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A preparação de

crianças e
adolescentes para
ADOÇÃO

Autoras:
Aline Andolfo
Kelly Caraça
Vanessa Sousa
Janeiro de 2021
Ficha Técnica

Realização: Amanhar Adoção

Autoras: Aline Raquel Andolfo de Souza


Kelly Cristina Caraça Jesus Ferreira
Vanessa Resendes Sousa

Revisão: Josy Eugênio

Design: Pelas próprias autoras, através do site


www.canva.com
Quem Somos?

---Somos o "Amanhar Adoção", que significa


cultivar, nutrir, tornar-se disposto.
---Nossa missão é desenvolver intervenções,
estratégias e práticas voltadas à subsidiar
profissionais que atuam diretamente com crianças
e adolescentes que estão em processo de doção.
Acreditamos na importância de preparar essas
crianças e adolescentes por meio da escuta,
acolhimento e, principalmente, viabilizar
estratégias para torná-las protagonistas da
própria história através de envolvimento ético,
escuta sensível e profissionalismo dos
responsáveis pela preparação.
Nosso Logo

Amanhar: cultivar, preparar, tornar-se disposto.

---Assim como toda família, a árvore precisa ser amanhada


e preparada para que possa crescer e dar frutos.
---A raiz da árvore é a história da criança e adolescente,
assim como da família que escolheu se constituir pela
adoção.
---O que acontece se arrancarmos a raiz da árvore? Ela
deixará de dar frutos, irá murchar, enfraquecer e morrer.
Precisamos valorizar as raízes.
---Cultivar é disseminar para a cultura de adoção um olhar
para quem é essa criança e para quem é esse pretendente
que se dispõe a formar uma família por adoção. Assim
como ajudá-los a se tornarem dispostos nesse processo.
---As cores são como ingredientes dessa preparação: “azul”
para transmitir tranquilidade e maturidade nas decisões;
“amarelo” para dar crescimento, luz, calor e alegria; “verde”
como sinônimo de esperança, liberdade, saúde e
vitalidade.
---Nós, profissionais, somos o jardineiro que cuida, prepara,
avalia a necessidade de cada árvore e auxilia no
crescimento para que possa florescer em terra boa.
Nossa Equipe

Aline Andolfo - Psicóloga (CRP: 06/127.579) com


Aprimoramento em Psicoterapia Infantil pela PUC-SP,
possui experiência com grupos de preparação de
pretendentes à adoção desde 2015 e desde 2017 realiza
atendimento psicológico individual de
crianças/adolescentes e atendimento familiar focado
no pré e pós-adoção (online e em Mogi das Cruzes/SP);
atuou como Psicóloga no Adoptare - Instituto de Apoio à
Adoção, por 3 anos; e em 2020 fez parte do grupo de
Estudos sobre Adoção da UFSC; é membro do Grupo de
Pesquisas e Intervenções em psicanálise da USP- PsiA
desde 2018.

Kelly Caraça - Psicóloga (CRP: 06/127.713) com


Aprimoramento Clínico em Psicoterapia de Casal e
Família pela PUC - SP; já atuou como conselheira de
direito no CMDCA de Itaquaquecetuba em 2009; já
trabalhou como Psicóloga em Serviço de Acolhimento
Institucional para Crianças e Adolescentes (SAICA); há 7
anos atua na preparação de pretendentes à adoção,
atendimento psicológico individual de crianças/
adolescentes e atendimento familiar no pós adoção; em
2019, participou do Apadrinhamento Afetivo, na
preparação dos técnicos dos SAICAs; atuou como
Psicóloga no Adoptare – Instituto de Apoio à Adoção,
por 3 anos.

Vanessa Sousa - Psicóloga (CRP: 06/141.727) e Doula de


Adoção em formação, idealizadora do Projeto
#1ºTrampo cujo o principal objetivo foi a capacitação
de jovens em situação de acolhimento com idade entre
14 a 17 anos para ingresso no mercado de trabalho;
coautora do Projeto de Apadrinhamento onde atuou em
2019 como coordenadora articulando e dialogando
sobre as preparações dos envolvidos (futuros afilhados,
pretendentes a padrinhos e profissionais do serviço de
acolhimento) e na orientação dos pretendentes a
padrinhos. Atuou por 3 anos como psicóloga no
Adoptare -Instituto de Apoio à Adoção.
Agradecimentos

Gostaríamos de deixar registrado aqui nossos


agradecimentos especiais a:

- Luiz Aarão e Kelly Couto que contribuíram com a revisão


deste material e estão sempre por perto para nos motivar e
apoiar na construção de nossos sonhos e projetos.

- Marcia Regina da Silva que foi nossa professora,


supervisora e amiga, proporcionando a nós capacidade
técnica para atuar em todos os âmbitos da adoção. E,
principalmente, foi quem plantou a "sementinha" em nosso
coração para o trabalho que fazemos hoje.

Sem vocês esse E-book não se tornaria realidade tal como


é, muito obrigada!
Sumário

INTRODUÇÃO P. 05

1. As Três Marias P. 08
1.1 Quem são as crianças e adolescentes aptas para
a adoção? P. 18
1.2 O que elas sentem? P. 19

2. O que é preparar para adoção? P. 20


2.1 O luto não reconhecido P. 22

3. E quando separam os irmãos? P. 27

4. Aproximação gradativa e fase de adaptação P. 33


4.1 Comportamentos esperados P. 36
4.2 A criança como protagonista P. 39
4.3 Como estimular o protagonismo infantil? P. 40

5. Como manejar a preparação para adoção? P. 41

Referências P. 45
INTRODUÇÃO

---A adoção é uma via de construção de


parentalidade, uma forma de constituir uma família.
Nesse processo, os olhares se voltam para a
criança/adolescente e os pretendentes. Muito se fala
sobre a preparação e, inclusive, existe um trabalho
extremamente importante realizado pelos Grupos de
Apoio à Adoção, que oferecem gratuitamente
preparação para os pretendentes.
---Além das crianças/adolescentes e pretendentes,
existe um público intermediário responsável pela
“engrenagem” da adoção, que são os técnicos dos
Serviços de Acolhimento e o setor técnico das Varas
da Infância e Juventude (VIJ) que assessoram o Juiz
em suas decisões.
---O Setor Técnico tem um papel fundamental em
todo processo de adoção, que vai desde a avaliação
dos pretendentes, a escuta da criança/adolescente,
acompanhamento durante a aproximação
gradativa, até a fase de adaptação e convivência
familiar, mas infelizmente nem todo território pode
contar com uma equipe técnica.

Mas e a criança/adolescente, quem os prepara


para adoção?

05
---Segundo o ECA (Estatuto da Criança e
Adolescente), a responsabilidade de preparar para
adoção é do serviço de acolhimento. O artigo 92 do
ECA determina que “as entidades que desenvolvem
programas de acolhimento familiar ou institucional
deverão adotar os seguintes princípios: (...) VIII -
preparação gradativa para o desligamento”.
---Infelizmente, em alguns lugares no Brasil, a
participação da equipe técnica do serviço de
acolhimento ainda não é considerada como
fundamental. Esses profissionais, muitas vezes, são
surpreendidos com decisões e há aqueles que nem
têm acesso ao processo dos acolhidos que cuidam
diariamente.
---Apesar de um trabalho extremamente relevante, os
profissionais carecem de recursos que os auxiliem
nesse processo de preparação para adoção. Muitas
são as questões que envolvem esse tema:

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M as o que se
preparar
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a recu stratégia
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adoção? utiliz s e
ar?

Como
Como preparar?
preparar?

06
---Diante de tais questionamentos, este material
propõe reflexões fundamentadas teoricamente para
que se possa olhar para a prática profissional e
identificar maneiras para fazer a diferença na vida
destas crianças e adolescentes, colocando-as em
prática quando necessário.
---Para isso, compartilhar-se-á a história das “Três
Marias”: Maria Júlia - 7 anos, Maria Lívia - 5 anos e
Maria Luiza - 1 ano. “Três Marias” que ajudarão na
ilustração do conteúdo a ser apresentado.

07
TRÊS
MARIAS
---Era uma vez três Marias: Maria Júlia - 7 anos, Maria
Lívia - 5 anos e Maria Luiza - 1 ano. Para facilitar a leitura,
utilizar-se-á o segundo nome de cada uma delas: Júlia,
Lívia e Luiza.

Júlia e Lívia eram filhas de Jerusa e Joberson, que


tinham um relacionamento abusivo. Entre muitas idas e
vindas, ele acabou sendo recluso e sentenciado a 18
anos, logo após a última separação.

---Então, Jerusa conheceu Baltazar e três anos depois


tiveram Luiza. Os dois faziam uso abusivo de álcool e
drogas, negligenciavam e maltratavam as crianças. E,
nas raras vezes que estavam sóbrios, eram carinhosos
com as meninas. Apesar de toda dificuldade, Baltazar
era uma figura de referência para Júlia e Lívia, que o
chamavam de pai.

---Júlia, a mais velha, cuidava das irmãs, principalmente


de Luiza, a mais nova. Ela tentava manter, na medida do
possível, os cuidados básicos: esquentava e dava
comida e mamadeira (quando tinha); algumas vezes,
dava banho e brincava com elas.

Certo dia, Jerusa e Baltazar saíram e não voltaram


mais. Então, os vizinhos, após cerca de cinco dias,
percebendo a situação das crianças, acionaram o
Conselho Tutelar que, por sua vez, acolheu as meninas
em um SAICA (Serviço de Acolhimento Institucional para
Crianças e Adolescentes).

09
Ao chegar à casa das garotas, o Conselho Tutelar logo
percebeu que elas não se alimentavam há alguns dias.
Naquele momento, elas começaram a chorar de medo.
Júlia se desesperou, pois se sentiu culpada por aquela
situação, por acreditar não ter conseguido cuidar das
irmãs. No carro do Conselho Tutelar, elas foram sentadas
bem pertinho uma das outras, quase que grudadas, com os
olhos estatelados e com muito medo.

---Chegaram ao SAICA acuadas, com passos curtos e


apertados, uma segurando a mão da outra. Luiza, a menor,
estava no colo do Conselheiro e, enquanto os adultos
conversavam, elas aguardavam juntas, do lado de fora.
Logo, uma educadora trouxe lanche para elas comerem,
pois estavam famintas.

---Depois que se alimentaram, a psicóloga do SAICA se


apresentou e disse que iria mostrar a casa para elas, lugar
onde iriam morar temporariamente, até que a equipe
conseguisse ajudar Baltazar e Jeruza a cuidarem delas. As
irmãs ganharam roupas novas e uma cama quentinha e
confortável. Tomaram um banho, conheceram as outras
crianças que moravam ali e logo fizeram novas amizades.

---Quinze dias depois, Baltazar e Jeruza foram localizados


e então, começaram a fazer visitas esporádicas para as
crianças. Quando iam, prometiam que logo voltariam a
morar juntos, que estavam arrumando a casa e
procurando um emprego. Porém, as irmãs passavam
meses sem ter contato com eles. A equipe realizou várias
visitas domiciliares, encaminhamentos para o CAPS (Centro
de Atenção Psicossocial), mas eles não aderiram a nenhum
encaminhamento ou tratamento proposto.

10
Um ano e meio após várias tentativas e uma ausência
ainda maior de Jerusa e Baltazar, fundamentado no
trabalho, relatório e sugestão dos técnicos que
acompanhavam o caso no SAICA e Vara da Infância, o juiz
determinou a destituição do poder familiar, considerando
também que não haviam outros membros da família com
interesse e possibilidade de cuidar das três meninas.

---Quando Júlia e Lívia foram ouvidas em audiência


concentrada, elas choraram muito e disseram que não
queriam outra família, não queriam ser adotadas. Tendo
em vista a grande dificuldade de adoção das três irmãs,
Luiza, com apenas um ano, carecia ainda mais de um olhar
individualizado, que apenas uma família poderia oferecer.
Já que ela tinha mais chances de adoção, decidiu-se
naquela audiência a separação de Luiza das irmãs mais
velhas, visando a transferência de Júlia e Lívia do SAICA em
até 10 dias.

---A decisão de destituição já era esperada pela equipe


técnica do SAICA. Mas a separação das irmãs, em um
prazo tão curto, abalou a equipe que não concordava com
a decisão pelo forte vínculo afetivo que existia entre elas, e
também por não saber como lidar com essa situação.

---A equipe técnica do SAICA se reuniu e decidiu conversar


com as crianças a fim de informá-las e ajudá-las com os
sentimentos advindos da separação. No entanto, no dia da
conversa tiveram uma emergência: duas crianças
adoeceram e ficaram internadas em hospitais diferentes.
Com isso, a equipe precisou se desdobrar para dar conta
de acompanhar as crianças hospitalizadas e oferecer os
cuidados aos demais acolhidos.

11
Devido à situação, as meninas só foram informadas da
transferência no dia em que isto aconteceria. Ao saberem,
elas choraram muito, se despediram apenas de quem
estava no serviço e foram transferidas para outro SAICA.
Júlia e Lívia chegaram lá muito tristes, mal ouviam o que a
educadora dizia quando lhes apresentava a nova casa, o
novo quarto e os novos amigos.

---Algum tempo depois, Júlia e Lívia se apresentaram


agressivas, irritadas e com dificuldade de aprendizagem. A
escola chegou a sugerir um encaminhamento para
avaliação psiquiátrica, mas o CAPS não identificou nenhum
tipo de transtorno.

---Cinco meses se passaram, Júlia e Lívia nunca tocaram


no assunto sobre Luiza, o que levou a equipe a entender
que estava tudo bem. Após a discussão do caso, decidiram
que era o momento de procurar por uma nova família para
as crianças. Algumas semanas depois, o setor técnico da
Vara da Infância e Juventude informou que encontraram
um casal de pretendentes para adotar as duas irmãs.

---Foi um alívio e muita alegria para a equipe técnica e


para os educadores que cuidavam das crianças. As
meninas não entendiam direito o que era adoção, embora
a equipe já tivesse tido uma conversa sobre o assunto com
elas. Apesar de demonstrarem certa resistência e medo,
também falaram do desejo de ter uma família. E, para não
gerar expectativas, as equipes decidiram apresentar os
pretendentes como “padrinhos”, para que o processo de
adoção fosse mais cuidadoso.

-
12
No dia seguinte os "padrinhos" iriam conhecê-las
pessoalmente, por isso elas não foram para as
atividades rotineiras e ficaram esperando. Quando eles
chegaram, as meninas ficaram com muita vergonha,
porém, como haviam trazido presentes para cada uma
delas, aos poucos foram ficando mais à vontade.

---As visitas foram ficando mais frequentes, começaram


a sair juntos e logo os pernoites foram autorizados. Nos
primeiros finais de semana deu tudo certo! Elas,
espontaneamente, começaram a chamá-los de mãe e
pai e eles, empolgados, preparavam o quarto das
“princesas”. Porém, as meninas começaram a
apresentar comportamentos regredidos: pediam para
mamar no seio da mãe, para receberem comida na
boca, e os “pais” diziam que elas já eram crescidas para
isso.

---Dias depois, começaram algumas dificuldades: Júlia


teria sido agressiva com os “pais”, sem razão aparente.
Quando eles contaram para a técnica do SAICA, ela
disse: “Júlia, como você quer uma família agindo dessa
maneira? Precisa respeitar os pais, ninguém gosta de
uma pessoa que fica brava por qualquer coisa”.

---Dois meses depois dos pernoites, estava chegando o


período de férias escolares; as voltas para o abrigo
estavam ficando cada vez mais difíceis pela saudade
que sentiam. Algumas dificuldades pontuais
apareceram, mas foram rapidamente resolvidas.

13
---Então, decidiu-se iniciar a fase da convivência e tudo
estava indo bem, porém, episódios de agressividade e
raiva começaram a ser mais frequentes. Uma noite, Júlia
começou a chorar descontroladamente, sem motivo
aparente, o que levou o pai a colocá-la no quarto para se
acalmar e pensar em seu comportamento. Em meio a
muito choro, a menina gritava que queria voltar para o
abrigo, então começou a colocar as coisas dela em um
saco.

---A “mãe” havia ido com Lívia até a farmácia. Durante o


trajeto, a garota tirou o cinto de segurança e colocou a
cabeça para fora da janela do carro. Foi um susto! A “mãe”
chamou a atenção da menina que, enfurecida, disse: “Você
não é minha mãe, quero voltar para o abrigo!”. Já em casa,
os “pais” disseram que se elas não estavam felizes e
quisessem voltar para o abrigo, assim eles fariam. No dia
seguinte, levaram as meninas embora com tudo o que
haviam comprado para elas. O setor técnico da Vara da
Infância e Juventude tentou intervir e acolher o casal, mas
eles se negaram.

---Alguns dias depois, Júlia se apresentou ainda mais


agressiva e se descontrolava por qualquer coisa e em
qualquer lugar. A escola, o Centro de Recreação e os
educadores, durante as saídas com a menina, relataram o
comportamento descompensado.

---A equipe do SAICA procurou pelo CAPS novamente para


avaliação de algum transtorno, tendo em vista que nesses
momentos de agressividade, muitas vezes, eram
necessários três adultos para conter uma criança de 9
anos. As coisas estavam ficando cada vez mais
insustentáveis, mas em nova avaliação não identificaram
nenhum transtorno.
Fim? 14
Ué? Tem alguma coisa errada?
Será que editaram errado?
Cadê o final da história?

---A expectativa é sempre pelo final feliz das histórias


que se lê, se ouve, assiste e vive. Mas, infelizmente, nem
sempre é assim.

Alguns casos parecem que vão escorregando


entre os dedos. Quantas histórias que se vê, indo
por um caminho nunca desejado? Quantas vezes,
os profissionais se sentem desamparados, em um
caso que não depende só do “seu intervir”?

Quanta sensação de impotência, apesar de todo


esforço, empenho e dedicação de toda uma equipe,
além do investimento pessoal?! Quantos julgamentos!
Mas, só quem trabalha com esse público sabe da
intensidade do que os afeta e dos atravessamentos
existentes.

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ês
e id
ess e
O caso das “Três Marias” a s c o m n t if ic
lhe fez lembrar de
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alguma situação? ta ç
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16
---Ao longo de toda prática, seja na preparação de
crianças e adolescentes para adoção, no dia a dia do
SAICA ou apadrinhamento afetivo, essas inquietações
se fizeram presentes. O caso apresentado é fictício,
mas os acontecimentos são uma pequena amostra de
circunstâncias das quais é necessário lidar na nossa
caminhada profissional.

---A rotina frenética é familiar: prazos a cumprir e uma


grande demanda para atendimento, tanto no SAICA,
no setor técnico da VIJ e outros serviços. Sabemos o
quanto isso pode dificultar a reflexão do caso a partir
de outros pontos.

---Por isso, decidimos compartilhar toda experiência e


conhecimento, na tentativa de contribuir na
construção de novos olhares apresentando outras
perspectivas.

---A seguir, compartilharemos alguns pontos


importantes para refletirmos sobre o caso das “Três
Marias”.

17
1.1 Quem são as
crianças e adolescentes
"aptas" para
a adoção?

---As crianças e adolescentes que se encontram acolhidas


normalmente passaram por violação de direitos, ou seja,
sofreram negligências, maus tratos e/ou abandono. Apesar de
não ser tão comum quanto os primeiros motivos citados, elas
também podem ser crianças órfãs e, ou ainda, terem sido
entregues ao nascer, conforme é autorizado hoje pela lei
13.509/2017. Segundo o ECA, a carência de recursos materiais não
constitui motivo para o acolhimento, uma vez que o Estado é
responsável por tal. Porém, através da experiência, sabemos que
isso, algumas vezes, acaba acontecendo.
---A chamada medida de acolhimento institucional deve ser
excepcional e provisória, existindo também na legislação um
limite de permanência institucional de 18 meses (ECA, artigo 19
inciso 2º). Esse prazo, porém, conta com algumas exceções, uma
vez que é necessário que o processo de destituição, reinserção
ou mesmo adoção, seja realizado com cuidado e observando as
particularidades da criança ou adolescente em questão.
---Nem toda criança e adolescente que se encontra acolhido
pode ser adotado, pois, para que isso seja possível, é necessário
que a destituição do poder familiar ocorra. Como bem ilustrou o
caso das “Três Marias”, isso acontece quando os profissionais que
são responsáveis por eles já articularam a rede, realizaram
atendimentos e encaminhamentos na tentativa de fortalecer a
família de origem para cuidar de seus filhos, e ainda assim não foi
possível.
---Os profissionais discutem o caso e, quando entendem que não
há mais a possibilidade de que a criança ou adolescente retorne
ao convívio familiar de origem, realiza-se uma determinação
judicial através de processo civil para a destituição do poder
familiar. Assim, a família biológica não terá mais o direito legal de
cuidados e outros direitos sobre a criança ou adolescente em
questão.

18
1.2 O que elas sentem?

---Essas crianças e adolescentes possuem diversos


sentimentos advindos do acolhimento, que vão sendo
construídos desde o momento da saída do meio da
família de origem até a possibilidade de adoção. Não
se pode descartar a chegada na instituição de
acolhimento e as tentativas de reinserção na família
biológica. Em alguns casos, a separação dos irmãos,
a convivência na instituição, a coletividade, as
audiências, as escutas dos técnicos do abrigo e VIJ,
assim como a devolução e o retorno ao abrigo, em
casos específicos.

---São tantas situações e, com elas, tantos


sentimentos, que seria um desafio traduzir o que eles
sentem. Porém, a experiência profissional mostra, ao
longo do tempo, que é a partir de todo esse processo
de vivências (e da própria existência humana) que a
culpa, o medo e o luto se fazem muito presentes.
Sentimentos e processos naturais estes, que se não
olhados e compreendidos pelos adultos que cuidam,
podem trazer prejuízos à constituição psíquica e ao
modo como essas crianças poderão se “colocar” no
mundo. Por isso, a preparação para adoção é
fundamental.

19
2. O que é
preparar para
adoção?
Cada criança é única no mundo, ainda que faça
parte de um grupo de irmãos. A forma como ela
experienciou a violação de direitos é singular. Não
existe “receita de bolo”, mas existem alguns aspectos
importantes a serem considerados e trabalhados
com as crianças: o luto pela família biológica precisa
ser reconhecido e legitimado; elas precisam entender
sua história; tomar conhecimento sobre as decisões
judiciais, ouvir a verdade através de uma narrativa
que contemple a idade cronológica da criança; é
preciso trabalhar o sentimento de culpa, as fantasias
e expectativas com relação à família substituta.-

No caso das “Três Marias”, quais desses aspectos


foram considerados?

---Informar não é preparar. Informar e não dar


espaço para acolher sua angústia, é novo abandono,
visto que acabam tendo que lidar sozinhas com um
turbilhão de sentimentos.
---A preparação consiste na comunicação da
verdade, na ajuda de um adulto e de tempo para que
ela possa elaborar as rupturas vividas em sua vida.
Quando as decisões são repentinas e não há tempo
para a criança elaborar, a adoção poderá ser vivida
como abandono psíquico (PEITER, 2007). Então, a
possibilidade de fracasso é muito grande.

21
2.1 O luto
não reconhecido

---O processo de acolhimento institucional e


destituição do poder familiar envolvem um fator
importante na prática dos técnicos que atuam em
processos de adoção: o tempo.
Dentro da concepção de tempo utilizada no meio
jurídico, a criança encontra-se disponível para
adoção logo que a sentença de perda do poder
familiar dos genitores é emitida. Mas isso não significa
que a criança esteja pronta psicologicamente para
ligar-se a outra família, mesmo que o tempo
cronológico em que ela está privada da vida familiar
possa parecer relativamente longo. (PAIVA, apud
PEITER, 2003, p. 68).

---A possibilidade de adotarem irmãos e crianças


maiores de 7 anos é muito pequena e há a
necessidade de “correr” contra o tempo. O
cumprimento dos prazos jurídicos nem sempre
dialogam com o tempo psíquico da criança, o que
pode ser uma armadilha para possíveis atropelos.
Muitas vezes, imersos em tantos desafios do
acolhimento, processos e casos, o tempo e o manejo
da dor do luto, da ruptura, do trauma gerado pela
violação de direitos que essas crianças sofreram
podem, em alguns casos, passar despercebidos pelos
técnicos que atuam.
---Chaves et al. (2005, apud Peiter, 2007, p.64) diz que
as crianças “necessitam de intervenções que
facilitem a elaboração do luto pela perda dos
genitores para que, só então, possam se beneficiar
de uma nova relação filial saudável, recíproca e
afetiva”.
22
---No caso narrado para ilustrar a apresentação do
conhecimento aqui compartilhado, as “Três Marias”
viveram muitos lutos, repetitivos e sequenciais:
acolhimento, destituição do poder familiar,
separação das irmãs, mudança de serviço de
acolhimento e uma tentativa de adoção frustrada.
---Em que momento houve uma escuta e intervenção
que acolhesse o sentimento de luto das crianças?
Será que teria feito diferença? O luto foi reconhecido?
---O reconhecimento se dá através daquilo que é
conhecido e entendido. No senso comum, o luto está
associado, de forma equivocada, apenas à morte.
Luto é uma relação de dor, desorganização e de
descrença diante da perda de alguém ou de algo
muito importante. Portanto, a retirada da família ou
cuidador de referência, ainda que aquela seja a
figura de hostilidade, faz com que a criança, no ato
do acolhimento, inicie um processo de luto, podendo
apresentar sintomas de irritabilidade, falta de
energia, esquecimento e apatia.
---Bowlby (1973/1993 apud Tinoco, 2007, p.68) explica
que “o luto não é difícil só para quem o vive, mas
também para quem observa, devido ao sentimento
de impotência que esta experiência provoca em
todos”. Assim, podemos pensar também o quanto os
diversos lutos vão ressoando em nós que
trabalhamos diretamente com esse público.

23
---Casselato (2005 apud Tinoco, 2007) cita quatro
indicadores de não reconhecimento do luto: 1) falso
entendimento que atribui incapacidade da criança
entender questões envolvidas no abandono; 2) às
vezes a criança foi acolhida quando bebê e o
pensamento equivocado de que não existia vínculo
com a mãe; 3) as figuras parentais estão vivas e há a
inexistência de mortos; e 4) a forma como a criança
expressa o luto pode ser diferente do adulto. Esses
quatro indicadores podem fazer com que os adultos
cuidadores não legitimem o sentimento de luto das
crianças e adolescentes que vivem em serviços de
acolhimento.
---Em nossa sociedade ainda é muito forte a ideia de
que a criança não é capaz de entender certas coisas.
Logo, é preferível criar mentiras ou omitir dados para
evitar que elas sofram.
---No contexto de crianças e adolescentes em
situação de acolhimento com seus pais destituídos do
poder familiar, “falar da saída, é de novo retomar a
questão do abandono, da falta, da perda e isso
custa”. (Marin, 1999 apud Peiter, p.62).
---Segundo Dolto (2018, p.XVII), “as crianças desejam
inconscientemente, precisam e têm o direito de saber
a verdade, mesmo que seu desejo consciente quando
expressas em palavras, a pedido do adulto, prefira o
silêncio enganador, que gera angústia a verdade”.

24
---Na ilusão de poupar a criança e adolescente, a
equipe pode buscar formas não adequadas de se
comunicar, como no caso das “Três Marias”. Existiram
emergências legítimas no serviço de acolhimento,
mas conversar com as irmãs, dizer a verdade, dar
tempo para elas também era uma emergência.
Aqueles que profissionalmente se deparam com o
luto e com pessoas enlutadas, igualmente se sentem
impotentes, principalmente quando se trata de
crianças [...] e o não reconhecimento do luto é,
portanto, um mecanismo de defesa para evitar
contato com uma situação que causa dor e
impotência (TINOCO, 2007 p. 68 e 69).

---Talvez, o fato de o caso não ter sido tratado como


emergência esteja relacionado com o sentimento de
desamparo de cada profissional. Não concordar com
a decisão possivelmente gerou mais insegurança de
como manejar a situação dentro de um curto prazo
de tempo. Como comunicar e dar conta de uma
verdade que não faz sentido para você? Como será
que foi para essa equipe ver esse grupo de irmãs se
separando? Quanto uma separação como essa
reverbera em outros acolhidos e em toda a equipe de
profissionais? A equipe teve respaldo?
---A verdade é essencial no processo. Claro que, para
isso, é necessário ter cuidado para não transformar
os pais e as figuras de cuidado em pessoas horríveis.
Portanto, é necessário criar uma narrativa de
acolhimento, sem culpar as figuras parentais ou de
referência, e tão pouco a criança, que deve ser
sempre respeitada e acolhida em seus sentimentos.

25
---Marin (1999 apud Peiter, 2007, p.62), diz que “falar a
verdade é a forma da criança poder se situar, se
discriminar, mesmo que seja chorando a sua dor, é a
forma de viver a tristeza da separação, da dor da
perda.”
---Outro fato importante foi a decisão de apresentar
os pretendentes à adoção como “padrinhos”. As
crianças já sabiam sobre o processo de adoção, pois
o assunto já havia sido conversado com elas. No
entanto, apresentar o casal através desse termo,
pode ter acentuado o sentimento de insegurança
nelas. Não que essa tenha sido a razão pelas
dificuldades que culminaram na desistência do casal,
mas possivelmente contribuiu para que elas
existissem.
---Dizer a verdade significa incluir as crianças nas
decisões de sua vida, é colocá-las como
protagonistas de suas histórias. Para isso, os técnicos
e adultos envolvidos precisam promover essa escuta
e participação. O protagonismo é um ato de respeito.
Ele dá segurança e confiança à criança e ao
adolescente.

26
3. E quando
separam os
irmãos?
---No início da vida, as crianças em sua maioria, possuem
como principais cuidadores seus familiares, que
normalmente incluem seus pais, irmãos, avós, tios e primos,
além de amigos dos familiares e vizinhos, que por vezes,
também exercem esse papel. Segundo pesquisadores da
Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (2016, p.5) “essas
pessoas podem ter um papel importante na vida da
criança, à medida que se envolvam frequentemente com
os seus cuidados e educação”. Esclarecem que os vínculos
familiares são estabelecidos através da oferta de cuidados
e educação dentro do contexto familiar, ressaltam que tais
vínculos irão propiciar uma “base segura para o
desenvolvimento integral” da criança.
---Para os autores, a criança, principalmente quando
exposta a situações de estresse, irá buscar a vinculação
afetiva com um cuidador através de uma “tendência
natural” que se apresenta como estratégia de
sobrevivência. No caso apresentado “Três Marias”,
podemos constatar que havia ali um investimento e uma
construção de vínculos familiares que se dava através da
relação fraternal. No caso, Júlia, a mais velha, fornecia os
cuidados às irmãs mais novas, apesar da pouca idade.
---Em nossa prática profissional, presenciamos e
atendemos diversas crianças e adolescentes que, em
algum momento da trajetória do acolhimento, passaram
por rompimento de contato com um ou mais irmãos. Vimos,
então, os mais variados motivos de afastamento, sendo
estes dois mais comuns em nossa prática: quando um ou
mais deles - mas nem todos- tinha a possibilidade de ficar
com a família de origem; e quando a separação se dava
com o argumento de que a adoção só poderia acontecer
se o desmembramento fosse realizado, ou simplesmente
porque ela poderia ser facilitada com tal decisão.

28
---A primeira situação citada normalmente acontece
quando as crianças ou os adolescentes são filhos de
genitores diferentes. Como no caso aqui apresentado, em
que uma mãe tem três filhos, sendo um ou mais deles de
paternidade diferente. Pelo fato da família de origem (parte
paterna) não ser necessariamente a mesma para todos os
irmãos, acaba por existir a possibilidade da criança ou
adolescente ser desacolhido por algum membro dessa
família. Júlia e Lívia, por exemplo, poderiam ser
desacolhidas por um membro da família de Joberson, ou
por ele mesmo, caso não estivesse recluso, e se o poder
judiciário entendesse que isso seria possível e benéfico às
meninas. Então, a adoção de Luiza possivelmente seria
mantida.
---A segunda situação, talvez a mais frequente, foi a mais
presenciada por nós em casos de adoção, por isso será a
mais explorada aqui, para que possamos pensar através
do caso das Três Marias. Ressaltamos, porém, que não é
menos importante que a primeira.
---Morillo (2019), faz uma crítica citando que é a partir de
uma suposta possibilidade de adoção que iniciam-se os
questionamentos sobre a decisão de separação ou não de
grupos de irmãos, com intenção de que as crianças
possam ter “maiores chances” de serem adotadas, e
esclarece que isso possivelmente irá priorizar a separação
à manutenção do vínculo fraterno.
---Até que a criança possa ser adotada e até que ela possa
se sentir pertencente à sua família por adoção, os irmãos
normalmente são sua principal referência de vínculo. Para
Braier (2000 apud Peiter, 2017, p. 81),“em situações de
desamparo e carência materna, a união da fratria
configura uma verdadeira estrutura vincular, um sistema
defensivo – estruturante que, criando uma fantasia de
completude, os auxilia a lidar com a falha ambiental”.
29
---Sendo assim, podemos considerar que, para estas
crianças, o vínculo entre os irmãos, em situação de
vulnerabilidade, já se torna importante antes mesmo do
momento do acolhimento. E, na ausência de cuidados
básicos por um adulto, eles encontrarão as mais variadas
maneiras de sobrevivência, tendo como base, apoio ou
oferta de cuidado a referência do grupo fraterno.
---Hamad (2001 apud Peiter, 2017) fala da possibilidade de
que a situação traumática seja “incrementada” no
momento da separação de irmãos que já vivenciaram a
separação dos pais biológicos. Por este motivo,
precisamos nos atentar às decisões tomadas em relação
às possíveis separações e as consequências para cada
grupo de irmãos. A avaliação (principalmente dos técnicos
do abrigo, que atuam no dia a dia no cuidado da criança e
adolescente em questão), neste momento, é de extrema
importância para a compreensão das possíveis
consequências.
---Aqui, chamamos a atenção para uma observação:
nem tudo que parece óbvio realmente o é. Será que o
fato de Júlia e Lívia não falarem da irmã no novo abrigo
mostra a inexistência de vínculo entre elas? Ou, será que
não fazia sentido falar sobre isso para aquelas pessoas
que talvez nem soubessem da existência da irmã? Ou
talvez, estava tão difícil lidar com mais uma separação
que o fato de silenciar a situação seria uma tentativa de
amenizar a dor? Como falar da dor para
desconhecidos? Alguém, por acaso, perguntou-lhes
como se sentiam?

30
---Peiter (2017) afirma sobre a importância dos vínculos
fraternos afetivos nos momentos de separação, perda
dos pais e desamparo. Mas, coloca também que quando
se trata deste assunto é preciso estar atento ao risco de
generalização, pois cada família terá suas
especificidades. Neste sentido, as perguntas feitas como
possibilidades no parágrafo anterior precisam ser
entendidas e respondidas, olhando para cada caso
específico, o que poderia gerar outros questionamentos
a nós profissionais.
---Como forma de atuar e atender o que preconiza o
ECA no artigo 92 – “V – não desmembramento de grupos
de irmãos”, criou-se como alternativa a adoção
chamada "compartilhada'' (termo não oficial). Nesse
caso, os irmãos são divididos em duas ou mais famílias
por adoção e a família adotiva se compromete a
proporcionar o contato entre o grupo de irmãos.
A separação de irmãos que propõe a manutenção do
vínculo entre as crianças, mesmo quando em
diferentes famílias, parece-nos uma proposta
interessante. Uma alternativa de instaurar uma
relação de verticalidade muito necessária com uma
forma alternativa de manter as ligações entre as
crianças. Embora implique um tipo de separação não
livre das suas dores, esta alternativa dá sinais de
alguma viabilidade diante deste cenário tão
complexo. (PEITER, 2017, p.93)

---Até que ponto devemos priorizar a adoção? Até que


ponto conseguimos, mesmo numa adoção
compartilhada, garantir que não haverá rompimento de
vínculo? Talvez as respostas para estas perguntas
estejam em um olhar cuidadoso para cada caso.

31
---Nossa experiência em atendimentos de preparação
para adoção mostra que é possível construir a
possibilidade de adoção de um grupo de irmãos
separados, desde que se respeite e dê lugar ao luto.
Além disso, é necessário construir com as crianças um
lugar de fala e escuta, que as ajude a entender que
continuarão sendo irmãos, mesmo vivendo em casas
separadas.

---Para que isso aconteça, é preciso apoio da Vara da


Infância e Juventude na articulação e interação entre
as equipes do Setor Técnico e SAICA, assim como um
projeto de adoção que seja construído com a
participação das crianças, fazendo sentido
principalmente para elas.

32
4. Aproximação
gradativa e fase
de adaptação
---Quando surge a possibilidade de adoção para uma
criança ou adolescente, a realização do processo, de
maneira cuidadosa e gradativa, faz parte da
preparação da criança, do adolescente e dos
adotantes. A forma como as equipes irão conduzir este
momento poderá deixar “marcas” positivas ou
negativas, pois este é um momento bastante
significativo e, geralmente, muito esperado pelos
pretendentes, crianças e adolescentes.
---É importante que, neste período, seja trabalhada com
a criança ou adolescente partes da história de vida dos
adotantes e vice-versa, uma vez que esta história
contribuirá com o processo de construção de vínculo
entre ambos. Traçar estratégias para que isso aconteça
sem imposição é essencial.
---A pergunta que surge através do caso das “Três
Marias” é: até que ponto foram considerados, no
processo de aproximação, a história, os vínculos e os
lutos das meninas que acabaram sendo devolvidas?
Parece que ali não houve espaço para pensar nas
histórias e, assim, “traduzir” o que era necessidade delas
naquele momento.
---O manual de orientações técnicas para os serviços
de acolhimento traz a importância da aproximação
gradativa para a formação de vínculo em situações em
que a adoção é vista como a melhor medida.

34
---É importante esclarecer não só aos adultos
envolvidos na adoção, mas também às crianças, que a
aproximação é gradativa e que existirá a fase de
adaptação para que seja possível verificar se a
colocação em família substituta será mesmo a melhor
medida para ambos.
---O início desse processo de aproximação entre a
criança e a família poderá se dar por meios de
comunicação não presencial, ou seja, cartas, fotos,
vídeos, e, posteriormente, por encontros presenciais
com acompanhamento da equipe até que seja possível
um contato sem tal acompanhamento.
---Sabemos que o Poder Judiciário estabelece prazos
para que isso ocorra, porém, é essencial levarmos em
conta o “tempo psíquico” de cada criança, não
deixando que o tempo jurídico atropele as necessidades
individuais.
---É interessante que os primeiros contatos sejam
intermediados por algum profissional da instituição, o
qual a criança tenha maior vínculo e confiança, pois
isso trará mais segurança no momento de
aproximação, que normalmente é um período repleto
de medos, idealizações, desconforto e insegurança.
---Para as colaboradoras do Grupo Aconchego (2016, p.
43), “se ambos, crianças e adultos, tiverem a clareza do
que seja um estágio de convivência, de que ainda não
são pais e filhos, que esse é o momento de se
descobrirem e se conhecerem, certamente os riscos de
insucessos na vinculação afetiva serão diminuídos”.

35
4.1 Comportamentos
esperados

---Estágio de convivência é o período de adaptação


que antecede a adoção definitiva. Compreende-se
que neste momento, adotando e adotante são
acompanhados por uma equipe técnica da Vara da
Infância para avaliação sobre o início do
relacionamento entre ambos. Para Silva (2011) é
necessário que a criança ou adolescente passe pelo
período de adaptação para propiciar o início da
construção dos vínculos e assimilar as mudanças que
vivenciou e irá vivenciar em sua vida. É geralmente
durante esta fase que ocorrem grandes demandas
afetivas e comportamentais.
---Na história apresentada durante o estágio de
aproximação, as irmãs manifestaram alguns
comportamentos, tais como: agressividade sem
motivo aparente, choro descontrolado, desejos mais
infantilizados (mamar no seio, receber comida na
boca), fúria, testar limites (tirar o cinto de segurança e
colocar a cabeça para fora da janela do carro), dizer
que queriam retornar ao abrigo e que os adotantes
não eram seus pais.

Será que os comportamentos citados são comuns a idade e/ou


crianças e adolescentes que iniciaram o processo de
aproximação com novos cuidadores? Você já acompanhou
alguma família onde as crianças e adolescentes apresentaram
tais comportamentos? Em resposta aos comportamentos
infantis, quais foram as ações realizadas pelos cuidadores?

36
---Entre os principais comportamentos de crianças e
adolescentes, descritos por adotantes, família
extensa e profissionais que acompanham a formação
de novas famílias via adoção, estão: irritação, choro,
insegurança, retraimento, birras, pesadelos, agitação,
dificuldade de aprendizagem, problemas de atenção,
regredir às fases anteriores, não seguir regras,
dificuldade de alimentação, verbalizar que quer voltar
para o serviço de acolhimento e responder aos
adotantes que estes não são seus pais. Tais
comportamentos podem estar relacionados à forma
com que a criança ou adolescente encontra para se
certificar que não será abandonada novamente, visto
que o receio de reviver novos abandonos é real e
singular.
---A criação de novos vínculos não obedece a uma
lógica ou cronologia e as manifestações podem
ultrapassar o período do estágio de convivência. Mas,
se faz necessário ressaltar as fases de
desenvolvimento infantil, compreender e identificar
comportamentos característicos de determinadas
fases, visto que auxiliam na compreensão dos
comportamentos apresentados. As crianças entre 06
a 12 anos, por exemplo, estão desenvolvendo domínio
nas habilidades escolares e sociais, e a falha pode
levá-las a sentimentos de inferioridade e baixa
autoestima, segundo Erikson (1998).

37
---Além dos comportamentos manifestados pelas
crianças no caso “As Três Marias”, é válido relembrar
quais foram as ações tomadas pelos adultos para
responder aos comportamentos infantis: para
agressividade, o questionamento da técnica para a
criança e a afirmação “ninguém gosta de uma
pessoa que fica brava por qualquer coisa”; aos
comportamentos regredidos, os “pais” disseram que
as meninas já eram crescidas; para o choro
descontrolado e sem motivo aparente, o “pai” a
colocou para se acalmar e pensar no quarto;
referente ao teste de limites no carro, a “mãe”
chamou a atenção; sobre as falas de retorno ao
abrigo e que aqueles não eram seus pais, o
consentimento de retorno ao abrigo.

Será que as respostas às manifestações de Lívia e Júlia foram


adequadas? O que você faria diferente? Você como
profissional orientaria de que forma os adotantes?

---A formação da família através da adoção possui


peculiaridades e singularidades, porém é importante
ressaltar que, em diferentes configurações de
parentalidade, o vínculo afetivo é constituído de
forma gradativa: “escutar” através dos
comportamentos, acolher as manifestações
comportamentais reafirmando o seu lugar na família,
estabelecer regras, estar disponível e buscar apoio
de profissionais para auxiliá-los, sendo este último
papel do adulto e nunca da criança.
38
4.2 A criança como
protagonista

---Pensar a criança ou adolescente como


protagonista não é responsabilizá-la por todas as
decisões ou fazer tudo o que desejam, mas sim
permitir que elas participem das ações que serão
tomadas em sua vida. É escutá-las. Tal prática auxilia
no desenvolvimento das crianças, assim como
propicia melhor interação e interrelação na escola,
com a família, no abrigo, nas atividades extra
curriculares, assim como em todos os ambientes que
convivem e com quem residem.
---O ECA e o Marco Legal da Primeira Infância
preveem o reconhecimento do lugar social das
crianças e adolescentes com suas formas de
participação e inclusão nos processos de decisão.
Vale ressaltar que o protagonismo infantil deve ser
mediado por um adulto cuidador e não delegado às
crianças, para que tomem decisões que não lhes
cabem ou que ainda não estão prontas, ou ainda,
deixando-as exercer o papel do adulto e
reproduzindo, muitas vezes sem perceber,
novamente o abandono.

39
4.3 Como estimular o
protagonismo
infantil?

---Propor jogos e peças teatrais criados a partir da


imaginação das crianças ou permitir um debate para
revisão de algumas regras da casa são estímulos
aplicáveis. Assim como a escuta ativa, observando
muito além da fala e acolhendo as diferentes
maneiras de expressão; estimulando o olhar para o
diferente e criando um espaço seguro e acolhedor
que permita a realização de perguntas e estimule a
criatividade dos pequenos; propiciando atendimento
individualizado para acolhimento e escuta e,
principalmente, permitindo que tenham tempo.
Tempo para preparação de crianças e adolescentes
acolhidos que vivenciaram diversas rupturas e,
muitas vezes, desconhecem seus desejos e vontades,
pois estão acostumados a não opinar e sempre
aceitar as decisões impostas.
---Promover o protagonismo e a autonomia infantil
significa possibilitar às crianças e adolescentes que
deixem de ser plateia e passem a atuar como sujeitos
de direitos. Existem diversas formas de estimular o
protagonismo infantil, aqui foram citadas apenas
algumas possibilidades que você pode colocar em
prática.
---A seguir, serão apresentadas algumas estratégias
que também podem auxiliar na preparação das
crianças e adolescentes para a parentalidade via
adoção.

40
5. Como manejar a
preparação para
adoção?
---Como trabalhar questões tão intensas que
precisam de um tempo para elaboração?

Falar a verdade.

As Orientações Técnicas dos serviços de


acolhimento para crianças e adolescentes,
página 52 sugerem o registro sobre a história
de vida e desenvolvimento de cada criança e
adolescente; é uma estratégia importante e,
quando aplicada, demonstra sua potência. É
extremamente importante trabalhar com
história de vida, desde que a
criança/adolescente chegue no serviço: fotos
e registros das experiências e memórias, feitas
pela própria criança/adolescente, com ajuda
do adulto. Importante ter fotos dos familiares,
e se os pais visitam as crianças, ainda que
esporadicamente, que eles possam participar
da construção de pelo menos uma página,
contando algo significativo. O livro da história
de vida é uma ferramenta que auxilia também
no processo gradativo de reintegração
familiar.

42
Construir a possibilidade de adoção
juntamente com a criança/ adolescente,
explorar suas angústias, seus medos, suas
fantasias. A aproximação precisa ser
realmente gradativa: trocar cartas, vídeos,
mensagens, até se conhecerem de fato. O
local de encontro deve ser um lugar acolhedor
que promova interação, como um parque da
Cidade. É bom evitar centro de compras como
Shopping Centers, Supermercados e afins.

Propiciar espaços onde seja possível a


criança/adolescente externalizar e elaborar os
lutos vivenciados, como atividades práticas,
leituras e rodas de conversas temáticas ou
livres.

---O que compartilhamos aqui, fez sentido para você


em sua prática? Como você conduziria o caso das
Três Marias após os conhecimentos aqui
compartilhados?

---Conte-nos através do grupo do Telegram e nos


responda como iria manejar? A intenção não é
avaliar, mas sim construirmos juntos possibilidades de
intervenção e manejo.

43
Nossos canais de
comunicação:
Clique para ser direcionado

Amanhar Adoção

@amanhar.adocao

@amanhar.adocao

amanhar.adocao@gmail.com

44
Referências

ACONCHEGO, Grupo de Apoio à convivência familiar e comunitária. Encontros sobre


Adoção: Transformando o tempo de espera em tempo de preparação. Cartilha para
pretendentes à adoção, 2016. Organização: Maria da Penha Oliveira Silva e Eliana
Carla Barcelos Kobori. Realização: Projeto Novos vínculos afetivos para crianças e
adolescentes do Aconchego com o apoio do Fundo dos Direitos da Criança e do
Adolescente - FDCA/DF, 2016/2017.

BRASIL. Lei Nº8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente.


Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm . Acesso em: Nov.
2020.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Conselho Nacional


de Assistência Social - CNAS; Conselho Nacional dos direitos da criança e do
adolescente - CONANDA; Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura - UNESCO. Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para
Crianças e Adolescentes. Brasília, 2008. Disponível em:
http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/orient
acoes-tecnicas-servicos-de-alcolhimento.pdf . Acesso em: Nov. 2020.

BRASIL. Lei nº 13.257, de 08 de Março de 2016. Marco Legal da Primeira Infância.


Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm
Acesso em: Out. 2020.

DOLTO, Françoise. Tudo é linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2018.

ERIKSON, Erik Homburger; ERIKSON, Joan Mowat. O ciclo da vida completo. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1998.

FMCSV - Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. Importância dos vínculos familiares na
primeira infância: estudo II / Organização: Comitê Científico do núcleo pela infância.
Redação: Beatriz de Oliveira Abuchaim...[et al.]. -1ª Edição. (Série Estudos do Comitê
Científico: NCPI; 2). São Paulo: FMCSV, 2016.

MORILLO, Helena Schafirovits. Percurso de um pensamento sobre o desmembramento


de grupos de irmãos: atravessamentos na adoção e produções discursivas.
Dissertação (Mestrado), Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. São Paulo,
111 f. 2019.

PEITER, Cynthia; PAIVA, Leila Dutra de.; SILVA, Marcia Regina da. Atendimento
psicanalítico na adoção. Coordenação Isabel Cristina Gomes. 1ª Edição. São Paulo:
Zagodoni, 2017.

45
PEITER, Cynthia. Vínculos e Rupturas na Adoção: do abrigo para a família adotiva.
Dissertação (Mestrado), Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007.

SILVA, Marcia Regina da. Adoção: Desafios na Construção da Filiação e da


Parentalidade. Uma Reflexão Psicanalítica. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica),
Pontifícia Universidade Católica. São Paulo, 217f. 2016.

SILVA, Carolina Lemos da. Processo de Filiação: um estudo de adoção de dois irmãos
maiores. Dissertação (Mestrado). Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Rio Grande
do Sul, 2011.

TINOCO, Valéria. O luto em instituições de abrigamento: um desafio para cuidadores


temporários. Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
São Paulo, 2007.

46

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