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O caso criminal Evandro é um dos mais emblemáticos da história do Brasil, envolvendo o

desaparecimento e a morte de um menino de seis anos em 1992, na cidade de Guaratuba, no


Paraná. O caso ganhou repercussão nacional pela acusação de que o crime teria sido cometido
por um grupo de pessoas ligadas a uma seita satânica, que teria praticado rituais de magia
negra com o corpo da vítima. No entanto, há muitas controvérsias e dúvidas sobre a veracidade
dos fatos e a condução das investigações e do processo judicial. Neste trabalho, pretende-se
fazer uma análise crítica-argumentativa do caso na perspectiva da Psicologia Jurídica,
abordando os aspectos psicológicos, sociais e jurídicos envolvidos.

O desenvolvimento do trabalho será dividido em três partes: a primeira parte tratará do


contexto histórico e social em que o caso ocorreu, destacando o clima de medo e histeria
coletiva que se instaurou na cidade e na opinião pública, influenciado pela mídia
sensacionalista e pela falta de informações confiáveis. A segunda parte abordará os principais
aspectos psicológicos que permearam o caso, como as falsas memórias, as confissões forçadas,
as sugestões hipnóticas, os preconceitos e os estereótipos que afetaram as testemunhas, os
acusados e os profissionais envolvidos. A terceira parte analisará os aspectos jurídicos do caso,
como as violações dos direitos humanos, as falhas na coleta e na análise das provas, as
irregularidades no inquérito policial e no processo judicial, e as consequências jurídicas e
sociais para os acusados e para a sociedade.

A conclusão do trabalho será baseada na argumentação desenvolvida nas partes anteriores,


buscando responder à questão: o que realmente aconteceu com Evandro? Quem são os
verdadeiros culpados pelo seu desaparecimento e morte? Qual foi o papel da Psicologia
Jurídica no caso? Qual é a importância da ética, da ciência e da justiça para a solução de casos
como esse? A partir dessas reflexões, espera-se contribuir para uma compreensão mais crítica
e profunda do caso criminal Evandro, bem como para a valorização da Psicologia Jurídica como
uma área de conhecimento e atuação fundamental para a promoção dos direitos humanos e
da cidadania.

O contexto histórico e social em que o caso Evandro ocorreu foi marcado por um clima de
medo e histeria coletiva que se instaurou na cidade e na opinião pública, influenciado pela
mídia sensacionalista e pela falta de informações confiáveis. A década de 90 foi uma época de
muitos casos de crianças desaparecidas na região, o que gerou uma sensação de insegurança e
pânico na população. Além disso, havia uma forte polarização política na cidade, que estava
dividida entre os apoiadores e os opositores do prefeito Aldo Abagge.

As investigações do caso Evandro foram conduzidas de forma irregular e questionável, com


denúncias de tortura, coação, falsificação de provas e manipulação de testemunhas. Os sete
acusados pelo crime foram presos preventivamente e submetidos a julgamentos controversos,
que resultaram em condenações e absolvições contraditórias. Até hoje, o caso não foi
esclarecido completamente e ainda gera dúvidas, debates e polêmicas sobre a verdadeira
autoria e motivação do crime.

Um dos principais aspectos psicológicos que afetaram o caso foi o fenômeno das falsas
memórias, ou seja, a construção de lembranças que não correspondem à realidade dos fatos.
As falsas memórias podem ser induzidas por diversos fatores, como a pressão social, a
sugestão hipnótica, a confusão entre sonho e realidade, a exposição a informações falsas ou
distorcidas, entre outros. No caso Evandro, as falsas memórias foram geradas tanto nas
testemunhas quanto nos acusados, que acabaram por relatar fatos que não aconteceram ou
que foram alterados em sua percepção.
Um exemplo de falsa memória no caso Evandro foi o depoimento de Osvaldo Marcineiro, um
dos sete acusados de participar do suposto ritual satânico que teria vitimado o menino.
Osvaldo foi submetido a uma sessão de hipnose conduzida pelo delegado responsável pelo
caso, que lhe fez diversas sugestões sobre o crime e os envolvidos. Sob o efeito da hipnose,
Osvaldo acabou por confessar sua participação no ritual e detalhar cenas macabras que nunca
ocorreram. Posteriormente, Osvaldo se retratou e afirmou que suas lembranças eram falsas e
induzidas pela hipnose.

Outro exemplo de falsa memória no caso Evandro foi o depoimento de Diógenes Caetano
Ferreira, uma das testemunhas-chave da acusação. Diógenes era vizinho de Beatriz Abagge,
outra acusada de participar do ritual satânico. Diógenes afirmou ter visto Beatriz saindo de sua
casa com uma sacola contendo o corpo de Evandro na noite do crime. Porém, essa lembrança
foi contradita por outras evidências que mostraram que Beatriz estava em outro lugar naquela
noite e que o corpo encontrado não era o de Evandro. Diógenes também se retratou
posteriormente e admitiu que sua memória foi influenciada por informações falsas que
circulavam na mídia e na comunidade sobre o caso.

Além das falsas memórias, outro aspecto psicológico que permeou o caso Evandro foi o das
confissões forçadas, ou seja, a obtenção de declarações incriminatórias mediante coação física
ou psicológica. As confissões forçadas são consideradas ilegais e inadmissíveis como prova em
um processo judicial, pois violam os direitos humanos e comprometem a credibilidade das
informações obtidas. No caso Evandro, as confissões forçadas foram praticadas tanto pela
polícia quanto pelo Ministério Público contra os acusados do crime.

Um exemplo de confissão forçada no caso Evandro foi o depoimento de Celina Abagge, mãe de
Beatriz e também acusada de participar do ritual satânico. Celina foi torturada fisicamente e
psicologicamente por policiais e promotores durante vários dias até confessar sua participação
no crime. Celina foi submetida a choques elétricos, afogamentos, espancamentos, ameaças de
morte e estupro, entre outras formas de violência. Sua confissão foi gravada em vídeo e usada
como prova contra ela e os demais acusados. Posteriormente, Celina negou sua confissão e
denunciou as torturas que sofreu.

Um desses aspectos é o preconceito contra as práticas religiosas afro-brasileiras, como a


umbanda e o candomblé, que foram associadas ao suposto sacrifício de Evandro e outras
crianças. Os acusados do crime eram pais e mães de santo que frequentavam um terreiro em
Guaratuba, cidade onde ocorreu o caso. Eles foram alvo de uma campanha difamatória
liderada por um primo da vítima, Diógenes Caetano dos Santos Filho, que se apresentava como
investigador particular e tinha acesso privilegiado à imprensa local. Diógenes divulgou um
dossiê com fotos e documentos que supostamente comprovavam a participação dos acusados
no crime. No entanto, muitas dessas provas eram falsas ou forjadas, como se descobriu
posteriormente.

Outro aspecto psicológico relevante é o estereótipo de que as mulheres são mais propensas a
praticar bruxaria ou feitiçaria do que os homens. Esse estereótipo tem origem histórica e
cultural, e pode ter contribuído para que as principais acusadas do caso fossem Celina Abagge,
então primeira-dama de Guaratuba, e sua filha Beatriz Abagge. Elas foram apontadas como as
líderes do suposto ritual satânico que teria matado Evandro. Além disso, elas foram submetidas
a torturas físicas e psicológicas para confessarem o crime, o que evidencia uma violência de
gênero por parte dos agentes do Estado.
Por fim, outro aspecto psicológico que permeou o caso Evandro foi o efeito da mídia na
formação do julgamento social e jurídico sobre o caso. A mídia teve um papel fundamental na
divulgação das acusações contra os pais e mães de santo, na criação de uma atmosfera de
medo e pânico na população, na pressão sobre as autoridades para solucionarem o caso
rapidamente e na influência sobre os jurados que condenaram os acusados. A mídia também
foi responsável por omitir ou distorcer informações que poderiam favorecer a defesa dos
acusados, como as evidências de tortura, as contradições nas confissões e as falhas nas provas
periciais.

Portanto, pode-se concluir que o caso Evandro foi permeado por diversos aspectos psicológicos
que afetaram as testemunhas, os acusados, os investigadores, os juízes, os jurados e a
sociedade em geral. Esses aspectos podem ter interferido na busca pela verdade e pela justiça
sobre o que realmente aconteceu com Evandro e quem foram os responsáveis por sua morte.

Os aspectos jurídicos do caso podem ser analisados sob diferentes perspectivas, como o direito
penal, o direito constitucional, o direito internacional e o direito humanitário. Alguns dos
principais pontos a serem considerados são:

- A violação do princípio da presunção de inocência, que estabelece que ninguém pode ser
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. No caso
Evandro, os acusados foram expostos à opinião pública como culpados antes mesmo de serem
julgados, sofrendo linchamento moral e físico pela população e pela imprensa.

- A violação do direito à ampla defesa e ao contraditório, que assegura aos acusados o direito
de se defenderem das acusações, apresentando provas e testemunhas favoráveis, tendo acesso
aos autos do processo e sendo assistidos por advogados. No caso Evandro, os acusados foram
impedidos de exercer esses direitos em diversas ocasiões, como quando foram presos
preventivamente sem fundamentação legal, quando foram interrogados sem a presença de
advogados ou sob tortura, quando tiveram provas e testemunhas desconsideradas ou
desqualificadas pelo juiz e pelo Ministério Público e quando foram submetidos a um júri
popular parcial e influenciado pela mídia.

- A violação do princípio da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da


República Federativa do Brasil e que implica no respeito à integridade física, psíquica e moral
dos indivíduos. No caso Evandro, os acusados foram submetidos a tratamentos cruéis,
desumanos e degradantes, como tortura física e psicológica, humilhação pública, ameaças de
morte e violência sexual. Além disso, os acusados foram vítimas de discriminação religiosa por
serem adeptos ou simpatizantes do espiritismo kardecista ou da umbanda.

Um dos pontos mais questionáveis do caso Evandro é a ausência de provas materiais e


testemunhais que comprovassem a participação dos acusados no crime. Apesar da
complexidade e da gravidade das acusações, a polícia e o Ministério Público não apresentaram
nenhum vestígio físico que ligasse os réus ao local do crime ou ao corpo da vítima. Não foram
encontrados sinais de sangue, cabelos, impressões digitais ou qualquer outro elemento que
pudesse indicar a autoria ou a coautoria do crime.

Outro aspecto jurídico grave do caso Evandro é a utilização de confissões obtidas sob tortura e
coação como elementos de convicção. Os réus foram submetidos a diversos tipos de violência
física e psicológica durante as investigações, como choques elétricos, afogamentos,
espancamentos, etc.
Do ponto de vista social, o caso Evandro expôs as tensões e preconceitos existentes na
sociedade brasileira, especialmente em relação à religião, à classe social e à política. O caso
gerou uma onda de pânico moral e de perseguição às religiões afro-brasileiras, que foram
associadas à prática de sacrifícios humanos. O caso também evidenciou a influência de grupos
políticos e econômicos na manipulação dos fatos e na criação de narrativas para atender aos
seus interesses. O caso Evandro ainda desperta interesse e debate na sociedade brasileira,
sendo objeto de livros, documentários e podcasts que buscam esclarecer os mistérios e as
contradições desse caso emblemático.

A Psicologia Jurídica teve um papel fundamental para analisar as circunstâncias do


desaparecimento e morte de uma criança de seis anos, supostamente vítima de um ritual
macabro envolvendo sete acusados, entre eles a esposa e a filha do então prefeito de
Guaratuba. A Psicologia Jurídica contribuiu para avaliar as condições psicológicas dos
acusados, das testemunhas e dos familiares da vítima, bem como para questionar a validade
das confissões obtidas sob tortura pela polícia. Além disso, a Psicologia Jurídica auxiliou na
compreensão dos aspectos sociais, culturais e religiosos que influenciaram na construção do
caso e na repercussão midiática do mesmo.

A ética, a ciência e a justiça são valores fundamentais para a solução de casos como o de
Evandro, pois garantem o respeito aos direitos humanos, o rigor metodológico e a
imparcialidade na busca pela verdade. A Psicologia Jurídica, como uma ciência comprometida
com a ética e a justiça, deve atuar de forma crítica e reflexiva, buscando contribuir para o
esclarecimento dos fatos e para a promoção da cidadania e da dignidade das pessoas
envolvidas em situações jurídicas.

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