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REVISTA DE PSICOLOGIA - ESPECIAL

UM DOS NOMES DOS AUTISMOS

E
NLAÇAR O CORPO E A I M A G E M
Q U E S E T E M D E L E ATRAVÉS
DA L I N G U A G E M P A R E C E
S E R UM PROCESSO S I M P L E S , P E L O
QUAL TODO BEBÉ PASSARIA AO
LONGO D E S E U D E S E N V O L V I M E N T O
E CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA. NO
ENTANTO, E S T A É UMA T A R E F A
C O M P L E X A E D E L I C A D A PARA TODOS.
HABITAR UM CORPO NÁO É NADA
FÁCIL. PARA UNS MAIS, PARA OUTROS
MENOS; A RELACÁO COM O PRÓPRIO
CORPO CAUSA E S T R A N H E Z A , E M
ALGUNS MOMENTOS. TOMÁ-LO COMO
S E U É UMA T A R E F A Q U E E X I G E UM
T R A B A L H O INTENSO, MESMO Q U E
NÁO S E O P E R C E B A , NA E S C O L H A
Q U E INCLUI A M A N E I R A D E S E F A Z E R
USO DA L I N G U A G E M , A CONSTRUÇÃO
D E UMA I M A G E M C O R P O R A L COM
S E U S L I M I T E S DEMARCADOS
ENTRE "FORA"E"DENTRO"E A

i
POSSIBILIDADE DE SE E S T A B E L E C E R
LAÇOS SOCIAIS, UMA A B E R T U R A
PARA S E R E L A C I O N A R COM OS
OUTROS. PARA ALGUNS, ISSO É TÃO
ANGUSTIANTE Q U E P R E F E R E M
V I V E R COMO S E E S T I V E S S E M
SOZINHOS NO MUNDO - UM MUNDO
Q U E C R I A M PARA E L E S MESMOS, NO
QUAL BUSCAM ^ S T A R SÓS, MESMO
E N T R E OS OUTROS. * 1^
Nos iilliíiios 20 .iiios. ,1 (|iianlifi('ação cslalíslica
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NOMENCLATURAS - ASPERGER

autismo se tornou um problema para as políticas pú- iam aumentando, seu pensamento não parava, ficava
blicas de saúde em diversos países, colocando uma nervoso, aumentava sua angústia e a de seus pais, e
série de perguntas. ele acreditava que não conseguiria realizar alguma
Que critérios diagnósticos têm sido tomados coisa que estivesse em questão.
como referências para se chegar a estes números? Como o pai, Albert adora Tintin, o personagem
Haveria uma "epidemia" de autismo? Em uma época belga criado pelo escritor e cartunista Hergé. Ele re-
em que tudo se transforma em rótulo, etiqueta, clas- produz os diálogos, estabelece conversações com o
sificação em transtornos e enfermidades, o que se Capitão Haddock e com o Tintim, conhece bem as his-
"mede", o que está sendo avaliado? E o que é que se tórias e fica encantado com a viagem que realiza com
tem "deixado de fora", nesta avaliação? a família - os pais e os avós - para o Museu Tintin.
A comunicação não é difícil para Albert, relata o
"NEM TUDO É ASPERGER" pai, mas é limitada ao seu mundo. Basicamente, ele se
refere a seus assuntos e tenta explicar parte de seu
"Tenho outro caráter. Nós todos temos um ca- mundo para todos. Albert se dá conta disso, mas não
ráter diferente. Meu caráter é um pouco estranho. sabe como reagir. Sua relação com a palavra, como se
[...] É verdade que todo mundo tem suas estranhezas, apresenta nos autismos, é literal, não leva em conta
mas, como eu as explico, então me chamam mais a o contexto.
atenção. E esta é a parte mais interessante: nem tudo "O mundo interior é como este labirinto. É um
é Asperger, eu também tenho meu caráter". Albert é mundo interior para mim, ainda mais profundo. É um
o personagem central do documentário Outras vo- universo um pouco tenebroso na entrada, mas, quan-
zes - um olhar diferente sobre o autismo. Diagnos- do você entra, parece que era pior antes de entrar."
ticado como Asperger, foi na escola que observaram Em off Iván Ruiz conta, no documentário, que
sua dificuldade de estar entre os outros e sua forma conhece Albert já há um tempo e que, se por um lado,
diferente de fazer as coisas. Era difícil para ele en- às vezes, as palavras o fazem se perder no labirinto
tender e obedecer às ordens, porque isto implica em da linguagem, por outro, é por meio delas que Albert
dar sentido às palavras. E, conforme as dificuldades consegue sair deste labirinto.
o encontro com um analista possibilita a cada início em torno dos três anos, o autismo descrito pxjr
sujeito inventar uma solução singular para seguir na ele apresentava, fundamentalmente, as características
vida com o que lhe é mais único e íntimo. A cada vez, de desejo de solidão e de imutabilidade.
com cada um que incia este trabalho, tratase sem- Sem nada saber sobre o que pesquisava
pre de "um". O tratamento é sob medida - na medida Kanner, em menos de um ano, um outro artigo so-
deles. Com os autismos, mais ainda. Uma posição ati- bre o tema foi escrito por Hans Asperger (1944). Em
vapassiva, atenta ao que é dito, às vezes sem palavra Die austichen Psychopathen im Kindersalter, ele
alguma, é condição para um laço sutil de trabalho. descreve o "pensamento autístico", que já havia sido
Asperger é um dos nomes do autismo, cuja ori- abordado por Bleuler com relação à esquizofrenia, e
gem está no alemão autismos. O psiquiatra Eugen localiza o início da Síndrome (que foi nomeada em
Bleuler foi o primeiro a empregar este termo, em sua homenagem) mais tarde do que o tempo precoce
seus estudos sobre a demência precoce. A esquizo- apontado por Kanner. Asperger se refere à apresen-
frenia era considerada uma forma de demência, mas, tação de traços que perduram ao longo da vida, como
como ele observava em sua clínica, a sintomatologia a restrição aos laços com os outros e o isolamento
da doença não surgia necessariamente em uma épo- social no "estar consigo mesmo".
ca "precoce". Na descrição da esquizofrenia, Bleuler Na quinta edição do Manual Diagnóstico e Esta-
abandonou a ideia de que se tratava de uma "demên- tístico de Transtornos Mentais, o DSM-5, a Síndrome
cia precoce" e circunscreveu quatro características de Asperger foi eliminada. Ela hoje faz parte de uma
que apontam para sua identificação, que ficaram co- ampla categoria, o Transtorno do Espectro Autista.
nhecidas como os quatro "A" da esquizofrenia: aluei
nações, ambivalência, afeto incongruente e autismo DIFERENÇA E SEGREGAÇÃO .v
- autismo no sentido mesmo de "auto", ensimesmado.
Em 1943, no artigo Autistic disturbance of O roteiro de Outras Vozes é rico em testemu-
affective contact, Leo Kanner introduziu o conceito nhos de pais, famílias de crianças e adolescentes, e
de "autismo infantil precoce" ao descrever um quadro revela o que dizem psicanalistas da Espanha, França,
que se apresenta em crianças bem pequenas. Com Bélgica e Itália sobre esta maneira tão diferente de
NOMENCLATURAS - ASPERGER

estar no mundo que se chama "autismos".


Escrito no plural, "autismos" ressalta que, embo-
ra apresentem alguns traços em comum entre todas
as crianças ou jovens, há algo de singular em cada
um deles, assim como a possibilidade de encontrarem
um jeito próprio de viver. É imposta apenas uma con-
dição: o respeito à diferença.
"O que consideramos é justamente a dimensão
do sujeito que possa surgir nessa pequena fabrica
ção sintomática, ainda que, às vezes, essa dimen-
são pareça estranha para o mundo", testemunha
Alexandre Stevens, Diretor Terapêutico do Courtil,
instituição belga que acolhe crianças e adolescentes
autistas e psicóticos.
Os tempos que correm são de intolerância, ex-
trema violência e segregação do que foge ao padrão.
Loucura, religião, identificação sexual e racismo - são
muitas e diversas as formas do que é segregado.
Em 1985, em uma das aulas do Curso de Orienta-
ção Lacaniana, em Paris, JacquesAlain Miller descre-
veu com muita precisão a causa do ódio, dizendo que
há algo mais do que agressividade em jogo: "O que faz
com que este Outro seja Outro para que seja odiado
em seu ser? Pois bem, é o ódio ao gozo do Outro. [...]
Se odeia especialmente a maneira particular de que
o Outro goza" (p. 53). "A maneira particular com que O caminho a seguir nos tratamentos é indicado de
o Outro goza" se refere ao que lhe traz prazer e so- acordo com cada um, o que não quer dizer que o
frimento, ao que lhe é mais íntimo e singular. Na voz psicanalista esteja desorientado em suas interven-
de Caetano: "Cada um sabe a dor e a delícia de ser o ções. Sobretudo com os autistas, ele aprende como se
que e'. Por isso, é impossível impor um modo de ser, aproximar com palavras, com seu corpo, sobre o que
de gozar, de viver. desperta o interesse do sujeito, seus objetos - verda-
Nesse sentido, impor um tratamento padrão é deiras obsessões - que causam estranheza para mui-
impossível nos autismos. Certa vez, em um seminário ta gente, como as colheres de Sue Rubin.
no Recife, disse uma mãe": "Eu e meu marido estamos Autism is a woríd é um documentário realizado
cansados de receber propostas de tratamento que nos a partir do desejo de Sue de mostrar o mundo em que
dizem como fazer com nossa filha. São métodos de vive. Ecolalia, condutas "estranhas", impulsos agres-
aprendizagem que exigem dela a repetição de ações, sivos, movimentos e sons incontroláveis - quando a
como falar frases em um determinado tom, andar angústia chega a uma determinada intensidade que
com uma postura tal, coisas que não alcançam o que ela não suporta, recorre à torneira. Olhando a água,
se passa com ela. Des nem sabem do que nossa filha descreve que se desconecta e para de pensar.
gosta, quem ela é". Sue inventou uma maneira de se apaziguar. Ela
mora em uma casa, sem os pais, com uma estrutura
Seja em clínicas privadas ou nas instituições,
organizada que lhe possibilitou, por exemplo, concluir
os autistas ensinam sobre suas possibilidades, so
um curso de graduação em uma universidade. Um
bre como lidar com suas dificuldades e sofrimentos.
objeto se destaca no cenário: são as colheres que es-
tão sempre em suas mãos, seguindo na vida com ela.
Estas colheres ensinam um pouco sobre a paixão pe-
los objeto nos autismos.
ESCRITO NO PLURAL, "AUTISMOS"
RESSALTA QUE, EMBORA
APRESENTEM ALGUNS TRAÇOS EM BANHO DE LINGUAGEM
COMUM COMO TODAS AS CRIANÇAS
Como acontece o encontro da palavra com o
OU JOVENS, HÁ ALGO DE SINGULAR
corpo no "ser falante"? Jacques Lacan usou uma me-
EM CADA UM DELES, ASSIM COMO táfora para descrever: é como uma chuva de palavras,
A POSSIBILIDADE DE ENCONTRAREM de significantes que recaem sobre o corpo, trazendo
UM JEITO PRÓPRIO DE VIVER. a exigência de uma posição a tomar. Ficar fixado na
palavra primeira, a um determinado significante, ou
articular um significante a outro, ou... há diferentes
possibilidades que mostram que o autismo é "uma o sujeito com a linguagem, seu corpo, o objeto e os
posição do ser". outros: Temple Grandin.
Quando o significante toca o real do corpo, re- Desde pequena, Temple apresentou caracterís
presentando o simbólico, produz um furo. Se não há ticas comuns aos autistas. Ela não falava, gostava de
este furo, a borda corporal não se constitui. É uma objetos que giram em torno deles mesmos, apresen-
borda topológica, na medida em que inclui espaço, o tava hipersensibilidade a ruídos, crises de excitação
que está ao redor, superfície e a imagem do corpo no corpo, surdez aparente, destruía os objetos que
como um saco em que se evidencia um dentro e um construía, recusava-se a aprender e evitava contato
fora. Assim, os objetos podem entrar e sair do corpo. corporal. Suas dificuldades se agravaram na adoles-
Sem essa borda topológica, não se delimita, cência, momento que exige do púbere modificações
por exemplo, que há um canal digestivo que une na relação com o corpo, com os pais, com os ideais da
dois furos. Um tubo digestivo sem o furo simbólico cultura. Isso é exp)erimentado de uma maneira muito
não contém um buraco, o que traz dificuldades - e a intensa pelos autistas.
hora da alimentação é sempre um momento delicado
E é quando está no sítio da tia que, "pensando
nas instituições que acolhem sujeitos com autismos
em imagens" - vendo o mundo a partir das imagens
e psicoses graves. Éric Laurent (2014) descreveu os
-, Temple observa o método de contenção do gado
efeitos do que acontece com a linguagem nos autis-
durante a vacinação. Observa ainda que alguns mor-
mos com o conceito de "'foraclusão' do furo". É como
se houvesse um furo, sim, mas que não funciona riam afogados no banho. Isso desperta seu interes-
como tal. se, entusiasmando-a a ultrapassar suas dificuldades
para dar prosseguimento ao curso na universidade;
A borda topológica também é fundamental para
ao final, ela se torna PhD em Ciências dos Animais.
diferenciar o sujeito do Outro, do campo da lingua-
Com suas técnicas, Temple Grandin revolucionou a
gem e, consequentemente, do sujeito e dos outros,
pecuária no mundo e, desde então, tem escritos livros
seus semelhantes. Um terceiro documentário trans-
mite sobre a construção da borda, sobre o que faz em que conta sua vida, apostando que seus testemu-
nhos podem ajudar os autistas que ainda não encon-
traram uma forma de viver com seus autismos.
O que se destaca no documentário é a inven
ção da "máquina do abraço", objeto que ela coloca no
quarto que divide com uma colega na universidade.
Quando sente que precisa, aproxima seu corpo e acio-
na a parte que faz todo o mecanismo funcionar. As
peças se encaixam sobre seu corpo, numa espécie de
"contenção" que o bordeia. E então, a máquina a apa-
zigua, instantaneamente.
Com seus testemunhos, Albert, Sue e Temple en-
sinam a respeito das soluções que encontraram para
viver sob suas situações. Para alguns, chegar a estas
invenções só se torna possível quando há um parceiro
que respeita suas condições, a escolha de seus objetos
e não exige nada dele - porque o melhor tratamento
é sempre o que o sujeito e seus pais escolhem. Um
tratamento que não atrapalha o autista, em seu i n -
terminável trabalho de inventar um modo próprio de
lidar com a linguagem, com seu corpo, com os outros,
acompanhado de seus preciosos objetos autísticos.

* Ana Martha Wilson Maia é membro da Escola Brasileira de Psica-


nálise e da Associação Mundial de Psicanálise. É coordenadora do
Seminário Autismo e Psicose Infantil - da clinica à política, e retomo
(EBP - Rio), do laboratório/l criança entre a mulher e a mãe (Centro
Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança - Rio) e do Projeto Lugar
& Laços. É participante do Observatório Internacional sobre Políticas
do Autismo - Federação Americana da Psicanálise de Orientação
"Ela não falava, gostava de objetos que giram em
torno deles mesmos, apresentava hipersensibilidade Lacaniana e doutora em Psicologia (UFRJ) e em Letras (PUC-Rio),
a ruídos, crises de excitação no corpo, surdez aparen- além de pós-doutora em Literatura Comparada (UERJ). É professora
te, destruía os objetos que construía, recusava-se a e Membro do Conselho do Curso de Especialização em Psicanálise
aprender e evitava contato corporal." com Crianças e Intervenção Precoce (HSZ/UCAM).
G R A N D E S T E M A S DO C O N H E C I M E N T O

PSICOLOGIA ESPECIAL AUTISMO

. ENSINAR E
APRENDER
Melhorando o desenvolvimento da
criança com apoio da família

o DESAFIO DE
SER MÃE
Como lidar com as
dificuldades e as conquistas

PRECISA
COMUNICAR-SE
, As diferentes etapas
desse processo

O MEDO E O
\O
• • Conscientizar para
? combater os
ê preconceitos

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