Você está na página 1de 5

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE


DEPARTAMENTO DE NUTRIÇÃO

Falsas memórias

De todas as funções mentais, a memória é talvez a mais complexa que se encontra


no cérebro. Isto porque estão implicadas neste processo várias regiões encefálicas, tais
quais: hipocampo, tálamo, amigdala, os lobos: frontal, parietal, temporal e o cerebelo.
Ainda há vários tipos de memória, cujo processo envolve diferentes etapas, como a
recepção de informação, codificação (organização e processamento da informação
recebida pelos órgãos dos sentidos), armazenamento (por meio de um processo de
consolidação) e recuperação, ou seja, o recolhimento e a evocação dos dados.

A memória humana é uma incessante tentativa de reconstrução e reprodução de


fatos já vivenciados. Ela envolve, portanto, um complexo mecanismo de arquivamento
e recuperação de experiências. O termo memória tem sua origem etimológica no latim,
significando a faculdade de reter e/ou adquirir ideias, imagens, expressões e
conhecimentos, reportando-se às lembranças. A princípio, pode parecer fixa e
inamovível, mas é maleável, podendo ser criada, modificada e até perdida ao longo da
vida.

A memorização passa, basicamente, por três estágios: codificação,


armazenamento e recuperação. Todavia, as imagens e fatos não são permanentemente
retidos na memória sob a forma de miniaturas ou microfilmes, na medida em que
qualquer tipo de “cópia” geraria problemas de capacidade de armazenamento, em
virtude da imensa gama de conhecimentos adquiridos ao longo da vida. Apesar de
armazenadas, nem todas as recordações de uma experiência são lembradas com a
mesma facilidade, isso ocorre em decorrência da forte vinculação entre a memória e
outros fatores, como o nível de excitação emocional. Esses fatores influenciam o
processo de recuperação da memória, não raras vezes, originando falsas memórias.

A memória também tem seu lado obscuro e frágil, isto porque pode-se esquecer
de forma rápida ou gradual de eventos importantes ou até mesmo distorcer o passado de
forma surpreendente. Uma das falhas de memória são as falsas memórias (FM). As
falsas memórias caracterizam-se pela lembrança de eventos que na realidade nunca
ocorreram. As informações são armazenadas na memória e, mais tarde, são recordadas
como se tivessem sido verdadeiramente vividas. As FM incluem distorções na maneira
de recuperação da memória armazenada, incluindo interpretações e inferências do
indivíduo.

Quando proferimos frases como "recordo-me perfeitamente", "parece que ainda


estou vendo" ou "lembro-me como se fosse hoje", a probabilidade de estarmos a ser
traídos pela nossa memória é elevada. Apesar de haver uma crença generalizada de que
através da nossa memória podemos, de forma precisa e com alguma facilidade, aceder
ao registro de fatos e acontecimentos experienciados no passado, essa crença é, no
mínimo, exagerada. Se é verdade que a memória nos permite, na maioria das situações,
acessar, de forma funcional, a informação sobre o passado, também não é menos
verdade que esses registros raramente são uma cópia fiel da realidade que anteriormente
vivenciamos. Assim, quando falamos de memória devemos assumir que esta é, por
natureza, reconstrutiva, e não um sistema semelhante a uma câmera de vídeo que
permite gravar os acontecimentos e, mais tarde, revê-los tal e qual como ocorreram.

Curiosamente, a ideia de que a memória é falível é aceite e divulgada de forma


espontânea e frequente pela maioria das pessoas. Expressões como "esqueci-me
completamente", "nunca mais me lembrei" ou "não consigo recordar-me disso", são
utilizadas por todos nós em várias situações. Ou seja, se por um lado, em alguns casos,
assumimos a memória como um sistema falível, por outro, agimos como se nela
pudéssemos confiar cegamente. Não deixando de ser um paradoxo, a verdade é que
estes dois pressupostos refletem bem aquilo que é a história do estudo da memória em
geral, e das falsas memórias em particular.

As falsas memórias se referem ao fato de recordarmos acontecimentos ou


informações que não aconteceram, que não experienciámos ou que não ocorreram tal e
qual o relatamos. Embora o estudo das falsas memórias tenha sido descurado durante
vários anos, existem atualmente diversas pesquisas neste âmbito. Devido ao grande
impacto que os resultados destes estudos tiveram no meio acadêmico e também na
sociedade, somos frequentemente confrontados com uma grande diversidade de
definições e paradigmas para o seu estudo.

O fenômeno das falsas memórias pode originar-se de duas formas: de forma


espontânea ou via implantação externa por meio de sugestão. As falsas memórias
espontâneas são aquelas onde a distorção da memória se dá de maneira interna ou
endógena ao sujeito, através da auto-sugestão. A auto-sugestão acontece quando o
indivíduo lembra tão somente do significado, da essência do fato ocorrido, ou seja, o
indivíduo recupera a memória da essência sobre o fato vivido, uma vez que a memória
literal do que ocorreu não está mais acessível devido, por exemplo, a interferência pelo
processamento de novas informações. Resumidamente, a dimensão das falsas memórias
pode ir de uma simples distorção da realidade vivida, até a implantação de uma
memória cujo evento nunca ocorreu na verdade.

A distorção e falsificação da memória vem interessando pesquisadores desde os


primórdios do século XX. Os primeiros experimentos específicos sobre as distorções na
memória estavam relacionados à sugestionabilidade em crianças, e foram realizados por
Binet, em 1900, na França e, posteriormente, por Stern em 1910, na Alemanha. No final
da década de 50, Deese publicou um artigo sobre a criação de listas de palavras,
baseadas nas normas de associação semântica de Kent-Rosanoff. O objetivo de Deese
era verificar como fatores associativos semânticos afetariam a recordação de palavras,
além de medir os índices de intrusões que cada lista produzia. Este método ficou
conhecido também como Procedimento com palavras associadas.

No procedimento com palavras associadas, listas de palavras são apresentadas


para serem memorizadas. As palavras de cada lista giram em torno de um mesmo tema
(som, dança, disco, ritmo, melodia, cantor, letra, rádio, violão, instrumentos, notas, har
monia, ouvir, voz, guitarra, versam sobre o tema música). A palavra crítica - música -
que traduz a essência temática da lista e que está semanticamente associada a todas as
palavras da mesma lista, não é apresentada na etapa de memorização. O efeito
consistente que se observa é que, quando testada a memória para a lista original, a
palavra música é recordada ou reconhecida muitas vezes na mesma proporção que
palavras da lista estudada. Como repercussão da publicação do artigo de 1995 ocorreu
uma proliferação de trabalhos valendo-se do procedimento experimental com listas de
palavras associadas, que também ficou conhecido como paradigma de Deese-Roediger-
McDermott (DRM).

Estudos que utilizam o procedimento com palavras associadas demonstram que


essas palavras induzem um padrão de onda cerebral distinto quando comparadas com as
que não geram FM, observadas principalmente nas regiões occipital e parietal do
encéfalo. Como essas áreas são relacionadas à formação de imagens mentais, os autores
sugerem que esta ativação indica maior vividez visual dos objetos imaginados, de tal
maneira que posteriormente as imagens eram falsamente reconhecidas como tendo sido
apresentadas como fotografia. Quando analisadas imagens de Ressonância Magnética
Funcional, evidencia-se quais áreas cerebrais estariam envolvidas na formação de FM.
Os resultados indicam principalmente um aumento na ativação de áreas como o
precuneus e o córtex parietal inferior durante a apresentação das palavras que depois
seriam falsamente reconhecidas. Novamente, essas regiões são conhecidas por, entre
outras funções, serem responsáveis pela imaginabilidade visual. Esta evidência sustenta
que itens que levam à maior índice de FM induzem maior vividez dos objetos
imaginados, dificultando a distinção entre o que foi imaginado e o que foi visto
realmente.

Com relação às áreas encefálicas relacionadas às FM, os resultados apontam que


tanto o reconhecimento verdadeiro quanto o falso provocaram um aumento na ativação
em várias regiões do cérebro que comumente eram ativadas em experimentos de
memória episódica (córtex pré-frontal dorsolateral/anterior, córtex parietal medial e
regiões temporais mediais). Estudos mais detalhados indicam que as regiões anteriores
do lobo temporal medial, como o hipocampo, foram mais ativas tanto durante o
reconhecimento verdadeiro quanto o falso. Entretanto, regiões posteriores do lobo
temporal medial, como o giro parahipocampal mostraram mais ativação apenas durante
o reconhecimento verdadeiro, indicando um aumento na recuperação de informações
sensórias. Ainda, a porção do córtex frontal foi mais ativada apenas durante o falso
reconhecimento, sugerindo o envolvimento dessa área no esforço empregado na
recuperação da palavra semanticamente associada.

A questão da falibilidade da memória é uma problemática não muito abordada no


sistema judiciário brasileiro, porém, é de grande relevância ao processo penal. Em uma
quantidade relevante de delitos, a testemunha tem papel preponderante para que o juiz
decida a sentença, fazendo, assim, com que seja imprescindível a agilidade para que, de
forma breve e com técnicas precisas, ouça as testemunhas que, em regra, dependerão
unicamente de sua memória para recordar e relatar o ocorrido. Assim, o tempo do
desenrolar do processo até a data da audiência se torna fundamental para que a memória
da testemunha não corra tanto o risco de sofrer falhas ou distorções, pois como é sabido,
esta não consegue manter acessível e puro os conteúdos por um longo período de
tempo. Deste modo, um determinado caso em que leva anos para serem realizadas suas
fases processuais, possuindo um longo lapso temporal desde o fato ocorrido até o
momento do julgamento, faz com que uma Falsa Memória se torne mais suscetível a se
fazer presente no depoimento das testemunhas ou na declaração das vítimas.

Perguntas:

1) Quais são os estágios da memória?


2) Quais principais áreas encefálicas estão relacionadas à memória?
3) Quais as principais áreas encefálicas que estão ligadas às falsas memórias?

REFERÊNCIAS:

KAOUANE N, DUCOURNEAU E-G, MARIGHETTO A, SEGAL M AND


DESMEDT A (2020) False Opposing Fear Memories Are Produced as a Function of the
Hippocampal Sector Where Glucocorticoid Receptors Are Activated. Front. Behav.
Neurosci. 14:144. doi: 10.3389/fnbeh.2020.00144

OLIVEIRA, H.M.; ALBUQUERQUE, P.B.; SARAIVA, M. O Estudo das falsas


memórias: reflexão histórica. Temas psicol. vol.26 no.4 Ribeirão Preto out./dez. 2018

STEIN, L.M.; FEIX, L.F.; ROHENKOHL, G. Avanços Metodológicos no Estudo das


Falsas Memórias: Construção e Normatização do Procedimento de Palavras
AssociadasPsicologia: Reflexão e Crítica, 19 (2), 166-176.

SILVA, A.G.; SILVA, F.R.; SANTOS, L.L.S.; SANTOS, M.A.C.; FERMOSELI,


A.F.O. As bases neurais das falsas memórias: uma revisão de literatura narrativa.
Ciências Biológicas e de Saúde Unit, Alagoas, v. 5, n. 1, p. 233-244. Nov 2018

Você também pode gostar