Você está na página 1de 8

Revista Saúde e Desenvolvimento Humano - ISSN 2317-8582

http://revistas.unilasalle.edu.br/index.php/saude_desenvolvimento
Canoas, v. 5, n. 2, 2017

Artigo de Revisão

Trauma na infância e transtornos da personalidade na vida adulta: relações e diagnósticos


Trauma in childhood and personality disorders in adulthood: relations and diagnostics

http://dx.doi.org/10.18316/sdh.v5i1.3247

Carol Rebeschini1* of developing new avaliation instruments, as well


as interventions in childhood, aiming to prevent the
development of possible disorders in adulthood.
RESUMO Keywords: Personality Disorders; Personality;
O presente estudo teve como objetivo realizar uma Trauma in Childhood; Maltreatment.
revisão assistemática da literatura sobre Transtor-
nos de Personalidade, verificando e discutindo
associações a vivências de traumas na infância.
Observou-se a necessidade de mais pesquisas a INTRODUÇAO
respeito de todos os Transtornos da Personalida-
Sabe-se atualmente que evidências de expo-
de, principalmente no que se refere à etiologia e
sição à traumas na infância e adolescência, como
epidemiologia destes. Além disso, aponta-se para
abuso físico, sexual, emocional e negligência, são
a importância do desenvolvimento de novos ins-
fatores de risco que podem explicar o desenvolvi-
trumentos de avaliação, assim como intervenções
mento de Transtornos da Personalidade, principal-
ainda na infância, com o objetivo de prevenir o de-
mente o Transtorno de Personalidade Borderline.
senvolvimento de possíveis transtornos na adul-
Além disso, pode-se dizer que os modelos de esti-
tez.
lo parental também são fatores importantes para a
Palavras-chave: Transtornos de Personalidade; formação das percepções de mundo e sujeito, po-
Personalidade; Trauma na Infância; Maus-tratos. dendo ser um fator agravante ou atenuante para
1
transtornos clínicos ou de personalidade .

ABSTRACT A partir de 1890, muitos pesquisadores vol-


taram-se para o estudo das modificações cere-
The present study aimed to perform a literature non
brais ocorridas ao longo da vida dos indivíduos.
systematic review about Personality Disorders, ve-
Nesta mesma época, os resultados de análises
rifying and discussing associations to traumatic ex-
apontaram para evidências de que a vivência de
periences in childhood. The necessity of more re-
um evento afetivo e emocionalmente carregado
search about all Personality Disorders, especially
de muita excitabilidade poderia ser capaz de dei-
regarding their etiology and epidemiology was ob-
xar marcas importantes no cérebro do indivíduo.
served. Furthermore, we indicate the importance
Após algumas décadas, concluiu-se que estes
1
mesmos eventos podem causar uma hipertrofia
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
da glândula adrenal, ulceração gastrointestinal e
Sul, Porto Alegre, Brasil.
involução timicolinfática, resposta física que mais
*Endereço de correspondência: Avenida Getúlio
Vargas, 1644, sala 611 - Menino Deus, Porto Alegre,
tarde foi chamada de estresse. Assim, o indiví-
RS. duo que passa por um evento com potencial es-
E-mail: carol.rebeschini@gmail.com
tressor acentuado do ponto de vista emocional,
Submetido em: 24/05/2016
precisa desenvolver um processo de adaptação
emergencial para preservar-se e manter o equilí-
Aceito em: 09/04/2017
68

brio necessário para a sua própria sobrevivência. Atualmente, estima-se que cerca de 60 a
Desta forma, o trauma psíquico representaria uma 90% dos indivíduos acabam por ser expostos a
dificuldade do indivíduo na integração da vivência uma situação potencialmente traumática ao longo
estressora, ameaçando a vida e sua integridade da vida, porém, apesar de alguns autores consi-
2
física e psíquica . derarem o Transtorno de Estresse Pós-Traumáti-
co como o quarto transtorno mental mais comum,
A partir do estudo das “neuroses de guerra”,
apenas de 8 a 9% da população acaba por de-
no início do século passado, o trauma psíquico
senvolvê-lo. O TEPT ocorre quando a situação
real começou a tomar maior importância científi-
causa tanto impacto para a pessoa que acaba por
ca e social. Nesta época, foram descobertas evi-
influenciar no processamento cognitivo do próprio
dências de que situações traumáticas poderiam
3 evento. A partir disso, o indivíduo passa a ava-
causar transtornos mentais posteriores . Desta
liar de forma extremamente negativa o trauma e
forma, quando exposto a uma vivência traumáti-
suas consequências. Nestes casos, a memória do
ca, é comum que o sujeito armazene memórias
evento traumático também sofre uma má elabora-
detalhadas (cognitivas e motoras) deste evento,
ção e integração, o que acarreta em uma forte as-
com grande intensidade emocional associada. Es-
sociação do evento a outras memórias. Por isso,
tas memórias se tornam tão vívidas pois o sujeito
sabe-se que a função cognitiva mais prejudicada
aciona estruturas corticais e subcorticais, parean-
no TEPT é a memória, seguida pela atenção e
do suas memórias com os estímulos sensoriais 5
outras funções executivas . Porém, apesar da im-
vividos no momento do trauma. Assim, também
portância do tema para o estudo, esta revisão não
é comum que o indivíduo crie falsas memórias
possuí o objetivo de focar no fenômeno do TEPT,
a respeito do evento, uma vez que o mesmo se
e sim na temática do trauma como um todo.
torna vulnerável a fazer associações e generaliza-
ções muitas vezes incoerentes, relacionando ou- Uma pesquisa realizada por Southwi-
tros fatores que não dizem respeito ao evento em ck, Yehuda e Giller (7), avaliou traços de Transtor-
si. Quando este tipo de situação se estabelece, o nos de Personalidade em 34 pacientes veteranos
sujeito fica predisposto a reviver o trauma diversas de guerra com sintomas pós-traumáticos. Neste
vezes, podendo chegar a desenvolver o Transtor- estudo, concluiu-se que existe uma alta incidência
4
no de Estresse Pós-Traumático (TEPT) . de Transtornos da Personalidade nesta amostra
de pacientes vítimas de trauma, sendo os Trans-
A partir do estudo da neurobiologia do TEPT,
tornos da Personalidade mais presentes o Border-
pôde-se concluir que, com a vivência de eventos
line, o Obsessivo-Compulsivo, o Esquiva e o Para-
estressores, o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal é
nóide. A partir disso, é possível formar um paralelo
ativado e com isso ocorre a liberação de diversos
quanto a influência de eventos estressantes na
hormônios, dentre eles o cortisol. Assim, com este
vida de pacientes que desenvolveram caracterís-
transtorno, ocorre uma hipersensibilidade do eixo
ticas de EIXO II.
HHA, o que acarreta uma diminuição na produção
de cortisol. Além disso, com a ativação do sistema Outro conceito também importante para
nervoso simpático, hormônios como adrenalina e discussão e estudo do trauma e da formação da
noradrenalina também têm sua produção aumen- personalidade é o de resiliência. Este conceito,
5
tada . emprestado da física, refere-se à capacidade do
material de retornar ao seu estado original após
Além disso, quando o indivíduo vivencia si-
ter sofrido uma deformação. Porém, quando tra-
tuações traumáticas, é comum que características
zido para o âmbito da psicologia, o conceito re-
como culpa, dissociação, alterações na personali-
fere-se ao potencial do sujeito para a adaptação
dade, desregulação emocional também se mani-
ou para a recuperação frente a eventos estressan-
festem. Assim, o sujeito torna-se mais suscetível
tes. Fatores que contribuem para a capacidade de
ao desenvolvimento de transtornos de ansiedade,
resiliência do indivíduo ainda não são totalmente
depressão e abuso de substâncias. Desta for-
conhecidos, porém, acredita-se nos atributos indi-
ma, as consequências se dão em nível cognitivo,
viduais, somados aos aprendidos pelos pais e fa-
emocional, fisiológico, comportamental e psicoló-
mília e às características do ambiente social, que
gico, desenvolvendo assim um quadro grave, que
6 podem auxiliar indivíduos a lidarem com situações
demanda tratamento especializado . 3
traumáticas .

Revista Saúde e Desenvolvimento Humano, 2017, Junho 5(2): 67-74


69

Trauma na infância ranóide, Esquizóide e Esquizotípico, considerados


como padrões “excêntricos ou incomuns” de fun-
Durante a infância, desenvolvem-se as fun- cionamento, principalmente no âmbito social. No
ções cognitivas, emocionais e comportamentais segundo, estão os transtornos Antissocial, o Bor-
8
do indivíduo . Por isso, qualquer impacto signifi- derline, o Histriônico e o Narcisista, que comparti-
cativo sofrido nesta fase pode comprometer parte lham características de déficit de empatia e com-
do desenvolvimento infantil, causando prejuízos portamento imprevisível. E por último, no terceiro
neuropsicológicos, tornando o indivíduo mais rea- cluster, encontram-se os Transtornos Obsessivo-
tivo a estressores externos e, por consequência, Compulsivos, os Dependentes e os Esquiva, que
influenciando no desenvolvimento da personalida- apresentam alta ansiedade ou medo na interação
de da criança. Além disso, a exposição a traumas social.
pode também afetar a organização e maturação
do cérebro da criança, modificando o sistema de Em ambiente clínico, atualmente, são iden-
9
resposta ao estresse . tificados altos índices de diagnósticos de Trans-
tornos de Personalidade. Segundo o DSM-5 (13),
Segundo Paolucci et al. (10), crianças víti- estima-se que entre 9,1% e 15% da população ge-
mas de abuso sexual possuem 21% mais de chan- ral possua algum, ou mais de um, transtorno des-
ces de desenvolver depressão e suicídio, 20%, ta origem. A prevalência, para o cluster A, fica em
TEPT, 14%, promiscuidade, 10%, déficits no ren- 5,7%, 1,5%, para no cluster B, e 6%, no cluster C.
dimento escolar, e 8%, reprodução dos compor- Porém, estas estatísticas mudam quando fala-se
tamentos violentos, o que mantém a perpetuação de incidência clínica, como veremos a seguir.
do ciclo da violência. Estas estatísticas enfatizam
o quanto o desenvolvimento da criança pode ser Entre os Transtornos de Personalidade - TP
afetado por uma situação traumática específica e - encontrados em contexto clínico, de 30 a 60%
contribuir para que a formação da personalidade são do tipo TP Borderline. Além deste diagnósti-
11
do indivíduo também seja afetada . co, o TP Dependente e o TP Histriônica também
representam elevada prevalência, e, logo após es-
Segundo Bryer, Nelson, Miller e Krol (12), tes, em relação a epidemiologia, encontram-se o
estima-se que os indivíduos com ideação ou com- TP Obsessivo-Compulsivo, o TP Paranóide, o TP
portamentos suicidas são três vezes mais propen- Esquiva e o TP Narcisista. Os outros transtornos
sos a terem sofrido abuso durante a infância do da personalidade - Antissocial, Narcisista, Esqui-
que pacientes sem este tipo de comportamento. zóide, Esquizotípico - não são comuns de serem
Além disso, estes autores afirmam que a criança encontrados em âmbito clínico por, muitas vezes,
que sofreu estresse crônico grave possui grande possuírem menor sofrimento autopercebido ou
probabilidade de ter sofrido influência negativa consciência a respeito de sua patologia, porém,
sobre o desenvolvimento de seu temperamento, possuem uma prevalência de aproximadamente
excitação e sensibilidade emocional, fatores estes de 0,5 a 3% da população geral .
14
que contribuem em grande parte para a constitui-
ção da personalidade do sujeito. Discutindo a relação entre trauma e Transtor-
no de Personalidade, uma significativa incidência
de indivíduos que relatam ter passado por situa-
Transtornos da Personalidade e Trauma ções significativamente traumáticas, com conse-
quências sérias para o funcionamento geral do
Segundo o DSM-5 (13), Transtornos de sujeito, também é bastante frequente em âmbito
Personalidade se caracterizam por padrões in- ambulatorial. Atualmente, o DSM-5 (13) prevê que
flexíveis e generalizados de funcionamento e os únicos diagnósticos que necessitam da vivên-
comportamentos, com início na adolescência ou cia de experiências traumáticas são o Transtorno
adultez jovem, que não são comumente encontra- de Estresse Pós-Traumático, o Transtorno de Es-
dos na cultura em que o indivíduo está inserido e tresse Agudo, o Transtorno de Apego Reativo, o
que causam acentuado prejuízo ou sofrimento ao Transtorno de Engajamento Social Desinibido e
sujeito, ou aos que o cercam. Estes transtornos o Transtorno de Adaptação. A partir do diagnós-
podem ser divididos em três clusters - A, B e C tico destes transtornos é possível que tenhamos
-, de acordo com suas características semelhan- acesso às estatísticas da incidência de traumas
tes. No primeiro cluster, estão os transtornos Pa- em âmbito clínico, porém, é importante ressaltar

Revista Saúde e Desenvolvimento Humano, 2017, Junho 5(2): 67-74


70

que diversos casos de Transtornos de Ansiedade siedade e/ou inadequação em relações interpes-
e de Transtorno de Personalidade também estão soais. São eles: Transtorno de Personalidade Pa-
associados a vivências traumáticas. ranóide, Transtorno de Personalidade Esquizóide
13
e Transtorno de Personalidade Esquizotípica .
Segundo as estatísticas do DSM-5 (13), o
TEPT já esteve presente na vida adulta entre 3,5 O Transtorno de Personalidade Paranóide é
e 8,7% da população geral. O Transtorno de Es- caracterizado por um padrão persistente e irrealis-
tresse Agudo está presente em aproximadamente ta de acreditar que os indivíduos são mal-intencio-
20% dos casos de exposição a traumas. O Trans- nados ou ameaçadores e que podem estar cons-
torno de Adaptação é um dos mais diagnosticados pirando contra si. Apesar de não termos ainda
em consultas de hospitais psiquiátricos, podendo muitas pesquisas a respeito deste tema, sabe-se
chegar a 50%. Já o Transtorno de Apego Reativo que este quadro possui um papel genético impor-
e o Transtorno de Engajamento Social desinibido tante, porém, é inegável que algumas vivências
são bastante incomuns, aparecendo em menos de infantis dos diversos tipos de abuso e agressão
10% das crianças que sofreram negligência grave. possuem um papel fundamental para o desenvol-
16,13
vimento desde transtorno .
Atualmente, é constatada a existência de um
elevado índice de comorbidade entre Transtorno O diagnóstico deste transtorno, muitas ve-
de Personalidade Borderline e Transtorno de Es- zes, é dificultado pelo fato de que, de acordo com
tresse Pós-traumático, uma vez que nos dois ca- o autorrelato do paciente, suas crenças disfun-
sos existem sintomas semelhantes, tais como: cionais a respeito das pessoas e do mundo são
desregulação do afeto, dificuldade no controle de justificáveis por exemplos cotidianos. Vale lembrar
impulsos, nas relações interpessoais e na integra- que estes pacientes não possuem delírios ou alu-
1
ção de self . Com base nisto, pode-se perceber cinações, o que pode complicar ainda mais o re-
que existe relação entre os Transtornos de Perso- conhecimento dos sintomas e diagnóstico. Desta
nalidade e traumas na infância, mesmo que seja forma, se faz necessário investigar qual a visão
no que se refere à sobreposição de transtornos ou que o paciente acredita que os outros têm dele
origem dos mesmos. mesmo e, muitas vezes, procurar algum familiar
para obter maiores informações. Porém, todo o
A personalidade de um indivíduo, de acordo
processo de avaliação deve ser feito de maneira
com a psicologia cognitiva, é constituída por cren-
extremamente cuidadosa, já que o paciente pro-
ças e esquemas psíquicos desenvolvidos ao lon-
curará evidências de que o próprio terapeuta pode
go da vida. A forma como o sujeito vê o mundo, os 16
ter más intenções .
outros e o futuro, é influenciada pelos processos
afetivos, cognitivos e motivacionais aprendidos ao Já os indivíduos com Transtorno de Perso-
longo da vida. Existem “traços” da personalidade nalidade Esquizóide têm como característica um
das pessoas que, quando externalizados através padrão de não interação interpessoal, ou seja,
de comportamentos, podem ser vistos como ma- são pessoas que não necessitam se relacionar
nifestações destas estruturas subjacentes. Em com as outras ou que apenas nutrem certa indi-
alguns casos, essas características de perso- ferença pelo contato social. Além disso, são pes-
nalidade podem ter uma valência exagerada ou soas que não costumam falar sobre emoções e
diminuída, o que caracteriza um Transtornos da nem expressam qualquer alteração acentuada de
15
Personalidade . A seguir estão especificados e humor, portando-se sempre de uma maneira es-
discutidos os Transtornos da Personalidade agru- tável e marcadamente introvertida. Desta forma,
pados por características de semelhanças, atra- seu contato com outros indivíduos é usualmente
vés dos clusters anteriormente citados. distante e reservado, já que este tipo de intera-
16, 13
ção lhes causa desconforto . Devido à baixa
incidência e a tendência ao isolamento destes pa-
Cluster A cientes, ainda não existem muitos estudos sobre
este transtorno.
O cluster A é composto pelos transtornos
que se caracterizam por padrões incomuns de ex- O Transtorno de Personalidade Esquizotípi-
centricidade, no que se refere, principalmente, ao ca é caracterizado por um déficit social e interpes-
âmbito social. Estes dividem características de an- soal, uma série de distorções cognitivas ou per-

Revista Saúde e Desenvolvimento Humano, 2017, Junho 5(2): 67-74


71

ceptivas e comportamento excêntrico. Indivíduos critérios diagnósticos para o Transtorno de Perso-


com este diagnóstico possuem muita dificuldade nalidade Borderline. Este número aumenta para
em manter um relacionamento íntimo. Além disso, 20% quando se refere a pacientes de internação
muitas vezes estão presentes distorções cogniti- psiquiátrica, porém, observa-se que estes índices
vas graves, como ideias de referência, pensamen- tendem a diminuir quando se considera uma po-
tos supersticiosos ou crenças bizarras. Sintomas pulação de idade mais avançada. Isto porque as
de ansiedade e depressão também estão asso- características deste transtorno tendem a diminuir
13
ciados a alguns casos deste transtorno . Assim próximo a meia idade. Algumas características as-
como o Transtorno da Personalidade Esquizóide, sociadas a este tipo de pacientes, em sua maioria
existe uma descrição acurada quanto a este trans- mulheres, são: desregulação emocional, interpes-
torno, porém, infelizmente, ainda não existem mui- soal e comportamental, esforços frenéticos para
tos estudos acerca da etiologia, da incidência e do evitar o abandono, comportamentos impulsivos,
curso do mesmo. suicidas e/ou automutilatórios, sensação de vazio
13, 19
interno, entre outras .
Existe uma elevada incidência do Transtor-
Cluster B
no de Personalidade Borderline em mulheres ví-
O Transtorno de Personalidade Antissocial, o timas de abuso sexual. Estima-se que até 76%
Transtorno de Personalidade Borderline, o Trans- das portadoras deste diagnóstico passaram por
torno de Personalidade Histriônica e o Transtorno experiências traumáticas na infância, como negli-
de Personalidade Narcisista constituem o cluster gência, abuso sexual ou abuso físico. Acredita-se
B. Estes compartilham as características de déficit que estes sejam alguns dos fatores, juntamente
na empatia e imprevisibilidade no comportamento, com uma predisposição genética ou acontecimen-
13 tos intrauterinos negativos, que contribuem para o
muitas vezes acompanhado de humor instável .
desenvolvimento da desregulação emocional pre-
O Transtorno de Personalidade Antissocial sente neste transtorno e que causam efeito duran-
(TPAS) tem como características principais: pro- te a maturação do cérebro e do sistema nervoso
blemas de relacionamento interpessoais, origina- 19
infantil .
dos por um déficit de empatia e pela persistente
manutenção de comportamentos desviantes e Sabe-se que crianças vítimas de abuso se-
desrespeitosos, e de adaptação a normas so- xual estão mais propensas à realização de com-
cialmente aceitas. Outro importante fator está na portamentos automutilatórios e às tentativas de
impulsividade e, por vezes, agressividade destes suicídio do que outros indivíduos. Desta forma,
indivíduos, que visam comportamentos que gerem observamos que este tipo de trauma, quando so-
satisfação imediata, sem medir as consequências frido durante a infância, pode ser decisivo tanto
a longo prazo. Além disso, existe uma alta co- para indivíduos vulneráveis quanto para os não-
morbidade deste transtorno com o Transtorno de vulneráveis emocionalmente, criando em uma es-
20,19
Personalidade Borderline, o que dificulta o diag- pécie de “vulnerabilização” infantil .
nóstico diferencial, já que ambos dividem esta ca- O Transtorno de Personalidade Borderline
racterística de comportamento impulsivo nos mais compartilha com o Transtorno de Personalidade
13, 17
diversos âmbitos sociais . Histriônico a instabilidade emocional e a necessi-
Atualmente, sabe-se que eventos traumáti- dade que o indivíduo possui em se sentir especial
cos na infância, associados a predisposições ge- para alguém. Porém, o Transtorno de Personali-
néticas estão relacionados ao desenvolvimento dade Histriônico tem como principal característica
do TPAS. Violência (verbal, física ou psicológica, diferencial uma excessiva busca por atenção, de-
sofrida ou testemunhada), negligência, maus-tra- monstrada através de seu comportamento emo-
tos, consumo de álcool e outras drogas durante a tivo e teatral. As pessoas com este transtorno,
gestação e dificuldades escolares são alguns dos muitas vezes também atuam de forma provocante
fatores que podem estar envolvidos no desenvol- ou sedutora nos mais diversos contextos sociais,
17, 18 até mesmo com pessoas as quais não possuem
vimento deste transtorno .
interesses sexuais. Além disso, costumam agir de
Atualmente, estima-se que aproximadamen- forma dramática e podem considerar seus relacio-
te 11% dos pacientes psiquiátricos preencham namentos mais íntimos do que de fato são .
13

Revista Saúde e Desenvolvimento Humano, 2017, Junho 5(2): 67-74


72

Já o Transtorno de Personalidade Narcisis- âmbito social. Além disso, compartilham caracte-


ta, observado mais frequentemente em homens rísticas de inflexibilidade e, muitas vezes, acabam
(50 a 75% de prevalência), é caracterizado por um por prejudicar mais a si mesmos do que aos ou-
13
padrão de crença grandiosidade e necessidade de tros a sua volta .
admiração, muitas vezes acompanhado de uma
O Transtorno de Personalidade Dependente
déficit de empatia. Arrogância, dificuldades em li-
é caracterizado por um sentimento de apego ex-
dar com a crítica e necessidade de tratamentos
cessivo, no qual o indivíduo acredita não ser ca-
especiais, também se fazem presente na maioria
13 paz de viver sem que alguém o guie. Desta forma,
dos casos .
o portador deste transtorno acaba por desenvolver
Young, Klosko e Weishaar (21) propõem três um grande medo de ser abandonado e/ou de ficar
modos de funcionamento que os pacientes com sozinho. Assim, muitas vezes mostra-se submisso
Transtorno de Personalidade Narcisista se utili- às leis de seu companheiro, evitando a separação.
zam no seu dia-a-dia. O modo “criança solitária”, Para estas pessoas, se torna mais difícil a toma-
desenvolvido pela sensação de que não são dig- da de decisão, sem a ajuda de outros, até mesmo
nos de ser amados e pelo medo de não correspon- em questões simples do cotidiano. Além disso, a
der às expectativas alheias; o modo “autoengran- ansiedade e a depressão muitas vezes estão as-
16
decedor”, que se mostra arrogante e competitivo sociadas ao quadro deste transtorno .
na busca por admiração, e que se desenvolve
Já o transtorno de Personalidade Esquiva se
como um mecanismo de hipercompensação para
caracteriza por evitação comportamental, cogniti-
o modo anterior; e o modo “autoconfortador des-
va e emocional. A autodesvalorização, o intenso
ligado”, que é ativado em situações de solidão e
medo da rejeição e a intolerância a pensamentos e
tem por objetivo desviar seus pensamentos do
emoções negativas também são parte do quadro.
que sentem.
Quando crianças, acredita-se que tiveram como
Segundo os mesmos autores, as origens do pessoa significativa alguém com um alto nível de
Transtorno de Personalidade Narcisista estão na crítica e rejeição a imperfeições, o que acaba por
infância do indivíduo, com históricos de: (1) soli- criar na criança crenças de inadequação que per-
dão/isolamento, (2) falta de limites, (3) manipula- duram até a adultez por meio da generalização.
ção pelos pais e (4) aprovação condicional. Desta Além disso, um padrão de ansiedade com relacio-
forma, acredita-se que durante a infância, (1) eles namentos interpessoais, seguido de tristeza pela
teriam sido crianças negligenciadas pelos cuida- inabilidade social, acompanha estes sujeitos. As-
dores, que não demonstravam afeto nem empatia sim, acabam por se tornar pessoas com poucos
16,13
pelos filhos. Além disso, (2) não receberam limi- contatos íntimos .
tes suficientes, fazendo com que desenvolvessem
O diagnóstico diferencial do Transtorno de
o sentimento de superioridade no lugar de onde
Personalidade Esquiva com a Transtorno de Fo-
estaria a sensação de ser amado. Em diversos
bia Social Generalizada é de difícil distinção. Al-
casos, (3) pode-se estar presente nos cuidado-
guns pesquisadores, inclusive, apoiam a ideia de
res uma característica de manipular os filhos no
que o Transtorno de Personalidade Esquiva seria
intuito de preencher suas próprias necessidades,
apenas uma forma mais grave do transtorno ante-
e, por isso, (4) apenas gratificar os filhos quando
riormente citado. Até o presente momento, nada
atingem alguma meta elevada imposta pelos pais.
foi confirmado quanto a estas hipóteses, porém,
Em outras ocasiões, apenas recebiam crítica ou
sabe-se que a ansiedade social forte está associa-
indiferença.
da a ambos os transtornos, e que a comorbidade
entre estes dois transtornos é comumente obser-
16
vada .
Cluster C
Em contrapartida, os indivíduos com Trans-
O cluster C é composto pelo Transtorno de torno de Personalidade Obsessivo-Compulsiva
Personalidade Dependente, pelo Transtorno de (TPOC) costumam apresentar características
Personalidade Esquiva e pelo Transtorno de Per- como: atenção aos detalhes, controle emocional,
sonalidade Obsessivo-Compulsivo. Estes trans- autodisciplina, rigidez, perfeccionismo, ruminação,
tornos têm em comum um padrão de extrema perseverança, confiabilidade, indecisão e polidez.
ansiedade em seu dia-a-dia, principalmente no

Revista Saúde e Desenvolvimento Humano, 2017, Junho 5(2): 67-74


73

Sintomas depressivos e preocupação excessiva Atualmente existem linhas de tratamento


com o trabalho também são comumente encon- focadas para pessoas diagnosticadas com Trans-
trados. Acredita-se que este tipo de personalidade tornos da Personalidade, ou que possuam fortes
se desenvolva a partir de um ambiente familiar ex- traços/indicativos destes transtornos. A Terapia do
tremamente rígido e controlador durante a infân- Esquema e a Terapia Comportamental Dialética
13,16
cia . são bons exemplos, pois ambas foram formuladas
com o objetivo de eficácia para tratamento de pa-
Convém salientar que o diagnóstico diferen-
cientes difíceis, com transtornos de personalidade
cial do Transtorno de Personalidade Obsessivo-
que demoram mais tempo para responder a ou-
Compulsivo com o Transtorno Obsessivo-Compul-
tras linhas psicoterápicas, como a Terapia Cogniti-
sivo (TOC) deve ser feito. O TPOC é caracterizado 23
vo-Comportamental e a psicanálise.
por extrema rigidez cognitiva, como por exemplo,
distinções severas de “certo e errado”, enquanto, Além disso, faz-se necessário repensar
no TOC, existe a presença de obsessões e com- a noção de trauma, já que, atualmente, tem-se
pulsões verdadeiras. Apesar disso, sempre se encontrado maior dificuldade no tratamento de
deve levar em conta que estes dois transtornos crianças vítimas de maus-tratos durante a infân-
16
possuem um alto grau de comorbidade . cia do que no tratamento de crianças que apenas
sofreram algum evento estressor pontual, no qual
o indivíduo desenvolveu Transtorno de Estresse
CONSIDERAÇOES FINAIS Pós-Traumático. Assim, para tratamento, se tor-
na de suma importância a minuciosa avaliação
O presente estudo objetivou realizar um le- do estado em que o indivíduo se encontra e do
vantamento de bibliografias a respeito dos Trans- real impacto que o evento teve na vida da pessoa.
tornos da Personalidade, relacionando-os com Ademais, ressalta-se a importância de tratamento
possíveis vivências traumáticas na infância. Ob- ainda na infância, quando se sabe da exposição
serva-se a carência de material a respeito dos destes indivíduos a estressores ambientais, e de
Transtornos da Personalidade no Brasil, principal- intervenções preventivas com pais, professores,
mente quanto aos transtornos do cluster A, ainda crianças, adolescentes e educadores, em escolas,
que o cluster B e C também necessitem de maior clubes, comunidades e grupos em geral.
atenção, por parte dos pesquisadores, por pos-
suírem maior incidência na clínica atualmente. A
etiologia e epidemiologia destes transtornos ain- REFERÊNCIAS
da são pouco estudadas, o que dificultou a rea-
lização de paralelos com eventos estressores na 1. Schestatsky SS. Fatores ambientais e vul-
infância destes pacientes. Além disso, ainda não nerabilidade ao Transtorno de Personali-
existem muitos instrumentos de avaliação para dade Borderline: um estudo caso-controle
diagnóstico destes transtornos, o que dificulta na de traumas psicológicos precoces e víncu-
compreensão, no tratamento e na realização de lo parentais percebidos em uma amostra
pesquisas sobre estes transtornos. brasileira de pacientes mulheres. [Tese]
A avaliação, em âmbito clínico, quanto a Porto Alegre: Universidade Federal do Rio
patologias da personalidade é fundamental para Grande do Sul; 2005.
a compreensão do funcionamento do paciente e 2. Grassi-Oliveira R, Pergher GK, Stein LM.
a forma como este interage com o meio no qual Cicatrizes neurobiológicas do TEPT. In.
habita. Assim, para a realização de um bom tra- Caminha RM (org.) Transtornos do Estres-
tamento psicoterápico, o diagnóstico (ou ao me- se Pós-Traumático (TEPT): da neurobiolo-
nos noções diagnósticas) é de suma importância, gia à terapia cognitiva. São Paulo: Casa do
uma vez que a terapia necessita rumar para um
Psicólogo; 2005.
caminho diferente dos outros transtornos mentais.
Para tal entendimento, o uso de escalas de autor- 3. Hauck S. A influência do vínculo parental na
relato vem sendo bastante comum pelos clínicos, reação emocional ao trauma em vítimas de
22
por ser de fácil acesso e aplicação . violência sexual. [Dissertação] Porto Ale-
gre: Universidade Federal do Rio Grande

Revista Saúde e Desenvolvimento Humano, 2017, Junho 5(2): 67-74


74

do Sul; 2005. 14. American Psychiatric Association. DSM-IV-


TR - Manual Diagnóstico e estatístico de
4. Knapp P, Caminha RM. Terapia cognitiva Transtornos Mentais. 4ª ed. Porto Alegre:
do transtorno de estresse pós-traumático. Artmed; 2002.
Revista Brasileira de Psiquiatria. 2003.
25(Supl I):31-6. 15. Beck AT, Freeman A. Terapia cognitiva dos
Transtornos de Personalidade. Porto Ale-
5. Kristensen CH, Parente MAMP, Kaszniak gre: Artes Médicas; 1993.
AW. Transtorno de Estresse Pós-Trau-
mático e funções cognitivas. Psico-USF. 16. Beck AT, Freeman A, Davis DD. (cols).
2006;11(1):17-23. Terapia Cognitiva dos Transtornos da Per-
sonalidade. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed;
6. Weathers FW, Keane TM, Foa EB. Assess- 2005.
ment and Diagnosis of Adults. In.: Foa EB,
Keane TM, Friedman MJ & Cohen JA. 17. Del-Ben CM. Neurobiologia do transtorno
Effective Treatments for PTSD: Practice de personalidade anti-social. Rev. Psiq.
Guidelines from the International Society Clín. 2005; 32(1):27-36.
for Traumatic Stress Studies. Nova York:
The Guildford Press; 2009. 18. Holmes SE, Slaughter JR, Kashiani J. Risk
factors in childhood that lead to the devel-
7. Southwick SM, Yehuda R, Giller EL. Person- opment of conduct disorder and antisocial
ality disorders in treatment-seeking combat personality disorder. Child Psychiatry Hum
veterans with posttraumatic stress disor- Dev. 2001; 31(3):183-93.
der. Am J Psychiatry. 1993;150(7):1020-3.
19. Linehan MM. Terapia Cognitivo-Comporta-
8. Carnier L, Rodrigues OMPR, Perosa GB. mental para Transtorno da Personalidade
Estudos sobre stress e coping infantil: Borderline. Porto Alegre: Artmed; 2010.
contribuições para a Psicologia do Desen-
volvimento. In.: Do Valle TGM, Maia ACB. 20. Edwall GE, Hoffman NG, Harrison PA.
(orgs). Psicologia do desenvolvimento hu- Psychological correlates of sexual abuse
mano e aprendizagem. São Paulo: Cultura in adolescent girls in chemical dependen-
Acadêmica; 2011. cy treatment. Adolescence. 1981; 24:279-
288.
9. Borges JL, Dell`Aglio DD. Relações entre
abuso sexual na infância, Transtorno de 21. Young JE, Kloslo JS, Weishaar ME. Tera-
Estresse Pós-Traumático (TEPT) e pre- pia do esquema: guia de técnicas cogni-
juízos cognitivos. Psicologia em Estudo. tivo-comportamentais inovadoras. Porto
2008;13(2):371-379. Alegre: Artmed; 2008.

10. Paolucci EO, Genius ML, Violato C. A 22. Carvalho LF, Bartholome D Silva MCR.
meta-analysis of the published research on Instrumentos para avaliação dos Transtor-
the effects of child sexual abuse. The Jour- nos da Personalidade no Brasil. Avaliação
nal of Psychology. 2001;135(1):17-36. Psicológica. 2010; 9(2):289-298.

11. Caminha RM, Shaefer LS, Lobo BOM, 23. Beck JS. Terapia Cognitivo-Comporta-
Kristensen CH, Caminha MG. Abuso se- mental: teoria e prática. 2ª ed. Porto Ale-
xual de crianças e pedofilia. In.: RANGE, gre: Artmed; 2013.
B. & cols. Psicoterapias cognitivo-coporta-
mentais: um diálogo com a psiquiatria. 2˚
ed. Porto Alegre: Artmed; 2011.
12. Bryer J, Nelson B, Miller J, Krol, P. Child-
hood sexual and physical abuse as factors
in adult psychiatric illness. American Jour-
nal of Psychiatry. 1987;144:1426-1430.
13. American Psychiatric Association. DSM-
5 – Diagnostic and Statistical Manual of
Mental Disorders. 5ª ed. Arlington: Ameri-
can Psychiatric Association; 2013.

Revista Saúde e Desenvolvimento Humano, 2017, Junho 5(2): 67-74

Você também pode gostar