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Antologia – Pedro Marques

Abril de 2022
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AVENIDA DA SAUDADE

Não esqueço das moças,


das velhas árvores,
dos jardins do orquidário
da Saudade

As calçadas estreitas,
a rua de paralelepípedo,
os muros bêbados que trombei
da Saudade

Quanto ouvir pairando


todas as músicas
Quanto tocar as cordas
no porão
da Saudade

Dava pra ver os morros,


as flores do cemitério,
o choro do velório
da Saudade

Tinha trabalho, escola,


rotina de folhas secas
em voos nas madrugadas
da saudade

[Poesia: Pedro Marques. Clusters. Prefácio Ledo Ivo. Posfácio Caio Gagliardi. Cotia, SP: Ateliê Editorial,
2010.]

[Poema com melodia de Rodrigo Duarte: Rodrigo Duarte. Vias de Encontro. Campinas, SP/São Paulo:
PROAC, 2014. Online: https://soundcloud.com/rodrigo-duarte-compositor/avenida-da-saudade ]
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PALHAÇADA

Vi o palhaço de mo-
Lá no farol da Paulista
Tinha na mão a chupe-
Tava chorando na pista

Um suspensório, um sapa-
Todo molambo em folia
Gente de terno ou vesti-
Do riso falso saia

Quem percebia o mala-


Com maquiagem de fome
Nem esperava a pia-
Dava moeda pro homem

Era um mendigo beiço-


Lá no farol da Paulista
Tinha no olho a gorje-
Tava chorando na pista

Um suspensório, um sapa-
Todo bobão de anemia
Gente de terno ou vesti-
Do cambaleio sorria

[Letra para melodia de Nenê Baterista: Juliana Amaral. SM, XLS. São Paulo; Selo Sesc, 2012. Online:
https://www.youtube.com/watch?v=82aPAthF53M ]
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A loção salta do vidro francês


made in Algeria,
bate o bigode americano
made in Mexico,
rebate o espelho indiano,
a limpeza ricocheteando
o porcelanato italiano
até pousar no travesseiro
de gansos do Rio Danúbio
o crânio de um Prêmio Nobel

Esse locus amoenus flutua ao som de Mozart

Cruzeiro, resort ou mansão


habitados por gigantes da grana,
limpos por escravos de Governador Valadares
que choram para as mães
em smartphones da Malásia

Basta o casal cruzar o meu caminho,


para os corpos jogarem fogo ao gelo

A mão que vinha audaz não fala mais


e uma língua se esconde noutra boca

Eu sou Jesus Carlitos retornável

Pois não: dou de louquinho e passo reto,


refugiado que sou do global market

Diz bem quem diz que beijo faz milagre,


para mim, é espantalho de mendigo

[Poesia e música: Pedro Marques. Cena Absurdo. Música Gustavo Bonin, Juliana Amaral e Micael
Antunes. Posfácio Luís Fernando Prado Telles. Cotia, SP/São Paulo: Ateliê Editorial/Estúdio Risco,
2016. Online: http://cenaabsurdo.com.br/cluster04/ ]
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TEMPO BOM

A chuva chegando
pra renovar o ar seco...
Mas tem gente reclamando:
“Pra chover inda é cedo!”

O sol lindo, inda que fustigante,


pra amadurecer o fruto...
Mas tem gente chiando:
“O calor vai acabar com tudo!”

Qual tempo é bom?


Um tempo pra renovar
de tudo simples um mesmo belo tom...

E o sol vai castigar,


e vai chover bastante,
e o céu nunca vai nos contentar...

[Canção com melodia de Só Pedro: Sá Pedro. Outro. Florianópolis: Calamar Sounds, 2019. Online:
https://www.youtube.com/watch?v=oTAIlkHATAI ]
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CATINGA DE RODA

CATIRADO POETA BARRASCOSO COM O CAIPIRAÇO. NERVO DIDÁTICO CONTRA A FOSSA QUE
DESGOVERNA.

Pedrinho Marques & Fabião Casemiro

1.
Mano Fábio Casemiro,
se aprochega pro dueto,
limpa a caixa de catarro,
toca a pinga no panfleto.
Nosso céu já tá fedido,
nosso mar ficando preto,
e o bosteiro, sem vergonha,
canta agora no coreto.

2.
No coreto sobra espaço,
cabe até mais um bocudo,
obrigado, Mano Pedro,
tamo junto em trova e tudo.
Mais que pinga, é estricnina
pra pegar na familícia,
tem catarro que dê conta
dessa podre de imundiça?

3.
É famélica família,
pasta tudo que fareja,
do capim até o cartão,
rapa o dízimo da igreja.
Não tivesse a fuça branca
do coxinha tipo Veja,
nego entrava bem na cana
ou se dava mal no EJA.

4.
Os danado lascrifento,
tudo tísico e burbônico,
uma renca de salafra,
num tem um que seja idôneo.
Verminose da natura,
erva braba, tiririca,
não tem quem vale o que come,
são uns bando de lazica.
(...)

[Poesia com melodia de tradicional: Pedro Marques. Encurralada: converso pra boi mugir. Desenhos de
Carol Betioli. Um dueto com Fábio Martinelli Casemiro. São Paulo: Editacuja, 2020. Online:
https://www.encurralada.com.br/ ]
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LOOPING LÚMPEN

Pero de Magalhães Gandavo (1540-1580), “Dos costumes da terra”, Tratado da terra do Brasil
(1570)

As pessoas que no Brasil querem viver e fazer dinheiro,


por pobres que cheguem,
rapidinho têm remédio para sua sustentação,
basta alcançar dois pares ou meia dúzia de escravos,
que bem pode custar um por outro até um salário mínimo

Porque uns lhe pescam e caçam,


outros lhe fazem mantimentos e fazenda,
uns lambem sua casa, cama e cambanje,
outros lavam seu filho infante e seu pai demente,
e assim pouco a pouco enriquece o homem
e vive honradamente nesta terra com mais descanso e ar condicionado

Os moradores destas Capitanias tratam-se muito bem


e são mais largos que a gente de Portugal,
assim no comer como no vestir de seus condôminos,
e folgam de ajudar uns aos outros
e praticar a responsabilidade social com seus administrados,
e favorecer a brancura
que vem desfrutar este Éden Terreal

[Poesia: Pedro Marques. Saques & Sacanagens: ensaio sobre as dores brasis. Desenhos Paulo Ito. São Paulo:
Editacuja, 2021.]
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CANÇÃO DO NÉ SONG OF AIN'T

Higino Tuyuka (1955-), “Depoimento ao Higino Tuyuka (1955-), “Testimonial to


Brasil”, Referencial curricular nacional para Brazil”, National curriculum framework for
escolas indígenas (1998) indigenous schools (1998)

Mas houve escola de repente, But let there be school,


eu, água nova, me, greenhorn,
ingênuo, entrando pelo cano, né? naive, getting into deep water, ain't it?

Pesquei de longe um lindo livro, I glimpsed a lovely book from afar,


primeira série, first grade:
o mundo cabe numa fila, né? the world in a string, ain't it?

O cheiro branco do uniforme, white smell of uniform,


o colarinho, collar,
a meia e o sapatinho preto, né? socks and black shoes, ain't it?

A sensação de quem bebesse, A vibe such as sipping,


o entusiasmo, enthusiasm,
vem uma série depois da outra, né? grade after another, ain't it?

E a Geografia colorida, And colorful geography,


as plantações, crops,
marés de soja, cana e algodão, né? tides of soy, sugarcane and cotton, ain't it?

Tratores e tratantes da vida, Tractors and tricksters of life,


havia elite, there was elite,
contrato social e ilusão, né? social contract and delusion, ain't it?

Na aldeia a gente punha fé, We had hope in the village,


oitava série, eighth grade,
promessa de um futuro certo, né? oath of a sunny future, ain't it?

Ninguém dizia o fim da história, Nobody claimed the end of the story,
os gafanhotos the grasshoppers
comendo a terra e o rio de ouro, né? chewing land and golden river, ain't it?

A bíblia salva o pregador The holy book saves the preacher


que, feito a peste, who, like the plague,
espalha a culpa de eu ser quem sou, né? scatters my selfhood blame, ain't it?

Eu creio é na escola-maloca, I trust the wigwam-school,


que não germina which doesn't shoot
na gente a fome do consumo, né? in us the crave for shopping, ain't it?

Criar o peixe na medida, Nourish the fish perfectly,


sem predação, without preying,
senão o latifúndio come, né? or else the latifundio devours it, right?
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[Poesia: Pedro Marques. Saques & Sacanagens: ensaio sobre as dores brasis. Desenhos Paulo Ito. São Paulo:
Editacuja, 2021.]

[Audiovisual: Canção no Né. Texto em português Pedro Marques. Texto em inglês Kevin Kraus.
Arranjo sonoro Micael Antunes. Arranjo visual Guilherme Zanchetta. Vozes Ariane Aparecida, Ber
Neves e Stella Rea. ORFIA - Laboratório de Transmutação Visual. Juíz de Fora, MG: Instituto de Artes
e Design – Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), 2021. Online:
http://https//www.orfia.org/4rs-30n-
6?fbclid=IwAR0HUpAgr6Ucr_Ifom_MbasfXRi1D1LWejMiz0rMps4ZpiRu-ckh1p5x3IA ]
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TROVAR PUNK

1.
Punhetinha quando nasce,
se esparrama pela mão;
poetinha quando grita,
faz trovão no cuecão.

3.
A minha gente fodida
amarelou-se na dor,
pra ver o Temer passar
votando coisas de horror.

5.
Caminhando e cagando
e assistindo o Faustão,
somos todos boçais
empre(gados) ou não.

7.
Yeah, eu quero ficar bem!
Quero que o MDB
assegure o Sol pra todos,
pra mim Bolsa LSD.

12.
Eu não troco o Aecinho
noiadinho de por pó,
pruma boca na cidade
nem que cheire a bangaló.

14.
Desgraça pouca é bobagem
– aids, pop, repressão –
e o empalamento só engrossa
– Temer, PEC, mensalão.

21.
O escorpião sem ferrão,
o punk sem atitude,
o poeta sem cortante:
eis o mundo com saúde.

22.
De laranja fala o Maia,
de limão fala o Itaú,
do que a terra, mais garrida,
fala um falo em cada cu.

[Poesia: Pedro Marques. Assbook. Prefácio João Adolfo Hansen. São Paulo: Editacuja, 2022. ]
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MÃO DE FLOR

Para o Pa. Júlio Lancellotti

Dá tua mão, irmão,


toma o café,
se essa rua fosse minha,
eu tirava o frio do chão

Dá tua mão, irmão,


come na fé,
se essa Lua fosse minha,
repartia toda em pão

Seja o pai, seja a mãe,


seja um filho a chorar,
não calo, nem jamais hão de me calar!
Salve o Pai! Salve a Mãe!
Salve o Filho a nos guardar!...

Água mole no mendigo


pedra dura em seu colchão,
tanto bate no ferido
quanto fere o sem-paixão

Teu sermão de pedra luta


contra a lei do genocida,
tua mão de flor labuta
pela gente desvalida

[Canção. Martina Marana. Você Caiu. Campinas, SP/São Paulo: PROAC, 2022. Online:
https://www.youtube.com/watch?v=pmNbPap2MTM ]

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