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I) Médicos e psicólogos estão fazendo experimentos com seres humanos com o objetivo de

obter controle e domínio “inimagináveis” sobre os processos psicológicos humanos.


Demonstre os riscos éticos que tal perspectiva aponta.
A ciência está sempre buscando evoluir, e para isso, muitas vezes, é necessário se
colocar em prática o que é visto na teoria para que seja comprovado determinadas hipóteses, a
fim de se obter respostas concretas no estudo. Porém, todo experimento que envolve outro ser
vivo, seja ele humano ou não, é envolto por muitos questionamentos éticos, principalmente
relacionados a até que ponto é aceitável colocar outro ser em risco visando um suposto
benefício futuro de outros. Essas implicações são o campo de estudo da Bioética. Ela se
utiliza da Filosofia, Teologia e Antropologia para oferecer certos parâmetros para os cientistas
e a sociedade julgarem certas questões que envolvam seres vivos e sua participação de forma
polêmica na medicina ou biologia (PUGINA, 2013).
No caso do que ocorre no filme “O ovo da serpente”, é possível concluir que não há
quase nenhuma preocupação por parte dos cientistas em relação às questões (anti)éticas que
permeiam suas práticas. Os únicos momentos que eles parecem minimamente se
preocuparem, é se as pessoas irão participar por livre e espontânea vontade, mediante algum
incentivo, é claro, pois muito provavelmente os resultados observados não seriam os mesmos
em indivíduos que fossem obrigados a participar. Ou seja, nem mesmo nesse quesito a
preocupação parece estar relacionada realmente com impasses éticos enfrentados pelos
médicos, e sim escolhas feitas em prol dos experimentos para que fossem os mais fiéis
possíveis.
E aqui cabe discutir um ponto percebido em relação a essa questão. As pessoas que
eram escolhidas para participarem dos experimentos, ao menos a grande parte, era pobre,
estava vulnerável, e isso foi essencial para que elas aceitassem participar em troca de tão
pouco, como algum dinheiro ou comida, como citado pelo personagem médico no filme.
Atualmente esse ainda é um ponto polêmico, pois não são todos os países que proíbem pagar
pessoas para participarem de experimentos. Apesar de hoje ser muito mais seguro, a questão
ainda é a mesma: é ético recompensar alguém por estar colocando sua vida em risco, seja qual
for este risco?
Uma reportagem da BBC NEWS (2019) mostrou a realidade de muitos imigrantes e
pessoas de baixa renda dos Estados Unidos que se submetem a inúmeros experimentos em
clínicas para conseguirem pagar despesas básicas, sem se importarem com os riscos, e até sem
serem informados deles. Uma das mulheres que deu entrevista para o jornal, falou que é um
tipo de trabalho muito rentável e não demonstra se arrepender: “Talvez quando estiver à beira
da morte, lamente ter colocado minha saúde em risco para ganhar US$ 6 mil em 15 dias. Mas
onde você ganha tanto dinheiro em tão pouco tempo em Miami?”. Ela também relatou ter
chegado a participar de 1 experimento por mês.
Já no Brasil, essa é uma realidade completamente diferente, pois quem for voluntário
em pesquisas estará ciente que não receberá nenhum tipo de remuneração. Ao mesmo tempo
que esse tipo de proibição pode diminuir a rapidez de avanços científicos, também parece ser
mais consciente no que se refere a deixar as pessoas realmente livres para decidirem se
querem contribuir para a ciência, colocando-se em risco, pois nenhum tipo de incentivo é
dado, apenas a sua própria consciência, de que estará contribuindo de alguma forma para a
sociedade.
E a questão ética principal do filme está relacionada com os dois pontos citados
anteriormente: oferecer dinheiro, comida, ou qualquer outra coisa para que alguém participe
de um experimento, e dessa forma, ponha sua vida em risco, sem ter a dimensão disso, e
justificar tal ato com os possíveis benefícios que os resultados dos estudos trarão, é de
verdade justificável? Os estudos atuais de bioética, a nossa forma de pensar, cultura e
contexto atuais nos indica que não, que nenhuma vida humana perdida pode ser justificada,
muito menos de forma assistida e premeditada. Os experimentos com humanos de hoje são
altamente controlados, com regras a serem seguidas, e rigorosos critérios de segurança que
tem de ser tomados antes de serem realizados. Isso porque independentemente de uma
pesquisa experimental estar utilizando pessoas que se voluntariaram, sendo pagas ou não,
princípios básicos, direitos humanos, devem ser seguidos. Há limites na ciência.
Entretanto, o contexto e as ideias que o médico mostrou ter no filme revelou ser bem
diferente do atual. Ele acreditava que os seres humanos deveriam se sacrificar, que essa era a
forma de se desenvolver a ciência, e que isso iria continuar sendo seguido. E esse pensamento
pode ser entendido pelo período de guerra ao qual eles tinham acabado de passar, as
consequências dela e os conflitos que ainda os circundavam. Avanços científicos,
principalmente no campo psicológico, de controle, era de vital importância para
possivelmente ganhar do inimigo se utilizando desses conhecimentos, e como o tempo era
limitado, tudo que pudesse acelerar essas descobertas cientificas eram vistos como
justificáveis em prol de um bem maior.
Agora, por fim, a questão que fica é: e utilizar os achados científicos descobertos no
passado com base em experimentos antiéticos, é ético? A pesquisa já ocorreu, a transgressão
também, as pessoas participantes não estão mais vivas, e aquele conhecimento pode ajudar
outros, então nesse sentido torna-se permitido? Essa não é uma questão também fácil, não
possui uma única resposta. Alguns acham que sim, pois pelo menos algo de bom seria tirado
de uma ação sem escrúpulos, mas já outros acham que usar essas informações seria dizer que
as pessoas que mataram ou torturaram aquelas “cobaias” estavam certas, pois seus esforços
foram necessários para que outros fossem beneficiados. Então, é uma discussão mais delicada
e profunda do que parece e, realmente, merece ser pauta de discussões dentro e fora do âmbito
acadêmico.
II) Demonstre a atualidade dessa discussão nos dias de hoje, especialmente em um país como
o Brasil onde um ambiente de crise econômica e barbárie social parece estar favorecendo a
ascensão do ideário neofacista. Como uma psicologia social crítica pode se posicionar diante
desse quadro?
Primeiramente, é importante destacar, embora pareça óbvio, que a ciência não está
isolada da sociedade e, portanto, sofre influências políticas, econômicas, ideológicas e étnicas.
Em um apanhado histórico sobre os experimentos científicos em humanos, é pertinente
relembrar em que contexto surgiram as primeiras práticas e como o passado pode servir de
palco para atuações semelhantes no presente.
Os primeiros experimentos foram feitos por médicos alemães liderados por Josef
Mengele, em prisioneiros nos campos de concentração durante o regime nazista. Esse é o
maior exemplo do século XXI em que os interesses da “sociedade” foram mais valiosos do
que os individuais, pois o sujeito não ariano não tinha voz ou vez. Embora tenha-se falado na
Prússia, em 1900, sobre a regulamentação de pesquisa em seres humanos, o Código de
Nuremberg, reescrito pelo Tribunal de Nuremberg em 1947, descreve tópicos como “o
consentimento voluntário dos sujeitos humanos é absolutamente necessário”, ou seja, a
descoberta das atrocidades na Alemanha nazista, promoveu um debate sobre a desumanização
em vários níveis em nome da manutenção de um país “limpo” de quaisquer ameaça, mas não
deixa claro como esse consentimento seria obtido.
Sobre isso, depreende-se que o governo brasileiro atual, com seu viés autoritário na
sociedade, em meio a uma forte polarização política, converge ao deixar subentendido como
suas ações se darão, deixando perceptível que na verdade a “melhoria” virá por vias de
exclusão e extermínio das vidas marginalizadas. Muitas vezes as ações nocivas são
claramente informadas, inclusive ao se analisar um governante brasileiro que se assemelha ao
líder nazista no modo de se vestir até o tipo de ideologia defendido por ele. Além disso, a
descrença nos rumos da pólis, as perspectivas de vida quase nulas, aliado a outros fatores,
transformam-se em terreno fértil e fomentam o surgimento de uma figura de liderança cuja
promessa baseia-se em “tirar o país do caos e restaurar a ordem e o orgulho à pátria”, discurso
esse que se repete nos moldes do que foi usado na Alemanha nazista.
A obra O ovo da serpente significa a gestação do processo de ascensão do nazismo,
em que ela praticamente “grita” em seu desenrolar ficcional ao tentar alertar às novas
gerações como foi e é previsível a instauração de modelos populistas autoritários. Outrossim,
alerta para os discursos que se mostram redentores, mas que são em essência pobres de
conteúdos e, muitas vezes, não passam de frases bem elaboradas por assistentes, ou seja, a
psicologia ser crítica no contexto sociopolítico atual é de suma importância para entender que
as práticas do passado apenas adormecem esperando o momento certo para serem colocadas
em prática. Sobre isso, Botomé (2010) ressalta a importância de examinar os determinantes
sociais, políticos e econômicos para entender como e a quem os psicólogos servem de fato,
pois é verídico que a profissão exerce influência social no que fazem, nos métodos que
utilizam e no público que atendem.
Yamamoto (2010), ao citar Vasconcelos (1997) em seu texto, chama atenção para a
importância de uma “nova república”, visto que ela cria condições para que haja modificações
nas políticas sociais do governo. Com isso, haveria espaço para discutir e até mesmo assumir
o discurso de resgate da dívida social, revelando, assim, a importância de várias áreas da
saúde passar a debater mais sobre os percursos feitos pela saúde no país para que seja
desenvolvido uma articulação entre política e sociedade, visando uma melhor qualidade de
vida. Nesse ponto, pode-se refletir acerca do papel do psicólogo social, estando ele imerso em
um Brasil que no contexto atual em muito se assemelha às práticas segregacionistas e
desumanas em nome de um “bem maior comum a todos”.
Por isso, pensar sobre práticas sociais em uma sociedade cada vez mais bombardeada
por ideais neofascistas é um trabalho dobrado para o profissional que lida com problemáticas
de base como o desmonte de políticas públicas. Para isso, é fundamental que o psicólogo
amplie sua visão acerca dos métodos utilizados e as consequências de seu posicionamento
político, pois é algo que afeta uma parcela significativa da sociedade.
Além disso, é importante compreender que os processos básicos do ser humano estão
diretamente ligados a forma como ele enxerga o mundo à sua volta. Um exemplo disso é a
linguagem, que é um dos processos básicos da psicologia que necessita de dois sistemas
principais que são o significante e significado que possibilita o papel linguístico e semântico
da fala. Com isso, esse processo psicológico básico tem a capacidade de, além de receber e
interpretar, exprimir mensagens ao ambiente, podendo ser trocadas e desenvolvidas
informações a partir do contato com o meio e outros indivíduos. Portanto, a forma e o
contexto político-social em que esses processos são desenvolvidos, colaboram para quais
significados os discursos terão na vida do sujeito e como ele vai lidar com questões sociais a
partir disso.
Nesse sentido, é de extrema urgência pensar numa atuação que conjugue um
posicionamento político mais crítico por parte dos psicólogos, com novos referenciais teóricos
e técnicos que podem ou não partir dos já consolidados, mas que necessariamente,
precisariam ultrapassá-los, mesmo sendo esse um grande desafio para a profissão no campo
das políticas sociais em geral (YAMAMOTO, 2010).

REFERÊNCIAS

BBC NEWS. 'Vendi sangue para sobreviver nos EUA'. 2019. Disponível em:


https://www.bbc.com/portuguese/geral-49149859. Acesso em: 09 mar. 2020.

BOTOMÉ, Silvio Paulo. A quem nós, psicólogos, servimos de fato? In: YAMAMOTO,
Oswaldo Hajime; COSTA, Ana Ludmila Freire. Escritos sobre a profissão de psicólogo no
Brasil. Natal: Edufrn, 2010. Cap. 9. p. 171-203.

PUGINA, Lauany. BIOÉTICA E PESQUISAS EM SERES HUMANOS. 2013. Disponível


em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/2011/biologia/
artigos/bioetica_humanos.pdf. Acesso em: 09 mar. 2020.

Yamamoto, O. H. & Oliveira, I. F. Política social e Psicologia: uma trajetória de 25 anos.


Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26, 9-24. 2010

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