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Rubinstein

ARTIGO E
especial

Psicopedagogia, Psicopedagogo e a
construção de sua identidade
Edith Rubinstein

RESUMO - A identidade do psicopedagogo é dinâmica no sentido de


que ela se constrói a partir do conjunto de necessidades, crenças, teorias e
práticas. Este conjunto manifesta-se através de um discurso que representa a
abordagem psicopedagógica. A Psicopedagogia é uma praxis com diferen­tes
estilos. Chegamos ao tempo no qual se faz necessária a construção de corpus
linguístico, o qual paradoxalmente acolha os diferentes estilos/práxis, mas
que também expresse um denominador linguístico comum que contribua
para a identidade da categoria profissional.

UNITERMOS: Identidade. Psicopedagogia. Psicopedagogo. Diferentes


Estilos.

Edith Rubinstein - Mestre em Psicologia da Educação Correspondência


pela Universidade São Marcos; Peda­goga; Psico­pe­ Edith Rubinstein
dagoga, Formadora de Programa de Enriquecimento Rua Rio Azul, 309 – São Paulo, SP, Brasil – CEP: 05519-120
Instrumental pelo ICELP de Jerusalém, Terapeuta E-mail: edithrubinstein@hotmail.com
Fa­miliar pelo Instituto Familiae - SP; Coordenadora e
docente do Centro de Estudos Seminários de Psico­pe­
dagogia. Ex-presidente da ABPp nacional e membro
do conselho vitalício, São Paulo, SP, Brasil.

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Psicopedagogia, Psicopedagogo: construção de sua identidade

INTRODUÇÃO Esse breve recorte da escrita de Ana ajuda a


Primeiro, quero agradecer o convite para dar justificar minha inquietação com visões reducio-
continuidade a uma conversa que teve início nistas de algumas tendências contemporâneas
no simpósio de São Paulo no ano de 2012. Pos­­ presentes na Psicopedagogia e áreas afins que
teriormente, esta conversa continuou em Flo­­ desconsideram: a) complexidade do aprender;
rianópolis, no encontro de Psicopedagogos. b) necessidade de se apoiar em diferentes áreas
Agora em Gramado (2013), será a terceira vez do conhecimento/disciplinas para compreender,
que terei oportunidade de “animar uma conversa explicar e intervir junto ao sujeito aprendente;
sobre quem somos”. Pode parecer pueril e ima- c) os limites de uma avaliação estática fundada
turo continuar perguntando “Quem somos?”; em padrões pré-estabelecidos; d) não valoriza-
“A que viemos?”; “Para onde vamos?”; “Como ção da relação dos envolvidos com o aprender,
seguimos?”. Considero essas perguntas vitais e isto é, vínculo.
perenes no sentido de que precisam continuar, Antes de dar continuidade à minha exposi-
pois impulsionam e alimentam o perfil/estilo/ ção/reflexão, quero reiterar o convite para que
prática da Psicopedagogia Dinâmica, com a qual surjam, no aqui e agora, novos questionamentos
me identifico. As perguntas poderão ser úteis que poderão vir tanto do que será exposto como
para fortalecer o eixo central da Psicopedagogia de outras inquietações relacionadas à temática.
Escolho os seguintes temas para abrir a conversa:
enquanto área de conhecimento e da categoria
A) Identidade da Psicopedagogia e do Psicope­
profissional. Entendo que o diálogo entre estas
dagogo: diálogos possíveis com diferentes des-
duas instâncias não é simples e fácil.
crições da Psicopedagogia; B) A linguagem no
Nesta oportunidade, quero trazer um frag-
contexto psicopedagógico; C) Cientificismo e o
mento escrito pela mestra e amiga Ana Maria Ro-
científico na Psicopedagogia.
driguez Muniz, psicopedagoga argentina, com a
qual na década de 80 tive oportunidade de fazer
A) Identidade da Psicopedagogia e do Psico-
a distinção entre duas abordagens: abordagem
pedagogo: diálogos possíveis com diferentes
reeducativa, que se preocupava com o “fazer
descrições da Psicopedagogia.
e a técnica”, e abordagem da Psicopedagogia
Muitas teorias psicológicas, a partir de uma
Dinâmica, “preocupada” com aspectos relacio-
tradição científica iluminista, moderna ainda
nais, isto é, a subjetividade, além da cognição.
compreendem o conceito de identidade a partir
Foi através da Ana Maria, nos grupos de estudo
da concepção que o desenvolvimento humano
para formação continuada, que uma geração de
se organiza e é organizado ao redor de uma
profissionais de São Paulo teve conhecimento e
iden­­tidade que progride na medida em que o
acesso à proposta pioneira e inovadora de Sara
indivíduo avança numa certa direção, em geral
Paín, psicopedagoga argentina. Na apresentação
única1. Nesse mesmo artigo, Moscheta, citando
do livro por mim organizado, em 1999, Ana assim
Hall (2006), lembra que o sujeito pós-moderno
definiu a Psicopedagogia como disciplina:
é aquele que não tem uma identidade essencial
“A Psicopedagogia, como disciplina que ou permanente, pois participa de diferentes sis-
estuda e trabalha com as aprendiza- temas culturais, assumindo em cada um deles
gens humanas, oferece um campo de contornos identitários diversos. A identidade é o
in­tervenção, cujos limites são amplos. resultado das experiências vividas pelo sujeito,
O próprio processo humano de apren- sendo assim, a identidade é: histórica, transitória
dizagem é um fenômeno complexo, que e contraditória.
envolve múltiplos fatores e desafia qual- Na pós-modernidade, a partir da contribuição
quer tentativa de explicação a partir de das áreas do conhecimento como a Psicanálise;
um discurso científico único.” (grifo meu) Sociologia; Filosofia começa-se a questionar a

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noção de sujeito/indivíduo tal como compreendi- em Psicanálise; a escrita do mestrado; contato com
da no Iluminismo, pois se compreende o caráter a proposta de Feuerstein; formação na Terapia
relacional da identidade. Como afirma Melucci, Familiar de base sistêmica e construcio­nista
2004, p. 15:2 social; mais recentemente, participação no grupo
“O eu” não está mais solidamente fixo em de estudos em Análise Pragmática do Discurso,
uma identificação estável: joga, oscila e APD, com as terapeutas Neyde Araujo e Naira
se multiplica: Há jogo é a expressão usa- Mor­gado3, cuja característica principal é com-
da na linguagem mecânica para indicar preender que a linguagem não é representa­cional,
que a engrenagem não está rigidamen- mas pragmática no sentido de como é usada sin­
te presa em seu encaixe. Diante desta gularmente.
folga o eu pode sentir medo e perder-se. Através dessas visitas territoriais fui cons-
Ou, então aprender a jogar. truindo um dialeto para meu estilo de agência
psi­copedagógica. Não é possível saber quem
A partir destas considerações releio meu ca­
inicia o dialeto, pois o mesmo se constrói numa
minho pessoal pela Psicopedagogia. Entro em
relação dialógica: criatura e criador entendidos
contato com a minha história de vida pessoal
como diferentes autores, disciplinas e profissio-
e profissional, as quais se entrelaçam. Tive, e
nais que contribuem para o surgimento de um
con­tinuo tendo, oportunidades para fazer inter-
“dicionário psicopedagógico aberto”.
locuções com diferentes autores e formadores.
Também leio e releio o caminhar da Psicope­
Nesta caminhada pude traduzir para o meu esti-
dagogia brasileira no artigo Rumos da Psicope­
lo as contribuições teóricas que considero úteis,
dagogia Brasileira4, publicado na revista da ABPp.
continuo fazendo leituras polifônicas, escuto Nesse artigo aponta-se o surgimento da Psicope-
as múltiplas vozes que me habitam. Apesar de dagogia inicialmente através da prática clínica
traduzir para o meu dialeto/estilo, ainda percebo para atender àqueles que por diferentes razões
que continuo com mais perguntas, nem sempre não respondiam à demanda da escolarização. Mi-
respondidas, pois o “jogo na e da engrenagem” nha crença atual é que a Psicopedagogia também
está presente. Nessa polifonia não há espaço pode e deve intervir dentro dos muros da Escola.
para concepções totalmente fechadas e inques- Justifico essa posição para dar conta de uma
tionáveis. Este jogo, se por um lado angustia, modalidade de escolarização: “escola para todos
por outro me mobiliza a continuar questionando e cada um”. Dito de outra forma: o psicopedagogo
e por isso mesmo continuar aprendendo e enri- está preparado como o especialista em aprendi-
quecendo a disciplina Psicopedagogia. zagem para acompanhar a equipe pedagógica
Na minha trajetória pessoal, inicialmente a na adequação de programas, projetos, bem como
prá­tica esteve em evidência, porém logo senti atender às questões relacionais envolvidas no
necessidade da compreensão teórica e do trabalho contexto escolar. O “professor tem a chave” na
pessoal (análise) para sustentar minha agência sala de aula, “o psicopedagogo tem a chave” para
psicopedagógica. Suponho que a ânsia por do­­ que a instituição Escola possa lidar melhor com
minar ferramentas é uma demanda de quem a complexidade das questões envolvidas na rede
inicia uma nova profissão, cuja origem acontece composta pelos agentes envolvidos dentro e fora
em cursos de especialização latu sensu. Eu vinha dos muros da instituição.
da prática institucional na coordenação como Convivemos com divergências e questiona­
orien­tadora pedagógica. mentos nas definições e concepções sobre nossas
Minha atual formação, ainda em andamento, práxis, mas, como disse anteriormente na ementa,
é fruto de uma semeadura originária do conjunto é preciso:
de experiências: análise pessoal; grupos de es- “a construção de um corpus linguístico
tudos; supervisões com psicanalistas; formação que, pa­radoxalmente, acolha os diferentes

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estilos/práxis, mas que também expresse com diferentes formas discursivas com maior
um denominador linguístico comum que abertura. No texto Construcionismo social, um
contribua para a identidade da categoria convite ao diálogo, (Gergen & Gergen, 2004)
profissional.” seus autores fazem distinção entre Verdade
Sublinho a necessidade de distinguir as ins- (única e indiscutível) e verdade (versão). Esta
tâncias: área de conhecimento, isto é a disciplina distinção pode, em parte, contribuir para pensar
Psicopedagogia, do profissional Psicopedagogo a ética como mediadora.
que transita na área a partir da singularidade/ “Os cientistas geralmente argumentam
estilo/dialeto, efeito de sua identidade dinâmica. que, através de seus métodos, eles con-
Para analisar e compreender a complexidade seguem chegar cada vez mais perto do
da aprendizagem humana, faz-se necessária a mundo como realmente ele é....
utilização de múltiplas lentes, isto, é disciplinas. Nem todas as ideias construcionistas desva­
Não há como negar a existência e a presença lo­rizam as iniciativas científicas, mas, certa-
das instâncias/categorias que nos permitem mente, de­safiam a ideia de que a ciência revela
transitar com e entre diferentes disciplinas e a Ver­dade”. Gergen & Gergen (2004), grifo meu
áreas de conhecimento. As instâncias: multi- Estes autores construcionistas sociais refe-
disciplinaridade; interdisciplinaridade e trans- rem-se às diferentes tradições de comunidades
disciplinaridade favorecem o diálogo entre as linguísticas (diferentes abordagens), as quais
dis­­ciplinas promovendo aproximações para a vão sendo criadas a partir da construção de cren-
compreensão “mesmo que provisórias” das vi- ças e valores e de identificações com diferentes
cissitudes e complexidade do ser humano para compreensões teóricas. A ética neste contexto é
conhecer e aprender. a distinção entre Verdade e verdade. Relaciono
Embora o trânsito pelas diferentes disciplinas esta distinção com o dito popular espanhol do
seja enriquecedor e útil, corre-se o risco de des- poeta Campomar: “Nada es verdad, nada es
viar o olhar do “viajante visitante”. Dito de outras mentira, todo es, segun el color del cristal con
formas: Como dialogar respeitando as escolhas que se mira”.
pessoais, sem que as mesmas interfiram no que A Linguagem é um mediador universal, ela
chamarei de “Integridade da Psicopedagogia”. constrói mundos. Ela é constitutiva, pois somos
A Associação Brasileira de Psicopedagogia vem constituídos pela linguagem e na linguagem.
nestes mais de 35 anos de existência se preocu- Como afirma Grandesso, 2014
pando com a integridade da categoria profis-
“Como seres humanos, estamos sempre
sional num espaço institucional que acolhe as
envolvidos em gerar sentido para nossas
diferentes praxis.
vidas, e fazemos isso interpretando a nós
Urge trabalhar para evitar quebras/cortes
mesmos e ao mundo a nossa volta, dentro
dentro de nosso território profissional devido aos
de um sistema de linguagem e dos cam-
desafios impostos. Não são as diferentes escolhas
pos de sentido em que vivemos.”
teóricas, mas, o radicalismo de “Verdade” única.
Este sim interfere negativamente na integrida-
de da categoria profissional. Como enfrentá-lo? B) A linguagem e a construção da identidade
Como dialogar com a pluralidade de verdades? profissional.
Seria o diálogo sempre possível? Não há respos- Como mencionei anteriormente, a lingua-
tas prontas. Acredito que a ética pode ser uma gem constrói mundos. A construção do termo
forma de limite que viabilize diferentes práxis, PSICOPEDAGOGIA, que nomeia o campo de
ela pode ser a “medidora de conflito”. ação de uma categoria profissional, não surgiu
As ideias advindas do Construcionismo Social repenti­namente. Historicamente, outras denomi-
têm me ajudado a identificar, nomear e dialogar nações foram sendo utilizadas como: Pedagogia

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Tera­pêutica; Reeducação; Reeducação Psico­ Questiono o uso dos termos híbridos neu­
pedagógica, até que finalmente os psicopedago­ ro-aprendizagem; neuro-psicopedagogo; neu­
gos admitiram e escolheram uma forma que ro-pedagogo; como expressão das escolhas
expressasse a praxis e não apenas a prática. teóricas do profissional cujo objeto de estudo é a
O grupo que fundou a Associação “gastou horas aprendizagem humana. A linguagem não é ino­
a fio” na escolha dos termos Psicopedagogia e cente. Estas denominações ao privilegiar foco
Psicopedagogo que envolveu discussões funda­das nos aspectos orgânicos, mais especificamente no
nas nossas experiências pessoais, pois vínha- cérebro, deixam de lado a visão do sujeito como um
mos de formações diferentes. Mas, apesar das todo que se manifesta através da mente e de sua
diferenças, havia um querer dialogar “com” e singularidade. Se a linguagem não é inocente,
“entre” diferenças para fundar inicialmente a qual a utilidade e o sentido da inclusão do prefi-
Asso­ciação Estadual de Psicopedagogos de São xo neuro? Como conversam entre si os conceitos
Paulo e posteriormente a Associação Brasileira de mente, cérebro, sujeito, subjetividade nesta
de Psicopedagogia. Nossas conversas giravam concepção?
em torno do “Quem somos?”. Percebíamos que Uma contribuição importante dentro da valo­
nossas visitas e o trânsito pelas outras áreas do rização da linguagem no contexto psicopedagó­
conhecimento, como a Psicanálise; Sociologia, gico é o conceito do pragmatismo linguístico in­­
Psi­colinguística; Neurologia; Psicomotricidade, troduzido por Wittgenstein, na década de 40, que
entre outras, eram úteis para compreender a foi sendo assimilada na Filosofia. Como apontam
complexidade envolvida no aprender. as terapeutas Araujo e Morgado3:
O enriquecimento advindo da visita a outros
“As teorias pragmáticas da linguagem
territórios demandava tradução para o idio­
têm um extenso e longo percurso na his-
ma psicopedagógico no território específico da
tória da filosofia americana. Aqui segui-
Psi­­­­co­pedagogia. Estudar e compreender o ser
remos a tradição iniciada por Wittgenstein
apren­­dente a partir de diferentes áreas de conhe­
e Austin e desenvolvida pelos filósofos
cimento não nos faziam declinar de nosso objeto
contemporâneos Donald Davdson e Ri-
de estudo, a aprendizagem humana. Não nos
chard Rorty. O pragmatismo linguístico
tor­návamos psicanalistas, sociólogos, linguis-
afirma que a linguagem é um conjunto
tas, psicomotricistas. A Transdisciplinaridade
de habilidades naturais formadas por
serviu para enriquecimento da práxis a partir da
sons e marcas articulados com sentido,
lei­tura polifônica dos conteúdos das diferentes
intenção e força performativa (...) Com
dis­ciplinas.
a linguagem somos capazes de criar ou
Passados tantos anos da fundação da Asso-
ciação Brasileira de Psicopedagogia, que surgiu inventar coisas e eventos novos e impre-
inicialmente como Associação Estadual de Psico- visíveis, inclusive de reinventar-nos.”
pedagogos de São Paulo, podemos afirmar que Como essa abordagem influi na identidade
essa disciplina, e área de trabalho, distingue-se profissional e disciplinar? Se a linguagem faz
como especializada em Aprendizagem Huma­ mundo pela performatividade, há que se pergun-
na em diferentes contextos. Academicamente, tar como está sendo construída essa identidade?
a formação profissional acontece em curso de Atualmente, a comunidade científica e o públi-
pós-graduação latu sensu, cuja finalidade é co de modo geral estão familiarizados com termos
formar especialistas. Dentro da categoria de es- Psicopedagogia e Psicopedagogo. A identidade
pecialização latu sensu, o desafio é dar continui- do psicopedagogo é dinâmica no sentido de que
dade à formação pois, o curso é “ pontapé inicial ela se constrói a partir do conjunto de necessi-
do jogo”, é preciso muita experiência, técnica e dades, crenças, compreensões teóricas e práti-
conhecimento para ser um “bom jogador”. cas. Esse conjunto complexo produz diferentes

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discursos que representam diferentes aborda- relações do mesmo com o seu entorno. As mu-
gens psicopedagógicas. Este é um fato incon- danças discursivas decorrem de novas formas de
testável e saudável. lidar com o aprender, como também pelo con-
Nos cursos especialização e nas supervisões, a teúdo das narrativas usadas para se descrever
maioria dos alunos em formação formula duas o modo como o aprendente se relaciona com o
perguntas recorrentes: 1) O que nos diferencia conhecimento e o saber.
de professores particulares? 2) Como lidar com Sara Paín foi quem primeiro nos apontou a
a expectativa de resultados pedagógicos ime- necessidade de escutar o discurso dos adultos
diatos? Estas perguntas me convidam a fazer significativos para a descrição das hipóteses
outra: qual a diferença entre um Psicopedagogo a respeito da origem das dificuldades. Sara
e de um Neuropsicopedagogo? Entre Educação e também nos convida a olhar o todo através das
Neuroeducação? Pedagogia e Neuropedagogia? quatro estruturas: corpo, organismo, estrutura
A que vieram essas denominações? simbólica/desejo e a cognição/inteligência. Po-
Continuando com a metáfora espacial: visi- deríamos considerar essa concepção como per-
tam-se territórios estrangeiros, mas, é necessário tinente ao corpus linguístico comum à categoria
voltar para o TERRITÓRIO DA PSICOPEDAGO- profissional? Quais seriam as consequências?
GIA. Este possui um idioma próprio, o qual se Na prática significa considerar a subjetividade
manifesta através de diferentes dialetos/estilos/ SEMPRE presente.
praxis que vão surgindo a partir das diferentes A construção de uma linguagem comum que
defina e delimite o campo profissional do psi-
comunidades linguísticas que adotam determi-
copedagogo é complexa não somente devido
nadas tradições teóricas que por sua vez são atra-
às diferentes concepções de práxis, mas, sobre­
vessadas pelas contingências culturais; acasos;
tudo, devido também à ampliação do campo
paradoxos, os quais são elementos enlaçados às
profissional. Hoje, psicopedagogos estão inse-
biografias e identidades pessoais.
ridos em diferentes setores que não lhe eram
Entendo que o eixo central da Psicopedago-
familiares inicialmente, tais como empresas;
gia é a “aprendizagem humana com suas vicis-
hospitais; abrigos, entre outros. Não há como se
situdes”. Este eixo é o objeto de estudo, pesquisa
pensar numa identidade fixa e fechada, pois são
e fundamentalmente é o “órgão de sobrevivência
as novas demandas da sociedade que desen-
humana”5 e também seu destino, pois “nascemos cadeiam novas formas discursivas para o fazer
para aprender ” (Trocmé, 2006). Saber e con- psicopedagógico. A mobilidade identitária, além
siderar essas características da aprendizagem de demandar formação continuada, requer es-
faz toda a diferença na ação pedagógica e psi- pecializações construídas em ação para atender
copedagógica. Mas, paradoxalmente, aprender novas demandas.
não é fácil nem natural, consequentemente as Aceitar a existência de estilos/práxis/dialetos
vicissitudes do aprender são condições perti- diferentes que descrevem um objeto comum,
nentes6. Isso não impede admitir a existência isto é, o ser que aprende, implica na construção
e a presença de dificuldades de aprendizagem de relações que envolvem ideais desafiadores
que demandam cuidados específicos. como: acolhimento do diferente; disponibilidade
Vale retomar os termos Reeducação e Psicope- para diálogo; curiosidade para conhecer diferen-
dagogia Dinâmica. Na Reeducação o foco/lente é tes pontos de vista; olhar para o diferente sem
a prática e a exercitação para educar novamente e preconceitos. Não é suficiente a disponibilidade
resolver a questão com a mudança de comporta- intelectual, cognitiva. A subjetividade está sem-
mento. Quando a lente usada para compreensão pre presente na disponibilidade para negociar,
do conflito/problema é Psicopedagogia Dinâmica, confirmar, “calibrar o sentido” das diferenças nas
a mudança é uma consequência de deslocamen- descrições, nomeações e concepções dos termos
tos não apenas do sujeito, mas das relações e nas usados.

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É útil lembrar o percurso da Psicologia e da para as “doenças da aprendizagem”. Os códigos


Psi­canálise, as quais se expressam através de se fundamentam nas pesquisas científicas quan-
inúmeras linhas teóricas e de múltiplas formas titativas feitas pela categoria profissional da área
de praticá-las. Será efeito da maturidade para da saúde, mais especificamente de determina-
lidar com a diversidade? Volto à pergunta: Qual a das comunidades linguísticas. São importantes
necessidade da adoção de termos que expressam e podem complementar análises feitas pelos
outras disciplinas? Hoje, após anos de discussão especialistas na área da aprendizagem. Como
a respeito de quem somos, o nome Psicopeda­ venho apontando, as várias lentes enquanto
gogia, embora composto de Psi e Pedagogia, disciplinas colaboram para a compreensão e
“não é fruto híbrido” resultante de uma mistura intervenção psicopedagógica da dificuldade de
das duas disciplinas, ela é OUTRA ÁREA DE aprendizagem.
CONHECIMENTO. Dialogar com comunidades linguísticas iden­
Tenho esperança de que a nossa Psicopeda- tificadas com diagnósticos fechados e Verdade
gogia com suas diferentes práxis/estilos/dialetos cientificamente incontestável, sustentadas pelos
consiga também lidar com a diversidade sem ne- códigos internacionais é desafiador. As dificulda-
cessidade de declinar de seu nome/identidade, des não decorrem das diferenças entre verdades,
construído ao longo do tempo e espaço. Enfatizo mas pela crença de que as verdades determina-
que a linguagem não é inocente. Cada ser huma- das por algumas comunidades linguís­ticas são:
no tem um nome próprio resultado das escolhas melhores, mais exatas e por isso mesmo creden-
parentais, as quais buscam um nome que faça ciadas para identificar a origem dos Transtornos
sentido, também é o caso da Psicopedagogia. de Aprendizagem.
Vale lembrar aqui a contribuição proposta por
C) Cientificismo e o científico na Psicope- Sara Pain5, que inaugurou um modelo de análise
dagogia. para compreensão do aprender. O organismo
Nos cursos de especialização em Psicope- sempre está presente no conjunto das quatro
dagogia, mestrados e doutorados em Psicologia estruturas envolvidas na aprendizagem: orga-
e Educação docentes e alunos através de suas nismo; corpo; estrutura simbólica e inteligência.
monografias, dissertações e teses vêm discu- Não seria míope a visão unicamente focada na
tindo, problematizando e pesquisando temas organicista na análise dos ditos Transtornos de
relacionados às práticas psicopedagógicas em Aprendizagem? O sujeito da aprendizagem é
diferentes contextos. Alguns destes trabalhos têm apenas o resultado de seu organismo? Onde está
sido publicados e são úteis para a divulgação de a singularidade? Onde está o sujeito?
novos campos de ação psicopedagógica. As pro- Minha próxima questão relaciona-se com a
duções de escritas dentro de padrões acadêmicos prática: Por que alguns psicopedagogos, inspira-
contribuem para aproximação da Psicopedago- dos pelas descrições dos códigos internacionais
gia com o científico, pois nesse contexto parte de de doenças, conduzem a intervenção focando
ques­tionamentos e fundamentação teórica para primordialmente nos aspectos funcionais, como foi
justificar o objeto de pesquisa. Estes trabalhos na Reeducação Psicopedagógica? Ora, se para
têm também contribuído para a implementação aprender são necessárias as quatro estruturas, é
e ampliação da ação psicopedagógica. quase impossível pensar em mudanças funcio-
Quando as vicissitudes do aprender atingem nais desconsiderando as relacionais. Há lugar
maior intensidade, costumam ser denominadas para o “encontro terapêutico”?
de transtornos da aprendizagem, sendo descritas Quando me refiro ao “encontro terapêutico”,
em códigos internacionais de doenças, organi- faço polifonia com um texto que chamo hoje de
zados por médicos. Esses códigos/dicionários “fundador da psicopedagogia dinâmica” que li
identificam características gerais e específicas na década de 80, quando iniciava meu trabalho

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clínico ainda voltado para a reeducação psico- adequada, ela é importante enquanto etapa que
pedagógica. Minha preocupação naquela época, expressa e orienta a direção da intervenção. Os
quando iniciei meu trabalho, era “o domínio de resultados apontados na avalição são provisó-
métodos e técnicas que melhor contribuíssem rios e específicos, são como uma “foto datada”.
para as mudanças específicas”. O texto em Será a partir da continuidade da intervenção que
questão era a transcrição de uma conferência serão melhor compreendidos os estilos de apren-
do Colóquio: “A Dislexia em questão”, realizado dizagem e as questões com a aprendizagem.
em 1970, em Paris, da autoria de Chassagny, O fracasso escolar e o desajuste para lidar com
da equipe médico-psicopedagógica. Ele, que o “aprender a viver” inevitavelmente causam
inovou ao cunhar a expressão “Pedagogia Re- so­frimento e desgaste para o sistema de vida
lacional da Linguagem”, afirmava: humano como um todo, pois atingem: família,
“Não temos a intenção de transformar escola, aprendente, sociedade.
a reeducação em psicoterapia analítica. Alguns setores descrevem e qualificam como
Mas não vejo problema no fato de que soluções “mágicas” as intervenções medicamen­
nossa reeducação seja uma psicoterapia. tosas nas questões relacionadas à atenção
No centro de uma relação, de um encon- e inquietação corporal. Volto a sublinhar que
tro com uma criança ao redor do objeto se­ria insensatez desconsiderar o organismo e
linguagem, encontramos a linguagem, os be­nefícios das substâncias que, em algumas
a técnica do reeducador e também a situações, podem contribuir para o funciona-
relação terapêutica, porque, salvo que mento mais harmônico do ser humano. Porém, é
se esteja diante de um muro ou de um fun­damental critérios para a escolha das inter-
gravador, toda relação dual de pessoa a venções que se balizam por solução “certeira e
pessoa implica numa relação afetiva”. mágica”. Onde estão as equipes multidiscipli­
A preocupação com a priorização de mudanças nares disponíveis ao diálogo aberto entre as di­­
funcionais não seria uma retomada histórica da ferentes disciplinas com profissionais que por
Reeducação, quando o profissional que se de­ elas transitam? Como construir comunidades
dicava à reabilitação o fazia sob orientação do lin­guísticas abertas que admitam diferentes
médico? ca­minhos para a dissolução dos problemas de
É imprescindível considerar a presença da or- aprendizagem e suas diferentes causas?
ganicidade na aprendizagem, porém como parte A dificuldade/impossibilidade para dialogar
do todo e não isoladamente. Alguns profissio- com comunidades linguísticas muito diferentes
nais de comunidades linguísticas identificados me remete ao poder do discurso social. Na Idade
com a valorização de aspectos orgânicos e com Média, o discurso era: o destino depende do di-
as descrições dos códigos internacionais de vino. O Iluminismo inaugura outra explicação
doenças validam, qualificam e valorizam práti- para o desafio existencial: o Homem através da
cas fundadas unicamente em pesquisas científi- inteligência e do conhecimento científico tem
cas, especificamente na quantitativa. Na prática poder para controlar sua vida. O pensamento
o discurso se manifesta através de ações como: mo­derno, cartesiano introduz as bases para a su­
diagnósticos fechados; ações cientificamente pervalorização do científico.
com­provadas e resultados previsíveis. Este ainda está presente no discurso idealista
Identificada com abordagem dinâmica na da Educação que tem como objetivo desenvolver
Psicopedagogia e do construcionismo social, en- as competências do bom professor e as compe-
tendo que o termo “diagnóstico psicopedagógi- tências do bom aluno. Estes discursos valorizam
co” expressa a visão essencialista, fechada. Há a técnica e a metodologia como dispositivos fun-
profissionais da área da Psicopedagogia que se damentais para atingir os objetivos. Mas, apesar
preocupam em “fechar diagnósticos”. Considero da ênfase na capacidade de planejamento, nem
a terminologia Avaliação Psicopedagógica mais sempre conseguem mobilizar seus alunos. Por

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outro lado, há docentes que surpreendem e naud: “ A reflexão sobre a própria prática é em si
se destacam pelos resultados alcançados com mesma um motor essencial de inovação”. Mas,
“alunos-problema”7, pois se balizam por práti- avalia Pereira: quando Perrenaud, em seus estu-
cas diferenciadas das tradicionais. Na minha dos avalia o bom professor como aquele que em
leitura, eles pertencem a uma “comunidade situações adversas: analisa o que sentiu e fez,
linguística” identificada com a visão da Psico- pensou, o faz não para julgar, mas para analisar
pedagogia dinâmica: a sua própria prática identificando aspectos re-
“Tendem a lutar contra o fracasso escolar lacionais que poderiam ser melhor conduzidos7.
de seus alunos, a praticar metodologias Estamos familiarizados com o conceito de
mais ativas e criativas e a respeitar seus clínico no sentido de debruçar-se, inclinar-se
alunos enquanto sujeitos particulares, diante do paciente. Cifali, 1991, apud Pereira7,
detentores de uma singularidade a ser ex- oferece outra conotação para o conceito de clínico
plorada em sala de aula, por trazerem ne- para a prática educacional, o qual visa trazer uma
cessidades muitas vezes contrárias àquelas parte dos conhecimentos teóricos como respostas
definidas previamente pelos planos de às situações vividas, o que obriga o professor a re-
curso e conteúdos programáticos”7. fletir sobre sua ação, compreender os fenômenos
A educação é uma profissão impossível como e a rever sua prática. Mas, é Perrenaud quem, ao
afirma Freud, porém o impossível “não é sinônimo reler Cifali, propõe:
de irrealizável, mas indica que algo não pode ser “O clínico é o que perante uma situação
integralmente alcançado”8. Isto me faz relacionar complexa, possui as regras e dispõe de
a transmissão advinda da educação como algo meios teóricos e práticos para: a) avaliar
incontrolável, marcado pela ignorância, isto é, a situação; b) pensar numa intervenção
não se sabe como cada uma no encontro pedagó- eficaz; c) pô-la em prática; d) avaliar sua
gico significa o conteúdo transmitido a partir de eficácia aparente; e) corrigir a pontaria.
suas próprias afetações. O aluno que responde Ensinar não consiste em aplicar cegamen­
ao apelo de seu mestre, o faz por consideração te uma teoria nem conformar-se com um
ao mesmo, isto é, por amor ao outro. modelo. É, antes de mais nada, resolver
A aquisição do conhecimento depende estrei­ problemas, tomar decisões, agir em situa-
tamente da relação do aluno com o professor, ções de incerteza e, muitas vezes, de emer­
ou com o psicopedagogo. Qual é o resultado de gência. Sem para tanto afundar no prag-
uma intervenção psicopedagógica que valoriza matismo absoluto e em ações pontuais”
primordialmente habilidade e funções desconsi- Termino minha reflexão a respeito do cien­
derando “necessidades muitas vezes contrárias tí­fico e do cientificismo com a contribuição de
àquelas definidas previamente pelos planos de Perrenaud, que coloca o educador/psicopedagogo/
curso e conteúdos programáticos” ou pelos cami- te­rapeuta na posição de intelectual que sensivel-
nhos traçados a partir de diagnósticos fechados? mente e subjetivamente pode lidar com imprevis-
Saindo da posição positivista e idealista da tos, desequilíbrios, incertezas, como dis­positivos
Educação e da Psicopedagogia, Pereira no artigo: pertinentes e presentes no ato pedagógico e no
“O relacional e seu avesso na ação do bom pro- encontro psicopedagógico.
fessor”7 apresenta reflexões de autores (Shön, Esta ação não se distancia do pensamento
Cifali, Perrenaud), que construíram alternativas científico na medida em que a teoria e prática
para analisar a ação pedagógica a partir de si- estão presentes, bem como a avaliação a poste-
tuações problemáticas nas quais se apresentam riori que permite reformulação criteriosa. O que
conflitos, instabilidades, incertezas. Estas são en­ muda neste modelo? É a inclusão da relação entre
tendidas como constitutivas, isto é, pertinentes. os atores. Não é um protocolo enquanto script
Isto não significa aceitação tácita das mesmas. pré-determinado que conduz a cena na qual os
Demanda reflexão como prática, afirma Perre- atores e autores contracenam.

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Psicopedagogia, Psicopedagogo: construção de sua identidade

SUMMARY
Psychopedagogy, Psychopedagogue and the construction of its identity

The psychopedagogue’s identity is dynamic in the sense that it is built


from a set of necessities, beliefs, theories and practices. This set is ex­
pressed through a discurse who represent the psychopedagogic approach.
Psychopedagogy is a “praxis” with many styles. This is the time when it
is necessary the construction of a linguistic “corpus” which paradoxically
embraces diferent styles/praxis, but also expresses a common linguistic
denominator which contributes to the identity of the psychopedagogic
professional.

KEYWORDS: Identity. Psychopedagogy. Psychopedagogue. Different


Styles.

REFERÊNCIAS mos da Psicopedagogia Brasileira. Rev Psico­


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4. Rubinstein E, Castanho MI, Noffs NA. Ru- impossível. São Paulo: Scipione; 1992.

Trabalho realizado no Centro de Estudos Seminários Artigo recebido: 11/9/2017


de Psicopedagogia, São Paulo, SP, Brasil. Aprovado: 21/9/2017

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