi-
a maior prevalência, encontrada no único estu- dade (Itzin, 2002). Isso deve ser observado no
do com amostra não clínica (Polanczyc et al., caso de situações que envolvem crianças/adoles-
2003), reforça a hipótese da subnotificação, uma centes que ocupem posição de liderança no gru-
vez que as populações clínicas refletem casos po e tenham reputação/status que amedronte as
que efetivamente chegaram às autoridades com- mais novas, ou ainda irmãos mais velhos com
petentes. autoridade ou com a tarefa de tomar conta dos
Nem sempre o AS deixa vestígios físicos mais novos.
e frequentemente é revelado em momento mui- Ao discutir o AS perpetrado por adolescen-
to posterior ao fato (Pfeiffer & Salvagni, 2005) tes, Print e Morrison (2002) indicam fatores de
de modo que muitos abusadores acabam absol- risco, como problemas de socialização, poucas
vidos devido à insuficiência de provas (Artigo amizades íntimas, baixa habilidade social e re-
386 do Código de Processo Penal [CPP], 1941) lacional, dificuldades escolares, distúrbios de
e ao benefício da dúvida (in dubio pro reo) – a conduta, baixa autoestima e distúrbios afetivos,
existência de dúvida quanto à autoria favorece de modo que a atividade sexual pode ser usada
o acusado (Paulo & Maia, 2004). Outro aspecto como compensação para problemas emocionais e
relacionado à responsabilização dos abusadores relacionais. Experiências de violência doméstica,
é princípio constitucional do duplo grau de ju- abuso físico, emocional, e mesmo AS também
risdição, que prevê a possibilidade de recorrer a são predisponentes (Print & Morrisson, 2002).
um órgão judiciário de instância superior (Paulo Recentemente, um estudo nacional (Costa,
& Maia, 2004). Por isso, muitas vezes, ocorre Junqueira, Ribeiro, & Meneses, 2011) com sete
que sentenças de primeira instância sejam refor- adolescentes abusadores sexuais que cometeram
muladas. AS contra crianças (irmãos, primos) que esta-
Estimativas internacionais indicam que em vam sob seus cuidados descreveu uma dinâmi-
torno de 30% dos casos de AS são praticados por ca familiar que foi, em certa medida, promotora
menores de 18 anos (Oliver, 2007; Sanderson, do cenário que favoreceu o AS. Os adolescen-
2005). O AS perpetrado por adolescentes em ge- tes eram responsáveis pela alimentação, banho
ral é cometido por irmãos, meio irmãos e primos, e por acompanhar as crianças menores à esco-
bem como por adolescentes do sexo feminino, la. Essa posição de responsabilidade e cuidado
atuando como babás, motivadas por curiosidade em relação às outras crianças da casa mudava
sexual e oportunidades de experimentação (San- à noite, com a chegada dos pais, quando todos
derson, 2005). ficavam no mesmo nível hierárquico, sujeitos à
No entanto, as características da adoles- obediência e aos mesmos castigos e repreensões.
cência exigem ponderação para avaliar uma si- Outro aspecto identificado nesse estudo foi a au-
tuação como sendo de AS. Como a entrada na topercepção dos adolescentes abusadores como
puberdade gera aumento de fantasias sexuais, é “trabalhadores domésticos”, de modo que o pa-
importante distinguir o AS das atividades sexu- pel deles na família alternava a posição de domi-
ais exploratórias e consensuais, comuns nessa nante (em que se utilizavam das crianças meno-
fase. Quanto maior a diferença de idade entre a res como objetos de satisfação/experimentação
criança e o adolescente, maior a probabilidade sexual) e dominados (convertidos em “criados”
de ser uma situação de AS (Itzin, 2002). É con- dos pais e sem terem atendidas suas necessida-
siderável uma diferença etária de, pelo menos, des de apoio e proteção). Aspectos como este
cinco anos (quando as vítimas são menores de 12 tornam difusos os limites entre vítimas e abu-
anos) e dez anos (quando as vítimas têm entre 13 sadores (Sanderson, 2005) e reforçam a neces-
e 16 anos; Finkelhor & Hotaling, 1984). Além sidade de que adolescentes que cometeram AS
da idade, é importante considerar outros fatores, sejam vistos para além da criminalização, como
como a presença de violência física, ameaças vítimas de uma infância sem proteção.
304 Pincolini, A. M. F., Hutz, C. S.
poníveis no site do Tribunal de Justiça do RS. vel. Esses resultados foram, então, confrontados
Para tal, foi elaborada uma Ficha de Coleta de com pesquisas anteriores e com a literatura espe-
Dados contendo informações referentes às ví- cializada e serão apresentados a seguir.
timas, aos acusados e ao processo judicial. Em
relação às vítimas, foram coletados os seguintes Resultados
dados: idade, sexo e relação com os acusados
(dado que permitiu a posterior categorização dos Descrição Geral
crimes/AI como AS intrafamiliar ou extrafami- Predominaram processos da capital e de
liar). Em relação aos acusados, foram coletadas cidades da região metropolitana do RS (76%),
as seguintes informações: sexo, idade (a partir da enquanto 24% dos processos eram oriundos de
qual foram categorizados os crimes (praticados cidades do interior do RS. As datas dos fatos de-
por maiores de 18 anos) e os AI (praticados por nunciados abrangeram o período compreendido
adolescentes), estado civil, grau de instrução e entre 1996 e 2007. O total de abusadores e de
ocupação. Em relação ao processo foram coleta- vítimas foi superior ao total de processos porque
dos os seguintes dados: cidade em que ocorreu o houve processos com mais de um acusado e pro-
AS, desfecho do processo na justiça de 1° Grau cessos com mais de uma vítima, totalizando 255
(condenatório, absolutório ou em tramitação) e abusadores e 294 vítimas.
de 2° Grau, quando disponível. A coleta de da- Considerando a amostra como um todo,
dos a partir das denúncias ocorreu de março a houve predomínio de ASI. Dos 229 processos,
junho de 2009 e a busca pelas sentenças no site 123 (53,7%) descreveram situações em que os
e coleta dos dados das mesmas ocorreu de junho abusadores tinham relações de parentesco e/ou
de 2009 a abril de 2010. O estudo foi autoriza- responsabilidade para com as vítimas. Em 100
do judicialmente e respeitou as normativas éti- processos (43,7%) não havia parentesco/res-
cas da Resolução 196/96 do Conselho Nacional ponsabilidade entre vítimas e abusadores e seis
de Saúde, tendo sido aprovado pelo Comitê de (2,6%) descreviam AS simultaneamente intra e
Ética em Pesquisa da Universidade Federal do extrafamiliares. Nesses casos, ou havia abusado-
Rio Grande do Sul (Protocolo 2009/14, registro res múltiplos, com diferentes relações de paren-
25000.089325/2006-58). tesco com a vítima ou, ao contrário, múltiplas
vítimas, cada uma com diferentes relações de
Análise dos Dados parentesco com o abusador.
Após a coleta, os dados foram tabulados em Dos 229 processos, 170 (74%) se referiam a
um banco de dados no Microsoft Excel e foram AS praticados por maiores de 18 anos (crimes),
calculadas as médias (M) e desvios padrão (DP) enquanto 57 (25%) se referiram a AI, pois um
dos dados quantitativos. Os dados nominais fo- ou mais adolescentes constavam como acusados.
ram categorizados e foram contadas as frequên- Em dois processos (menos de 1%) houve abusa-
cias e calculadas as percentagens, quando cabí- dores adultos e adolescentes agindo em conjunto
(Tabela 1).
Tabela 1
Descrição Geral dos Dados
Condutas Processos Abusadores Vítimas
Tabela 3
Tipo de Abuso Cometido por Adultos e Adolescentes
Nos dois casos em que abusadores adultos e duas internações. Em um caso houve advertên-
adolescentes agiram em conjunto, configurando cia e PSC simultaneamente. Em três dos 24 ca-
uma situação em que, simultaneamente, houve sos com sentença disponível houve requisição de
crime e AI, o AS foi extrafamiliar. Do total de tratamento psicológico/psiquiátrico como medi-
70 abusadores adolescentes, 50 (71%) não ti- da de proteção concomitante à MSE.
nham relação de parentesco com as vítimas e 20
(29%) tinham algum parentesco, configurando Discussão
situações de ASI. É interessante notar que exa-
tamente metade dos acusados adolescentes eram Embora ainda persista no senso comum o
vizinhos de suas vítimas. Somando vizinhos e mito de que os abusadores sexuais são pessoas
conhecidos obteve-se 66% dos acusados adoles- externas à família (Granjeiro & Costa, 2008), os
centes do presente estudo. dados das pesquisas têm continuamente chegado
a conclusões opostas, como no caso do presente
Desfecho dos Processos estudo. A predominância de vítimas do sexo fe-
Crimes. Com relação ao desfecho, dos 170 minino, na faixa etária dos cinco aos 10 anos de
processos envolvendo acusados adultos, 32 esta- idade, encontrada por diversos autores (Cohen &
vam em tramitação e 138 já estavam sentencia- Gobetti, 2003; Habigzang et al., 2005; Pelisoli
dos no 1º Grau. Dos sentenciados, 88 (63,8%) et al., 2010; Polanczyc et al., 2003), também foi
tiveram sentença condenatória e 50 (36,2%), corroborada.
absolutória. Em relação ao duplo grau de jurisdi- A porcentagem de AS cometido por adoles-
ção, 67 processos possuíam também sentença de centes encontrada na presente pesquisa foi mui-
2º Grau e em mais da metade deles (40 processos to próxima à da literatura citada (Oliver, 2007;
ou 60%) a sentença foi reformada, resultando Sanderson, 2005). No entanto, a carência de es-
no seguinte: em 23 processos a condenação foi tudos nacionais sobre o tema torna difícil saber
mantida, mas a pena foi reduzida, em 11 houve o quanto estes dados refletem a realidade brasi-
mudança da sentença (condenação no 1º Grau leira. Além disso, predomina no senso comum a
seguida de absolvição no 2º Grau), em cinco a suposição de que abusadores sexuais adultos se
condenação e a duração da pena foram mantidas utilizariam de adolescentes para que os mesmos
mas houve alteração do regime de cumprimento cometam AI em função da responsabilização di-
e em um a sentença absolutória no 1º Grau foi ferenciada, sendo este um dos argumentos dos
revertida para sentença condenatória no 2º Grau. defensores da redução da maioridade penal (Ko-
AI. somente foi possível verificar o desfecho erner, 1997). No entanto, os dados encontrados
de 24 processos de AS cometido por adolescen- em relação ao concurso de abusadores adultos
tes. Destes, 23 tiveram sentença condenatória. e abusadores adolescentes não apoiaram esta hi-
Foram 12 LA, cinco PSC, três advertências e pótese já que somente dois (0,9%) dos 229 pro-
308 Pincolini, A. M. F., Hutz, C. S.
cessos descreveram participação simultânea de O perfil das vítimas e o tipo de AS foi muito
adultos e adolescentes como acusados de AS. Ao diferente no caso de abusadores adultos e abu-
contrário, nos processos examinados, a maioria sadores adolescentes. A maioria das vítimas de
dos adolescentes cometeu o AI sozinho ou com abusadores adultos foram meninas e houve pre-
outros adolescentes. domínio de ASI, com boa parte dos abusadores
Segundo Araújo (2008) é importante levar desempenhando a função parental. Contraria-
em conta o contexto em que é cometido o AS mente, o AS cometido por abusadores adoles-
por abusadores adolescentes, uma vez que o en- centes foi predominantemente dirigido a vítimas
volvimento de amigos poderia influenciar essas do sexo masculino, sem relação de parentesco
condutas. A adolescência é uma fase de experi- (metade dos adolescentes abusadores eram vi-
mentação e autoafirmação em relação à sexua- zinhos das vítimas). Esses achados diferiram de
lidade, de modo a que a influência do grupo de estudos internacionais (Sanderson, 2005) e sur-
amigos é indicada como um fator predisponente preenderam os pesquisadores.
a cometer AS como forma de demonstração de Como já relatado, em seu estudo com ado-
virilidade para os pares (Araújo, 2008; Print & lescentes abusadores, Costa et al. (2001) descre-
Morrison, 2002). No entanto, na presente pes- veram situações em que tais adolescentes eram
quisa, somente seis (10,5%) dos 57 AI tiveram responsáveis pelas tarefas domésticas e pelo cui-
mais de um adolescente abusador. Assim, são dado das demais crianças da casa. Essa situação,
necessários estudos com amostras maiores para em grande medida gerada pelas dificuldades so-
esclarecer a relação entre AI de natureza sexual cioeconômicas das famílias, que não têm como
e pressões de grupo. custear espaços mais adequados em uma reali-
Em relação ao perfil, abusadores adultos dade de carência de vagas nas escolas infantis
apresentaram características semelhantes às en- gratuitas, era potencialmente geradora de uma
contradas em pesquisa realizada anteriormente confusão de papéis em função da alternância
no Rio Grande do Sul, a qual aponta o baixo grau de poder que tais adolescentes experimentavam
de instrução e atuação em profissões de baixa dentro da família. Segundo as autoras, essa dinâ-
qualificação, em geral no mercado informal (Ha- mica familiar se constituiu em um fator de risco
bigzang et al., 2005). O desemprego, indicado para o AS. Um aspecto semelhante foi discutido
como fator de risco para violência intrafamiliar, por Sanderson (2005) em relação a adolescentes
também foi encontrado neste estudo. Em função abusadoras que atuavam como babás. A dificul-
de gerar conflitos e estresse entre os membros da dade de assumir papéis contraditórios de poder/
família e de colocar o pai/padrasto como prin- responsabilidade em relação a crianças menores
cipal cuidador das crianças, o desemprego e a e características da adolescência, tais como im-
informalidade podem oportunizar o AS (Koller pulsividade e questionamentos em relação à pró-
& De Antoni, 2004), especialmente o ASI. Algu- pria identidade favoreceriam o AS.
mas características dos abusadores adolescentes Na realidade brasileira a maior parte das
coincidiram com aquelas dos abusadores adul- notificações de AS se refere a famílias de baixa
tos, em especial o baixo grau de instrução, ex- renda, que, com dificuldades de satisfação até
presso em uma defasagem entre a idade cronoló- mesmo de suas necessidades básicas, acabam
gica e o nível de escolaridade correspondente e lançando mão dos filhos adolescentes como res-
o engajamento em subempregos. Alguns autores ponsáveis pelo trabalho doméstico e pelo cui-
(Acosta & Barker, 2003; Araújo, 2008) referem dado das crianças menores (Costa et al., 2011).
que cometer AS na adolescência é um fator de Quando não dispõem de recursos para custear
risco para continuar sendo um abusador sexual cuidadores adultos ou instituições educativas
de crianças quando adulto. A semelhança nestes adequadas para os filhos pequenos, as famílias
aspectos do perfil de abusadores adultos e abu- pobres costumam organizarem-se em redes fa-
sadores adolescentes pode ser indicativa deste miliares de ajuda mútua, caracterizadas pela
risco. presença de avós, tios, primos e outros parentes
Abusadores Sexuais Adultos e Adolescentes no Sul do Brasil: Pesquisa em Denúncias 309
e Sentenças Judiciais
diversos que residem no entorno, de modo que exemplo. Assim, ao ter as vítimas disponíveis
as crianças circulam por várias casas e têm múl- em sua casa para serem cuidadas ou quando so-
tiplos cuidadores (Fonseca, 2005). Além disso, licitados a tomar conta das vítimas, sendo essas
quando não dispõem de uma rede de apoio na vítimas mais comumente meninos (já que me-
família extensa, é comum que tais famílias soli- ninas tradicionalmente não são “deixadas” com
citem a vizinhos o cuidado temporário e a super- meninos na sociedade brasileira) criar-se-iam as
visão das crianças. Em decorrência disso, nesse condições para o AS. Esse maior “acesso” dos
contexto de circulação de crianças (Fonseca, adolescentes do sexo masculino a crianças tam-
2005), presume-se que seja frequente que ado- bém do sexo masculino em um contexto de cui-
lescentes tenham acesso a filhos de vizinhos que dados temporários é uma hipótese para explicar
estão sendo cuidados. Também é comum que a predominância de vítimas do sexo masculino
sejam eles próprios solicitados a “ficar com as encontrada nesse estudo. Logicamente, seriam
crianças” ou a “olhar as crianças” da vizinhança necessários mais estudos com abusadores sexu-
por algum tempo. Se a disponibilidade da vítima ais adolescentes, com amostras maiores e aná-
e a ausência de supervisão adulta criam oportu- lises mais aprofundadas, para apoiar hipóteses
nidades para o AS (Print & Morrison, 2002) e há como esta, já que a mesma se baseia em dados
dificuldades para que os adolescentes consigam intuitivos.
dar conta da alternância de papéis de diferentes Em relação à responsabilização dos abusa-
níveis hierárquicos, pode-se pensar que, mesmo dores adultos, os dados apontaram que recorrer
não sendo familiares de vítimas, tais adolescen- ao 2º Grau foi vantajoso na maior parte dos ca-
tes vivenciem situação análoga em relação às sos. Além disso, como muitos abusadores con-
crianças das quais tomam conta. Eles próprios denados conquistam o direito de recorrer em
estão, na maior parte do tempo, no mesmo ní- liberdade, o tempo decorrido entre o crime e a
vel hierárquico de seus vizinhos menores, ne- responsabilização tende a ser mais longo. Assim
cessitando, também, de cuidados e de proteção. como entre os abusadores adultos predominaram
Quando solicitados a cuidar das crianças que cir- sentenças condenatórias, os abusadores adoles-
culam, tendem a ocupar temporariamente uma centes também foram na maioria responsabiliza-
posição de poder em relação a elas, mas também dos por seus atos. No entanto, chamou a atenção
de subordinação em relação àqueles que lhes o fato de que, embora o tratamento psicológico
impuseram essa tarefa. Somada à impulsivida- seja uma das medidas de proteção que podem ser
de característica da adolescência e à presença de adotadas simultaneamente ao cumprimento da
impulsos/fantasias sexuais dirigidos às crianças MSE (Artigo 101, inciso V do ECA, 1990), ele
das quais estão tomando conta, tal dinâmica rela- tenha sido solicitado em apenas três casos. Con-
cional poderia ser uma hipótese explicativa para siderando o AS contra crianças algo extrema-
a elevada frequência de AS dirigida a crianças da mente grave e presumindo que o AS cometido
vizinhança, encontrada no presente estudo. na infância possa ser um fator de risco para futu-
Em relação à predominância de vítimas ros AS na idade adulta (Acosta & Barker, 2003;
do sexo masculino, encontrada neste estudo, Araújo, 2008), seria fundamental um espaço psi-
na sociedade brasileira, tradicionalmente, não coterápico, de natureza preventiva e/ou interven-
é comum que adolescentes do sexo masculino tiva. Cabe salientar que abusadores adolescentes
brinquem com meninas menores sem nenhu- precisam, também, de cuidados e de espaços nos
ma supervisão de um adulto. Também não é quais possam ressignificar o ato abusivo e ex-
frequente que sejam solicitados a tomar conta pressar sentimentos, temores e fantasias (Araújo,
de crianças do sexo feminino. Interações entre 2008; Costa et al., 2011). A dificuldade de conter
crianças menores do sexo masculino e adoles- impulsos e a carência de intimidade e espaços de
centes do sexo masculino são mais frequentes, diálogo e continência afetiva nas relações fami-
seja na escola, em brincadeiras com vizinhos liares e sociais contribuem para a ocorrência do
ou na prática de esportes, como o futebol, por AS (Costa et al., 2011). Oportunizar tais espaços
310 Pincolini, A. M. F., Hutz, C. S.
e, quando possível, inserir a família do adoles- Almeida, T. M. C., Penso, M. A. P., & Costa, L. F.
cente nesse processo, pode prevenir a recorrên- (2009). Abuso sexual infantil masculino: O gê-
cia de AS no futuro. nero configura o sofrimento e o destino? Estilos
da Clínica, 14(26), 46-67.
Considerações Finais Araújo, S. A. (2008, 25-28 ago.). Violência sexual:
Sentidos atribuídos por adolescentes identifica-
Uma importante limitação deste estudo foi dos como praticantes de abuso sexual. Trabalho
apresentado no seminário Fazendo Gênero 8
a análise dos dados ter base apenas em estatís-
- Corpo, violência e poder, Florianópolis, SC,
ticas descritivas, de modo que não foi possível
Brasil. Recuperado em março, 2009, de http://
estabelecer se as diferenças encontradas entre www.fazendogenero8.ufsc.br/sts/ST20/Suza-
abusadores adultos e abusadores adolescentes na_Almeida_Araujo_20.pdf
são estatisticamente significativas. Além dis-
Código Penal. (1940, 31 dez.). Decreto-lei no 2.848,
so, a carência de estudos nacionais sobre abu-
de 7 de dezembro de 1940. Diário Oficial da
sadores sexuais adolescentes também limitou a União.
discussão dos achados e sua confrontação com
Código de Processo Penal. (1941, 13 out.). Decreto-
outras pesquisas. Geralmente os abusadores se-
-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Diário
xuais adolescentes não são incluídos em estudos Oficial da União.
sobre AS ou essa parcela de abusadores fica di-
Cohen, C., & Gobetti, G. J. (2003). O incesto: O abu-
luída nas pesquisas. É importante intensificar a
so sexual intrafamiliar. Recuperado em 10 de
pesquisa com abusadores sexuais adolescentes
abril, 2008, de http://violênciasexual.org.br/tex-
tanto do ponto de vista quantitativo (prevalên- tos/PDF/incesto_cohen.pdf.
cia e características do AS) quanto qualitativo
Constituição da República Federativa do Brasil.
(trajetória de vida desses adolescentes). Estudos
(1988, 5 out.). Recuperado em 05 de março,
quantitativos, com amostras maiores, poderão
2010, de www.planalto.gov.br/.../constituicao/
corroborar ou confrontar os achados encontra- constituiçao.htm
dos neste estudo. Caso corroborem, contribuirão
Costa, L. F., Junqueira, E. L., Ribeiro, A., & Mene-
para que as estimativas de prevalência de AS
ses, F. F. F. (2011). “Ministério da Obrigação”
contra meninos estejam mais próximas da rea-
adverte: É preciso proteger os adolescentes
lidade. Estudos qualitativos com adolescentes ofensores sexuais. Avances en Psicología Lati-
abusadores poderiam contribuir na compreen- noamericana, 29(1), 33-46.
são dos fatores motivadores do AS, bem como
Estatuto da Criança e do Adolescente. (1990). Lei Fe-
na proposição de intervenções para além da deral 8069. Recuperado em 17 de fevereiro,
criminalização, em uma perspectiva preventiva 2010, de www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/
e terapêutica. Estudos longitudinais poderiam L8069.htm
esclarecer as relações entre cometer um AS na
Faleiros, E. T. S. (2000). Repensando os conceitos de
adolescência e tornar a cometê-lo na idade adul- violência, abuso e exploração sexual de crian-
ta e se constituiriam em valiosos subsídios para ças e adolescentes. Brasília, DF: Thesaurus.
nortear intervenções junto a adolescentes abusa-
Finkelhor, D., & Hotaling, G. T. (1984). Sexual abu-
dores sexuais e suas famílias e, assim, prevenir
se in the national incidence study of child abuse
a recorrência do AS. and neglect: An appraisal. Child Abuse & Ne-
glect, 8, 23-33.
Referências
Fonseca, C. (2005). Concepções de família e práticas
de intervenção. Saúde e Sociedade, 14(2), 50-59.
Acosta, F., & Barker, G. (2003). Homens, violência
de gênero e saúde sexual e reprodutiva: Um es- Granjeiro, I. A. C. L., & Costa, L. F. (2008). O estudo
tudo sobre homens no Rio de Janeiro/Brasil. Rio psicossocial forense como subsídio para a deci-
de Janeiro, RJ: Instituto NOOS. Recuperado em são judicial na situação de abuso sexual. Psico-
www.promundo.org.br logia: Teoria e Pesquisa, 24(2), 161-169.
Abusadores Sexuais Adultos e Adolescentes no Sul do Brasil: Pesquisa em Denúncias 311
e Sentenças Judiciais
Habigzang, L. F., Koller, S. H., Azevedo, G. A., & Organização Mundial da Saúde. (1999). Report of the
Machado, P. X. (2005). Abuso sexual infantil e consultation on child abuse prevention. Gene-
dinâmica familiar: Aspectos observados em pro- bra, Suíça: Autor.
cessos jurídicos. Psicologia: Teoria e Pesquisa,
Paulo, V., & Maia, J. (2004). Aulas de Direito Cons-
21(3), 341-348.
titucional. Rio de Janeiro, RJ: Impetus.
Hohendorff, J. V., Habigzang, L. F., & Koller, S. H.
Pelisoli, C., Pires, J. P. M., Almeida, M. E., &
(2012). Violência sexual contra meninos: Dados
Dell´Aglio, D. D. (2010). Violência sexual con-
epidemiológicos, características e consequên-
tra crianças e adolescentes: Dados de um servi-
cias. Psicologia USP, 23(2), 395-415.
ço de referência. Temas em Psicologia, 18(1),
Itzin, C. (2002). Home truths about child sexual abu- 85-97.
se: Influencing policy and practice. A reader.
Pfeiffer, L., & Salvagni, E. P. (2005). Visão atual do
London: Routledge.
abuso sexual na infância e adolescência. Jornal
Koerner, R., Jr. (1997). A menoridade é carta de al- de Pediatria, 81(5 Supl.), S197-S204.
forria? In M. Volpi (Ed.), Adolescentes privados
Polanczyk, G. V., Zavaschi, L., Benetti, S., Zenker,
de liberdade: A normativa nacional e interna-
R., & Gammerman, P. W. (2003). Violência se-
cional & Reflexões sobre a responsabilidade pe-
xual e sua prevalência em adolescentes de Porto
nal dos adolescentes (pp. 109-156). São Paulo,
Alegre, Brasil. Revista de Saúde Pública, 37(1),
SP: Cortez.
8-14
Koller, S. H., & De Antoni, C. (2004). Violência in-
Print, B., & Morrison, T. (2002). Treating adoles-
trafamiliar: Uma visão ecológica. In S. H. Kol-
cents who sexually abuse others. In C. Itzin
ler (Ed.), Ecologia do desenvolvimento humano:
(Ed.), Home truths about child sexual abuse:
Pesquisa e intervenção no Brasil (pp. 293-310).
Influencing policy and practice. A reader (pp.
São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.
290-313). London: Routledge.
Kristensen, C. H. (1996). Abuso sexual em meninos
Sanderson, C. (2005). Abuso sexual em crianças:
(Dissertação de mestrado, Programa de Pós-
Fortalecendo pais e professores para proteger
-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento,
crianças contra abuso sexual e pedofilia. São
Instituto de Psicologia, Universidade Federal do
Paulo, SP: M Books.
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil).
Weiss, K. G. (2010). Male sexual victimization: Exa-
Lei Federal 12.015. (2009, 10 ago.). Diário Oficial da
mining men’s experiences of rape and sexual
União. Recuperado em 17 de fevereiro, 2010,
assault. Men and Masculinities, 12(3), 275-298.
de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2007-2010/2009/lei/l12015.htm
Lei Federal 12.594. (2012, 20 jan.). Diário Oficial da
União. Recuperado em 18 de setembro, 2013,
de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm Recebido: 27/2/2013
1ª revisão: 24/05/2013
Oliver, B. E. (2007). Three steps to reducing child 2ª revisão: 09/10/2013
molestation by adolescents. Child Abuse & Ne- 3ª revisão: 25/11/2013
glect, 31, 683-689. Aceite final: 27/11/2013