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Universidade Federal da Paraíba

Centro de Ciências da Saúde


Departamento de Fisiologia e Patologia
Disciplina de Fisiologia Humana II
Professora Dra. Fabiana de Andrade Cavalcante Oliveira
Professor Pedro Emmílio de Lima Marinho

Aula assíncrona: fisiologia dos processos de memória

Você já parou pra pensar sobre nossa capacidade de recordar eventos do passado?
Ou já parou para pensar os mecanismos pelos quais nós aprendemos os conteúdos das
disciplinas que cursamos na Universidade? Ou mesmo como aprendemos a pedalar uma
bicicleta, tocar um instrumento musical, digitar no teclado do computador sem precisar
olhar as teclas ou mesmo como aprendemos a ler este texto? Nós nomeamos todos esses
processos relacionados de memória ou aprendizagem. Aprendizagem pode ser definida
como a nossa capacidade de obter novos conhecimentos e habilidades. Memória, por sua
vez, é o processo pelo qual os indivíduos podem construir e reconstruir esses
conhecimentos e habilidades ao longo do tempo. Não existe um único tipo de memória.
De fato, “memória” é um termo genérico e é usado para descrever diversos processos que
ocorrem em diversos locais do nosso sistema nervoso. Além do mais, a memória é um
fenômeno individual. Os eventos da vida que as pessoas experienciam são diferentes e,
por isso, seus bancos de dados de memória são também diferentes. Um mesmo evento
seria recordado de modo diferente por diferentes pessoas.

Vamos dar alguns exemplos de tipos diferentes de memória? A memória de curto


prazo ou também chamada de memória de trabalho, é aquela responsável por armazenar
informações por curto período de tempo. Ou seja, é a capacidade de manter e processar
representações mentais para o raciocínio, compreensão e aprendizado de informações.
Sabe quando te dizem um número de telefone e você precisa ficar com ele na cabeça antes
de digitá-lo no celular? Ou quando você faz uma conta matemática de cabeça? Esses são
exemplos de memória de curto prazo.

Outros tipos de memória são aqueles onde a informação adquirida é mantida por
um período de tempo maior. São as chamadas memórias de longo prazo e existem vários
tipos delas. Um específico é a memória não declarativa, ou também chamada de memória
de procedimentos ou memória implícita. Esse tipo de memória nos dá a capacidade de
aprender a pedalar uma bicicleta, usar um garfo e uma faca ou tocar um instrumento
musical. Ela está relacionada às nossas habilidades motoras e hábitos. Ah, ela não precisa
de processos conscientes para acontecer (por isso é chamada de não declarativa). Sabe
quando você está caminhando na rua? Você não precisa estar consciente ou pensando em
como caminhar, a memória relacionada ao “caminhar” já é tão estabelecida em você que
executas ela no “automático”.

Outros tipos de memória de longo prazo são as memórias declarativas. Elas


recebem esse nome pois precisam de processos conscientes para evocá-las. Nesse grupo,
a memória episódica guarda informações sobre experiências pessoais, eventos e memória
autobiográfica. Ela precisa ter os componentes “o quê”, “quando” e “onde”. Por exemplo,
eu lembro da minha colação de grau (o quê), que ocorreu na Reitoria da UFPB (onde),
em julho de 2019 (quando): isso é uma memória episódica. Já a memória semântica é
relacionada ao aprendizado de conceitos, linguagem e fatos. Um exemplo é: eu sei do fato
de que João Pessoa é a capital da Paraíba. Isso é um fato, relacionado à linguagem. Eu
não preciso saber exatamente “onde” ou “quando” eu aprendi que João Pessoa é a capital
da Paraíba, em contraste com a memória do tipo episódica. Esse esquema abaixo resume
essa classificação de memórias que aprendemos até agora.

Figura 1: classificação das memórias.

Fonte: Blåvarg (2016) (adaptado).


Tabela 1: diferenças entre as memórias de longo prazo.

Fonte: Silverthorn (2017).

Não teríamos tempo para falar sobre todas elas detalhadamente, por isso escolhi
falar mais sobre as memórias declarativas (são as minhas prediletas). De agora em diante,
falaremos dela. Fisiologicamente, como se forma uma memória? O que acontece no meu
encéfalo que faz com que eu tenha a capacidade de recordar o dia da minha colação de
grau? Bioquimicamente, o que é uma memória? A memória da minha colação de grau é
uma proteína? Um RNA? Um neurotransmissor agindo numa sinapse? Essas são algumas
perguntas ainda não completamente elucidadas, mas que já temos algumas respostas.
Como já aprendemos na disciplina, ao longo de nossas vidas, vivenciamos eventos e
somos bombardeados a todo momento com informações sensoriais vindas do ambiente e
do nosso meio interno. Como o corpo seleciona aqueles que se transformarão em
memória? Imagine a quantidade de informações sensoriais que obtemos durante um único
dia? E se nosso encéfalo guardasse todas elas, do momento que acordamos até os sonhos
que temos quando estamos dormindo? Por que estudamos tanto para sermos aprovados
em uma disciplina e, alguns meses depois, recordamos tão pouco do assunto que
estudamos? Vamos destrinchar mais especificamente esse fascinante mundo da memória.

O primeiro passo para se formar uma memória é o processo de aquisição. Na


aquisição, nós recebemos as informações aferentes do ambiente ao nosso redor. Elas são,
aqui, memórias de curta duração. Imagine uma festa de aniversário: quais seriam as
informações captadas pelos nossos sentidos? Imagens da festa e das pessoas; cheiros de
perfumes e das comidas, sons das conversas e da música que estaria tocando; entre outras
informações. Todas essas informações chegam ao nosso encéfalo e, se for realmente
formada uma memória, elas serão direcionadas e convergirão numa região do encéfalo
chamada de hipocampo para se transformarem em memória de longo prazo. Nesse
sentido, a transformação de uma memória de curto prazo em memória de longo prazo
chama-se consolidação.

Figura 2: a localização do hipocampo.

Fonte: Bear (2017).

Figura 3: esquema de formação das memórias.

Fonte: Fonte: Bear (2017).

Já que já introduzimos o conceito de aquisição, quais são os possíveis fatores que


influenciam se vamos formar uma forte ou fraca memória sobre algo? Se vamos recordar
os aprendizados das disciplinas meses depois ou não? Existem diversos fatores que vão
influenciar, mas dois parecem ser bem importantes. São a atenção e a emoção, e isso
parece óbvio. Por exemplo, qual a probabilidade de você recordar uma aula se não estiver
prestando atenção a ela? A quantidade de recursos atencionais direcionados a um evento
(a aula, por exemplo) vai influenciar, na etapa da aquisição, a possibilidade daquele
evento se tornar uma memória de longa duração. Quando à emoção, esta parece nos ser
mais clara. Todos nós temos recordações de eventos de nossas vidas que envolveram
componentes emocionais muito fortes. O primeiro beijo, as lembranças da primeira
paixão, o nascimento de um filho, a aprovação no vestibular, ou até traumas; todos esses
são eventos que envolvem muita emoção e, consequentemente, têm uma maior
probabilidade de se tornarem memórias de longo prazo duradouras. Mesmo que você não
goste de futebol, é bem provável que você tenha uma memória do dia em que a seleção
brasileira perdeu de 7 x 1 para a seleção alemã pela Copa do Mundo em pleno solo
brasileiro. Esta memória me é muito forte. Eu estava num bar assistindo ao jogo com
meus amigos. Assim que o jogo acabou as pessoas estavam chorando ao meu redor.
Recebo uma ligação da minha mãe: “filho, vá para casa agora. Não podemos prever as
consequências do que está acontecendo”. Eu, e muitas pessoas, estava em choque. Você
acha que um dia esquecerei essa lembrança? Daí já te dou uma dica: se você quer aprender
melhor e render mais nos estudos, procura caprichar na atenção e estudar aquilo que te
dar prazer e te emociona!

Figura 4: muitos brasileiros formaram memórias fortes e duradouras sobre esse dia,
justamente por causa do intenso componente emocional envolvido.

Fonte: Google Imagens (2020).


Aparentemente já sabemos onde (no hipocampo) as memórias parecem ser
processadas, mas como, em nível celular, essas informações se transformam em
memórias? Não vamos entrar em detalhes, mas precisa ocorrer um processo fisiológico
chamado de potenciação de longa duração, ou na sigla em inglês, LTP. No primeiro
estágio da LTP, imagine que as vias aferentes que trazem informações do ambiente
chegaram à região do hipocampo. Nessa região, existem muitos neurônios que realizam
suas sinapses através do neurotransmissor glutamato. O glutamato se liga a dois
receptores principais no neurônio pós-sináptico: o receptor NMDA e o AMPA. Agora
imagine que neurônios glutamatérgicos pré-sinápticos, relacionados às informações
sensoriais vindas do ambiente, fazem sinapse com um neurônio pós-sináptico lá no
hipocampo. Se essas sinapses, com liberação de glutamato, forem de alta frequência, os
receptores NMDA serão ativados, despolarizando a membrana. A ativação dos receptores
NMDA causa um grande influxo de Ca2+, que, por sua vez, ativa diversas vias de
sinalização intracelular, como a PKC, PKA, CaM-cinase II e MAPK. O resultado da
ativação dessas vias intracelulares de segundos mensageiros leva a uma maior
incorporação de receptores de glutamato do tipo AMPA na membrana pós-sináptica, o
que aumenta a eficácia da sinapse. No segundo estágio da LTP, essas mesmas vias de
segundos mensageiros ativadas pelo influxo de Ca2+ quando da ativação do receptor
NMDA são responsáveis pela ativação de expressão gênica, especialmente dependente
do fator de transcrição CREB-1. A ativação da expressão gênica e consequentemente
formação de novas proteínas está associada com mudanças estruturais nessa sinapse, com
um alargamento de partes dos dendritos com presença de receptores NMDA e também
possível produção de novos espinhos dendríticos. Conjuntos de sinapses expressando
essas mudanças estruturais nos dendritos, causados pela forte estimulação dos receptores
NMDA, modificam a eficácia dessas sinapses, tornando-as mais fortes, e formando os
traços de memória. Ah, lembra que eu falei que a atenção e a emoção podem modular o
processo de aquisição das nossas memórias? Pois bem, todo esse processamento
dopaminérgico da LTP pode sofrer influência de outros sistemas de neurotransmissores,
como a dopamina, promovendo uma oportunidade para a modulação da formação das
memórias baseada na atenção, emoções e motivação. Mas voltemos à parte celular da
coisa. Em resumo, as aferências do ambiente convergem em neurônios pré-sinápticos do
hipocampo, que causam LTP mediada por glutamato nos neurônios pós-sinápticos e estes
começam a apresentar aumento da quantidade de receptores AMPA e mudanças
estruturais nos dendritos, deixando as sinapses mais fortes. Mas o que isso tem a ver com
memória? Esse processo é importante para a formação da memória pois a retirada de
receptores NMDA da membrana pós-sináptica e a inibição das vias de sinalização
mediadas pelo influxo de Ca2+ fazem com que não se formem memórias. Aparentemente,
as sinapses mais intensificadas depois da LTP e a maior quantidade de dendritos são
responsáveis por “guardar” as memórias lá. Nesse sentido, a minha memória da minha
colação de grau estaria guardada em alguma(s) sinapse(s).

Isso fazia todo sentido, até que um estudo revolucionário em 2013 mudou um pouco
o cenário. As planárias são vermes que conseguem regenerar seus corpos mesmo quando
são cortadas ao meio. Cientistas então treinaram planárias para que elas aprendessem uma
tarefa (formassem uma memória). Daí ele decapitaram sua cabeça (e seu encéfalo),
descartando-o, e esperaram crescer outra cabeça a partir do resto do corpo que foi
preservado. Incrivelmente, depois de regenerada a cabeça (e o encéfalo), as planárias
ainda conseguiam lembrar da tarefa aprendida, mesmo depois de seus cérebros terem sido
descartados. Nesse sentido, já que o encéfalo foi descartado, onde ficaram guardadas as
memórias das planárias? No resto do corpo que ficou preservado? Em proteínas? Em
RNAs? Questões ainda não resolvidas...

Figura 5: as planárias com encéfalos regenerados ainda mantiveram as memórias do


encéfalo que foi decapitado e descartado.

Fonte: Shomrat e Levin, 2013.

Problemas de memória são importantes desafios a serem resolvidos no nosso


século. Na doença de Alzheimer, há o comprometimento do hipocampo, o acometido tem
dificuldade de criar novas memórias. Ele também começa a esquecer memórias do
passado numa ordem gradual, sendo que nos estágios iniciais da doença há o
esquecimento de memórias mais recentes e, com a progressão da doença, o esquecimento
de memórias mais antigas. Não é só a falta de memória que é problemática. Pessoas que
passam por eventos traumáticos podem desenvolver a síndrome do estresse pós-
traumático. Nessa condição, as memórias traumáticas não passam pelo processo de
esquecimento normal e continuam a reverberar na mente do indivíduo, causando
sofrimento aos acometidos.

Para finalizar, o entendimento da fisiologia dos processos de formação das


memórias irá revolucionar como o ser humano entende a si mesmo e sua vida em
sociedade. Manipulações moleculares nos neurônios relacionados à memória podem nos
fornecer ferramentas para, por exemplo, transferir memórias de indivíduos para interfaces
computacionais. Assim como aponta o neurocientista Miguel Nicolelis, você consegue
imaginar ter acesso a um banco de memórias de seus ancestrais próximos (e talvez até
distantes), de modo que você pudesse sentir os pensamentos, emoções e recordações que
seus antepassados tiveram durante suas vidas? Se você pudesse ter esse acesso, qual seria
a pessoa que você escolheria para visualizar suas memórias? Você teria interesse em
deixar preservadas suas memórias para que seus filhos e netos pudessem ver como foi
sua vida?

Se interessou pelo tema? O Laboratório de Estudos em Memória e Cognição na


UFPB estuda a memória tanto em humanos como em modelos animais não humanos.
Estamos sempre precisando de novos colaboradores. Se for do seu interesse, podes fazer
uma visita ao nosso laboratório e as nossas reuniões semanais e ingressar na iniciação
científica. Qualquer dúvida de como proceder pode entrar em contato pelo e-mail:
pedro.elm@hotmail.com ou pelo Instagram @pedroelm.

PERGUNTAS:

1- Dê um exemplo de cada tipo de memórias que discutimos, mas que já não tenha
sido citado no texto: memória de curto prazo, memória de procedimentos,
memória episódica e memória semântica.
2- Diferencie aprendizado de memória.
3- Qual a diferença entre aquisição e consolidação? Qual a ordem de ocorrência delas
para que se forme uma memória?
4- Para que ocorra a formação das memórias, é preciso que ocorra LTP. Descreva
brevemente a LTP, enfatizando o que ocorre no primeiro e no segundo estágio
desse processo.
5- A partir do que você leu, onde você acredita que nossas memórias estão
guardadas? Ou melhor, o que são nossas memórias a nível molecular/celular?
6- A possibilidade de manipular memórias nos dará a capacidade de apagar
memórias, criar memórias artificiais e até mesmo criar bancos de memórias a
partir do encéfalo de indivíduos. Quais as implicações éticas que você considera
importantes de tais procedimentos?

Referências:

BEAR, M. F. Neurociências: desvendando o sistema nervoso. 4 ed. Porto Alegre: Artmed,


2017.

BLÅVARG, C. The alluring nature of episodic odor memory: sensory and cognitive
correlates across age and sex. 79 F. Tese (Uppsala Dissertations from the Faculty of
Social Sciences) – Uppsala University, Uppsala, 2016.

KANDEL, E. R.; DUDAI, Y; MAYFORD, M. R. The Molecular and Systems Biology


of Memory. Cell, v. 157, 2014.

NICOLELIS, M. Muito além do nosso eu. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2017.

SHOMRAT, T.; LEVIN, M. An automated training paradigm reveals long-term memory


in planarians and its persistence through head regeneration. The Journal of
Experimental Biology, v. 216, pp. 3799-3810, 2013.

SILVERTHORN, D. U. Fisiologia humana: uma abordagem integrada. 7 ed. Porto


Alegre: Artmed, 2017.

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