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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA

CENTRO DE ARTES – CEART


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO – PPGT

Cristian Naissinger Lampert

A CORALIDADE COMO PRINCÍPIO DE CRIAÇÃO CÊNICA:


NOTAS PARA UMA DISCUSSÃO

FLORIANÓPOLIS
2021
CRISTIAN NAISSINGER LAMPERT

A CORALIDADE COMO PRINCÍPIO DE CRIAÇÃO CÊNICA:


NOTAS PARA UMA DISCUSSÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Teatro da Universidade do Estado
de Santa Catarina na linha de pesquisa Teatro,
sociedade e criação cênica, como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre em Teatro.
Orientador: Prof. Dr. Edélcio Mostaço

FLORIANÓPOLIS
2021
CRISTIAN NAISSINGER LAMPERT

A CORALIDADE COMO PRINCÍPIO DE CRIAÇÃO CÊNICA: NOTAS PARA UMA


DISCUSSÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Teatro da Universidade do Estado
de Santa Catarina na linha de pesquisa Teatro,
sociedade e criação cênica, como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre em Teatro.

BANCA EXAMINADORA

Professor Doutor Edélcio Mostaço


Universidade do Estado de Santa Catarina

Membros:

Professor Doutor Stephan Arnulf Baumgärtel


Universidade do Estado de Santa Catarina

Professor Doutor Marcus Vinicius Borja de Almeida Filho


Université Paris Sciences & Lettres

Florianópolis, 31 de março de 2021


A meus pares: jovens estudantes de encenação
inexperientes e ignorantes.
AGRADECIMENTOS

Muitas são as condições necessárias para que uma coisa qualquer aconteça. Muitas são
as pessoas que, num processo de pesquisa, cruzam nosso caminho e reorganizam ou
bagunçam de vez nosso pensar ou — tão ou mais importante, especialmente numa pesquisa
sobre arte — nosso sentir. A interdependência sustenta a existência e não sou exceção à regra.
Este texto é a primeira parada de uma jornada de pesquisa e aprendizado que teve muitas
peças fundamentais, portanto agradeço:
A meus antepassados, condições necessárias para minha existência nesse mundo. A
meus pais, que me apoiaram materialmente quando foi preciso, que me apoiaram
afetivamente sempre. Sou muito grato.
À CAPES, que com dinheiro público financiou um ano e dois meses dessa pesquisa.
Embora as bolsas de pesquisa sejam quase que totalmente para a subsistência, e quem mora
longe da família em uma capital sabe do que estou falando, também as viagens que fiz e os
materiais bibliográficos que adquiri dificilmente seriam financiados de outra maneira.
A meu orientador, Edélcio Mostaço, pela paciência infinita e por me inspirar
simplesmente por sua existência. Por seu vasto conhecimento e generosidade. Por reconhecer
em mim o que eu ainda não reconhecia. Sou grato por esse encontro.
A Inajá Neckel, que deu o pontapé inicial e dois ou três empurrões nessa jornada. Teu
ruah é poderoso.
A Marcus Vinícius Borja, pela tradução do texto de Triau, sem a qual essa pesquisa
talvez não existisse. Por seu grandioso trabalho. Pela oficina que ministrou em Brasília, pela
disponibilidade para a conversa e pelo compartilhamento de referências. Pela tese tanto tempo
caçada e enviada por email. Pelas críticas e sugestões na banca de qualificação.
A Marcelo Lazzaratto pelas entrevistas, pela oficina e pela dedicação de uma vida ao
Campo de Visão, que tanto tem a nos ensinar.
A Rogério Tarifa, pelos espetáculos fortes e tocantes. Por sua provocação coral, social,
política, artística, enfim, sensível.
A Lidia Olinto, pela parceria, pelas portas abertas e pelas contribuições preciosas na
banca de qualificação. Pelas discussões ao longo de anos, continuadas em algumas das coisas
escritas aqui. Por ter sido família. E nisso agradeço também a Flávio Campos e Ananda.
A Stephan Baumgärtel, pela indicação do espetáculo de Tarifa. Pelas repetidas
provocações em qualquer lugar que nos encontrássemos. Pelas provocações na banca de
qualificação. Por ser uma provocação.
A Flávio Desgranges, pela dedicação ao encontro sensível. Pelas contribuições na
banca de qualificação. Pelo exemplo de refinamento na condução de suas aulas.
A Tereza Franzoni e Luciana Lyra, pelo pensamento sobre a escrita.
A Fabio Cordeiro, pela disponibilidade e pelo extenso trabalho realizado sobre as
formas corais.
A Walmick de Holanda, pela disponibilidade e partilha de seu trabalho.
A Jardel Rocha, pelo suporte emocional, pela sensibilidade e ajudas com material. Por
ser um artista que inspira.
A Emanuel Lavor, por sua fantástica existência e tudo o que ela me propicia.
A Luciana Sousa Martins, pela casa numa semana crítica, pelas considerações sobre os
textos e o processo de pesquisa.
A Alex Ribeiro e Antônio Roberto Gerin, pela parceria, trabalho e leituras. A Alex,
pelos ouvidos.
A Angela Städler, Graciane Pires, e Yuri Fidelis pela leitura. Aos últimos pelas
discussões em longos áudios de whatsapp.
A Almir Ribeiro, pela inspiração.
Às professoras e professores do curso de Artes Cênicas da UFSM, especialmente os
grandes mestres Adriana Dal Forno, Mariane Magno, Paulo Márcio, Daniel Plá e Maria
Beatriz Pippi Quintanilha. A Silvana Baggio Ávila e Cândice Lorenzoni, que me acolheram
em sua sala de ensaio, que permaneceu nossa por muito tempo. Vocês me constituem.
A Maurício Schneider, pelas discussões. Por ser exemplo da arte da ênfase.
A Amanda Carneiro, salvadora na dificuldade. E com ela Karine Rossi e Hiago
Mendes.
A Aline Lauermann e Melaine Pilatto, Principessa, pelo café, brigadeiro, tantos
almoços e apoio mútuo.
A Humberto Böck, companheiro de casa, amigo, ouvido, por ser.
A Mateus Scota e Laís Jacques, pela alegria de muitos dias.
A cada uma das capivaras: Aline, Anita, Bruno, Carol, Dani, Fabrício, Fernanda, Lais,
Marco, Marcos, Rafael, Rodolfo, Sarah, uma rede de apoio e afeto sem tamanho.
Aos companheiros do novo e rebelde grupo de estudos sobre coralidade, por serem
companhia e provovação. Especialmente a Chico Lima, que compartilhou o desejo do
encontro coletivo e que também foi leitor de alguns trechos nos momentos finais do processo.
Às amigas e amigos que não tiveram os nomes escritos aqui.
A você que lê este trabalho. Que nos sirva.
O justo meio está na igual possibilidade dos extremos.
François Jullien
RESUMO

Este trabalho consiste numa investigação acerca da coralidade como princípio norteador das
práticas de criação de artistas teatrais, especialmente na atuação e na encenação. A reflexão se
apoia em uma breve investigação sobre o coro, em uma revisão de literatura sobre coralidade
e em imagens conceituais, propostas para pensar a coralidade sob diferentes pontos de vista.
A partir do diálogo das imagens conceituais e da produção revista sobre a coralidade, serão
analisados dois casos: um em que a coralidade atua como princípio de criação de material
para a cena: o exercício “Campo de Visão” praticado na Cia Elevador de Teatro Panorâmico,
e outro em que atua como princípio de criação da escritura cênica, nos espetáculos dirigidos
por Rogério Tarifa na Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo.

Palavras-chave: Coralidade. Coro. Encenação. Processo criativo


ABSTRACT

This work consists of an investigation about chorality as a guiding principle for the creation
practices of theater artists, especially in acting and staging. The reflection is supported by a
brief investigation of the chorus, a review of the literature on chorality and conceptual images
proposed for thinking about chorality from different points of view. Based on the dialogue
between conceptual images and the revised production on chorality, two cases will be
analyzed: one in which chorality acts as a principle for creating material for the scene: the
“Field of Vision” exercise practiced at Cia Elevador de Teatro Panorâmico, and another in
which it acts as a principle for creation of stage writing: in the productions directed by
Rogério Tarifa at the School of Dramatic Art (EAD - Escola de Arte Dramática) of the
University of São Paulo.

Keywords: Chorality. Chorus. Staging. Creative process.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Iconostácio da Catedral Metropolitana Ortodoxa de São Paulo. .......................... 105


Figura 2 – Fotografia panorâmica da Igreja Sagrada Família, na cidade de Santo Ângelo/RS
................................................................................................................................................ 105
Figura 3 – O coro em sua arquibancada antes da entrada de Bérenger. ................................. 129
Figura 4 –Bérenger, Jean e o coro ao fundo. ......................................................................... 130
Figura 5 – Fui eu que matei? .................................................................................................. 132
Figura 6 – Solo do coach ........................................................................................................ 133
Figura 7 – Solo de um trabalhador que precisa respirar ........................................................ 134
Figura 8 – Solo de um coração ferido.................................................................................... 135
Figura 9 – Solo da última mulher do mundo ......................................................................... 136
Figura 10 – Eu acordei e era hoje .......................................................................................... 137
Figura 11 – Imagem inicial do Inútil canto ............................................................................ 142
Figura 12 – Início do canto .................................................................................................... 144
Figura 13 – O palco visto de cima. ........................................................................................ 144
Figura 14 – Júlio Silvério em destaque .................................................................................. 145
Figura 15 – Salmodia de Lilian Regina .................................................................................. 146
Figura 16 – Camila Cohen solista e o coro voltado para ela, na penumbra ........................... 148
Figura 17 – As mulheres procurando as pestes ...................................................................... 150
Figuras 18 e 19 – Imagem do detento subjugado ................................................................... 150
Figura 20 – Fernanda Brandão escrevendo no desenho do panóptico ................................... 153
Figura 21 – Cena da chuva. .................................................................................................... 154
Figura 22 – Anjo caído carrega a porta de ferro. .................................................................... 155
Figura 23 – Cristo carregando a cruz. Ticiano, 1565. ............................................................ 156
Figura 24 – A cidadã contribuinte sobre a porta de ferro que esmaga o anjo caído. ............. 156
Figura 25 – Dinâmica do ponto zero. .................................................................................... 162
Figuras 26 e 27 – Súplica de Ifigênia a Agamêmnon. ............................................................ 179
Figuras 28 e 29 – Súplica de Ifigênia a Agamêmnon. ............................................................ 181
Figura 30 – Momento antes do chamado de Clitemnestra. .................................................... 183
Figura 31 – Carolina Fabri, no coro, põe-se em pé e torna-se Onda-Ifigênia, após o chamado
de Daniela/Onda-Clitemnestra. .............................................................................................. 183
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO........................................................................................................... 13

2 TECENDO A IDEIA DE CORO............................................................................... 16

3 DISCURSOS SOBRE A CORALIDADE ................................................................. 44

3.1 Teoria dos gêneros: a proposta de Emil Staiger ...................................................... 44

3.2 Necessária digressão pela dramaturgia 1: “drama puro” e banimento do coro,


crise do drama ............................................................................................................. 48

3.3 Necessária digressão pela dramaturgia 2 e caminho para a cena – Jean-Pierre


Sarrazac e colegas: a coralidade ................................................................................ 53

3.4 Coralidade em cena .................................................................................................... 59

3.5 Cenas brasileiras ......................................................................................................... 85

3.6 Outras faces de um termo .......................................................................................... 89

3.7 Podemos ensaiar uma definição? .............................................................................. 99

4 IMAGENS PARA A CORALIDADE ..................................................................... 102

4.1 Polifonia ..................................................................................................................... 102

4.2 Política em Rancière: a igualdade que perturba ................................................... 111

4.3 Unicidade ................................................................................................................... 117

4.4 Proposta de diálogo para uma coralidade possível ................................................ 121

5 CORALIDADE COMO PRINCÍPIO DE CRIAÇÃO .......................................... 125

5.1 Coralidade na composição do espetáculo — Rogério Tarifa: música e política . 126

5.1.1 Canto para Rinocerontes e Homens ........................................................................... 128

5.1.2 Inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos: uma estrutura coral ......................... 141

5.2 Coralidade na criação da cena — Marcelo Lazzarato e a Cia. Elevador: o Campo


de Visão ...................................................................................................................... 160

5.2.1 Ifigênia, uma proposta radical ................................................................................... 175

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 189

REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 194


APÊNDICE A – SOBRE CORALITÀ ..................................................................... 202

APÊNDICE B – DE ONDE VIEMOS: O TRABALHO EM ANTÍGONA .......... 206


13

1 INTRODUÇÃO

Esta dissertação não marca o fim de uma pesquisa, mas seu início. Por isso seu
subtítulo é “notas para uma discussão”, já que pretendo que seu conteúdo seja discutido e
enriquecido no contato com minhas e meus colegas de arte e pesquisa. Além disso, o texto
apresenta uma série de importantes lacunas que, espero, sejam preenchidas em elaborações
posteriores por mim ou por quem a isso se dispuser, criando uma tapeçaria pronta para ser
aberta pelo acadêmico ou artista que quiser se aventurar pelo mundo da coralidade. Uma
grande cartografia que aponta os caminhos do aprofundamento enquanto discute semelhanças
e diferenças em um panorama geral.
Subjacente a este texto, como um gesto inaugural que marca tudo o que vem depois,
está um processo de estudo e criação vivido por mim no período de minha formatura no
bacharelado em direção teatral na Universidade Federal de Santa Maria, durante o ano de
2016. Vestígios desse trabalho poderão ser acessados no apêndice B desta dissertação.
ANTÍGONA foi o espetáculo que dirigi, orquestrando a dança-embate entre texto,
atores e encenação. No relatório de pesquisa ao fim desse processo, eu detectava a escassez do
material disponível sobre coralidade em português. Afirmei que me agarrara aos poucos
textos encontrados como a uma tábua de salvação e o resto do estudo fora a própria prática
que se alimentava de si mesma, devorando-se a cada vez. Aquela havia sido, afinal, uma
prática de composição, de confronto com o princípio do grupo, da fundação de uma
comunidade cênica pela utilização dos meios próprios para isso: a linguagem da cena. A
minha ignorância a respeito de explorações mais profundas sobre as potências da coralidade
pode ter sido desafiante para a criação, mas penso que prejudicou meu horizonte de
possibilidades e, em algum nível, minha compreensão do trabalho que estava realizando. Se a
ignorância sobre desenvolvimentos teóricos que têm ligação com determinado trabalho não
constitui prejuízo para a criação e, pelo contrário, pode mesmo beneficiá-la, a ignorância a
respeito das perguntas, ou das infinitas possibilidades de perguntas, pode fazer com que se
deixe de abrir alguns espaços ou de correr alguns riscos.
Os desafios e consequentes ganhos pedagógicos e artísticos dessa experiência foram,
para mim, gigantes. Inquietavam-me as exigências recebidas e as potências percebidas no
trabalho com esse princípio. Eu tinha necessidade de conhecer outras poéticas, observar
outras lógicas do trabalho com a coralidade. Melhor: precisava conhecer outras coralidades,
entrar em contato com outras potências, experimentá-las e refletir sobre elas. Na verdade,
14

terminava o processo ainda com uma grande dificuldade de falar sobre esse princípio de
trabalho, embora para mim fosse fácil percebê-lo nas cenas e convocá-lo na sala de ensaio.
Esta dissertação parte, portanto, de uma pergunta muito simples, que pode gerar
desdobramentos infindáveis. Por sua simplicidade e especialmente pela infinidade dos
desdobramentos, talvez não seja a melhor pergunta para disparar uma pesquisa de mestrado.
Mas foi atrás dela que corri na escrita deste texto: o que é a coralidade? Esta noção é, afinal
de contas, muito útil por abranger uma série de práticas, poéticas, estéticas e discursos, os
quais me interessavam sobremaneira e, se certamente existiam no mundo, não
compartilhavam uma mesma categoria, uma lente de contemplação que os reunisse a todos e
tornasse mais evidentes suas semelhanças ou parentescos. O fato é que este termo, que indica
um conceito, uma noção, um princípio, um campo de investigações, me assombrava.
Estudando para elaborar o projeto desta pesquisa, percebi que autores e autoras
diferiam em suas concepções da coralidade, às vezes ligeiramente e às vezes de forma
contundente. A questão naquele momento era: o que se quer dizer quando se diz
coralidade? O que permite uma resposta um pouco mais concreta, baseada em diferentes
discursos.
Agora que o primeiro marco do processo de pesquisa está estruturado com a
elaboração desta dissertação, entendo a coralidade tanto como um conjunto de características
que podem ser detectadas em obras cênicas (e literárias, e cinematográficas, e..., e...) — ou
seja, um traço estético — quanto como um princípio que guia diferentes processos de criação
— um traço poético, além de estar ligada, muitas vezes, a uma orientação ética do trabalho.
Princípios geram um sem-número de práticas, um sem-número de formas. A última pergunta
que guiou esta investigação foi, portanto: quais são as potências da coralidade como um
princípio de criação — e de pensamento sobre essa criação, por que não? De alguma maneira,
essas três questões são enfrentadas no decorrer do texto.
A investigação, então, parte da vontade de conhecer e da percepção de que o debate
sobre essa noção poderia ficar um tanto quanto desorganizado, sem estabilização conceitual
ou pelo menos sem o necessário rigor na abordagem para que nos entendamos uns aos outros.
Dessa percepção, nasce a vontade de contribuir para o debate, expondo as problemáticas mais
básicas que o trabalho com essa noção suscita. O texto que apresento é minha tentativa de
expor essas problemáticas básicas.
Como o trabalho se foca na exposição do que considero os conteúdos e problemas
básicos para trabalhar com a coralidade e muitos dos conteúdos aqui reunidos já foram
15

largamente explorados em outros trabalhos, busquei, na maior parte do texto, ser preciso nos
pontos abordados, sem numerosas contextualizações ou discussões de questões laterais.
Nas páginas que seguem, procuro preparar o terreno para cercar a noção de coralidade.
Iniciamos pela imagem matricial do coro, que fornece a referência para as práticas de
coralidade. De onde ela vem? Para quais antecedentes aponta? O que podemos querer retomar
ou questionar desse coro ao lançar mão da coralidade? São as questões que busco enfrentar ou
ao menos situar no primeiro capítulo.
Em seguida, reviso alguns textos e práticas que exploram a noção de coralidade. O que
se quer dizer quando se diz coralidade? Qual a história dessa noção? O que pensadores da
cena (e não só dela) têm a nos dizer sobre a coralidade? Que potências da coralidade estão no
mundo já identificadas com esse nome?
Logo depois, apresento três conceitos, ou imagens conceituais — a polifonia, a partir
de definições musicais e da obra de Mikhail Bakhtin, a política na obra de Jacques Rancière e
a unicidade, a partir de Adriana Cavarero — que podem subsidiar nosso pensamento a
respeito desse princípio de criação. Para onde nosso pensamento pode se dirigir quando
contemplamos a coralidade? Que ferramentas conceituais podemos usar para dar conta desses
processos? E acima de tudo, que ética pode surgir de um pensamento sobre a coralidade?
Passamos, então, a exemplos brasileiros de coralidade no trabalho de criação. A
coralidade como princípio de composição da cena é explorada a partir dos trabalhos de
Rogério Tarifa na Escola de Arte Dramática da USP, especialmente Inútil canto e inútil
pranto pelos anjos caídos. A coralidade como princípio de criação na sala de ensaio, na
relação entre atores e condutor(a) (ou encenador(a)) é trazida pelo exemplo da Cia. Elevador
de Teatro Panorâmico, em seu trabalho com a prática improvisacional coral ‘Campo de
Visão’ e sua proposta radical no espetáculo Ifigênia.
16

2 TECENDO A IDEIA DE CORO

Temos o direito de usar as palavras como


assim nos aprouver e sabemos que, algumas
vezes, leituras a princípio equivocadas podem
levar a experiências artísticas bastante
interessantes.
Tatiana Motta Lima (2005, p. 47).

Este estudo consiste em uma investigação sobre um princípio de criação, ou melhor,


sobre uma noção que designa, entre outras coisas, um princípio de criação, no qual o estudo se
foca. Para entendermos a coralidade podemos (ou devemos) partir da investigação em torno
da palavra. Temos aqui um substantivo formado a partir de um adjetivo, por meio de um
processo de sufixação. No início há o coro, depois o adjetivo que indica que algo se relaciona
com o coro, coral.1 Substantivando o adjetivo pelo acréscimo do sufixo –dade, que indica,
entre outras coisas, qualidade, estado, temos uma nova palavra, coralidade, que significaria
algo como qualidade daquilo que é coral, entendendo-se coral aqui como o que é
semelhante ou relacionado ao coro. Por ser uma palavra que se refere na maioria das vezes a
escolhas composicionais, podemos propor a definição de qualidade daquilo que se organiza
à maneira de coro.

Voltamos, portanto, ao ponto inicial: o coro. A imagem do coro precisa estar presente
em algum lugar de nossa sensibilidade se quisermos ser bem-sucedidos em nossa
investigação, que se dá a partir dela. Mas há muitos entendimentos de coro que podem ser
invocados em nosso discurso. Iniciamos, assim, com uma tentativa de tapeçaria. Tentarei
apresentar alguns dos fios que tramaram essa imagem ao longo da história, seja na prática
criativa ou na teoria do teatro ocidental — entenda-se bem: aquele de matriz europeia, que se
entende como descendente dos gregos. Minha pretensão não é fazer uma linha do tempo do
coro através da História, tarefa bem acima das limitações desta pesquisa, mas apontar
contornos, tentar iniciar a tapeçaria dessa imagem matricial para a ideia de coralidade.
De acordo com sua origem e no uso que se faz do termo, coralidade necessariamente
refere-se à ideia de coro, mesmo que apontando para sua falta, produzindo um tipo de “efeito

1
Coral também existe como substantivo, mas designa justamente um grupo de cantores, pelo que não foge a
nosso campo.
17

fantasma do coro”2 (MÉGEVAND, 2003, p. 111). Por essa razão trato o coro como imagem
matricial. Interessa-me tudo aquilo que constitui a imagem de coro que povoa as mentes e
nutre as sensibilidades de profissionais de teatro e espectadores, sejam elementos provindos
da fortuna teórica ou de realizações cênicas ao longo dos séculos. A tentativa aqui é criar uma
imagem multifacetada e enfrentar, ou pelo menos evocar, múltiplas questões que a figura do
coro suscita. Procuro, justamente para tornar essa imagem mais tridimensional, apresentar
pontos de vista discordantes em relação às correntes majoritárias ou interpretações mais
difundidas, embora mesmo o senso comum me interesse justamente por construir
efetivamente o imaginário sobre o coro. Penso que a epígrafe na página anterior não deixa
dúvidas quanto à distância que pode haver entre rigor conceitual e felicidade na criação
artística.
Em relação ao estudo histórico, minha atenção está direcionada para as referências que
percebo mais difundidas e evocadas quando do recurso ao coro ou à coralidade hoje. Por isso
centrei-me no coro da tragédia ateniense e deixei de abordar a comédia, assim como deixei de
abordar as formas corais medievais, já que percebo que o coro trágico ainda é a principal
referência para o emprego do coro e as reflexões sobre ele em nossos dias. Por outro lado,
trago discursos e experiências recentes que não são tão disseminados ou considerados
paradigmáticos, mas podem nos revelar possibilidades interessantes, como os coros
labanianos ou a fala de Stoev sobre os coros urbanos.
Muitos dos pontos examinados têm relação direta com o Dicionário de Teatro de
Patrice Pavis. Penso que, por ser uma obra frequentemente consultada e citada por estudantes
e praticantes de teatro, é útil que a confrontemos e exponhamos seus conteúdos aqui uma vez
que esta disseminação faz com que também seja um importante fator na formação da imagem
do coro para um número significativo de pessoas próximas ao teatro.

A história é conhecida, contada e recontada como todo bom mito. O teatro — ao


menos na forma que assumiu na Europa e migrou para os outros lugares do chamado mundo
ocidental por meio do expansionismo e colonização europeus — nasce dos ditirambos: coros
rituais em homenagem ao deus Dionísio. É concebido quando da homogeneidade do culto
emerge a diferença do homem que dialoga com o coro. “Eu sou Dionísio”, teria dito Téspis.
Da união fecunda de coletividade homogênea e diferença singular nasce a forma que fez

2
Original: « effet fantôme du choeur ». Salvo indicação contrária, as traduções presentes no trabalho foram
realizadas por mim.
18

história no mundo grego e para além dele, ainda reconhecida e assentada no imaginário de
grande parte dos habitantes do universo teatral como modelo fundador e referência necessária
quando se discorre sobre a arte do teatro.
Lendo, por exemplo, a História Mundial do Teatro, de Margot Berthold, somos
informados de que a tragédia grega nasce do coro festivo em honra ao deus Dionísio.3 Em
março de 534 a.C., Téspis se coloca à parte do coro como solista na Grande Dionísia de
Atenas, criando o papel do respondedor (hypokrites) que apresentava o espetáculo e se
envolvia num diálogo com o condutor do coro4. Esse respondedor daria origem ao ator,
gradativamente passando da “declamação” à “ação”, como quando Frínico de Atenas o faz
aparecer, ao longo dos cânticos, com uma máscara masculina e outra feminina,
alternadamente.5

A apresentação desse mito de origem, já bem assentado no imaginário sobre o teatro,


pode ser um material fecundo para a discussão de nosso assunto, mas não dá conta da
totalidade das investigações históricas sobre a tragédia ateniense. Autores contemporâneos
renegam o mito da origem ditirâmbica do teatro, ou pelo menos propõem uma origem menos
exclusiva. A tragédia teria sua origem mais em coros fúnebres do que em performances em
homenagem ao deus. Dupont (2017) defenderá a centralidade do canto de luto na tragédia e
Mégevand (2003a, p. 107) apontará uma confluência de “formas de poesia lírica coral”6 em
sua origem, especialmente a ode, um canto festivo, e o treno, um canto de luto.
Seguindo Dupont (2017), podemos afirmar que o coro de luto é o coração e a alma da
tragédia, cujo ápice é o kommos, um canto fúnebre compartilhado por atores e coro. Inserida
em um contexto ritual, no tempo circular dos mitos e ritos, organizada a partir dos coros, que
eram uma grande tradição cultural e ritual de Atenas, a tragédia ateniense era um
acontecimento. A razão predominante em sua composição era musical, não narrativa. Os
jogos metalinguísticos, em que atores e coreutas remetiam com seu texto ou ações à situação
da performance trágica, e as evocações de tragédias de anos anteriores eram frequentes. Havia

3
Cf. BERTHOLD, 2008, p. 103-104
4
Cf. BERTHOLD, 2008, p. 104
5
Cf. BERTHOLD, 2008, p. 107.
6
Entenda-se por poesia aqui a poesia oral, em performances musicais mais ou menos ritualizadas em que essa
poesia era cantada.
19

mesmo cenas cujo sentido era construído a partir da situação do ritual, ou pelo menos através
do paralelo com as estruturas desse ritual.7
Vemo-nos, com essas considerações, em um panorama diametralmente oposto àquele
proposto por Aristóteles na Poética, texto que se estabeleceu como base da teoria teatral
ocidental. O filósofo estagirita — não ateniense, como Florence Dupont insiste em lembrar8
— funda a tragédia sobre o mythos, a sucessão dos fatos que é para ele como “princípio e
alma” da tragédia. Sua Poética aponta a tragédia como um dos gêneros da poesia e é para a
dimensão da composição, da feitura do poema, que seu olhar está voltado. Um olho voltado
para a leitura, enquanto o outro olho e os demais sentidos estão fechados à performance.
Importa, no sistema de Aristóteles, o conteúdo textual da tragédia.
Para Aristóteles, as artes poéticas são, em geral, imitações. Diferenciam-se entre si por
três fatores pelos quais procedem essa imitação:
• os meios: ritmo, linguagem e harmonia. Apenas de ritmo se utilizaria a dança,
de ritmo e harmonia se utilizariam as artes do aulos9 e da cítara, e apenas de
linguagem se utilizaria uma arte ainda sem nome10 no tempo da Poética. Dos
três meios ao mesmo tempo se utilizariam os ditirambos e nomos e dos três
meios, cada um por sua vez, se utilizariam a tragédia e a comédia;
• os objetos de imitação são “homens que praticam alguma ação”, que podem ser
melhores (como nas poesias de Homero e na tragédia), iguais, ou piores (como
na comédia) do que “nós” (Aristóteles e seus alunos/leitores);
• os modos de imitação são o narrativo, encontrado em Homero e que pode se
proceder por meio de uma personagem que narra ou em primeira pessoa, com o
próprio poeta se manifestando, e o dramático, que se exerce mediante as
pessoas imitadas, agindo elas mesmas.
A partir desses fatores, a tragédia poderia ser definida como um gênero poético que
utiliza os três meios, cada um por sua vez, para imitar homens superiores em modo dramático.

7
Como a Electra de Ésquilo que inicia como uma chefe de coro que não canta e assume seu papel de chefe do
canto fúnebre logo após este ser demonstrado pelas coreutas. Cf. DUPONT, 2017, p. 190.
8
E para Dupont esse é um dado extremamente relevante, já que não tendo sido educado na cidade dos coros,
Aristóteles dificilmente teria uma sensibilidade preparada para atentar ao acontecimento cênico-musical da
tragédia, uma das razões que podem ter fundado sua leitura puramente narrativa dessa manifestação. Cf.
DUPONT, 2017
9
Instrumento de sopro costumeiramente utilizado “para os modos agudos do luto e da tristeza. [...] A tradução
por ‘flauta é tecnicamente errônea, pois se trata de um instrumento de palheta simples, mas, sobretudo, porque
não dá conta de sua força, assim como o termo ‘oboé’. [...] Não obstante o anacronismo, deveríamos imaginá-
lo antes como uma clarineta.” (DUPONT, 2017, p. 184-185)
10
“Diz-se hoje Literatura, muito se discutindo sobre o conceito” anota o professor e tradutor Jaime Bruna.
(ARISTÓTELES, 2014, p. 19)
20

Mas essa definição é infiel aos desenvolvimentos da Poética, já que para Aristóteles a
tragédia não imita exatamente os homens, mas a ação praticada por eles. Sua definição da
tragédia, na tradução de Eudoro de Souza, é a seguinte:

É pois a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa


extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos
distribuídos pelas diversas partes, não por narrativa, mas mediantes atores, e que,
suscitando o “terror e a piedade, tem por efeito a purgação dessas emoções”.
(Poética, VI, 27, ARISTÓTELES, 1973, p. 447)

Essa ação, completa e de certa extensão é comparada por Aristóteles a um belo animal,
ordenada e proporcionada como um organismo vivo, cujo tamanho deve permitir a apreciação
de sua beleza, ao mesmo tempo em que contribui para forjá-la.
Aristóteles divide a tragédia em seis partes: mythos, dianoia (ou pensamento), ethos
(ou caráter), lexis (ou elocução), melopéia (ou canto) e opsis (ou espetáculo). O “princípio e
alma” da tragédia é, para ele, o mythos, a sucessão dos acontecimentos.11 Justamente aquilo
que configura a “ação” da tragédia. Do mythos decorrem todos os outros elementos. É, por
exemplo, a sucessão dos acontecimentos que requer personagens, ou caracteres na tradução
corrente do texto aristotélico. Isso porque — seguindo Aristóteles — o caráter é demonstrado
pelas ações das figuras que comparecem à poesia trágica.
Considerada a tragédia como a imitação de um desenrolar de acontecimentos, o efeito
de katharsis, ou purgação, apontado por Aristóteles como o objetivo dessa ‘forma poética’,
independeria do espetáculo ou dos cantos, podendo ser alcançado pela leitura apenas, sendo
mais excelente a tragédia — entenda-se o texto — cujo encadeamento das ações fosse mais
justo e necessário.
Dentro desse sistema em que o centro da tragédia é o mythos construído de forma a
alcançar uma katharsis, Aristóteles concede pouca importância ao coro, apesar de considerar
que a tragédia tenha evoluído de uma forma coral, o ditirambo — mas especificamente dos
solistas do ditirambo. O Estagirita postula que o coro deveria comparecer à tragédia como um
dos atores e totalmente integrado à ação, sua presença e seus enunciados devendo encontrar
justificação na lógica do mythos. Formalmente, no entanto, as partes corais garantem sua
prevalência nesse sistema. Na enumeração aristotélica das chamadas partes quantitativas da

11
Que não deve ser confundido com o “mito”, história sagrada, ligada às fundações do mundo, nem mesmo com
os mitos da religião grega. Na Poética, essa palavra designa o ordenamento da narrativa criado pelo poeta.
21

tragédia, o coro aparece como o elemento estruturante, em relação ao qual as outras partes
podem ser classificadas:

Segundo a extensão e as ações em que pode ser repartida, as partes da tragédia são
as seguintes: prólogo, episódio, êxodo, coral — dividido, este, em párodo e
estásimo. Estas partes são comuns a todas as tragédias. Peculiares a algumas são os
cantos da cena e os kommói.
Prólogo é uma parte completa da tragédia, que precede a entrada do coro; episódio
é uma parte completa da tragédia entre dois corais; êxodo é uma parte completa, à
qual não sucede canto do coro. (Poética, XII, 65-66. ARISTÓTELES, 1973, p.
453, negritos meus)

Voltando a Dupont, seu estudo se propõe a desconstruir o que ela chama de tirania do
sistema aristotélico sobre o teatro ocidental. A autora vê na escrita de Aristóteles uma redução
da tragédia ao mythos e consequentemente ao texto, redução operada por meio de um
sistemático esquecimento do evento teatral real, compreensão já enunciada pelo filólogo
alemão Ulrich von Wilamowitz-Möellendorff12: “Aristóteles não tinha como objetivo definir
historicamente a tragédia ática: queria chegar a uma definição conceitual da tragédia”
(WILLAMOWITZ-MÖELLENDORFF, 1889, p. 118 apud DUPONT, 2017, p. 10).
O gesto de Aristóteles, a partir daí, constitui-se na criação de um sistema teórico da
tragédia a partir de uma teoria mais geral da composição poética13. E a palavra a ser utilizada
é exatamente criação: o filósofo “não retoma o léxico geralmente utilizado pelos seus
predecessores ou contemporâneos para falar de teatro, mas cria seu próprio vocabulário e suas
próprias categorias” (DUPONT, 2017, p. 19), alienígenas ao fenômeno trágico. Um exemplo
dado pela autora é que:

Normalmente, em grego, o personagem enunciador é chamado de prosopon, ‘a


máscara’, de onde sai a voz do ator. Se Aristóteles nunca utiliza esse termo,
prosopon (máscara, papel), na Poética, quando fala da tragédia, é evidentemente
porque a máscara está ligada às condições materiais da performance, alheias à arte
poética. (DUPONT, 2017, p. 34)

A pedra angular desse sistema é o mythos, termo utilizado por Aristóteles desviado do
uso comum14, tornado um conceito de seu sistema. Na Poética, o mythos designa o resultado
da composição do poeta, ou seja, da ordenação que faz das ações. A mimesis, a

12
A quem a autora credita ter sido “o primeiro a demonstrar isso de maneira científica” (DUPONT, 2017, p. 10.
nota 8.)
13
E, mais amplamente, a partir das categorias e pressupostos de sua filosofia. Cf. MOSTAÇO, Edélcio. Uma
leitura da Poética. São Paulo: Appris, 2020.
14
Cf. DUPONT, 2017, p. 29-30
22

imitação/representação é realizada pelo poeta através de seus mythoi: “O poeta é assim


definido como fabricante (poietes) de mythoi mais do que compositor de versos: ele já não é
um ‘músico’” (DUPONT, 2017, p. 31). Estamos aqui muito distantes da prática dos poetas-
compositores da tragédia, que “denominavam a si mesmos ‘cantores’ (aeodoi)” (DUPONT,
2017, p. 20). O perfeito edifício teórico de Aristóteles, que faz do mythos o alfa e ômega da
tragédia, tem suas bases assentadas em uma construção e recepção mentais, intelectuais. Sua
razão é puramente narrativa. Uma vez que a arte repousaria exclusivamente na estruturação
do mythos e o canto e o espetáculo seriam elementos acessórios, a tragédia pode cumprir sua
função mesmo através da leitura.
Acontece que o fenômeno das tragédias atenienses15 se estruturava a partir de uma
razão espetacular — musical e ritual. O coro é o elemento que conjugava ritualidade e música,
o coração da performance trágica, porque a tragédia em Atenas era originalmente uma
performance inserida num concurso musical. Aristóteles perde de vista a qualidade
performativa da tragédia, ou, de acordo com o pensamento de Dupont, escreve para
deliberadamente miná-la.16
Colaborando para nosso geral desconhecimento das tragédias atenienses há o fato de
que sua música, o coração de sua performance, não foi conservada. Olhar para os textos de
tragédia a que temos acesso hoje como “a tragédia” é esquecer não apenas a música, mas o
contexto de enunciação desses textos, a inscrição de cada tragédia na tradição dos concursos
musicais e os jogos metateatrais que eram operados pelo espetáculo trágico.
Retomando o pensamento de Dupont, a autora diz que “Platão havia dado uma
definição unicamente coral da tragédia, que ele apresentava como uma coleção de cantos
destinados a fazer chorar a cidade durante o sacrifício” (DUPONT, 2017, p. 181). Os dois

15
Outras cidades adotaram a instituição da tragédia, mas não sabemos nada de seus contextos rituais. Além
disso, os textos que nos chegaram são de tragédias atenienses. Dizer “tragédia grega”, além de uma
imprecisão, é uma generalização sobre fenômenos que nos são desconhecidos e pode nos afastar de uma
atitude produtiva e mesmo criativa em relação a esses materiais. Cf. DUPONT, 2017, p. 181
16
Seja em proveito de uma razão teórica, seja para descontruir a função identitária do teatro em Atenas como
parte do projeto de poder dos reis Macedônios, tanto para destruir a liberdade da cidade quanto para criar uma
cultura grega pasteurizada e exportável para os territórios conquistados. (Cf. DUPONT, 2017, p. 52).
Aristóteles, no entanto, estava longe dos concursos em que os três grandes tragediógrafos participaram
também no tempo, já que nasceu mais de 20 anos depois da morte tanto de Sófocles quanto de Eurípides.
Para relativizar o ponto de vista de Dupont, podemos nos remeter ao livro de LAMARI, Anna. Reperforming
Greek Tragedy. [s/l]: De Gruyter, 2017, ao qual tive acesso apenas após a defesa desta dissertação e que
argumenta pela existência de reperformances de tragédias desde o século V a.C. Segundo a autora, é provável
que o próprio Ésquilo tenha dirigido reperformances de Os Persas em Gela, na Sicília, onde morreu e “foi
honrado com um luxuoso funeral e um culto de herói que envolveu reperformances de suas peças em seu
túmulo.” (LAMARI, 2017, p. 8). No original: “was there honored with a lavish burial and a hero cult that
involved reperformances of his plays at his tomb.”
23

filósofos gregos fazem do patético o efeito principal da tragédia, além de considerarem o coro
como elemento determinante dessa forma. Se Aristóteles diminui sua importância, diz, como
já vimos, que os diálogos são colocados “entre” os cantos do coro, chamando essas partes
faladas de episódios, em grego ‘epeisodoi “(etimologicamente ‘a par das entradas do coro’) e
[que] têm o sentido geral de ‘suplemento, acessório’” (DUPONT, 2017, p. 182) A autora
então conclui:

Portanto, para os gregos antigos, uma tragédia é uma sequência de coros em que
se intercalam interlúdios dialogados. Isso é o oposto da concepção que prevalece
atualmente e nos impele a derrubar o ponto de vista habitual: a tragédia era, em
primeiro lugar, uma prática coral. (DUPONT, 2017, p. 182. negrito meu).

A autora chega a afirmar, contrariando inúmeras teorias sobre os heróis trágicos e a


emoção que se produz no público por reconhecer os sofrimentos apresentados pelo mythos
como passíveis de ocorrem consigo, que “não é a narrativa que suscita as lágrimas do público
através de um efeito de identificação com as personagens de ficção, pois o público se
identifica com o coro ritual colocado entre ele e os protagonistas” (DUPONT, 2017, p. 199).
A sensibilidade do espectador seria, aqui, atingida pela música. Os episódios seriam tanto
álibis quanto preparações para os cantos corais que, inseridos no acontecimento ritual das
dionísias, comunicavam-se diretamente com o público, emoldurados pelos episódios
dialogados e os acontecimentos que neles se desenrolavam. A partir disso, é possível dizer
que as sequências narrativas seriam determinadas pela música do coro, e não o contrário.
Os cantos estruturam a cena de duas formas diferentes. Havia as partes fixas, o párodo
(canto de entrada) geralmente precedido por um prólogo falado, e os estásimos (stasima) que
são cantados na orkhestra, o espaço cênico circular, ao nível do chão, em que os coreutas
permaneciam durante o desenrolar das tragédias. Variadas músicas e ritmos poderiam ser
usados nessas composições. As partes móveis eram o melos, um canto do ator sem o coro, e o
kommos, “um canto de luto coletivo em que o ator bate no peito (kompto significa ‘bater’)”
(DUPONT, 2017, p. 186). Esse último poderia ser cantado por um ou mais atores, juntamente
com o coro. Era um canto pungente em que atores e coro se fundiam para cantar a dor, o ápice
do pathos trágico. “Nem o kommos nem o melos possuem lugar fixo, eles podem inclusive ser
vários. [...] O lugar que [o poeta/compositor] atribui ao kommos determina todo o resto da
peça, inclusive os acontecimentos da narrativa” (DUPONT, 2017, p. 186). Essa afirmação nos
leva às considerações sobre a construção das três Electra, que é uma das mais impactantes
24

análises da obra de Dupont, ao mostrar que o estatuto musical é determinante para a


composição da ficção e mesmo das personagens necessárias a tal ficção.
Para demonstrar seu ponto, a autora analisa três tragédias com o mesmo argumento: As
Coéforas, de Ésquilo, e as duas Electra, de Sófocles e Eurípides. A personagem Electra não
consta do mito original, é uma criação de Ésquilo retomada pelos outros dois compositores e
tem o exato caráter do desenvolvimento musical: é necessária para que o kommos aconteça, já
que seu luto permanece guardado, alheio aos anos, e Orestes, seu irmão, deve ser absorvido na
corrente do tempo para que possa tornar-se um homem adulto e assim vingue seu pai. Electra
é uma personagem gerada para harmonizar a razão narrativa e a razão musical — aquela que é
fundamental ao acontecimento da tragédia. Deve inserir seu irmão no luto, em seu luto
congelado no tempo e cantado, pois é prerrogativa feminina cantá-lo. Sua existência é tão
funcional e tão direcionada ao acontecimento do kommos que na composição de Ésquilo ela
deixa a cena logo depois desse canto. Sua utilidade acabou. Sófocles e Eurípides retomarão a
personagem, que servirá, na composição de cada um deles, para instalar o luto.
A partir do estudo de Dupont, podemos sintetizar o fenômeno da tragédia ateniense
como um espetáculo estruturado em torno de um coro, apresentado uma única vez num
concurso que fazia parte de um ritual. Os espetáculos se inscreviam na tradição desse ritual,
atualizando-a a cada novo concurso e por vezes retomando elementos de eventos passados. O
coro, elemento ritualístico por excelência, garantia uma espécie de metalinguagem,
caracterizado como grupo de figuras pertencentes a uma narrativa que emoldurava seus cantos
e dava-lhes justificação.
Uma das bases da argumentação da autora reside no horizonte cultural de Atenas, a
cidade dos coros. Oriundos da esfera dos ritos, os coros marcavam diversos momentos da vida
ateniense. A lírica coral foi um gênero que conheceu grandes desenvolvimentos do período
arcaico ao clássico, no qual “o coro era o principal elemento” (ANDRADE, 2013, p. 45).
Havia coros de homens, mas também de jovens e de mulheres, às quais não era permitida a
participação nas tragédias, mas que, fora delas, detinham os cantos de luto, culturalmente
vedados aos homens. Os coros eram tão importantes que tinham uma instituição própria na
cidade-estado: a coregia. Os coregos, que cuidavam de muitos coros, dentre eles os coros das
tragédias, comédias e ditirambos, eram escolhidos entre os cidadãos mais ricos pelo arconte
epônimo, o mais alto magistrado. A função podia ser recusada, mas dava prestígio a quem a
aceitava.
25

Ao analisar a tragédia do ponto de vista das narrativas, tornou-se um lugar comum


dizer que o coro perde importância ao longo do tempo. H. D. F. Kitto (1990), por exemplo,
analisando as tragédias que nos restaram de uma perspectiva literária — embora chegue a
imaginar as danças do coro a partir dos metros utilizados nas composições —, divide a
tragédia ateniense em quatro fases: lírica, antiga, média e nova. A tragédia lírica, da qual
temos poucos registros, seria a fase iniciada com Téspis e que perduraria até o trabalho de
Ésquilo. Esse seria um tipo de tragédia com forte participação e, talvez possa-se dizer,
preponderância do coro, que contracena com um único ator. Ésquilo, cuja obra é identificada
por Kitto à tragédia antiga, é o responsável por introduzir um segundo ator na relação com o
coro e com o primeiro ator, o que conferia maiores possibilidades de desenrolar dramático, já
que a partir de então poderia haver três agentes em cena. Sófocles, o representante da tragédia
intermediária, introduz ainda um terceiro ator, também empregado posteriormente por
Ésquilo. Esse número de atores permanecerá fixo nos tragediógrafos seguintes, especialmente
no expoente da tragédia nova, Eurípides, permanecendo junto ao coro a estrutura invariável da
tragédia.
De acordo com o autor inglês, a tragédia antiga recebe forte influência da tragédia
lírica, o coro permanecendo um elemento ativo no desenrolar da trama trágica. Em Sófocles,
com a possibilidade de três atores em cena, o coro encontra um lugar de figuração da cidade,
do espírito coletivo, mas ainda integrado à ação trágica. Em Eurípides, vemos coros que se
encontram na situação trágica graças a uma contingência, como o coro d’As Fenícias, que, de
passagem para cumprir obrigações rituais, são envolvidas pelo conflito entre Tebas e Argos.
Com a importância gradativamente maior das figuras individuais, portanto, o diálogo entre
atores torna-se a norma e o coro é relegado à função de comentarista, seja pela advertência,
súplica, conselho, etc. (PAVIS, 2008, p. 73)
Voltando à tese defendida por Dupont, e ao contrário do pensamento dominante que
coloca a ênfase na cena dos atores, poderíamos imaginar que, sendo a tragédia ateniense uma
performance ritual coral a aparente perda de importância do coro em relação à trama, em
Sófocles e depois Eurípides, constitui-se, na realidade, em um movimento de independência
da trama em relação ao coro, sem prejuízo deste num primeiro momento. Segundo esse
pensamento, e sempre considerando o coro como coração da forma trágica, podemos
considerar que a vida e as decisões dos heróis passaram sim a ser valorizadas, mas não
imediatamente em detrimento do coro. Podemos imaginar que os episódios tenham chegado a
se tornar tão impactantes quanto as partes corais e só depois o coro entraria em um
26

movimento de declínio, sendo eclipsado na idade helênica e levando com ele a tragédia a seu
fim. Percebemos a diminuição do papel do coro, mas a tragédia dificilmente sobrevive à sua
desaparição “como se a posteriori o coro se revelasse um elemento indispensável à própria
existência do gênero: uma invariante do trágico.” (MÉGEVAND, 2003a, p. 109).17

A forma de expressão dos coros trágicos é denominada choréia. A choréia conjuga


poesia, dança e música e se caracteriza pela igualdade absoluta das linguagens (PAVIS,
2008). Pode-se também dizer que ela é toda feita de mousikê. Esse termo grego designava
primordialmente a música, mas em sentido amplo abarcava todas as artes regidas pelas musas,
de onde procede a raiz da palavra. A mousikê era parte integrante da educação na antiga
cultura grega (a performance coral e o estudo dos poetas antigos, como Homero, eram uma
constante na educação dos jovens atenienses) e o sentido de mousikê technê, ou prática
musical, incluía até mesmo a filosofia, daí uma série de expressões derivadas que indicavam o
nível cultural de um cidadão.

Para Homero, a arte da Musa (Mousa, Moisa, Mosa) abarcava o âmbito mais amplo
das belas artes, assim como eloquência ou cultivo em geral. E ser mousomai, para
Péricles, significava ser educado ou culto. Consequentemente, a denominação
musical (mousikos) caracterizaria alguém “versado em música” mas também
“geralmente, um votário das Musas, um homem de letras e realizações, um
acadêmico” (L&S).18 (BABICH, 2005, p. 172)

Sobre esse ponto, Ernani Maletta reflete sobre as relações entre música e mousikê e
sua evolução ao longo do tempo, percebendo a perda de intimidade das outras artes com
noções musicais que, no entanto, são estruturantes de toda a mousikê, o que para ele constitui
a diferença entre o substantivo “música” e o adjetivo “musical”, este último indicando
princípios que permeiam outras áreas da criação. Segundo ele, a mousikê se esfacelou em
artes distintas: dança, poesia, teatro e aquela que chamamos de música. Maletta ainda afirma:

Se essa parte hoje se chamasse, em vez de se chamar Música, se chamasse “Sonora”,


seria ótimo. Teríamos a Dança, a Poesia… e a Sonora. Tanto o “sonorista” quanto o
poeta, quanto o dançarino, passariam em suas formações por questões musicais, que

17
Original : « comme si a posteriori le choeur se révélait un élément indispensable à l’existance même du
genre : un invariant du tragique. »
18
“For Homer, the art of the Muse (Mousa,Moisa, Mosa) embraced the broadest range of the fine arts as
eloquence or cultivation in general. And to be mousomai, for Pericles, meant to be educated or cultured. Thus
the appellation musical (mousikos) would characterize one ‘skilled in music’ but also ‘generally, a votary of
the Muses, a man of letters and accomplishment, a scholar’ (L&S)”.
L&S é sigla para An Intermediate Greek-English Lexicon, Founded Upon the Seventh Edition of Liddell and
Scott’s Greek-English Lexicon. Oxford: Clarendon Press, 1889, p. 520.
27

têm a ver com todos. E a Sonora trataria os conceitos musicais de forma particular…
(FERRER, 2016, p. 375).

Atentando à união das artes na performance coral, podemos lembrar que dentre os
poetas-compositores da tragédia, que chamavam a si mesmos aedoi (cantores), havia atores,
encenadores e chorodidaskaloi (regentes de coro). Muitos estudiosos inferem dos metros da
composição as danças que poderiam ser executadas, já que “é atestado que o coro dançava —
mesmo que não saibamos muito para que seja possível recuperar as danças”19
(PAPALEXIOU, 2013, p. 284). É, inclusive, na dança, e não no canto, que reside a
etimologia da palavra coro. Em sua origem, o acento está no movimento dos corpos no
espaço, mais do que no movimento das vozes:

χορός [khorós]
I. uma dança circular, empregada em banquetes e ocasiões festivas, Hom., Hes.:—
em Atenas, o χορὸς κύκλιος [khorós kíklios] performava em volta do altar de
Dionísio, Her, Eur.
2. do Coro Dionisíaco originou-se o Drama Ático, que consistia no início em
histórias inseridas nos intervalos da dança (ἐπεισόδια)[epeisódia], recitadas por um
único ator: esse coro dramático era tanto τραγικός [tragikós] sendo formado
usualmente por 15 pessoas, quanto κωμικός [komikós], formado por 24. Quando um
poeta queria pôr uma peça em cena, ele pedia um coro para o Arconte, e as despesas,
sendo grandes, eram custeadas por alguns cidadãos ricos (o χορηγός [khoregós]): o
coro era fornecido pela Tribo e treinado originalmente pelo próprio poeta (por isso
chamado χοροδιδάσκαλος [khorodidáskalos])
II. um coro, um coral, i. e. um grupo de dançarinos e cantores, Hhymn., Pind.
2. geralmente, um coral ou bando, τέκνων [téknon] Eur.; também de coisas, χ.
σκευῶν [kh. skeuón] uma sequência de pratos, Xen. χ. ὀδόντων [kh. odónton] uma
fileira de dentes [...]
III. um lugar para dançar, λείηναν χορόν [leíenan khorón] Od., etc.20 (LIDDELL;
SCOTT. s/p, 1889.)21

19
Original: « il est attesté que le chœur dansait – même si l’on n’en sait pas assez pour qu’il soit possible de bien
restituer les danses. »
20
Original: “I. a round dance, used at banquets and festive occasions, Hom., Hes.:—at Athens, the χορὸς κύκλιος
performed round the altar of Dionysus, Hdt., Eur., etc.
2.from the Dionysiac Chorus arose the Attic Drama, which consisted at first of tales inserted in the intervals
of the Dance (ἐπεισόδια), recited by a single actor: this dramatic chorus was either τραγικός consisting usually
of 15 persons, or κωμικός of 24. When a Poet wished to bring out a piece, he asked a Chorus from the
Archon, and the expenses, being great, were defrayed by some rich citizen (the χορηγός): it was furnished by
the Tribe and trained originally by the Poet himself (hence called χοροδιδάσκαλος).
II.a chorus, choir, i. e. a band of dancers and singers, Hhymn., Pind.
28

Essa entrada de dicionário vem corroborar alguns dos entendimentos apresentados


acima, especialmente o de Dupont, que o texto de Aristóteles permite entrever, de que a
tragédia se constitui como a inserção de um conjunto de cenas nos intervalos da apresentação
coral, que era a parte central do evento. Chama atenção também que a palavra coro, em grego
antigo, tenha sido usada para designar grupos, ou fileiras, sequências, de objetos. A partir daí
podemos entender que, na acepção original, o coro é, até mais do que um grupo que canta, um
grupo que ocupa o espaço, um grupo que se dá a ver, ou — retirando o processo do domínio
da esfera visual — um grupo que se dá a perceber. Corroborando a ideia da performance do
coro como primordialmente ligada à dança, há o fato de que ainda encontramos em grego
moderno a palavra χορός [khorós], com a mesma grafia do grego antigo para ‘coro’, e seu
sentido principal é justamente ‘dança’.22 Sabe-se que a dança dos coros era coreografada
numa espécie de partituras de movimento, chamadas skhêmata (literalmente ‘figuras’)
(ANDRADE, 2013, p. 108). Sabemos também que o coro trágico era caracterizado pela
evolução em quadrados, aparentada às evoluções militares, diferente dos coros dos
ditirambos, que evoluíam em círculos. (DUPONT, 2013).
No entanto, até onde pude alcançar nesta pesquisa, nada sabemos em detalhe da
performance dos coros, a não ser que seu canto era uníssono. “Como é comum em muitas
culturas diferentes vozes cantarem paralelamente num intervalo de quinta, quarta, terça ou
mesmo segunda, vale a pena notar que o paralelismo de oitava é o único reconhecido em
fontes gregas e a existência dos outros é negada” 23 (WEST, 1992, p. 40-41). Sobre a música,
também se sabe que consistia em canção, sempre articulando as palavras da poesia, sem a
utilização de recursos vocais além desse canto.24 De modo geral, as músicas gregas “(até onde

2.generally, a choir or troop, τέκνων Eur.; also of things, χ. σκευῶν a row of dishes, Xen.; χ. ὀδόντων a row of
teeth [...]
III .a place for dancing, λείηναν χορόν Od., etc.”
21
Liddell and Scott. An Intermediate Greek-English Lexicon. Oxford. Clarendon Press. 1889. Acessado por meio
da ferramenta Greek word study tool da plataforma Perseus. Disponível em:
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0058%3Aentry%3Dxoro%2Fs.
Acesso em 15 jun. 2020.
22
Como pode ser conferido no verbete χορός do dicionário grego-inglês WordReference. Disponível em:
https://www.wordreference.com/gren/%CF%87%CE%BF%CF%81%CF%8C%CF%82. Acesso em 17 jan.
2021. Ou no verbete dance da versão inglês-grego do mesmo dicionário. Disponível em:
https://www.wordreference.com/engr/dance. Acesso em: 17 jan. 2021.
23
Original: “As it is common in many cultures for different voices to sing in parallel at the interval of a fifth, a
fourth, a third, or even a second,12 it is worth noting that the octave parallelism is the only one recognized in
the Greek sources and the existence of others is denied.” (WEST, 1992, p. 40-41)
24
“Pode-se fazer outras coisas melodicamente com a voz além de cantar. Pode-se cantar em bocca chiusa, fazer
o canto tirolês, imitar gritos de pássaros e animais, ou cantarolar sem palavras. Os gregos, no entanto, não
exploravam essas possibilidades com propósitos musicais”. Original: “One can do other things melodically
29

nosso conhecimento vai) eram composições de textos poéticos inteiramente articulados,


frequentemente muito sofisticados, com pouca repetição verbal”25 (WEST, 1992, p. 39). Os
instrumentos podiam ser tocados sozinhos, mas sua função majoritária era de
acompanhamento para o canto.
O coro antigo, de acordo com o que sabemos, caracterizava-se pela homogeneidade do
grupo, assim como pelo status igualitário das linguagens pelas quais se expressava. Ao menos
no âmbito musical a performance do coro implicava consonância e mirava a indistinção entre
os coreutas. “No canto coral uma boa fusão das vozes era admirada”26 (WEST, 1992, p. 45).
Podemos nos lembrar de Aristóteles propondo que o coro seja tratado como um ator. A
proposição faz sentido ao pensarmos que seu desejo é soar como uma única voz. Mégevand
dirá que o coro, como o entendiam os gregos, “sempre carrega, mais ou menos explicitamente
em seu horizonte, o traço de um idealismo do uníssono” (MÉGEVAND, 2013, p. 38). E
devemos lembrar que a multiplicidade é traço essencial do coro. “De um ponto de vista
formal, é evidente que sem sua natureza plural o coro não pode existir porque ele se resume à
reunião de vozes e corpos sob a égide de uma única identidade”27 (LÉGER, 2008, p. 6).
A “única identidade” gera o “idealismo do uníssono”: a imagem de uma comunidade
coesa, a indicação de um grupo que se dirige a um destino comum. Politicamente, o coro
grego foi lido como operando a figuração do consenso, se não entre todos os agentes da cena
política, pelo menos entre os componentes da classe que compõe esse mesmo coro, que se é
um “intermediário entre espectadores e ação, serve também de elo entre personagens e ação
trágica, representando uma pequena fração homogênea da cidade, às vezes impelindo tal
personagem a agir, como as Danaides pressionando Pelasgo n’As Suplicantes”28
(MÉGEVAND, 2003a, p. 109). Uma espécie de consciência popular (ou aristocrática), a voz
do povo e de certa forma a figuração da comunidade de espectadores pode ser encontrada na
forma proposta e no discurso dos coros dos textos que nos sobraram, meros guias das
complexas composições cênicas que devem ter sido as tragédias atenienses.

with the voice besides singing. One can hum, yodel, imitate bird or animal cries, or croon wordlessly. The
Greeks, however, did not exploit these possibilities for musical purposes” (WEST, 1992, p. 39)
25
Original: “(so far as our knowledge goes) were settings of thoroughly articulate, often highly sophisticated
poetic texts, with little verbal repetition” (WEST, 1992, p. 39)
26
Original: “In choral singing a good blend of voices was admired” (WEST, 1992, p 45)
27
Original : « D’un point de vue formel il est évident que, sans sa nature plurielle, le chœur ne peut exister
puisqu’il se résume à la réunion de voix et de corps sous l’égide d’une seule identité ».
28
Original : « intermédiaire entre spectateurs et action, il sert aussi de lien entre personnages et action tragique,
représentant une petite fraction homogène de la Cité, poussant parfois tel personnage à agir, comme les
Danaïdes pressant Pélasgos dans les Suppliantes ».
30

Outra posição difundida em estudos e discursos sobre o teatro ateniense é a de que o


coro seria uma espécie de porta-voz do autor no texto trágico. Nas comédias podemos
sustentar esse ponto de vista, apoiados na parábase. Mas e nas tragédias? Identificar a
intervenção do coro a uma manifestação do autor provavelmente é um vício que nos vem da
estética dramática, bem sintetizada pela frase de Szondi (2011, p. 25) “o dramaturgo está
ausente no drama”. Sendo o coro um elemento alheio ao ‘drama’, estamos autorizados a vê-lo
como uma revelação do autor? E os antigos atenienses esqueciam que havia um autor da
poesia no curso do espetáculo? E se esqueciam, haveria motivo para lembrar dele justamente
nos momentos de intensidade emocional em que o coro trágico se manifestava? Além do
mais, a presença do coro era permanente à vista do público. Não esqueçamos de que ele, no
mais das vezes, permanecia na orkhestra, entre a skené e os espectadores. Se aceitarmos a
equação ‘coro = lembrança do autor’, essa lembrança deveria ser contínua ou não ser. Sobre
esse ponto, Kitto (1990) lembra que os tragediógrafos gregos eram artistas e só podemos
identificar seu discurso com o todo da composição, não com uma parte ou personagem que
faria as vezes de manifesto pessoal do autor.

Na Epístola aos Pisões, mais conhecida por Arte Poética, como lhe chamou
Quintiliano29, Horácio preconiza que o coro

desempenhe uma parte na ação e um papel pessoal; não fique cantando entre os atos
matéria que não condiga com o assunto, nem se ligue a ele estreitamente. Cabe-lhe
apoiar os bons, dar conselhos amigos, moderar as iras, amar aos que se arreceiam de
errar; louve os pratos da mesa frugal, bem como a justiça salutar, as leis, a paz de
portas abertas; guarde os segredos confiados a ele, ore aos deuses, peça que a
Fortuna volte aos infelizes e abandone os soberbos. (HORÁCIO, 2014, p. 60-61).

Estamos, assim como na Poética de Aristóteles, na terra da dramaturgia. Martin


Mégevand vê aqui um direcionamento do coro para a figura do confidente que florescerá no
classicismo francês. O coro penetra na esfera do íntimo e toma partido, como “um amigo
pródigo em conselhos”30 (MÉGEVAND, 2003a, p. 111). Definido apenas por sua ligação com
a narrativa, é retirado de seu terreno ritual (embora a música permaneça seu atributo), e
relegado ao papel de apresentação e comentário da ação. “A partir desse momento, seu caráter
coletivo, se permanece, pode passar da forma ao conteúdo” (MÉGEVAND, 2003a, p. 111): se

29
Institutio Oratoria, VIII, 3. Mencionado por BRANDÃO, Roberto Oliveira. Três momentos da poética antiga.
In: ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica. São Paulo: Cultrix, 2014.
30
Original: “un ami prodiguant des conseils”.
31

considerarmos que o coro é definido por aquilo que diz, ele então poderá ser encarnado por
um único ator e abrir e fechar peças ou mesmo atos, suprir as brechas do material
dramatúrgico, apelar à boa-vontade dos espectadores.
Muito mais do que uma presença, o coro se define aqui por uma função. Horácio,
como Aristóteles, e talvez até mais do que ele, pois se ocupa largamente de poemas épicos em
suas recomendações, tem os olhos fixos no texto, na narrativa.

Novamente de acordo com Pavis, no século XVI, o coro terá um papel de separador de
atos, de entreato musical. Nesse período, o clown e o bobo tornam-se sua forma paródica,
prenúncios da preferência do classicismo francês pelo confidente, que causa a renúncia ao
coro. Aqui cabe a pergunta31: o desaparecimento gradual do coro, tanto anteriormente quanto
no classicismo francês, deve-se efetivamente a uma preferência ou à perda da forma musical,
que tanto na Grécia quanto em Roma era o modo de expressão do coro? Pavis, que
aparentemente não se importa muito com o coro no palco, mas com sua presença nos textos
quando lança um olhar histórico à questão, nomeia, então, duas exceções para a ausência do
coro no classicismo francês: Esther e Athalie, de Racine. Em Esther, o coro tem na trama
aparentemente a função de reforçar o discurso das personagens, sendo quase uma extensão de
Elisa, confidente de Esther. No entanto, há várias indicações sobre as cenas e trechos que
deveriam ser cantados ou não, aproximando o coro da razão musical. Em Athalie o coro é
formado (assim como em Esther) de jovens israelitas que, na maior parte de suas
intervenções, dirigem seus clamores a Deus. Esses ‘comentários’ operados pelo coro tanto em
Athalie quanto em Esther nos permitem imaginar o engrandecimento da atmosfera trágica que
poderia se produzir no espetáculo, seja por meio do canto ou da presença coral que roga pelo
destino dos seus. Em Athalie, a cena se passa dentro do templo de Jerusalém, o que pode dar
ao coro cores mais ‘rituais’.
No entanto, pode-se perguntar em que medida esses textos de Racine configuram-se
objetivamente como exceções no universo do teatro francês, pois não se destinavam a ser
encenados no circuito teatral — Racine havia abandonado a escrita para teatro havia já doze
anos —, mas foram compostos para Françoise D’Aubigné, para encenações em seu instituto
para meninas em Saint-Cyr. Madame de Maintenon, como também é conhecida, é chamada
por alguns de “a primeira educadora da França”32 (GRIMM, 1999, p. 451). Aí talvez se

31
Que me foi posta pelo prof. Dr. Marcus Vinícius Borja, na banca de qualificação desta dissertação.
32
« première institutrice de France »
32

explique a presença do coro, para abranger o máximo possível das aproximadamente 300
meninas na montagem, já que ensaiar e apresentar essas peças era considerado um exercício
de ‘diversão piedosa’, que também ensinava valores morais e religiosos às educandas, vide os
temas bíblicos das duas peças.33
As apresentações de Esther tiveram bastante êxito, e conta-se que o próprio Luís XIV
assistiu a muitas delas.34 Athalie, no entanto, não chegou a estrear em sua primeira montagem,
já que a atividade teatral das meninas de Saint-Cyr foi vitimada por uma série de reclamações
a um possível perigo para a moral das meninas, expostas à presença de pessoas externas à
escola. Estamos na França dos anos de 1690, afinal.
Exceções eloquentes ou não, cabe notar nesses dois textos de Racine um tratamento
bastante interessante para o coro que, se certamente não foi uma invenção sua, já que há
composições atenienses que utilizam esse formato, ainda não foi mencionada neste texto: o
poeta opera em diversos momentos a singularização de vozes que se levantam dentre o coro.
Assim, após uma parte uníssona, podemos ouvir uma solista, depois uma segunda, a resposta
da primeira, uma terceira, o retorno da segunda, a resposta da terceira, uma quarta, etc. Esse
procedimento de singularização de vozes no coro e alternância entre momentos de conjunto e
solistas nos permite perceber que o acolhimento de vozes individuais — e possivelmente
discordantes — também faz parte das possibilidades mais básicas do coro. A divisão em
subcoros (que não é o caso desses textos, mas é um recurso também bastante utilizado desde
Atenas) ou os momentos de singularização dos coreutas inserem um contraponto frutífero ao
uníssono. O coro passa a revelar suas divergências internas. Ainda é um corpo, mas um corpo
em conflito ou, no mínimo, um corpo composto de órgãos que se mostram diferentes.

É bastante comum considerar que o raisonneur e o confidente seriam ‘herdeiros’ do


coro antigo, uma vez que chamam as personagens à razão ou as acolhem em uma conversa
franca e íntima. Penso, no entanto, que essas duas figuras têm ligação com o coro apenas por
uma via abstrata, como figuração de um pensamento coletivo, ou de um pensamento mediano.
Não podemos considerá-las como herdeiras do coro, mas apenas de uma função exercida por
ele em tramas da tragédia clássica. Reduzir o coro a essas funções é vê-lo com a visão
periférica, olhos focados na narrativa. Em outras palavras, essa atitude denuncia o sentido
textocêntrico do pensamento que a acolhe, porta aberta por Aristóteles e escancarada por

33
O argumento de Esther é retirado do livro bíblico de Ester e o de Athalie pode ser encontrado em 2 Crônicas
22:10 – 23:15 e 2 Reis 11:12-17.
34
Madame de Maintenon e Luís XIV eram secretamente casados.
33

Horácio. “Esses avatares — como os do Classicismo — são, em nossa opinião, desnaturados,


porque amputados da forma essencial do coro. Eles substituem as funções corais, certamente,
mas não têm mais o peso cênico de um coletivo”35 (LÉGER, 2008, p. 9). Se o lugar do coro é
a performance, reduzi-lo à sua participação na narrativa é subestimá-lo, é reduzir sua
existência poética. Caberia questionar, a partir de Léger, se certamente as funções do coro são
desempenhadas pelos avatares encarnados em um ator, ou melhor, se todas as funções do coro
podem sê-lo. Instaurar o peso cênico não seria, por si, uma das funções do coro, função
estritamente teatral? — ou performática, para usar um termo contemporâneo.
Confidentes e raisonneurs são herdeiros de um traço, uma função do coro, mas não
seus herdeiros cênicos. Dramatúrgicos — melhor seria dizer dramáticos? — talvez.

Segundo Pavis, o último emprego do coro na forma clássica deve-se a Goethe e


Schiller, para o qual o coro deve provocar a catarse e “despsicologizar” o conflito dramático,
elevá-lo à esfera altamente trágica da “força cega das paixões” e desdenhar a produção de
ilusão.36 Em Sobre o uso do coro na tragédia, prefácio a sua tragédia A noiva de Messina,
Schiller luta justamente contra o naturalismo na arte, o desejo de ilusão. O poeta alemão
defende que a arte deve abandonar totalmente o real e se tornar puramente ideal, o que não
significa se voltar contra o real buscando “surpreender mediante combinações fantasiosas e
bizarras” (SCHILLER, 2018, p. 188), mas apreender o espírito da natureza (que seria, ela
mesma, um conceito que nunca se revela na totalidade) por meio do estabelecimento de uma
coerência interna que guarde semelhanças com a ordem da natureza. Por isso a obra deve ser
“ideal em todas as suas partes” (SCHILLER, 2018, p. 189, grifo no original), para que possa
ser real enquanto obra. Em sua batalha contra o naturalismo, Schiller critica as três unidades
francesas, que aponta como um equívoco sobre o espírito dos antigos, embora considere a
linguagem versificada como um grande passo para a aproximação da tragédia poética. O autor
alemão valoriza o coro justamente como o último passo dessa guerra, uma muralha que isola
o terreno puro da poesia trágica do mundo real. O coro “encontrado na natureza” pelo antigos,
já que as ações de suas tragédias eram públicas por natureza, serviria ao poeta moderno para
transformar o mundo e elevá-lo à poesia do mundo antigo. “Que se tenha abolido o coro e
condensado esse poderoso órgão sensível na figura sem caráter e tediosamente repetitiva de

35
Original : « ces avatars - comme ceux du Classicisme - sont, a notre avis, denatures puisqu'ils sont amputes de
la forme essentielle du choeur. Ils remplissent les fonctions chorales, certes, mais n'ont plus le poids scenique
d'un collectif. »
36
Cf. PAVIS, 2008, p. 73
34

um miserável confidente não foi, portanto, um grande aprimoramento da tragédia, como


pretenderam os franceses e seus repetidores.” (SCHILLER, 2018, p. 190).
A presença do coro, com sua linguagem poética, ainda obrigaria à elevação do tom
geral da obra e daria tranquilidade à ação, por meio da reflexão que mantém a liberdade do
espectador mesmo em meio às paixões movidas pela trama. Para as personagens, o coro seria
espécie de testemunha e juiz, um moderador de paixões, que motivaria a circunspecção e
dignidade. Um espectador natural da ação, de quem a audiência do teatro é um
desdobramento.
“O coro não é ele mesmo um indivíduo, mas um conceito universal, mas esse conceito
se representa por uma poderosa massa sensível, que se impõe aos sentidos pelo
preenchimento que sua presença provoca.” (SCHILLER, 2018, 193). Embora trate a arte
como terreno do ideal, para Schiller (2018, p. 192) o poético “reside precisamente no ponto de
indiferença do ideal e do sensível”. Poder-se-ia afirmar, a partir de Schiller, que mesmo o
pensamento sobre o coro depende da efetivação cênica. Como ideia, o coro é frágil e não
revela suas potencialidades, ou é superestimado e cobrado por algo que não pode dar. Schiller
o percebeu e escreveu que “até mesmo ao coro seria possível permitir que falasse por si
próprio, desde que ele mesmo se apresentasse da maneira devida na encenação.” (SCHILLER,
2018, p. 185). E se Schiller propõe ao coro um palco possível37 de preferência ao real para
que se percebam suas riquezas é porque os artistas cênicos de sua época não dispunham dos
meios expressivos para concretizar a criação sonhada por ele, ou sua obra não oferecia os
recursos necessários, já que, ao que parece, as partes do coro não eram musicadas, mas
deveriam ser declamadas. A esse respeito, o texto de E. T. A. Hoffmann, Carta de um monge
a seu amigo na capital, relata que a declamação do coro “soou como se alunos repetissem sua
lição” (HOFFMANN, 2018, p. 205), problema que motivou a divisão do coro em personagens
específicas em versão posterior do texto38. Em sua crítica, Hoffmann insiste na música como
necessária para a recuperação do coro grego intentada por Schiller: “Sem instrumentos
musicais, sem notação para a declamação, tudo será apenas ruído inútil” (HOFFMANN,
2018, p. 207).

37
“‘um [palco] possível’, com ênfase do próprio Schiller”. (HALLIWELL, 2015, p. 136). Original: “‘eine
mögliche [Bühne]’, with Schiller’s own emphasis”.
38
O tradutor Márcio Suzuki acrescenta em nota: “De fato, devido a problemas dessa natureza, verificados nas
primeiras apresentações, Schiller teve de modificar a estrutura original da peça, adicionando um ‘esquema’
em que divide o coro em ‘personagens específicas’ com ‘nomes próprios’, como escreve a seu editor Johann
Friedrich Cotta em carta de 13 de março de 1803.” (HOFFMANN, 2018, p. 205)
35

O palco proposto por Schiller não é ideal, porque o coro não mostra sua força na ideia,
mas é possível, porque deve poder ser concretizado. “O poeta fornece apenas as palavras e,
para vivificá-las, é preciso acrescentar música e dança”. (SCHILLER, 2018, p. 185). A letra
mata, mas o corpo vivifica.39 O conceito não pode competir com a presença na ação sobre a
sensibilidade: “Assim, enquanto lhe faltar esse poderoso acompanhamento sensível, o coro
aparecerá na economia da tragédia como um elemento externo, como um corpo estranho, que
só interrompe o andamento da ação, que atrapalha a ilusão, que esfria o espectador.”
(SCHILLER, 2018, p. 185). Vê-se que, embora proponha o coro como parte de sua
dramaturgia, e reserve a ele as funções de testemunha, juiz e espectador natural da ação
central, Schiller afirma que seu lugar é a cena, a materialidade do teatro.

Em O nascimento da tragédia no espírito da música ou Helenismo e pessimismo,


Friedrich Nietszche opera a oposição das duas energias ou modos de relação com o mundo
que regeriam as artes, especialmente a arte grega: o dionisíaco e o apolíneo.
O dionisíaco é considerado pelo filósofo o princípio de união antes e além da
individuação, que reconduz os indivíduos à comunhão com a natureza e à realização da
unidade de todas as coisas, ou da vida como um Uno que abrange os seres individuais. O
rompimento do princípio da individuação estaria ligado a um êxtase, uma espécie de
embriaguez. A energia do dionisíaco se manifestaria na música, arte que expressa diretamente
a Vontade, sem necessidade de representação das formas do mundo ou, falando com
Nietzsche (1992, p. 51) a “música, em sua completa ilimitação, não precisa da imagem e do
conceito, mas apenas os tolera junto de si.”
O apolíneo é o princípio da individuação, a energia da separação e da contemplação,
que gera os indivíduos separados e a pensamento lógico. Suas seriam todas as artes que se
utilizam da representação e do conceito. Seu domínio é particularmente sentido na esfera
visual, uma vez que o apolíneo opera por meio da criação de formas.40

Ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em
discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre novas, para
perpetuar nelas a luta daquela contraposição sobre a qual a palavra comum “arte”

39
Corpo que é o elemento que pode trazer o que quer que chamemos “espírito” para a cena teatral. Cf. 2
Coríntios, 3: 6.
40
O campo de reflexão aberto pela associação entre dionisíaco e sonoro e entre apolíneo e visual, especialmente
quando recorremos a pensadores contemporâneos, é extremamente frutífero para pensar a coralidade calcada
no trabalho vocal, embora esse campo não seja aprofundado neste texto. Para obras citadas na dissertação que
podem promover a reflexão sobre o tema, cf. CAVARERO, 2011; BORJA, 2017a e 2017b.
36

lançava apenas aparentemente a ponte; até que, por fim, através de um miraculoso
ato metafísico da “vontade” helênica, apareceram emparelhados um com o outro, e
nesse emparelhamento tanto a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a
tragédia ática. (NIETZSCHE, 1992, p. 27)

Para Nietzsche, retomando Aristóteles, a tragédia teria nascido de cultos rituais em


honra a Dionísio, especificamente os ditirambos. O princípio do coro, para o filósofo alemão,
é encarnação do dionisíaco, pois a força do deus dos mistérios seria o elemento de comunhão
entre os seres, dissolução das identidades na Vontade una da natureza que se expressaria no
ritual coral, suspensão da individuação, que é a causa de sofrimentos. Quando apolíneo e
dionisíaco se encontram, o primeiro enforma o segundo, que permanece pulsando através da
música e da presença do coro.
Atendo-se ao entendimento do coro como origem e cerne da tragédia, Nietzsche
recusa as interpretações já propagadas em sua época, chamando-as de “frases retóricas
correntes, que ele, o coro, é o espectador ideal, ou que deve representar o povo em face da
região principesca da cena”. (NIETZSCHE, 1992, p. 52), antecipando, com essa atitude, em
mais de um século formulações de pesquisadores contemporâneos como Dupont, que recusam
as interpretações textocêntricas ou redutoras do coro antigo a uma mera forma espetacular,
interpretações que ignoram voluntariamente a importância da prática coral no contexto
cultural dos atenienses. Essa antecipação pode ser detectada, por exemplo, quando
observamos a afirmação da pesquisadora francesa sobre a identificação do público com o
coro41 e as afirmações do filósofo alemão: “Cumpre ter sempre presente no espírito que o
público da tragédia ática reencontrava a si mesmo no coro da orquestra” e poderia “imaginar-
se a si mesmo como um coreuta” (NIETZSCHE, 1992, p. 58).

Rudolf Laban, coreógrafo húngaro, inicia na Alemanha, na década de 20, uma


investigação sobre o movimento coral “como forma de restaurar a harmonia original do
universo e os elos naturais comunitários.” (BERSON, 2007, apud ANDRADE, 2013, p. 77).
Os coros de movimento de Laban espalharam-se pela Alemanha naquela década, sendo
liderados e organizados por “um dançarino ou dançarina mais experiente e com formação em
alguma Escola Laban” (DAL COL, 2020, p. 209). Atraindo em geral pessoas comuns, além
de alguns bailarinos e bailarinas, a proposta desses coros “parecia ser sempre a mesma: a
promoção da participação de amadores e interessados em dança na prática em grupo como
forma de construir uma reconexão com o coletivo.” (DAL COL, 2020, p. 209).

41
Citada na página 23.
37

Mas eram os anos de ascensão do nazismo e Laban, embora cultivasse objetivos


existenciais, propondo sua dança como “instrumento para a libertação das restrições impostas
pelo racionalismo e materialismo, visando proporcionar uma união mística com o cosmos”
(BERSON, 2007, p. 72 apud ANDRADE, p. 77), não estava imune à tempestade que se
aproximava e, se não era um nazista típico, externamente aderia a práticas do regime. Alçado
ao maior cargo da gestão da dança no governo nazista, o coreógrafo e investigador expulsou
alunos judeus de suas classes para seguir seu projeto e quando teve seu trabalho considerado
intelectual e subversivo, exilou-se primeiro na França e depois na Inglaterra. (DAL COL,
2018).
O movimento coral que já havia sido promovido por ele na Alemanha foi apropriado
pelos nazistas em seus coros festivos em honra ao regime, que exaltavam os valores do
nacional-socialismo: “tanto Laban como o partido nazi usaram grupos massivos de dançarinos
amadores para produzir um conceito de comunidade, mas as comunidades que criaram eram
profundamente dissonantes” (BERSON, 2007, p. 74 apud ANDRADE, 2013, p. 77). Ou seja,
“as danças-corais tinham um forte apelo comunitário e coletivo, mas que não definia em si
que tipo de coletividade era essa, apresentando possibilidades que poderiam servir a diferentes
interesses, inclusive contrários entre si.” (DAL COL, 2020, p. 211).
A massa coral revela-se como instrumento político poderoso e perigoso. Concebida,
neste caso, para veicular um discurso e proporcionar uma experiência de liberação dos
automatismos e de união com o princípio universal, não são necessárias muitas modificações
em sua performance para que tenhamos uma tomada de partido pela ideia de unidade
monumental de uma raça superior ou de um povo escolhido.
Esses coros, cooptados pela batalha política, e especialmente por uma ideologia que
desenha um inimigo que deve ser destruído para que ‘os nossos’ floresçam, podem encontrar
eco nos flashmobs contemporâneos e nas coreografias realizadas pelas ruas do Brasil em
momento de tensão política nos últimos anos. Desde a cooptação dos coros labanianos pelo
nazismo, com sua vultosa utilização pelo regime, parece-me justificada toda preocupação em
relação a um coro que toma o espaço público, especialmente quando sua performance se
ancora em motivações políticas. Depois do fracasso de sua coreografia para os jogos
olímpicos de 1936, que não foi aprovada para apresentação pública e causou sua queda no
regime, “as Gemeinschaftstanz ainda duraram mais um ano, mas ao fim se mostraram
contrárias aos interesses do projeto nazista.” (DAL COL, 2020, p. 215). O regime abandonou
38

inclusive o termo utilizado para indicar as danças corais, direcionando-se para as marchas de
desfiles e paradas militares.
Podemos pensar, a partir do abandono da dança coral de Laban por parte dos nazistas,
que o fundamento dessas danças, a matéria da qual eram constituídas, por assim dizer, resistiu
aos interesses do nazismo. Em outras palavras, essa manifestação não se coadunava com as
pretensões do regime. Para um olhar histórico, temos uma espécie de evidência que pode nos
tranquilizar de que uma prática fundada na noção de liberdade vai necessariamente se tornar
incômoda e não permanecer a serviço do totalitarismo, mas a que preço, uma vez que já foi
cooptada? Quais já foram suas contribuições enquanto ferramenta do regime? A massa coral é
poderosa, mas para qual direção estará voltada?

O coro tem, segundo Pavis (2008), quatro poderes:


a) Função estética desrealizante, por sua presença criar um elemento de estranheza no
contexto do diálogo entre as personagens, constituindo-se numa técnica épica e muitas vezes
distanciadora, ao concretizar, diante do espectador, um outro espectador e juiz da ação;
b) Idealização e generalização, elevando seu discurso acima do patamar da interação das
personagens por sua intervenção lírica e transpondo os temas do nível particular para o geral,
por sua característica comunitária;
c) Expressão de uma comunidade, quando incorpora em si valores aceitos pela comunidade
dos espectadores, que passam a identificar-se com ele. Esse poder só teria possibilidade de ser
exercido em comunidades homogeneizadas, em que os indivíduos compartilham de fato os
valores expressos pelo coro;
d) Força de contestação, quando a presença do coro, em vez de representar a unidade de uma
sociedade presidida por um poder unificado, sem contradições, a contesta. Nas “formas ‘neo-
arcaicas’ de comunidade teatral” (PAVIS, 2008, p. 75) o coro não desempenha esse papel
crítico, mas encobre o costume de um grupo solidamente constituído, e que “celebra um
culto”. O Living Theatre seria, então, “o exemplo típico de uso contínuo, embora invisível, do
coro no espaço cênico e social” (PAVIS, 2008, p. 75). A descrição da ação do Living Theatre
como um uso contínuo e invisível do coro me leva a identificar o pensamento de Pavis como
uma formulação possível para uma prática fundada sobre a coralidade, aproximando-o da
39

definição de Mégevand de que a coralidade “é o efeito fantasma do coro” — o que pode


corresponder a seu uso invisível.42

No trabalho de Cláudia Andrade, que aborda o coro antigo como uma prática prenhe
de lições para o teatro comunitário contemporâneo, encontramos a afirmação de que o coro é
um “artifício teatral capaz de comunicar mundos simbólicos” (ANDRADE, 2013, p. 69).
Aqui cabem algumas perguntas: O trabalho de um único ator ou de um grupo atuando
diversas personagens não é capaz de comunicar esses mundos? A performance do coro é
capaz de instaurar mundos com mais facilidade? Esses mundos são mais críveis, seu poder de
convencimento é maior? O que há no coro para que esse poder seja apontado como uma
especificidade sua, já que o teatro se utiliza desse expediente desde sempre?
Uma resposta possível é a força de sua presença, seu peso cênico, para retomar a
expressão de Léger. Eu, que chego ao teatro disponível, que trago “um desejo indefinido, uma
capacidade polivalente” (SCHILLER, 2018, p. 186) sou mais facilmente capturado pelo jogo
ao ver um grupo mais ou menos coeso que o joga. O grupo dos brincantes me convence a
brincar. Um pouco de contágio de grupo, de efeito manada? Sei apenas que minha
sensibilidade é capturada pelo jogo coral.

Uma entrevista do encenador búlgaro Galin Stoev sobre seu trabalho com o coro
antigo apresenta diversas imagens interessantes para pensar o coro hoje. Para Stoev, o coro,
como o recebemos das tragédias gregas, é o lugar dos anônimos e por isso um lugar seguro;
dos sem nome, portanto não nascidos, que não passaram pelo processo de separação. A
linguagem veiculada por esse grupo é a do irracional, o que se expressa na dificuldade do
entendimento de suas palavras, ou mesmo nos dialetos estrangeiros em que alguns coros eram
escritos. Essa representação, no entanto, não pode permanecer estática ao longo do tempo e a
forma coral espelha a divisão do assim chamado indivíduo, que precisa se diferenciar de si
mesmo a cada contexto em que se insere, porque não há mais uma visão comum que abarca
todo o tecido social.

Enquanto o coro antigo era uma representação da unificação — como mover junto,
falar junto, respirar junto — o coro hoje me parece condenado sobretudo a mostrar a
destruição dessa unificação. Para ser mais evidente: se comparamos uma coreografia
de Marius Petipa e uma coreografia de Pina Bausch, a primeira busca a harmonia na

42
Évelyne Ertel, por exemplo, considera o Living como o “coro dionísiaco” da criação coletiva, opondo-o ao
“coro apolíneo” representado pelo Théâtre du Soleil. Cf. página 61.
40

convergência, tudo conflui a serviço do conjunto, enquanto na segunda, a harmonia


nasce da divergência, brota de elementos destrutivos.43 (STOEV, 2003, p. 65).

O encenador prossegue afirmando que podemos ver inúmeros tipos de coro em nossos
dias, e dá o exemplo dos yuppies no metrô: você entra, os vê, percebe que se vestem da
mesma maneira e também que todos falam. Imagina que estejam falando entre si, e aí percebe
que falam com interlocutores invisíveis, em seus dispositivos móveis. Suas falas simultâneas,
sem escuta e contato com aqueles que estão a seu lado podem ser organizadas musicalmente,
segundo o encenador.

Olharíamos para eles, o olho repousado por essa unidade gestual e de vestimenta, os
escutaríamos, embalados por seus murmúrios medidos e, bruscamente, haveria algo
que faria sentido em um terceiro nível, não no nível das informações que eles dão,
do que falam, mas chegaria a você uma informação mais secreta — sobre o que eles
são, sobre o que escondem sob seu desejo de conformidade. O desconforto cresceria
em você, depois a angústia. Aí está uma das possibilidades, há uma variedade
infinita de coros possíveis.44 (STOEV, 2003, p. 65-66, negrito meu).

O encenador fornece mais um exemplo: uma festa rave, com numerosos adolescentes,
a maioria sob o efeito de drogas e, por isso, imersos nas sensações que experimentam,
isolados em seu próprio mundo, alheios uns aos outros. A música segue um movimento
crescente, a festa chega a seu ápice e a multidão enlouquece ao som eletrônico.

Como n’As Bacantes, sob a influência de Dionísio — aqui representado pelo ecstasy
ou outra droga —, esses jovens chegam a uma unificação que, aqui, não é nem
ideológica nem religiosa, nem mesmo política, que ocorre em um nível puramente
rítmico. [...] Hoje temos então de um lado dificuldades para representar o coro
porque não sabemos exatamente do que ele é constituído, de outro lado temos a
oportunidade de ter a nosso alcance todas essas variedades de coro geradas pela vida
moderna. E a escolha de um tipo de coro em vez de outro será evidentemente
determinante para a história que você quer contar.45 (STOEV, 2003, p. 66)

43
Original: « Alors que le choeur antique était une représentation de l’unification — comme bouger ensemble,
parler ensemble, respirer ensemble — le choeur aujourd’hui me semble voué surtout à montrer la destruction
de cette unification. Pour être plus clair : si l’on compare une chorégraphie de Marius Petipa et une
chorégraphie de Pina Bausch, la première cherche l’harmonie dans la convergence, tout conflue au service de
l’ensemble, tandis que chez la seconde, l’harmonie naît de la divergence, jaillit d’éléments destructifs. »
44
Original: « On les regarderait, l’œil reposé par cette unité gestuelle et vestimentaire, on les écouterait, bercé
par leurs murmures mesurès et brusquement, il y aurait quelque chose que ferait sens à un troisième niveau,
non au niveau des informations qu’ils donnent, ce dont ils parlent, mais vous parviendrait une information
plus secrète — sur ce qu’ils sont, sur ce qu’ils cachent derrièrre leur désir de conformité. Le malaise gradirait
en vous, puis l’angoisse. Voilà l’une des possibilités, il y a une infinie variété de choeurs possibles. »
45
Original: « Comme dans LES BACCHANTES, sous l’influence de Dionysos — représenté, ici, par l’ecstasy
ou une autre drogue —, ces jeunes arrivent à une unification, qui, ici, n’est idéologique ni religieuse, pas
même politique, qui se passe à un niveau purement rythmique. [...] Aujourd’hui nous avons donc d’un cotê
des difficultés à représenter le choeur parce que nous ne savons pas exactement de quoi il est constitué, de
l’autre coté, on a la chance d’avoir à notre portée toutes ces variétés de choeur que génère la vie moderne. Et
41

Para além do teatro, há o domínio artístico onde coro é uma ideia bastante atual e uma
forma que subsiste: a música. Segundo o Dicionário Grove, coro significa “grupo de cantores
que se apresentam juntos, na distribuição de vozes tradicional; também uma peça musical
escrita para semelhante grupo”. O dicionário prossegue afirmando que “na execução da
música vocal em partes, costuma-se fazer uma distinção entre um grupo de solistas (um cantor
para cada parte) e um coro (mais de uma voz para cada parte)” (DICIONÁRIO GROVE,
1994, p. 225). Atendo-nos a essa distinção tradicional, percebemos que a ideia de coro
pressupõe a ideia de mesmo, de multiplicação — uma mesma parte sendo cantada por mais de
uma pessoa, já que uma polifonia46 em que cada parte é cantada por apenas uma pessoa não
poderia, segundo essa distinção, se configurar como coro, mas como grupo de solistas. A
diferença marcada entre todas as vozes não permitiria reconhecer um tal grupo como coro.
Essa pequena definição nos remete novamente à afirmação de Mégevand feita a
respeito do coro no teatro grego, de que o coro “sempre carrega, mais ou menos
explicitamente em seu horizonte, o traço de um idealismo do uníssono” (MÉGEVAND, 2013,
p. 38). Ora, se uma música polifônica se divide em vozes diferentes que podem se distanciar,
competir, aproximar-se para depois se separar novamente, a característica básica do coro que
canta uma música assim seria multiplicar as vozes (humanas) em cada voz (da composição),
ou fazer aparecer a diversidade de cada uma das partes, tornar cada uma delas um grupo.
Novamente chegamos a uma ideia de coro que não tem muito sentido na abstração. Os
cantores e cantoras que cantam cada parte emitem as mesmas notas ao mesmo tempo. O efeito
ou o impacto da reunião de suas vozes só pode ser percebido na situação mesma do canto,
quando soam em conjunto.

A partir dos poucos fios que puxei para tecer essa imagem, gostaria de defender um
pensamento que penso já ter ficado explícito em muitos trechos do texto: o coro se manifesta
por meio da forma, por meio da multiplicidade de atuantes. Retomando as ideias de peso
cênico ou massa sensível, especialmente o que foi depreendido do pensamento de Schiller e as
posteriores contribuições de Nietzsche, é possível dizer que o coro só existe na performance.
Um texto para coro não é um coro. Sua natureza, o que o caracteriza como coro, não é o
canto, nem a comunicação verbal e menos ainda um tipo específico de conteúdo veiculado por

le choix d’un tel type de choeur plutôt qu’un autre sera bien évidemment déterminant pour l’histoire que vous
voulez raconter. »
46
A ideia de polifonia é explicitada no capítulo 5.
42

seu discurso ou as funções que assume em determinada trama, mas a performatividade do


grupo cênico, que veicula sentidos apreendidos antes e além da emissão de qualquer
mensagem e que são determinantes para a apreensão da mensagem que porventura o coro
emita. Antes de dizer qualquer coisa, o coro se diz coro. É, portanto, o aparecer47 de um
coletivo em cena que nos permite falar de coro.
O coro da tragédia ateniense, como a grande referência invocada para o trabalho coral
no teatro, se mostra bastante fértil para a sustentação dessa ideia. Autores e autoras que
trouxemos para o diálogo, especialmente Dupont, nos mostraram que aqueles coros estavam
em um contexto de enunciação bastante preciso, contexto que os coros não permitiam que
fosse esquecido. Sua presença na cena não apenas evocava, mas atualizava a tradição dos
cantos e danças rituais, especialmente os coros de luto. Elemento invariável da tragédia, que
foi se formando em torno dele, o coro trágico é a sede do ritual nessa estrutura. Cada
performance de um coro trágico instaura um diálogo com a tradição e, por conseguinte, com
os outros coros passados e vindouros, no presente de seu comportamento reiterado. Sua
presença não se dá em função da trama, mas a trama é criada para justificá-la.
Ligado ao ritual, dentro e fora da rede de sentidos estabelecida pela dramaturgia
textual, o coro trágico ateniense é um elemento com alta carga de performatividade.
Considerando que a teatralidade depende da criação de um espaço semiotizado, espaço outro,
separado do real, em um processo de criação que pode ser disparado por uma atitude do artista
ou pelo olhar do espectador; considerando também que a performatividade está ligada à
presença real do performer e à eficácia de sua ação no mundo48, assumindo ainda que o coro é
a peça ritual que há na tragédia (e por isso tem um estatuto limítrofe entre performativo e
teatral), que pode ser visto como coro aqui e agora mesmo durante o espetáculo, concluo que
sua carga de performatividade é muito superior à teatralidade que carrega, pelo menos em
comparação aos outros atores da tragédia. Para sintetizar essa reflexão em uma fórmula,
proponho que a performatividade da aparição múltipla é a condição de existência do coro.

47
“Aparecer” é aqui empregado no sentido de dar-se a ver, ou antes dar-se a perceber, já que o aparecer pode ser
apreendido pela visão, pela audição, pela percepção espacial, no caso de um coro às escuras, por exemplo.
Utilizo, nesta primeira vez em que enuncio a ideia, o termo “aparecer” no lugar de “aparição” porque o último
poderia sugerir um momento pontual da revelação de algo que estava oculto e estou mencionando toda a
duração do processo de se dar a perceber. A palavra aparição poderá ser usada em outros momentos, nesse
sentido. Também preferi não trazer a ideia de presença para não entrar em debates, por exemplo, sobre os
meios tecnológicos que nos permitiriam a aparição de um coro disperso no espaço (e, por que não, no tempo)
e porque conheço experiências de coros na linguagem do teatro de animação, que sem dúvida promovem um
aparecer coral, mas geram questionamentos sobre a presença, já que não há manipuladores junto a esses
objetos.
48
Cf. FÉRAL, 2015; FERNANDES, 2013.
43

Definição pensada para o coro ritual-teatral da tragédia grega, mas que considero aplicável a
qualquer coro, cuja multiplicidade comunica a si própria independente dos conteúdos verbais
ou ficcionais. Além disso, essa definição tem a vantagem de dificultar a consideração de
confidente, raisonneur ou qualquer figura individual que enuncia um pensamento ‘coletivo’
como herdeira ou reelaboração do coro, atitude que o olhar teórico textocêntrico consagrou e
que se apoia na partilha de algumas funções dramáticas entre essas figuras e o coro da
tragédia clássica, seja ateniense ou romana.

O questionamento da massa cênica, a transferência das lógicas corais para


composições teatrais sem a figura do coro, a fundação de comunidades cênicas não coesas em
que uma lógica coral (grupal, comunitária) opera nos levam ao território da coralidade. É na
busca de compreender melhor esta noção e as potencialidades cênicas por ela mobilizadas que
nos lançaremos no próximo capítulo.
44

3 DISCURSOS SOBRE A CORALIDADE

Neste capítulo serão abordados autores, autoras e obras que se referem explicitamente
ao termo coralidade ou que têm relação direta com desenvolvimentos a respeito desse termo,
por exemplo, Peter Szondi, que é tomado como ponto de referência para as investigações de
Jean-Pierre Sarrazac. As primeiras considerações estarão centradas no campo da dramaturgia,
já que o termo coralidade surge, para os estudos teatrais, no campo da escrita para o palco.
Tendo isso em mente, iniciarei por uma breve referência à teoria dos gêneros para expor o que
poderemos entender aqui por ‘dramático’, ‘épico’ e ‘lírico’. Logo em seguida, apresentarei
uma gama de pensamentos sobre a coralidade no texto e na cena, baseado principalmente em
autores francófonos, buscando entender o pensamento sobre coralidade dos autores que se
tornaram referência para o uso desse termo. Prossigo apresentando alguns exemplos de
formas e práticas corais já mapeados na cena europeia e brasileira. Coralidade é também um
termo presente em discursos sobre a literatura, o cinema e a performance, e esses aspectos
serão apresentados brevemente para que possamos estabelecer um panorama mais amplo e
recolher imagens férteis para artistas da cena no trabalho com a coralidade tomada como
princípio de criação.

3.1 Teoria dos gêneros: a proposta de Emil Staiger

Quase qualquer texto sobre o assunto aponta que a teoria tripartida dos gêneros
literários — que os divide em lírico, épico e dramático — já foi muito combatida, é
considerada ultrapassada por alguns estudiosos e mesmo desconsiderada por outros, apesar de
ainda se fazer presente em numerosas obras. A autoria dessa divisão é atribuída por alguns a
Aristóteles e outros a localizam mesmo em Platão, mas estudos que hoje não podem ser
chamados de recentes49 opõem-se a essa procedência, localizando o início da tríade no
período romântico, quando o gênero lírico teria sido reconhecido, ao contrário do que
acontece nas obras dos mestres gregos, já que Platão distingue as obras a partir do modo de
narração — narrativo, dramático ou misto — e Aristóteles a partir do que chama de modo de
imitação — narrativo ou dramático —, sem evocarem aquilo que chamaríamos hoje de gênero
lírico, como os poemas de Safo ou Píndaro, por exemplo. (GENETTE, 1987).

49
Cf. GENETTE, Gérard. Introdução ao arquitexto. Lisboa: Vega, 1987, que cita, assim como outros autores,
BEHRENS, Irene, Die Lehre von der Einteilung der Dichtkunst, Halle, 1940, como uma referência para a
refutação da origem grega da tripartição dos gêneros.
45

Deixando de lado as questões históricas, se essas três categorias não servem mais para
qualificar os gêneros, que se multiplicam indefinidamente, podem nos ajudar se entendidas
como modos poéticos ou conceitos fundamentais da poética. Especialmente porque as obras
que mobilizam a coralidade promovem a confluência de modos poéticos em seu interior.
Conceitos fundamentais da poética é justamente a tradução em português do título da
obra de Emil Staiger, autor suíço do século XX que buscou encontrar elementos estáveis —
poderíamos dizer ‘uma essência’ — que caracterizassem os adjetivos ‘lírico’, ‘épico’ e
‘dramático’. Escolhi passar por Staiger, autor pouco citado na área teatral, uma vez que suas
definições influenciaram seu aluno Peter Szondi, cujo trabalho influenciará por sua vez as
obras mais recentes de Jean-Pierre Sarrazac (depois de O futuro do drama) e a obra de Hans-
Thies Lehmann (aluno de Szondi), Teatro pós-dramático, que, se não é uma referência maior
neste texto, é um marco importante nos estudos teatrais e durante mais de uma década se
afirmou como referência obrigatória para o discurso sobre a cena, especialmente quando este
se voltava à discussão dos gêneros. Também considero necessário retornar a Staiger porque
penso que, para o estudo dos modos poéticos, sua proposta oferece um ponto de vista e
soluções mais interessantes do que as encontradas por seu aluno e pelos autores que
trabalharam a partir deste.
Staiger diferencia o uso adjetivo dos gêneros (lírico, épico, dramático) de sua
utilização substantiva — a Lírica, a Épica e o Drama (ou a Dramática).50 Os traços do lírico
são analisados em obras pertencentes à Lírica, os do épico nas epopeias e os do dramático nos
dramas, campos nos quais podem ser encontrados os exemplos típicos de cada um. Para o
autor, tentar encontrar fundamentos ou manuais de regras de composição para a Lírica, a
Épica e o Drama era uma tarefa quase impossível e de pouco proveito, especialmente se
visasse à catalogação das formas. O trânsito efetivado desde sempre entre o que é expresso
pelo adjetivo (os modos, conjuntos de traços) e pelo substantivo (os gêneros, grandes grupos
de espécies) torna essa tarefa ainda mais ingrata e sem sentido. “Ao falar de ‘clima lírico’
(‘lyrische Stimmung’) ou de ‘tom lírico’, ninguém está pensando num epigrama; mas
qualquer pessoa pensa imediatamente em uma canção (Lied)” (STAIGER, 1972, p. 15).
Staiger buscou, assim, definir aqueles traços que nos permitem qualificar uma composição de
‘drama lírico’, por exemplo. Por que lírico? Que características essa palavra aponta que

50
Farei uma distinção neste trecho entre modo (o épico, o lírico e o dramático, que expressam um conjunto de
traços), gênero (a épica, a lírica e o drama (e o romance ou outros gêneros posteriores) e espécie (ou
subgênero: a tragédia ática, a farsa, o drama burguês, o conto, a novela, etc) para tornar o texto mais
compreensível.
46

transbordam para além do dramático? Mesmo quando, na linguagem corrente, chamamos um


jantar de épico ou uma partida de um esporte qualquer de dramática, o que estamos querendo
dizer com esses adjetivos? Há um conteúdo mais ou menos fixado que baliza esse uso;
sabemos o que queremos dizer quando utilizamos esses termos, ou não os utilizaríamos.
Para Staiger, o lírico é território da recordação, mas recordação aqui não deve ser
entendida como a evocação de acontecimentos passados. Quando o poeta trata do passado,
revive-o em sua subjetividade. No poema lírico o poeta torna-se um só com o mundo. Sua
poesia nasce de uma disposição da alma que se expressa como linguagem. Staiger (1972, p.
59) explica que essa disposição “não é nada que exista ‘dentro’ de nós; e sim, na disposição
estamos maravilhosamente ‘fora’, não diante das coisas mas nelas e elas em nós”. Os objetos
são antes estados para o poeta lírico. Daí que, para o autor, as poesias mais líricas geralmente
são curtas, pois a disposição anímica não se sustenta por muito tempo. As imagens da lírica
não são as imagens que podem ser objetivamente percebidas no mundo, mas as imagens
sentidas pelo poeta.
O épico é apontado por Staiger como o modo da apresentação. O autor épico narra,
descreve, e o faz com mundos vastos e detalhados. Não há pressa em sua narração. Cada
objeto, cada acontecimento, pode ser visto de forma minuciosa. O épico procede por adição:
uma parte independente soma-se à outra e é apreciada enquanto tal. A atenção do ouvinte
mantém-se por meio de procedimentos de contraste e intensificação, além do maravilhamento
das próprias imagens apresentadas, mas o épico está pouco interessado em construir uma
‘narrativa amarrada’, com uma linha de tensão direcionada a um ponto específico, coisa que
inclusive se esforça para não fazer.
O dramático é o terreno da tensão. Se o lírico carrega um tom de revivescência, de
nostalgia, devido à disposição anímica que lhe gera, e que é das coisas mais fugazes, e o épico
mantém a calma de uma existência no presente mesmo retomando eventos passados, o
dramático se projeta a todo momento para o futuro, embora se passe no presente. Aqui os
acontecimentos sucedem-se em progressão, fazendo crescer a tensão que o épico se empenha
a todo momento em frustrar e que está ausente no lírico. Duas modalidades de tensão se
encontram na formação do dramático: o problemático e o patético. O estilo problemático é
aquele que coloca uma situação a ser solucionada, que propõe a busca de uma resolução, um
desfecho; e o patético é a explosão da paixão, da dor, ou do desejo de algo. O pathos se dirige
contra um objeto externo, querendo suprimir sua distância, convencer os ouvintes de seu
ponto, mesmo que o ouvinte seja o próprio herói, falando para si mesmo. O herói patético
47

sempre guarda uma distância, seja dos espectadores, seja das outras personagens. O pathos é
sempre elevado, está além dos estatutos sociais ou das necessidades básicas. Essas duas
modalidades fazem a personagem se dirigir para fora de si, em busca de um objeto, e o drama
avançar. Poderíamos ensaiar uma definição curta, com todos os problemas desse tipo de
fórmula, dizendo que o modo dramático consiste em ação que avança.
E aqui devemos ser cuidadosos, já que o dramático não é necessariamente sinônimo de
teatral e nem mesmo de drama. O palco, a linguagem teatral, é de alguma forma um destino
natural do dramático, mas não é seu domínio. Em outras palavras: o dramático geralmente se
destina ao palco, mas nem tudo o que se destina ao palco é dramático. O dramático é um
modo de construção do discurso, o teatral depende da situação da cena. E na cena muita coisa
pode acontecer. O orador, o pregador, o contador de histórias, podem estar na situação teatral
e não articularem uma composição dramática. E quanto ao drama, se em sua origem está
embebido do dramático (ação se falava dran no dialeto dórico, nos diz Aristóteles), torna-se
um gênero, uma família de subgêneros ou espécies — tragédia, comédia, drama burguês,
comédia comovente — que pode muito bem passar em algum momento pelos dramas
estáticos de Maeterlinck ou Fernando Pessoa, que justamente por serem estáticos têm pouco
de dramático. Um conjunto de características da obra, o contexto no qual se inscreve, e a
decisão do autor em atribuir-lhe um gênero específico51 são determinantes para nossa
percepção sobre a pertença ou não de um texto aos terrenos do que hoje poderíamos chamar
de poesia, dramaturgia ou narrativa. Staiger, inclusive, se remete a alguns dramas alemães
que, em sua concepção, não são dramáticos.
Para Staiger, não há poema — melhor seria dizer ‘texto literário’ — que expresse
puramente um gênero fundamental. O lírico, por exemplo, tem como cerne a sensação do
mundo e a unidade com ele. Quando se objetiva em forma de poesia, já está misturado a
traços épicos e dramáticos, ou seria apenas uma articulação de sílabas tentando exprimir em
som um estado da alma. Aceitando a sequência progressiva proposta pelo autor, podemos
dizer que quando a humanidade chega ao momento de expressar o lírico, é porque já passou
do momento épico e entrou no dramático, já que os traços de narração e conflito são
necessários para fixar o lírico em poema. Staiger chega a propor que uma obra seria tão mais
perfeita quanto mais equilibradamente participasse dos três gêneros. Rosenfeld, que se serve
em grande medida de suas considerações (apesar de fazer o esforço de remontar a teoria dos
gêneros a Platão e Aristóteles) declara que “A pureza em matéria de literatura não é

51
Um drama é o que chamo um drama”, declara a frase de Heiner Müller citada por Sarrazac (2017, p. XIII).
48

necessariamente um valor positivo. Ademais, não existe pureza de gêneros em sentido


absoluto” (ROSENFELD, 1985, p. 16).
Aqui nos encontramos em um panorama muito mais generoso e aberto às
possibilidades de cruzamentos do que em elaborações posteriores que delimitam o fenômeno
da existência dos gêneros no tempo e no espaço. Especialmente nas elaborações que de
alguma maneira prevaleceram no campo teórico das artes cênicas nas últimas décadas. Por
exemplo, a ‘crise do drama’ detectada por Szondi, parece-me, poderia ser uma questão de
tendência histórica, mas não um problema conceitual para seu professor, que já em sua obra
aponta dramas alemães que considera nem um pouco dramáticos. Falar em um ‘teatro pós-
dramático’, como propôs Lehmann, também não parece fazer muito sentido frente a essa
proposta, uma vez que o dramático para Staiger é um modo poético, um traço perene da
construção do discurso e, portanto, sua maior ou menor participação numa obra não pode
fazê-la ‘pós-dramática’, já que os gêneros fundamentais sempre participam das obras reais em
graus diferentes e permanecem como potência aquém e além delas, inerentes à própria
possibilidade da criação. 52

3.2 Necessária digressão pela dramaturgia 1: “drama puro” e banimento do coro, crise
do drama

Depois de seu banimento na Alta Idade Média, o teatro ressurge, após o século XI,
primeiro a serviço da liturgia católica e depois em formas profanas que tomam as ruas e feiras
das cidades medievais. Numerosas formas espetaculares floresceram nesse teatro, livres que
estavam tanto de uma institucionalização quanto do magistério dos antigos, seja de Aristóteles
ou de seus pretensos repetidores.53

52
Embora saibamos que “dramático” na acepção dada por Lehmann se refira ao drama burguês (ou “puro”),
próximo da definição de Peter Szondi.
53
E esse teatro medieval continha numerosas formas de coralidade que não serão abarcadas na dissertação tanto
por merecerem um olhar mais detido, com contextualizações históricas, quanto pelo fato de que não me
proponho a fazer um estudo exaustivo. Também considero importante afirmar agora, no início deste capítulo,
que a coralidade, como qualidade e princípio de criação, pode ser detectada em manifestações artísticas nos
mais variados momentos históricos e nos mais variados contextos, não necessariamente ocidentais ou
europeus. Considerar essa variedade de expressões da coralidade nos permitirá confrontar o discurso teórico
sobre a coralidade com as práticas (ou o rastro delas) do teatro medieval, do século de ouro espanhol, do
teatro elisabetano, de manifestações artísticas de etnias nativas da América, da África e de todo o mundo não
europeu (ou mesmo pré-colonização europeia). Esse confronto entre o discurso teórico e as práticas europeias
que não buscam filiação ao teatro ateniense, e especialmente as práticas não europeias ou não ocidentais,
poderá levar ao alargamento ou à revisão de noções estabelecidas com base em discursos e práticas
ocidentais. Esse debate, no entanto, foge ao escopo deste trabalho, que pretende construir um panorama do
pensamento sobre coralidade já desenvolvido em matrizes ocidentais contemporâneas.
49

Com o Renascimento e a redescoberta dos clássicos, primeiro dos romanos e depois,


especialmente, de Aristóteles, a dramaturgia começa a ser enquadrada por regras derivadas —
muitas vezes de uma superinterpretação — da Poética. E esse afã por encontrar regras nos
textos antigos continha em si a semente do equívoco, já que

Os tradutores e teóricos renascentistas ligados à Poética fizeram seu trabalho muitas


vezes sem conhecer os textos artísticos gregos originais. O autor de tragédias mais
divulgado até então fora o latino Sêneca, cuja produção não apresentava, a não ser
em um ou outro aspecto, as recomendações subsumidas no tratado de Aristóteles.
(MOSTAÇO, 2018, p. 201).

O período de forte controle dramatúrgico nascido da aplicação das regras


‘aristotélicas’ será conhecido como Classicismo e será experimentado pelos diversos países
europeus em diferentes graus. Particularmente severo na França, permanecerá quase nulo na
Inglaterra. A mais tristemente célebre herança do classicismo francês para a dramaturgia será
a regra das três unidades: unidade de ação, tempo e espaço, das quais a primeira é afirmada na
poética, a segunda vem de uma superinterpretação de menções ao tempo do espetáculo e à
duração do poema e a terceira é criação posterior. O fim dessa vigilância dramatúrgica está
ligado às aspirações da classe burguesa por se ver no palco, o que vai promovendo alterações
nas concepções relativas aos sujeitos que podiam ser representados cenicamente e de que
forma essa representação poderia ser efetuada, além das exigências dos românticos em relação
à liberdade do criador a despeito de qualquer código de regras.
É importante manter esse horizonte em mente ao falar do desaparecimento do coro na
dramaturgia dominante. A renúncia ao coro é notável na forma dramatúrgica que Peter Szondi
denomina drama, uma retomada da acepção substantiva do gênero para designar um modelo
em que as obras correspondiam quase na totalidade ao modo dramático. O teórico húngaro
situa o drama da idade moderna, ou ‘drama puro’, em um arco temporal que vai do
Renascimento aos anos de 1880.54 Em seu entendimento, o drama compõe-se de um conflito
intersubjetivo no presente, em uma sequência de presentes absolutos, cada acontecimento
gerando o seguinte55, já que o drama seria um mundo absoluto que não se refere a nada
externo a si mesmo. Fatos históricos ou o ‘eu épico’ necessário a uma montagem temporal —

54
E o drama não é um guarda-chuva que englobaria todas as dramaturgias existentes no período. Na fabricação
de seu conceito, Szondi exclui as formas que não se adequam a ele, por exemplo, as peças históricas de
Shakespeare, que deixam a montagem evidente e necessitam de contextualização histórica.
55
O que, em uma leitura desatenta, pode parecer uma contradição com a conceituação de Staiger do dramático
como modo do futuro, mas as duas ideias estão de acordo, já que para Staiger o dramático é ligado ao futuro
por seu caráter de desenvolvimento do acontecimento, assim como nas proposições de Szondi.
50

como a frase subentendida “deixemos passar três anos” — subvertem o caráter absoluto do
drama e destroem seu caráter de sequência de presentes absolutos. Aqui se revela a
importância do Classicismo e o entendimento de ‘dramaturgia dramática’ que o atravessava
para a constituição desse fenômeno que Szondi chama de drama.
O drama como postulado por Szondi, se pode ser identificado em comédias e
tragédias, como em algumas obras de Shakespeare, por exemplo, mostra-se com mais força
no chamado drama burguês, nomeado assim no século XVIII, em um movimento de
subversão da poética normativa classicista. Esta postulava, entre outras coisas, a separação
dos gêneros e a cláusula dos estados (SZONDI, 2004), ou seja, o preceito de que tragédia e
comédia deveriam ser gêneros separados e incomunicáveis, a tragédia tratando apenas de
figuras nobres e a comédia trazendo em seus enredos apenas pessoas das classes baixas, de
quem se poderia rir sem culpa e justamente. O drama burguês se constituiu como gênero
intermediário, misto de tragédia doméstica (privada, com um panorama mental da classe
burguesa) e comédia comovente (gênero que não tratava da nobreza, mas não queria fazer rir).
Nesse longo processo de construção do gênero, se afirmava o homem burguês com seu drama
doméstico, suas preocupações morais, sua dramaturgia da esfera privada.
O coro está ausente do drama por esta ser uma forma que dá destaque ao indivíduo.
Forma literária da burguesia ascendente, o drama joga luz sobre os conflitos individuais do
burguês, do homem médio, que estava excluído da tragédia, aristocrática por natureza e
tradição. O drama aqui é figura da autoafirmação de um ser humano que, através da ação no
confronto com outros seres humanos, conquista seu lugar no mundo e cumpre seu destino. E o
meio que expressava o confronto inter-humano era o diálogo. “Depois de eliminados prólogo,
coro e epílogo, ele se tornou no Renascimento, talvez pela primeira vez na história do
teatro, o único componente do tecido dramático (ao lado do monólogo, que permanecia
episódico e portanto, não constitutivo dessa forma)” (SZONDI, 2011, p. 24, grifo meu).
Segundo Raymond Williams, que se remete às transformações da forma dramática desde o
teatro grego: “Assim, um novo elemento formal — o do diálogo representado entre indivíduos
— pôde ser acompanhado desde seu surgimento no interior de uma determinada forma geral
até seu surgimento como forma geral autônoma” (WILLIAMS, 1992, p. 149 apud
CORDEIRO, 2010, p. 56). O drama, na acepção szondiana, pode também ser considerado
como sinônimo de diálogo.
Szondi detecta que a partir dos anos de 1880 ocorreu um fenômeno chamado por ele
de “crise do drama”: a introdução, no seio da forma dramática, de características que minam o
51

seu caráter de fato intersubjetivo no presente. Outras temporalidades evocadas sabotam o


desenvolvimento da ação no presente, realidades intrassubjetivas (mundo interno, lirismo) ou
extrassubjetivas (condições objetivas determinantes para a ação cênica, elementos épicos)
minam o caráter de conflito entre seres humanos, e as variadas molduras ou referências à
realidade social do mundo dos espectadores minam o caráter de fato absoluto.
A própria categoria de ação perde espaço em algumas dramaturgias da crise,
especificamente nas obras iniciais de Maurice Maeterlinck, nas quais a morte, como destino
inevitável, surpreende os homens. Passa-se, aqui, da categoria de ação para a de situação. Em
sua análise de Os cegos, Szondi oferece uma pista importante para nosso foco de estudo:

Distancia-se do diálogo de muitos modos a forma em grande parte coral da


linguagem; subtrai-se assim às réplicas até a pouca individualidade que diferencia
os doze cegos. A linguagem ganha autonomia, desaparecendo seu vínculo (de
natureza dramática) com uma situação específica: ela não é mais expressão de
alguém que espera por uma resposta, mas reproduz o estado de ânimo que reina
na alma de todos. Sua distribuição em “réplicas” individuais não corresponde a
nenhum diálogo, como no drama genuíno, mas espelha somente a cintilação
nervosa da incerteza. Ela se deixa ler ou ouvir sem que se atente àquele que no
momento fala: o essencial é sua intermitência, não a referência a um eu atual.
Mas mesmo isso não expressa, em última análise, senão o fato de que as dramatis
personae, longe de ser os autores — isto é, os sujeitos de uma ação —, aqui não
passam, no fundo, de seus objetos. (SZONDI, 2011, p. 63-64. negritos meus)

A análise de Szondi, embora não utilize o termo, antecipa em muitos pontos


formulações de autores contemporâneos sobre a coralidade. Sarrazac (2017, p. 163) dirá que
“é com o teatro simbolista que aparece a coralidade”, analisando os textos breves de
Maeterlinck, entre eles Os cegos.
Retomando a metáfora do ‘belo animal’ aristotélico56, segundo a qual o mythos,
coração do drama para Aristóteles, deveria ter proporções e unidade segundo o modelo
biológico, Jean-Pierre Sarrazac, que utiliza a metáfora para se referir a um drama
eminentemente dramático, aponta que a subversão da estética clássica se dá majoritariamente
numa intervenção sobre esse “lugar metafórico onde se opera uma concepção organicista do
drama” (SARRAZAC, 2002, p. 53) e acrescenta: “o drama sentia-se apertado na pele do ‘belo
animal’; o seu sangue aspirava a ser misturado” (SARRAZAC, 2002, p. 54). Ao contrário de
Szondi, que, na esteira de Brecht, percebia o épico como destino do drama, Sarrazac detecta e
propõe a noção de transbordamento dos gêneros uns pelos outros. Épico, lírico e dramático, e
até mesmo romanesco, fundem, criam híbridos distantes da idealização do ‘belo animal’.

56
Ver p. 20.
52

A proposta de Sarrazac é, então, a de uma dramaturgia rapsódica. Rapsódica porque


evoca a imagem dos rapsodos, os cantores que cantavam trechos das epopeias homéricas pela
Grécia; porque evoca a noção musical de rapsódia (em si derivada da atividade dos rapsodos):
composições muito livres, especialmente aquelas que incorporam trechos de outras peças,
geralmente folclóricas; porque tem a ver com a palavra francesa rhapsoder, que poderíamos
traduzir pelo nosso remendar57. Existiria, na escrita dramática, uma pulsão rapsódica, uma
tendência para juntar pedaços díspares, fazer coexistir diferenças, unir sem fundir. O
dramaturgo seria, especialmente em nossos tempos, um autor-rapsodo. Sarrazac enumera em
seu livro

os princípios característicos da rapsodização do teatro: recusa do “belo animal”


aristotélico e escolha da irregularidade; caleidoscópio dos modos dramático, épico e
lírico; reviravolta constante do alto e do baixo, do trágico e do cômico; junção de
formas teatrais e extrateatrais, formando o mosaico de uma escrita resultante de uma
montagem dinâmica; passagem de uma voz narradora e interrogante, que não
poderíamos reduzir ao “sujeito épico” szondiano, desdobramento (nomeadamente
em Strindberg) de uma subjectividade alternadamente dramática e épica (ou
visionária)... (SARRAZAC, 2002, p. 229-230)

A noção de crise da forma dramática é reenquadrada pelo autor francês, que propõe a
noção de uma crise permanente. A escrita dramática teria na crise seu terreno natural e suas
mudanças de curso podem, assim, ser entendidas como constitutivas de sua existência
enquanto gênero. Certo é que a diversidade formal se acentua na modernidade e
contemporaneidade. As formas de criação artística tornam-se cada vez mais afastadas do belo
animal idealizado. Mas esse afastamento não é um dever do drama, um destino obrigatório; é
o indício do que talvez se poderia chamar de seu florescimento: “Na verdade, não se trata de,
em nome de um qualquer modelo ‘mecanicista’, desumanizar o drama, mas sim de produzir
obras contra naturam e preferir à imitação rígida da bela natureza a livre variedade dos
monstros.” (SARRAZAC, 2002, p. 56). Um movimento criativo que entende o drama como a
forma mais livre — a rapsódia —, o que não equivale à ausência de forma. (SARRAZAC,
2002, 224). Ou um movimento que parte da simples constatação de que “um drama é o que
chamo um drama” (MÜLLER apud SARRAZAC, 2017, p. XIII).

57
Seguindo a indicação de Alexandra Moreira da Silva, tradutora de O futuro do drama para o português,
professora do Instituto de Estudos Teatrais da Université Paris III Sorbonne Nouvelle.
53

3.3 Necessária digressão pela dramaturgia 2 e caminho para a cena – Jean-Pierre


Sarrazac e colegas: a coralidade

Segundo Martin Mégevand (2013, p. 37) Jean-Pierre Sarrazac foi o “primeiro a se


arriscar a propor” o termo coralidade em seu livro L’avenir du drame (O futuro do drama) de
1980.58 Se o termo existia antes, seja em francês ou outras línguas, é Sarrazac que vai torná-lo
peça importante do vocabulário teatral.59 O autor afirma na obra mencionada que “o
desaparecimento quase total dos coros no teatro contemporâneo não é senão o efeito aparente
de uma imensa disseminação da função coral. O teatro atual suscita, com efeito, a disposição
coral das personagens” (SARRAZAC, 2002, p. 111). Trazendo a seu texto La jeune lune tient
la vieille lune toute une nuit dans ses bras, espetáculo do Théâtre de l’Aquarium de 1976,
“inteiramente realizado a partir de declarações de operários e operárias que ocupam a fábrica
onde trabalham” (SARRAZAC, 2002, p. 119), cuja composição adquire um tom coral devido
a essa fonte plural e os atores de certa forma abdicam da representação, atuando mais como
contadores dessas falas, Sarrazac diz:

Substituindo radicalmente o actor, que encarna uma personagem, o contador, que é


testemunha de todo um universo — personagens, enquadramento e objectos —, La
Jeune lune... teve o mérito de renovar a abordagem teatral da personagem popular.
Correcção iminentemente necessária. Visto que, se a representação do indivíduo
integrado na massa cede, por vezes, a excessos niilistas — o operário considerado

58
A versão do livro de Sarrazac a que tive acesso foi a tradução portuguesa de Alexandra Moreira da Silva,
datada de 2002. A grafia das citações foi mantida por fidelidade ao original.
59
Como se verá mais adiante, o termo tem uma história bem mais antiga na língua italiana, em que, já presente
no léxico, é disseminado na crítica cinematográfica e posteriormente literária, e no Brasil está presente em
pelo menos uma obra importante de crítica literária anterior à publicação de Sarrazac na França. Não estamos
em contexto teatral, portanto. Além disso, como já foi dito, o termo é um neologismo bastante fácil, podendo
ser empregado espontaneamente por qualquer pessoa que não tenha conhecimento de sua história e das
discussões em torno dele. Como exemplo, cito um texto de 31 de janeiro de 1905, de autoria de Camille
Bellaigue, publicado na Revue Deux Mondes, em que, a respeito de La Croisade des enfans, história de
Marcel Schwob e música de Gabriel Pierné, o autor assim se expressa : “A vocalidade da obra e — perdoem
o barbarismo — sua ‘coralidade’ não excluem a sinfonia, no duplo sentido da palavra: seja a vida e a cor
instrumental, aqui generalizada por toda parte; ou, como no prelúdio da primeira e no da segunda parte, o
princípio mesmo, aplicado moderadamente, à francesa, do desenvolvimento das ideias e de sua combinação.”
No original : « La vocalité de l’ouvrage et, — passez-nous le barbarisme, — sa « choralité » n’en exclut
pas la symphonie, au double sens du mot : que ce soit la vie et la couleur instrumentale, ici partout répandue ;
ou bien, comme dans le prélude de la première et dans celui de la seconde partie, le principe même, appliqué
modérément, à la française, du développement des idées et de leur combinaison. » BELLAIGUE, Camille.
Revue musicale - 31 janvier 1905. Revue des Deux Mondes. 5e période, tome 25, (p. 698-708), 1905.
Disponível em : https://fr.wikisource.org/wiki/Revue_musicale_-_31_janvier_1905. Acesso em 20 oct. 2020.
O interessante aqui é que Bellaigue está falando justamente de uma “sinfonia na qual os solistas, malgrado sua
importância e sua beleza, têm sempre apenas o segundo lugar” [“symphonie, où les soli, malgré leur
importance et leur beauté, ne tiennent jamais que la seconde place”]. Embora peça desculpas pelo
‘barbarismo’ o autor de alguma maneira antecipa em muitas décadas alguns dos desenvolvimentos
contemporâneos acerca da coralidade.
54

unicamente de acordo com as suas tendências pequeno-burguesas e regressivas —, a


presença teatral das massas fundamentais abandona-se ainda mais
frequentemente a uma triste coralidade triunfante! Alguns autores ou algumas
companhias parecem querer banir da representação artística toda a tensão entre o
colectivo e os indivíduos e, consequentemente, negar a ambivalência das massas —
quando sabemos bem que estas oscilam constantemente entre a revolta e a
submissão, entre os comportamentos mais “serializados” e a subversão.
(SARRAZAC, 2002, p. 120, negrito meu).

Aqui está, textualmente, nosso termo, e utilizado em acepção oposta àquela que o
caracterizará no pensamento de Sarrazac e seu grupo, como poderemos ver mais à frente. Se
essa “triste coralidade triunfante” é a do apagamento da singularidade em benefício de uma
imagem totalizante de um dado grupo, imagem que é sempre redutora já que encobre as
diferenças que o compõem, a coralidade será trabalhada pelo autor francês em direção à
tensão entre as dimensões individual e coletiva. Prossigamos com a história.
De acordo com Sarrazac, a descoberta da coralidade, para ele, se deu com duas
experiências, uma artística e outra acadêmica. A experiência artística, como dramaturgo nos
anos 70, a partir da escrita de sua primeira peça, Lazare aussi rêvait d’Eldorado (Lázaro
também sonhava com Eldorado, em tradução livre), em que viu “aparecer na escrita, ao lado
das personagens, se posso dizer ‘declaradas’ e bem desenhadas, espécies de esboços de
personagens, mas esboços que não tinham vocação para se tornar personagens completas”60
(SARRAZAC, 2003, p. 28). Em sua segunda peça, L’Enfant Roi, apareceram o que o autor
francês designa como semipersonagens, intituladas por ele de Éphémères (efêmeros), para se
diferenciar das outras duas classes de personagem do texto, Stationnaires (estacionários) e
Transitaires (transitários). Mas Sarrazac fez a prova direta da coralidade como encenador,
montando, em 1973-74, L’Atelier Volant (O ateliê voador), primeira peça de Valère
Novarina. Os empregados de Monsieur Boucot eram apenas seis, três homens e três mulheres,
mas de uma cena a outra tornavam-se “a multidão, uma comunidade indiscutível, (des)unida
pelo sofrimento, pela exploração e os sobressaltos de revolta. O coro dos enganados da terra.
61
Tão atomisados que não chegavam mais a se reconhecer como um coro” (SARRAZAC,
2003, p. 28).
A experiência acadêmica ocorreu no fim dos mesmos anos 70, escrevendo O futuro do
drama, em que observou “essa corrente de coralidade que, desde os anos sessenta e na década

60
Original: “apparaître dans l’écriture, à coté de personnages, si je puis dire, «déclarés» et bien déssinés, des
sortes d’ébauches de personnages, mais d’ébauches qui n’auraient pas eu vocation à devenir personnages
complets”. (SARRAZAC, 2003, p. 28)
61
Original : « la Multitude, une communauté indiscutable (dés)unie par la souffrance, l’exploitation et des
sursauts (ou soubresauts ?) de révolte. Le chœur des bernés de la terre. A ce point atomisés qu’ils ne
parvenaient plus a se reconnaître comme un choeur. »
55

seguinte, atravessava o campo das escrituras dramáticas francesas”62 (SARRAZAC, 2003, p.


28). Para Sarrazac, num primeiro momento, a coralidade era questão dramatúrgica. As
personagens coralizadas apareciam em sua escrita, mas também se revelavam na escrita de
outros autores. O importante aqui, para o autor francês, é

o fenômeno, que se amplificou e se diversificou, de uma nova tendência de escrita,


de uma estrutura dramatúrgica que não era mais a retomada do coro mas sobretudo
sua desconstrução, sua dispersão, sua diáspora. Processo progressivo do personagem
individualizado — do personagem em sua solidez de caractere autônomo — em
proveito de unidades menores, mas constituinte de lugares de palavra
particularmente vivazes e moventes. Palavra que poderia ser considerada parasitária
e subversiva.
[...]
O estatuto de simples “contemplador inativo do acontecimento” que era o do coro
segundo a Poética de Aristóteles, tendia paradoxalmente a se tornar o do
personagem — outrora agente, a partir de então “coralizado”. 63 (SARRAZAC, 2003,
p. 28)

Nesse segundo trecho, Sarrazac adota uma atitude esperada de um dramaturgo e


estudioso da dramaturgia, mas que considero perigosa para a definição da coralidade: pensá-la
a partir das funções que foram atribuídas ao coro e não de sua constituição enquanto coletivo
que aparece, que se dá a perceber. Como expus no capítulo anterior, essas funções foram
atribuídas ou detectadas posteriormente e estão ligadas apenas à progressão dramática e não
ao papel do coro no acontecimento da tragédia. Além disso, definir o estatuto do coro como
contemplador inativo do acontecimento é ignorar exceções importantes, como por exemplo As
Suplicantes, em que o coro desencadeia a ação.
Essa aproximação do personagem singular ao coro é feita por Sarrazac (2002, p. 111-
120) quando detecta que há uma série de personagens individuais em alguma medida
despersonalizados que são circundadas por coros, estes ausentes da dramaturgia. Podemos
detectar a existência desses coros subentendidos devido à relação de pertença que se
estabelece entre aquelas personagens e eles. Essas personagens são obviamente pertencentes a
um grupo social, a uma classe qualquer, e seu comportamento e seus conflitos são
determinados por essa pertença. A figura do coro aqui é uma imagem interessante porque
contempla tanto a pertença a um coletivo quanto a despersonalização operada na composição
dramatúrgica dessa figura, mas eu gostaria de me distanciar desse uso da palavra coro porque

62
Original: “ce courant de choralité qui, dès les années soixante e dans la décennie suivante, traversait le champ
des écritures dramatiques françaises” (SARRAZAC, 2003, p. 28)
63
Original : « Le statut de simple « contemplateur inactif de l’événement », qui était celui du choeur selon la
POÉTIQUE d’Aristote, tendait paradoxalement à devenir celui du personnage — autrefois agissant,
désormais « choralisé » ».
56

podemos ser mais específicos entendendo esse procedimento dramatúrgico como um


tratamento da classe64. Associar a ideia de coro a essas escritas é priorizar o conteúdo coletivo
em detrimento da forma (ou do acontecimento). O próprio texto de Sarrazac nos oferece um
exemplo interessante dessa diferença de tratamento. Segundo ele, uma série de produções do
Théâtre de l’Aquarium tendia a esse caráter de determinação das personagens por seus papéis
sociais, fato reconhecido pelos atores do grupo em entrevista concedida ao autor. Essa forma
“simplista” gerava maniqueísmos nas relações entre as personagens. Nas produções do grupo
mais próximas do momento da escrita de seu texto (fim dos anos 70), como em La jeune
lune..., citado acima, há uma multiplicidade explícita no texto e na cena, “a forma foi
enriquecendo” (SARRAZAC, 2002, p. 119) ao preço do que Sarrazac chama de diluição do
tema.65 E nesse enriquecimento da forma, agora sim coral, “sentimos, desde então, nas
criações do Aquarium, a seiva da vida.” (SARRAZAC, 2002, p. 19). O jogo coral promove a
sensação do vivo, enquanto o conteúdo coletivo, comprimido em figuras únicas, pode se
tornar totalizante e perder a tridimensionalidade.
A coralidade toma parte na crise da forma dramática deslocando o foco da personagem
— no advento das figuras, personagens menos individualizadas (ou menos substanciais a
priori, personagens “a construir”66) — e da ação fundada no conflito e penetrando “entre
outros, no cerne da cisão entre o monólogo e o diálogo”67 (TRIAU, 2003, p. 5) para a
constituição de uma comunidade no grupo das figuras/personagens. Essa comunidade não é
necessariamente homogênea, e as individualidades, ao contrário do que acontece no caso do
coro clássico, são muitas vezes resguardadas, embora as figuras compartilhem um estado,
uma ação ou uma expressão que se divide entre os membros do grupo. Se, pela pouca
caracterização dramatúrgica dessas figuras em algumas criações, não podemos falar em
individualidades, parece haver pelo menos uma tendência a diferenciá-las entre si. Segundo
Mégevand, a coralidade é o “efeito fantasma do coro” definindo-se em relação a este como “o
que resta do coro quando o coro já não está ali” (MÉGEVAND, 2003, p. 11168).

64
Classe aqui entendida como a reunião de indivíduos sob qualquer marcador social (raça, classe social, gênero,
etnia, etc). Podemos entender a classe, nesse sentido, como um coro em potência, que só se atualiza no
movimento coletivo, geralmente após se reconhecer como classe. Ou seja, é o movimento coletivo que
transforma uma classe em um coro.
65
E que, ignorante tanto do material textual quanto da encenação, imagino que possamos considerar como um
tratamento menos direto do tema.
66
Cf. SARRAZAC, 2002, p. 103-111
67
A data e paginação na citação são do original em francês. A tradução utilizada em todas as citações desse texto
é de Marcus Borja, não publicada.
68
Original : « [...] s’offrant à la pensée comme l’effet fantôme du choeur, le mot suggère d’être abordé en tenant
compte de sa part négative, tant il semble désigner ce qui reste du choeur quand le choeur n’y est plus. »
57

Como vimos, a noção de coralidade indica uma qualidade, ou um conjunto de


qualidades, já que cada obra pode manifestar essa lógica coral de uma forma distinta, o que
torna a síntese difícil para abarcar seus conteúdos. Podemos perceber que os autores a
descrevem geralmente a partir de manifestações concretas em textos ou encenações, já que
esta qualidade ou princípio, apesar da difícil conceituação, indica um conjunto de traços (ou
uma busca) que parecem ser facilmente reconhecíveis na prática. Segundo Triau (2003), a
coralidade se origina do coro e de suas funções, mas passa a designar uma prática mais difusa,
migrando de uma determinação identitária e espacial — ou seja, o coro como grupo de figuras
ao qual se atribui uma identidade e cujos membros, portanto, só têm função reunidos, e que se
circunscreve a um espaço delimitado na encenação ou habita o espaço de maneira própria —
para o funcionamento geral do conjunto da cena.
Embora não haja uma definição precisa que abarque as formas de expressão da
coralidade (e, bom insistir, dada sua multiplicidade, os autores geralmente preferem explorar
a ideia a partir de exemplos concretos) há alguns ensaios de definições e delimitações para seu
uso. Na literatura dramática, segundo Mégevand (2013, p. 37, negrito meu):

à mínima, entende-se por coralidade a disposição particular das vozes, a qual não
provém nem do diálogo, nem do monólogo; a qual, requerendo uma pluralidade
(um mínimo de duas vozes), contorna os princípios do dialogismo,
particularmente reciprocidade e fluidez dos encadeamentos, em proveito de uma
retórica da dispersão (atomização, parataxe, ruptura) ou do entrelaçamento entre
diferentes palavras que se respondem musicalmente (estilhaçamento,
superposição, ecos — efeitos de polifonia, todos). Portanto, o termo permite
apontar com eficácia um modo, que varia conforme cada autor, de suprir as
brechas do diálogo: evocar a coralidade de um dispositivo é inicialmente considerá-
lo pelo ângulo da difração das palavras e das vozes, num conjunto refratário a
toda e qualquer totalização estilística, estética ou simbólica.

Essa citação nos apresenta a coralidade como presente sobretudo em mecanismos que
dão ênfase à musicalidade dos encadeamentos de palavras, mais do que a um
desenvolvimento das personagens ou figuras. Sua presença em uma dramaturgia textual
estaria, para Mégevand, ligada à sonoridade produzida pelas vozes contidas nessa
dramaturgia, que subverte a direção do discurso (endereçamento das palavras ou progressão
do conflito), tomando-o em sua concretude verbal, por assim dizer. Nesse sentido, diz o texto
de Losco e Mégevand, no Léxico:

A coralidade, que afeta a escrita dramática desde o fim do século XIX, corresponde
a um questionamento da concepção do microcosmo dramático e da dialética do
diálogo, tradicionalmente organizadas em torno do conflito. No nível da palavra, a
coralidade se manifesta como um conjunto de réplicas que escapam ao
58

enunciado lógico da ação e que podem estruturar-se de maneira melódica, qual


um canto em várias vozes; no nível das personagens, corresponde a uma
comunidade que não está mais propensa ao desafio do confronto individual. A
coralidade desfaz assim o que Ricoeur designa como “configuração lógica”
característica do mythos aristotélico, e ela privilegia estruturas de irradiação e
fragmentação do discurso. (LOSCO, MÉGEVAND, 2012, p. 62, negritos meus)

Os autores apontam uma coralidade que se dá nas relações entre as palavras das
diversas personagens/figuras, ou entre as enunciações dos performers, pensando na cena, e
outra coralidade que se dá nas relações entre as figuras/personagens elas mesmas, coralidade
que subverte a tradicional estrutura de confronto entre personagens, ou agonística. A
coralidade pode, portanto, ocorrer em diversos níveis, dependendo de que elementos são
organizados de maneira coral. Também parece ser importante lembrar que a coralidade não
precisa necessariamente estar presente no todo de um texto ou espetáculo, podendo irromper
em um momento específico e voltar a desaparecer na tessitura de uma obra. Nessas duas
citações, o que está na base do processo de composição é a subversão, ou passagem ao largo,
do conflito, seja entre as palavras ou entre as personagens, a coralidade sendo uma das
maneiras em que se dá essa subversão ou esquiva, embora seja também um princípio não
necessariamente atrelado a esse objetivo específico.
Voltando a Sarrazac, a leitura da Poética do Drama Moderno nos mostra a localização
da coralidade, no pensamento do autor, no discurso sobre a perda de substância da
personagem dramática. Não mais uma personagem viva, comparável à personagem de
romance, a personagem de teatro torna-se uma impersonagem (título do subcapítulo em que
Sarrazac localiza a(s) coralidade(s)), uma figura. Nesse texto, o autor francês desenvolve a
noção em direção a um afastamento definitivo do modelo do coro clássico, situando-a
inapelavelmente na contemporaneidade. Na trilha da análise d’Os cegos feita por Szondi e
exposta acima69, Sarrazac (2017, p. 163) afirma “É com o teatro simbolista que aparece a
coralidade”. Levando a cabo uma ideia que se revelava já no verbete Coro/Coralidade do
Léxico, sentencia: “A coralidade é a perda do coro” (SARRAZAC, 2017, p. 167). E,
discorrendo sobre O Interrogatório, de Peter Weiss, estabelece uma divisão irremediável:

Quanto à coralidade das nove testemunhas — coralidade e não coro, na medida


em que suas intervenções permanecem distintas e individualizadas —, ela
assume a diversidade de posições e de atitudes, quer se trate de detentos que tenham
sobrevivido à solução final, ou daqueles que — no limite entre testemunhas e
acusados — contribuíram para aplicá-la. (SARRAZAC, 2017, p. 169, grifo meu).

69
Na página 51 da dissertação
59

Partindo de textos de Sarrazac e seus colegas (Triau, Mégevand, Losco), poderíamos


dizer que a coralidade é um princípio de criação que tensiona a dimensão individual e a
dimensão coletiva, dando ênfase ora a uma, ora a outra. Para sermos fiéis a essa definição,
devemos considerar que quando a dimensão individual — o olhar para cada ser único — é
apagada em proveito de uma coletividade coesa (monumental, mística ou o que quer que seja)
não estamos no terreno da coralidade, assim como quando a imagem de um coletivo não
chega a se constituir devido ao enfoque fechado nos indivíduos, mesmo que sejam
numerosos. O primeiro caso é o do coro massivo, monolítico, o segundo é o da
hiperindividualidade, herdada do drama burguês e fortalecida cada vez mais pela lógica da
sociedade contemporânea.

3.4 Coralidade em cena

Como já vimos, no contexto d’O futuro do drama e mesmo do Léxico do drama


moderno e contemporâneo, a coralidade é identificada com a escrita dramática, como um
“procedimento de escrita” (HERSANT; NAUGRETTE, 2012, p. 153). Mégevand (2013, p.
37), no entanto, afirma que a noção pode servir também para “qualificar e explorar estéticas
híbridas, próximas da instalação, que não se apoiam em textos a não ser sumariamente”, e cita
como exemplo os trabalhos de Bob Wilson, François Tanguy e Romeo Castelucci; e Triau
(2003, p. 5) menciona o surgimento de “espetáculos (e às vezes momentos de espetáculos)
fundadores ou emblemáticos desse desejo novo de interrogar a coralidade” na primeira
metade da década de 90, na França. O exemplo usado por ele para os momentos de
espetáculos é o segundo ato de uma montagem de O Jardim das Cerejeiras, realizada por
Stéphane Braunschweig, em 1992, que entremeava os tratamentos dialógico, monológico e
coral para o texto, com as personagens emergindo de pequenos alçapões de frente para o
público e a conversação realizando-se entre essas figuras isoladas. Esses apontamentos
removem a coralidade do domínio único da escrita dramática para reconhecê-la como uma
característica ou um princípio — a ser — desenvolvido também no campo da encenação.
E localizar a coralidade no campo da encenação é localizá-la também na fala dos
artistas da cena, como faz Triau, que, no discurso dos encenadores franceses dos anos
90/2000, percebe que “é mais um campo que propriamente um modelo estabelecido que
60

determina o uso desse termo; questionamentos mais que procedimentos”.70 (TRIAU, 2003, p.
5). O autor aponta alguns exemplos práticos de coralidade, como no espetáculo Lumières
(Luzes), de Georges Lavaudant, em 1995, a “escolha de uma forma fragmentada” (TRIAU,
2003, p. 5) que divide o discurso em várias figuras próximas de seres anônimos, os quais,
compartilhando a narrativa, tornam-na mais próxima da profusão e entrecruzamento de vozes
do mundo; também nas montagens dos textos de Pasolini realizadas por Stanislas Nordey no
início da década de 90, onde a aspiração coral se manifestava em três especificidades, sobre as
quais seu trabalho era construído: “a vontade de inscrever, no centro do espetáculo, a energia
coletiva do grupo, a escolha de atuar de frente para o público, [...] a afirmação de um ‘teatro
da língua’ ou de ‘um teatro dos poetas’” (TRIAU, 2003, p. 6) em que a encenação seria a
travessia de uma língua sustentada pelo conjunto dos intérpretes. Esteticamente, a retomada
da questão e do modelo do coro, como ele emerge nos anos 90, recusa a configuração
monolítica, massiva, numa busca pela polifonia e plasticidade da forma. A contribuição de
outras áreas artísticas (música, dança e artes visuais) também contamina a cena teatral com a
questão do conjunto e da reconsideração das hierarquias.
Também é uma característica marcante das montagens reunidas sob o signo da
coralidade o enfrentamento da questão “como estar juntos” (TRIAU, 2003, p. 6) no mundo
contemporâneo, em que o modelo antigo de coro se revela insuficiente, as “utopias
comunitárias” desmoronaram e o individualismo cresce mais e mais.
A esse respeito, é interessante notar que Patrice Pavis, em seu Dicionário da
Performance e do Teatro Contemporâneo constata — na contramão de Triau, e talvez com
outro recorte temporal, dada a diferença de 11 anos entre os textos71 — “a volta do coro na
escritura e na encenação contemporâneas” (PAVIS, 2017, p. 246) e a identifica como uma das
“formas novas” da relação entre Política e teatro, o verbete no qual encontramos a coralidade
em seu dicionário. Pavis identifica aí o signo da “utopia da comunidade” (citando Einar
Schleef) e aponta o questionamento do ‘estar juntos’ e as relações (também de poder) do
indivíduo com o grupo. Essa dimensão política se afirma à medida que se pode pensar
expressões de coralidade como intimamente ligadas ao conceito de política proposto por
Jacques Rancière72, por exemplo, pela tendência da coralidade de instaurar uma igualdade de

70
Original: “c’est um champ, plus qu’um modele établi, que determine l’usage de ce terme, des questionnements
plus qu’un procédé ». (Tradução de Marcus Vinicius Borja, não publicada)
71
A primeira publicação do original francês de Pavis é de 2014.
72
Cf. RANCIÈRE, 1996. Esse conceito será mais bem explorado no próximo capítulo.
61

potência entre as figuras do texto ou da encenação, ao mesmo tempo em que exalta suas
singularidades.
A coralidade, a partir dessas questões, se configura ainda como — além de uma
preocupação estética concernente ao discurso veiculado pela cena — um princípio de
trabalho, “o motor de uma representação descentrada” (TRIAU, 2003, p. 7). O trabalho a
partir do conjunto e sobre ele torna-se a base de uma gama de espetáculos corais, gerando o
trabalho sobre as individualidades. “Parte-se do conjunto para construir o jogo em cena e não
se trata de restaurar a posteriori uma unidade sobre um palco hierarquizado e dividido. O
conjunto vem primeiro e está prometido à difração — e se alimenta dela” (TRIAU, 2003, p.
8).
Nesse sentido, a coralidade é pensada aqui como um princípio de criação na
composição de uma obra cênica, ou pelo menos de geração de material no espaço da sala de
ensaio, na atividade dos atores conduzida ou não por um olhar externo. Embora seja uma
qualidade, como a musicalidade, e, portanto, possa ser detectada durante as performances,
após a criação da obra73, a coralidade se estabelece em muitas práticas como terreno sobre o
qual a obra se constrói. Identificá-la a um princípio de criação, muitas vezes subterrâneo,
manifestando-se como uma vontade, uma intuição, uma necessária interpenetração de forma e
tema, faz com que tenhamos uma ferramenta conceitual para dar conta dos movimentos
criativos que nascem igualmente da percepção do individual e do coletivo, e cujas formas
cênicas expressam essas duas instâncias. Além disso, como uma qualidade (e assim
assemelhada a teatralidade, performatividade, musicalidade, etc) a coralidade pode ser — e
em tantos casos é — objeto de uma busca no processo de criação.
Aqui está a razão da escolha pelos estudos de caso do último capítulo: a coralidade
nesses trabalhos é efetivamente um princípio de criação. É fundamento ideológico, lógica de
organização do trabalho e ordenadora da cena nos trabalhos de Rogério Tarifa. Na prática de
Marcelo Lazzaratto com a Cia Elevador, o trânsito entre indivíduo e grupo e entre indivíduo e
indivíduo é a própria terra que nutre as práticas de treinamento e criação, o CV sendo um
ótimo exemplo de uma coralidade estruturada como pensamento e ferramenta.

Em 2003, a revista belga Alternatives Théâtrales intitulou sua edição 76-77 Choralités
(Coralidades). Essa revista contém uma quantidade expressiva de textos dedicados a diversos

73
Ou, em outra acepção de criação nas artes cênicas, no exato momento em que a obra é criada na relação com
espectadoras e espectadores.
62

aspectos da coralidade. A seguir, farei um apanhado de discursos que compõem essa edição,
buscando perceber definições e questões associadas à coralidade na criação da cena.

Sobre os coros de ópera, Isabelle Moindroit (2003, p. 18) nos revela que (pelo menos
na época de sua escrita) “no registro lírico, ninguém verdadeiramente fala de coralidade”74,
mas de coros. A autora nos lembra que

a presença do ou dos coros é um dado da ópera e por consequência a invenção


eventual de uma coralidade nova se efetua em um contexto preciso, no qual os coros
não são somente uma referência ou um modelo, mas uma entidade viva, dotada de
uma história, de aspirações próprias e de tradições.75 (MOINDROIT, 2003, p. 18).

Apesar da ópera italiana barroca e clássica ter deixado, segundo a autora, um lugar
reduzido para o coro, outras tradições, como a tragédia lírica francesa, o empregaram como
elemento estruturante de sua dramaturgia. “A partir de 1750, os coros são claramente
percebidos como vetor de renovação trágica”76 (MOINDROIT, 2003, p. 19) e sua importância
aumenta na ópera italiana. Orfeu e Eurídice (1762) de Christoph Willibald Gluck, a primeira
de suas obras renovadoras, é apontada pela autora, juntamente com Dido e Enéas, de Henry
Purcell, como uma grande influência para os renovadores da cena europeia, entre eles Gordon
Craig, Émile Jacques Dalcroze, Adolphe Appia e Isadora Duncan. A presença dos coros, que
introduziria uma coralidade em potência, desafiaria a encenação a concretizar essa coralidade
potencial — sob o risco de um fracasso visível — e teria contribuído com alguns dos
elementos essenciais da cena moderna: “a simplificação dramática, o simbolismo visual e,
acima de tudo, evidentemente, a apropriação do espaço.”77 (MOINDROIT, 2003, p. 19) O
“simbolismo suspenso” de Bob Wilson atinge seu pico, segundo Moindroit, em suas
encenações do repertório gluckiano, com Alceste, em Chicago, em 1990, e Orfeu e Eurídice,
no Théâtre du Châtelet, em 1999.

Ponto extremo desse formalismo visual nascido no início do século, o coro se


objetivava momento a momento para se fazer coro-cenário, coro-floresta, coro-
rocha, verdadeira potência telúrica nascida da fusão de um gestual hierático, intenso

74
Original: « dans le registre lyrique, personne ne parle vraiment de ‘choralité’ »
75
Original: « la présence du ou des choeurs est une donné de l’opéra, et de ce fait l’invention éventuelle d’une
choralité nouvelle se fait dans un contexte précis, où les choeurs ne sont pas seulement une référence ou un
modèle, mais une entité vivante, dotée d’une histoire, d’aspirations propres et de traditions. »
76
Original : « À partir de 1750, les choeurs sont clairement perçus comme le vecteur du renouveau tragique ».
77
Original : “la simplification dramatique, le symbolisme visuel, et surtout, évidemment, l’appropriation de
l’espace. »
63

e, entretanto, abstrato, de uma iluminação desrealizante, de um espaço nu e, enfim,


da grandeza escultural própria à vocalidade coral.78 (MOINDROIT, 2003, p. 19)

A autora detecta, na época de sua escrita, o tratamento cênico dos coros como veículo
de renovação formal das óperas, especialmente devido à prática da transposição da ficção dos
enredos para a contemporaneidade da realização dos espetáculos. Os coros tornam-se
poderosos meios para realizar essas transposições e os coristas, longe de ficar confinados
apenas ao canto, agora têm uma infinidade de possibilidades cênicas independentes dele.
“Indispensáveis à ação, individualizados e portadores de verdadeiros papéis, mas sem voz,
esses coristas de um novo gênero representam o ponto mais tocante da teatralidade lírica.”79
(MOINDROIT, 2003, p. 23)
E devido a essa individualização, o sentido da coralidade se inverte, diz a autora. Não
mais uma exibição do poder espetacular das massas, a coralidade da ópera procuraria extrair
“a parte íntima, mesmo secreta, mas sempre operante no seio de uma comunidade
diversificada.”80 (MOINDROIT, 2003, p. 23). E nessa nova coralidade não apenas os coristas
tomam parte, mas os técnicos de palco vêm se juntar a eles em algumas encenações, presenças
que, se não têm exatamente pretensões de caráter brechtiano em revelar o avesso da cena,
tornam o espetáculo um organismo mais complexo, humorado, aberto a diversas
possibilidades. A coralidade, no texto de Moindroit, se revela como ligada à dimensão plural,
ao caráter numeroso dos coros, e na contemporaneidade, especialmente quando promove a
diversidade.

Os modos de criação coletiva e colaborativa são um terreno fértil para pensar a


coralidade e, talvez, geradores naturais de formas corais. Evelyne Ertel nos lembra que a
criação coletiva, na medida em que não quer apenas um espetáculo, mas a construção de um
sentido, a elaboração de um pensamento sobre o mundo, a sociedade ou a História, “supõe um
ponto de vista, uma visão comum a todo o grupo.”81 (ERTEL, 2003, p. 24). A pesquisadora
apresenta o Théâtre du Soleil e o Living Theatre como dois exemplos de ‘coros’. E pergunta:

78
Original : “Pointe extrême de ce formalisme visuel né au début du siècle, le choeur s’objectivait par instant
pour se faire choeur-décor, choeur-forêt, choeur-rocher, véritable puissance tellurique née de la fusion d’une
gestuelle hiératique, intense et cependant abstraite, d’un éclairage déréalisant, d’un espace dénudé, et enfin de
la grandeur sculpturale propre à la vocalité chorale. »
79
Original : « Indispensables à l’action, tous individualisés et porteurs de véritables rôles, mais sans voix, ces
choristes d’un genre nouveau représentent la pointe la plus touchante de la théâtralité lyrique. »
80
Original : « la part intime, individuelle, parfois secrète, mais toujours à l’oeuvre au sein d’une communauté
diversifiée. »
81
Original : « suppose un point de vue, une vision commune à tout le groupe. »
64

Pode-se dizer que o coro — que outra coisa é o coro de teatro grego senão uma
comunidade cívica, um grupo de homens ou mulheres encarregados de pensar
juntos o evento, de colocar as boas questões e de sugerir as respostas justas? —
está no fundamento da criação coletiva, porque esta implica o encarregar-se, pelo
conjunto dos membros da trupe, da totalidade do processo criativo e, em menor
medida, das funções vitais do grupo.82 (ERTEL, 2003, p. 24, negrito meu).

Esta associação do coro com o grupo que opera a criação coletivamente tem ecos na
escrita de Patrice Pavis, que considera o mesmo Living Theatre como “o exemplo típico de
uso contínuo, embora invisível, do coro no espaço cênico e social” (PAVIS, 2008, p. 75),
como mencionado no capítulo anterior, além do trabalho de Fábio Cordeiro, que chamará esse
tipo de coletivo de coro emancipado e investirá na reflexão sobre as relações entre criação
coletiva/colaborativa e coralidade.
Ertel nos apresenta algumas formas interessantes de mecanismos corais, como “a
segunda encenação de Electra por Antoine Vitez em 1971, [na qual] os sete atores que tinham
cada um dos papéis da peça formavam também o coro, quando seu personagem não estava
envolvido na cena que era realizada”.83 (ERTEL, 2003, p. 25) Ou o trabalho dos artistas do
Soleil que, trabalhando longamente sobre as passagens dos mensageiros de tragédias
atenienses, “deram-se conta de que o coro autêntico não abole as personagens, ele se constitui
a partir delas.”84 (ERTEL, 2003, p. 25) A partir dessa descoberta, os atores e atrizes do grupo
deveriam caracterizar o máximo possível suas personagens, mesmo que estivessem
envolvidas sobretudo em momentos corais, já que o coro deveria conter relações verdadeiras
entre as personagens abarcadas pela coletividade.

Está claro que é de acordo com esse mesmo princípio que Peter Stein fez trabalhar o
grupo de atores da Schaubühne de Berlim para a construção do excepcional coro de
velhos de Agamêmnon quando de sua encenação da Oresteia de Ésquilo em 1980:
um coro extraordinariamente presente, vivo, ativo, que era uma personagem
coletiva, mas do qual todos os membros são individualizados”85 (ERTEL 2003, p.
25).

82
Original : “On peut dire que le choeur — qu’est-ce d’autre en effet que le choeur de théâtre grec, sinon une
communauté civique, un groupe d’hommes ou de femmes ayant à charge de penser ensemble l’événementiel,
de poser les bonnes questions et de suggérer les réponses justes ? — est au fondement même de la ‘création
collective’, puisque celle-ci implique la prise en charge, par l’ensemble des membres de la troupe, de la
totalité du processus créatif et, dans un moindre mesure, des fonctions vitales du groupe. »
83
Original: « Dans la seconde mise en scène d’ÉLECTRE par Antoine Vitez en 1971, les sept acteurs qui
tenaient chacun un des rôles de la pièce formaient ausi le choeur, lorsque leur personnage n’était pas concerné
dans la scène qui se jouait. »
84
Original: « les comédiens se sont alors rendu compte que le choeur véritable n’abolit pas les personnages, il se
constitue à partir d’eux ».
85
Original: « Il est clair que c’est d’après ce même principe que Peter Stein a fait travailler le groupe des acteurs
de la Schaubühne de Berlin pour la construction de l’exceptionnel choeur des Vieillards d’Agamemnon lor de
65

O Living, querendo se tornar uma “comunidade anarquista”, procurava que a distinção


entre vida pessoal e vida profissional se diluísse cada vez mais, desembocando numa escolha
estética para os espetáculos em que os atores performavam a si mesmos. O Soleil, ao
contrário, procura manter tanto a ficção apresentada ao público quanto a separação entre arte e
vida privada. Essa diferença era acompanhada por outra: o tipo de participação exigida dos
espectadores: se no Soleil a comunhão com o público se dava e se dá de maneira sobretudo
intelectual, por meio do que a cena oferece à sala, o Living convidava-os a contribuir com
essa vida comum “subindo à cena e participando da ação que lhes é proposta”86 (ERTEL,
2003, p. 27).
A pesquisadora nos oferece a descrição de dois exercícios vocais praticados
regularmente pela trupe americana que se tornaram partes do espetáculo Mysteries and
smaller pieces, criado em 1964, em Paris, no exílio europeu do grupo.

O primeiro: todos os atores formam um círculo, com as mãos nas costas uns dos
outros; um entre eles (o que se sente pronto) emite um som que é repetido e
prolongado por seu vizinho e progressivamente pelo conjunto do grupo; o som
aumenta pouco a pouco até tornar-se uma espécie de canto, depois diminuir e
acabar. Esse coro é totalmente improvisado e é necessariamente diferente de uma
apresentação à outra. “Da qualidade da escuta depende a qualidade da resposta, e a
beleza, a harmonia do conjunto”, escreve Pierre Biner, que precisa: “quando um ator
deixa a trupe durante algum tempo, é por um coro desse tipo que ele é reintegrado
em seu retorno” 87. O segundo: os atores ficam de frente uns para os outros em duas
linhas; um entre eles “oferece” a um que está em sua frente um som ou movimento
inventado por ele; o outro deve, por sua vez, reproduzi-lo, transformá-lo e oferecê-
lo, e assim por diante até que alguém encontre o som e/ou o gesto que todos tenham
vontade de partilhar.88 (ERTEL, 2003, p. 25-26)

Ertel, retomando a distinção operada por Nietzsche, considera os dois grupos,


sonhadores da construção de uma nova realidade e criadores coletivos, como dois coros: a
coralidade do Living, que pretendia em alguma medida a indistinção entre atores e

sa mise en scène de L’ORESTIE d’Eschyle en 1980 : un choeur extraordinairement présent, vivant, actif, qui
est bien un personnage collectif, mais dont tous les membres sont individualisés. »
86
Original: « en montant sur la scène et en participant à l’action qui leur est proposée ».
87
BINER, Pierre. Le Living Théâtre. Lausanne : La Cité, 1968, p. 86.
88
Le premier : tous les comédiens forment un cercle, en se tenant aux épaules ; l’un d’eux (celui qui se sent prêt)
émet un son qui est repris et prolongé par son voisin et progressivement par l’ensemble du groupe ; le son va
s’enfler peu à peu jusqu’à devenir une espèce de chant, puis diminuer et finir. Ce choeur est totalement
improvisé et est forcément différent d’une représentation à l’autre. « De la qualité de l’écoute dépend la
qualité de la réponse, et la beauté, l’harmonie de l’ensemble », écrit Pierre Biner, qui précise : « lorsqu’un
acteur quitte la troupe pendant qualque temps, c’est par un choeur de ce type qui il est réintegré, à son
retour88 ». Le deuxième : les acteurs se font face sur deux lignes ; un d’entre eux va « offrir » à l’un d’en face
un son ou un mouvement inventé par lui ; l’autre doit le reproduire, le transformer et l’offrir à son tour, et
ainsi de suite jusqu’à ce que quelqu’un trouve le son et/ou le geste , que tous auront envie de partager.
66

espectadores e promovia momentos de caráter ritual e caótico em seus espetáculos, seria de


ordem dionisíaca enquanto o Soleil, trupe empreendedora de uma ourivesaria das formas,
portaria uma palavra que vem de Febo-Apolo, o deus do Sol.89

O trabalho vocal coletivo, evocado no exemplo do Living, é um denominador comum


para muitas das obras que mobilizam a coralidade. Christoph Marthaler, encenador suíço, o
utiliza como fundamento de suas montagens. O encenador é oboísta de formação e dirigiu no
início soirées musicais, depois “aprendeu (segundo suas palavras) o teatro como compositor
de músicas de cena antes de finalmente se tornar o encenador que conhecemos”.90
(ZILBERFARB; TRIAU, 2003, p. 36). Stefanie Carp, dramaturga que colabora nas criações
originais de Marthaler, se expressa assim sobre o trabalho do encenador:

Christoph (Marthaler) privilegia a estrutura do recital. Falo aqui de uma estrutura


musical de conjunto, coletiva. Seus atores cantam frequentemente todos juntos.
Isso às vezes é o germe de onde sairá a peça. Todos os ensaios começam pelo
canto. Isso contribui para formar o grupo. Quando se canta junto, pouco importa
quem tem o primeiro ou segundo papel. O canto coral apaga as diferenças
supostamente importantes. Como diria Christoph, ele [o canto] cria uma
comunidade de destinos, em um espaço dado, do qual é difícil de escapar... 91
(SCHWERFEL, 2001 apud MANCEL, 2003, p. 34, negritos meus)

E o canto coral não é o único elemento que atua na construção de comunidade nos
trabalhos de Marthaler. Yannic Mancel menciona três espetáculos do encenador que
constituíram uma espécie de “trilogia coral” a posteriori e afirma que esta era “uma trilogia
estruturada pelo canto coral, a improvisação e a criação coletivas”92 (MANCEL, 2003, p. 34).
O próprio encenador corrobora essa visão, em entrevista de 2018 para o prêmio Ibsen, que
recebeu naquele ano:

Primeiro, eu começo com a música. Eu era musicista antes, então... É o canto que
realmente une as pessoas. Frequentemente eu ainda não sei exatamente o que vamos
fazer. Temos um tema, temos uma ideia, mas também é criado com os atores e os
músicos e todo mundo que está envolvido na montagem. Porque eu quero usar tudo

89
A autora joga com o nome do grupo, “Teatro do Sol”, em francês.
90
Original: « apprit (selon ses propres dires) le théâtre comme compositeur de musiques de scène pour d’autres
avant de finalement devenir le metteur en scène que l’on connaît. »
91
Original: « Christoph (Marthaler) privilégie la structure du récital. Je parle là d’une structure musicale
d’ensemble, collective. Ses acteurs chantent souvent tous ensemble. C’est même parfois le germe d’où sortira
la pièce. Chaque répétition commence par le chant. Cela contribue à former le groupe. Quand on chante
ensemble, peu importe qui joue le premier ou le sécond rôle. Le chant choral place les gens à égalité et
gomme les différences prétendument importantes. Comme le dirait Christoph, cela crée une communauté de
destins, dans un espace donné, dont il est difficile de s’échapper... »
92
Original: « une trilogie vertébrée par le chant choral, l’improvisation et la création collectives »
67

o que eles podem, e não quero dizer “faça isso, isso, isso, isso”, e talvez eles não
queiram fazer, então essa é realmente a coisa mais importante.93 (THE
INTERNATIONAL..., 2018)

Além do trabalho com a música e da ideia de criação coletiva/colaborativa presente no


discurso do encenador, me chama a atenção a afirmação “eu quero usar tudo o que eles
podem” e a observação de que talvez os atores não queiram executar indicações externas.
Leio essa atitude de trabalho a partir de dois termos importantes: escuta e unicidade. Para
conseguir a qualidade desejada em seus trabalhos, me parece que Marthaler (e tantos outros
encenadores e encenadoras) pratica uma atenção dedicada a seus atores, uma atenção curiosa
e aberta, que podemos chamar de escuta (embora não venha apenas pelo sentido da audição)
para descobrir o que é próprio daqueles artistas, ou seja, suas singularidades, que prefiro
reduzir a uma ideia ainda mais básica: suas unicidades. E parece importante que as figuras
cênicas dos trabalhos de Marthaler sejam detalhadas, deixem transparecer suas diferenças,
uma vez que o encenador cria frequentemente situações de espera, de comunidades unidas no
fracasso da ação, em que os conflitos se configuram mais como sobressaltos em sua rotina
linear. Estamos novamente na categoria da situação, para lembrar Peter Szondi a respeito da
dramaturgia de Maeterlinck.
Além dos uníssonos, a repetição é importante nos espetáculos de Marthaler, e as
pequenas interrupções “os sons desafinados, os insucessos, os escorregões... E as quedas: cai-
94
se frequentemente — chega a ser uma ‘especialidade’” (ZILBERFARB; TRIAU, 2003, p.
37). Há, nas descrições de sua obra, a presença de uma fadiga que, na estrutura de espera,
banha os espetáculos. Além dessa espera, tecem-se ligações com a memória, por meio dos
cantos e de signos que invocam o passado alemão. “Algo da memória, do tempo passado
perdido, do verdadeiro ausente, nasce então da coralidade e se destaca de seu fundo. Sem
aviso, a coralidade pode funcionar como um esquecimento do tempo presente, e permite
assim o retorno agudo da História.”95 (ZILBERFARB; TRIAU, 2003, p. 37). Em seu trabalho,
percebo a coralidade ligada a algumas dimensões: o canto coral, a criação coletiva, a

93
Original: “First, I start with music. I was a musician before so… it is singing that brings the people really
together. Often, I still don’t know exactly what we will do. We have a theme, we have an idea but it is also
created with the actors and the musicians and all the people who are in the production. Because I want to use
everything they can and I don’t want to tell them ‘do this, this, this, this…’ and maybe they don’t want to do it
so really this is the most important thing.”
94
Original: « les couacs, les ratages, les dérapages... Et les chutes: on y tombe souvent — c’est même une
‘spécialité’ »
95
Original: « Quelque chose de la mémoire, du temps passé perdu, du véritable absent, naît alors de la choralité
et se détache de son fond. Sans prévenir, la choralité peut fonctionner comme un oubli du temps présent, et
permette ainsi le rétour paroxystique de l’Histoire »
68

convivência das personagens na situação de espera em que estão inseridas e os pequenos


fracassos, além das evocações da memória, que podem tomar outra cor quando realizadas em
uma cena coral.

Einar Schleef, encenador, cenógrafo, pintor e dramaturgo, foi um dos mais


importantes encenadores da Alemanha no último terço do século XX. Vindo da Alemanha
Oriental, onde seus espetáculos causaram furor da crítica e seu banimento do meio teatral,
Schleef trabalhou na Alemanha Ocidental até a reunificação. Seus espetáculos com espaços e
imagens grandiosas também eram habitados pela violência, que podia ser “maldita ou
desejada, mas sempre lá, tornada sensível em cena”.96 (LEHMANN, 2003, p. 40). Insistente
na ideia de que o coro e a figura feminina estavam estreitamente ligados, e que a expulsão do
coro e da mulher da cena tinham a mesma origem: “a expulsão da consciência trágica”97
(SCHLEEF apud BONNAUD, 2003, p. 39), o encenador construiria suas encenações sobre
essa tragicidade que reclamava o papel central da mulher e, especialmente, a ação do coro,
fora dos cânones do teatro burguês.

Contaminado deste modo pelas grandes formas dos Antigos, ele introduziu técnicas
expressivas que, quase perdidas no teatro burguês, são ainda conservadas no
oratório, na ópera: as árias, os duos, os trios, os coros líricos ou sincopados, por
vezes martelados, os cantos inflados e as sonoridades singulares, suas encenações
vivem da composição das vozes, de uma palavra quase fugida, de frases desritmadas
e multiplicadas, de intensificações orgiásticas de movimentos, sons e palavras:
coreografias em gupo, solos acrobáticos foram inseridos, como se se tratasse de
jogos iluminando a representação.98 (MITTELSTEINER, 2003, p. 46-47)

Dito de outro modo, seu teatro era um teatro do excesso, seja corporal, vocal ou
rítmico. Para Lehmann, o que impactava sobretudo nas encenações de Schleef era “seu
trabalho obsessivo com corpos pisoteando o chão ritmadamente e a destruição da palavra
pelas quebras e silêncios. Também as passagens inesperadas ao brado e ao grito: o teatro de

96
Original: « maudite ou désirée, mais toujours là, rendue sensible sur la scène »
97
Original: « l’expulsion de la conscience tragique ».
98
Original: « Ainsi contaminé par les grandes formes des Anciens, il a introduit des techniques expressives qui,
presque perdues dans le théâtre bourgeois, sont encore conservées dans l’oratorio, dans l’opéra : les arias, les
duos, les trios, les choeurs lyriques ou syncopés, voire martelés, les chants enflés et les sonorités singulières ;
ses mises en scène vivent de la composition des voix, d’un parler presque fugué, de phrases dé-rythmées et
multipliées, d’intensifications orgiaques des mouvements, sons et mots : des chorégraphies de groupe, des
solos acrobatiques furent insérés, comme s’il s’agissait de jeux éclairant le jeu. »
69

Schleef é frequentemente duro para as orelhas”99 (LEHMANN, 2003, p. 40). E a respeito da


linguagem cênica no trabalho dos elencos de Schleef, o estudioso prossegue dizendo que o
encenador “atinge a qualidade desse teatro primordial pela intensidade corporal e afetiva da
mimesis verdadeira, a mimesis no sentido original do termo: a palavra grega ‘mimesthai’ não
quer dizer em primeiro lugar ‘imitar’, mas ‘representar por meio da dança’” 100 (LEHMANN,
2003, p. 41).
Seu teatro foi frequentemente chamado de fascista. Numa Alemanha que ainda tinha
vivos os ecos da Segunda Guerra Mundial, atrás de si, demonstrações corais massivas
(lembremos das danças corais cooptadas pelo Reich) poderiam soar incômodas, com razão. E
se a cena de sua montagem de Sportstück, de Elfriede Jelinek, à qual assisti (SPORTCHOR,
1998) se aproxima da forma de suas primeiras encenações, podemos imaginar o quão
violentas eram as reações em uma Alemanha assombrada pelos fantasmas do nazismo e do
projeto soviético.
Em 1986, na montagem de sua peça Mütter (Mães), Schleef mobiliza “sessenta
mulheres, em grande parte atrizes não profissionais, muitas delas estrangeiras vindas de todos
os horizontes culturais, que constituiriam o coro.”101 (MITTELSTEINER, 2003, p. 47). A
peça se iniciava com o ritual de luto dessas mães, chorando a morte dos filhos que haviam
enviado para a guerra. Seu pranto durava quase vinte minutos, enquanto metade da sala de
espetáculos se esvaziava. “As pessoas saíam e diziam: isso não é teatro. E é verdade, isso não
era teatro, era a execução de um ritual”102 diz o dramaturgo Carl Hegemann (apud
MITTELSTEINER, 2003, p. 47). Parece que Schleef procurava plasmar em cena a violência
da dor antes de qualquer elaboração, o pranto do luto recente ao qual não é possível ficar
indiferente. Ou se adere ao ritual do palco com os próprios movimentos internos, ou um
evento desse gênero se torna insuportável.
Os textos aos quais tive acesso mencionam um grande repertório de formas corais
encontradas no teatro de Schleef, como o que Béhague e Engelhardt (2003) chamam de

99
Original: « son travail obsessionel avec des corps piétinant le sol en rythme et la destruction de la parole par
des brisures et des silences. Et aussi les passages inattendus au cri et au hurlement : le théâtre de Schleef se
fait souvent très fort aux oreilles. »
100
Original: « Schleef atteint à la qualité de ce théâtre primordial par l’intensité corporelle et affective de la
mimèsis véritable, la mimèsis au sens originel de ce terme : le mot grec « mimesthai » ne veut pas dire en
premier lieu « imiter », mais « représenter par la danse ». »
101
Original: « soixante femmes, en grand partie d’actrices non professionelles, souvent étrangères venant de tous
horizons culturels, qui constitueront le choeur. »
102
Original: « Les gens sortaient et disaient : ce n’est plus du théâtre. Et c’est vrai, ce n’était pas du théâtre,
cétait léxécution d’un rituel ».
70

projeção do coro, onda quebrando desde o fundo da cena para vir se aglomerar na
borda do palco. Uma imagem recorrente nas encenações de Schleef [...]. O coro de
Schleef é antes de tudo corpo, densidade física que se impõe e faz regularmente da
espessura da linguagem um projétil direcionado diretamente ao público. Nesse
sentido, o teatro coral de Schleef é, essencialmente, provocação.103 (BÉHAGUE;
ENGELHARDT, 2003, p. 51, negritos meus)

Essa provocação não é apenas a da fala direcionada, mas também a do silêncio


combativo, como em Salomé, em que, no primeiro quadro, desde que o pano levantava, um
grupo de dezoito membros imóveis encarava o público até que o pano caísse novamente,
anunciando um entreato depois de 10 minutos de espetáculo.
E, ao contrário de muitos encenadores cujo trabalho baseado na coralidade se elabora
em processos de criação coletiva/colaborativa, Schleef “tinha tudo em sua mão: a escolha das
peças, a cenografia, o figurino, a música, a coreografia, a encenação”104 (MITTELSTEINER,
2003, p. 46). O encenador era inclusive criticado por seu rigor excessivo no trabalho com os
elencos. Vemos por aí que a coralidade pode ser um traço estético do espetáculo sem fazer
sentir sua influência na lógica do processo poético, ou na ética de trabalho de um determinado
grupo.

Sobre ética de trabalho, é interessante o panorama histórico da coralidade no teatro


russo apresentado por Béatrice Piccon-Vallin (2003), partindo do choque causado no público
francês, tanto nos anos 20 quanto nos anos 90 pelo ‘efeito de grupo’ dos espetáculos russos.
Segundo a autora, embora a paternidade desse pensamento grupal seja atribuída a Stanislávski
e Dantchenko, é com Alexandre Ostrovski, dramaturgo que dirigia suas próprias peças no
teatro Maly de Moscou, que “foi rascunhada pela primeira vez essa ideia de ensemble, de
grupo de atores de onde o sistema de vedetes deveria ser banido em benefício do jogo comum.
Mas o jogo comum não é exatamente o coro, mesmo se este constitua uma modalidade
necessária daquele.”105 (PICCON-VALLIN, 2003, p. 55, negrito meu). Aqui nos
aproximamos novamente da ideia de uma coralidade sem coro, em que as lógicas corais
atuam sem a necessidade da forma ‘coro’.

103
Original : « projection du choeur, vague déferlant depuis le fond de la scène pour venir s’agréger tout au bord
du plateau. Une image récurrente dans les mises en scène de Schleef [...] Le choeur de Schleef est avant tout
corps, densité physique qui s’impose, et vient régulièrement faire de l’épaissseur de la langue un projectile
addressé directement au public. Dans ce sens, le théâtre choral de Schleef est, essentiellement, provocation. »
104
Original : « Il avait tout dans sa main : le choix des pièces, la scénographie, le costume, la musique, la
chorégraphie, la mise en scène. »
105
Original : « qui s’est esquissé pour la première fois cette idée de ensemble, de groupe d'acteurs d'où le
vedettariat doit être banni au bénéfice d'un jeu commun. Mais le jeu commun n'est pas tout à fait le choeur
même s'il en constitue une modalité nécessaire. »
71

A autora lembra Meyerhold, seu grande objeto de pesquisa, que nos anos 10 escreve
sobre as mutações do coro no teatro ao longo dos séculos e como o considerava perdido em
sua época:

O teatro perdeu o coro. Entre os gregos antigos, o herói estava cercado por um
grupo, o coro. Em Shakespeare, o herói também se encontra no centro do círculo
formado pelos ‘caracteres’ secundários. Bem entendido, isso não é idêntico ao que
se encontrava entre os gregos, mas pode ser que na multidão de personagens
secundários que, no teatro shakespeariano, cercam o herói principal, vibrasse
contudo ainda um pouco do eco do coro grego. Ao centro, o herói — aqui e lá. Esse
centro desapareceu completamente com Tchékhov. “As individualidades” em
Tchékhov se diluem no grupo das personagens desprovido de centro. O herói,
Leonid Andreiev tentou restabelecê-lo sobre a cena. Mas é tão difícil nos nossos
dias. Para que os traços próprios do herói tomassem mais relevo, foi necessário, em
A vida do homem, ocultar o rosto das personagens secundárias. E quando chegamos
lá, parecia subitamente que esse grupo de personagens igualmente mascarados era o
eco do coro perdido. É possível que os personagens secundários de A vida do
homem tenham qualquer semelhança com o coro grego? Certamente não, mas aqui
há um sintoma. Não sei se está próximo, mas virá o dia em que alguém nos ajudará a
restabelecer isso que o teatro perdeu: o coro reaparecerá sobre a cena. 106
(MEYERHOLD, 2001, p. 171 apud PICON-VALLIN, 2003, p. 55.)

A História do teatro russo no século XX poderia ser interpretada, segundo a autora,


“sob o ângulo particular da busca da coralidade”107 (PICON-VALLIN, 2003, p. 55). Esse
teatro seria marcado por

modos de aprendizagem (escolas) e de criação (companhias) contaminados por três


eventos cruciais e sucessivos: a escritura tchekhoviana que desloca o acento do
indivíduo ao grupo formado por personagens que gravitam em torno de um anti-
herói efêmero, centro provisório de ações lábeis; as utopias revolucionárias e a
realidade histórica de ação coletiva na vida e na arte; enfim as resistências dos anos
1960-1980 que abriram o teatro, cena e sala, à presença real e imaginária de um coro
que diremos popular, para resumir. Sobre o palco, o coro se declina sob diferentes
modalidades, e primeiramente no sentido de uma reunião de pessoas que executa
uma parte juntas (graças às técnicas comuns que lhes permitem essa execução) ou/e
uma atitude, um propósito em comum: que a trupe seja permanente e coesa. Mas
também o coro no sentido grego, grupo que circunda os personagens principais, age

106
Original : « Le théâtre a perdu le choeur. Chez les Grecs anciens, le héros était entouré d’un groupe, le
choeur. Chez Shakespeare aussi le héros se trouve au centre du cercle formé par les ‘caractères’ secondaires.
Bien entendu, cela n’est pas identique à ce qu’on trouvait chez les Grecs, mais peut-être que dans la foule des
personnages secondaires qui, dans le théâtre shakesperien, entourent le héros pincipal, vibrait pourtant encore
un peu de l’écho du choeur grec. Au centre, le héros — ici et là. Ce centre disparait completement avec
Tchekhov. ‘Les individualités’ chez Tchekhov se diluent dans le groupe des personnages dépourvu de centre.
Le héros, Leonid Andreïev a bien tenté de rétablir sur scène. Mais c’est tellement difficile de nos jours. Pour
que les traits propres au héros prennent davantage de relief, il a fallu, dans LA VIE DE L’HOMME, masquer
le visage des personnages secondaires. Et quand on en fut arrivé là, il apparut tout à coup que ce groupe de
personnages tous pareillement masqués était l’écho du choeur perdu. Est-il possible que les personnages
secondaires de LA VIE DE L’HOMME aient quelque ressemblance avec le choeur grec ? Bien sûr que non,
mais il y a là un symptôme. Je ne sais s’il est proche, mas un jour viendra où quelqu’un nous aidera à retablir
ce que le théâtre a perdu : le choeur réapparaîtra sur scène. »
107
Original: “sous l’angle particulier de la recherche de la choralité”
72

conjuntamente para comentar, interpretar, questionar, interpelar, testemunhar. Coro,


enfim, em um sentido amplo no qual um grupo de atores representantes do público
pode tomar todo o espaço da cena, coro massa ou hagiográfico, coro crítico, ou coro
(dos atores) levado a sério (pelo público).108 (PICON-VALLIN, 2003, p. 55)

A coralidade no teatro russo transitaria entre todos esses sentidos. A noção de


ensemble, publicizada pelo TAM, se unirá à de artel, atelier com bases coletivistas e
democráticas, e influenciará o teatro dos primeiros anos da revolução russa. A autora
prossegue seu inventário de figuras relevantes para a coralidade na Rússia com Viatcjeslav
Ivanov, que propunha “uma regeneração do teatro e da sociedade pela tragédia grega e o
teatro dionisíaco”, com espetáculos que explorassem as lendas heroicas e unissem atores e
público em rituais, cantos e danças e que se tornaram “sobretudo em Petrogrado, a orientação
geral do teatro não profissional”109 (PICCON-VALLIN, 2003, p. 55) e Platon Kerjentsev, que
“proletariza a noção de teatro ‘cultual’”, ou seja, entende atores e público como classe social
que se une no acontecimento teatral, e recomenda a aplicação do princípio coral ao teatro, de
momentos de intervenção coletiva do público, especialmente na forma de canto, cuja prática
generalizada era por ele defendida.
Em Les Aubes (As Alvoradas), primeiro espetáculo do Outubro Teatral de Meyerhold,
Picon-Vallin detecta a retomada, em 1920, das ideias de Ivanov, “o coro falado, as ações
simbólicas, o impacto das emoções fortes que unem e soldam o grupo dos que atuam e dos
que observam”.110 (PICON-VALLIN, 2003, p. 56). Depois, desde Mistério Bufo até O
Inspetor Geral (1926) passando por A Princesa Turandot (1926) de Vakhtângov,

A coralidade se declina em diversas variações: agrupamentos temáticos de


personagens, união dos atores sob um uniforme de trabalho, superposição de
diversos tipos de coros, jogo construído sobre princípios relacionais que se ligam ao
mesmo tempo ao uníssono e ao contraponto, polifonia complexa de corpos e vozes,
cumplicidade eficaz sobre o palco que autorizará a identificar um grupo de atores

108
Original: « des modes d’apprentissage (écoles) et de création (troupes) contaminés par trois événements
cruciaux et successifs : l’écriture tchékhovienne que déplace l’accent de l’individu au groupe formé par des
personnages que gravitent autour d’un antihéros éphémère, centre provisoire d’actions labiles ; les utopies
révolutionnaires et la réalité historique de l’action collective dans la vie et dans l’art ; enfin les résistances des
années 1960-1980 qui ouvrirent le théâtre, scène et salle, à la présence réele et imaginaire d’un choeur qu’on
dirait populaire, pour faire vite. Sur le plateau, le choeur se décline sous différentes modalités, et d’abord
dans le sens d’une réunion de personnes que exécutent un morceau ensemble (grâce à des techniques
communes qui leur permettent cette exécution) ou/et qui ont un attitude, un but commun : soit la troupe
permanente et cohérée. Mais aussi le choeur au sens grec, groupe qui entoure les personnages principaux,
agit ensemble pour commenter, interpréter, questionner, interpeler, témoigner. Choeur enfin dans un sens
élargi où un groupe d’acteurs délégues du public peut tenir toute la place sur la scène, choeur masse ou
hagiographique, choeur critique, ou choeur (des acteurs) à coeur (du public).
109
Original: “surtout à Petrograd, l’orientation génerale du théâtre non professionel.”
110
Original: « le choeur parlé, les actions symboliques, l’impact des émotions fortes que unissent et qui soudent
actants et regardants. »
73

com “um corpo com muitas cabeças”. A busca artística das formas e a
singularização do jogo exigida de cada ator no interior do trabalho coletivo é
proporcional à utopia que anima essa coralidade e que a conduz rapidamente para
longe do agit-prop.
Após as formas corais cinza ou folclóricas do realismo socialista, os anos 1965-82
veem se desenvolver uma coralidade de resistência que retoma as formas
descobertas pelas vanguardas das diferentes revoluções cênicas russas, no plano
ético (as exigências da trupe e do conjunto), no plano político (o engajamento dos
atores e dos espectadores que lhes assistem, apoiando-os), e no plano estético. A
Taganka em Moscou é então um dos lugares dessa coralidade efervescente onde,
através do « funil » do palco, tudo o que se acumula além da cena, na sociedade, na
cidade, no país , se lança em direção à sala. A psicoenergética do coro se desenvolve
aí em figuras cênicas bastante variadas, audaciosas — coro em deslocamento de
cantores-atores que conduzem o público da rua à sala, coro-pantomima, coro falado
ou cantado, coro masculino ameaçador, coro feminino suplicante, braços erguidos
ou mãos estendidas, coro de crianças, coro de camponeses disseminados entre as
bétulas do Vivant, coro que espera, implora, segura ou se debate, figuras corais
repressivas — quadrado móvel de soldados ou fileira de policiais que impede o coro
formado pela outra parte da trupe dos “bandidos” de Liubimov, de reunir-se àquele
[coro] da sala... 111 (PICON-VALLIN, 2003, p. 56)

Necessariamente polimórfica, a coralidade floresce num país gigante e profundamente


plural como a Rússia, ainda mais quando lembramos que esse país se deparou com algumas
das mais duras formas de massificação e controle da história recente, que também deram
origem à sua própria coralidade, um gênero de coro que pode ser visto como o
“prolongamento do ‘homo sovieticus’. [...] Eram coros imensos, que soavam sempre
falsos.”112 (SOMMIER, 2003, p. 62). Entrementes, a instituição que alimenta o
desenvolvimento e o florescimento renovado da coralidade na Rússia atravessa os períodos
massificantes sustentando sua ética de conjunto:

111
Original : la choralité se décline en diverses variations : regroupements thématiques des personnages, union
des acteurs sous un uniforme de travail, superposition de plusieurs types de choeurs, jeu construit sur des
principes relationnels que tiennent à la fois de l’unisson et du contrepoint, polyphonie complexe des corps et
des voix, complicité efficace sur le plateau qui autorisera à identifier un groupe de comédiens à un « seul
corps à plusieurs têtes ». La quête artistique des formes et de la singularisation du jeu exigée de chaque acteur
à l’interieur d’un travail collectif est à la mesure de l’utopie qui anime cette choralité-là et qui la entraîne vite
loin de l’agit-prop.
Après les formes chorales grises ou folkloriques du réalisme socialiste, les années 1965-80 voient se
développer une choralité de résistance qui reprend les formes trouvées par les avant-gardes des différentes
révolutions scéniques russes, sur le plan éthique (les exigences de la troupe et de l'ensemble), sur le plan
politique (l'engagement des acteurs et des spectateurs qui les assistent en les soutenant), sur le plan
esthétique. La Taganka à Moscou est alors un des lieux de cette choralité effervescente où, à travers
« l'entonnoir » du plateau, tout ce qui s'est accumulé au-delà de la scène, dans la société, dans la ville, dans le
pays, s'élance vers la salle. La psychoénergétique du choeur s’y développe en des figures scéniques très
variées, audacieuses — choeur en déplacement des chanteurs-acteurs qui entraînent le public de la rue à la
salle, choeur-pantomime, chœur chanté ou parlé, choeur masculin menaçant, choeur féminin suppliant, bras
levés ou mains tendues, choeur d'enfants, chœur de paysans disséminés parmi les bouleaux du Vivant, choeur
qui attend, implore, retient ou se débat, figures chorales répressives — carré mobile de soldats ou ligne de
policiers qui empêche le choeur formé par l'autre partie de la troupe des « bandits » de Lioubimov de
rejoindre celui de la salle...
112
Original : « la prolongation de ce qui était l’‘homo sovieticus’. [...] C’était des choeurs immenses, qui
sonnaient toujour faux »
74

A escola de teatro na Rússia treina essa coralidade: convivência prolongada no


mesmo espaço, formação corporal e vocal de atores polivalentes, dançarinos e
músicos, que partilham o mesmo vocabulário de trabalho, cumplicidade nascida dos
estudos e improvisações, disciplina comum de trabalho, aprendizagem do papel
partilhado por muitos atores dentro de um mesmo elenco, dependendo das
apresentações.113 (PICON-VALLIN, 2003, p. 58).

O Atelier Piotr Fomenko, fundado em 1993, não apenas nasce a partir dela, mas tira
sua vitalidade da escola de teatro. Seu grupo reúne alunos de uma mesma turma formada por
Fomenko, turma que entrou em 1988 no GITIS – Instituto Estatal das Artes Teatrais.114
“Comunidade durável de jovens que crescem e se desenvolvem juntos”115 (PICON-VALLIN,
2003, p. 58), sua marca está na coexistência dos contrários, além da musicalidade e leveza.
Uma coralidade dissensual, segundo Picon-Vallin.
Considerando o trabalho de Piotr Fomenko, Célie Pauthe (2003, p. 60) diz que “A
coralidade no palco não nasce de um uníssono coletivo, mas se busca e se prova em suas
sombras, em seus avessos: o caminho que leva até ela está cheio de desvios.” 116 Sua
observação do trabalho de Fomenko e seu grupo revela duas características opostas e
complementares: a grande afinidade e entendimento entre os atores, a maior parte ex-alunos
de Fomenko na mesma turma, que compartilhavam uma caminhada comum no teatro e
tinham vivências semelhantes, histórias vividas em conjunto, uma energia comum; e a busca
incessante do diretor pelos obstáculos, por agravar as tensões, provocar contradições.

É da soma das singularidades afirmadas em sua maior complexidade que se nutre o


terreno comum da representação, marcado, aparentemente e finalmente, por uma
coralidade tão fluida e sutil. A cumplicidade contínua unindo os parceiros de jogo é
paradoxalmente o fruto de uma abordagem complexa do jogo do ator, fundada sobre
um tipo de postulado empírico que consiste em colocar o obstáculo, o impedimento,
anteriormente a qualquer envolvimento no jogo.117 (PAUTHE, 2003, p. 60)

113
Original : « L’école de Théâtre em Russie entretient cette choralité : cohabitation prolongée dans le même
espace, formation corporelle et vocale de comédiens polyvalentes, danseurs et musiciens, partageant le même
vocabulaire de mátier, complicité née des études et improvisations, discipine commune de travail,
apprentissage du rôle partagé paar plusieurs acteurs à l’intérieur d’une distribution, selon les
représentations ».
114
Desde o início do ateliê, Fomenko, morto em 2012, não foi o único diretor das produções e ao longo dos anos
outros artistas foram incorporados ao ateliê, que existe até hoje. Maiores informações disponíveis no site do
grupo: https://fomenki.ru/english/. Acesso em 20 dez. 2020.
115
Original : « communauté durable de jeunes gens qui grandissent et se développent ensemble ».
116
Original: « La choralité, sur le plateau, ne naît pas d’un unisson collectif, mais se cherche et s’éprouve dans
ses ombres, dans ses revers : le chemin qui y mène est semé de détours. »
117
Original: « C’est de la somme des singularités affirmés dans leur plus grande complexité, que se nourrit le
terreau commun de la représentation, marquée, en apparence et au final, par une si fluide et subtile choralité.
La complicité continue unissant les partenaires de jeu est paradoxalement le fruit d’une approche complexe
75

O trabalho do encenador russo busca a coralidade na difração, ou, como dizem Pauthe
e Triau, a coralidade difratada. E essa difração não é buscada por Fomenko apenas no nível da
cena. Os atores devem ser eles mesmos seres difratados, internamente divergentes. A autora
cita Rosa Sirota, pedagoga que trabalhou próxima a Fomenko durante muito tempo, segundo
a qual “um ator sobre o palco deve sempre procurar, ao mesmo tempo e a cada instante de seu
percurso: dizer uma coisa, pensar outra coisa, querer uma terceira, fazer uma quarta,
experimentar uma quinta.”118 (PAUTHE, 2003, p. 61, grifos da autora). Sobre essa proposta,
Pauthe conclui que, se for realmente executada, pode levar os atores para longe de seus
abismos e meandros internos, para uma “coralidade feita de frequências constantemente
moventes”.119 As dissonâncias internas produzem por fim uma espécie de consonância no
plano da obra? “Ninguém atua a mesma coisa e, entretanto, tudo está ligado. [...] Lógica
paradoxal que funda a riqueza de uma coralidade viva, porque incessantemente interrogada e
contrariada”120 (PAUTHE, 2003, p. 61). É também a partilha da diferença que gera a imagem
do grupo e a lógica coral.

Em sua dissertação de mestrado, Compondo um nós: um estudo sobre o comum e a


estética plural, Vanessa Civiero “tem como foco montagens cênicas que compõem um nós”,
tornado possível “a partir de um comum que é instaurado primeiramente na união dos
intérpretes reunidos durante o processo dos ensaios, e em seguida durante o acontecimento
teatral e na forma como este comum relaciona-se com o público e com o espaço da
apresentação” (CIVIERO, 2019, p. 19).
Debruçada sobre a noção de ‘comum’, Civiero estrutura seu texto principalmente em
torno do pensamento de Pierre Dardot e Christian Laval em Comum: ensaio sobre a
revolução no século XXI121. Nas performances escolhidas para seu estudo, Civiero identifica
duas qualidades capitais: corporalidade e coralidade. As fontes a partir das quais a autora fala
de coralidade já foram exploradas aqui e pertencem todas ao grupo francês. Seus estudos de

du jeu de l’acteur, fondée sur une sorte de postulat empirique qui consiste à poser l’obstacle, l’empêchement,
en préalable à tout engagement dans le jeu. »
118
Original : « un comédien sur le plateau doit toujour chercher, dans le même temps et à chaque instant de son
parcours : à dire une chose, penser à une autre, en vouloir une troisième, en faire une quatrième, en éprouver
une cinquième. »
119
Original: « choralité faite de fréquences constamment mouvantes »
120
Original: « Personne ne joue la même chose, et pourtant tout est relié. [...] Logique paradoxale qui fonde la
richesse d’une choralité vivante, parce que sans cesse interrogée et contredite. »
121
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo:
Boitempo, 2017.
76

caso, no entanto, trazem performances contemporâneas compostas de forma a provocar a


sensibilidade e o pensamento sobre a organização do grupo ou da sociedade. Convocando
cidadãos das localidades em que são realizadas a tomarem parte na obra, Batucada e 100%
renovam-se a cada novo local em que são apresentadas.
Batucada é uma performance grupal, concebida pelo coreógrafo Marcelo
Evelyn/Demolition Incorporada para o Kunsten Festival des Arts em 2014, na Bélgica. Uma
performance que nasce de uma demanda por provocações artísticas ligadas ao funcionamento
da democracia, ao posicionamento nos âmbitos coletivos e não coletivos, em um período em
que ocorriam as eleições para o parlamento europeu. Os participantes da primeira versão,
oriundos de 14 países diferentes, “entraram em conflito ao passarem pela oficina intensiva
prévia à estreia. A partir dos ensaios e conflitos que surgiram, eles investigaram o que poderia
ser comum a todas as pessoas presentes, a todos os corpos.” (CIVIERO, 2019, p. 51, grifo da
autora).
Os espectadores entram num espaço já habitado pelos performers, que usam máscaras
que cobrem rosto e cabeça, com aberturas para olhos e boca, além de carregar panelas e
pedaços de madeira, com os quais fazem a batucada que intitula a performance. Balões de gás
hélio estão presos pelo espaço. Depois de quase meia hora de indefinição e curiosidade por
parte dos espectadores, os performers começam uma dança. Mais performers entram no
espaço, inicia-se uma batucada e eles se despem. A partir daí, o grupo faz algumas evoluções
pelo espaço, sempre encarando os espectadores, até que os convidam para a dança e — pelo
menos na apresentação relatada por Civiero — recebem respostas positivas, de espectadores
que tiram a roupa e dançam com eles. Uma festa se instaura. Festa baseada no ritmo da
batucada, denunciado em seu título. Após mais evoluções pelo espaço, os performers
alinham-se a uma parede, e, depois de um momento de frenesi, param, olhos fixos no público,
que começa a bater palmas. Os performers permanecem parados. A dúvida se instaura.
Performers e público se olham.

Esse choque de intensidades — a movimentação e o barulho frenéticos e então a


parada total — provoca emoções, joga com a memória, mexe com os afetos. Ao
mesmo tempo há a exposição e o contraste: público vestido, parado, encarando, e
intérpretes desnudos, parados e encarando. [...] o ser humano enquanto coletivos
distintos. O ser humano como “veio ao mundo” e os adaptados socialmente.
(CIVIERO, 2020, p. 64-65)

Após mais uma evolução, em que pela última vez passam pelo meio do público, os
performers vão para a saída e deitam-se no chão, no espaço que os espectadores devem usar
77

para sair. Muitos corpos nus deitados no chão: imagem que evoca a morte, a falência do
humano, uma tragédia coletiva. O Holocausto, chacinas, mortes de imigrantes ou de pessoas
em situação de rua. Os espectadores precisam passar pelo meio dos corpos e “muitas pessoas,
após passarem, voltam os olhares para contemplar o momento da travessia” (CIVIERO, 2019,
p. 56). Instaura-se a imagem dos espectadores como comunidade dos vivos, que passam sobre
os cadáveres tentando não tropeçar neles. Muitas comunidades fugazes são criadas e desfeitas
pela performance grupal de Batucada. A comunidade dos performers e dos espectadores,
separada pela estranheza do início, que pode se acentuar pelo desnudar-se, a comunidade do
ritmo que pulsa e ao qual é impossível fugir; a comunidade daqueles que dançam e uma forma
muito especial de transgressão que são os espectadores que passam para ‘o lado de lá’ ao se
despir e integrarem o grupo dos performers.
100% São Paulo, ou 100% (o espetáculo recebe o nome de cada cidade em que é
realizado, a versão paulistana sendo a estudada por Civiero), é uma proposta do grupo alemão
Rimini Protokoll. Aqui, busca-se criar um espelho da cidade por meio da maior fidelidade
possível às estatísticas demográficas na composição do grupo de 100 pessoas que ocupa o
palco. A coralidade se estrutura sobre a imagem da cidade que se constrói a partir das
escolhas dos performers, habitantes da cidade, pessoas de fora do meio cênico. As estatísticas
se materializam à frente dos espectadores, revelando as diversas fraturas que há na
comunidade que habita a cidade, a partir de sua miniatura no palco. Esse processo se dá por
meio de perguntas feitas aos performers em cena.
As respostas às perguntas geram a movimentação dos performers pelo espaço de
atuação. Vemos o movimento coletivo formando novos grupos e novas imagens, de acordo
com cada pergunta, nos permitindo visualizar correntes invisíveis que ligam uns aos outros,
relações de semelhança e diferença entre os seres humanos que vivem na cidade de São Paulo,
e que podem fazer com que nos interroguemos sobre nossa própria cidade, não sendo
paulistanos. Como essas relações se dão entre as pessoas com quem convivo? E eu, como
responderia a essa pergunta? Com que deslocamento contribuiria nessa massa coral? A forma
da cena torna-se a tradução em corpo e movimento da estatística. As semelhanças e diferenças
entre os habitantes da cidade geram o movimento que estrutura a obra. O grupo de 100
pessoas torna-se metonímia para ‘os habitantes de São Paulo’, e se multiplica, significando
muito mais do que a si mesmo.
78

Uma figura que nos oferece bastante material para a reflexão sobre a coralidade é
Marcus Borja. Ator, encenador, musicista, regente de coro, tradutor e professor brasileiro
radicado na França, Borja centra seu trabalho na musicalidade e na coralidade. O alicerce de
seu trabalho cênico é a voz, suas potências e as relações entre as vozes, especialmente na
forma de música. Sua noção de coralidade passa pela relação com o coro musical e a esfera
sonora é preponderante em seus trabalhos. O encenador, no entanto, não se prende à dimensão
de ‘conformidade’ ou de ‘harmonização das vozes’ que pode existir em um coro.
Participei da oficina Vozes em jogo: coralidade e musicalidade da cena e do texto,
ministrada por Marcus Borja em julho de 2019, em Brasília. Percebo que grande parte dos
exercícios e das técnicas composicionais que utilizou nessa oficina, e que, segundo ele,
também foram utilizados nos trabalhos que havia criado recentemente, destinam-se a
desenvolver uma escuta apurada nos atores. A escuta, aliás, é um dos grandes temas do
trabalho de Borja, bastante trabalhada em seus textos, além da sala de ensaio. Percebo que o
processo de desenvolvimento da escuta acaba, de saída, gerando a busca de consonância no
grupo, uma vez que essa é uma tendência natural, mas também liberta cada um dos atores e
atrizes para, a partir de uma percepção mais profunda do que está ocorrendo, criar seus
momentos de dissonância, de divergência, promovendo o jogo entre esse grupo e cada
componente enquanto indivíduo.
As noites da oficina de Borja começavam por um exercício de escuta. Deitados,
ouvíamos, no maior silêncio possível. Marcus então nos oferecia um estímulo sonoro. Na
primeira noite, tivemos contato com a peça Spem in alium nunquam habui, de Thomas Tallis,
composta em cerca de 1570. A peça também é conhecida pelo nome Forty-part motet, que
também intitula uma instalação de 2001 da artista canadense Janette Cardiff que consiste em
40 caixas de som dispostas em formato oval, cada caixa reproduzindo a gravação do
microfone de um dos cantores do coro da catedral de Salisbury alguns momentos antes,
durante e depois da execução de Spem in alium.122 Essa peça foi escrita para 8 coros de 5
vozes cada, 40 partes, portanto.
Ouvir essa peça, mesmo que por meio de uma única caixa de som portátil, com a qual
Marcus passeava pela sala entre nossos corpos deitados, foi um estímulo particularmente
forte. A imagem que se gerou em mim ao ouvi-la foi de ondas, ondas do mar, algumas
pequenas e outras gigantes, feitas de som, ondas que atingiam meu corpo por dentro. Bastou

122
Atualmente em exposição na Galeria Nacional do Canadá (Musée des Beaux-arts du Canada, em francês) em
Ottawa, onde está desde sua criação. Também está exposta no Instituto Inhotim, em Brumadinho/MG.
79

não podar meus impulsos, e meu corpo começou a responder àqueles sons ainda deitado no
chão, com uma série de contrações e espasmos. Depois do primeiro momento de escuta do
silêncio, depois da escuta do estímulo sonoro e finalmente de escuta do espaço — não digo
novamente do silêncio porque algo do estímulo permanecia ressoando naquele espaço —
começava uma improvisação vocal. Cantávamos uma nota, talvez seria melhor dizer
oferecíamos um som, com o qual nossos colegas se relacionavam oferecendo outro som de
altura diferente. O processo era de uma composição contínua, em que cada membro do grupo
deveria oferecer um elemento de diferença que, no entanto, não fosse totalmente estranho em
relação ao conjunto. Fazia-se necessário guardar certa energia comum para que
mantivéssemos uma relação dinâmica e progressiva, sem mudanças que cortassem o fluxo do
jogo vocal. A dissonância, no entanto, não era apenas permitida, mas encorajada, com alguns
momentos de sons bastante dissonantes. Nossa busca era que houvesse um fio sonoro sendo
sustentado pelo espaço a todo tempo, portanto as notas deveriam ser longas para permitir a
tomada de ar dos outros jogadores.
Para preparar nossos ouvidos às exigências desse jogo, no primeiro dia Marcus
realizou um exercício muito simples: pediu que, quatro a quatro, montássemos acordes com
nossas vozes. A primeira pessoa cantava uma nota, logo em seguida a segunda cantava outra e
a terceira cantava outra, diferente das duas primeiras, e a quarta cantava mais uma nota,
diferente das três anteriores. O resultado podia ser mais ou menos consonante, mas era
necessário que as quatro notas fossem diferentes, o que certamente excluía a repetição de uma
nota cantada uma oitava acima ou abaixo e fazia necessário lutar contra a tendência natural de
entrar na lógica ou no som do outro. Dependendo da familiaridade dos atores com a música
ou de sua intuição, com três notas pode-se chegar a um acorde perfeito maior, por exemplo. A
quarta nota tinha justamente a função de inserir um elemento de estranheza no conjunto, não
permitindo que o todo fosse consonante demais.
Outro exemplo do trabalho de Borja bastante significativo para a compreensão da
coralidade como princípio de criação tanto no trabalho da sala de ensaio quanto para a
composição da cena é o que chamarei de jogo das cadeiras, um procedimento que aprendi na
oficina e utilizo para demonstrar a lógica da coralidade na prática. Várias pessoas estão
sentadas em cadeiras espalhadas pela sala. Uma delas levanta-se de sua cadeira e vai até o
extremo oposto do espaço. Quando volta, seu objetivo é sentar-se numa cadeira vazia.
Logicamente a sua, se não houver impedimentos. O objetivo de todo o grupo, porém, é
impedi-la. Há duas regras essenciais no jogo: 1) a única maneira de impedir alguém de se
80

sentar numa cadeira é sentando antes e 2) o grupo deve seguir o tempo-ritmo do “solista”, a
pessoa que está procurando a cadeira para sentar.
Descrita, a tarefa pode parecer fácil, mas apenas parece. Quando realizada, os
membros do “coro” logo se dão conta de que a cada vez que alguém levanta para impedir o
solista, deixa um lugar vazio que deve ser ocupado por outra pessoa. Ou seja, deve-se, por
meio de uma atenção aberta e de um cálculo preciso, saber o momento certo de deixar seu
lugar e confiar no colega que irá ocupá-lo. A fórmula que Marcus utilizava para explicar essa
dificuldade é que se deve “antecipar a ação para não antecipar a ação”, ou seja, é necessário
observar e calcular para não se levantar movido pela ansiedade.123
Em sua tese intitulada Poétiques de la voix et espaces sonores: la musicalité et la
choralité comme bases de la pratique théâtrale. (Poéticas da voz e espaços sonoros: a
musicalidade e a coralidade como bases da prática teatral, em tradução livre), de 2017, Borja
emprega sua experiência como musicista e regente de coro para investigar uma prática teatral
desenvolvida a partir da escuta e da dimensão musical da cena, em que se experimenta a
“noção/dispositivo de coralidade”124 (BORJA, 2017, p. 11) de variadas maneiras. Uma
atuação sobretudo “para o ouvido”, já que o encenador busca, na linguagem musical, bases e
ferramentas que possam ser compartilhadas125 com a arte do teatro, além de problematizar a
“questão da existência sonora do teatro e como ela pode (trans)formar e (re)condicionar o
visual”126 (BORJA, 2017, p. 41), o que o encenador faz por meio de três criações cênicas. Nas
práticas propostas por Borja a qualidade do jogo coletivo tem importância capital, já que o
trabalho da escuta não se completa sem a relação.
O trabalho de Borja é estruturado sobre três pontos principais: escuta, voz e espaço. A
escuta é caracterizada por ele como um movimento sobretudo do interior ao exterior, uma
busca ativa, que torna possível a presença do ator no presente. “A expressão ‘fazer silêncio’ é

123
Guardadas as devidas diferenças entre os trabalhos, podemos observar que esse princípio de preparação na
improvisação é semelhante, por exemplo, ao que Thomas Richards, diretor do Workcenter of Jerzy Grotowski
and Thomas Richards, chama de preparar a próxima onda. Sendo breve: no trabalho do Workcenter com os
cantos de tradição, geralmente há um líder que canta e se desloca pelo espaço, estabelecendo interações com
as pessoas a seu redor. Estas devem estar atentas ao padrão de deslocamento e à posição do líder no espaço e
conscientemente preparar a próxima onda, ou seja, distribuir-se pelo espaço de forma que o líder possa
encontrar alguém para estabelecer uma relação assim que se desconectar de seu(sua) parceiro(a) atual.
Observei a condução de Richards em 2011, em sessão de trabalho com o Workcenter conduzida por ele na
Universidade Federal de Santa Maria.
124
Original: « notion/dispositif de choralité »
125
Bases que sempre estão implicadas na ação, mesmo que os artistas não estejam conscientes disso. A esse
respeito, é interessante retomar a imagem da mousikê como reunião das artes e a proposição feita por Maletta
de renomear como Sonora o que hoje conhecemos por Música.
126
Original: « question de l’existence sonore du théâtre – et comment elle peut (trans)former et (re)conditionner
le visuel ».
81

surpreendentemente justa e eloquente no sentido em que dá conta plenamente da concretude


objetivante do silêncio como uma coisa ‘a fazer’, o resultado de um processo de produção.”127
(BORJA, 2017a, p. 61). O silêncio é tomado como disparador da ação, um objetivo/tarefa.
Não um silêncio de morte, fixo e paralisante, mas um silêncio que parte da escuta de si e do
outro.
Esse silêncio poroso pode ser experimentado em outro exercício que Borja propôs em
sua oficina. Formávamos um círculo no escuro ou na penumbra e iniciávamos uma contagem.
Alguém dizia “um”, outra pessoa dizia “dois” e assim por diante. Se duas pessoas falassem ao
mesmo tempo, reiniciávamos a contagem. Cada um dos participantes deveria perceber seu
momento de dizer o próximo número, e éramos encorajados a contar em todas as línguas em
que soubéssemos fazê-lo. Aguçando a escuta, nossa capacidade de permanecer no jogo
aumentava. É como se a energia coletiva direcionasse o próximo movimento, que não era
feito por alguém, mas se fazia a partir da escuta ativa dos participantes da oficina.
O canto é afirmado pelo encenador como uma atividade da presença. Cantar só pode
funcionar no aqui e agora, já que mobiliza todo o aparato psicofísico do cantor. A distração ou
o medo são traídos pela voz, que se ressente da fuga à presença. O trabalho vocal, como já
mencionado, está no centro das criações de Borja e, especialmente, da investigação que narra
em sua tese. E trata-se, em seu trabalho, da voz materialidade, prolongamento de um corpo
presente no aqui e agora, sem intermediação de qualquer mídia. Essas vozes produzidas por
corpos presentes falam uma pluralidade de línguas em cada um dos espetáculos criados no
decorrer de sua pesquisa. E é na exposição dos pressupostos de seu trabalho com a voz que
Borja localiza as coralidades (no plural) em seu texto. Se, como queria Meyerhold, a
encenação se aparenta à composição musical, a direção de atores se aproxima da regência de
coro. Borja aponta uma lacuna na formação dos atores: existe uma dificuldade para trabalhar
com a dimensão vertical do som, com as concomitâncias sonoras que produzem a polifonia.
Existem duas tendências negativas inerentes às práticas corais que são reveladas e trabalhados
pela prática do canto coral: permanecer surdo aos outros e deixar-se tragar pelo grupo. A
primeira tendência é a do indivíduo que se isola, separando-se do coro, a segunda é daquele
que abre mão de sua individualidade, apagando-se no coro. Para superá-las, existe uma
terceira via, aquela do “presente partilhado, que permite a coralidade”128 (BORJA, 2017, p.

127
Original : « L’expression « faire silence » est étonnamment juste et éloquente en ce sens qu’elle rend
pleinement compte de la concrétude objectivante du silence comme une chose « à faire », le résultat d’un
processus de production. »
128
Original: « présent partagé, qui permet la choralité. »
82

85). Cantar ouvindo o canto do outro, agir testemunhando a ação alheia. “Porque mais que
uma questão de interpretação ou de encarnação, trata-se de relação.”129 (BORJA, 2017, p. 86).
Para o encenador, a “noção/dispositivo de coralidade” se insere em sua investigação
especialmente em relação ao terceiro eixo de criação,

a saber, a criação de espaços, de universos, de paisagens poéticas a partir de vozes


que se relacionam: Uma geopoética da voz. A polifonia nos interessa enquanto
princípio estético e inspiração dramatúrgica, mistura de timbres, de cores, de
harmônicos... mesmo quando não falamos propriamente de “notas musicais”. 130
(BORJA, 2017, p. 87)

O trabalho com o espaço será realizado por Borja e seus companheiros de criação
tendo como eixo principal o impacto do espaço na dramaturgia, na estrutura do espetáculo. Há
uma camada relacional do espaço na distribuição de lugares entre elenco e plateia, buscando a
coabitação de elenco e espectadores no mesmo lugar, o que desafia tanto as atrizes e atores
que devem relacionar-se com pessoas cuja presença não pode ser esquecida, quanto o público,
que não está mais escondido atrás das luzes, no conforto de uma plateia escura.
No processo de investigação artística que constitui a base de sua tese, Borja criou três
espetáculos, que descreve e analisa em seu texto. Passo a mencioná-los a partir dos escritos do
encenador.
A primeira das criações de Borja nesse projeto foi o espetáculo Théâtre. Criação que
coloca em tensão a própria etimologia da palavra teatro, ‘lugar de onde se vê’, Théâtre é
realizado quase totalmente no escuro absoluto. “Um poema sonoro polifônico e poliglota para
cinquenta artistas em trinta e seis línguas”131 132
(BORJA, 2017, p. 132), o espetáculo conta
com uma estrutura bastante simples: no centro de uma sala, há um círculo de cadeiras
voltadas para dentro, com quatro aberturas pelas quais se pode passar. Os espectadores
entram, sentam-se nas cadeiras e as luzes se apagam. Atores e atrizes, nus, entram no espaço
enquanto uma faixa sonora é tocada, para ocultar os ruídos produzidos pela entrada, e fazem
um grande círculo em volta das cadeiras. Inicia-se a travessia sonora que constitui o centro do
espetáculo. Ao final, atores e atrizes revelam seus rostos com pequenas lâmpadas de baixa
luminosidade, enquanto emitem uma única nota continuamente. Apagam-se as pequenas

129
Original: « Car plutôt qu’une question d’interprétation ou d’incarnation, c’est bien de relation qu’il s’agit. »
130
Original : « à savoir la création d’espaces, d'univers, de paysages poétiques à partir de voix mises en relation :
une géopoétique de la voix. La polyphonie nous intéresse en tant que principe esthétique et souffe
dramaturgique, mélange de timbres, de couleurs, d’harmoniques... même quand il ne sera pas nécessairement
question de « notes musicales » à proprement parler. »
131
Original: « un poème sonore polyphonique et polyglotte pour cinquante artistes en trente-six langues ».
132
Embora a quantidade e a lista de línguas variem de acordo com o elenco das apresentações.
83

lâmpadas. Outra faixa é tocada para ocultar a saída do elenco. As luzes da sala são acesas. Os
espectadores descobrem retratos de cada um dos atores e atrizes nas paredes, pendurados por
eles durante a apresentação.
Sobre a composição do espetáculo, Borja diz:

Na maior parte do tempo, esses materiais são escolhidos e harmonizados no


espetáculo em função de critérios essencialmente “musicais”: contrastes rítmicos,
musicalidades similares ou às vezes bastante opostas que se respondem, durações
variadas que trazem constantemente dinâmicas novas para o conjunto, texturas,
aliterações e assonâncias, complementaridade harmônica ou atrito dissonante de
alturas ou “grãos de voz”, encaixes de sons e silêncios entre dois trechos sonoros,
entre outros.
Assim, por exemplo, uma polifonia corsa cantada por um coro masculino que
desenha uma diagonal atravessando o espaço de uma ponta a outra cruza uma
lamentação em filipino falada (ou chorada) por uma mulher só, imóvel no centro do
espaço. Um lied para duas vozes femininas e piano de Félix Mendelssohn dialoga
com a palavra “pare!” repetida muitas vezes por uma atriz em uma gradação de
estados emocionais que vão do cochicho afetuoso mal audível à súplica desesperada
no limite do sustentável. Um trava-línguas em guarani, ritmado por um coro
masculino percussivo, é progressivamente ‘sufocado’ por um canto gregoriano que
transforma o coro em baixo contínuo sobre um intervalo de quinta entre baixos e
tenores. As últimas linhas de Finnegans Wake de James Joyce (em inglês) são
feridas por imprecações em fongbe, um canto tradicional romeno, algumas notas de
uma melodia de Claude Débussy sobre um poema de Paul Verlaine, o todo
sustentado por um cluster coral em mudança constante. Dois personagens de um
episódio do Mahabharata, um falando hindi e o outro batak, se procuram e se evitam
em uma densa floresta sonora de onde escapa também um canto em sânscrito
extraído do Bhagavad Gita....133

A partir dessa descrição, podemos imaginar a densidade sonora que inunda a plateia de
Théâtre. Essa pletora de línguas e formas sonoras, coros que se juntam e se desfazem, espaços
criados e recriados pelo som nos convidam a experimentar a diversidade a partir de um dos
maiores veiculadores da unicidade humana: a voz. Em contato com as possibilidades de um

133
Original: « La plupart du temps, ces matériaux sont choisis et harmonisés dans le spectacle en fonction de
critères essentiellement « musicaux » : contrastes rythmiques, musicalités similaires ou parfois très opposées,
qui se répondent, durées variées qui apportent constamment des dynamiques nouvelles à l’ensemble, textures,
allitérations et assonances, complémentarité harmonique ou frottement dissonant de hauteurs ou « grains de
voix », emboîtements de sons et silences entre deux extraits sonores, entre autres.
Ainsi, par exemple, une polyphonie corse chantée par un chœur masculin qui dessine une diagonale
traversant l’espace d’un bout à l’autre croise une lamentation en flipino parlée (ou plutôt pleurée) par une
femme seule, immobile au centre du plateau. un lied pour deux voix féminines et piano de Félix
Mendelssohn dialogue avec le mot « arrête! » répété plusieurs fois par une actrice dans une gradation d’états
émotionnels qui vont du chuchotement affectueux à peine audible à la supplication désespérée à la limite du
soutenable. Un trava-línguas (virelangue) en guarani, rythmé par un chœur masculin percussif, est
progressivement « étouffé » par un chant grégorien qui transforme le chœur en basse continue sur un
intervalle de quinte basses-ténors. Les dernières lignes de Finnegans Wake de James Joyce (en anglais) sont
heurtées par des imprécations en fongbe, un chant traditionnel roumain, quelques notes d’une mélodie de
Claude Debussy sur un poème de Paul Verlaine, le tout sous-tendu par un cluster choral sans cesse
changeant. Deux personnages d’un épisode du Mahabharata, l’un parlant hindi et l’autre batak, se cherchent
et s’évitent dans une dense forêt sonore d’où s’échappe aussi un chant en sanskrit extrait du Bhagwad
Gita… »
84

grupo de vozes podemos sonhar e por um momento deixar de lado a necessidade da visão, o
sentido verificador, e dar asas à percepção auditiva e tátil e à imaginação.

A forte presença da coralidade nesse trabalho — da sala de ensaio, enquanto


ferramenta técnica de treinamento, à estrutura do espetáculo, enquanto fundamento
estruturante de uma dramaturgia fragmentária e contrapontística —, não a
reivindicamos como metáfora da comunidade consensual (fadada à inércia) mas
como espaço de harmonização dinâmica das dissidências, das discordâncias, das
dissonâncias, onde o ser conjunto não implica uma acumulação de soma zero de
indivíduos, mas uma tessitura em contraponto de memórias acústicas e de realidades
sonoras. O princípio coral nos interessa menos pela aglomeração do que pela
diversificação geradora de polifonias. A música no sentido amplo, ou acima de tudo
a musicalidade como princípio organizador dos sons no espaço-tempo, é o que nos
permite fazer falar juntas todas essas vozes e extrair, por intermitência, a sinfonia da
cacofonia.134

Borja ainda criou dois outros espetáculos nessa investigação, Intranquilité, a partir do
Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, e Bacchantes, a partir da tragédia de Eurípides.
Intranquilité tratava-se de um encontro social em um restaurante “fora do tempo e do
espaço. [...] Dezenove performers, sete musicistas e uma centena de convivas são, por sua
vez, atores e espectadores uns dos outros.” 135 (BORJA, 2017, p. 273). Alguns dos performers
faziam o papel de convidados, outros serviam as mesas. Assim, atores e espectadores
compartilhavam o mesmo espaço, estabelecendo um sem-fim de relações ao longo do
espetáculo. Os fragmentos do Livro do Desassossego se misturavam a trechos de conversas
travadas pelo salão — atores e atrizes portavam microfones de lapela que podiam ser ativados
por um comando externo. Situações pontuais que reclamavam a primazia para novamente
retornar ao anonimato comum.
Bacchantes, o último espetáculo de Borja na trajetória de pesquisa registrada em sua
tese, traz a presença de um coro “tradicional” para o confronto criativo, coro que,
transbordando os limites que podem ser deduzidos a partir da letra da tragédia, “é presença
ativa e vocalizante do início ao fim da peça.”136 (BORJA, 2017, p. 334). Esse coro foi

134
La forte présence de la choralité dans ce travail – de la salle de répétition, en tant qu’outil technique
d’entraînement, à la charpente du spectacle, en tant que socle structurant d’une dramaturgie fragmentaire et
contrapuntique –, nous ne la revendiquons point comme métaphore de la communauté consensuelle (vouée à
l’inertie) mais comme espace d’harmonisation dynamique des dissidences, des discordances, des dissonances,
où l’être-ensemble n’implique pas une accumulation à somme nulle d’individus, mais un tissage en
contrepoint de mémoires acoustiques et de réalités sonores. Le principe choral nous intéresse moins par
l’agglomération que par la diversifcation génératrice de polyphonies. La musique au sens large, ou plutôt la
musicalité comme principe organisateur des sons dans l’espace-temps, est ce qui nous permet de faire parler
ensemble toutes ces voix et d’extraire, par intermittence, la symphonie de la cacophonie.
135
Original: « Dix-neuf performers, sept musiciens et une centaine de convives, sont tour à tour acteurs et
spectateurs les uns des autres. »
136
Original: « présence agissante et vocalisante du début à la fin de la pièce. »
85

composto por atrizes e encenador com singularidades marcadas, personagens diferentes, que
fogem à uniformidade que poderia ser esperada de um coro que se pretende “à grega”.
Estabelece-se aí uma “coralidade dentro do coro”, coletivo de individualidades, corpo único
formado de órgãos diferentes entre si.

3.5 Cenas brasileiras

A tese de Fabio Cordeiro, O coral e o colaborativo no teatro brasileiro (2010) é


provavelmente o trabalho de maior vulto escrito em português mobilizando o termo
coralidade. A ideia que motiva o trabalho é que a criação coletiva/colaborativa gera e se
reatualiza em formas corais. Ou seja, uma poética coral da criação (muitas vezes
acompanhada de uma ética particular de trabalho) gera uma estética coral. Nela, Cordeiro
(2010, p. 20, grifo do autor) busca “realizar uma reflexão crítica sobre [...] a criação
colaborativa e a teatralidade coral”, analisando o trabalho de criadores (a maior parte
coletivos) brasileiros. “Teatralidade coral” é o conceito desenvolvido por ele para observar e
analisar as mutações que o coro sofre ao longo do tempo, com algum tipo de continuidade de
forma ou função. No resumo do trabalho, o autor afirma:

A coralidade em cena, tema principal desta pesquisa, se transforma em categoria


teórica para o propósito de analisar poéticas, espetáculos e cenas teatrais
contemporâneas. O conceito operatório formulado para realizar tal tarefa é o de
teatralidade coral. (CORDEIRO, 2010, p. 8, negrito meu)

Por que não utilizar o termo coralidade para abarcar o conceito de “teatralidade coral”
é uma escolha que o autor não explicita, assim como não explicita o que entende por
coralidade, nos remetendo à leitura morfológica, neologística, da palavra, como ‘qualidade
coral’. Cordeiro não oferece, como Sarrazac, uma identificação da noção de coralidade a
algumas características composicionais definidas. Isso o permite falar de ‘coralidade clássica’,
‘coralidade dramática’ e ‘coralidade pós-dramática’, chegando a usar a expressão ‘coralidade
polifônica’, o que é de algum modo redundante caso nos atenhamos às definições do grupo
francês.
O pesquisador desenvolve um extenso estudo sobre a tragédia grega, passa pelo
desenvolvimento da encenação moderna e as relações entre texto e cena, além de adentrar o
território coberto pela noção de pós-dramático, de Hans-Thies Lehmann.
86

No caso dos clássicos, Cordeiro identifica coralidade e forma coral, como nesta
passagem de seu texto: “com formas corais clássicas, i.e., com a coralidade clássica”
(CORDEIRO, 2010, p. 31, grifo do autor). Esta é por ele identificada com as formas corais
gregas. O autor lança vários questionamentos às ideias de uníssono e indiferenciação
geralmente associadas a esse contexto, mas ao longo de sua escrita essas ideias acabam
reafirmadas.
A coralidade dramática é identificada por ele, em primeiro lugar, nos grupos em cena,
ou cenas de multidão, como nas encenações da companhia dos Meininger. Mas o que o autor
chama de coralidade dramática também pode se manifestar na forma de personagens que
assumem um discurso generalizante ou que expressa o que convencionalmente se toma como
funções do coro antigo: comentários sobre a ação das outras personagens, expressão do
pensamento comum, das convenções sociais e da moral vigente, como o juiz Brack de Hedda
Gabbler, que “pode ser aproximado teoricamente ao universo da coralidade enquanto
personagem que viabiliza, através de suas falas e de seu comportamento em cena, a reiteração
de valores morais, ou éticos, de estatuto coletivo”137 (CORDEIRO, 2010, p. 103). Partindo de
Tchekhov, Cordeiro (2010, p. 104) afirma também que: “De certo modo, a coralidade
dramática assume um caráter de presença e instância onde se manifestam formas
heterogêneas, na medida em que os indivíduos são abordados como componentes de um
coletivo determinado (uma classe, um núcleo familiar)”. Sobre Maeterlinck, o autor aponta o
exemplo mais visível de coralidade em Os Cegos, também na trilha de Szondi, mas a
identifica ainda em Interior, “onde são individualizados discursos que tematizam ou cumprem
funções tradicionais da coralidade clássica.” (CORDEIRO, 2010, p. 107).
O pesquisador menciona ainda, retomando o conceito de Lehmann, uma coralidade
pós-dramática que se constituiria por “procedimentos de coralização do sujeito [...], além da
reelaboração de procedimentos da coralidade clássica e dramática” (CORDEIRO, 2010, p.
150). Entre outros exemplos, Cordeiro menciona A última gravação de Krapp, texto de
Samuel Beckett, em que a personagem principal é multiplicada nas gravações de sua voz, as
quais ouve e comenta, nos permitindo receber discursos de diversos Krapps diferentes devido
a sua distância no tempo; trechos monológicos que dão uma visão plural (ou coral, seguindo o
autor) da personagem.

137
Assim como Cordeiro chamará de “personagens corais” os confidentes Ama e Benvólio, de Romeu e Julieta.
(CORDEIRO, 2010, p. 113)
87

Para o estudo dos grupos na tese, o autor vê, pela lente da coralidade, a pluralidade
existente sob a assinatura de diversos coletivos teatrais brasileiros, os seus modos de
colaborar. Cordeiro procura apontar como esses coletivos se constituem como coros
emancipados, emancipados do jugo de um outro, sem a necessidade de enunciar as palavras
de um autor alheio à sua realidade, mas falam em seu próprio nome na cena, identificando-se
de algum modo como autores do discurso da cena.
Na primeira parte das análises de grupos ou de autores coletivos da cena brasileira, o
autor identifica-os às formas de seus espaços cênicos ou encenações. O círculo, forma coral
por excelência, corresponde ao Teatro de Arena. Companhia e coletivo enunciador, é o Arena
quem conta Tiradentes ou Zumbi, por exemplo138. Associados ao caráter de coletivo
enunciador, estão seu projeto político, de intervenção simbólica na realidade, e as formas
encontradas pelo Teatro de Arena para concretizar seu jogo. O ‘sistema coringa’, invenção de
Augusto Boal, é o grande exemplo da coralidade que opera nas encenações do Arena: os
coringas se revezam e trocam de papéis durante o desenrolar da cena (estão em chave épica),
enquanto o protagonista permanece ligado à sua personagem, em chave dramática. Ao grupo
do ‘qualquer um’, do ‘ser qualquer’, contrapõe-se a identidade do herói, meu semelhante, a
quem posso me identificar, a figura dotada de subjetividade que vivencia a história que se
desenrola à minha frente.
A caixa é identificada à poética teatral da Cia Ópera Seca, dirigida por Gerald
Thomas. Cordeiro aponta, no trabalho de Thomas, algumas formas corais, como os comboios
de Carmem com filtro 2, “verdadeiras paradas envolvendo todo o elenco” (FERNANDES,
1996, p. 193 apud CORDEIRO, 2000, p. 210). Além disso, são apontados exemplos de
disjunção de corpos e vozes dos atores, em que aos corpos em cena correspondem vozes over,
que criam um efeito de estilhaçamento das figuras cênicas e, devido a este, um efeito de
multiplicidade.
O Teatro Oficina é tratado a partir da forma da passarela “porque ali, como nos
desfiles de carnaval, dialogando com sua face concreta e arquitetônica se observa a assinatura
coletiva do Uzyna Uzona” (CORDEIRO, 2010, p. 230). O desenho do Teatro Oficina “é uma
arquitetura que materializa a linguagem do sujeito coletivo que faz dali o seu lugar”.
(CORDEIRO, 2010, p. 226). A peculiaridade do Oficina é que sua teatralidade é sempre
atravessada pela figura de um coro, elemento organizador na tessitura de seus espetáculos,
convocando o que Cordeiro (2010, p. 223) chama de “formas corais rituais, clássicas,

138
Referência aos espetáculos Arena conta Tiradentes e Arena conta Zumbi.
88

modernas, dramáticas e pós-dramáticas.” Embora contando com a figura emblemática de Zé


Celso como diretor, o Oficina constitui-se como persona coletiva, que fala também em seu
próprio nome: em nome de todos os artistas que o constituem.
O estudo detalhado das formas corais de expressão do Teatro Oficina, que não é o
objetivo de Fabio Cordeiro em seu texto e não será aqui, parece um campo fértil para a
exploração de coralidades brasileiras, em um grupo que tem a brasilidade como marca de seus
trabalhos. As diversas formações e movimentações do coro pelas estruturas espetaculares das
criações do Oficina oferecem vasto material para essa investigação.139
O Teatro da Vertigem é trabalhado por Cordeiro a partir da imagem da locação. Os
espetáculos do grupo paulistano são criações site specific, feitas em e para um lugar, que se
torna parte intrínseca da obra. Das criações do Vertigem, Cordeiro ressalta as dinâmicas
processionais necessárias ao deslocamento dos espectadores por determinadas criações, o que
os constitui como uma espécie de grupo coral em relação à obra, além das formações corais
encontradas especialmente em O Paraíso Perdido (1992) e que, segundo o autor, são
reformuladas nas criações seguintes do grupo.
O Vertigem é o grupo em que os processos de colaboração na constituição do sujeito
da enunciação são mais visíveis, já que seu diretor, Antônio Araújo, é o grande expoente do
pensamento sobre o processo colaborativo no Brasil. Cordeiro prossegue seu estudo expondo
justamente algumas facetas do processo colaborativo. Percebo, nesse movimento de
aproximação de formas corais e processo colaborativo, uma questão que subjaz ao trabalho do
autor e é mencionada por ele em vários pontos: o processo colaborativo seria uma
manifestação ética e poética do princípio coral. Os diversos sujeitos que constituem o sujeito
coletivo da enunciação são considerados como igualmente potentes no trabalho de criação,
mas suas particularidades (o que escolhi tratar sob o signo da unicidade, no próximo capítulo)
são mantidas, inclusive na ficha técnica de grande parte dos espetáculos que podem reclamar
para si um processo colaborativo. Esse trânsito entre coletividade e unicidade é, já vimos, o
que caracteriza a coralidade como enunciada por Sarrazac e cia, o que Cordeiro chama de
coralidade contemporânea ou pós-dramática.
O Vertigem segue como objeto do estudo, agora devido ao processo de workshops
realizado pelo grupo em suas montagens, tendo como foco o processo de Apocalipse 1,11. O
ponto que pode nos interessar dessa discussão é a criação que passa pelo estudo de diversos

139
Aguardamos a defesa e disponibilização da dissertação de mestrado de Letícia Coura, O Coro antropófago no
Bixiga: os atuadores e a música n' Os Sertões do Teatro Oficina, que analisa o trabalho do coro na
montagem dos cinco espetáculo que constituem Os Sertões.
89

atores e se concretiza na cena que vai a público por apenas um deles, que carrega, no entanto,
toda a bagagem criada por seus colegas de cena.140
No último capítulo de seu trabalho, Cordeiro se debruça sobre a trajetória de Antunes
Filho, especialmente no Centro de Pesquisa Teatral (CPT). Ali encontramos um inventário de
formas corais classificadas como figurações, especialmente na forma de grupos de atores que
constroem um cenário ou uma ambientação com sua performance, coreografias, em que o
autor lista cenas de dança e movimentações coreografadas, e orquestrações, em que nos
apresenta arranjos vocais particulares nas peças do encenador paulistano. Figurações,
coreografias e orquestrações não necessariamente realizadas por grupos — embora o sejam
em sua maioria — já que o autor também considera a filiação coral, o fato de uma figura
representar ou servir de metonímia para uma classe/coletivo como expressão da coralidade.

3.6 Outras faces de um termo

De acordo com as referências que localizei, no Brasil, Alfredo Bosi emprega o termo
coralidade em seu livro O ser e o tempo da poesia, de 1977 — quatro anos antes da
publicação francesa de O futuro do drama, de Sarrazac. No entanto, a ideia é tratada apenas
de passagem, desenvolvendo muito mais afinidade com a ideia de coro do que com a ausência
do coro que será a característica dominante do conceito cunhado pelo teórico francês. Diz
Bosi:

Uma das marcas mais constantes da poesia aberta para o futuro é a coralidade. O
discurso da utopia é comunitário, comunicante, comunista. O poema assume o
destino dos oprimidos no registro da sua voz. [...] O coro atua, necessariamente, um
modo de existência plural. São as classes, os estratos, os grupos de uma formação
histórica que se dizem no tu, no vós, no nós de todo poema abertamente político.
Mas o coro não se limita a evocar uma consciência de comunidade; ele pode
também provocá-la, criando nas vozes que o compõem o sentimento de um destino
comum (BOSI, 1977, p. 180-181; grifo do autor).

Nesse sentido o termo é usado, por exemplo, pelo prof. Júlio César Machado de Paula
em artigo sobre o poema Deixa passar o meu povo! de Noémia de Sousa. O autor identifica a

140
Podemos encontrar formas semelhantes de criação, por exemplo, nas improvisações preliminares realizadas
no Théâtre du Soleil ou no grupo gaúcho Ói Nóis Aqui Traveiz. Neste último, o processo se dá por meio dos
chamados rituais da personagem, o que na terminologia do grupo caracteriza cenas criadas por uma atuadora
ou atuador para compor determinada personagem. Essas cenas podem envolver a contracenação com outros
atuadores, não se limitando a solos. O Ói Nóis, com seus mais de 40 anos de prática de criação coletiva, é um
grupo fértil para se estudar a relação entre lógicas coletivas de criação e coralidade em cena, já que suas
criações, na grande maioria, apresentam significativos traços corais.
90

coralidade na evocação progressiva de vozes no desenrolar do poema: as vozes de cantores


que chegam pelo rádio “e as vozes da memória (familiares, amigos), num crescendo vigoroso
que quebra o silêncio e a inatividade iniciais e prepara o sujeito para a escrita futura”
(PAULA, 2016, p. 46). Não tive acesso à publicação original, mas transcrevo abaixo o poema
de acordo com o artigo de Paula:

DEIXA PASSAR O MEU POVO

Noite morna de Moçambique


e sons longínquos de marimbas chegam até mim
_ certos e constantes _
vindos não sei eu donde.
Em minha casa de madeira e zinco,
abro o rádio
e deixo-me embalar...
Mas vozes da América remexem-me a alma e os nervos.
E Robeson e Marian cantam para mim
spirituals negros de Harlém.
“Let my people go”
_ oh deixa passar o meu povo,
deixa passar o meu povo! _
dizem.
E eu abro os olhos e já não posso dormir.
Dentro de mim soam-me Anderson e Paul
e não são doces vozes de embalo.
“Let my people go”!

Nervosamente,
eu sento-me à mesa e escrevo...
Dentro de mim,
deixa passar o meu povo,
“oh let my people go...”
E já não sou mais que instrumento
do meu sangue em turbilhão
com Marian me ajudando

com sua voz profunda _ minha irmã!

Escrevo...
Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar.
Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado
e revoltas, dores, humilhações,
tatuando de negro o virgem papel branco.
E Paulo, que não conheço,
mas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de Moçambique,
e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças,
algodoais, o meu inesquecível companheiro branco
E Zé _ meu irmão _ e Saúl,
e tu, Amigo de doce olhar azul,
pegando na minha mão e me obrigando a escrever
com o fel que me vem da revolta.
Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro,
enquanto escrevo, noite adiante,
com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio
_ “ let my people go,
91

oh let my people go!”

E enquanto me vierem do Harlém


vozes de lamentação
e meus vultos familiares me visitarem
em longas noites de insônia,
não poderei deixar-me embalar pela música fútil
das valsas de Strauss.
Escreverei, escreverei,
com Robeson e Marian gritando comigo:
Let my people go,
OH DEIXA PASSAR O MEU POVO!
25/1/50 (SOUSA, 2001, p. 57-58 apud PAULA, 2016, p. 48-49)

O poema é relativamente curto, o refrão da música no rádio se repete e marca tanto a


cadência da escrita quanto o estado emocional do eu-lírico. O refrão é a reivindicação feita
por um povo subjugado no passado, e aquela que Noémia e seus irmãos fazem no presente:
deixa passar o meu povo. Os hebreus no cativeiro e os negros dispersos pelo globo, herdeiros
do roubo de seu mundo e da imposição do mundo do opressor, pedem a mesma coisa. Não
apenas figuras individuais, são povos em diferentes momentos históricos que se reúnem no
poema pedindo liberdade e o fim da tirania.
Mas o eco hebreu está encoberto por uma história e uma memória específicas, por uma
tradição longínqua. As figuras que se juntam a Noémia, que vêm se debruçar sobre o seu
ombro enquanto escreve, têm nomes, têm rostos, são seres únicos, portanto. Aqui se reúnem
as duas acepções de coralidade, a dimensão de grupo herdada do coro e a lente sobre a
dimensão individual, que constrói o grupo e que causa tensão ao ser friccionada com ele. Que
a autora nomeie as figuras que comparecem neste curto poema não é uma ação ignorável.
Aqueles que clamam pela liberdade do povo têm nomes, têm rostos, são pessoas iguais a mim
e a você. A união dessas pessoas cria a multidão que grita pela libertação. Aqui não estamos
diante de uma massa impessoal e, em última análise, nunca estaremos.
Ainda no domínio da poesia, Alfredo Gusmão, professor e poeta português, utiliza o
termo para se referir à intertextualidade, especialmente em forma de citação:

A coralidade é a multivocalidade social, discursiva e poética. A conjunção e o


conflito de registos, de modos de fala diversos. Jogar nas dissonâncias e nos
desdobramentos de um coro, singularizar nele uma voz. A convocação das palavras
de outros, em português e noutras línguas, vindas de diferentes passados e de
diferentes modos do discurso. Como homenagem, sim; mas também porque são
palavras históricas atravessando os tempos; palavras que escrevem a história que
nelas se faz, reverberação; palavras que são condições da minha, das nossas falas.
Reinventar uma coralidade para a poesia. (GUSMÃO, 1998, p. 99 apud EIRAS,
2015, p. 37. negrito do autor, grifos meus).
92

Cabe observar que Gusmão não trata os textos como entes autônomos, mas como “as
palavras de outros”, palavras de outras pessoas, vozes alheias que vêm se somar ao discurso.
Revelando pessoas, as palavras podem singularizar vozes em meio ao coro. Esses exemplos
colhidos da literatura nos apontam o uso do termo significando reunião de vozes distintas
(seja numa perspectiva intertextual ou intraficcional), reclamando sua origem no modelo do
coro antigo (ou musical), mas não se limitando a ele, ou, pelo contrário, confrontando-o por
meio de uma afirmação das singularidades das vozes na estrutura ficcional ou dos diversos
textos que se entrelaçam na tessitura do novo poema.

Em italiano, o termo coralità parece estar incorporado ao uso comum da língua.141


Elizabeth Alsop (2014) afirma que, além de chave na crítica do cinema neorrealista italiano, o
termo coralità também fez longa carreira na crítica literária da Itália. Coralità dissonante
(dissonant chorality, na versão em inglês142), é uma das categorias que o crítico literário
italiano Stefano Ercolino utiliza para analisar o que chama de romance maximalista, um
gênero do romance contemporâneo definido por ele. Não tive acesso ao livro de Ercolino143,
mas a um artigo que parece ser o resumo de sua exposição, no qual o autor apresenta seu
objeto de estudo do seguinte modo:

O romance maximalista tem uma forte identidade simbólica e morfológica.


Particularmente, há dez elementos que o definem e estruturam como um gênero do
romance contemporâneo: extensão, modo enciclopédico, coralidade dissonante,
exuberância diegética, completude, onisciência narratorial, imaginação paranoica,
intersemioticidade, comprometimento ético e realismo híbrido. Essas dez
características são comuns a todos os sete romances analisados neste estudo. Elas
não estão, naturalmente, presentes da mesma forma ou com a mesma intensidade em
cada um dos textos, mas todas elas são decisivas na identificação de um texto como
um romance maximalista, na medida em que estão sistematicamente copresentes.
Tomadas isoladamente, elas podem ser facilmente encontradas em romances
modernos e pós-modernos que não são maximalistas. Portanto, é sua copresença

141
Ver Apêndice A.
142
A questão das traduções do termo em língua inglesa merece aprofundamento e uniformização. As traduções
oferecidas nos trabalhos de pesquisadores brasileiros apresentam uma multiplicidade capaz de confundir
qualquer um. Como exemplo, Fabio Cordeiro (2010, p. 8) traduz “coralidade em cena” por “choral on
stage”; Marcus Borja (2017a, 2017b) traduz “coralidade” e “choralité” por “chorality”; Dodi Leal (2019, p.
256) traduz “coralidades” por “choruses” mas como se baseia no trabalho de Marcos Bulhões, essa parece ser
uma questão conceitual, como veremos mais adiante. Uma vez que pude verificar o uso de “chorality” em
trabalhos em inglês, sugiro que os pesquisadores uniformizem suas traduções utilizando esse termo.
143
ERCOLINO, Stefano. The Maximalist Novel: From Thomas Pynchon's Gravity's Rainbow to Roberto
Bolano's 2666. London/Oxford: Bloomsbury, 2014. Ou, na versão italiana, ERCOLINO, Stefano. Il
romanzo massimalista. Milão: Bompiani, 2015.
Tive acesso ao sumário do livro, no qual podemos ler que o autor dedica um subcapítulo à coralidade, assim
como à polifonia, no capítulo dedicado à coralidade dissonante.
93

e articulação recíproca que as faz fundamentais na demarcação do romance


maximalista como um gênero.144 (ERCOLINO, 2012, p. 242-243, negritos meus)

O trecho realçado no fim do parágrafo me chama a atenção porque afirma que as


características listadas por Ercolino podem ser facilmente encontradas em romances
modernos e pós-modernos, ou seja, a coralidade dissonante seria um traço mais ou menos
disseminado em obras literárias no último século. Ercolino define essa coralidade dissonante
como

um peculiar entrelaçamento de coralidade e polifonia (daí o predicado


“dissonante”). Emprego o termo coralidade para indicar que a narração no romance
maximalista é sistematicamente carregada por uma multiplicidade de vozes que
impedem uma personagem ou um fio narrativo de se tornarem dominantes. [...]
No nível formal, essa coralidade é estruturada por uma importante estratégia retórica
maximalista: o fragmento. Nos sete romances que formam nosso corpus textual a
narração não é contínua, mas sim procede por meio de unidades diegéticas mais ou
menos independentes e completas em significado — resumindo, fragmentos. [...] É
então uma organização diegética neutra, hierarquicamente horizontal, que demonstra
claramente que não é o indivíduo isolado, ou a história isolada, o que importa no
romance maximalista, mas sim um coletivo de personagens e uma pluralidade de
histórias.145 (ERCOLINO, 2012, p. 246).

No teatro é possível perceber dois ou mais atuantes que realizam ações diferentes,
inclusive em pontos distintos do espaço. Na literatura, devido à dinâmica da leitura, é difícil
fugir do mecanismo da sucessão das vozes que carregam a narração em proveito da
simultaneidade facilmente alcançada na linguagem teatral. O todo da obra, no entanto,
promove a aparição múltipla das vozes, o que pode nos revelar tanto sua simultaneidade no

144
The maximalist novel has a strong symbolic and morphological identity. In particular, there are ten elements
that define and structure it as a genre of the contemporary novel: length, encyclopedic mode, dissonant
chorality, diegetic exuberance, completeness, narratorial omniscience, paranoid imagination, inter-semiocity,
ethical commitment, and hybrid realism. These ten characteristics are common to all seven of the novels
analyzed in this study. They are not, of course, all present in the same form or intensity in every single text,
but they are all decisive in a text’s identification as a maximalist novel, insofar as they are systematically co-
present. Taken by themselves, they can easily be found in both modernist and postmodern novels that are not
maximalist. Thus, it is their co-presence and reciprocal articulation that make them fundamental in
demarcating the maximalist novel as a genre.
145
Original: “a peculiar interweaving of chorality and polyphony (hence the attribute “dissonant”). I employ the
term chorality to indicate that narration in the maximalist novel is systematically carried out by a multiplicity
of voices that prevents one character or one narrative thread from becoming dominant. [...]
At the formal level, this chorality is structured by means of an important maximalist rhetorical strategy: the
fragment. In all seven of the novels that make up our textual corpus the narration is not continuous, but rather
proceeds through diegetic units, more or less independent and complete in meaning — in short, fragments.
[...] It is thus a neutral diegetic organization, hierarchically horizontal, that clearly demonstrates that it is not
the single individual, or the single story, that matters in the maximalist novel, but rather a collective of
characters and a plurality of stories.”
94

plano diegético quanto, mesmo que a simultaneidade não exista, seu status igualitário146 na
composição, o que Ercolino chama de organização hierarquicamente horizontal. Estamos
diante de um mecanismo de coralidade diferente dos que vimos até agora: por meio do
aparecimento em separado das vozes na obra, seu todo nos apresenta uma imagem coletiva
devido à igualdade de que gozam na tessitura da narrativa. Não é necessário que as
personagens sejam retratadas ocupando o mesmo espaço.
Sobre a polifonia, o autor se expressa da seguinte forma:

O fragmento revela-se ligado à polifonia do romance maximalista na medida em que


se presta bem à representação da desordem e à enorme multiplicidade da existência e
do conhecimento contemporâneo. E é precisamente a polifonia que faz a coralidade
do romance maximalista “dissonante”. As línguas, os registros, os estilos, os
gêneros, o conhecimento e as vozes de numerosas personagens estão lá acumuladas
paroxisticamente, criando uma extraordinária abertura e riqueza dialógica. 147
(ERCOLINO, 2012, p. 246-247)

Assim como parece ser a tendência geral na linguagem musical, Ercolino associa
polifonia e diferença.148 Essa separação entre coralidade e diferença (polifonia) nos permite
considerar a coralidade como o aparecer múltiplo de figuras que podem ser de uma mesma
categoria, embora únicas ou, para dizer de outra forma, diferentes entre si; enquanto a
polifonia carregaria a marca da diferença, revelada no confronto ou na coexistência de figuras
(ou vozes) de categorias distintas ou, embora da mesma categoria, cujas diferenças são
bastante marcadas. Aqui reside, talvez, o ponto de distinção entre polifonia e coralidade, que
torna útil o uso dos dois termos no discurso crítico. Podemos, a partir daqui, falar de
coralidades radicadas na semelhança ou na diferença — essas últimas polifônicas ou
dissonantes, para falar com Ercolino.

O marco apontado como início da difusão da coralità como chave de leitura no cinema
é uma crítica de Carlo Trabucco ao filme Roma, città aperta (Roma, cidade aberta) de
Roberto Rosselini, publicada no jornal Il Popolo em 25 de setembro de 1945. Trabucco

146
A noção de igualdade será trabalhada no próximo capítulo a partir da política em Rancière, bem como na
exploração da polifonia em Bakhtin.
147
Original: “The fragment turns out to be tied to the polyphony of the maximalist novel, insofar as it lends itself
well to the representation of disorder and to the enormous multiplicity of existence and contemporary
knowledge. And it is precisely the polyphony that makes the chorality of the maximalist novel “dissonant.”
The languages, the registers, the styles, the genres, the knowledge and voices of the various characters are
there accumulated paroxistically, creating an extraordinary openness and dialogic richness.”
148
A ideia de polifonia será explorada no próximo capítulo.
95

afirma que a primeira parte do filme, não dominada por um único protagonista, é
“verdadeiramente coral” (TRABUCCO, 1945 apud ALSOP, 2014, p. 27).
Ao que parece149, o crítico não utiliza textualmente o termo coralità, mas aponta uma
qualidade coral, ou seja, coralidade. Dado que o termo já existia na língua italiana, encontrou
ampla difusão na crítica do cinema neorrealista150, sendo utilizado para qualificar um amplo
conjunto de filmes, como Sciuscià, Mamma Roma, Paisà, entre outros. É interessante
perceber que, embora o uso registrado nos dicionários pareça apontar para uma ligação da
coralità com a ideia de grupo massivo, alguns dos filmes do neorrealismo italiano,
especialmente aqueles em que pensadores do cinema detectam a presença de coralidade, não
têm um único protagonista, mas contam com uma divisão da ação entre vários agentes que
gozam de momentos de singularização, como acontece exemplarmente em Paisà (1946) e de
outra maneira em La nave bianca (1941) do mesmo Roberto Rosselini. Outros filmes, como o
próprio Roma città aperta apresentam um protagonista não apenas envolto por um
emaranhado de relações sociais, mas por uma multidão de outras personagens, que recebem
do filme seus momentos de foco. Pelo que percebo, a solidão lírica ou a focalização contínua
em uma personagem ou em um pequeno grupo de personagens não se coadunam com a
coralità na acepção que recebe no neorrealismo, já que ela estaria radicada na presença — ou
na impressão — de um grupo na cena, que a marca com o caráter de multiplicidade.
Se o termo se tornou um lugar comum na crítica de Roma, città aperta, e da trilogia da
guerra como um todo (ALSOP, 2014), esse fato é atribuído ao uso do próprio Rosselini, que,
em uma entrevista em 1952, declara:

Não tenho fórmula ou ideias preconcebidas. Mas se observo meus filmes em


retrospecto, sem dúvidas encontro elementos que permanecem constantes neles
e que são repetidos não programaticamente, mas naturalmente. Sobretudo a
coralidade. O filme realista é, por si, coral (os marinheiros de La nave bianca
possuem tanto valor quanto as pessoas refugiadas na cabana no final de L’Uomo
dalla Croce, assim como a população em Roma, città aperta, os guerrilheiros em

149
Não tive acesso ao texto completo da crítica de Trabucco.
150
Segundo Italo Calvino, a denominação neorrealismo pode ser um tanto equívoca, ao menos para a literatura
do período, já que esse conjunto de escritores, que não constituía uma escola ou sustentava um programa,
tinha como ambição comum o reflexo da realidade, mas sem o desejo de cópia que caracterizava o
naturalismo. “Por isso a linguagem, o estilo, o ritmo eram tão importantes para nós, por causa desse nosso
realismo, que tinha de ser o mais distante possível do naturalismo.” (CALVINO, 2004, p. 8). “O encontro
com o expressionismo, ao qual a cultura literária e figurativa italiana tinha faltado no Primeiro Pós-Guerra,
teve seu grande momento no Segundo. Talvez o verdadeiro nome daquela temporada italiana, mais que ‘neo-
realismo’, devesse ser ‘neo-expressionismo’” (CALVINO, 2004, p. 10).
96

Paisà e os frades de Giullare di Dio). (ROSSELINI, 2006, p. 88 apud ALSOP,


2014, p. 28, negritos meus)151

Partindo de uma investigação sobre o sentido do termo na trilogia militar152 de


Rosselini, composta por La Nave Bianca (1941), Un Pilota Ritorna (1942) e L’Uomo dalla
Croce (1943), Vasconcelos (2012) questiona se a coralidade pode ser detectada no filme de
múltiplos enredos, como Shortcuts (1993), de Robert Altman, ou Magnólia (1999), de Paul
Thomas Anderson.153 Segundo o pesquisador, não se poderia apontar os últimos como
exemplos de coralidade devido à diferença sensível entre suas estratégias narrativas e as
estratégias dos primeiros. Os dois pontos de diferença oferecidos por Vasconcelos são: 1) a
dimensão em que se constrói a esfera do comum nas produções, sendo que no caso do filme
de múltiplos enredos esta seria elaborada mais de forma extradiegética. “O que aproxima
minimamente as diferenciadas tramas de ambos os filmes [...] acaba sendo da ordem
intangível, relacionado com aspectos mais amplos da sociedade contemporânea.”
(VASCONCELOS, 2012, p. 14). A elaboração do comum no interior da narrativa seria
característica das obras da trilogia militar; 2) os protagonistas na trilogia encontram-se bem
definidos, ao contrário dos filmes de múltiplo enredo, em que se pode falar em mais de 15
(Nashville, de Altman) ou mesmo 24 (Short Cuts). A partir dessa observação, o autor aponta
que seria possível “afirmar que a coralidade se concretizaria de modo mais efetivo”
(VASCONCELOS, 2012, p. 14) nesses filmes, em virtude da diluição do protagonismo.
Vasconcelos, no entanto, apresenta uma objeção a essa constatação: nos filmes de múltiplo
enredo a passagem de um protagonista para o outro provocaria uma sutura geralmente ausente
na trilogia militar, na qual

151
Original: “Non ho formule e preconcetti, ma se guardo a ritroso i miei film indubbiamente vi riscontro degli
elementi che sono in essi costanti e che vi sono ripetuti non programmaticamente, ma naturalmente.
Anzitutto la “coralità.” Il film realistico e in se corale (i marinai di Nave Bianca contano quanto la
popolazione di Roma, citta aperta, quanto i partigiani di Paisa e i frati di Giullare di Dio).” O mesmo trecho é
citado por Alsop e por Vasconcelos indicando fontes diferentes. Vasconcelos cita o texto diretamente em
português e Alsop oferece uma tradução em inglês retirada de BONDANELLA, Peter. The Films of Roberto
Rossellini. New York: Cambridge University Press, 1993. p. 37. Ambas as traduções trazem a referência a
L’Uomo dalla croce que não está no texto italiano citado por Alsop.
152
O autor usa o termo trilogia militar, em detrimento de “trilogia da guerra fascista” ou trilogia fascista”,
utilizados por outros autores, porque considera que não há identificação total entre a ideologia fascista e
aquela subjacente à produção cinematográfica do período, mesmo quando se presta à propaganda, como os
filmes em questão.
153
O pesquisador credita a “interessante sugestão” a uma conversa informal tida com Renato Pucci no ano de
2011. Nove anos depois, antes de tomar contato com seu texto, é a Emanuel Lavor que credito a mesma
sugestão de aproximação entre filmes de múltiplo enredo e coralidade.
97

a presença de um único protagonista não impede que esse seja observado em meio
aos outros, portando o mesmo status de um figurante que sequer voltará a ser
observado para além da cena em questão. Ou que ele simplesmente desapareça por
praticamente uma ou duas cenas inteiras (caso de Un Pilota Ritorna) sem que
qualquer outro assuma de fato o protagonismo ou que ele somente seja observado
após dez minutos de filme iniciado (caso de L’Uomo dalla Croce).
(VASCONCELOS, 2012, p. 14)

Das afirmações de Vasconcelos, percebo que, para o autor, é necessário que haja um
grupo de personagens dividindo a cena e que o foco transite entre elas para que se possa falar
em coralidade. Essa discussão nos convida ao questionamento: podemos definir um
mecanismo ou um conjunto de mecanismos específicos para apontar a existência da
coralidade em determinada linguagem artística? A criação de um efeito coral não seria a única
condição para que se fale dessa qualidade? Não sendo um estudioso de cinema, mas
baseando-me nos autores e filmes citados, arrisco-me a afirmar que sim. Já verificamos o uso
de Ercolino na literatura, para quem a sucessão de vozes gera o efeito coral. Se considerarmos
que os filmes de múltiplo enredo, por meio da sucessão de focos, geram um efeito coral, efeito
de comum — que é admitido por Vasconcelos, embora não dentro dos critérios que o autor
considera necessários para aproximá-lo à coralità dos filmes de Rosselini — podemos falar de
uma coralidade, distinta daquela presente na trilogia militar, mas em alguma medida
aproximada à estrutura de Paisà, devido à divisão em quadros.
Já Alsop, embora se refira a pesquisadores que consideram Paisà um filme com
“estrutura coral” (MUSCIO, 2004 apud ALSOP, 2014, p. 28), não se atém à grande estrutura
narrativa dos filmes que pode resultar no efeito coral, mas à maneira que um grupo reunido
em um espaço e tempo definidos é percebido por meio do som. A pesquisadora diz: “Uso o
termo ‘coral’ para designar um espectro de atividade vocal colaborativa, da fala (ou canto) em
uníssono, até aquelas instâncias na qual o discurso é atribuído a um grupo, presente em um
único tempo e espaço.”154 (ALSOP, 2014, p. 29). Alsop então vai questionar a efetiva
presença de comunidades nos filmes que a crítica se habituou a considerar como marcados
pela coralità, afirmando que essa utilização coral do som é uma estratégia composicional para
criar a impressão de comunidades, mais do que revelá-las nas obras.

154
Original: I use the term “choral” to designate a spectrum of collaborative vocal activity, from speaking (or
singing) in unison, to those instances in which speech is allocated to a group, present within a single time and
space.
98

Como último exemplo de outra face da coralidade, fora do campo estritamente teatral,
no Brasil, Marcos Bulhões utiliza o termo “coralidades” geralmente acompanhado do adjetivo
‘performativas’. Acompanhemos uma definição apresentada por ele no início de um texto:

Enfocaremos aqui duas cenas de teatro performativo e uma intervenção urbana que
rompem com o modelo cis-heteronormativo e monogâmico, afirmando nossa
pluralidade para além das questões da subjetividade individual, através de
coralidades, ou seja, quando os artistas geram práticas performativas, rituais e
imagens cênicas que dizem respeito a coletividades. É a modalidade cênica que
denominamos de coralidades performativas monodissidentes e transgressoras de
gênero, sexualidade e afetividade. (BULHÕES, 2018, p. 349).

O uso de Bulhões (e de seu grupo de trabalho) é desviante em relação aos outros usos
da palavra. Aparentemente desconsiderando a coralidade como aquele conjunto de
“questionamentos, mais do que procedimentos” que nos aponta Triau, ou simplesmente como
uma qualidade, Bulhões percebe-a como uma “modalidade cênica”. Nas palavras dos artistas
que entrevista para seu texto, e que trabalharam com ele no processo de montagem da obra
que está em questão neste trecho, aparece a seguinte fala de Priscila Toscano: “A coralidade
final de corpos nus pulsantes e desejantes era de certa forma uma resposta/cura aos
conflitos/doenças aniquiladores da vontade de vida.” (BULHÕES, 2018, p. 356). Aqui,
podemos perceber que “coralidade” passa por “coro” ou “grupo”.
O uso feito pelo grupo paulista é interessante e arriscado, já que tem potencial para
instaurar uma confusão a respeito da noção de coralidade. Quando falamos “coralidade”
estamos falando de uma característica da criação cênica, de um princípio que pode tomar um
sem-número de formas ou de um conjunto mais ou menos coeso de formas que podem ser
empregadas numa criação específica? Não me restam dúvidas, após a escrita desse capítulo,
de que 1) a coralidade se manifesta em múltiplas formas e 2) isso acontece porque, em todo o
universo de pensamentos que a mobiliza, a coralidade indica um processo, aquilo que
acontece em um dado jogo formal, um jogo de tensões que subjaz à forma. Ao ‘concretizar’ a
coralidade, assimilando-a a uma forma ou a um conjunto de formas, Bulhões a retira de seu
caráter processual, — ‘o que acontece na forma’ — para indicar a forma em si.
Outro elemento que pode ser considerado como uma aresta na formulação de Bulhões
é o adjetivo ‘performativas’. Considerar que a coralidade é uma característica herdada do
coro, e que este está necessariamente ligado a um aparecer, bastaria para afirmar que toda
coralidade é performativa, pois se constitui no processo do aparecer de uma pluralidade que,
mesmo que se faça na linguagem, não pode ser simplesmente mencionada para se constituir
99

como coralidade. O exemplo do monólogo enquanto um subgênero nos ajuda neste raciocínio:
é mais coral o monólogo em que diversas personagens aparecem corporificadas pelo ator ou
atriz do que aquele em que diversas personagens são mencionadas (se é que o último pode ser
considerado coral). Aquilo que efetivamente é realizado, pela linguagem ou pelo corpo — o
efetivo aparecer do coletivo — constitui a coralidade e, portanto, ela está intimamente ligada
à esfera da performatividade. No entanto, entendo que o pesquisador utiliza o adjetivo para
localizar em obras da arte da performance ou do chamado teatro performativo (FÉRAL, 2015)
as coralidades que aponta. Nesse sentido, as coralidades poderiam ser performativas, teatrais,
cinematográficas, literárias, circenses, etc. O sentido do adjetivo “performativas” também
carece de maior definição nesse contexto.

3.7 Podemos ensaiar uma definição?

Gostaria aqui de sair do impasse que os dois principais usos do termo coralidade
criam, quando relacionados ao universo teatral: um uso mais geral, significando uma
qualidade encontrada em qualquer composição que tenha forma ou características de coro, e
outro mais específico, significando uma lógica que alterna entre as dimensões coletiva e
individual.
Se dizemos que tudo o que tem forma de coro tem participação da coralidade,
entramos em contradição com Sarrazac e seu grupo, para quem coralidade necessariamente
coloca também a dimensão individual em evidência. Se ficamos com Sarrazac, excluímos as
poéticas que de alguma maneira não levam o plano individual em consideração, ou pelo
menos não o sublinham no acontecimento performativo, e teremos que modificar a definição
apresentada no primeiro capítulo de qualidade daquilo que se organiza à maneira de coro.
Observando o universo de pensamentos sobre a coralidade que foi exposto neste
capítulo, considero que a definição apresentada acima, apesar de extremamente geral, mantém
sua validade. Isso porque os discursos sobre coralidade são múltiplos, variados, tecem um
panorama — por que não — coral. A distinção utilizada por Fábio Cordeiro entre coralidade
clássica, moderna e contemporânea poderia ser uma saída, mas se a palavra ‘clássica’ nos
remete imediatamente aos rastros que temos da prática grega, que nos dão a entender que esta
era de alguma maneira bastante formalizada e, por assim dizer, ‘estável’, como uniformizar
uma coralidade ‘moderna’ e, mais ainda, uma ‘contemporânea’? Qual seria o marcador que
diferenciaria esta coralidade contemporânea de uma coralidade ‘performativa’? Ainda mais
100

quando lembro que o coro só existe na performance? O que, em teatro, é o contemporâneo?


Essa questão mobiliza debates que fugiriam de meus objetivos aqui. Apenas para propor um
exemplo da dificuldade, pensemos na estética do flashmob: pode ser extremamente
concordante, até mesmo ter ares totalitários, e, no entanto, trata-se de um fenômeno
contemporâneo.
Outra alternativa é retomar aquilo que apontei no primeiro capítulo como condição de
existência, e, portanto, característica necessária do coro: a performatividade da aparição
múltipla. Podemos, a partir dessa ideia, dizer que a coralidade é a aparição, na constituição
de uma obra, de uma multiplicidade que se constitui em algum grau como coletividade.
Definir a coralidade como aparição múltipla nos livra da necessidade de qualificar de antemão
a relação entre individual e coletivo que se estabelecerá no interior dessa aparição. Mais
individualizada ou mais coletivizada, a aparição da (ou o efeito de) multiplicidade torna-se o
elemento essencial para detectar a coralidade.
Depois de fazer um pequeno inventário de expressões da coralidade e oferecer a
possibilidade de uma definição, resta talvez lembrar um texto que, falando sobre a literatura
dramática — voltamos ao início! — diz:

Surge, porém, a questão que consiste em saber se, na hora em que os


paradigmas formais são facilmente abolidos, mais do que evocar “a”
coralidade, não seria preferível singularizar uma coralidade de Novarina,
distinta da de Vinaver, e sem muita relação com a de Gabily, a tal ponto a paisagem
do drama contemporâneo está semeada de formas corais irredutíveis.
(MÉGEVAND, 2013, p. 39, negrito meu)

Se, como já vimos, são distintas e potencialmente infindáveis as formas de expressão


da coralidade, e esse termo não nos revela mais do que um campo ou um panorama em que
uma obra específica se insere, sabemos que ele não é suficiente para definir uma obra, ou que
a definição que oferece abre um leque muito amplo de possibilidades. Afinal, a aparição da
multiplicidade é algo um tanto vago. A partir daí, podem ser feitas pelo menos duas escolhas.
Podemos aproveitar a vagueza natural do termo e as inumeráveis potências que evoca como
um catalisador criativo. O uso de ‘coralidade’, sem definições adicionais, pode configurar
uma proposta de leitura aberta, de chamada à imaginação para que se projetem possibilidades
sobre a palavra. Ou poderemos escolher ficar com as ‘coralidades’, e qualificar a qualidade
precisando os aspectos formais da obra específica em que a detectamos, as instâncias mais
afetadas por aquela coralidade, num jogo de detalhes e descrições que pode ser tão produtivo
quanto cansativo e maçante. Que a escolha seja dada a cada artista ou teórico que resolver
101

lançar mão desse termo em seu discurso. Quanto a mim, que procuro fomentar essa discussão,
a pergunta
O que você quer dizer quando diz ‘coralidade’?
estará sempre pronta. Exceto no calor da sala de ensaio, onde a palavra se torna
linguagem de trabalho e está destinada à ineficácia se não reflete uma busca vivenciada.155

155
Ou se não for uma palavra praticada, para falar com Motta-Lima. Cf. MOTTA-LIMA, Tatiana. Palavras
Praticadas: o percurso artístico de Jerzy Grotowski, 1959 –1974. São Paulo: Perspectiva, 2012.
102

4 IMAGENS PARA A CORALIDADE

Após examinar uma parte da literatura sobre coralidade e algumas práticas e criações
catalogadas em seu universo, proponho três conceitos, ou melhor, três imagens conceituais
para nos auxiliar na investigação desse princípio: a polifonia, que provém do campo artístico e
está diretamente ligada à arte da composição (principalmente musical, com uma importante
releitura no campo da literatura operada por Mikhail Bakhtin); a política na obra filosófica de
Jacques Rancière; e a unicidade, especialmente a partir da obra de Adriana Cavarero sobre a
voz, que resgata reflexões feitas por outros pensadores. Essas imagens conceituais, conceitos-
imagens, podem subsidiar a reflexão e nos ajudar a investigar algumas das múltiplas potências
da coralidade enquanto um princípio de criação teatral.

4.1 Polifonia

Polifonia é um termo herdado do grego que significa “várias vozes” ou “vozes


múltiplas”. O termo refere-se sobretudo à música, área que o emprega há séculos, na qual teve
diversos desenvolvimentos. O termo é utilizado principalmente para designar a música em
que “duas ou mais linhas melódicas (i.e. vozes ou partes) soam simultaneamente”
(DICIONÁRIO GROVE, 1994, p. 733), distinguindo-se tanto da monodia (uma única voz)
quanto da homofonia (vozes compatíveis que cantam no mesmo desenho rítmico). Para alguns
estudiosos, a homofonia pode ser englobada pela polifonia, já que pressupõe mais de uma
voz, mesmo que as vozes sejam completamente concordantes, enquanto para outros, a
polifonia necessariamente ultrapassa os limites da homofonia, pressupondo certa
independência/diferença das vozes.
A esse respeito, o The New Grove Dictionary of Music and Musicians define o termo
como utilizado para designar “música em mais de uma parte, música em muitas partes e o
estilo no qual todas ou muitas partes movem-se em alguma medida independentemente”156
(THE NEW GROVE, 2001, p. 74). O mesmo dicionário prossegue afirmando que

Polyphōnos “com muitas vozes” e polyphonia ocorrem em grego antigo sem


nenhuma conotação de técnica musical. Depois da Antiguidade clássica, formas do
adjetivo entraram em uso em línguas modernas, designando fenômenos não-
musicais como o canto dos pássaros, vozes humanas e múltiplos ecos, e fenômenos

156
Original: “music in more than one part, music in many parts, and the style in which all or several of the
musical parts move to some extent independently.”
103

musicais como alcance instrumental e variedade tonal, como também os vários tons
que podem ser tocados em um equipamento musical automático. (THE NEW
GROVE, 2001, p.74)157

Apropriando-se do termo com sua carga musical, Mikhail Bakhtin, em seu Problemas
da Poética de Dostoiévski, aponta na obra de Dostoiévski o surgimento de um novo gênero
romanesco: o romance polifônico. Para Bakhtin, os romances de Dostoievski são polifônicos
porque as personagens não se objetificam em um universo monológico do autor. O
monologismo consistiria na objetificação das personagens na perspectiva do autor, que não as
reconhece como outras consciências independentes com capacidade de resposta. Não
subordinadas à voz do autor, as personagens encontram-se em pé de igualdade com essa voz e
umas em relação às outras:

A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica


polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental
dos romances de Dostoiévski. Não é a multiplicidade de caracteres e destinos que,
em um mundo objetivo uno, à luz da consciência una do autor, se desenvolve nos
seus romances; é precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus
mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento mantendo sua
imiscibilidade. (BAKHTIN, 2015, p. 4-5. grifos do autor).

As vozes e consciências nos romances dostoievskianos, portanto, não se subordinam


umas às outras nem à consciência do autor (independentes), não se misturam (imiscíveis) e
permanecem plenas de valor, em relação de absoluta igualdade (plenivalentes), não se
objetificam, permanecem autônomas em suas identidades de seres independentes
(equipolentes). Para Bakhtin, no romance de Dostoievski cada personagem importa como
“ponto de vista específico sobre o mundo e sobre si mesma” (BAKHTIN, 2015, p. 52). O
mundo é retratado a partir da visão da personagem, por meio de sua autoconsciência. Cada
consciência individual apreende o mundo e o retrata de uma maneira diferente, some-se a isso
o fato de as personagens de Dostoievski frequentemente estarem em estratos sociais
diferentes. O romance polifônico estabelece, portanto, relações entre seres entre os quais há
igualdade de valor e cujos mundos são diferentes.
Diferente do monologismo, que subordina tudo a uma única consciência, cala todas as
vozes para que uma única voz fale por elas, é o dialogismo, a abertura ao outro, à outra

157
Original: “Polyphōnos (‘many-voiced’) and polyphonia occur in ancient Greek without any connotations of
musical technique. After classical antiquity, forms of the adjective came into use in modern languages,
designating both nonmusical phenomena such as birdcalls, human speech and multiple echoes, and musical
phenomena such as instrumental range and tonal variety, as well as the various tunes playable on an
automatic musical device.”
104

consciência, ao outro ser, no processo do diálogo, da construção da ideia a partir da troca


entre seres considerados iguais, que se abrem uns aos outros e projetam-se uns nos outros. Eu
me vejo, me conheço, na imagem que o outro faz de mim. A polifonia é a culminância do
dialogismo, já que multiplica suas potências ao colocar nesse processo um sem-número de
vozes e consciências em pé de igualdade, construindo-se através de suas relações.

As personagens de Dostoievski são consideradas, portanto, como seres autônomos,


universos completos, seres humanos com todas as suas particularidades, em sua unicidade.
Para Dostoievski “não há ideias, pensamentos e teses que não sejam de ninguém, que existam
‘em si’”. (BAKHTIN, 2015, p. 35). O meio de confronto dessas ideias, pensamentos e teses, e
da projeção recíproca das personagens é o diálogo. “Para ele, onde começa a consciência,
começa o diálogo” (BAKHTIN, 2015, p. 47). O contato das consciências plenivalentes é
sempre, portanto, uma situação de palavra. A revelação de cada um, e o conflito que pode
advir dessa revelação, ocorrem por meio da palavra, do diálogo.158

Para Bakhtin, a imagem matricial de Dostoiévski é a da “Igreja como reunião de almas


imiscíveis” (BAKHTIN, 2015, p. 30). O teórico russo passa rápido por essa imagem porque
lhe interessa apenas a matéria dos romances, fora da qual não se pode analisá-los. Gostaria de
examinar brevemente a imagem religiosa por meio de um detalhe da arte sacra das igrejas
ortodoxas em oposição às igrejas católicas romanas que pode tornar visível a diferença de
apreensão do mundo pelas duas tradições religiosas. As Igrejas Ortodoxas parecem guardar
entre si mais semelhanças do que com sua irmã ocidental. Um traço característico da
arquitetura sacra ortodoxa é o iconostácio: uma parede de ícones que separa uma parte
reservada da igreja onde se localiza o altar e ocorre a maior parte das atividades do sacerdote
no ofício religioso.
Como se pode ver na imagem a seguir, no iconostácio veem-se de uma vez dezenas de
ícones representando diversas figuras da fé ortodoxa. Cada um desses ícones tem sua
moldura, seu espaço garantido nessa grande parede que se ergue ante os fiéis, representando
aqueles que os antecederam em sua fé. A impressão criada é a de uma pequena multidão,
além disso, sabe-se que todas essas pessoas foram parar ali por uma semelhança crucial, a

158
Esse é um ponto importante para este trabalho, e que será retomado mais adiante, tanto na descrição do
conceito de política em Rancière quanto na do conceito de unicidade. As discussões em torno da ideia de
coralidade do capítulo anterior também estão marcadas em algum nível pela função exercida pela palavra em
cada uma das obras, ou em cada concepção de coralidade.
105

dedicação da vida à fé, mas cada uma das figuras está bem resguardada em sua
individualidade devido ao espaço entre um ícone e outro, que gera uma espécie de moldura.

Figura 1 – Iconostácio da Catedral Metropolitana Ortodoxa de São Paulo.

Fonte: Acervo do autor.

Figura 2 – Fotografia panorâmica da Igreja Sagrada Família, na cidade de Santo Ângelo/RS.

Note-se os quadros dispostos ao longo de toda a igreja, sete de cada lado. Fonte: Jornal O Mensageiro.
Disponível em: <http://jom.com.br/cidade/o-novo-visual-da-sagrada-familia.html>. Acesso em 29/02/2020.

O traço característico das igrejas católicas romanas que quero comparar ao iconostácio
é a via sacra, ou via crúcis: os quatorze quadros que representam a crucificação de Jesus. As
estações retratadas nos quadros são praticamente invariáveis, assim como sua disposição
geralmente é a mesma, em qualquer igreja que se entre. A respeito dessas estações, Jean-
Pierre Sarrazac afirma, criticando Lukács e sua posição contrária à dramaturgia em quadros,
106

que “se este teólogo marxista tivesse pensado no percurso das cruzes das igrejas, teria tido a
sua primeira lição de montagem e teria sido sensível à relação dinâmica que existe entre os
catorze quadros pendurados” (SARRAZAC, 2002, p. 80).
Considero que aí se encontra uma chave da diferença entre a representação sacra
ortodoxa e católica, e, portanto, entre o modo de representação do mundo de Dostoiévski e
um modo de representação mais ‘ocidental’.159 Na via crúcis tem-se uma dramaturgia do um
em quadros. Essa estrutura narra as fases de um acontecimento sofrido pela pessoa de Jesus.
Sua distribuição no espaço reflete seu desenrolar no tempo. A ênfase é no indivíduo que
cumpre um trajeto. Um deus-herói que passa por sua travessia de sofrimento e morte anterior
à ressurreição. Corroborando a ideia da ortodoxia como uma religião mais centrada no aqui e
agora (no que está posto no espaço) em oposição a um catolicismo romano um tanto mais
mental (e apegado ao desenvolvimento no tempo), há o fato de que na Igreja Ortodoxa não
existe a oração do terço como na Igreja Católica. Segundo o padre Constantino Bussyguin160,
pároco da Catedral Ortodoxa Russa de São Nicolau, da cidade de São Paulo, o objeto, o
cordão com contas, é encontrado entre os ortodoxos para manter a contagem de repetições de
determinada oração, mas não com a prática católica de meditar sobre os mistérios.161 Na
Igreja Ortodoxa a imaginação, a concentração no que poderia ter sido, é desencorajada.
Aqueles que oram são aconselhados a permanecer no presente, no aqui e agora de sua oração.
Voltando ao iconostácio, ali existe a simultaneidade no espaço. Mesmo que essa seja
apreendida pelo sentido da visão, propenso a individualizar e separar as imagens 162, ao
entrarmos no templo, o olho apreende de uma vez só todas as individualidades ali retratadas e
vemos a imagem da comunhão, da junção das almas imiscíveis e não uma única
individualidade cuja história se desenrola. Na via crúcis há um personagem principal. O
iconostácio tem a figura de Cristo em seu centro, mas ela é exatamente isto: um centro, uma
figura ao redor da qual se constrói a comunidade. O impacto é causado pelo todo, pela junção
das figuras.

159
Não quero com isso afirmar que a Igreja Ortodoxa molda o pensamento de seus fiéis a tal ponto que a
representação do mundo nos escritores pertencentes a essa crença é necessariamente polifônica. Se fosse esse
o caso, esse gênero seria muito anterior a Dostoiévski. Estou comparando duas formas de arquitetura/arte
sacra cuja influência na representação do mundo nas culturas em que estão inseridas não deve ser totalmente
ignorada, e especialmente porque Dostoiévski era extremamente ligado à fé ortodoxa.
160
Conversei com o Pe. Constantino, na Catedral de São Nicolau, no dia 2 de fevereiro de 2020.
161
Acontecimentos capitais para a fé católica, encontrados em passagens bíblicas ou narrados pela tradição,
sobre os quais os fiéis meditam durante as repetições da Ave Maria. Cada terço é rezado meditando-se em
um grupo de 5 mistérios. Esses grupos dividem-se em mistérios gloriosos, gozosos, dolorosos e luminosos
(os últimos instituídos pelo Papa João Paulo II). A tradição católica preconiza dias da semana para a
meditação de cada grupo de mistérios.
162
Cf. CAVARERO, 2011.
107

Importante lembrar que Bakhtin não se apropriou do termo polifonia sem cuidados ou
ressalvas. A polifonia apontada por ele no romance dostoievskiano é considerada por seu
autor como uma imagem, uma analogia entre os universos da música e do romance. Em suas
palavras:

Cabe observar que também a comparação que fizemos do romance de Dostoiévski


com a polifonia vale como analogia figurada. A imagem da polifonia e do
contraponto indica apenas os novos problemas que se apresentam quando a
construção do romance ultrapassa os limites da unidade monológica habitual, assim
como na música os novos problemas surgiram ao serem ultrapassados os limites de
uma voz. Mas as matérias da música e do romance são diferentes demais para que se
possa falar de algo superior à analogia figurada, à simples metáfora. Mas é essa
metáfora que transformamos no termo romance polifônico, pois não encontramos
designação mais adequada. O que não se deve é esquecer a origem metafórica do
nosso termo. (BAKHTIN, 2015, p. 23-24)

Neste trabalho a polifonia também comparece como uma imagem. Interessam, dos
desenvolvimentos de Bakhtin, a multiplicidade das consciências, sua igualdade,
imiscibilidade, plenivalência, o confronto dos universos e a abertura de uns aos outros por
meio do dialogismo. Da música, interessa, além da pluralidade de vozes, a noção de “estilo no
qual todas ou muitas partes movem-se em alguma medida independentemente”. Essas
características poderão ser identificadas juntas ou separadas em uma estrutura coral. Insisto no
caráter de imagem, de empréstimo, porque aplicar o conceito bakhtiniano ao teatro sem
ressalvas é uma empreitada bastante arriscada, para não dizer inconsequente. O teatro
comparece no texto do teórico russo sob forma literária, o drama163. Respondendo ao crítico
Lunatcharski, que considera Shakespeare como um autor polifônico, Bakhtin distancia de
forma bastante incisiva drama e polifonia:

Em primeiro lugar, o drama é por natureza estranho à autêntica polifonia; o drama


pode ter uma multiplicidade de planos, mas não pode ter uma multiplicidade de
mundos; admite apenas um, e não vários sistemas de referência.

Em segundo lugar, se é possível falar de multiplicidade de vozes plenivalentes,


pode-se fazê-lo apenas em relação a toda obra de Shakespeare, e não a dramas
isolados; em essência, há em cada drama apenas uma voz plenivalente do heroi, ao
passo que a polifonia pressupõe uma multiplicidade de vozes plenivalentes nos
limites de uma obra, pois somente sob essa condição são possíveis os princípios
polifônicos de construção do todo.

163
Há que se fazer uma diferenciação entre o termo drama na linguagem de Bakhtin e na linguagem de Peter
Szondi, citado no capítulo anterior. Aqui o termo parece comparecer como sinônimo de ‘dramaturgia’, ou
seja, tudo o que é escrito para a cena, como no uso feito por Staiger.
108

Em terceiro lugar, as vozes em Shakespeare não são pontos de vista acerca do


mundo no grau em que o são em Dostoiévski; os protagonistas de Shakespeare não
são ideólogos no sentido completo do termo. (BAKHTIN, 2015, p. 38-39. Grifo do
autor)

A forma dos textos de Shakespeare e as encenações às quais Bakhtin assistiu estão,


provavelmente, bastante distantes tanto do material textual quanto dos recursos de encenação
de muitas das manifestações cênicas nas quais podemos identificar a coralidade hoje. Para
Bakhtin a situação de palavra, de diálogo, importa para revelar as consciências e a
representação do mundo deve se dar a partir de cada uma delas. O choque das consciências
por meio do diálogo subverte o mundo, cria uma imagem polifônica dele, o que não acontece
no diálogo dramático, cujas réplicas

não subvertem o mundo a ser representado, não o tornam multiplanar; ao contrário,


para serem autenticamente dramáticas elas necessitam da mais monolítica unidade
desse mundo. No drama ele deve ser constituído de um fragmento. Qualquer
enfraquecimento desse caráter monológico leva ao enfraquecimento do dramatismo.
As personagens mantêm afinidade dialógica na perspectiva do autor, diretor,
espectador, no fundo preciso de um universo monocomposto. (BAKHTIN, 2015, p
17-18).

Bakhtin fala de um gênero literário específico, o drama, que nos contextos de criação
marcados pelo textocentrismo (ROUBINE, 1998) foi (e em alguns casos ainda é) tratado
como senhor da cena, que deveria ser criada no intuito de revelar as potencialidades do texto,
plasmar suas ideias em forma cênica. Ao longo do século XX a arte da encenação se libertou
cada vez mais da literatura dramática e mesmo as formas de escrita dramatúrgica foram se
transformando e distanciando-se dos cânones dramáticos que vigoraram até o final do século
XIX.164 O objetivo deste trabalho, no entanto, é olhar para a encenação, a arte do fenômeno
teatral em sua materialidade, e não para a literatura. Dessa forma, não podemos esperar que
uma figura cênica ou personagem de teatro seja um ‘ideólogo no sentido completo do termo’
para que então possamos considerar essa cena como polifônica, a não ser que queiramos
retornar à forma da peça de tese e, mais uma vez, considerar o serviço à literatura dramática
como destinação da cena. A arte teatral tem meios próprios para construir suas obras e estes
meios — e não apenas o discurso proferido em cena — devem ser analisados em uma obra
teatral.

164
Nesse contexto se inscrevem as noções crise do drama, de Peter Szondi, dramaturgia rapsódica, de Jean-
Pierre Sarrazac, e teatro pós-dramático, de Hans-Thies Lehmann, mencionadas no capítulo anterior.
109

Dando atenção à concretude da arte teatral, no Brasil, Ernani Maletta retoma o


conceito de polifonia para falar sobre uma atuação polifônica, a qual pressupõe um atuante
polifônico. Para o autor, o teatro é necessariamente polifônico já que intersemiótico, ou seja,
composto de diversas linguagens diferentes. É, portanto, uma arte polifônica por natureza.
O atuante polifônico proposto por Maletta é um artista que, dominando os princípios
básicos das diversas artes que compõem o teatro, pode incorporá-los em seu jogo cênico,
tornando-o mais rico, convertendo-o em uma verdadeira atuação polifônica. Em suas
considerações, o autor cunha uma definição de polifonia a partir da música, de Bakhtin, do
cinema e da linguística.
Para Maletta,

polifonia é um termo emprestado da música e que se refere aos discursos que


incorporam dialogicamente muitos pontos de vista diferentes, apropriando-se
deles. O autor do discurso pode fazer falar várias vozes. Em outros termos, a
polifonia refere-se à qualidade de um discurso incorporar e estar tecido pelos
discursos – ou pelas vozes – de outros, apropriando-se165 deles de forma a criar,
então, um discurso polifônico. (MALETTA, 2005, p. 47-48, grifo do autor)

A polifonia cênica é intrínseca ao teatro porque essa arte, mesmo na sua forma mais
simples [...], incorpora simultaneamente múltiplos discursos e pontos de vista que,
muitas vezes, só se expressam implicitamente. Assim, a corporeidade, a
musicalidade e a plasticidade, por exemplo, podem estar invisíveis, mas plenamente
presentes na constituição do discurso do ator em cena. (MALETTA, 2005, p. 50-51,
grifos do autor)

Podemos lembrar aqui da distinção entre polifonia e dialogismo que Cleise Mendes
(2011) estabelece. A autora nos lembra que o dialogismo é constitutivo da linguagem, mas a
polifonia seria característica dos textos que apresentam as diversas vozes que os constituem.
“Por isso, com razão, alguns autores têm insistido no fato de que monofonia e polifonia são
‘efeitos de sentido’ resultantes de procedimentos discursivos, e não traço inerente a qualquer
tipo de enunciado.” (MENDES, 2011, s/p). Mendes, no entanto, fala de textos dramáticos, em
que a língua é a única linguagem articulada. Embora mencione a performatividade da
linguagem, na trilha de Austin, seu texto está centrado nas vozes do drama, sem ouvidos para
os outros sons do espetáculo, nem olhos para sua materialidade. Para tomar algum partido
nessa discussão, a chave está na identificação ou não entre intersemioticidade e polifonia, já

165
[Nota de MALETTA] Cabe fazer uma consideração sobre o uso, neste trabalho, dos verbos incorporar e
apropriar. Entende-se por incorporar a ação de “absorver” (HOUAISS, 2001, p. 1599), tanto no sentido de
assimilar, apreender, mental e corporalmente o conhecimento, como no sentido de “reunir, juntar, em um só
corpo ou um só todo” (FERREIRA, 2004, p. 1091). Por sua vez, apropriar significa “tomar como seu;
apoderar-se” (Idem, p. 171), de modo que se possa assumir o conhecimento incorporado como seu, a ponto
de poder reconstruí-lo de forma autoral, produzindo mais conhecimento.
110

que Mendes trata da polifonia como efeito interno a uma linguagem (a língua) e Maletta trata
da polifonia como o ponto de cruzamento de linguagens diversas. Se considerarmos que
intersemiótico e polifônico são equivalentes, nos aproximamos da maneira como Maletta
coloca a questão; se considerarmos que intersemiótico e polifônico são distintos, nos
aproximaremos das formulações de Mendes.
Neste trabalho, me aproximo da visão de Mendes, de que o efeito de polifonia, o que
defino como a aparição da diferença, é necessário para que se considere uma obra como
polifônica. Segundo Maletta, o teatro é polifônico porque intersemiótico (constituído por uma
pluralidade de linguagens), essa é sua natureza. Eu diria, a partir de seu pensamento, que o
teatro tende naturalmente à polifonia. No entanto, detectar a equipolência166 das vozes
(identificadas aos discursos veiculados pelos diversos elementos) como constitutiva da arte
teatral, como faz Maletta, soa a mim como tomar por resolvida uma questão que se abre a
cada nova criação, já que qualquer tendência pode ser seguida ou negada. Em muitas obras, os
criadores priorizam um ou alguns elementos constitutivos do teatro e empregam os outros
como reforços discursivos do(s) elemento(s) principal(is), o que pode ser considerado uma
espécie de homofonia ou, no melhor dos casos, aquilo que o próprio Maletta (2016, p. 41), na
música, chama de “melodia acompanhada” e que, segundo ele, não constituiria uma polifonia
quando tomamos por critério a igual importância das vozes. Existe certamente dialogismo
nessa relação dos elementos da obra teatral, mas haverá a percepção — o efeito — de
polifonia?
Mesmo que utilizássemos a definição de Maletta — que considero frutífera em sua
tomada de partido e a qual tendo a subscrever em minha prática — para empregar a polifonia
como imagem para a coralidade, precisaríamos estabelecer uma diferenciação entre a
polifonia que o autor identifica como constitutiva do teatro e o tipo de polifonia que o recurso
a uma coralidade pode propor. Mesmo na possibilidade da consonância absoluta, a polifonia,
para Maletta, existe como constitutiva da linguagem teatral, na relação da linguagem visual,
musical, etc, no jogo da atuação que absorve diversas linguagens, o que poderíamos chamar,
nesse registro de pensamento, de polifonia implícita. Contraponho à polifonia implícita a
polifonia explícita, aquela que existe quando os elementos da obra teatral produzem o
dissenso, a dissonância, e no caso da coralidade, especialmente quando esse dissenso e essa
dissonância, alternados a trechos de consonância, são explorados no nível das personagens,

166
“Equipolentes são consciências e vozes que participam do diálogo com as outras vozes em pé de absoluta
igualdade; não se objetificam, isto é, não perdem seu SER como vozes e consciências autônomas”.
(BAKHTIN, 2015, p. 5)
111

das figuras ou mesmo dos atuantes, em sua performance que atrita com as estruturas da fábula
ou das convenções teatrais.
Nesse sentido, emancipar as linguagens constitutivas do espetáculo é criar polifonia
explícita, ‘efeito de polifonia’ ou simplesmente polifonia — aparição da diferença —, assim
como evidenciar a multiplicidade ao nível das figuras/personagens, em que essa polifonia
tende a se configurar como coralidade. Novamente, falamos de partes que se movem em
alguma medida independentemente ou até de forma contrária umas às outras.

4.2 Política em Rancière: a igualdade que perturba

Pensar a coralidade de uma obra cênica, ou melhor, pensar uma cena fundada na
coralidade, permite que pensemos a escritura cênica como lugar da política — de instauração
da política — da maneira como a entende Rancière. Porque, por mais que determinada obra
possa manter, ao nível do texto, uma fábula que distribui lugares e organiza hierarquias, a
linguagem cênica fundamentalmente coral tem a potência de instaurar uma igualdade entre as
figuras — igualdade patente aos olhos do espectador — que subverte, ou melhor, reorganiza a
ordem instituída pela fábula apresentando a diferença hierárquica como dependente da
igualdade entre as figuras cênicas.
O que uma cena coral/política apresenta, a partir dessa leitura, é a figuração da ordem
do mundo: a diferença social é baseada na pura contingência e é, em última análise,
dependente e sustentada pela própria igualdade de valor e de potência entre os indivíduos que
compõem uma sociedade.
Na obra de Jacques Rancière O desentendimento: política e filosofia, o filósofo
francês propõe uma definição bastante singular do que podemos entender pelo termo política.
Em sua concepção, a política deve ser entendida como um evento singular, que “acontece,
aliás, muito pouco e raramente” (RANCIÈRE, 1996, p. 31). Isso se deve à distinção operada
pelo filósofo entre a política e o que ele chama de polícia, que abrangeria “os processos pelos
quais se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes,
a distribuição dos lugares e funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição”
(RANCIÈRE, 1996, p. 41). A polícia é, portanto, a lógica da ordem e da manutenção da
ordem, da distribuição dos lugares em uma sociedade, da dominação dos poderosos sobre os
que têm menos poder e especialmente, das estruturas de pensamento e sensibilidade que
sustentam o estado das coisas.
112

A política, por sua vez, configura-se como uma perturbação da lógica policial.
Recorrendo a uma pressuposição/dedução estranha a essa lógica — a igualdade de qualquer
ser falante com qualquer ser falante — os sujeitos políticos expõem o dano a eles causado
pela outra parte.

Há ordem na sociedade porque uns mandam e os outros obedecem. Mas, para


obedecer a uma ordem, são necessárias pelo menos duas coisas: deve-se
compreender a ordem e deve-se compreender que é preciso obedecer-lhe. E, para
fazer isso, é preciso você já ser o igual daquele que manda. É essa igualdade que
corrói toda ordem natural. Sem dúvida, os inferiores obedecem na quase totalidade
dos casos. Resta que por aí a ordem social é remetida à sua contingência última. A
desigualdade só é, em última instância, possível pela igualdade. (RANCIÈRE, 1996,
p. 31)

O raciocínio de Rancière expõe uma série de precedentes na História do pensamento e


remonta a teorizações levadas a cabo por Platão e Aristóteles, e depois por Marx, para ficar
com suas fontes mais importantes, passando por Hobbes, Rousseau e outros. Interessam-me,
para o estudo da coralidade, o momento exato da irrupção da política e as condições e
movimentos a ele associados. Vou, portanto, focar a exposição nestes elementos e não no
percurso argumentativo do filósofo.
Antes de tudo gostaria de evidenciar o que entendo por igualdade nesse escrito de
Rancière. O filósofo não nega as diferenças inerentes aos seres humanos, nem aos sujeitos
pertencentes a determinada ordem social. Não noto nenhuma evidência de que a menção à
igualdade feita por Rancière pretenda ou promova o apagamento de marcadores sociais
étnicos, econômicos, de gênero, orientação sexual, religião ou de qualquer outro tipo. Pelo
contrário: a irrupção da situação política se dá geralmente a partir de uma reivindicação feita
por um grupo reunido em torno de um desses marcadores. O ‘povo’ ou os proletários
identificam-se a marcadores econômicos (e algumas vezes étnicos), o processo de
emancipação feminina mobiliza os marcadores de gênero. A igualdade de qualquer ser
humano com qualquer ser humano que o filósofo menciona não é — e isso precisa ser
entendido para prosseguir a discussão — uma proposição utópica que buscar varrer as sujeiras
da sociedade para debaixo do tapete propondo que ‘somos todos iguais’ e as distinções
promovidas pela realidade social não importam.
113

Se a igualdade perturba, a desigualdade não perturba mais? — questionaram-me.167 De


que igualdade estaríamos falando? De uma igualdade que é, ao mesmo tempo, real e
potencial. Real quando está ligada ao valor que os seres humanos têm, o que significa
entender que não há nenhuma diferença fundamental no valor de duas pessoas, ou seja, somos
iguais por natureza. A prática social pode assumir outra direção, é verdade, inferiorizando
seres humanos em função de características específicas, mas mesmo as relações de mando,
como no exemplo da citação da página anterior, fundam-se sobre uma partilha das
capacidades relativas à linguagem e ao pensamento, ou seja, uma igualdade de capacidades.
Essa igualdade é real. Podemos percebê-la todos os dias. Essa igualdade real, a igualdade que
pode ser deduzida, nos conduz à igualdade potencial, ou igualdade que pode ser pressuposta:
se os seres têm igual valor, então: 1) a dominação de uns sobre os outros não se apoia em
nenhum critério objetivo, a ordem social se assenta sobre um vazio preenchido por
convenções, o que nos leva a: 2) os seres carregam igual potência de governar, ou seja, iguais
condições para administrar o comum da comunidade, aquilo que, pertencendo a um grupo,
pertence a todos os seus integrantes e a nenhum deles, isoladamente. É isso que está, em
Rancière, expresso pelo termo igualdade, que para os gregos era dito isonomia, lembrado por
Hannah Arendt em seus escritos reunidos em O que é a política?, que o filósofo francês lia
quando escreveu O Desentendimento (PALOTTA, 2014).

A palavra grega para designar a constituição livre era isonomia: ela não significava
que a lei era a mesma para todos, ou que todos são iguais perante a lei, mas que
todos168 possuem os mesmos títulos para a atividade política, e que essa atividade
consistia na tomada de palavra numa discussão. Na sua [de Arendt] concepção, essa
liberdade foi experimentada somente em raros momentos. (PALLOTTA, 2014, p.
67)

Para Rancière, a lógica policial pode ser marcada pelo traço igualitário. Nem todas as
polícias se equivalem, já que algumas se utilizam de meios mais violentos ou promovem
lógicas de controle mais evidentes do que outras.169 Acrescento que se essa(s) igualdade(s)

167
O nome não dito no texto é o do prof. Stephan Baumgärtel, que me lançou essa provocação na banca de
qualificação deste trabalho.
168
É interessante notarmos que o sentido de “todos” é ampliado ou restringido ao longo do tempo, sendo
sinônimo de “cidadãos” na Grécia democrática. Excluem-se todas as mulheres, além de escravos e
estrangeiros. A penetração do traço igualitário em um dado sistema policial não é garantia de que ele abranja
a totalidade de sua população.
169
O exemplo dado pelo filósofo é o dos escravos dos citas, que tinham os olhos perfurados logo após nascer.
Dizer que vivemos, tanto quanto eles, em uma lógica policial, não implica que as condições sejam iguais, ou
seja, que as polícias se equivalham. (Cf. RANCIÈRE, 1996, p. 27-28)
114

manifesta(m)-se no funcionamento dos mecanismos sociais, é sob o entendimento moderno


de isonomia: a sujeição de todos os membros da comunidade às mesmas regras.170
A partir do momento em que se descobre a igualdade e, portanto, o vazio no qual se
assenta toda ordem social, o grupo ‘inferior’ ao qual algo é subtraído reclama uma situação de
disputa, no interior da qual as partes devem ser constituídas, porque não preexistem a ela. Ou
seja, a parte reclamante não é contada como uma parte pela parte à qual se dirige. Essa é, para
Rancière, a situação capital de desentendimento: quando não se ouve as palavras de um
interlocutor porque não se percebe ou não se acredita que esse interlocutor seja capaz de falar,
que os sons que emite articulem sentido. Um pouco abaixo está a situação de quando não se
percebe a existência de uma discussão porque considera-se que não há nada a discutir ali onde
o outro vê uma potencial disputa. A parte à qual a disputa se destina não compreende a outra
parte como uma parte e não vê nada a ser discutido.
A discussão, portanto, expõe e busca reconfigurar a partilha do sensível 171 que gera a
impossibilidade da contagem da parte reclamante como uma parte. Partilha é entendida pelo
filósofo na dupla acepção da palavra: a participação em algo comum, mas também o que
define a parte de cada um. Ou seja, “uma partilha do sensível é [...] o modo como se
determina no sensível a relação entre um conjunto comum partilhado e a divisão de partes
exclusivas” (RANCIÈRE, 2009, p. 7). Essa partilha estabelece, portanto, os modos de ser, ver
e fazer das partes da comunidade e as relações possíveis entre elas.
A última peça do pensamento político de Rancière sobre a política que se faz
necessária a esse trabalho é a noção de subjetivação política. Para ele, “a política é assunto de
sujeitos, ou melhor, de modos de subjetivação” (RANCIÈRE, 1996, p. 47). A subjetivação
política é caracterizada por ele como “a produção, por uma série de atos, de uma instância e
de uma capacidade de enunciação que não eram identificáveis num campo de experiência
dado, cuja identificação, portanto, caminha a par com a reconfiguração do campo da
experiência.” (RANCIÈRE, 1996, p. 47). Esse sujeito político é um sujeito coletivo, um modo
de aparição e enunciação dos conteúdos da disputa. É um sujeito que tem a exata consistência
da série de atos que o produz. Pallotta (2014) qualifica esse processo como mise en scène do

170
O fato de que, em ocasiões suficientemente abundantes e evidentes, a isonomia seja apenas uma inscrição nas
leis e não uma prática real indica pelo menos duas coisas: o Estado, como dispositivo regulador, é sempre
uma estrutura policial, mantenedora da desigualdade; e este estado das coisas também pode ser condição para
a irrupção da política, a partir da exposição desse dano que, no seio disso que é chamado de sistema
democrático, é perpetrado pelos poderosos contra aqueles que têm menos poder.
171
Na edição brasileira de O Desentendimento, o termo utilizado é “divisão do sensível”. No entanto, partilha é
uma tradução mais condizente com o conceito de Rancière, opção de tradução que foi feita na edição de A
partilha do sensível, livro composto de desdobramentos das considerações feitas em O Desentendimento.
115

tratamento do litígio, um modo de torná-lo visível, o que naturalmente nos reenvia ao


contexto teatral. Lembrando Descartes, que afirmou na segunda parte das Meditações
Metafísicas “ego sum, ego existo” (eu sou, eu existo), Rancière afirma que a constituição do
sujeito político é um “nos sumus, nos existimus” (nós somos, nós existimos) (RANCIÈRE,
1996, p. 48), a afirmação coletiva da existência de uma parte da comunidade que até então
não era vista, afirmação de que aquele grupo constitui uma parte a ser contada.
Para exemplificar o funcionamento da subjetivação política, que constrói sujeitos
políticos, podemos falar da imagem do povo. O povo não se identifica exatamente com
nenhuma parte real da sociedade. Olhando para a Grécia, temos o demos, que identifica a
classe pobre, classe que reclama como sua qualidade específica a liberdade, que não é uma
característica propriamente sua porque compartilhada pela aristocracia e pelos ricos. Além
disso, o demos não se identifica apenas a uma parte da comunidade, mas a seu todo, assim
como o povo. Os pobres não são exatamente os pobres, mas se identificam à totalidade da
comunidade. A conta que inclui o ‘povo’ não fecha. A parte à qual algo é subtraído se
identifica ao todo da comunidade em razão e em resposta ao dano que a outra lhe causa. Um
sujeito político é um determinado modo de aparição que reúne em si uma parte da
comunidade, mas não se identifica diretamente a ela. É constituído no processo de disputa,
enquanto a parte reclamante se afirma como parte existente.
Os conceitos de Rancière apresentados aqui se referem à situação de irrupção da
política no mundo real. Referem-se, sobretudo, a uma situação de palavra, de tomada de
palavra por aqueles cuja palavra não era ouvida, que se pensava desprovidos dela. Penso num
teatro que não use a palavra, ou que pelo menos não figure nem mesmo através de narração as
relações políticas que podem ser vistas no mundo social. De que nos serviriam essas ideias?
Para Rancière, a partilha do sensível é questão estética. Existiria, portanto, na base da
política, uma “estética”: a da distribuição sensível dos lugares e daqueles que podem ocupá-
los.

As artes nunca emprestam às manobras de dominação ou de emancipação mais do


que lhes podem emprestar, ou seja, muito simplesmente, o que têm em comum com
elas: posições e movimentos dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e
do invisível. E a autonomia de que podem gozar ou a subversão que podem se
atribuir repousam sobre a mesma base. (RANCIÈRE, 2009, p. 26)

Essa afirmação me leva a compreender que podemos falar das artes nos valendo das
ideias que Rancière desenvolve a partir das estratégias de dominação e emancipação. Em seus
próprios meios, e sem precisar se adequar às exigências de um pensamento alheio a elas, as
116

artes podem ser analisadas através do tipo de relações que propõem em suas criações, e nas
relações de suas obras com os espectadores, com aqueles que entram em contato com elas.
Essas ideias podem fornecer poderosas imagens para criadores cênicos e espectadores
tecerem suas cenas ou elaborarem suas leituras. Cada um dos termos em que Rancière
desmembra o acontecimento político — e a circularidade com que seu pensamento se
apresenta na escrita parece confirmar isso — contém em si, ao menos em potência, todos os
outros. A situação de desentendimento como a situação da comunicação que não se efetua
porque algo não é compreendido por uma parte, já que em seu mundo esse algo não existe. A
igualdade de qualquer ser com qualquer ser que se expressa fundamentalmente na liberdade e
que gera a disputa — ou sobre cujo reconhecimento se centram a maioria das disputas. A
constituição de um sujeito político a partir da identificação de uma parte a uma imagem, que
cria um grupo que exige ser ouvido ou contado. Finalmente, a partilha do sensível, a
distribuição dos corpos e a atribuição ou não de visibilidade a eles, a relação entre o comum e
a participação de cada um nesse comum ligada ao lugar em que está. Cada uma dessas
imagens pode subsidiar a construção de um mundo cênico inteiro.
Uma última frase de Rancière me parece interessante para pensar a política e sua
possível relação com a noção de polifonia em Bakhtin: “A política não é feita de relações de
poder, é feita de relações de mundos” (RANCIÈRE, 1996, p. 54). A existência do poder por si
mesma não configura uma situação como política para o pensador francês. A pura relação de
poder tece a lógica policial. Como já vimos, a política está ligada, acima de tudo, ao
entendimento de como a comunidade está constituída, ou seja, aos mundos que são percebidos
pelas partes. Esse confronto e a mudança na percepção da constituição desses mundos é que
podem reconfigurar as relações de poder.172 Assim como na polifonia bakhtiniana as
personagens com seus mundos entram em relação, no acontecimento político são seres que
veem o mundo de maneiras diferentes que estabelecem uma disputa em torno de um objeto,
de um direito, da parte que cabe a cada um daquilo que é comum. Enquanto em Bakhtin
temos a igualdade entre as vozes como dado fundamental na representação do romance
polifônico, na situação da política a igualdade entre os seres humanos é o dado que perturba a
ordem social vigente. Há diversas relações a serem feitas entre esses pensamentos,
especialmente em sua confrontação com a diversidade de dramaturgias que podem ser
percebidas na materialidade da cena contemporânea.

172
Se essa mudança se dá pelo convencimento ou pela força/revolução, pouco importa para a observação do
fenômeno. O fundamental é que o mundo que se percebe mudou.
117

4.3 Unicidade

Tanto a ideia de polifonia em suas múltiplas expressões quanto a de política na


acepção dada por Rancière se referem a uma estrutura de encontro ou de disputa, mas
fundamentalmente de coexistência. Considerando a coralidade como a tensão e a intercâmbio
de ênfases entre singular e coletivo, é necessária uma imagem para esse singular, esse único.
E aqui a ideia que nos servirá de imagem será justamente a unicidade.
Cada ator ou atriz em cena é um ser único, que instaura sempre uma vez mais o mundo
da cena por meio de sua performance. As práticas mais performativas intuem a unicidade dos
atuantes e lhe reservam um lugar privilegiado no tecido da cena. Mesmo que se pense — num
registro de pensamento que queira considerar a igualdade como dado primeiro, como
norteadora de uma postura (po)ética fundadora da criação — que o ente cênico, ou melhor,
que o componente dessa comunidade cênica seja qualquer um, o ser qualquer, igual a
qualquer outro, no momento em que se materializa em cena esse qualquer já é um: um ser
que, embora igual a qualquer outro, é diferente de todos os demais. Essa diferença, sua
unicidade, é, inclusive, o status que compartilha com todos os outros, portanto
necessariamente fundadora da igualdade.
Para adentrar a questão da unicidade como imagem potente para pensar a coralidade, o
livro de Adriana Cavarero Vozes plurais: filosofia da expressão vocal oferece grande ajuda.
Focalizando o tema da voz, a filósofa italiana faz uma crítica da tradição metafísica ocidental,
que, segundo ela, operou a “desvocalização do logos”. O pensamento filosófico grego,
especialmente com Platão, teria deslocado os sentidos originário de logos, palavra derivada

do verbo legein. Desde a Grécia arcaica, este verbo significa tanto ‘falar’ quanto
‘recolher’, ‘ligar’, ‘conectar’. Isso não é surpreendente, uma vez que quem fala liga
as palavras umas às outras, uma após a outra, recolhendo-as em seu discurso.
Tampouco é estranho que, exatamente por isso, legein signifique também contar173
e, ainda mais propriamente, narrar. (CAVARERO, 2011, p. 50)

O logos, “comumente sinônimo disso a que chamamos ‘linguagem’” (CAVARERO,


2011, p. 50) reúne em si os sentidos de palavra — em um discurso articulado — e
pensamento — como uma racionalidade específica. Sua origem evidentemente oral sofre um

173
“Há política porque o logos nunca é apenas a palavra, porque ele é sempre a contagem que é feita dessa
palavra: a contagem pela qual uma emissão sonora é ouvida como palavra, apta a enunciar o justo, enquanto
uma outra é percebida como barulho que designa prazer ou dor, consentimento ou revolta.” (RANCIÈRE,
1996, p. 36)
118

apagamento sistemático, segundo Cavarero, com o aparecimento de um vocabulário filosófico


ligado à esfera visual, que desvocaliza o logos e o orienta em direção ao plano de organização
da linguagem, ao diálogo mudo da alma consigo mesma, ou finalmente a um tipo de
pensamento contemplativo totalmente visual onde o próprio logos desaparece e mesmo a
ordem da linguagem já não seria mais necessária: a pura contemplação das Ideias (o que
Cavarero chama de metafísica maior, em oposição à metafísica menor, representada pela
imagem do diálogo silencioso da mente de si para si).
A insistência no logos como pensamento e a assimilação do pensamento à visão
retiram do entendimento do logos pela tradição metafísica a dimensão, originária, da phoné. A
voz é reduzida a puro suporte sonoro do significado. Esse movimento torna-se inteligível ao
se observar a utilização de phoné por Aristóteles, em sua explicação da diferenciação entre
humanos a animais. O homem, diz Aristóteles na Poética, possui phoné semantiké, voz
provida de significado. Não que a voz dos animais, para o Estagirita, seja um fenômeno
aleatório, mas é signo de prazer ou dor, como afirmado na Política. Apenas o homem seria
zoon logon echon, ou ‘animal possuidor de logos’. Suporte ao logos no homem e índice das
afecções do corpo, no animal, a voz não passaria de veículo, casca acústica para os sentidos,
no caso da linguagem humana.
A esse panorama, Cavarero contrapõe a outra cultura matriz da civilização ocidental, a
cultura hebraica, para a qual Deus cria através de respiração (ruah) e voz (qol). Ruah “indica
antes de tudo o fôlego, o hálito vivificante de Deus soprado na boca de Adão, ou seja, aquele
mesmo respiro divino que sopra sobre o caos antes de nomear os elementos que dele surgem”
(CAVARERO, 2011, p. 35). Qol, traduzida por phoné na tradução bíblica da Septuaginta,
equivale a sua correspondente grega na medida em que “concerne à esfera acústica e se refere
a tudo aquilo que é percebido pelo ouvido” (CAVARERO, 2011, p. 35). A criação de Deus,
ao menos para os hebreus, é realizada através de ruah, mencionada no salmo 33, ou qol, que
comparece ao salmo 29.174 A voz de Deus é “voz transcendente que precede, gera e excede a
palavra e cuja vibração é percebida ainda no som das línguas.” (CAVARERO, 2011, p. 37).
Essa vibração, essa voz primordial que ressoa nos homens criados à imagem e
semelhança de Deus, funda a possibilidade humana da palavra. A tradição hebraica “afirma

174
O texto de Cavarero previne o leitor da possível lembrança, bastante óbvia, das primeiras palavras do
evangelho de João “No início era o logos...”. Diz a autora: “Como se sabe, a tese da criação mediante a
palavra, muito difundida no senso comum da cultura ocidental, é tributária da releitura cristã do Antigo
Testamento” (CAVARERO, 2011, p. 35) O texto do Gênesis, que faz vir ao ser aquilo que é dito por Deus é
identificado por Cavarero como revelador de uma concepção tardia em relação à que fundamenta os salmos
mencionados.
119

que os falantes se comunicam entre si na voz de Deus que vibra no som da língua deles”.
(CAVARERO, 2011, p. 37) A esfera acústica detém, portanto, centralidade na concepção
hebraica do mundo. A voz é considerada enquanto voz, reveladora do próprio falante. “A voz
comunica, antes de tudo, e sempre, uma só coisa: a unicidade de quem a emite”
(CAVARERO, 2011, p. 40). Cavarero lista alguns pensadores (Lévinas, Rosenzweig, Buber,
Arendt) que, segundo ela, devido à matriz hebraica, atacam a metafísica e suas pretensões
universalistas em nome da unicidade.
A unicidade é uma noção extremamente cara à autora, por se ligar estreitamente, ou
melhor, por se revelar na voz. Revelação de seres únicos, inscritos na existência, frutos e
sujeitos a todas as contingências do mundo dos fenômenos, a voz depende de uma “garganta
de carne”, se radica no corpo profundo: é sempre voz de alguém.
Não que a autora afirme que apenas a voz revela a unicidade do ser humano. Existem
outras possibilidades dessa autorrevelação, como o rosto, mas o tema da voz permite a
Cavarero, antes de tudo, tratar da unicidade em sua ligação ao fenômeno da relação entre os
seres humanos. Para isso, a autora recorre, entre outras ideias, à distinção operada por
Emanuel Lévinas entre Dizer e Dito. O dito se refere ao conteúdo, à mensagem enviada de um
falante ao outro. E é porque “o plano comum da palavra — aquilo que os interlocutores se
comunicam mediante a linguagem — é diverso do plano dos interlocutores eles mesmos”
(CAVARERO, 2011, p. 43) que se pode falar sobre um Dizer: a situação da comunicação, da
troca entre os falantes, o próprio ato de falar. A revelação da unicidade, seja por meio da voz,
seja através do rosto — imagem central na filosofia de Lévinas — acontece no ato do Dizer,
no momento da relação. Pensando com Cavarero, a voz é a mais poderosa imagem para o
Dizer já que, nela, “tanto a unicidade quanto a relação — ou melhor, a unicidade como
relação — manifestam-se acusticamente sem nem levar em conta a ordem do Dito”
(CAVARERO, 2011, p. 46-47). Do laço entre unicidade e relação, especialmente na revelação
da unicidade na situação de comunicação, Cavarero explora a dimensão política da voz, que
comparece ao jogo das relações humanas como fornecedora de um dado essencial: a
unicidade de cada falante.

Sob o regime do nome como sistema universalizante do dito, a pluralidade de seres


humanos, únicos e inimitáveis, torna-se “homem”. Mas sobre esta terra e no mundo
— observa Arendt — com sapientíssima ingenuidade — vivem os homens, não o
homem.175 (CAVARERO, 2011, p 222)

175
Cf. Arendt, Vita activa, p. 7. [N.A.]. Para a edição em português, Cf. ARENDT, Hannah. A condição
humana. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 9.
120

O que o fenômeno da unicidade revela a uma cena teatral que queira considerá-lo é,
primeiramente, a si mesmo: a unicidade de cada atuante, sublinhada nas práticas
performativas. Mas e as composições ficcionais? E os enquadramentos de encenação?
Considerar a unicidade nos convida também a evitar estereótipos, fundar mundos ou refundar
o mundo — no sempre repetido gesto da criação da cena — levando em conta o dado da
unicidade ou — por que não? — sublinhando-o por oposição na fundação de mundos cênicos
em que a unicidade é sistematicamente apagada. Opções de criação há tantas, quantos
esforços criativos houver.
A unicidade comparece neste trabalho como a possibilidade de manter criações corais,
ou seja, criações que movimentam um grupo que se pretende uma — figuração de —
comunidade, que instauram uma energia coletiva, fora de uma lógica homogeneizante em
relação aos componentes humanos da cena. Condição da igualdade, embora facilmente
esquecida quando esta última assume o protagonismo, em nome de uma equivalência
pasteurizada dos seres, a unicidade reclama atenção em uma cena que pretende considerar
tanto o comum quanto o individual e revelar a fundação recíproca de um sobre o outro.
O outro dado que faz com que o trabalho de Cavarero seja extremamente interessante
para esta pesquisa é seu recorte no tema da voz. Muitas práticas corais, como pudemos ver no
capítulo anterior, constroem-se primordialmente sobre a musicalidade e a polifonia vocal,
embora mantendo os momentos de singularização, de apreciação da unicidade de cada voz, da
voz de cada atuante e de cada atuante em si mesmo. Sensibilizar os ouvidos físicos e
intelectuais às vozes do mundo é um gesto necessário para perceber as potências de
coralidade que estão a nosso redor. Finalmente, o foco na voz permite, mesmo que por alguns
momentos, certa abstração da ordem do dito e uma focalização da matéria da comunicação, o
que aqui pode ser a matéria cênica: o ponto, a linha, a cor, o ritmo, o movimento, o som, os
atuantes em suas unicidades e suas relações na tessitura da cena, enfim, tudo o que constitui a
arte da encenação.
Um aspecto da ideia de unicidade precisa ser ressaltado, no entanto. Enquanto a
polifonia nos indica antes de tudo relações entre elementos de uma composição que podemos
conferir nos atentando ao objeto artístico em questão e a política, na acepção de Rancière, é
um processo, e um processo que rompe com a normalidade antes estabelecida, a unicidade é
um dado tão simples e fundamental da existência que corre o risco de se tornar oculto porque
121

evidente (JULLIEN, 2000). Ou seja, de tão evidente, o dado não nos vem à consciência por
fazer parte do ‘fundo’ de nossa percepção.
Pensar sobre a unicidade é sem dúvida um começo, mas a compreensão racional do
fenômeno não basta. É preciso aquilo que muitas tradições, especialmente orientais, chamam
de realização: conhecimento direto, ou o momento em que este ‘se assenta’ no sistema do
conhecedor. Tendo ouvido essa palavra numerosas vezes ao longo de alguns anos, percebo
que pode haver pequenas realizações em sequência, que levam a uma realização maior, ou
esta pode ser descrita como uma tomada súbita de consciência, embora geralmente seja a
coroação de um processo gradual, como a gota que causa o derramamento do líquido. Sobre a
noção de realização na tradição da sabedoria chinesa, assim se exprime François Jullien:

‘Realizar’ é, assim, mais preciso do que o simples ‘tomar consciência’ (que também
vale para o conhecimento): realizar é tomar consciência não do que não se vê ou do
que não se sabe, mas, ao contrário, do que se vê, do que se sabe, ou mesmo do que
se sabe demais — do que se tem diante dos olhos; realizar, em outras palavras, é
tomar consciência da evidência. Ou, para nos atermos o máximo possível à palavra,
realizar é tomar consciência do caráter real do real. Por exemplo, que o tempo passa,
que envelhecemos — ou simplesmente que estamos “vivos”. Porque ninguém
realiza de fato, quero dizer, completamente, que está fadado a morrer, apesar de
todos o saberem. (JULLIEN, 2000, p. 77)

Toco nesse ponto porque me parece ser necessária a artistas, mais do que a
compreensão, a percepção da unicidade, sua experiência direta. Quando o trabalho artístico se
volta a contextos e composições grupais, coletivas, entendo que a necessidade de realizar a
unicidade é ainda maior. Só assim podemos escapar à tentação do mesmo.176

4.4 Proposta de diálogo para uma coralidade possível

A partir de minhas investigações, dentre os inúmeros pensamentos, tomadas de partido


e conceitos enunciados no mundo, elegi esses três em minha composição de uma imagem
conceitual para a coralidade. Subjacente a esta proposta de leitura, há uma proposta de feitura.
Um conjunto de pontos norteadores que penso serem úteis para criadores — estou pensando
primeiramente em mim, na sala de ensaio, vivendo o calor do trabalho artístico.
Partir da polifonia musical é considerar não apenas as diversas possibilidades de
expressão, mas também de articulação da expressão para cantores ou instrumentos. É certo
que se pode fazer polifonia com um grupo de instrumentos idênticos com a mesma afinação

176
Ver página 173.
122

(por exemplo, um grupo de violoncelos ou de cantores(as) do mesmo naipe). Quando temos


instrumentos semelhantes com afinações diferentes (grupo de flautas com diferentes afinações
ou cantores(as) dispostos(as) no sistema SATB, por exemplo), as possibilidades expandem-se
devido às diferenças de extensão e timbre que podem haver nesse grupo. Mas aquilo com o
que nossos ouvidos estão mais acostumados, e que acompanha a lógica da existência dos seres
neste mundo e pode nos dar pistas para a construção da cena, é a coexistência de vozes
totalmente diferentes na mesma música. Instrumentos de múltiplas famílias, cantores com
timbres diversos, urdindo uma música. Se transpusermos essa lógica para a pintura, por
exemplo, perceberemos que podemos pintar um quadro com diversos tons da mesma cor, ou
com diversas cores e tons, ou ainda utilizar materiais diferentes entre si na mesma
composição. Em cada arte, os desenvolvimentos mais simples desse princípio se transformam,
devido à variedade de suportes.
Voltando à música, a notação musical, que torna as composições perenes mesmo que
não sejam ouvidas durante muito tempo, fixa-as como conjuntos de notas distribuídas no
tempo por meio de ritmos, orienta o andamento da execução e dá instruções de dinâmicas,
mas não pode ir muito além disso. Grotowski, falando sobre os cantos de tradição, afirma que

a melodia não é a mesma coisa que as qualidades vibratórias. É um ponto delicado


porque — para usar uma metáfora — é como se o homem moderno não ouvisse a
diferença entre o som de um piano e o som de um violino. Os dois tipos de
ressonância são muito diferentes; mas o homem moderno só busca a linha melódica
(a progressão de notas), sem captar as diferenças de ressonância. (GROTOWSKI,
2012, p. 142)

Partindo do pensamento de Grotowski, podemos nos inquietar sobre o uso da polifonia


musical como exemplo para a prática teatral e pensar algo como: tudo bem, posso reconhecer
diferenças e variedades aqui, elaborar múltiplos discursos (partes, linhas melódicas) que se
entrecruzam, afastam, produzem consonâncias e dissonâncias, mas a matéria desse
pensamento são os discursos em si, e não as vozes existentes, materiais. Como pensar cada
voz como vinculada a uma existência diferente das outras, e não simplesmente como
veiculadora de um discurso?
Entram aqui, por motivos diferentes, as concepções de Bakhtin sobre polifonia na
literatura e o conceito de unicidade, que Cavarero aciona para dar conta do tema da voz. A
ideia de Bakhtin já foi bastante explorada e pode ser resumida em seus elementos
estruturantes: independência, imiscibilidade, plenivalência e equipolência. Mas aqui ainda
estamos falando de discursos, mesmo que estes revelem a percepção de mundo, ou partes da
123

construção do mundo interior, de cada personagem. A ideia apresentada por Cavarero é mais
certeira: a unicidade é aquilo que torna cada ser diferente de todos os demais. Os seres únicos
não são abstrações, são os seres que existem neste mundo, com todas as suas características.
Esta consideração se aplica primeiramente aos seres humanos, mas pode ser feita para
qualquer ser vivo, pelo menos para aqueles cuja existência podemos perceber sem auxílio de
aparelhos, se quisermos nos ater à experiência cotidiana dos membros de nossa espécie.
Depois de considerarmos cada ser vivo como um ser único, talvez possamos estender essa
observação aos seres inanimados: cada pedra, curso d’água, vulcão ou montanha é uma
existência única, porque diferente de todas as demais. Mesmo os objetos feitos pelo homem
guardam sua unicidade; a “aura” que Benjamin (1985) detectava na obra de arte enquanto
objeto está ligada à unicidade desse objeto. Mas a obra de arte é um exemplo muito fácil.
Mesmo um tijolo ou uma cadeira fabricados em série são únicos, devido ao simples fato de
que não dividem a existência com os outros objetos. Estão separados uns dos outros, têm uma
história própria, passaram por lugares diferentes, têm sua própria ‘aura’. Expandindo a ideia
de unicidade dessa forma, podemos dizer que toda existência no mundo dos fenômenos é
única. Esta aparente obviedade nos faz um convite: considerando cada existência como única,
somos levados a investigar o que é único naquela existência particular sobre a qual nos
debruçamos, seja artisticamente ou não. Abrem-se as portas da sensibilidade: o mundo não é
óbvio.
Partindo de Cavarero, também podemos considerar o pensamento sobre uma ligação
ou um princípio originário que está em todas as coisas, em todos os seres, como a voz de deus
que, segundo a filósofa, para a religião hebraica se manifesta na voz individual das pessoas;
ou, se partirmos para uma ideia do hinduísmo, por exemplo, podemos pensar no prana, na
energia universal que toma a forma de diversos seres, de diversas existências. Pensamentos
que partem do princípio de que as unicidades estão desde o início ligadas umas às outras.
Podemos, a partir da consideração da ligação originária das unicidades, pensar no conceito de
interdependência dos fenômenos, partilhado pelas diversas escolas budistas. Podemos
considerar que viemos de um mesmo lugar, temos a mesma constituição e não por isso, por
entender que somos todos iguais, necessariamente precisamos aderir a uma concepção que
pode ser expressa na frase “somos todos um”, adotada por diversos grupos espirituais.
Para isso trago o conceito rancierano de política. Temos de deslocar um pouco o olhar
para adentrar nessa ideia que não nos permite muitos desdobramentos metafísicos, mas parte
de um lugar semelhante à ideia de unicidade: os seres humanos que existem no mundo.
124

Podemos entender com a unicidade que somos iguais por nos fazermos únicos dentro de uma
unidade primordial. Mesmo que não creiamos em uma unidade primordial, compartilhamos a
unicidade, e isso nos iguala. O que o conceito de política nos mostra é que os problemas, as
dominações, os conflitos, devem ser resolvidos, isso faz com que a ordem deva ser
questionada porque ela não é ‘natural’ como muitos querem. Mesmo que aceitemos o “todos
somos um” em um nível superior de entendimento, não é por todos sermos um que
precisamos aceitar a ordem que está posta no mundo de uma maneira pacífica e resignada,
mas por entender o princípio da interdependência e o princípio de que algo ‘passa entre’ todos
os seres que se individualizam, é que podemos lutar ou podemos instaurar algum tipo de
perturbação na ordem. A ideia de política do Rancière comparece neste trabalho para mostrar
que embora consideremos a igualdade como um dado, apenas o dado da igualdade não basta;
precisamos promovê-la a partir da ação. A igualdade deve ser verificada a cada momento, ou
se torna um simples mito de origem, uma explicação metafísica que não tem efeitos na
prática. Não basta crer na igualdade, é preciso vivenciá-la. E no caso artístico, se quisermos,
podemos perceber esse dado e colocá-lo em tensão através das lógicas composicionais.
A coralidade possível que proponho com essas escolhas é uma coralidade que
contempla, mais do que a multiplicidade das existências, a rede de ligações que conecta cada
ente singular aos outros e investiga, foca a atenção na unicidade de cada um. É uma
coralidade que nasce também do entendimento de que a realidade é processo, está em
constante mutação, e que as estruturas sociais são criadas por nós, seres humanos, e por nós
podem ser mudadas. A coralidade possível que proponho é uma coralidade ética, que se
transforma em poética e só então pode vir a ser estética.
125

5 CORALIDADE COMO PRINCÍPIO DE CRIAÇÃO

Você está mexendo com gerações.


Marcelo Lazzaratto177

Para que a concretude do trabalho cênico possa nos revelar as perguntas que subjazem
a ela, abordarei neste capítulo trabalhos de dois criadores teatrais brasileiros, Rogério Tarifa e
a Cia Elevador de Teatro Panorâmico — especialmente na figura de seu diretor, Marcelo
Lazzaratto. O trabalho de Tarifa será trazido em busca da coralidade nas estruturas da
encenação, o que se dá a ver aos espectadores. Da Cia Elevador, interessa-me sobretudo seu
trabalho com o Campo de Visão, um método de improvisação teatral coral em que poderemos
observar a potência da coralidade como princípio de criação de material para a cena, no
trabalho de atores e atrizes e seu diálogo com o encenador. É uma prática simultaneamente de
treinamento e criação — ou seja, uma poética — coral. Veremos ainda a transformação da
lógica improvisacional coral em linguagem cênica, na encenação de Ifigênia, espetáculo
estreado pela Cia Elevador em 2012.
Não pretendo, com os casos apresentados, encontrar uma confirmação das exposições
precedentes. Embora tenha escolhido esses trabalhos justamente por seus pontos de contato
com o pensamento já exposto, aqui a riqueza desses trabalhos consiste no fato de que podem
nos oferecer percepções a respeito de manifestações concretas do princípio da coralidade, ou
seja, interessam em suas particularidades, vistos, antes de tudo, pelas lentes que eles mesmos
oferecem. Portanto, não vou me focar a cada detalhe em dizer por que tal ou tal aspecto pode
ser considerado como manifestação do princípio da coralidade. O conjunto dos trabalhos está
fundado na lógica coral e esse dado se revelará evidente à medida que os acompanharmos.

177
Em entrevista no dia 11 dez 2019, Lazzaratto me disse isso ao saber que eu estava estudando também o
trabalho de Rogério Tarifa, que foi seu aluno, e sendo orientado por Edélcio Mostaço, que foi seu professor.
126

5.1 Coralidade na composição do espetáculo — Rogério Tarifa: música e política

Tem que chorar mesmo, chorar para agir.


Rogério Tarifa

As obras de Rogério Tarifa às quais assisti têm três características marcantes: são
extremamente corais, estruturam-se sobre a linguagem musical e mobilizam questões
prementes. E talvez sejam mesmo estruturadas como uma grande música coral porque
mobilizam questões prementes. Questões políticas. Questões existenciais. Seu trabalho se
desenvolve no lugar onde a criação artística busca, se não agir efetivamente sobre a realidade,
o que é de alguma maneira impossível para uma obra artística, pelo menos possibilitar o
desenvolvimento de um impulso, uma vontade de mudança ou ao menos uma indignação por
parte dos espectadores e, antes de tudo, dos atuantes. Não posso fugir aqui da imagem de
Rogério dizendo, entre lágrimas, a frase que abre este subcapítulo: “Tem que chorar mesmo,
chorar para agir” (CENA INQUIETA, 2019).

Rogério Tarifa é ator, encenador e dramaturgo, integrante dos coletivos Cia São Jorge
de Variedades, Cia do Tijolo e Teatro do Osso. Formou-se ator na Escola de Arte Dramática
(EAD) da Universidade de São Paulo, em 2000. A partir de sua entrada na Cia São Jorge,
também em 2000, Rogério foi se formando musicalmente. Nessa época, ele exercia sobretudo
a função de ator. Depois, começou a trabalhar como encenador com a Cia do Tijolo, formada
basicamente por atores e atrizes que também são cantores e cantoras. Nesse grupo, encena
Concerto de Ispinho e Fulô, um espetáculo musical sobre a vida do poeta Patativa do Assaré,
estreado em 2009, e Cantata para um Bastidor de Utopias, a partir de Mariana Pineda de
Federico García Lorca, estreado em 2013. A criação junto à Cia do Tijolo foi formando a
linguagem de seu trabalho como encenador, especialmente o status preponderante da música
como dramaturgia em seus espetáculos.
Na Cia do Tijolo, Rogério inicia sua parceria artística com Jonathan Silva (compositor
e musicista) e William Guedes (maestro e musicista). Essa necessária parceria perdura por
vários trabalhos. Necessária seguindo as palavras de Tarifa que, sobre a importância da
música em suas encenações, diz:

Isso é outra característica do meu trabalho. Eu tenho praticamente dirigido musicais.


Não esse musical comercial, superprodução, mas um pouco bebendo nessa fonte aí
127

da década de 60, 70, os musicais do Arena, toda essa formação musical e política
que fez história no nosso país. (TARIFA, entrevista de 12 dez. 2019).178

Musical e política, lembra Tarifa. E a política, em sentido amplo, é outro grande tema
de seus espetáculos, que tratam de temáticas sociais pulsantes. Os dois espetáculos que serão
evocados aqui são chamados pelo diretor de ato-espetáculo. Sobre essa noção recorrente em
seu trabalho, o encenador diz:

essa coisa, que eu acho uma das coisas mais graves atuais, que é essa
mercantilização da arte, transformar a arte em produto e na mão da classe média e
classe alta que sabe que só [ela] pode fazer aquilo. E é por isso que eu tenho
chamado há muitos, muitos anos, desde a Cantata, os espetáculos que eu dirijo eu
tenho chamado de ato-espetáculo. Eu não tenho falado que é uma peça de teatro.
Então eu falo ato-espetáculo musical Canto para rinocerontes e homens, ato-
espetáculo musical etc., no sentido de driblar um pouco. Então, assim: não, não é
teatro. Não é teatro, mas é para chegar na... buscar uma essência do teatro. Porque
quando você fala “teatro”, tem muita representação conservadora, muita
representação de um teatro que representa essa origem europeia do teatro, origem de
um lugar que às vezes distancia também das relações das pessoas. Então eu chamo
de ato-espetáculo nesse sentido de brincar com uma outra possibilidade. Não é que o
que tá sendo feito não é teatro, mas é a busca de outras facetas, de outros lugares
mais essenciais, no meu modo de ver, né, e das pessoas com quem eu aprendi isso
[...], de se chegar em outros lugares relacionados à arte para que não seja esse lugar
de uma pessoa faz, a outra assiste, ou esse produto teatro, essas coisas todas.
(TARIFA, entrevista de 12 dez. 2019).

O ato-espetáculo busca, portanto, fugir da mercantilização da arte e do domínio dos


privilegiados sobre a produção artística e perceber o evento teatral como uma construção
coletiva de todos os que estão presentes nesse evento — em relação. Essa camada relacional
do teatro é uma das preocupações de Tarifa. Percebo, tanto em seu discurso quanto nos
espetáculos aos quais assisti, um cuidado que chega à ênfase, seja com o espectador como
destinatário do discurso cênico, seja com o espectador como coautor da cena. Como exemplo
dessa preocupação, podemos apontar a necessidade que o encenador afirma de entender e
respeitar o estado geral tanto do público quanto do elenco em uma apresentação. Estamos
afinal no terreno do encontro e o espetáculo não pode acontecer da mesma maneira todos os
dias. Existem adaptações que devem ser feitas em função do público, do elenco, ou dos dois.
E sabemos que esse estado geral é composto de numerosos estados individuais; o espetáculo é
realizado por um grupo de pessoas que não entra em contato com uma massa, mas com outro

178
Apresentarei as referências de entrevistas e aulas dessa maneira, e não no formato preconizado pela ABNT,
porque entendo que a leitura se torna mais fluida quando os dados da citação estão próximos ao texto e não
em notas de rodapé.
128

grupo de pessoas — que não abandonam suas individualidades ao entrar na sala de


espetáculos.
Outro ponto que me parece ser uma preocupação de Tarifa é o reconhecimento dos
mestres de teatro locais, que conduzem projetos e produzem eventos artísticos ligados a seu
entorno. Ele comenta que as pessoas estão muito sem exemplo. Não se celebram os grandes
nomes do teatro na comunidade, integrado à comunidade, ou da luta política. Nadando contra
aquilo que detecta como a corrente, Tarifa tem por hábito reconhecer e mencionar
frequentemente certos nomes do teatro, especialmente os que servem de mestres para ele,
como é o caso de Ilo Krugli, diretor do grupo Ventoforte, falecido em 2019. Essa preocupação
com o reconhecimento dos mestres expressa mais uma das características comunitárias do
trabalho de Tarifa, já que a atitude de reconhecimento e estudo da obra dos mestres e
antecessores é um mecanismo agregador, seja formando ‘escolas’ mais fechadas que seguem
preceitos ou modos de fazer, seja gerando ‘famílias’ de artistas que reconhecem suas
semelhanças e sua ascendência comum em tais ou tais figuras, embora não sigam os mesmos
preceitos na criação ou não compartilhem muitas características de linguagem.
Apesar de apresentar aqui algumas informações sobre a construção dos trabalhos,
procurarei me deter sobre sua forma cênica, sua estética, que é o aspecto principal a ser
analisado nas obras de Tarifa. O modo de trabalho será examinado com mais detalhes no
trabalho da Cia Elevador a respeito do Campo de Visão.

5.1.1 Canto para Rinocerontes e Homens

Assisti a Canto para Rinocerontes e Homens — ato-espetáculo composto a partir de O


Rinoceronte, de Eugène Ionesco — no início de fevereiro de 2020, buscando conhecer melhor
o trabalho de Rogério Tarifa para falar sobre Inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos, ao
qual só teria acesso em registros audiovisuais e que era meu primeiro interesse para este
capítulo. A experiência assistindo ao Canto, como o chama Tarifa179, exerceu sobre mim um
impacto que não poderia ignorar. Não só pela força de sua construção, o poder da música e
das cenas, ou pelos discursos afiados feitos pelos atores, mas porque ali estava um espetáculo
verdadeiramente coral: eu quisera assisti-lo para entender o contexto do meu objeto de
pesquisa e acabei encontrando outro objeto igualmente potente. Farei, portanto, algumas

179
Tarifa referiu-se numerosas vezes a Canto para rinocerontes e homens como ‘Canto’ e a Inútil canto e inútil
pranto pelos anjos caídos como ‘Inútil canto’. Utilizarei essa convenção por ter um ar familiar e poupar o
texto de abreviaturas e reticências.
129

considerações sobre esse ato-espetáculo tomando como lente de análise os mecanismos de


coralidade.
O Canto inicia constituindo a comunidade dos atores como grupo em diálogo com os
espectadores. Eles nos perguntam: “o que é teatro?” E prosseguem: “Se não adentrarmos o
espaço vazio, haverá teatro?” Estamos em uma arena, literal e figurada. No espaço circular,
propõe-se um debate, colocam-se questões. O elenco veste um figurino colado ao corpo, cada
um com detalhes diferentes, mas com estrutura e cor semelhantes. Reconhecemos esse
conjunto como o sujeito que se dirige a nós. Cada um dos atores e atrizes aparece como
igualmente responsável pelas palavras que ouvimos. Bérenger, o herói de Ionesco, o último
homem, é apresentado como um outro desde o início da peça. Vem, nu, de longe, de sua
caminhada pelo mundo. Junta-se aos outros quando o debate já está iniciado, a cena está em
curso e a comunidade do elenco já se instaurou.

Figura 3 – O coro em sua arquibancada antes da entrada de Bérenger.

Fonte: Frame retirado de CANTO..., 2016.

Quando é vestido, suas roupas não se parecem com as de seus companheiros. Bérenger
entra no jogo, mas a estrutura da encenação parece querer nos dizer que ele não pertence a
esse jogo.180 No primeiro ato ele é a única figura que toca um instrumento sobre a arena: um

180
Poderíamos nos perguntar se essa diferenciação, sutil mas eloquente, entre Bérenger e as outras figuras não
nos oferece um panorama um tanto determinista, em que aqueles que se libertam do embrutecimento estão
130

violão. E canta, tocando seu violão. Ainda no primeiro ato, nas duas aparições dos
rinocerontes que são narradas pelas personagens em cena, Bérenger rege o coro que canta o
acontecimento. Por essas ações, acaba se aparentando àqueles que estão fora do jogo da
atuação, aos músicos. E quando se canta em coro, e isso acontece muitas vezes, o local
preferido da encenação é uma arquibancada em que os membros do coro se reúnem para
cantar. Desnecessário dizer que Bérenger não forma os coros da arquibancada; poucas vezes a
utiliza em cena, inclusive.

Figura 4 – Bérenger, Jean e o coro ao fundo.

Fonte: Frame retirado de CANTO..., 2016.

Percebo que, ao primeiro olhar, a comunidade cênica do Canto se funda em pelo


menos duas instâncias: 1) a proposição do debate, que revela o endereçamento do discurso aos
espectadores — que são inclusive convidados a responder algumas perguntas no curso do
evento cênico — e apresenta o grupo dos atores como a comunidade propositiva, comunidade
do discurso, ou simplesmente cênica, que se dirige à comunidade ampla de espectadores para
colocar o debate em movimento por meio da partilha da cena; 2) os mecanismos cênicos que

destinados a isso e os outros não podem fazer nada a não ser se deixar levar pela corrente. Essa certamente
não foi a intenção da equipe de criação ao demarcar a diferença de Bérenger desde o início do espetáculo, a
caracterização soando mais como um prenúncio da dramaturgia, mas me parece uma preocupação legítima
que, quando esse tipo de discussão está em jogo, os criadores evitem sugerir uma diferença de natureza entre
as figuras, como se Bérenger fosse livre do pecado original caracterizado pela tendência a embrutecer.
131

reafirmam esse grupo como grupo, sendo os mais importantes o canto coral e o trânsito dos
atores pelas estruturas dramatúrgicas. Ora interpretam as personagens, ora falam em nome
próprio, ora cumprem funções de contrarregragem, o que, especialmente numa arena, os
revela como construtores do espetáculo. O jogo é sustentado pelo conjunto, que
ocasionalmente se mostra com muita potência.
A outra característica formal que sustenta a coralidade no espetáculo é a apresentação
sucessiva das singularidades. Talvez por ter sido criado em um curso de teatro, a estrutura do
Canto conta com vários solos, distribuídos após o primeiro ato do ato-espetáculo. Atrizes e
atores têm a oportunidade de discutir questões que lhes tocam, e que, na maioria das cenas,
estão ligadas a algum aspecto da personagem de O Rinoceronte que interpretam.
O primeiro desses solos é realizado por Viviane Almeida, que interpreta a Senhora
Boeuf, esposa do senhor Boeuf, homem que sofre a primeira transformação narrada na obra
de Ionesco. Após a saída das personagens do escritório, a atriz, que permanece em cena, troca
de figurino e inicia sua história. Cada nova informação de sua narração é repetida muitas
vezes e os detalhes variam a cada nova repetição. No início, essa narração desencontrada me
gerou certa confusão, depois pensei que, pela infinidade de diferenças e possibilidades, as
personagens de sua história poderiam ser quase qualquer mulher, quase qualquer menino.
Resumidamente, a trama é a seguinte: caminhando pela rua, a mulher se encontra com um
jovem que lhe pede dinheiro e, diante de uma negativa, enfia um canivete em seu umbigo.
Afastando-se do local, a mulher passa por uma viatura policial e, indagada se aconteceu algo,
relata o que acabara de vivenciar. Os policiais a fazem entrar na viatura, andam pela cidade e
terminam por capturar um rapaz (seu relato não nos permite ter certeza de que é o mesmo)
que ela aponta como autor da agressão. Ela sentada no banco de trás e ele preso na gaiola,
rinoceronte na jaula, os dois vão até a delegacia. A mulher relata que viu os policiais
entrarem, um a um, na sala em que o menino estava. Uma fila de rinocerontes com vontade de
atacar. Ela conclui: eu acho que nesse dia esse menino morreu. Se ele morreu, fui eu que
matei? Prossegue listando assassinatos perpetrados pela polícia paulista. Fui eu que matei?
Quem foi que matou? Somos questionados a respeito de nossa responsabilidade como seres
sociais frente às atrocidades cometidas pelos representantes do Estado, pela “baixa polícia”
para falar com Rancière.
Somos confrontados a duas faces da barbárie: o indivíduo que, formado por um meio
violento, agride e mata e a polícia que, sob o pretexto de manter a ordem e garantir a
segurança dos demais cidadãos, agride e mata da mesma forma, cruelmente, sem nem mesmo
132

se preocupar com a exatidão das acusações — o que, no pensamento de alguns membros da


sociedade, poderia amenizar ou justificar o assassinato do criminoso. O fato é que a barbárie
existe e aqueles que são responsáveis por garantir a segurança participam das engrenagens da
morte. O ato-espetáculo não fecha a questão em uma resposta fácil. A escolha é fazer ecoar a
pergunta. Frente a esse estado de coisas, qual é minha responsabilidade? Há sangue em
minhas mãos? Fui eu que matei? Quem foi que matou?

Figura 5 – Fui eu que matei?

Fonte: Frame retirado de CANTO..., 2016.

O ator que faz o senhor Pappillon181, chefe do escritório que pratica yoga e meditação,
nos apresenta um coach de empreendedorismo, palestrante motivacional com tendências ao
misticismo new age. Sua ação nos transforma em espectadores de sua palestra. A partir do
livro O rinoceronte bem-sucedido, de Scott Alexander, ele nos convoca a nos tornarmos
rinocerontes e irmos em busca do “animal chamado sucesso”, que se esconde no fundo da
floresta. Para isso, todos os esforços são necessários. Precisamos, como o rinoceronte, ter a
pele grossa e ir ao ataque. Nada deve nos deter. Apenas aqueles que olham na mesma direção
devem gozar de nossa companhia ou receber nossa atenção.

181
A personagem foi elaborada por Guilherme Carrasco durante o processo de montagem e é ele que pode ser
assistido no vídeo e visto na fotografia que ilustra este texto. Nas apresentações às quais assisti no teatro João
Caetano, esse papel era feito por João Victor Toledo.
133

Figura 6 – Solo do coach.

Fonte: Acervo do Teatro do Osso. Fotografia de Leekyung Kim, 2016.

Jean — e não necessariamente o ator que faz Jean, porque aqui não há exatamente
uma quebra na cena — nos apresenta um corpo proletário que sofre sua rinocerontização
devido à carga excessiva de trabalho e as exigências a que é submetido. Seu solo, assim como
o do senhor Pappillon, se coaduna tão perfeitamente com sua personagem que podemos
entendê-lo como uma continuação do que já vinha ocorrendo nas cenas de O Rinoceronte,
mais do que um corte para tratar de outro tema. Este trabalhador que temos a nossa frente está
esgotado, exaurido. Maltratado pelo sistema econômico, pelo trabalho que suga suas forças, o
proletário não tem tempo de pensar. Dar conta de suas necessidades e seguir a manada é
imperativo. Sua cabeça dói, sua raiva aumenta.
134

Figura 7 – Solo de um trabalhador que precisa respirar

Fonte: Acervo do Teatro do Osso. Fotografia de Leekyung Kim, 2016.

O ator que faz Dudard182 nos apresenta um solo que contempla o preconceito contra a
população LGBTQ+, iniciando por um compilado de falas de personalidades, na qual se
destaca uma fala famosa do atual presidente do Brasil, que o ator diz despindo-se, calçando
um par de sapatos de salto alto e derramando sobre seu corpo um pigmento vermelho, que nos
lembra sangue. “Esse é o solo de um coração ferido”, anuncia no início da cena. O ator canta
a música Não recomendado, de Caio Prado, que alude à discriminação e exclusão que essa
parcela da população enfrenta.

A placa de censura no meu rosto diz:


Não recomendado à sociedade
A tarja de conforto no meu corpo diz:
Não recomendado à sociedade

Vemos seu corpo ensanguentado. Lembro das lâmpadas, dos assassinatos de homens
gays, mulheres lésbicas, pessoas trans, travestis, dos estupros corretivos, das violências

182
Quando assisti, estava em cena Murillo Basso, ator da montagem original, embora João Victor Toledo
também faça esse papel em algumas apresentações.
135

cometidas em clínicas de reabilitação em que pessoas LGBTQ+ são internadas para mudar
sua orientação sexual ou identidade de gênero. O canto soa, o vermelho brilha.

Figura 8 – Solo de um coração ferido.

Fonte: Acervo do Teatro do Osso. Fotografia de Leekyung Kim, 2016.

A atriz que faz Daisy183 apresenta seu solo de última mulher do mundo discutindo
justamente sua condição de mulher. Nas sessões às quais assisti, a atriz nos lembrava que a
última pessoa do mundo, ali naquela peça, não seria uma mulher. Expõe então sua saga ao ser
moldada pela indústria da beleza, se tornando algo não humano, uma boneca de plástico. Ela
arranca de sua pele camadas de um material incolor e brilhante, que nos lembra algo como
plástico filme. Vemos sua aproximação a um produto, embalado nos padrões de beleza
preconizados pelo mercado. O que mais vocês querem de mim? Ela questiona antes de virar
rinoceronte.

183
Maria Loverra faz permanentemente, desde 2019, o papel elaborado por Luisa Valente no processo de
montagem.
136

Figura 9 – Solo da última mulher do mundo

Fonte: Frame retirado de CANTO..., 2016.

A senhora Botard é apresentada como ex-professora na dramaturgia de Ionesco.184 A


peça lhe apresenta do mesmo modo, mas acrescenta que deixou de trabalhar para a Secretaria
de Educação da cidade de São Paulo após ter sido agredida por um aluno. A atriz que faz essa
personagem nos oferece um solo que versa sobre a situação da educação em nosso país.
Escolas que parecem prisões, “grades” de horários e conteúdos que se convertem em
“disciplinas” em um processo ritmado por séries são, em sua narração, os ingredientes para a
formação de rinocerontes urbanos. Uma espécie de areia, retirada de seus bolsos, a suja ao
longo da cena. Ela vai se tornando uma peça empoeirada. Sua fala começa a galopar num
ritmo desenfreado quando, relembrando os sintomas descritos pela senhora Botard antes de
virar rinoceronte, começa a recitar a descrição da peste feita por Artaud em O teatro e a peste,
emendando na letra de Luz vermelha, de Elza Soares. A professora enlouquece, tomada pela
peste que emana da realidade escolar.

184
Na dramaturgia, Botard é um papel masculino.
137

Figura 10 – Eu acordei e era hoje

Fonte: Acervo do Teatro do Osso. Fotografia de Leekyung Kim, 2016.

Da série de solos, do olhar focalizado em cada uma das figuras cênicas, que tem
espaço para desenvolver seu mundo, suas questões, nasce outro efeito de coralidade, diferente
do primeiro: a fundação de uma comunidade pela sucessão de figuras individuais e não mais
pela coexistência. Esse procedimento se aproxima, por exemplo, de focalizações operadas
pela literatura e pelo cinema, linguagens em que a simultaneidade de figuras e narrativas é
limitada em relação às possibilidades das artes cênicas, que podem utilizar a
tridimensionalidade do espaço.185 O que antes era um coro aparece também como conjunto de
solistas, o que não diminui a força coral — coletiva, grupal — de sua apresentação. Pelo
contrário. Atribuindo a mesma importância, o mesmo espaço no tecido da cena, a cada um
dos atores, o espectador tende a lê-los como equivalentes. Cria-se aí uma comunidade pelo
valor. As figuras são — para falar com Rancière — iguais.
Mas esse tipo de focalização individual em sucessão não gera necessariamente uma
soma coral. Se não houver algum tipo de ligação entre as figuras focalizadas, mesmo que
extradiegética, o mundo construído pode resultar quebrado, dividido, até mesmo sem

185
Ver páginas 93-97.
138

possibilidade de comunicação, já que o foco se move de uma individualidade à outra. O que


faz com que esse procedimento gere uma expressão de coralidade no espetáculo analisado é
justamente o fato de já termos visto a comunidade constituída anteriormente. Com os solos,
mergulhamos mais fundo no mundo de cada figura, ou de cada performer.
Passamos nesse momento da exposição da pluralidade à exposição da singularidade,
mas o dado da pluralidade, fundamental na primeira parte do espetáculo, não pode ser
apagado. A revelação de cada singularidade tem como plano de fundo a pluralidade já
exposta. Se a ordem dos fatores fosse alterada, apresentando primeiro os mundos individuais e
depois o coletivo, haveria a possibilidade de o produto resultar diferente, como um todo
construído de partes fechadas, angulosas, que não se encaixam bem umas nas outras. Para a
construção da comunidade cênica, são determinantes a ordem e a condução das exposições de
indivíduos e grupo.
Os solos, característica importante desse ato-espetáculo, iluminam aspectos do
processo de embrutecimento em nossa sociedade. Se Ionesco se referia ao nazismo e aos
regimes totalitários e belicosos que surgiam em sua época ao escrever O Rinoceronte, quais
são os processos de embrutecimento que vemos hoje? A violência policial que combate a
violência urbana e apenas engrossa o caldo de ódio e revolta; a exaustão dos trabalhadores
que explodem em crises de raiva, burnouts, culto de líderes autoproclamados salvadores; a
exploração de si mesmo e, com sucesso, dos outros realizada por empreendedores ou
aspirantes que perpetuam a ideologia do sacrifício de si ao trabalho; o assassinato e exclusão
da população LGBTQ+; a exploração perpétua das mulheres pela indústria da beleza, pela
dupla jornada, pelo apagamento histórico; a automatização dos professores que de sonhadores
de uma educação transformadora passam a operadores do embrutecimento, ressentidos e
amedrontados; todas são faces do grande processo de embrutecimento que transforma, pouco
a pouco, pessoas em rinocerontes. Por meio da particularização desse processo geral, a
pluralidade se torna concreta. Apresentados a algumas possibilidades desse processo,
familiarizados com a diversidade de formas sob as quais o embrutecimento se apresenta,
estamos em condições de reconhecê-lo em outras ocasiões. Os solos iluminam a dramaturgia
preexistente e multiplicam suas possibilidades de leitura.
Para convidar novamente o pensamento de Rancière à discussão, podemos propor que
O Rinoceronte, desde o texto de Ionesco, nos convida à política pela exposição de seu
inverso. O bando de rinocerontes é o triunfo da polícia. Mas não o triunfo final. Bérenger
ainda existe. Ainda é homem. E não desistirá de sê-lo. Se sua rebeldia não é o suficiente para
139

promover o acontecimento político, pelo menos nos oferece a possibilidade de que um dia ele
venha a acontecer. A existência de um único homem não é uma prova, mas uma promessa de
que nem tudo está perdido. Acreditar nela ou não depende de cada um, e lutar contra a
pandemia de embrutecimento passará necessariamente por curar alguns daqueles que já foram
embrutecidos. Só assim haverá braços humanos para fazer frente à força dos rinocerontes. É
uma utopia, que está no horizonte para nos fazer caminhar, como lembra Eduardo Galeano,
citando Fernando Birri, em vídeo projetado próximo ao fim do ato-espetáculo.
Fim no qual Bérenger, nosso último homem, sai da casa de espetáculos, nu, e caminha
sozinho pela rua, em direção ao mundo. Quando os espectadores saímos do local para
acompanhá-lo, já está em curso uma música, cantada em coro, que, pelas sucessivas
repetições, podemos acompanhar, tornando-se uma prece coletiva.

Canto para não ser rinoceronte.


Composição de Gabriela Gonçalves e Jonathan Silva.

Às vezes eu falo sozinho


Misturo cachaça com vinho
Queria sair pelado na rua
Eu queria fazer batucada na lua
Escrever um poema na linha do horizonte
Eu só não quero virar rinoceronte,
Eu só não quero virar rinoceronte

Caixeiras do Divino lá do Maranhão


Carlos Drummond de Andrade, Itamar Assumpção.
Maurício Pereira, eu peço a você:
Rinoceronte eu não quero ser

Manoel de Barros, Fernando Pessoa.


Dona Adélia Prado, te peço numa boa
Plínio Marcos, Tom Zé, Juçara Marçal
Ser rinoceronte não vai ser legal
Ser rinoceronte não vai ser legal

Lavradores, professores, cortadores de cana.


Zito, Madalena, Seu Geraldo, Silvana
Quero matar minha sede na água da fonte
Eu só não quero virar rinoceronte
Eu só não quero virar rinoceronte

Sobre os espectadores do Canto, Tarifa menciona a história de Silvio Lima, um


funcionário público que assistiu ao trabalho cerca de 15 vezes:

Ele fala que ele vai assistir de novo para refazer o pacto, para que ele não se torne
um rinoceronte, então para que ele seja lembrado de novo. Quando ele falou isso eu
achei muito bonito porque isso é uma das coisas que mostra que esse tipo de
140

experiência tá saindo um pouco do ‘produto teatro’. Porque quando é um produto,


você está ali, você assistiu aquilo, aquilo já tá visto, já se encerrou. Mas quando ele
diz que quer retornar ali para refazer um pacto de alguma coisa, é uma origem do
teatro, a discussão pública, de retornar a uma outra coisa, de que não tem problema,
não existe problema em assistir de novo. Não é porque eu assisti de novo que eu vou
perder as experiências. (TARIFA, entrevista de 12 dez. 2019).

Vemos que de alguma maneira Tarifa atinge seu objetivo nesse caso. Renovar o pacto
tira o espetáculo da esfera do ‘produto cultural’ e situa-o no reino dos ritos, das discussões
públicas, das profissões de fé: um ato-espetáculo. O pacto de não se embrutecer precisa ser
renovado periodicamente. Silvio encontrou o lugar onde fazê-lo na plateia do Canto.
Sobre a dimensão coletiva do trabalho, Luísa Valente nos fornece pistas para entender
a relação promovida no grupo pela visão de Tarifa:

E quando o Rogério veio, ele trouxe esse pensamento de grupo pra gente desde o
primeiro momento, e isso até me arrepia, assim, porque foi uma coisa que eu nunca
tinha vivido antes [...] de teatro de grupo mesmo. Então eu acho que trabalhar com o
Rogério é entender esse lugar do trabalho coletivo, da doação, da entrega para o
coletivo, muito, assim. A ponto de isso ser a coisa mais central da sua vida, não vai
ser outra coisa.
[...]
Tem esse lugar que o Rogério, ele não... é muito bom isso porque ele não chega com
o ensaio preparado. As primeiras semanas, a gente sofreu muito porque ele sentava e
falava: “E aí, o que vocês trouxeram? O que vocês trouxeram?” e a gente não tava
muito acostumado com esse lugar. (CENA INQUIETA, 2020)

Parece-me que a atitude descrita por Valente sobre a falta de proposição de um roteiro
prévio dos ensaios por parte de Tarifa participa do pensamento do trabalho coletivo,
especialmente do entendimento que cada artista é responsável pelo andamento do trabalho. O
que poderia parecer falta de planejamento se revela como a busca, ou melhor, a exigência de
autonomia do ator-criador, da atriz-criadora, por parte do encenador. A pergunta “o que vocês
trouxeram?”, feita ao grupo dos atores pelo encenador, poderia modificar-se e, em vez de
apresentar uma primeira pessoa singular perguntando a uma segunda pessoa plural, tornar-se a
pergunta de uma primeira pessoa plural a cada uma das segundas pessoas singulares: “o que
você tem para nós?”, agora indicando que o grupo de criadores quer saber de cada um o que
sua dedicação e trabalho prepararam para aquele encontro. Cada um contribui para o trabalho
coletivo com aquilo que nasce de sua singularidade. Poderíamos ver uma colcha de retalhos,
mas vemos momentos de solidão em cena, momentos de revelação de uma singularidade, que
ocorrem a partir da base comum.
141

5.1.2 Inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos: uma estrutura coral

Inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos é o espetáculo de terceiro ano de curso
da 66ª turma da Escola de Arte Dramática (EAD) da Universidade de São Paulo, dirigida por
Rogério Tarifa em 2017, no ano seguinte a Canto para rinocerontes e homens. O espetáculo é
construído a partir de uma adaptação musical do conto homônimo de Plínio Marcos, conto
inspirado em uma rebelião ocorrida em 1977 em um presídio de Osasco/SP, na qual 25
detentos morreram queimados dentro da cela.
Não assisti ao espetáculo ao vivo, então falarei sobre ele a partir da gravação realizada
pela Bruta Flor Filmes na temporada de estreia, que pode ser assistida no site Vimeo.186
Sobre a construção do espetáculo, Tarifa (entrevista de 12 dez. 2019) diz:

a primeira coisa que eu fiz, conhecendo o William e o Jonathan, eu entreguei o conto


inteiro pro Jonathan, que é um conto de umas 10, 15 páginas, e falei assim: “Pode
musicar esse texto inteiro, como primeira coisa”. E aí ele pegou o texto, pegou todo
o coração do texto, é praticamente o texto na íntegra, só mudou algumas coisas
relacionadas à métrica, e ele fez uma música inteira do conto. Então a gente tem o
conto que daria, se fosse montar ele inteiro, sei lá, quando a gente faz só o conto
cantado dá 40 minutos. Então a gente tem uma obra que é o conto do Plínio Marcos
transformado em música que é cantado pelos atores e as atrizes durante 40 minutos,
sentados praticamente. É um canto mesmo. Canto coral.

E esse canto coral será o início do espetáculo. Aliás, o início vem antes, com os atores
e atrizes em pé, em formato de semicírculo, à frente das cadeiras nas quais sentar-se-ão para
iniciar o canto.

186
Disponível em: https://vimeo.com/248964343
142

Figura 11 – Imagem inicial do Inútil canto

Fonte: Frame retirado de INÚTIL CANTO..., 2017.

Frontalidade coral que recebe o espectador, mas em alguns momentos ao longo dessa
recepção toma contornos de desafio. Uma atriz toma a palavra:

[Raquel Parras] Senhoras e senhores, boa noite! [Boa noite, responde a plateia.]
Bem-vindos e bem-vindas ao nosso inútil canto, ao nosso inútil pranto pelos anjos
caídos. Nosso coro-canto sobre o encarceramento no Brasil e suas profundas
conexões com a sociedade e com nossas vidas. Plínio Marcos, cujo coro de Dioniso
teremos o prazer de malhar nesse nosso ato, e por favor, pra esse grande dramaturgo
e artista brasileiro, uma salva de palmas. [aplausos] Plinio fazia teatro a favor do
povo, pra incomodar os que estão sossegados, e já no título nos crava uma barra de
ferro no peito, expondo importantes feridas abertas que sangram cotidianamente,
formando grandes manchas roxas em nossa sociedade atual.
[Lilian Regina] Ferida número um: será inútil o canto dos artistas? Será inútil o
canto dos excluídos? Será inútil o canto dos cidadãos? Quando iremos cantar e nos
derramar em prantos pelas nossas injustiças? Quando iremos entender, estudar,
concretizar em nossos poros conceitos tão caros como igualdade, liberdade, justiça e
democracia?
[Evandro Cavalcante] Ferida dois: Plínio coloca os encarcerados como anjos caídos.
Em pleno 2017, com a onda crescente do pensamento conservador, numa sociedade
em que grande parte acredita que bandido bom é bandido morto, temos também a
onda crescente do encarceramento em massa no Brasil. Ferida três: Plínio coloca
todos nós como cidadãos contribuintes, nos obrigando a refletir sobre qual parte nos
cabe em tudo isso.
[André Cézar Mendes] Inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos é um conto
escrito em 1977, sobre a morte de detentos que se rebelaram num presidio em
Osasco. Além desse conto-denúncia, traremos estudos sobre o encarceramento no
país e cenas de personagens de duas peças do autor, Barrela, de 1959, e Mancha
Roxa, de 1989. Na nossa versão do Inútil canto, o texto foi inteiramente
transformado em música, e será cantado em coro.
143

[Romário Oliveira] Cantado em coro aqui dentro desse solo sagrado de resistência,
esse espaço público que deve ser preservado sempre, que é a Escola de Arte
Dramática da Universidade de São Paulo.
[Binho Cidral] Pois se cada hora tem com sua morte,
e se o tempo é um covil de ladrões,
os ares já não são bons ares
e a vida não é nada mais do que um alvo móvel.
[André Cezar Mendes] Você perguntará por que cantamos.
[Binho Cidral] Se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha
[Luiz Felipe Bianchini] você perguntará por que cantamos
[Binho Cidral] se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram as árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro
[Fernanda Brandão] você perguntará por que cantamos
[Camila Cohen] cantamos porque o rio esta soando
e quando soa o rio / soa o rio
[Maria Eduarda Machado]cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino
[Alessandro Marba] cantamos pela infância e porque tudo
e porque algum futuro e porque o povo
[Inayara Iná Samuel] cantamos porque os sobreviventes
e nossos mortos querem que cantemos
[Mirela Façanha] cantamos porque o grito só não basta
e já não basta o pranto nem a raiva
[Walmick de Holanda187] cantamos porque cremos nessa gente
e porque venceremos a derrota
[Hélio Toste] cantamos porque o sol nos reconhece
e porque o campo cheira a primavera
[Darília Lilbé] e porque nesse talo e lá no fruto
cada pergunta tem a sua resposta
[Luíza Romão] cantamos porque chove sobre os sulcos
e somos militantes desta vida
[Danilo Martim188] Cantamos porque não podemos nem queremos
deixar que a canção se torne cinzas189
[Júlio Silvério] Aqui começa o inútil canto dos enviados da miséria
Dos que com suas cores pintam os tormentos dos pálidos cidadãos contribuintes.
[Sentam-se. Rogério aparece no lado direito do palco] Senhoras e senhores, Inútil
canto e inútil pranto pelos anjos caídos. Movimento 1. (INÚTIL CANTO..., 2017,
11’’ – 5’19’’]

Assim, no início, somos apresentados à lógica de partilha das vozes que estruturará
toda a cena. O ato-espetáculo é dividido em cinco movimentos, de acordo com os temas
explorados pelos cantos. O primeiro movimento, que, ao contrário dos outros, não tem um
título anunciado, mescla quase todo o conto de Plínio Marcos transformado em canto a outros
cantos e cenas que exploram a temática do encarceramento.

187
Nome artístico utilizado atualmente pelo ator. Na ficha técnica está creditado como Walmick Campos.
188
Nome artístico utilizado atualmente pelo ator. Na ficha técnica está creditado como Danilo Martins.
189
A partir da primeira fala de Binho Cidral, inicia-se o poema “Por que cantamos?” de Mario Benedetti, com
ligeiras adaptações.
144

Figura 12 - Início do canto

Fonte: Frame retirado de INÚTIL CANTO..., 2017.

Figura 13 – O palco visto de cima.

Fonte: Frame retirado de INÚTIL CANTO..., 2017.

O canto inicia:

Eram vinte e cinco homens


145

eram vinte e cinco homens


esmagados, empilhados, espremidos
espremidos, empilhados, esmagados
eram vinte e cinco homens.
[Júlio Silvério] Num cubículo onde mal caberiam oito pessoas
Eram vinte e cinco homens
Entre uma porta de ferro e paredes úmidas e frias
e isso não é poesia.
Eram vinte e cinco homens
Esmagados de corpo e alma
Num cubículo onde mal caberiam oito pessoas
Cabeça, tronco cotovelo
Desesperança, tédio, desespero
Cabeça, tronco cotovelo
Desesperança, tédio, desespero
E o tenebroso ócio (INÚTIL CANTO, 2017, 5min22s – 6min21s)

Como nesse trecho, em que o canto do coro é apresentado em itálico e as inserções


recitadas de Júlio Silvério são apresentadas em letra comum, a sequência do canto alterna
trechos corais com as inserções de diferentes solistas que recitam ou cantam, recebendo
destaque da iluminação, enquanto o grupo fica na penumbra.

Figura 14 – Júlio Silvério em destaque

Fonte: Frame retirado de INÚTIL CANTO..., 2017.

Os modos de integração das interferências dos solistas ao canto coral são variados.
Assim, logo depois de Júlio Silvério, Fernanda Brandão recita seu texto, mas coincidindo as
primeiras palavras com a letra do canto.
146

Eu vou falar eu vou gritar eu vou berrar


Eu vou falar eu vou gritar eu vou berrar
[baixa o volume] Eu vou falar
[coincidindo com as palavras do coro] Eu vou falar o seguinte:
eram vinte
Eu vou falar eu vou gritar eu vou berrar [o coro permanece cantando esse verso]
[coincidindo com as primeiras palavras do coro]Eu vou falar o seguinte:
Eram vinte e cinco mulheres
presas numa imunda cela
sem banheiro e sem janela
Eram 25 mulheres
num imundo cubículo
[agudos] para morrer, para morrer sem entender
Para morrer aos poucos
Para morrer, para morrer sem entender
De modo que parecesse natural.

Depois, Lilian Regina assume a palavra salmodiando seu texto e o coro acompanha-a
recitando os versos da salmodia, em volume baixo.

Figura 15 – Salmodia de Lilian Regina

Fonte: Frame retirado de INÚTIL CANTO..., 2017.

Também há trechos em que mais de um solista assume a recitação, como Lilian


Regina e Luiza Romão, que dividem a descrição das mulheres presas, enquanto o coro repete
o trecho “eu vou falar, eu vou gritar, eu vou berrar” como um pedal para sustentar a
declamação das solistas. Lilian Regina volta à sua salmodia. A música muda e dois atores vão
para o centro do espaço cênico. O coro põe-se em pé e começa a primeira caminhada.
147

Eu canto com bemóis e sustenidos


Eu canto vinte e cinco anjos caídos
Eu canto com bemóis e sustenidos
Eu canto vinte e cinco anjos caídos

Ajoelhados, de frente para o público, os corpos dos dois atores se retorcem enquanto o
coro caminha lentamente atrás deles. Mirella Façanha intervém como solista. Sobre as
caminhadas realizadas durante o ato-espetáculo, Tarifa (entrevista de 12 dez. 2019) diz:

E dos últimos trabalhos pra cá eu tenho uma parceria também, que é uma bailarina,
atriz maravilhosa, parceiraça, que é a Marilda Alface. Ela foi anos do Teatro
Ventoforte junto com o Ilo [Krugli], mas ela foi uma das primeiras pessoas que
dançou o butoh no Brasil, então [d]as primeiras pessoas que vieram, e ela é uma
bailarina incrível; e como ela foi do Ventoforte, que é um teatro popular, e ela tem a
experiência do butoh então ela tem uma profundidade nos trabalhos muito grande.
Tanto que o Inútil Canto, se você reparar, ele tem uma profundidade muito grande e
eu queria porque eu achava que pra discutir essa questão toda relacionada ao
encarceramento, essa coisa triste do massacre do povo negro, [...] a gente tinha que
ter muito silêncio e muita escuta e o texto do Plinio Marcos é muito rasgado e
visceral, e eu queria que essas palavras pudessem vir num outro tipo de
profundidade, então a gente fez uma coisa maluca [...] que foi: a gente fez uma
montagem de Plínio Marcos fazendo caminhadas de butoh. Então a gente ficou
meses treinando butoh, caminhadas de butoh, profundidade, e se você assistiu o
espetáculo você vai ver que tem muitos momentos de caminhadas silenciosas e
caminhadas profundas que vieram dessa relação com o butoh.

Após esse momento, é a vez de Camila Cohen cantar como solista.

As metrancas unidas
Podem mais que uma fome berrando sozinha
Essa é a minha ladainha
Essa é a minha ladainha

Ao que o grupo responde imediatamente voltando-se para ela, estabelecendo uma


relação de massa coral e protagonista bem desenhada, como até agora não havíamos visto,
embora os dois atores à frente façam um contraponto a esse desenho coro-protagonista, como
os anjos caídos esquecidos pela comunidade de cidadãos contribuintes, que têm os olhos fixos
em seus oradores e entertainers.
148

Figura 16 – Camila Cohen solista e o coro voltado para ela, na penumbra

Fonte: Frame retirado de INÚTIL CANTO..., 2017.

O canto prossegue, agora com os atores em outra disposição, com as mulheres em


linha no centro do espaço. “As vinte e cinco mulheres receberam a visita das pestes”,
ouvimos. As atrizes mexem nas roupas, como se estivessem procurando a origem de um
incômodo.
A sequência do longo ato conta com intervenções diversas dos atores e atrizes na
trama sonora. Como espectador (do vídeo, não da performance) percebo que há uma
preponderância das intervenções de Lilian Regina, Camila Cohen, Darília Lilbé e Romário
Oliveira no canto, devido às características de suas performances vocais e à maneira com que
o próprio tecido da encenação e da música as sublinha, além de haver um foco nos
movimentos de Inayara Iná Samuel, que dança silenciosamente. Essa preponderância faz com
que à primeira vista possamos ler os quatro primeiros como ‘solistas do canto’ o que de
maneira alguma seria correto, já que muito mais performers intervêm como solistas. No
decorrer da cena, a ideia de que a peça nasce do coro e todos os atores e atrizes podem ser
solistas vai se afirmando até que não restem dúvidas.
149

Figura 17 – As mulheres procurando as pestes

Fonte: Frame retirado de INÚTIL CANTO..., 2017.

Atentando à forma do ato — e ao longo do espetáculo essa leitura se confirma —


percebemos que aqui também o individual procede do coletivo. A voz dos performers no
primeiro momento é partilhada. A voz de todos, animada pelo mesmo sopro, é o que permite
que apareçam as vozes individuais que se colocam à parte.
Uma cena interessante para pensarmos a representação e responsabilização da
sociedade pela situação dos detentos vem logo depois de uma inserção feita por Mirella
Façanha, que declama: “eu vou falar, eu vou deixar bem registrado: atrás de cada legislador,
numa parede fria, tem um Jesus Cristo crucificado”. Alguns atores e atrizes montam
rapidamente uma imagem no centro do espaço.
150

Figuras 18 e 19 – Imagem do detento subjugado

Fonte: Frames retirados de INÚTIL CANTO..., 2017. Note-se o pó que Walmick de Holanda derrama sobre a
cabeça de Lilian Regina na primeira imagem e a espada que a Justiça (Luísa Romão) mantém em seu pescoço.
Hélio Toste ao fundo, na posição do crucificado.

Walmick de Holanda, à direita, faz um discurso a favor da pena de morte. Camila


Cohen, segurando um cartaz em branco, defende com impostação lírica a ordem, a família e
os bons costumes. Luiza Romão, caracterizada como a justiça, alude a falas e ao voto do
desembargador Ivan Sartori na anulação da condenação dos policiais no episódio que ficou
151

conhecido como massacre do Carandiru, no qual 111 detentos foram mortos dentro do
presídio. Lilian Regina, com uma Bíblia nas mãos e os cabelos esbranquiçados devido ao pó
que foi solto sobre ela, inicia um relato sobre a dificuldade de reintegração dos ex-detentos na
sociedade, que termina por uma pregação um tanto irônica sobre a necessidade da conversão
para a mudança de vida, mencionando os acordos celebrados entre o Estado e a Igreja
Universal.

Quando você sai da prisão, a sociedade não reintegra ninguém. O juiz te devolve a
liberdade e a sociedade te devolve a solidão. A única coisa capaz de fazer você se
sentir parte de alguma coisa é a igreja evangélica. É difícil acreditar em alguma
coisa depois que você é torturado. Mas eu creio. Eu creio. Eu creio, eu creio em
Jesus! Eu aceito Jesus! O governo aceita a religião evangélica. A única religião que
o governo aceita. Deus abençoe o governo e os seus acordos com a Igreja
Universal, que beneficiaram 80% dos encarcerados com a redução da pena! O
Estado laico e Jesus reduziram a minha pena. Só quem tem Jesus reintegra! Só
quem tem Jesus prospera! Só quem tem Jesus se recupera! Você [se dirige a um
espectador] me apresenta um marginal e eu te apresento a conversão. Você [dirige-
se a outro] me apresenta um marginal e eu te apresento a conversão. Deixa Jesus
entrar na sua vida! Deixa Jesus entrar na sua vida! Deixa ele entrar. Se você ainda
não conseguiu, se esforça! Se esforça! Se esforça! Se esforça! (INÚTIL CANTO,
33’10’’ – 34’41’’)

A performance de Walmick de Holanda como o cidadão de bem e de Luiza Romão


como a justiça nos oferecem um lugar interessante para pensar a situação de desentendimento
evocada por Rancière: na visão do assim chamado cidadão de bem, a melhor coisa a se fazer
com aqueles e aquelas que entram para o sistema prisional é acabar com suas vidas. Na visão
do julgador, o que se chama massacre é legítima defesa. Não há comunicação de suas visões
de mundo com aqueles que sabem que o processo de construção da criminalidade é complexo
e depende de diversos fatores ou que detentos e detentas são seres humanos. Para o cidadão de
bem, os sujeitos que vão para a cadeia merecem o que quer que venham a ter naquele lugar.
Mais do que isso, merecem a morte, ou não são dignos da vida. Essas duas figuras sustentam
pontos de discordância apresentados como fora da curva no discurso do espetáculo. Não há
tentativa de humor. Toma-se esses discursos com a gravidade que têm, mas também não há a
tentativa de justificar suas tomadas de partido, não há um tratamento dialético da divergência.
Eles representam o ‘outro lado’. Lado que existe e que precisará ser enfrentado, se não puder
ser convencido, para que se chegue, no discurso que a cena veicula, a uma sociedade mais
funcional e saudável.
Assim como no Canto, no solo de um coração ferido, o discurso de Walmick de
Holanda é composto de falas do atual presidente da república. O ator fala sobre isso, em
entrevista de 2018:
152

Todas as minhas falas, por exemplo, são falas do deputado que hoje é candidato a
presidente do país e que tem as maiores intenções de voto. Então as minhas falas são
sequências de absurdos que ele fala sobre o cárcere. Então a gente já tem uma crítica
à essa figura, eu não relativizo a fala dele. Eu faço a cena, tal qual ele fez, e o
público visivelmente lê “Eles não curtem esse cara. Esse cara é o pensamento que
eles abominam.” (HOLANDA, 2018, p. 54)

Encaminhando o fim do movimento, uma cena que alude ao nascimento. Forma-se um


grupo de mulheres no centro do espaço. Inayara Iná Samuel vai até a frente delas, de costas
para os espectadores, levanta a mão direita e cai para trás. As mulheres cantam Nascedouro,
composição de Raquel Parras.
Inayara Iná Samuel tira sua roupa, deitada como que pronta para dar à luz. Julio e
Hélio, um ator negro e um ator branco, entram lentamente no centro do espaço, nus, vindo um
de cada lado. Caem no chão. Atrizes e atores se despem ao fim da canção. Inayara bate as
mãos no chão e grita. Todos caem no chão. Um grupo de corpos de todas as cores, nus, no
chão.190 A queda revela Fernanda Brandão, que está em pé, com um cordão molhado de um
pigmento vermelho, lembrando um cordão umbilical, pendendo de sua vulva. Vai até o papel
que está no chão — o verso da caricatura que antes havia sido usada por Darília Lilbé, que
perguntava “vocês viram meu filho?” Posiciona-se sobre ele. A tinta, o sangue, pinga sobre o
papel. Ela recolhe esse papel e vai para o fundo do palco. Atrizes e atores se põem em pé e
voltam-se todos para o mesmo lado, mostrando os diversos perfis, como em fotografias de
presos. Fernanda coloca o papel manchado no centro do desenho de um panóptico que há na
parede ao fundo do palco. Lê-se “INÚTIL CANTO E INÚTIL PRANTO”. Com um giz, a
atriz completa: “PELOS ANJOS CAÍDOS”. Atores e atrizes vestem-se com calças pretas e
camisetas brancas. Organizam seus figurinos anteriores.
André Cezar Mendes e Raquel Parras preparam a próxima cena, discorrendo sobre o
formato que o espetáculo tomará e os conteúdos que abordará a partir dali. Evandro
Cavalcante, performando o Louco de Barrela, conversa com público, apresenta o panóptico
desenhado e fornece dados sobre o sistema carcerário brasileiro. O primeiro movimento chega
ao fim. Inicia-se o segundo movimento, O sol e a chuva.

190
Podemos lembrar de cena final de Batucada e a óbvia ligação dessa imagem com uma situação de
mortandade em massa. Ver p. 76.
153

Figura 20 – Fernanda Brandão escrevendo no desenho do panóptico

Fonte: Frame retirado de INÚTIL CANTO..., 2017.

Duas cenas tiradas de Barrela são performadas no espetáculo. A primeira delas é uma
síntese do confronto entre Portuga e Tirica, apresentando apenas os dois personagens em
cena. Tirica provoca Portuga, que comenta, para todos ouvirem, as afirmações de outro preso
de que Tirica teria sido violentado no reformatório. Este por fim confirma, dá a sua narração
dos fatos e jura Portuga de morte, juramento logo cumprido.
Essa cena é toda performada com os intérpretes de frente para o público. As
personagens dialogam entre si, mas os atores — Júlio Silvério faz Portuga e Danilo Martim
faz Tirica — estão fisicamente voltados para a plateia. Se há um envolvimento emocional dos
atores (talvez se possa falar na busca de certo realismo ao nível dos sentimentos) por um lado,
há uma desconstrução da forma, por outro. O descompasso entre o diálogo “realista” e o fato
de que os atores não se olham cria um efeito de distanciamento para o espectador e o ato da
atuação se desnuda uma vez mais: o ator se envolve com a ficção, sua imaginação feita
vivência acontece no aqui e agora da representação e se revela enquanto tal — temos um
esforço de realismo ao nível da emoção, no trabalho ‘interior’ do ator, e estranhamento ao
nível do quadro, da apresentação. Além disso, durante a cena o coro não se apaga
completamente, mas um de seus membros intervém fazendo comentários pontuais,
ressaltando que, mesmo em meio à violência, não havia nenhuma interferência. Para executar
essa cena, os dois atores levantam-se de suas cadeiras, separando-se do coro, e assumem seus
154

papéis à vista de todos. Quando sua cena termina, reintegram-se ao coro. “O jogo da
singularização e da dessingularização” (TRIAU, 2003, p. 9) se materializa nesse movimento
da cena, a repetida utilização desse mecanismo tornando visível que “entre pertencer ao coro e
distinguir-se irremediavelmente dele, a dialética jamais se resolve, já que os dois se fundam
reciprocamente um sobre o outro.” (TRIAU, 2003, p. 9).

Figura 21 – Cena da chuva.

Fonte: Frame retirado de INÚTIL CANTO..., 2017.

A sequência do movimento apresenta a situação dos presos confinados sem horário de


passeio em razão de uma chuva que se prolongava já por uma semana e seu desejo indizível
— porque incompreensível para o carcereiro — de tomar um banho de chuva para aliviar as
mazelas da alma. O canto coral sustenta a execução dessa cena um tanto intimista, com pouca
luz e realizada por 5 performers, e logo que a imagem inicial começa a se desfazer, o canto
reaparece com força, primeiro sozinho — apreciamos a sonoridade e as palavras do canto —
depois como estrutura musical sobre a qual são ditas as palavras do ator que fala. O
movimento se encerra.
O terceiro movimento, As pragas e a porta de ferro, narra a proliferação de pragas
(moscas, piolhos, sanguessugas) dentro da cela e o ataque desses parasitas aos homens e
mulheres encarcerados, sem que a porta se abra nem para os momentos de refeição. A porta
de ferro entra em cena, como uma chapa retangular de madeira, e não parece casual que seja
155

carregada por Hélio Toste, cuja aparência se aproxima das representações de Jesus herdadas
da Igreja europeia. Camila Cohen, que veste um sobretudo aberto sob o qual está nua, traz as
palavras “eu, cidadã contribuinte” escritas com batom em seu peito e abdômen. Usando
tamancos de madeira, sobe na porta e pula sobre ela nos acentos da melodia.
Quando a cidadã contribuinte sai de cima da porta de ferro, o anjo caído permanece
sob ela, mais de dois minutos na mesma posição. Embora diferentes tomadas de palavra
façam com que o foco se desloque pela cena, ele ainda está no centro. Nesse momento, nos
aproximamos de uma representação coletiva por meio de uma figura única. Mencionei a
semelhança com a figura de Cristo na via sacra191, que aproxima essa figura cênica do
arquétipo da vítima universal. Mas o ator sob a porta também é metonímia para os vinte e
cinco anjos caídos. Se vemos um ator, a narração, sempre no plural, nos fala em vinte e cinco
pessoas. Em minha imaginação, há vinte e cinco figuras oprimidas pela porta de ferro
continuamente fechada. A presença do ator se multiplica. O terceiro movimento chega ao fim.

Figura 22 – Anjo caído carrega a porta de ferro.

Fonte: Frame retirado de INÚTIL CANTO..., 2017

191
Especialmente a segunda e terceira estações, ‘Jesus carrega a cruz’ e ‘Jesus cai pela primeira vez’.
156

Figura 23 – Cristo carregando a cruz. Ticiano, 1565.

Fonte: Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jesus_carregando_a_cruz#/media/Ficheiro:Titian_-


_Christ_Carrying_the_Cross_-_WGA22830.jpg. Acesso em: 27 jan. 2021.

Figura 24 – A cidadã contribuinte sobre a porta de ferro que esmaga o anjo caído.

Fonte: Frame retirado de INÚTIL CANTO..., 2017.

Na transição para o quarto movimento, O cárcere feminino, realiza-se uma das cenas
finais de Barrela: o estupro do garoto. Como a cena de Barrela realizada no segundo
157

movimento, esta também é marcada pela frontalidade e pelos comentários feitos por atores e
atrizes que não estão envolvidos na cena como personagens. A frontalidade é tentação do
teatro que se quer político (BANU, 2003) e, no Inútil canto... essa característica, além de
confrontar os espectadores e espectadoras, também é utilizada como um mecanismo de
distanciamento ou enquadramento épico. Ao fim da cena, quando Luiz Felipe Bianchini, que
fez o menino, narra os comentários dos presos durante o estupro, Maria Eduarda Machado
levanta a mão, diz “pausa!” e questiona sobre a possibilidade de essa cena ser feita por uma
mulher. A atriz conta a história de Lidiany, uma menina de 15 anos que, após um furto, foi
presa numa cela com mais de 20 homens, sendo estuprada em torno de 6 vezes por dia
durante 26 dias. Mais uma recitação. Outro canto. Mais uma cena em que uma dupla de
performers se encontra no centro do espaço preenchido pela música.
Uma voz feminina vinda da plateia é ouvida entoando um canto, e logo a cantora se
aproxima do palco, segura a mão de Darília Lilbé, que está em cena, e canta Amazing Grace.
Ficamos sabendo seu nome. É Nduduzo. Ela senta em uma das cadeiras ocupadas pelos
atores, a mais central, e começa a falar em inglês, traduzida por Maria Eduarda Machado que
está sentada a seu lado. Sabemos então que Nduduzo Godensia (Ndu Siba) é sul-africana e,
tendo sido presa no Brasil, descobriu na prisão a arte do canto por meio de uma professora
que dava aulas toda semana para as detentas. O real irrompe na cena. O espetáculo é como
que suspenso para ser inclusive comentado pela ‘convidada’.
Ao fim de seu depoimento, Darília Lilbé monta um oratório e canta Cálix Bento.
Mirella Façanha começa a falar. Narra seu relacionamento abusivo e, repentinamente, pelo
conteúdo da fala ou pela segurança da performer que denuncia um texto memorizado,
reconhecemos a personagem Professora, de Mancha Roxa. Outra atriz se junta ao discurso e
agora são duas a dividir a fala inflamada da Professora. Estamos — novamente? — assistindo
a um espetáculo. O reconhecimento do que parecia um depoimento pessoal como uma cena de
teatro instaura uma situação frágil, em que não sabemos qual será o próximo passo, se outra
irrupção do real ou a continuidade da performance teatral. Nduduzo continua junto às atrizes
até o fim do movimento, uma presença que evoca permanentemente mais do que o real, o
mundo externo dentro da cena.
Essa irrupção do real ‘externo’ não me parece ser uma característica comum das peças
corais, embora lembre a cena de abertura de Rwanda 94 do Groupov, espetáculo que, no
mundo francófono, parece ter marcado o estudo da coralidade. Interessa-me também por sua
potência de inserir no espaço da representação um elemento de ‘real mais real’ que os
158

performers — que acabam parecendo habitantes naturais do espaço da cena depois que o olho
fica habituado a sua presença ali. Esse ‘real mais real’, ou melhor, a introdução de uma figura
externa, qualquer que seja, poderia intensificar a noção do conjunto de performers enquanto
um grupo, uma comunidade, por meio do contraste com um elemento estranho? Embora não
me pareça ser exatamente o caso no Inútil canto, penso que a possibilidade existe.192
O movimento final, intitulado Rebelião, narra, como seu título antecipa, a rebelião, na
qual se incendeiam colchões. O fogo sai do controle e os presos, mesmo pedindo socorro aos
gritos, morrem queimados.
No Inútil canto, a relação entre o coro e os atores que dele se apartam, ora
singularizando, ora coletivizando a ação, constitui o pilar da construção espetacular, e o canto,
além do fio que dá continuidade ao espetáculo, é a linha sobre a qual a dramaturgia se
desenrola — linha que faz floreios, retoma motivos recorrentes, retarda ou acompanha a ação.
O canto se desdobra em uníssonos, jogos do coro com um recitador, polifonias nas quais
pequenos grupos cantam linhas melódicas diferentes, além de cenas cantadas por solistas. A
unidade da peça é garantida pela unidade da temática — o encarceramento — e pela lógica
coral e musical que a sustenta.
Desse modo, não há uma ficção única sendo sustentada, a cena não se reivindica um
mundo à parte que deve manter uma lógica interna coesa, fechada. Pelo contrário. A ação se
assume no presente: os performers estão aqui e vão cantar, fazer cenas, dançar, falar e
denunciar. Essa ação é real: os atores estão atuando, e assumindo sua atuação. Se uma lógica
se mantém é a lógica coral do espetáculo, que permite justamente a quebra da ficção. Assim,
os performers podem ir e voltar dos planos ficcionais, apresentar trechos de narrativas,
construir figuras que ganham vida por um curto espaço de tempo e depois se desvanecem no
tecido espetacular. Os atores e atrizes permanecem todo o tempo inseridos na situação real:
isto é uma obra cênica. E esse enquadramento épico permite momentos extremamente líricos
na trama do espetáculo. Quanto à instauração do dramático, é reiteradamente frustrada pela
encenação.
Embora haja reiteradas aparições de figuras ficcionais ou evocativas de outra realidade
no tecido da encenação, a presença dessas ‘personagens’ não é uma constante no trabalho de

192
O recurso a uma figura estranha para realçar o caráter de um grupo é utilizado em diversas obras artísticas. Na
dramaturgia, há uma análise rica em exemplos em HAUSBEI, Kerstin. Le piège communautaire ou la
choralité dans le théâtre de Thomas Bernhard. Alternatives Théâtrales. Choralités. n. 76-77, p. 30-33,
Bruxelas, 2003. A autora demonstra como a dramaturgia de Thomas Bernhard sublinha a existência das
comunidades que apresenta pela introdução de uma figura não pertencente, que pode ser o herói da trama ou
uma figura secundária, mas cuja diferença em relação ao grupo é sempre marcada.
159

cada ator individualmente. As aparições de cada ator como personagem são espaçadas durante
o tempo da performance. No mais das vezes, quando assumem alguma figura, o fazem à vista
do público e desfazem sua ficção da mesma maneira, com pouquíssima transformação externa
— ao nível individual quase não há troca de figurinos, embora haja uma troca de figurinos
geral no meio do espetáculo e as cenas de nudez sejam recorrentes.
Sobre esse trânsito, é interessante notar que, para Tarifa, o ator/atriz e a personagem
do texto se unem para formar uma terceira coisa, que é a personagem do espetáculo, a
personagem de teatro. A partir de Canto para Rinocerontes e homens ou de Inútil pranto e
inútil canto pelo anjos caídos cabe perguntar o que constitui essa personagem, pois ambos os
espetáculos jogam com uma espécie de passeio dos atores pelas estruturas textuais, assumindo
e abandonando personagens, ou performando cenas em nome próprio. Novamente recorro à
fala de Walmick de Holanda:

a peça tem bastante isso de uma pessoa em ter o momento de... faz o personagem,
mas em determinado momento ela é um ator que diz... na realidade não tem essa
coisa de “ai, eu sou o personagem” em nenhum momento. O Tarifa até chama de
terceira via isso, que é a soma do ator com seu personagem, mas que não é tanto um
personagem; é uma terceira via a partir desse encontro. Acho que ele poderia se
debruçar mais pra explicar isso o que ele pensa aí, que pra mim é muito o ator
brechtiano. O ator que sabe quem se é como ator... é o ator que vai pra cena pra
comentar; não é o ator que vai para ser perdidamente o personagem. Ele vai pra
comentar algo, e eu acho que isso é terceira via que o Tarifa fala. (HOLANDA,
2018, p. 54)

Entender a coralidade enquanto princípio de composição como a própria tensão entre o


singular e o coletivo que se espalha pela cena é entendê-la, nesse espetáculo, como a lógica
que tudo permeia, o movimento de difração da base coral — base que no caso de Inútil canto
é bastante consistente e visível. Essa lógica dá origem aos mecanismos da encenação que
operam o jogo de singularização e dessingularização ao longo da cena.
De saída, temos uma comunidade do canto forjada pela apresentação no início do
espetáculo. Mas essa comunidade não procura o ser qualquer, a qualidade intercambiável
entre os atores: cada um tem uma personalidade na encenação, uma espécie de figura ou
personagem que sustenta sua performance. Embora haja igualdade entre eles, não são iguais.
Dito de outro modo: embora tenham a mesma importância na tessitura da cena e no
desenvolvimento do espetáculo, guardam características que os diferenciam. Poderíamos dizer
que há uma preocupação da direção e dos atores em conferir unicidade às figuras cênicas, ou
pelo menos ao desempenho de cada ator tomado como um contínuo, do início ao fim do
espetáculo.
160

5.2 Coralidade na criação da cena — Marcelo Lazzarato e a Cia. Elevador: o Campo de


Visão

Você é senhor do seu gesto e ao mesmo tempo sujeito a todo o resto: vida.
Marcelo Lazzaratto193

A Cia Elevador de Teatro Panorâmico nasceu em 2000 de um potente encontro entre


Marcelo Lazzaratto e uma turma de alunos:

Eu dava aula para uma turma no Célia Helena, nos dois últimos períodos da
formação deles e, então, o santo bateu, foi algo muito forte naquele momento, meu
interesse por eles e o interesse deles por mim, eu tava em busca de um grupo de
pessoas para trabalhar, a gente resolveu juntar os trapos e a companhia nasceu
assim. (PEQUENO..., [2018])

Atualmente é composta por Carolina Fabri, Marcelo Lazzaratto, Pedro Haddad,


Rodrigo Spina, Tathiana Bott e Thais Rossi. Desde 2010, a companhia tem uma sede, o
Espaço Elevador, localizada na rua Treze de Maio, 222, no bairro Bela Vista, na cidade de
São Paulo, área repleta de teatros independentes que movimentam a cena teatral paulistana.
O nome da Cia nasce de sua proposta, unir a verticalidade na vivência dos processos a
um olhar horizontal, panorâmico, para a concretização de seu propósito, que é entender as
pessoas do nosso tempo. (COMPANHIA ELEVADOR, 2012) Se entendo a proposta de
Marcelo Lazzaratto, creio que podemos enunciá-la como criar em profundidade mantendo um
horizonte aberto para oferecer uma experiência de mergulho e reflexão sobre a humanidade
contemporânea.
E como criar em profundidade mantendo um horizonte aberto, ou melhor, abrindo os
horizontes? Desde os primórdios da companhia, a técnica/sistema de criação utilizada para
trazer seus trabalhos ao mundo é o “Campo de Visão”194, um exercício improvisacional coral
que tem apenas duas regras:
1. Você só se move quando algum movimento entra no seu campo de visão.
2. Assim que detecta o movimento, você deve voltar seu corpo na mesma orientação
da pessoa que está movendo.

193
Em entrevista realizada no dia 11 dez. 2019.
194
Chamado simplesmente de CV daqui em diante.
161

Em consequência dessas duas regras, é impossível que haja contracenação “olho no


olho”, já que todos os corpos em movimento devem estar orientados para a mesma direção.
Simplificadamente, o CV tradicional é um exercício de imitação da ação.
De 27 a 31 de janeiro de 2020, participei de um curso de CV com Marcelo Lazzaratto
no Espaço Elevador. Esse curso foi tratado como o módulo I da experiência do CV porque
aborda a prática do CV Tradicional, o fundamento da prática. Durante o curso, Marcelo
levantou a possibilidade de um módulo II, que aconteceria provavelmente em abril ou maio, e
que não ocorreu devido à pandemia do novo coronavírus, que acarretou diversas medidas de
distanciamento social no Brasil a partir de março. No módulo II, aprofundaríamos a
experiência na técnica por meio do jogo com o CV Livre, a segunda fase do processo do CV,
que será evocado neste texto a partir dos escritos de Marcelo e de pessoas que
experimentaram e escreveram sobre a prática.
Passo a narrar brevemente o conteúdo das aulas195, dando atenção para algumas
reflexões feitas durante o curso pelos participantes e por Marcelo e algumas feitas por mim no
processo de pesquisa e escrita.

Aula 1: o Campo de Visão

Na primeira aula, fomos introduzidos à prática do Campo de Visão.


Tradicionalmente, instala-se o CV criando a seguinte estrutura: forma-se um U com
três linhas retas. Os jogadores estão voltados para a parte interna do U. Aqueles que ocupam
as linhas paralelas estão uns de frente para os outros, portanto. Os jogadores da linha do fundo
estão de frente para o espaço do condutor. Se o número de participantes não for um múltiplo
de 3, a linha com a quantidade diferente deve ser a do fundo, para que nas linhas laterais os
jogadores tenham alguém à sua frente. A disposição está ilustrada na imagem a seguir, em que
as setas indicam a orientação dos jogadores e o quadrado preto indica o provável espaço do
condutor.

195
Não há necessidade de narrá-las detalhadamente, já que essa tarefa já foi realizada com muita qualidade por
Michelle Gonçalves em sua dissertação de mestrado Campo de Visão: Inventário de procedimentos que trata
do trabalho do condutor no CV, trazendo descrições detalhadas do trabalho. Campo de Visão: exercício e
linguagem cênica, livro de Marcelo Lazzaratto, também trata dos variados aspectos da prática do CV e de sua
constituição como sistema improvisacional. Minha proposta aqui é trazer os conteúdos mínimos que podem
nos ajudar a visualizar a dimensão coral dessa prática.
162

Figura 25 – Dinâmica do ponto zero.

Fonte: Produção do autor. 2020.

Essa ocupação do espaço é a que Lazzaratto convencionou em sua prática, mas,


segundo ele: “Pode fazer qualquer forma, a gente escolhe essa forma porque tem um olhar de
fora. Tem uma figura de um condutor que vai estar do lado de fora, então tem uma abertura
aqui pra essa pessoa poder estar junto” (LAZZARATTO, entrevista de 11 dez. 2019).
À ocupação do U (ou da forma inicial) pelos atores e atrizes dá-se o nome de Ponto
Zero. O Ponto Zero é o espaço de potencialidades do CV, a partir do qual tudo pode
acontecer. Quando o condutor chama “Ponto zero!” os jogadores já devem se colocar em
estado de prontidão, vigilância. Sem tensões desnecessárias, mas prontos para o desenrolar do
jogo. “O zero aqui é antes um esvaziamento das energias cotidianas que podem poluir a ação
poética” (LAZZARATTO, 2011, p. 49). A despeito de seu nome, não se espera que o ponto
zero seja um lugar de vazio, ele é um espaço de latência, em que o universo de potências do
jogo em cada jogador(a) está prestes a se realizar em ato. Primeiro como um ato, depois nos
sucessivos desdobramentos desse ato inaugural.
Um ato, porque a próxima coisa que o condutor faz depois de chamar “ponto zero!” é
bater uma palma (ou produzir outro som staccato, como um bastão que bate no chão), à qual
os atores devem responder com um gesto, ou uma atitude corporal. Um único gesto, que é
sustentado por cada um dos atores, até que o condutor comande “ação!” quando então todos
passam a desenvolver seus gestos individualmente pelo espaço. A descrição que Marcelo
163

Lazzarato faz em entrevista é rica em detalhes para compreendermos o poder das escolhas e o
estado de trabalho exigido nos momentos iniciais do CV:

Esse condutor, bem simples, bate uma palma, bate na madeira, fala “vai!” Qualquer
estímulo, e um gesto é realizado. Esse primeiro gesto é fundamental. Porque
quando você está no ponto zero você já tá trabalhando. O ponto zero é um lugar de
neutralidade, mas ele já é um lugar de potência. Um lugar de uma pretensa
neutralidade, porque neutralidade não existe. Uma pretensa neutralidade, mas ela já
é um lugar de potência porque você já tá lá, você já tá olhando pra frente, pra essa
parede que tem essas manchas cinza, esse ferro, o barulho do ar condicionado já tá
acontecendo. Tem um colega do seu lado a um metro de distância e você percebe a
presença, aí respirou diferente. Você já tá trabalhando. Aí eu coloquei uma música
do lado de fora. A música já te aciona, aí você já tá na pulsão de alguma coisa. Aí,
bate palma, faz um gesto... É uma coisa que os atores esquecem. Essa primeira
escolha, olha a força que ela tem, porque ninguém determinou ‘faça tal gesto’.
Foi falado [bate uma palma] ‘gesto!’. Você tinha infinitas possibilidades de
escolha, olha a força disso, e você fez esta escolha. Olha bem pra isso. Entendeu?
É que a gente acha, como a gente gestualiza muito, como a gente se movimenta
muito, como a gente desperdiça muita energia, que é mais um gesto. Na verdade é,
você pode fazer esse e pode fazer mais trilhões. Agora inverte o jogo: pensa ao
contrário. Pensa que você só tinha a possibilidade de um gesto, aí você fez esse.
Você tinha a possibilidade de um. Você fez esse. Porra. Isso vai te instaurar um
mundo, entendeu? Eu tô aqui assim “ponto zero”. Fala “vai!” e eu faço “isto”! [faz
um gesto] Isso já me deu um mundo. Pensa! Aí você começa a correlacionar com
um monte de coisa: “eu tô vendo aquela sombra ali”, “tô em alerta, tô em alerta”,
“eu sou um bicho, sou gente”. “O que é que eu sou?” “Ah, sou isso”, “Ai, meu cu tá
fechado, tá fechado.” Eu vou fazer o quê? Começa a imaginar várias coisas. Começa
a [dando ênfase] imaginar várias coisas vinculadas a um gesto que já foi uma forma
repleta de conteúdos que têm potência de vir a ser — se o teu imaginário estiver
potencializado. Aí você desenvolve, entendeu? Aí você desenvolve e eu falo “ação”
a coisa começa a desenvolver. É assim que a gente começa o campo de visão
sempre. Seja com os macaco véio que já fazem há 30 anos, seja com as pessoas que
nunca fizeram. É sempre o mesmo. (LAZZARATTO, entrevista de 11 dez. 2019).

A partir do momento em que chama “ação”, o condutor pode designar um dos atores
como líder do CV. O líder é a pessoa que gera o movimento, a pessoa que será seguida pelo
grupo. Quando há a designação do líder, aqueles que veem a pessoa designada orientam o
corpo na mesma direção do corpo do líder. Aqueles que não veem o líder nem qualquer um
que o esteja vendo, ou seja, as pessoas que não têm nenhum movimento em seu campo de
visão196, suspendem o movimento externo, sustentando a forma do corpo e mantendo o
impulso interno vivo, até que um movimento entre em seu campo de visão, quando deverão
orientar seu corpo no mesmo sentido daquele que está movendo e seguir os movimentos do
líder/grupo. Escrevo líder/grupo porque muitas vezes não se consegue ver bem o líder, ou não
se tem visão alguma de seus movimentos, especialmente quando se joga em um grupo

196
Seguindo a opção feita por Michele Gonçalves (2015), utilizarei CV ou Campo de Visão, com iniciais
maiúsculas, para falar sobre o sistema improvisacional desenvolvido pela Cia Elevador, e campo de visão,
com iniciais minúsculas, para falar sobre a área abarcada pela visão de um indivíduo qualquer.
164

numeroso, como foi o caso das aulas que frequentei. Nos momentos em que isso acontece, a
responsabilidade dos jogadores uns pelos outros torna-se patente. Se meus colegas não
estiverem encarnando os movimentos do líder com precisão gestual e de intensidade, minha
ação, que estou no fundo da sala, estará muito distante da criação original do líder, muitas
camadas de jogadores à minha frente. Sobre o líder e sua função, Lazzaratto diz:

O líder é importante. Porque o líder, eu briguei muito tempo. Eu uso ‘líder’ desde
sempre, mas eu briguei um tempo. Porra, um exercício que é tão democrático [...]
tem essa palavra, né? Essa palavra soa no nosso imaginário sempre como uma certa
força arbitrária, né? Se eu tô falando, acabei de falar que me interessa o campo de
visão e não ponto de vista, parece que a palavra ‘líder’ reforça o ponto de vista do
líder. Então eu briguei muito tempo dentro de mim mesmo. Mudei pra ‘mestre’,
mudei pra ‘mentor’, mudei pra ‘condutor’. Pensei em várias uma época. Uma época
eu fiquei pensando “vou mudar, vou mudar”. Aí não mudei, e não mudei por uma
coisa que hoje em dia não sofro mais com isso, que é: o CV, ele é tão forte na sua
horizontalidade, vamos dizer assim, no seu senso de coletividade, que a palavra
‘líder’ opera em dois sentidos: faz com que aquele ator e aquela atriz que está com
certa dificuldade de ser propositor devido à horizontalidade dessa coletividade:
“então olha, é tua vez. Você tem que ser propositor sim. É importante você ser
propositor”. Então, pedagogicamente, trabalha um pouco nesse lugar, que é um
lugar importante. Tem vezes que a gente se esconde atrás de um coletivo também.
Não é, um coletivo também não é um lugar só de bençãos, né? Pode ser um lugar de
medo também, de recuo, de esconder-se. E opera num outro lugar, que esse é
brilhante, eu acho, que é a pessoa aprender que um bom líder é aquele que lidera
movido pelo seu coletivo. Então é um paradoxo. Entendeu? Sim, você virou o líder
do movimento, então você é o propositor. Todos vão te seguir porque eu falei
“Cristian” Então eu sou condutor e falei “Cristian. Campo de visão: Cristian”.
Quando eu falo isso você passa a ser o líder. Aí todos vão te seguir. Você fala “Ih,
agora eu sou o propositor. Ãh, vou ter que propor coisa”, aí você propõe. Conforme
você vai fazendo o CV, você percebe que você será um puta líder se você se
preocupar sobremaneira com o seu coletivo e se você perceber que o coletivo é que
tá te guiando também, simultaneamente ao que você tá guiando eles. E é
simultaneamente. Quando a força desse paradoxo aparece — êxito. Entendeu? E eu
acho que eu só chego na força do paradoxo se eu mantiver a palavra ‘líder’. Porque
ele diz muito o contrário, entendeu? Então eu tenho que forçar essa barra pra você
perceber “Não, essa coisa que eu fiz agora meio que eu fui feito pra fazer, não fui eu
que fiz”, entendeu? (LAZZARATTO, entrevista 11 dez. 2019)

Em CV, trata-se de imitar, sim; trata-se de copiar, mas não fazer uma cópia externa,
uma cópia meramente formal. Aquele que segue precisa buscar dentro de si a qualidade
daquele que está seguindo:

CV é imitação. Eu amo a imitação. A imitação, ela é muito bem-vinda. CV é


influência. Entendeu? Eu sou influenciado por você o tempo inteiro. Acho isso bem-
vindo. Porque isso não tira de mim o meu traço de identidade. Ao contrário. Eu só
me incandesço porque eu tô em alteridade com você. Então, se eu acredito na
alteridade, eu sou a favor da influência. Se eu acredito na alteridade, eu sou a favor
da imitação. Entendeu? Mas não é uma imitação barata que elimina a mim. É um
jogo entre mim e você, entre mim e o coletivo. Sacou? (LAZZARATTO, aula de 27
jan. de 2020)
165

Aula 2: temas

A segunda aula iniciou com um exercício de diagonal livre. Os participantes estavam


posicionados em fila, próximos a uma das paredes. O primeiro da fila, localizado num dos
cantos da sala, posicionava-se de frente para o canto oposto, estabelecendo uma linha
diagonal no espaço. Criava, então, uma movimentação repetível e deslocava-se pela linha
diagonal repetindo sua movimentação até chegar ao outro extremo da sala. Em duplas, os
outros participantes posicionavam-se atrás do primeiro e copiavam sua movimentação,
atendo-se a todos os detalhes que podiam, como intensidade, ritmo, posicionamento das
partes do corpo, etc. A cópia deveria ser a mais perfeita possível. Quando chegávamos ao
extremo da sala, voltávamos para o fim da fila. Quando enfim o criador voltava a fazer seu
movimento, a pessoa que estava atrás dele deveria iniciar sua própria proposta, e assim por
diante, até que todos tivessem sido propositores.
Conversamos brevemente após o exercício. Lazzaratto resumiu em dois termos o
conjunto de detalhes que devem ser mantidos: tempo e forma. Nesse tipo de exercício de
diagonal, é inevitável copiar a pessoa da frente, uma vez que estamos em fila. Minha
movimentação tinha um ritmo um pouco quebrado que tornava perceptíveis os desvios na
execução, além de não ser tão simples de imitar. Quando cheguei ao fim da fila, encontrei
outra coisa. A decisão devia ser tomada: seguir o que me apresentaram ou refazer o
movimento original. Experimentei algo no meio do caminho, mas não me satisfiz com minha
escolha. Pergunto a Marcelo se, no caso de um movimento que percebo que vai sendo
transformado pelos outros, é melhor errar com a Igreja ou acertar sozinho. Lazzaratto
responde com uma terceira via: “Acertar com a Igreja.” — deixando explícito que a busca
deve ser pelo rigor coletivo. Mas diz que, no caso de uma contaminação, podemos ir com a
contaminação, embora estejamos olhando (ou recordando) o iniciador. E a movimentação de
um ator nunca é igual à do outro, há uma infinidade de diferenças entre eles. Práticas,
imaginário, história, limitações físicas, etc. O corpo é outro, mas o trabalho aqui é justamente
colocar-se no outro. “Você vai seguir o primeiro. só que você vai acabar contaminando o
todo, de qualquer jeito. [...] Nota 10 vai ser impossível de tirar. Você nunca vai tirar nota 10.”
(LAZZARATTO, aula de 28 jan. 2020)
Após o exercício da diagonal e a breve conversa que tivemos, jogamos o CV em dois
grupos diferentes. Um momento que me impactou ao ser espectador foi quando a líder propôs
uma corrida no mesmo lugar. Um movimento extremamente simples, que pode ser facilmente
166

considerado um clichê, naquele momento teve uma força expressiva enorme. O grupo estava
conectado à intensidade da líder, mais do que à exatidão do gesto, o que é razoavelmente
difícil nesse tipo de movimento, mas as corridas estavam sendo justificadas por cada um em
suas imagens internas.
Depois dessas duas sessões iniciais, partimos para o foco do dia: o CV com temas, ou
seja, imagens que eram dadas pelo condutor e que guiavam nossas improvisações. Pude
assistir ao trabalho do primeiro grupo, que trabalhou sobre o tema ‘vento’ e participei de uma
improvisação com o tema ‘feira’.
O esquema de condução foi semelhante. Instalávamos o ponto zero, desenvolvíamos
uma atitude a partir da palma e depois começávamos nossas investigações de ação até que o
condutor escolhesse um de nós para ser o líder, e assim por diante, com as possibilidades de
sustentação e de troca de líder que já foram mencionadas.
Nesse exercício se revela o que Lazzaratto chama de CV Cotidiano e CV Abstrato. O
CVA propõe a relação com imagens não palpáveis, que exigem um movimento da fantasia do
ator. Em nosso grupo, detectamos 4 possibilidades de trabalho com o tema vento: ser o vento;
ser objeto do vento, como uma pessoa em uma tempestade ou uma sacola plástica voando;
experimentar a sensação do vento e permitir que o corpo se mova a partir do contato com o
vento imaginário; ser o gerador de vento, como o deus Éos ou uma criança que sopra um cata-
vento. O CVC opera em propostas que utilizam elementos da realidade, como a feira. Nesse
tipo de proposta, a dificuldade está justamente em iniciar pela cópia da realidade, fazer o
óbvio. Marcelo nos sugere buscar pequenos detalhes que tornem especial a ação retirada da
realidade, quase estilizada. Comentando meu exercício, em que eu empurrava um carrinho de
feira imaginário, ele diz:

aí você faz o gesto e de repente você faz o quê? Você altera um pouco o ritmo.
Você, como você fez lá no começo, você dá uma tremida de cabeça. A cada segundo
que você empurra tem uma pedrinha que só você sabe. Você vai descobrindo
artifícios que dão a sensação de estilização de um movimento que é absolutamente
cotidiano... e quando você passa a dar uma estilizada você já está no território que já
não é mais tão óbvio, por quê? Porque você fez isso, só você fez isso. Não quer dizer
que saia da minha capacidade de apreender a sua escolha. Eu sei que você está na
feira, mas você inventivamente descobriu alguma coisa muito peculiar que só você
descobriu. Que dá uma certa estilizada nesse movimento e torna ele único, mesmo
sendo comum. (LAZZARATTO, aula de 28 jan. 2020).

No CV não se trata apenas de improvisar. O caminho da investigação exige que se


qualifique o pensamento também. Aderir à primeira ideia com convicção é necessário, mas
complexificá-la é um dos objetivos do trabalho. É por isso que o CV não se trata apenas de
167

uma ferramenta de criação de ‘material’ — situações e partituras físicas—, mas propõe um


caminho de investigação que, em repetidas sessões, leva o praticante à possibilidade de
descobertas.

Aula 3: objeto

Na primeira aula, havíamos sido avisados por Marcelo:

Na quarta-feira vocês vão trazer um objeto que vocês queiram trabalhar objeto no
campo de visão. Na quarta-feira, ok? Pense num objeto que seria bacana de ser
investido ali, só não traga coisa que é muito valorosa, sabe, se quebrar vai acabar
minha vida... Traz uma coisa que possa acontecer qualquer coisa com a coisa, mas
pense em algo que seja potente pra você no Campo de visão. (LAZZARATTO, aula
de 27 de jan. 2020)

A terceira aula, portanto, abordou o trabalho com objetos. Apareceram uma saia feita
com gravatas, um boneco, uma sacola plástica, um jornal, alguns guarda-chuvas, uma bacia,
um bambolê, um tapete para yoga, etc. A marca da diversidade começava aí.
O trabalho nessa aula começou pela exploração dos objetos. Mantivemos nosso objeto
próximo a nós. Fechamos os olhos e visualizamos nosso objeto. Visualizamos o objeto vindo
em nossa direção. Marcelo chama a atenção para que vejamos com definição. Pegamos o
objeto imaginário. Começamos a explorá-lo de olhos fechados. Depois de um tempo, abrimos
os olhos e continuamos a exploração com o objeto imaginário. “Sustenta!” O objeto muda de
lugar no corpo e retomamos o trabalho. “Sustenta!” Cada um pega seu objeto e volta para a
mesma posição em que estava com o objeto imaginário. Iniciamos a exploração do objeto
real.
A primeira percepção que tive, e os comentários de Marcelo me revelaram que não
estou sozinho nisso, é a da diferença entre o objeto imaginário e o objeto real. Nossa
incapacidade de recriar o objeto com exatidão em nossa imaginação fica patente. Objetos
imaginários maiores ou menores do que seus correspondentes materiais, que podem ser
manipulados de forma que os outros não podem, que se equilibram de maneiras irreais, etc.
Por aí podemos detectar uma fraqueza em nossa percepção das coisas, derivada da falta de
atenção que dedicamos a elas.
Depois dessa exploração, iniciamos o CV da maneira tradicional, deixando que os
objetos estejam no foco de nossas ações. Aí começam as complicações. Como reproduzir o
movimento do tecido com a bacia? E aquela manipulação suave da sacola recebendo toques
168

no ar, como refazer com um guarda-chuva? Talvez o mínimo a se perguntar nesse caso é
como fazer algo similar sem ferir os colegas. A exploração é árdua, percebo as diferenças
oscilando entre desafios e obstáculos ao jogo. A tal bacia, de plástico duro, é minha. Como
seguir um jogo liderado por uma infinidade de objetos maleáveis?
O trato com o objeto é a ocasião em que tudo se escancara e a alteridade fica evidente.
Quando estamos entre pessoas, falamos muito do outro, mas costumamos considerar o outro
como igual a nós, como o mesmo de nós. No objeto, a diferença fica evidente. E essa
diferença permite que pouco a pouco possamos encontrar novas possibilidades para os objetos
que trazemos para o jogo. E para que consigamos fazê-lo, é rico usar o objeto nas potências de
sua destinação, ou seja, de modo literal. É rico transformar-se a partir do outro, mas para que
isso seja possível, o outro deve ser ele mesmo. Uma bacia, usada como bacia, revela
possibilidades insuspeitas a um martelo que a segue no jogo. Um jornal, usado como jornal, é
mais interessante para seguir do que um jornal usado como copo. Além disso, o objeto pede
mais rigor na regra do jogo. Para aquele que assiste, a regra transforma-se em código. Se a
observância das regras for frouxa, o jogo não se estabelece como linguagem porque não tem
código.
Mais importante do que a resposta que dou é que tenho a pergunta porque o outro me
ofereceu a pergunta. A relação oferece a pergunta no esforço de encontrar as potências do
outro em mim. Está anotado em meu diário de trabalho: “fazer com o objeto é desafiador. Eu
me jogo no vazio. Não sei qual a potência/qualidade do que faço.”
Outro processo que percebi em mim e em alguns outros jogadores é que tentar ser
engraçado como mecanismo de defesa nunca funciona. É um recurso inconsciente, mas
justamente por isso é necessária mais atenção sobre si.

Aula 4: texto

Para a quarta aula, trouxemos textos ou fragmentos de textos para serem utilizados em
nosso trabalho com o CV.
No início, movemos o corpo para ‘acordar’, ou seja, aquecer e ativar nossas
percepções. Em seguida, andamos pelo espaço. Encontramos uma dupla. Uma das pessoas se
posiciona atrás da outra e fala seu texto ao pé do ouvido dela algumas vezes. Trocam de lugar.
Voltamos a caminhar pelo espaço e repetimos esses encontros, com pessoas diferentes, mais
duas vezes.
169

Vamos para o ponto zero. Ação livre contaminada pelas palavras que ouvimos. Fala
seu texto baixinho. “CV Fulano!” Com seu texto. “Sustenta!” Cada um volta a seu próprio
texto na suspensão. Ação livre sem falar e depois voltamos a falar ainda na ação livre. “CV
Cicrano!” com seu texto. “Sustenta!” Cada um fala seu texto baixinho na sustentação. Ação
livre. Outro líder e assim sucessivamente.
No jogo do CV com texto, várias propostas são possíveis ao condutor e Marcelo as
fez. Um líder pode fazer a ação e dizer o texto, essa proposta estava vigente quando assumi a
liderança. Um líder pode gerar a ação com o texto sendo dito por outra pessoa. Pode-se trocar
a pessoa que diz o texto sem trocar a liderança, ou pode-se trocar a liderança mantendo aquele
que diz o texto. Todas essas possibilidades geram diferentes situações de afetação dos atores
uns pelos outros e de fricção de matérias físicas e textuais. O texto pode influenciar os
movimentos do líder, a movimentação do líder pode influenciar a maneira de dizer o texto, as
duas coisas podem acontecer ao mesmo tempo ou se alternar. As possibilidades estão
condicionadas à capacidade de escuta, afetação e resposta dos atores.

Aula 5: fechamento

A quinta aula foi dedicada à retomada de jogo e a uma longa sessão de conversa.
Abstenho-me de descrever a prática para retornar a algumas questões e trazer as reflexões que
foram feitas nessa aula.
O campo de visão, assim como a prática do canto coral, pode auxiliar o intérprete a
superar os dois perigos do trabalho em grupo: apagar-se no grupo e fechar-se em si mesmo. O
apagar-se no grupo é combatido nesta técnica de duas maneiras: no CV tradicional o atuante
terá que liderar em algum momento, no CV livre deverá reagir a seu modo, fazer escolhas a
todo momento. O fechamento em si torna o jogo simplesmente impossível. É necessário
apreender o desenho e o ritmo da ação/movimento proposta pelo líder para jogar. Podemos,
com treino, conseguir copiar o líder com fidelidade e mesmo assim permanecer imersos em
nossos próprios mundos internos, mas, segundo Lazzaratto, essa condição torna-se
extremamente visível em um grupo de atores abertos para o jogo:

No Campo de Visão, isso fica muito evidente. Você tem lá dez atores agindo e de
repente tem um que se destaca negativamente. Você vê claramente que aquela
pessoa tá ensimesmada, que ela tá fechada nela mesma, ela tá blocada, enquanto que
os outros estão ‘plá’, enormes, sem esforço, estão misteriosos. (LAZZARATTO.
Entrevista de 11 dez. 2019)
170

Lazzaratto relaciona esse estado de abertura (ou a ausência dele) ao que chama de
euzinho e euzão, sua forma de diferenciar entre o estado cotidiano, mental, e o estado
extracotidiano, em que o atuante se conecta com forças e materiais além de sua
individualidade, pertencentes à espécie, o que também chama de inspiração:

Improvisar é abrir-se à inspiração e ao acaso. Inspiração no sentido de conexão,


conexão com uma supra-consciência geradora da qual fazemos parte e que nos tira
do estado de consciência cotidiano, banal e viciado para nos colocar em um estado
poético de consciência, transgressor e atuante. Sentir-se inspirado é perceber a
inexistência de obstáculos. (LAZZARATTO, 2011, p. 29).

Penso que aqui podemos retomar as ideias de Adriana Caverero e perceber a diferença
entre, por um lado, o autocentramento e a distração — um faz que ouçamos apenas nossa
própria voz e o outro faz com que não prestemos atenção à voz alheia —, e uma abertura que
aguça a escuta e nos permite ouvir o som primordial da voz de Deus em todas as vozes que
ouvimos. Ouvir a “voz divina” é estar conectado com a herança da espécie, acessar a riqueza
partilhada nas profundezas do inconsciente coletivo, ou do que podemos ‘pegar no ar’.
“Improvisar é alcançar a liberdade.” (LAZZARATTO, 2011, p. 29). Podemos também
relembrar Rancière, para quem a liberdade é expressão da igualdade, ou isonomia. Em um
plano de criação que liberta, não há hierarquia de importância entre criadores, embora possa
existir divisão de funções. Também não podemos deixar que a palavra “liberdade” nesse
contexto nos engane: não se trata de uma ‘liberdade absoluta’ em que vale tudo. Há regras no
CV e elas estruturam a base da improvisação. Há uma dança-embate entre organização e
liberdade que pode potencializar o material criado, contribuir para sua vida. O que a prática
do CV faz é tornar a igualdade — a isonomia — entre os atores palpável por meio da
constante alternância dos jogadores na função de líder, e, quando há texto, em suas
contribuições vocais ao jogo.
O CV parte da construção da energia grupal para a individualização do movimento. A
primeira escolha é estar com o grupo, o que implica seguir o líder, muitas vezes de forma
indireta. A partir desse primeiro “aprisionamento” nas regras estritas do CVT, e de alguma
maestria no jogo, é que se pode iniciar o jogo do CV Livre, gerador do Campo de Percepção.
Indivíduos por demais singularizados necessitam fundar uma energia comum para, a partir
dela, poderem expressar suas singularidades e decisões em toda a potência de quem está
ligado ao coletivo por um laço de escuta, de compreensão. Até mesmo o gesto de separar-se
momentaneamente do coletivo pode ganhar força a partir desse terreno de escuta. Um ator que
171

sai do grupo sabe de que grupo está saindo, experimenta as energias que passam por aquele
grupo e estabelece a diferença em relação àquele grupo, e não o ignorando.
Embora todas essas questões tenham sido levantadas, ficamos, como já foi dito, na
primeira fase do CV, o CV Tradicional, ou CVT. O segundo módulo que Lazzaratto havia
proposto, e que foi impossibilitado pela pandemia do Covid-19, se basearia sobre a
exploração do CV Livre, ou CVL. É justamente o CVL que possibilita ao CV se estruturar
não só como exercício de treinamento-criação, mas como linguagem cênica, porque
possibilita que os atores façam escolhas mais livres durante seu jogo.
Lazzaratto relata que, já trabalhando há alguns anos com o CV em sua forma
tradicional, esforçando-se para sistematizar sua prática, entrou em um momento conflitante na
montagem de A hora em que não sabíamos nada uns dos outros, de Peter Handke, em 2002.
Os atores haviam observado pessoas nas ruas de São Paulo e deveriam recriar seus
comportamentos a partir da percepção que tinham dos aspectos que sustentavam a ação das
pessoas observadas e como se relacionavam com seu entorno. O trabalho com o CV começou
a ser paralisante, pois dessa vez a tarefa de seguir o outro minava o aprofundamento na
investigação pessoal. “Parecia que não era hora de se alimentar através do outro. Isso já tinha
acontecido, lá fora com as pessoas da rua. Elas já haviam disponibilizado materiais criativos
para os atores. Não eram os outros atores que nesse momento ofereceriam recursos criativos.”
(LAZZARATTO, 2011, p. 129).
A partir desse impasse, o encenador começou a se questionar sobre a eficácia do CV,
se sua sistematização seria afinal inútil, se funcionaria apenas para um tipo de peça.
Passaram-se dias enquanto “cozinhava os atores em banho-maria”.

Parecia que cada um dos atores precisava de um tempo só seu para conflitar suas
sensações, verificar sua observação, experimentar em seu corpo, de maneira
independente e isolada o que havia recolhido nas ruas. Era isso que faltava e eu não
queria recorrer a procedimentos criativos já existentes, seguros e confiáveis, porque
amplamente comprovados, pois intuía que o próprio Campo de Visão me ofereceria
os recursos necessários. Ele guardava um segredo e eu estava perto de decifrá-lo.
Então, em um dia de grande inspiração, ou no instante em que à consciência
emergem tesouros advindos do inconsciente na forma de insight, propus aos atores
que entrassem no Campo de Visão com a diferença que agora deveriam estabelecer
conexão com os outros somente quando quisessem, ou seja, o ator estaria livre para
entrar e sair do campo de visão do outro quando bem lhe aprouvesse. Em sua busca
pessoal de compreensão e articulação de seus processos criativos interiores, ele
escolheria o momento em que se aproveitaria do gesto do outro. Tiraria proveito de
qualquer movimento, a qualquer hora que por ventura viesse a contribuir para suas
descobertas.
Em nenhum outro momento de professor ou diretor, ou até mesmo de ator, percebi o
sentido profundo da improvisação como naquele dia. A liberdade oferecida aos
atores aumentava e muito sua responsabilidade, sintonizava absolutamente todos os
172

participantes, tornava o ator senhor de todas as suas escolhas e eram elas que
determinariam sobremaneira os resultados adquiridos. Além de propiciar ao olhar
estrangeiro, o olhar de fora, uma rica e original beleza plástica extraída do “novo”
improviso. Essa nova plástica, constituída de partes e do todo, recolocaria o sentido
primeiro do Campo de Visão ampliando-o, instaurando na verdade um Campo de
Percepção. A esse procedimento dei o nome de Campo de Visão Livre [...],
descoberta que propiciou a continuidade de minha investigação, abrindo a real
possibilidade de alçar o Campo de Visão como linguagem cênica [...].
(LAZZARATTO, 2011, p. 130-131).

Conversando com Lazzaratto, percebo que, em seu discurso, o Campo de Percepção


aparece naturalmente como a grande destinação do CV, seu objetivo último. Relembrar esse
momento de tensão em sua pesquisa é mostrar o nó da tomada de consciência, a virada da
percepção sobre as potencialidades mais profundas do trabalho que vinha realizando até
então. O CVL requer do ator que desenvolva seus sentidos e perceba, como diz Lazzaratto,
em 360º. Tudo o que acontece no entorno do ator pode ser material para sua criação. Ele pode
se tornar um líder involuntariamente, devido às escolhas de seus parceiros de jogo. As
oportunidades e desafios estão acontecendo no momento e no espaço em que sua investigação
interna se desenrola. Tudo o que acontece é possibilidade, tudo é um possível material, todos
são possíveis líderes. Um espaço com numerosas pessoas usufruindo da mesma liberdade
virtualmente ilimitada é um espaço fértil e também perigoso. O estado de alerta precisa ser
amplificado. Os sentidos, todos, precisam ser aguçados, assim como a intuição. Daí nasce o
Campo de Percepção.
O espetáculo em que o Campo de Visão (Livre) se estruturou como linguagem cênica
foi Amor de Improviso, de 2003. Mas o espetáculo em que, segundo Lazzaratto, ocorreu o
ápice da exploração do CV como linguagem cênica foi Ifigênia, de 2012. No próximo tópico,
procuro expor algumas características desse espetáculo que considero uma imagem fértil para
a investigação da coralidade na criação da cena.

Sobre uma palavra recorrente: alteridade

Nunca ouvi uma pessoa usar tanto a palavra “alteridade” quanto Marcelo Lazzaratto.
Nos poucos encontros que tive com ele, percebi que essa palavra habita seu discurso dentro e
fora da prática do Campo de Visão.
A alteridade, definida por Abbagnano (2007, p. 34) como “Ser outro, colocar-se ou
constituir-se como outro” pode ser considerada como a coroação da exposição teórica do
capítulo 3. Partindo da polifonia que pressupõe a diversidade, passamos pela noção de
173

igualdade de valor e reconhecemos a unicidade de cada ser. A experiência da alteridade pode


ser considerada como um desenvolvimento necessário do reconhecimento da unicidade. Para
perceber o outro como um ser único, é necessário perceber-se diferente. Se cada ser é único e
os seres não são mais do mesmo, mas são diferentes, não redutíveis uns aos outros, o
reconhecimento disso é imediatamente o reconhecimento de que se é outro. Nesse sentido,
não há lacuna entre unicidade e alteridade. Reconhecer a unicidade é sempre colocar-se em
alteridade. O que fecha a possibilidade da alteridade é querer ver no outro uma cópia ou
repetição de si mesmo, ou ver a si mesmo como repetição ou continuidade do outro. É porque
o outro é um ser único que não pode ser enquadrado na categoria do mesmo, o mesmo que eu.
Abandonamos, portanto, deliberadamente o terreno do poder para entrar naquele da
potência. E abandonamos tanto o poder entendido como coerção (obviamente) como aquele,
de que fala Han (2019), que poderíamos chamar de colonização do desejo do outro, um poder
que “permite ao ego ser no outro por si mesmo. [...] O ego realiza no alter suas decisões. É
desse modo que o ego continua no alter. O poder proporciona ao ego espaços que não são
seus, nos quais, apesar da presença do outro, ele pode estar em si mesmo.” (HAN, 2019, p.
17). Pensando a partir de Han, a experiência da alteridade vai na direção oposta ao poder, já
que, naquela, as potências — a priori equivalentes — coexistem numa relação dialógica,
reconhecendo-se mutuamente, em contínua troca. A diferença é necessária nessa experiência e
tentativas de apagá-la ou submetê-la não são bem-vindas porque — obviedade — é a
existência do alter enquanto alter que permite a experiência da alteridade e a expansão do
mundo e das possibilidades do ego que se aproxima dele.
O reconhecimento de que o outro não é o mesmo que eu consagra a unicidade como o
dado radical que, diferenciando-nos, também nos assemelha. E quando falo de
reconhecimento, não falo apenas de entendimento racional, mas de realização. Não basta
simplesmente entender e dizer que somos diferentes se não percebemos nossas
particularidades. No trabalho criativo do CV as diferenças se acentuam. Percebo como
reverbera o movimento do outro em meu corpo, como essas qualidades podem ser recriadas
por mim, para quem são tão estranhas.
Uma vez que tenhamos reconhecido as unicidades, considerando-as como sujeitos,
vontades livres, vemos nelas outros e nos percebemos como o outro delas. A alteridade no CV
passa também pelo lugar de experimentar-se no outro. Michele Gonçalves (2015) elabora uma
síntese do processo do CV em quatro passos: alteridade, o processo de perceber o outro,
entrar em relação com esse outro a ponto de poder ser definido/guiado por ele, saindo do eu
174

apequenado e abrindo espaço para o jogo; escuta, desenvolvida a partir da presença da


música, nas primeiras etapas do trabalho, até que os atores comecem a escutar o silêncio. No
sentido amplo “significa estar desperto, ter atenção plena, mas sem tensão.” (GONÇALVES,
2015, p. 142); afecção, despertada a partir do desenvolvimento de um corpo-perceptivo,
quando se passa a escutar o outro e então permite-se ser afetado por ele; e reverberação, ou a
resposta à afecção, a reação psicofísica que se processa quando me deixo afetar pelo outro.
Gonçalves insiste que essas noções se interpenetram, e sabemos que, no processo do jogo, são
condições umas das outras e ocorrem de maneira simultânea. O gesto teórico de separá-las é
realizado apenas para que se possa falar delas de maneira mais didática.
Experimentação, experiência: perguntei a Marcelo em um email quais eram as
referências que sustentavam seu discurso quando falava sobre alteridade. O artista me oferece
uma pequena lista: Lévinas, Edgar Morin “em algum aspecto” e também uma relação indireta
com o pensamento budista. “Mas confesso que tudo isso só fui ler e verificar depois das
descobertas em Campo de Visão.” Suas maiores referências antes do estudo filosófico eram
poetas, “não há dúvida”: Fernando Pessoa, Walt Whitman, Rimbaud, Shakespeare e os
trágicos gregos. “Na verdade, o teatro é minha maior inspiração e referência sobre alteridade.
O que nos escancara diariamente seu sentido.” (LAZZARATTO, 2020, mensagem pessoal).
Encontramos aqui uma prática da alteridade, prática que leva às escolhas teóricas,
prática que determina o sentido do pensamento. O conceito e o discurso não vêm a priori,
mas são formulações da experiência, daquilo que efetivamente tocou a sensibilidade. A
alteridade no CV é questão de vivência, ou, como diria Marcelo, “Tenho certeza de que
quando você está focado você está no todo e quando você está no todo você está focado”.
(LAZZARATTO, aula de 28 jan. 2020).
175

5.2.1 Ifigênia, uma proposta radical

Ifigênia. Tesoura e caneta sobre o original de Eurípides.


O porto de Áulis.
O herói arde em fogo feito no atrito das pedras da ordenação do mundo e do desejo
do indivíduo.
Texto fixo para cena improvisada. Toda noite eles contariam a mesma história sob o
risco de uma nova encenação.
Poema para o verbo dever.
Uma onda é uma onda. Ondas juntas são mar.
PIRES, 2012, p. 47. Locução over ouvida no início de Ifigênia

Ifigênia foi um espetáculo estreado pela Cia Elevador em 2012, dirigido por Marcelo
Lazzaratto. No elenco estavam Carolina Fabri, Daniela Alves, Gabriel Miziara, Manfrini
Fabretti, Maurício Schneider, Pedro Haddad, Rodrigo Spina, Sofia Botelho e Wallyson
Mota.197
Esse espetáculo era improvisado ou jogado seguindo as regras do CV Livre. Em
Ifigênia, a questão fundamental da tensão entre indivíduo e grupo dá origem à lógica formal
do espetáculo, já que existe um grupo e uma estrutura textual e cênica, com diversos pontos
zero marcando o ritmo do espetáculo, e, uma vez que há um texto estruturando o “o quê” da
peça, a questão que se coloca na execução é “como?”: como fazer dessa vez? Como
acontecerá essa noite? — questão que exige que se responda a outra: “quem?” Quem assumirá
essa figura cênica? Quem proferirá as palavras previstas no texto? Pode ser interessante
voltar à imagem evocada por Triau, a respeito de Stanislas Nordey, da “travessia de uma
língua sustentada pelo conjunto dos intérpretes”198. Trata-se também aqui de atravessar esse
texto — ou de sustentá-lo até o fim da travessia constituída pelo espetáculo, quando enfim a
história já tiver sido contada.
Não assisti a Ifigênia, mas tive acesso a dois registros filmados em espaços diferentes:
uma apresentação no espaço Elevador, disponível na plataforma Cennarium Brasil199, e uma
apresentação no SESC Belenzinho, onde a peça foi ensaiada, disponível no YouTube200, que
dão ideia da reinvenção contínua do espetáculo por meio do jogo dos atores com as estruturas.
Além desses registros em vídeo, há textos de Rodrigo Spina e de Michele Gonçalves sobre
Ifigênia, além da conversa que realizei com Marcelo Lazzaratto em dezembro de 2019, na
qual conversamos sobre o espetáculo.

197
Alves, Botelho, Fabretti e Schneider eram atrizes e atores convidados.
198
Mencionada na página 57.
199
Disponível em: https://cennarium.com.br/espetaculos/45/ifigenia. Acesso em 27 out. 2020.
200
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4ISMxKCyS0U. Acesso em 27 out. 2020.
176

Em Companhia Elevador de Teatro Panorâmico – um livro, em artigo de Pedro


Haddad Martins, leem-se as seguintes descrições a respeito de Ifigênia:

Todos os nove atores sabem o texto da peça na íntegra, que é dividido


dramaturgicamente entre Mar (falas de um suposto coro) e Onda (falas que seriam
de determinado personagem, como em Onda/Clitemnestra”, “Onda/Aquiles”,
“Onda/Ifigênia” e “Onda/Coreuta”), enfatizando a ideia de um coletivo sempre em
movimento, no qual algumas individualidades eventualmente se destacam como
ondas, somente para depois voltar ao mar, onde foram gestadas. (MARTINS, 2017,
p. 30)
Durante a peça, temos a obrigação coletiva de falar o texto inteiro, respeitando a
ordem das falas, passando pela narrativa completa. Mas quem assume determinada
fala ou se destaca como determinado personagem, isso só é decidido na hora,
durante o jogo. O espetáculo nunca é o mesmo. Posso ser “Onda/Menelau” hoje, e
“Onda/Ifigênia” amanhã. Posso ser todos e posso ser nenhum. Posso ser
individualidade (onda), posso voltar ao coletivo (mar). Posso ser protagonista,
antagonista, deuteragonista, coro. (MARTINS, 2017, p. 34)

Abordando o texto logo no início, poderia parecer que Ifigênia é um espetáculo em


que o texto aparece em primeiro lugar. De fato, este é um elemento importantíssimo porque
era, além de coluna do espetáculo, seu maior desafio. O trabalho de atores e atrizes também é
sustentado pelo jogo do CV, que atinge o papel de elemento estruturante da linguagem da
cena. O que me interessa aqui, portanto, é pensar um pouco sobre os mecanismos que agem
na criação do espetáculo, mais do que sua execução em cena. E, no caso de Ifigênia, essas
duas instâncias se interpenetram de forma radical, uma vez que o espetáculo era jogado em
CV e se reinventava continuamente. E para que tenhamos alguma ideia do que os
espectadores efetivamente presenciavam em termos formais, penso que o melhor caminho
seria analisar pelo menos dois registros de apresentações diferentes. Como temos acesso a
dois vídeos, isso será feito com um pequeno trecho, apenas como demonstração da reinvenção
do espetáculo.
O Campo de Visão Livre permite que atores e atrizes entrem e saiam do jogo do CV
Tradicional a qualquer momento. Pode-se escolher seguir os colegas ou assumir
independência, seguindo o próprio fluxo associativo ou qualquer outro estímulo (como o texto
e a lógica das cenas, nesse caso), sempre em contato com o grupo. No CVL também se pode
escolher quem seguir, o que subverte a lógica marcada do líder existente no exercício base.
A criação de Ifigênia foi orientada por uma imagem proposta por Lazzaratto: o mar e
suas ondas:

Propus à equipe de criação de “Ifigênia” — atores, dramaturgo, diretora de arte,


compositor e iluminador — uma imagem como força motriz e guia de todo o
trabalho: o mar e suas ondas.
177

O mar, como metáfora do todo, do arquetípico, do coletivo.


A onda, como metáfora da parte, da subjetividade, do indivíduo.
Imaginem que todos são mar (coletivo) e que, de vez em quando, uma onda se
manifesta (indivíduo), desenha seus contornos específicos, dura seu tempo devido e
depois se esvanece, reintegrando-se ao mar. (LAZZARATTO, 2012, p. 7)

O texto da peça reflete essa relação entre mar e onda, figuração do binômio indivíduo-
coletivo. Ifigênia, o texto de Cássio Pires, é dividido em 8 cenas, cada uma iniciada por um
momento nomeado “Ponto Zero” em que o Mar se expressa. Na encenação, esses Pontos Zero
eram realizados em diversas organizações espaciais, nenhuma delas recriando o U do jogo do
CV. Na maior parte, os textos eram cantados pelo coro. Após o canto, em geral, os atores
realizavam um gesto inicial, como se tivessem ouvido a chamada de “ação” feita pelo
condutor, e o jogo do espetáculo se desenvolvia.
A diferença do primeiro espetáculo em que o CV se estruturou como linguagem
cênica, Amor de Improviso (2003), para Ifigênia é que, em Amor de Improviso não havia uma
fábula única ou, pelo menos, uma grande estrutura textual que deveria se repetir. Atores e
atrizes gozavam de certa liberdade na execução de suas cenas. A dramaturgia do espetáculo
era mais fragmentária, um trabalho mais performativo, como lhe chamou Lazzaratto. 201 Em
Ifigênia, ao contrário, havia não apenas uma fábula, uma história a ser contada, mas uma
estrutura textual fixa, com figuras que se sucediam obrigatoriamente na trama dos diálogos e
comentários sobre a cena. Havia um guia para o que era dito, mas a forma do dizer seria
definida pelo jogo202. Se um grupo de atores, formando um pequeno coro, iria dividir o
discurso de uma personagem, se uma atriz iniciaria uma tirada e seria sucedida por outra, se
essa primeira retomaria a voz ao fim daquela mesma réplica, apenas o jogo poderia dizer.
Apenas para ilustrar essa dinâmica do espetáculo, gostaria de comparar um momento
do texto de Ifigênia nas duas gravações a que tive acesso. O texto de Cássio Pires aparecerá
em letra normal, eventuais modificações na fala dos atores aparecerão sublinhadas. As
movimentações e gestos dos atores aparecem entre colchetes, em itálico.

Vídeo gravado no SESC Belenzinho. Disponível no Youtube – 40min42s a 42min38s.

[Carolina Fabri, fazendo Clitemnestra, e Manfrini Fabretti estão no centro do espaço. O


elenco, em forma de cardume, está na direita baixa]

201
Em conversa no dia 12 dez. 2019.
202
Ver p. 119.
178

ONDA/AGAMÊMNON
[Manfrini Fabretti] Amo meus filhos, e seria demente se não os amasse. Ousar é um suplício
enorme para mim, e não ousar também me deixa infeliz. [O coro se divide, andando curvados
até o outro lado da cena, uns pela frente de Carolina, outros atrás de Manfrini. Reúnem-se
na esquerda.] Que poderei fazer, Clitemnestra? Eu sou refém de um imperativo muito, muito
mais forte que minha própria vontade. [O coro novamente anda para a direita. Alguns entre
os dois e outros pela frente de Carolina] Sim, Clitemnestra, [O coro começa a se dividir, dois
atores se posicionam atrás de Carolina, os outros ficam em volta de Manfrini.] sim, minha
filha, o sacrifício é realmente inevitável. Não depende de mim, nem de vocês. [O coro evolui
rapidamente pelo espaço, quase todos ficando à esquerda].
ONDA/CLITEMNESTRA
Ai, minha filha, [Olhando diretamente para um ator que está ajoelhado atrás dela. Ele
assume a atitude corporal de Ifigênia. O coro estende as mãos para Manfrini, como se
quisessem se proteger.] a possibilidade de teu fim me alucina! Teu pai agora nos abandona,
depois de te condenar desta forma ao Hades! [Alguns coreutas começam a se mover da
esquerda para a direita, ainda agachados, dando voltas no próprio eixo.]
ONDA/IFIGÊNIA
[Gabriel Miziara, que está próximo de Manfrini] Não me tira a vida antes da hora, pai!
É doce ver a luz do dia! Não me faça
Contemplar as profundezas infernais!
Eu fui a primeira que te chamou de “pai”.
[O coro começa a se aproximar de Manfrini, indo para o centro do espaço.]
Eu fui a primeira que te ouviu dizer “filha”.
Eu fui a primeira que sentou-se em teus joelhos.
De ti, eu ouvi que um dia eu seria feliz,
No lar de daquele que viesse a ser o meu esposo.
[Vemos o coro agachado e, no centro, Sofia Botelho, em pé. Têm as mãos estendidas para
Manfrini, como numa súplica.]
Respeita, pai, [Sofia se volta para a frente, encarando o público, ainda com os braços
estendido] o teu próprio sangue!
Tem piedade e me poupa!
[Manfrini lança um grito grave]
ONDA/COREUTA
[Wallyson Mota] Agamêmnon agora não deverá suportar o lamento de sua filha.
179

Nesta hora, ele deverá afastar-se de Ifigênia.

Figuras 26 e 27 – Súplica de Ifigênia a Agamêmnon.

Fonte: Frame retirado de IFIGÊNIA, 2012. No primeiro plano, Carolina Fabri como Clitemnestra dirigindo-se ao
ator que elegeu como Ifigênia. Gabriel Miziara ao fundo, como Ifigênia, dirigindo-se a Manfrini Fabretti como
Agamêmnon.

Fonte: Frame retirado de IFIGÊNIA, 2012. À esquerda, Carolina Fabri e o ator eleito por ela como Ifigênia. À
direita, Manfrini Fabretti em pé e Gabriel Miziara abaixado. Ao centro, coro com Sofia Botelho em pé.
180

Vídeo gravado no Espaço Elevador. Disponível na plataforma Cennarium Brasil –


44min42s a 47min36s.

[Daniela Alves, fazendo Clitemnestra, e Gabriel Miziara, fazendo Agamêmnon, estão na


esquerda central. O coro está reunido na direita, agachados, com exceção de Carolina Fabri,
que está em pé, fazendo Ifigênia. Rodrigo Spina está na esquerda alta, fora da luz.]
ONDA/AGAMÊMNON
[Gabriel Miziara] Eu amo meus filhos, e eu seria demente se não os amasse. Ousar é um
suplicio enorme para mim, mas não ousar também me deixa infeliz. O que poderei fazer? Eu
sou refém de um imperativo muito maior que a minha própria vontade. Sim, Clitemnestra,
sim, minha filha, o sacrifício é realmente inevitável. [O coro se aproxima de Carolina.
Estendem as mãos para ela.] Não depende de mim, e nem de vocês.
ONDA/CLITEMNESTRA
[O coro vai para trás de Carolina, tocam-na com as mãos em diferentes regiões do tronco e
dos braços. Estão em pé.]
[Daniela Alves] Minha filha, a possibilidade de teu fim me alucina! Teu pai agora nos
abandona, depois de condenar-te desta forma ao Hades!
ONDA/IFIGÊNIA
[Carolina Fabri] Não me tira a vida antes da hora, pai!
É doce ver a luz do dia! [Dá um passo. O coro continua tocando-a.] Não me força [Outro
passo.]
A contemplar as profundezas infernais! [Mais um passo, maior.]
Eu sou a primeira que te chamou de “pai”. [Dá um pequeno passo. Percebe-se que o coro
oferece resistência à sua aproximação, puxando-a levemente para trás. Nem todos a tocam.]
Eu sou a primeira que te ouviu dizer “filha”. [Dá dois passos, vencendo a resistência.]
De ti, eu ouvi que um dia eu seria feliz,
No lar daquele que viesse a ser o meu esposo.
Respeita, pai, teu próprio sangue!
Tem piedade, pai. Me poupa!
[Carolina Fabri se desvencilha do coro num gesto leve, se joga nos braços de Gabriel
Miziara e se agarra a ele, em um gesto de desespero.]
181

Figuras 28 e 29 – Súplica de Ifigênia a Agamêmnon.

Fonte: Frames retirados de IFIGÊNIA [s/d].

ONDA/COREUTA
[Rodrigo Spina, que permaneceu na esquerda alta todo o tempo] Agora, Agamêmnon não
deverá suportar o lamento de Ifigênia. [Dois atores do coro se agacham e começam a fazer o
gesto de escrever no chão. Um ator se junta a eles.] Nesta hora, o grande general deverá se
afastar. [Gabriel Miziara anda para trás, deixando Carolina Fabri no chão. Ela, de cabeça
182

baixa estende suas mãos para alcançá-lo, até não conseguir mais tocá-lo, quando baixa as
mãos ao chão.]

Observar os nomes que se repetem nos dois registros dessa cena — Gabriel Miziara e
Carolina Fabri — é suficiente para notarmos o trânsito dos atores pelas estruturas do texto, no
processo de criação-apresentação do espetáculo. Enquanto no primeiro registro Carolina faz
Clitemnestra tendo Manfrini Fabretti como opositor no conflito e Gabriel faz Ifigênia, no
segundo registro vemos Ifigênia sendo feita por Carolina e Gabriel no papel de Agamêmnon,
opondo-se a Daniela Alves. No primeiro registro, não há Ifigênia em cena até que Gabriel
Miziara tome a palavra, enquanto no segundo ela é desempenha por Carolina Fabri desde o
momento anterior, em que sai da tenda. Na cena do primeiro registro, a saída de Ifigênia da
tenda simplesmente não aparece, mas acompanhamos o desenrolar da história, porque tanto as
ações de Ifigênia quanto seu estado são mencionados por Agamêmnon e Clitemnestra.
Embora não esteja contida no pequeno trecho em análise, a aparição de Carolina Fabri
como Ifigênia é bastante reveladora da atenção ao kairós necessária para o desenrolar do
espetáculo: quando Daniela-Onda/Clitemnestra ordena que a filha saia da tenda, o coro está
na direita, agachado. Três atores na frente, dois no meio e um atrás. Carolina Fabri está na
linha do meio, em posição central, portanto. A composição será visualmente interessante.
Quando Daniela lança o chamado, vemos Carolina se levantando com decisão. Ifigênia está
em cena. Se outra atriz ou ator, Sofia Botelho, por exemplo, que desempenhava muitas vezes
o papel de Ifigênia, tivesse tido a mesma atitude, não haveria problemas. Duas Ifigênias
poderiam habitar a cena, dividir o texto e até mesmo pronunciá-lo em uníssono. Essa
duplicidade de ondas, e as diversas possibilidades que gera, pode ser vista em diversos trechos
desses registros.
183

Figura 30 – Momentos antes do chamado de Clitemnestra.

Fonte: Frame retirado de IFIGÊNIA [s/d].

Figura 31 – Carolina Fabri, no coro, põe-se em pé e torna-se Onda-Ifigênia, após o chamado


de Daniela/Onda-Clitemnestra.

Fonte: Frame retirado de IFIGÊNIA [s/d].

Sobre o trânsito dos atores pelas figuras do texto, Marcelo Lazzaratto diz o seguinte:

Qualquer pessoa podia fazer qualquer coisa a qualquer momento. É claro que tem,
na latência dos indivíduos, arquétipos que vibram com facilidade, entendeu?
184

Então, vai, você é um ator que pode vibrar com uma certa facilidade o Agamêmnon
ou uma Clitemnestra, e conforme a gente ensaiou... essa é a peça que eu mais dirigi
sem nunca ter dirigido, né. Porque a gente ensaiava muito e todas as direções eram
um retorno pós-acontecimento. [...] Então é claro, se a gente fez 100 apresentações
de Ifigênia, a Carolina Fabri deve ter feito, em 80 delas, em algum momento, a
Clitemnestra. Porque ela vibrava a Clitemnestra com muita potência. Assim como o
Gabriel Miziara deve ter feito, em 70 delas, em algum momento, o Agamêmnon,
entendeu? Não há dúvida... [...] Mas eu te garanto que em 50 por cento delas algum
garoto fez ou Ifigênia ou Clitemnestra e alguma garota... alguma garota fazer
Agamêmnon ou Menelau, sempre. Assim, era uma coisa muito comum. [...] Era
coro-personagem, porque não tinha um indivíduo que defendia um personagem,
então você podia defender Agamêmnon durante um tempo, mas você saía do coro,
então era um coro-Agamêmnon. (LAZZARATTO, entrevista de 11 dez. 2019)

Existe, portanto, uma liberdade de escolha, mas há arquétipos que vibram com
facilidade em determinados indivíduos, conteúdos que são mais facilmente acessados. E esse
fato, pelo que posso perceber, é obra da natureza e da história particular de cada um. Mas os
atores de Ifigênia não estavam fadados aos conteúdos que lhes vinham naturalmente. A
possibilidade da construção poética estava presente:

Psiquicamente nós temos, sim, contato, consciente ou inconscientemente, na


verdade, pensando psicologicamente, inconscientemente, com vibrações
arquetípicas, meio que naturais, meio que espontâneas, meio que sem juízo de valor.
“Agora, eu quero vibrar o arq...” Não. Meio que isso acontece em você. Não é? E
você não precisa ficar lutando contra isso. Então tinha uma garota, a Sofia, que ela
fazia várias vezes a Ifigênia. Quando ela fazia a Ifigênia, a voz dela, o timbre dela, a
sensibilidade dela, faziam a Ifigênia aparecer com muita tranquilidade. Quando o
Wallyson, um cara de um metro e noventa, fazia a Ifigênia, era um esforço, um
esforço bonito, um esforço poético de construção pra dar conta daquele
imaginário. Porque naturalmente aquela figura, de um homem barbadão de um
metro e noventa, de um homem forte, musculoso não era a primeira impressão
jamais de uma Ifigênia. Mas ela aconteceu algumas vezes ao longo da peça,
entendeu? Ao longo da vida da peça. (LAZZARATTO, entrevista de 11 dez. 2019)

Abrir espaço e lidar naturalmente com as próprias facilidades ao mesmo tempo em que
se realiza o esforço de construção das imagens mais distantes. Essa fórmula, se pode ser um
resumo geral do caminho da atuação, potencializa o trabalho do coletivo, promovendo o
diálogo entre conteúdos familiares e conteúdos alcançados no processo de criação-
apresentação do espetáculo devido ao contato com os outros artistas.
Em relação ao texto, percebo que este se funde à proposta da encenação, o que é
natural quando consideramos que foi criado a partir do mesmo estímulo que guiou a criação
dos outros elementos. Mesmo quando tomado como um objeto à parte, como um texto para
teatro, essa escrita tem, para dizer com Sarrazac (2012) um devir cênico coral. Sua estrutura
divide-se em Mar (o coro, no Ponto Zero de cada uma das oito cenas) e ondas, nomeadas
como as personagens (Onda/Clitemnestra, Onda/Ifigênia) ou simplesmente Onda/Coreuta.
185

Embora não houvesse um compromisso de ilustração do texto, havia um compromisso


com sua enunciação e, mais do que isso, com os sentidos veiculados pelas palavras e os
estados vivenciados pelas personagens. Para que o jogo funcionasse, o elenco precisava não
só de um profundo conhecimento de toda a trama textual, sabendo quais eram as ações e
estados das figuras cênicas, personagens e narradores, como também de um acesso rápido a
tais estados: “a mudança é radical, como Lazzaratto diz: um disjuntor. Ligar e desligar tais
estados é muito mais complicado ao ator do que entender linearmente a construção de seu
personagem.” (SPINA, 2014, p. 106). Essa necessidade de abertura ao jogo e resposta rápida
fazia com que os atores estivessem “em constante estado de alerta, o que traz uma vibração
poderosa para o espetáculo.” (GONÇALVES, 2015, p. 154). Podemos intuir como a regra
desse jogo coral radical potencializava a presença dos jogadores.
Durante o espetáculo, os atores contaminavam-se uns pelos outros, formando coros,
reagindo ao movimento que ocorria próximo a si, escolhendo quem seguir e percebendo quais
escolhas deveriam ser feitas. Mas nem todas as escolhas eram feitas no calor do momento. A
criação do espetáculo, ainda antes da chegada do texto à sala de ensaio, contou com um vasto
trabalho em CV, como atesta Rodrigo Spina (2014, p. 107):

Ifigênia foi concebida pelo Campo de Visão mesmo em sua pesquisa de construção
de personagens. No início, buscávamos compreender pelo Campo de Visão quais
eram as manifestações corais de nossos Agamêmnons, de nossas Clitemnestras e
Ifigênias. Pelo jogo, buscávamos a identificação coletiva de aspectos individuais
desses mitos. Sendo assim, Agamêmnon foi criado a nove mãos e cada ator, com seu
traço distintivo, pôde contribuir para a construção desse personagem criado
exclusivamente por esse coletivo, mas com humanidades universais, pois transgride
a criação de um único indivíduo com suas primeiras interpretações e possíveis
maneirismos sobre esse material poético.
Antes de surgir o texto, buscávamos entender onde o mito se manifestava em nosso
corpo e em nosso gestual. Desenvolvemos assim uma “gestoteca” para cada
personagem e para os diferentes narradores e os coros. Essa “gestoteca” serviria
como um primeiro acesso coletivo ao estado dos personagens. Um gesto de Aquiles,
por exemplo, foi descoberto como sendo a síntese de um guerreiro infalível,
qualidade ligada a esse personagem. Esse gesto foi concebido por um ator na
dinâmica de levantamento de traços distintivos e estados de Aquiles e encontrou
ressonância no grupo todo pelo Campo de Visão.

Ou seja, houve uma pesquisa prévia que repertoriou os lugares férteis encontrados
pelos atores em seu trabalho, lugares que, a partir da vivência de cada um em CV, foram
pesquisados mais e mais vezes e tornaram-se possíveis para qualquer membro do elenco —
uma boa imagem para pensar a noção de comportamento restaurado proposta por Richard
Schechner. A gestoteca constituía-se do mesmo modo: um arsenal de bits de comportamento
que poderiam ser acionados de acordo com a função/figura desempenhada por cada um. Em
186

Ifigênia, o imaginário construído coletivamente na feitura da obra — que sustenta a criação de


um grupo como o Vertigem, por exemplo, em que a criação pode nascer de diversas
experimentações da mesma personagem por atores e atrizes diferentes — não se limita a ser
uma base, uma partilha efetuada antes do nascer do espetáculo, naquele tempo mítico que é o
tempo da criação. O ‘mito de origem’ é diferente nesse tipo de processo, não se resume a algo
como: “naquele tempo, quando as escolhas foram feitas, quando as experimentações estavam
em vigor para que chegássemos nesse resultado, houve uma investigação levada a cabo por
Fulano e Cicrana, depois retomada por Beltrano e isso marcou o que fazemos hoje.” Aqui
não. Nessa obra, o imaginário coletivo, as experimentações por indivíduos diferentes, são
constantemente reatualizadas. A cada vez corria-se o risco tanto de uma nova encenação,
como dizem as palavras ouvidas no início do espetáculo, como de uma nova boa descoberta.
Uma organização espacial, uma composição de vozes, uma estrutura de cena que poderiam
funcionar tão bem a ponto de serem adotadas pelo coletivo, integradas em seu inventário de
possibilidades.203
A igualdade das figuras cênicas é dada de saída: sabemos que os atores estão
improvisando e a cada dia correm o risco de uma nova encenação. No entanto, podemos nos
perguntar até que ponto o público conhecia as regras desse jogo e como a recepção dessa peça
era diferente para aqueles que conheciam os fundamentos da improvisação, ou pelo menos
suas condições (todos os atores saberem o texto e construírem a cena no momento de seu
acontecimento) e aqueles que não sabiam o que se passava com os criadores. 204
Um ponto que considero interessante para pensar a possibilidade de um trabalho como
Ifigênia é a continuidade da pesquisa realizada por aquele grupo. Em nossas conversas,
Marcelo ressaltou mais de uma vez a necessidade de trabalhar com um elenco estável, em
pesquisa contínua, para montar um espetáculo com essa estrutura e desafio técnico. Falando
sobre a geração da cena pelo CV, Lazzaratto diz que o primeiro meio é o de criar materiais
que serão processados pela direção, e prossegue:

O outro meio é quando a própria peça será improvisada tendo o Campo de Visão
como linguagem. Aí os donos dessas escolhas estéticas são os atores, que é o
Ifigênia, que é o que eu te falei: é a peça que eu mais dirigi e que eu menos dirigi.
Mais dirigi no sentido de todos os subsídios subliminares, e que eu menos dirigi no

203
Não conversei com Marcelo Lazzaratto a respeito dessa possibilidade nem encontrei menções a ela nos textos
aos quais tive acesso, mas mesmo que não tenha ocorrido ou mesmo sido considerada, entendo que a
possibilidade existia devido ao processo de criação e constante recriação da obra.
204
Embora essa informação esteja no primeiro áudio ouvido antes de se iniciar o jogo dos atores, houve
“pessoas que saíram do espetáculo sem descobrir isto”, como relata Michele Gonçalves (2015, p. 154).
187

sentido assim: “agora faça isso, agora acelera o ritmo assim, agora vem pra cá, agora
olha lá, agora vai pra ali, agora olha pra ela, não olha pra ela, olha pra frente, olha
pro público”... Isso tudo foi pensado e processado ao longo de tantos fazeres, mas na
hora do vamo ver essas escolhas eram todas dos atores. Entendeu? Então tinha uma
construção, e aí, claro, isso só dá pra fazer com um grupo de trabalho de pesquisa
continuada que começa a falar uma mesma língua, senão não dá pra fazer. [...] Vai
ter muitas fragilidades. O improviso já revela muitas fragilidades. Revela muitas
potências, mas também revela muitas fragilidades. O improviso que está concebendo
todo o espetáculo, com escolhas estéticas em improviso, só se tiver ali uma força
coletiva de entendimento de uma linguagem que só é adquirida depois de um tempo.
Tanto, que eu quis fazer o Ifigênia depois de 12 anos. Entendeu? Se eu fizesse o
Ifigênia em 2003, quando a gente fez Amor de improviso, ia ser ruim, ia ser um tiro
n'água. (LAZZARATTO, entrevista de 11 dez. 2019)

Ao mesmo tempo, Lazzaratto afirma que

em uma hora de trabalho, uma hora de trabalho de Campo de Visão com pessoas que
nunca se viram, depois de uma hora você que tá do lado de fora fala “nossa, tá
harmonizando esse coletivo”. É impressionante como essas frequências de pessoas
que nunca se viram de repente começam a entrar em estado de interação.
(LAZZARATTO, entrevista de 11 dez. 2019).

Qual a grande diferença? Ifigênia é uma proposta radical. Constrói-se na radicalidade


de improvisar um espetáculo com texto fixo, na radicalidade de improvisar um coro e
personagens que têm traços definidos. Constrói-se na radicalidade da escuta do outro e da
exposição de si mesmo em necessária harmonia. Mesmo para aqueles que, como eu, não são
praticantes de longa data, o Campo de Visão se mostra como uma grande ferramenta de
improvisação coral. Mas no campo da arte teatral as ferramentas acabam por se fundir aos
artistas. Se a disposição de ânimo e a sensibilidade do artista se tornam empecilhos para a
efetivação do ato, não há técnica, princípio ou ferramenta que resolva. Embora já tenhamos
percebido que o CV requer a presença e a atenção do ator, e opera no sentido de promover a
abertura ao outro, a mesma prática que leva à perfeição pode levar à morte, ou pelo menos ao
enfraquecimento da espontaneidade, e nem Ifigênia escapou disso.

O Campo de Visão é um jogo sensível, seus intérpretes devem estar muito porosos e
com sua escuta muito dilatada para que a criação seja genuína. Mas às vezes não é.
Às vezes, como Lazzaratto atenta, não fazemos Campo de Visão, no sentido mais
profundo da dinâmica. A peça assim acontece com uma “coreografia” bela, pois o
Campo de Visão traz também essa qualidade visual, e simplesmente informamos a
plateia sobre a tragédia do mito. A voz achata-se a uma primeira compreensão e
opção em relação ao texto – por mais que já tenhamos adquirido novas camadas –
timbres graves e “óbvios” surgem à cena, como no início dos ensaios, afastada do
material mítico e humano.
Ifigênia nos ensina o tempo todo que é preciso gestar coletivamente. Nós, atores,
deveremos silenciar, deveremos escutar antes de falar, receber antes de agir, esboçar
antes de formalizar, respirar juntos, em alteridade. (SPINA, 2014, p. 109)
188

Esse relato de Spina nos lembra que, em última instância, mais do que o sistema do
CV, que ao longo de mais de vinte anos vem se provando eficaz e frutífero, o que determina a
qualidade da performance do ator — qualquer uma, mas arrisco-me a dizer que especialmente
aquela que é concebida de forma coral, e mais ainda em improviso — é a sua abertura ao
outro ou — para falar com Lazzaratto e com o próprio Spina — sua experiência da alteridade.
189

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho foi realizado na academia brasileira, por um pesquisador brasileiro, mas
está extremamente balizado em exemplos europeus e, mesmo quando volta os olhos a artistas
e teóricos brasileiros, se concentra no grande centro teatral que é a cidade de São Paulo. Penso
que as considerações finais precisam começar com uma contextualização.
Como dito na introdução, esse trabalho tem por objetivo localizar o debate sobre a
coralidade. Procurei apresentar potências desse princípio de criação a partir das fontes mais
utilizadas por nossos estudos e nessa trajetória percebi o que já intuía: continuamos
referenciando Sarrazac, Mégevand e Triau. Alfredo Bosi e sua proposta (brasileira) de
coralidade na poesia foram uma grata surpresa, mas quero fincar o pé no terreno teatral e não
poderia, em nome da valorização do conhecimento brasileiro, fechar os olhos para o uso que
já está acontecendo no Brasil, e que toma como referência o grupo francês.
As fontes que apresentei podem e devem ser mais bem exploradas, por outras, outros e
por mim, mas penso que este trabalho, que busca apresentar um panorama, já nos propõe uma
pergunta urgente: e no Brasil?205 E no conhecimento genuinamente brasileiro? E nas
manifestações culturais brasileiras? Onde estará, em terra brasilis, isso a que chamamos
coralidade? Quais são as nossas formas que promovem o aparecer da
coletividade/comunidade na cena? E mais: quais as potências que, em nosso país, pulsam nas
performances corais? Nossas coralidades são coralidades fascistas? Coralidades espirituais?
Coralidades que se querem uníssonas ou dissonantes? Em nossas manifestações culturais, o
que já existe? Na arte feita no Brasil, o que já existe? Quais as imagens presentes no
imaginário de nossa sociedade que o recurso a uma coralidade pode evocar? Existe mesmo
essa história de evocar imagens do imaginário social devido ao simples uso de um princípio
de composição? Questões que correm abaixo e para fora dos limites desse texto, mas que,
espero, possam ser enfrentadas a partir dele.
A maior parte desse texto tomou corpo em 2020, o ano da pandemia do novo
coronavírus. Escrever sobre os potenciais da coralidade fechado em casa, não tendo contato
próximo com ninguém a não ser meu colega de apartamento nos primeiros meses, vendo

205
Para iniciar esse debate, temos: Fábio Cordeiro, que explora em seus trabalhos o emprego das formas corais e
da criação colaborativa; Letícia Coura, que em sua dissertação na USP, analisa o trabalho com o coro n’Os
Sertões, do Teatro Oficina; Francisco Lima Dal Col, que está elaborando sua dissertação também na USP,
provisoriamente intitulada Corpos Radicais em Coralidade; e Rodrigo Leme, elaborando sua dissertação de
mestrado na UFMG, que investiga a coralidade em obras do cinema brasileiro contemporâneo, além de
outras referências citadas durante o trabalho.
190

minhas amigas e amigos de vez em nunca, com cumprimentos de cotovelo, foi uma
experiência de dissociação. A realidade que estava experimentando não me movia em direção
à escrita. Os trabalhos de investigação prática, planejados para sustentar o subtexto da escrita,
não aconteceram. Como exaltar as potências do convívio humano convivendo com o fantasma
da peste?
No percurso de responder às questões mobilizadoras da escrita — ‘O que é a
coralidade?’, que depois se tornou ‘O que se quer dizer quando se diz coralidade?’ e ‘Quais
são as potências da coralidade?’ —, foi necessário tentar tecer a imagem do coro e perceber
que os entendimentos sobre esse elemento não são estáveis. Há muitos grupos a que
chamamos coro, assim como há muitos fenômenos artísticos a que chamamos teatro. O coro
pode ser uníssono e ritual, como parece ter sido o caso das tragédias atenienses, pode se
dividir em semicoros, pode ser um coro que busca a união dos indivíduos, na trilha de
Nietzsche e tomando como exemplo o experimento de Laban, e esse mesmo coro de retorno à
unidade primordial pode ser cooptado para os propósitos identitários mais reducionistas e
odiosos, o que de fato aconteceu com a proposta labaniana e cujo vislumbre gerou o que as
fontes acionadas consideram como equívocos a respeito do trabalho de Schleef. A massa
sensível do coro se impõe no acontecimento teatral, e é na massa sensível que identifico sua
existência — e volto a dizer o que disse no primeiro capítulo: o coro não parece bom objeto
para a abstração. O discurso sobre o coro ganha muito quando feito a partir de um coro real,
ou das potencialidades de um coro real, já que o coro só existe na performance.

Reflexões abertas:

A crise do drama — que parece ser uma das grandes fontes da coralidade nas formas
modernas e contemporâneas e especialmente dos discursos sobre ela — se deflagra a partir da
incapacidade da forma dramática de conter os novos assuntos, as novas mentalidades. Os
monstros das dramaturgias contemporâneas — que retomam inclusive alguns traços do
selvagem teatro medieval, como as estações, por exemplo — não poderiam ser contidos pelas
jaulas estreitas da visão burguesa do mundo. O que poderá ser dito então da arte da
encenação, que se concede todas as liberdades de trato com materiais, na mais fértil
promiscuidade entre as artes? A coralidade floresce à medida em que as caixas são quebradas,
em que as estruturas rígidas implodem. As florações corais, para dizer com Martin Mégevand
(2013, p. 38) são nutridas pelas mesmas raízes que levantaram as pedras da rua, que
191

quebraram o asfalto. As formas corais, por domadas que possam estar em determinada
criação, trazem em si a semente da subversão formal, da vida pulsante (o que também parece
ser o caso dos coros de Laban).

As práticas de coralidade guardam em si princípios de base para a prática do teatro de


maneira geral. Não por acaso, tratam-se muitas vezes dos exercícios mais iniciais e
preparatórios desenvolvidos até o ponto em que se tornam práticas autônomas e meios
independentes de composição. Lembremos do Campo de Visão de Marcelo Lazzaratto e de
sua provável filiação ao ‘siga o mestre’, jogado na maioria das vezes por crianças e iniciantes
na arte da atuação. O que o pensamento coral propõe em relação à prática da sala de trabalho
é uma radicalização206 dos princípios da prática teatral: percepção do entorno e do outro,
atenção, ação em relação, trabalho com o tempo-ritmo, improvisação (tanto no sentido
‘largo’, de criação de novas formas, quanto no sentido ‘estreito’, de adaptação às
circunstâncias e aos pares a partir da atenção e avaliação). Defino o teatro como a arte de
viver em relação a: ao parceiro (real ou imaginário), ao espectador, ao espaço, ao mundo
interno e externo. O princípio coral, talvez mais espontaneamente que qualquer outro arranjo,
oferece oportunidades para que isso aconteça e, dependendo das características do trabalho,
pode exigir que essa vida se efetive, revelando impiedosamente quando ela não se realiza.

A lógica básica da coralidade, a tensão e o movimento permanentes entre o individual


e o coletivo, o um e o muitos, faz com que diversos campos possam ser convocados para sua
análise. Muitos são os movimentos fecundos que podem se estabelecer no pensamento sobre a
coralidade e na prática coral. Pode-se propor, por exemplo, a coralidade como revelação dos
processos do mundo, os movimentos do universo, da vida e das comunidades humanas, nas
potências do singular anônimo e do coletivo, com suas microbelezas e momentos de grande
intensidade — poderíamos estudá-la assim a partir da herança da sabedoria chinesa
(JULLIEN, 2000). Pode-se pensar também a coralidade de uma maneira um tanto pessimista,
como figuração de uma comunidade desmembrada, de “um tecido social [...] fragilizado pelo
individualismo pós-moderno” (LÉGER, 2008, p. 11) e estudá-la a partir das relações sociais,
da sociedade do espetáculo e do consumo. Pode-se pensar a coralidade ainda como proposta
imagética de uma comunidade que vem (AGAMBEN, 1993), como desejo (ou utopia) de
liberdade na aceitação da multiplicidade e, para isso, evocar os pensadores políticos que se

206
Ou seria uma “rizomatização”?
192

dedicam à ideia de comunidade. Pode-se pensá-la, muito concretamente, em suas óbvias


relações com a música e convocar a teoria musical a expor os fundamentos da harmonia, as
relações entre as notas desde o regrado mundo tonal até a quase aleatoriedade do atonalismo,
os encontros de ritmos, a abertura de vozes num coral ou a multiplicidade de timbres que
compõem uma orquestra. Pode-se falar de coralidade recorrendo a uma filosofia que
evidencie a unicidade de cada ser humano, e as decorrências do reconhecimento dessa
unicidade na ocasião do encontro um a um, ou do encontro plural no grupo, na comunidade.
Podem-se tecer discursos sobre a coralidade a partir de um espírito de união, a partir, por
exemplo, da reunião de corpos dissidentes que têm obviamente em comum o fato de serem
dissidentes.207 Poder-se-ia pensá-la a partir do conceito de communitas, comunidades
transitórias que se formam devido à suspensão das hierarquias sociais habituais em eventos
específicos e que têm a duração desses eventos? (TURNER, 1974).
O que, no campo do teatro, uma reflexão que convoque a coralidade não pode
esquecer, é que ela é antes de tudo um princípio de criação, uma lógica que opera nas obras.
Há a necessidade de se reconhecer, portanto, a coralidade como princípio/qualidade operante
na forma da cena. Exemplo limítrofe: um espetáculo solo em que uma figura cênica, ou um
atuante que se apresenta em seu próprio nome, discorre sobre a questão do indivíduo e do
grupo e um espetáculo solo sobre um tema qualquer em que o atuante convoca diversas vozes
— ou atua diversas personagens — no tecido de sua narrativa são obviamente diferentes e é
bem mais provável que apenas o segundo possa ser aproximado a uma lógica coral, porque
nele a multiplicidade é um traço formal, e não apenas temático.208
Neste trabalho, dediquei-me a pensar a coralidade como um princípio de criação, tanto
na prática criativa de atores e encenadores em sala de trabalho quanto na composição da
encenação propriamente dita, composição que é apresentada aos espectadores. Mesmo na
prática atoral, ela não deixa de ser uma questão de forma, de orientação do trabalho a uma
determinada qualidade, enfim, de composição.

Um motivo recorrente, tanto nas autoras e autores que falam especificamente sobre
coralidade, quando no trabalho dos filósofos que foram acionados na pesquisa, é o terreno
comum ou a indistinção primordial de onde a diferença pode surgir. É a voz de Deus, trazida

207
As obras de Judith Butler, por exemplo, apresentam abundância dessas imagens.
208
Peter Szondi fornece um exemplo que evidencia essa distinção: “Num drama em que uma canção é entoada, o
canto é temático, e formal, ao contrário, na ópera. Por isso, permite-se às dramatis personae aplaudir a
cantora, ao passo que as figuras da ópera não podem ter consciência de que cantam.” (SZONDI, 2011, p. 82).
193

por Cavarero; é o dionisíaco, afirmado por Nietzsche; é a pressuposição da igualdade que


permite a comunicação e o reconhecimento das diferenças no pensamento de Rancière. É
também o terreno da afinação das energias coletivas e dos arquétipos que podem ser
acessados pelos jogadores do Campo de Visão. No fundo de cada um desses pensamentos e
práticas existe a ideia de um território originário que pode ou deve ser redescoberto ou
reinstaurado para que as singularidades possam se afirmar. Pelo que pude perceber, esse
processo em (no mínimo) 2 tempos segue sempre a mesma ordem no pensamento de todas
essas fontes: vai-se do comum, do indistinto, para o único, o diferente. E apenas sobre o
terreno coletivo o singular pode se afirmar como tal. Fora de uma base primária comum,
qualquer afirmação de individualidade parece destinada a cair no caos ou na solidão de uma
existência (que se pretende) totalmente separada. Sobre essa base, podemos alcançar a
realização da unicidade, que nos leva à experiência da alteridade.

O efeito de coletivo caracteriza a coralidade, mas para que haja polifonia é preciso
haver diferença e que essa diferença seja percebida.

Ao propor a coralidade possível do terceiro capítulo, penso em uma coralidade —


qualidade ou espírito comunitário, poderíamos dizer — coerente, que possa permear todas as
instâncias da criação e da vida artística.
Que nos seja possível.
194

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INÚTIL CANTO e inútil pranto pelos anjos caídos. Encenação de Rogério Tarifa. São Paulo:
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2020.

SPORTCHOR aus "Ein Sportstück" von Jelinek (R.: Schleef). 1 vídeo (5min42s). 1998.
Postado pelo canal belagerungspanzer em 26 ago. 2008. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=fbcON50JRJA. Acesso em 10 dez. 2020.

THE INTERNATIONAL Ibsen Award 2018. (1vídeo) 2min41s. Postado pelo canal
Nationaltheatret Oslo em 20 mar. 2018. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=5RCsWynyJOE. Acesso em: 31 dez. 2020.
202

APÊNDICE A – SOBRE CORALITÀ

Mesmo não sendo conhecedor da língua e cultura italianas, parece-me que o termo
coralità é bastante difundido nesse idioma. Para afirmar isso, baseio-me em definições de
dicionários de acesso online e na comparação de ocorrências das traduções do termo
coralidade nas versões em italiano, francês, inglês e português da Wikipédia.

Dicionários

Dos dicionários de português consultados (Dicio, Priberam, Michaelis e Infopedia),


nenhum registrava o verbete coralidade.
Dos dicionários de inglês consultados (Cambridge, Collins, Macmillan e Merriam-
Webster) nenhum registrava o verbete chorality.
Dos dicionários de francês consultados (Larousse, Robert, Linternaute, TV5Monde e
Le dictionnaire), apenas um, Le dictionnaire, registrava o verbete choralité:

Choralité (Substantivo comum)


[kɔ.ra.li.te] / Feminino
(Didático) Natureza intrínseca daquilo que é coral.
(Especialmente) Pluralidade e harmonia ; entendimento coletivo.209

Dos dicionários de italiano consultados (Corriere della Sera, Hoepli, Grande


dizionario della lengua italiana, Treccani), os três últimos registravam o termo. Diz o
Hoepli:

coralità
[co-ra-li-tà]
s.f. inv.
O estado coral.
‖ fig. Característica coral de uma obra literária: a c. de um drama teatral, de um
episódio, de uma cena210

209
Choralité (Nom commun)
[kɔ.ra.li.te] / Féminin
(Didactique) Nature intrinsèque de ce qui est choral.
(Spécialement) Pluralité et harmonie ; entente collective. (CHORALITÉ. Le Dictionnaire. Disponível em :
https://www.le-dictionnaire.com/definition/choralit%C3%A9. Aceso em: 28 jan. 2021.
210
coralità
[co-ra-li-tà]
s.f. inv.
L'essere corale
203

A definição do Grande dizionario della lengua italiana:

Coralità, sf. Liter. Característica coral (de uma obra narrativa ou de uma parte
sua).211

Esta é a definição oferecida pelo Treccani:

coralità s. f. [der. de corale2], lit. – A qualidade coral, característica coral, sobretudo


em senso fig.: c. de uma cena, de um episódio, de um conto; o romance moderno
tende à coralidade.212

O Instituto Treccani também disponibiliza um dicionário de sinônimos e antônimos,


no qual coralità aparece da seguinte forma:

coralità s. f. [der. de corale], lit. - [a qualidade coletiva: c. de uma demanda] ≈


compacidade, unanimidade, universalidade. ↔ (ant.) singularidade.

Interessante notar o antônimo: singularidade. Parece que, no uso generalizado, a


coralidade tende a significar um movimento de massa, movimento simultâneo ou coordenado,
compacto, para usar um sinônimo coerente com esse dicionário, mais do que apenas um
movimento comum que se singulariza em sua execução por diferentes indivíduos. E o mesmo
dicionário Treccani define corale (origem de coralità) assim:

corale2 adj. [der. de coro]. – 1. a. De coro, relativo ao coro: canto c.; música c.; as
partes c. da tragédia grega; sociedade c., ou absol. c. s. f., associação de pessoas
que executam coros. b. Lírica c., seção tradicional da lírica grega, destinada a ser
cantada a muitas vozes, contraposta à lírica monódica, ou seja, a uma voz (é
distinção artificial, dado que poetas da chamada lírica monódica compuseram
também coros, e poetas da lírica coral conheciam expressões líricas individuais; de
modo que hoje prefere-se distinguir entre poesia dórica e eólica, levando em
consideração o ambiente e o dialeto). c. Livros c., ou absol. corais s. m. pl., códigos
litúrgicos de grande tamanho, frequentemente adornados com miniaturas, que
serviam nas catedrais e nos monastérios para o ofício cotidiano do coro (foram
produzidos mesmo após a invenção da imprensa, até o séc. XVIII). 2. fig. a. Que
nasce por vontade concordante, que exprime o consenso unânime de uma

‖ fig. Carattere corale di un'opera letteraria: la c. di un dramma teatrale, di un episodio, di una scena.
CORALITÀ. Disponível em :
https://www.grandidizionari.it/Dizionario_Italiano/parola/C/coralita.aspx?query=coralit%c3%a0. Acesso em:
28 jan. 2021.
211
Coralità, sf. Letter. Carattere corale (di un’opera narrativa, o di una sua parte). GRANDE DIZIONARIO
della lengua italiana. Disponível em:
http://www.gdli.it/pdf_viewer/Scripts/pdf.js/web/viewer.asp?file=/PDF/GDLI03/GDLI_03_ocr_766.pdf&par
ola=coralit%C3%A0. Acesso em: 20 mar. 2021.
212
coralità s. f. [der. di corale2], letter. – L’essere corale, carattere corale, soprattutto in senso fig.: c. di una
scena, di un episodio, di un racconto; il romanzo moderno tende alla coralità. TRECCANI. Vocabolario
online. Disponível em : https://www.treccani.it/vocabolario/coralita/. Acesso em: 28 jan. 2021.
204

pluralidade de pessoas: apelo, protesto, condenação c.; consenso coral. Em jogos de


equipe, ação c., definida e realizada com a colaboração bem organizada de todos os
jogadores. b. Na linguagem da crítica literária contemporânea, se diz de obra, ou
parte de uma obra, narrativa, ou teatral, na qual os vários elementos e motivos
(personagens, ação, ambiente, cenário, etc.), mais do que valer cada um por si ou
prevalecer sobre os outros, tendem a unir-se e fundir-se em um todo harmonioso,
quase vozes de um coro: cena, episódio, representação c.; conto, romance coral. ◆
Adv. coralmente.213
Wikipédia

Tabela 1 — ocorrências das palavras coralidade, performatividade e teatralidade em italiano,


português, francês e inglês, nas respectivas versões da Wikipédia. Consulta realizada em 20 de
outubro de 2020. O mecanismo de busca não diferencia as ocorrências no corpo dos artigos
das ocorrências nos títulos de obras citadas.

Total de
Coral Performativo Teatral artigos na
língua
Coralità Performatività Teatralità
Italiano 1 642 359
128 14 374
Choralité Performativité Théâtralité
Francês 2 258 261
3 62 312
Chorality Performativity Theatricality
Inglês 6 177 569
3 300 701
Coralidade Performatividade Teatralidade
Português 1 044 147
2 22 197
Fonte: Produção do autor, 2020.

213
corale2 agg. [der. di coro1]. – 1. a. Di coro, relativo al coro: canto c.; musica c.; le parti c. della tragedia
greca; società c., o assol. c. s. f., associazione di persone che eseguono cori. b. Lirica c., sezione tradizionale
della lirica greca, destinata a esser cantata a più voci, contrapposta alla lirica monodica, cioè a una voce (è
distinzione artificiosa, giacché poeti della cosiddetta lirica monodica composero anche cori, e poeti della
lirica corale conoscono espressioni liriche individuali; sicché si preferisce oggi distinguere in poesia dorica
ed eolica, tenendo conto dell’ambiente e del dialetto). c. Libri c., o assol. corali s. m. pl., codici liturgici di
grande formato, spesso adorni di miniature, che servivano nelle chiese cattedrali e nei monasteri per
l’officiatura quotidiana del coro (se ne produssero, anche dopo l’invenzione della stampa, fino al sec. 18°). 2.
fig. a. Che nasce per volontà concorde, che esprime l’unanime consenso di una pluralità di persone:
invocazione, protesta, condanna c.; consenso corale. In giochi di squadra, azione c., impostata e svolta con la
collaborazione ben organizzata di tutti i giocatori. b. Nel linguaggio della critica letteraria contemporanea, si
dice di opera, o parte di un’opera, narrativa, o anche teatrale, nella quale i varî elementi e motivi (personaggi,
azione, ambienti, paesaggio, ecc.), più che valere ciascuno per sé o prevalere sugli altri, tendono a unirsi e
fondersi in un insieme armonico, quasi voci di un coro: scena, episodio, rappresentazione c.; racconto,
romanzo corale. ◆ Avv. coralménte (v. coralmente2). TRACCANI. Vocabolario online. Disponível em:
https://www.treccani.it/vocabolario/corale2/. Acesso em: 28 jan. 2021.
205

Gráfico 1 — Ocorrência dos termos na Wikipédia de cada idioma (por milhão de artigos).

250
227,72

200 188,67

150
138,16

113,47

100
77,94

48,56
50
27,45
21,07
8,52
1,33 0,48 1,91
0
Coralidade Performatividade Teatralidade

Italiano Francês Inglês Português

Elaborado com base nos dados da Tabela 1. Fonte: Produção do autor, 2021.

Se a Wikipédia pode não ser uma referência confiável para mensurar a produção
acadêmica em cada uma das línguas, certamente pode nos informar sobre o uso de
determinado termo na linguagem corrente. E esse é o ponto que me interessa aqui. As
diferenças notadas, se podem ser razoavelmente pronunciadas para outros termos
(performatividade é bastante disseminada em inglês, teatralidade é em italiano e português),
não se aproximam do panorama que se desenha com ‘coralidade’. A língua italiana é a única
em que esse termo parece estar disseminado. As outras versões da enciclopédia registram
ocorrências insignificantes. Nesse sentido, considero que, para enriquecer nosso panorama a
respeito da coralidade, cabem investigações futuras a respeito da produção de pensamento
sobre ‘coralità’.
206

APÊNDICE B – DE ONDE VIEMOS: O TRABALHO EM ANTÍGONA214

Tendo finalizado o corpo da dissertação, posso apresentar o trabalho que foi o ponto
de partida em meu estudo da(s) coralidade(s): ANTÍGONA. Esse trabalho de criação tem três
particularidades que me interessam: é uma investigação criativa conduzida por um artista
jovem, questiona a coralidade como um princípio de criação da cena em um confronto com
um texto trágico e apresenta várias confluências de vozes em sua feitura.
No último ano de minha graduação em Direção Teatral na Universidade Federal de
Santa Maria, procurava um texto dramatúrgico sobre o qual trabalhar. Já havia trabalhado
com criação de dramaturgia no ano anterior e o resultado não me agradara a ponto de querer
repetir o processo naquele momento. Se bem que agora eu já soubesse alguns caminhos que
deveriam ser evitados em minha prática, não estava realmente disposto a procurar os que
deveriam ser trilhados para esse tipo de criação.
Já estávamos trabalhando em sala de ensaio, preparando nossas forças criativas e havia
mesmo algumas pequenas estruturas de improvisação que começavam a se estruturar. Faltava,
no entanto, um material que direcionasse nossos esforços criativos. Em uma viagem para
Curitiba, em que eu e alguns colegas apresentamos trabalhos criados na Universidade na
Mostra Fringe do Festival de Teatro de Curitiba, a ideia me atinge como um raio: “vamos
montar Antígona!” Aviso para meus companheiros de grupo. Um pouco incrédulos, aceitam.
Havíamos encontrado nosso material.
Se é verdade que Antígona simplesmente apareceu em minha mente, como um insight,
não é verdade que eu não estivesse procurando por ela. Algumas semanas haviam se passado
desde que, num ensaio, experimentáramos uma composição a várias vozes para algumas
linhas de uma cena de outro espetáculo, aquele mesmo cuja dramaturgia fora criada por nós.
Percebemos um brilho novo naquele texto conhecido; percebi um universo de possibilidades
se abrindo à minha frente e ao meu redor. Uma inquietação coral fora plantada e estava
crescendo silenciosamente, buscando expressão. Quando a tragédia da princesa tebana que vai
até as últimas consequências lutando pela dignidade do irmão morto contra a loucura que
emana da guerra apareceu em minha mente, só pude aceitar. O terreno trágico era perfeito
para o embate com a lógica coral: havia um coro previsto no texto e um imaginário milenar
construído sobre essa obra.

214
Este texto constitui-se de trechos de meu relatório de pesquisa, apresentado em 2016 no curso de Artes
Cênicas da Universidade Federal de Santa Maria, revisados e unidos a reflexões posteriores. Busquei
preservar o pensamento exatamente como se apresentava no original.
207

Dali para o estudo teórico da coralidade, um passo. Já que na universidade era


necessário colocar as coisas no papel, apresentar um projeto de pesquisa e refletir sobre o
trabalho durante o processo criativo, eu buscava um princípio de composição, uma noção,
uma lógica com a qual trabalhar na encenação, que direcionasse nosso embate com esse texto
antigo. Queria dirigir minhas forças artísticas e intelectuais para o pensamento da encenação,
já que havia feito uma graduação em interpretação teatral e um ano todo de direção voltado
para as questões da atuação. Trabalhava na época como bolsista da coordenação do curso de
Licenciatura em Teatro, e a professora Inajá Neckel, coordenadora do curso à época — e uma
grande mestra —, sugeriu a coralidade e me entregou a tradução do texto de Christophe Triau
feita por Marcus Vinicius Borja — cujo trabalho também viria a se tornar referência para esta
pesquisa.
A partir da leitura do texto de Triau, Coralidades difratadas: a comunidade em
negativo215 não tive dúvidas no caminho a seguir. A coralidade estava eleita como noção
condutora de nosso processo — tanto um horizonte a ser buscado quanto o chão que deveria
sustentar nossa prática. Havia apenas um empecilho para a criação: o texto da tragédia. Todas
as traduções nos pareciam demasiado empoladas ou truncadas. Preocupava-nos o
entendimento do texto pelos espectadores, já que nossa meta era circular com esse espetáculo.
Aqui acontece a primeira confluência de vozes: não sabendo grego e não satisfeito
com nenhuma das versões disponíveis, comecei a reescrever o texto a partir da comparação de
diversas traduções em português, ora escolhendo frases dessas traduções, ora reescrevendo-as
a partir do sentido que apreendia na comparação. Seis tradutores foram acionados nessa
trajetória.216 Nesse processo de comparação e reescrita, percebi que as versões apresentavam
tanto divergências dos tradutores em seus entendimentos sobre o texto217 quanto em suas
visões de mundo, ou em seus entendimentos sobre a visão de mundo dos atenienses do

215
Tradução não publicada de Marcus Vinicius Borja que circula pelos corredores da academia.
216
Na viagem a Curitiba, li as traduções de J. B. de Mello e Souza e Mário da Gama Kury, que serviriam de
base para meu trabalho de reescrita do texto. A elas, depois da volta para Santa Maria, somaram-se as
traduções de Donaldo Schüler, Maria Helena da Rocha Pereira (em português de Portugal) e Domingos
Paschoal Cegalla (última versão de trabalho, com a qual tive contato depois de haver terminado algumas
cenas). Tive ainda um contato tardio com as versões de Lawrence Flores Pereira (que influenciou um
pequeno trecho importante no quinto episódio) e Millôr Fernandes (uma recriação, com alterações e
inserções bastante significativas, que não foi utilizada nesse trabalho).
217
“Como todos os especialistas sabem, o texto de Antígona é cheio de dificuldades e eriçado de cruces, muitas
das quais ainda aguardam solução satisfatória.” , diz Maria Helena da Rocha Pereira em SÓFOCLES.
Antígona. Tradução comentada de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian/Fundação para a Ciência e a Tecnologia. 1992, p. 31.
208

período de Sófocles218. Frente a essa gama não mais apenas de estruturas frasais e
vocabulário, mas também de visões, estavam abertas as possibilidades para que eu construísse
uma versão do texto que refletisse também minhas próprias visões sobre ele sem fazer
grandes alterações em sua estrutura, ou melhor, respaldado de certa forma pelo trabalho de
tradutores que haviam vertido o original através de suas próprias óticas.
Segunda confluência de vozes: atores e atrizes em sala de ensaio me devolviam
apreciações e sugeriam modificações. Houve certamente trechos em que concretizei meus
desejos, mas em muitos outros fui um intermediário entre os tradutores de Sófocles (que a
esta altura era apenas o emissor distante de uma mensagem ecoada por tantas outras vozes) e
o elenco.
O desafio a ser enfrentado em nossa Antígona era instaurar uma coralidade a partir do
trabalho de um grupo muito pequeno. O espetáculo, concebido inicialmente para quatro
atores, acabou se concretizando com três pessoas em cena.219 Que força grupal poderiam ter
três pessoas? Como mobilizar a imagem do grupo, da comunidade, a polifonia, a partir de um
conjunto tão limitado? As respostas foram encontradas na composição da cena. Como
queríamos trabalhar com a estrutura original do texto, não concebendo a encenação como um
decalque dele, mas preservando sua ordem, era impossível manter um grupo em cena que
obedecesse a lógica das personagens sem retardar a progressão da tragédia.
A solução da encenação foi instaurar a energia de grupo, a imagem de uma
comunidade, por meio do movimento dos atores pelas estruturas textuais: todos os atores
faziam todas as personagens e as trocas de personagens, em sua maior parte, eram realizadas
em cena aberta, durante a progressão dos diálogos. Com um elenco tão reduzido, a
consequência natural desse dispositivo é que quase todas as movimentações de um ator ou
atriz na estrutura do texto ocasionavam mudanças de posição dos outros atores, ou seja, todas
as personagens presentes à cena mudavam de corpo. Evitava-se a confusão por meio do uso
de marcações bastante precisas no espaço. Ao tomar conhecimento de Ifigênia da Cia.
Elevador, a primeira coisa que me chamou a atenção foi a energia de trânsito dos atores pelas
estruturas textuais, cujo princípio eu havia experimentado nessa encenação. A diferença
radical, além da investigação contínua de mais de uma década sobre o CV que sustentou o
trabalho da Cia. Elevador em Ifigênia, era que em nossa ANTÍGONA as trocas de personagem

218
Cf. TORRANO, Jaa. Antígone, de Sófocles: Guilherme e Epígonos. REVISTA RE-PRODUÇÃO, v. 1, p.
1-6, 2017. Disponível em: <http://www.casaguilhermedealmeida.org.br/revista-reproducao/ver-
noticia.php?id=83>. Acesso em 15/04/2019.
219
Ana Paula Marques, Cristian Lampert e Hellen Höher Bohrer. João Felipe Santos tocava percussão ao vivo e
interagia pontualmente com os atores.
209

eram extremamente marcadas, sublinhadas pela encenação, seja com atores continuando o
discurso de uma personagem em cena, mas surgindo de lugares diferentes, em que a voz
chamava atenção para que o foco dos espectadores mudasse, seja com trocas de atores em
cena durante um único discurso, etc, enquanto as trocas de personagem em Ifigênia, devido à
natureza improvisacional, que gera uma espécie de coreografia no espetáculo, eram mais
fluidas, o que condiz com princípio do mar e das ondas proposto como base para aquela
encenação.

Prólogo. Antígona duplicada enfrente Ismene. Fotografia de Dartanhan Baldez Figueiredo. 2017. Acervo do
autor.

Essa proposta de trânsito foi entendida diversas vezes durante o percurso da peça por
pessoas que assistiam a nossos ensaios ou tomavam contato com as propostas da montagem
como um tipo de releitura do “sistema coringa” de Augusto Boal. Mesmo sendo um estudante
de direção teatral, naquele momento eu ainda não havia tido contato com a obra de Boal,
portanto não conhecia o sistema coringa. A lógica de ANTÍGONA também se afastava do
sistema coringa na medida em que este necessita também da função protagônica, da figura de
um protagonista que se cola à personagem, gerando a identificação (chave dramática) que cria
210

um contraponto aos coringas e seu intercâmbio e narratividade (chave épica). Em nossa


encenação todos os atores se substituíam no desempenho das personagens ao longo das cenas.
As personagens da tragédia Antígona são poucas (sete, excluindo os mensageiros) e bastante
bem caracterizadas pelas palavras que dizem e que delas são ditas, não restando dúvida sobre
suas posições ou seu destino. Essa caracterização forte ao nível do texto criou um ambiente
propício para que os atores pudessem deslizar entre as personagens, na tentativa de criar uma
comunidade visível (embora não dita) do espetáculo.

Primeiro estásimo. Imagem do navio. “De todas as maravilhas, a maior é o homem. Ele atravessa os mares
espumosos, impulsionado pelo vento tempestuoso, cortando as ondas enormes que rugem ao redor.” Foto:
Fernanda Abegg. 2016. Acervo do autor.

O texto certamente não foi o único traço de caracterização das personagens em nossa
encenação. Cada figura tinha uma composição corporal e vocal distinta das outras, e que
havia sido criada em conjunto pelos atores, havendo, portanto, uma coerência entre as
mesmas personagens quando feitas por atores diferentes, tornando-as reconhecíveis antes
mesmo de pronunciarem qualquer palavra. Seguros pelo conteúdo do texto e as composições
físico-vocais, os atores podiam se substituir na mesma personagem em cena aberta ou nas
trocas de cena, além de multiplicar uma personagem, tanto com dois atores fazendo uma
mesma personagem que dialoga com outra, encarnada pelo terceiro ator, quanto com os três
211

fazendo uma única personagem. As cenas de coro, originalmente a cargo dos anciãos tebanos,
estavam, na maior parte, situadas fora do plano dos acontecimentos, calcadas na construção
de imagens e atmosferas por figuras não identificadas — ou identificadas apenas como atores
— que diziam o texto do coro ora em uníssono, ora individualmente.
Um dos objetivos da pesquisa sobre a coralidade presentes no projeto que direcionou
as práticas dessa encenação era “Investigar características de coralidade na criação de um
espetáculo teatral a partir do texto Antígona”. Percebo que a investigação — ou busca, ou
ainda, questionamento — daquilo que eu entendia como características da coralidade acabou
gerando, como resposta, mecanismos corais na encenação. Novamente: esses mecanismos
corais foram identificados e nomeados por mim depois do trabalho, na escrita do relatório de
pesquisa, nunca existiram a priori. Para apresentá-los, é importante lembrar novamente duas
observações a respeito da coralidade. A primeira de Triau, já citada, em que o teórico francês
afirma que “é mais um campo do que propriamente um modelo estabelecido que determina o
uso deste termo; questionamentos mais que procedimentos.” (TRIAU, 2003, p. 8) A segunda,
de Mégevand, que no fechamento de seu texto diz:

Surge, porém, a questão que consiste em saber se, na hora em que os paradigmas
formais são facilmente abolidos, mais do que evocar “a” coralidade, não seria
preferível singularizar uma coralidade de Novarina, distinta da de Vinaver, e sem
muita relação com a de Gabily, a tal ponto a paisagem do drama contemporâneo está
semeada de formas corais irredutíveis. (MÉGEVAND, 2013, p. 39. grifo meu)

A partir dessas observações, entendo a coralidade também como uma provocação à


qual cada criador (aqui especialmente o dramaturgo ou encenador) dá sua resposta singular. E
essa provocação pode se mostrar ao criador nos mais diversos lugares: obras artísticas,
contexto político-social, situações da vida cotidiana, natureza, condições de trabalho; todos
potenciais nichos de uma provocação coral. Falar sobre características e mecanismos de
coralidade neste texto é, portanto, falar de caminhos que foram escolhidos ou se fizeram
durante esse processo, com todas as suas particularidades — equipe, época, percalços, etc.
Essas alternativas foram respostas dadas no ‘nós, aqui e agora’ do trabalho.
Identifiquei cinco mecanismos principais de coralidade nessa montagem: contação de
história, divisão e multiplicação (de vozes ou personagens), troca de personagem em cena e
suspensões líricas. A seguir, descrevo cada um deles com exemplos de cenas em que ocorrem.
Antígona foi levada a público com três atores, mas a concepção original, segundo a qual a
montagem foi desenhada e que permaneceu na maior parte do processo criativo, contava com
quatro atores em cena durante todo o espetáculo. Sendo assim, nas cenas em que isso se fizer
212

necessário, apresentarei a concepção original junto à concepção adaptada, que foi


efetivamente à cena em 2016 e 2017.

O
que chamei de ‘contações de história’ consiste em narrações dramatizadas, em que
as funções de narrador e personagens passam alternadamente de um ator a outro de
maneira dinâmica. Assim, no desenvolvimento de uma situação qualquer, os atores
podem suceder-se várias vezes nas funções de narrador e personagens. Um ator pode, por
exemplo, sair da função de personagem, assumir a função de narrador e voltar à mesma
personagem que estava assumindo antes sem mudanças no acontecimento que se desenrola,
interrompendo-o para tomar parte na narração e logo depois voltando à composição física da
personagem que assume naquele momento.

EXEMPLO: PRIMEIRA CENA – PRÓLOGO À ANTÍGONA

“Cristian (Édipo): (pergunta ao oráculo) — Eu sou adotado?” Foto de Fernanda Abegg. Ensaio aberto
realizado no Teatro Caixa Preta – Espaço Rozane Cardoso em 27 nov. 2016.

A primeira cena da montagem, o Prólogo à Antígona narra os acontecimentos da


família dos Labdácidas desde a morte de Lábdaco “despedaçado pelas bacantes por se opor à
213

introdução do culto de Dionísio em Tebas”220 até a noite que sucede o fratricídio recíproco de
Etéocles e Polinices, na expedição que o segundo, chefiando os exércitos de Argos, organiza
contra Tebas.
Nessa cena, percebo a coralidade operando especialmente através da ‘contação de
história’ que a constitui. De maneira fluida, a narrativa passa alternadamente pela boca de
todos os atores. Além da narração, os atores revezam-se continuamente na ilustração/vivência
dos momentos da história. Em uníssono são ditos os nomes das personagens quando aparecem
pela primeira vez, uma multiplicação das vozes.
A identidade das figuras que contam essa história foi, durante bastante tempo, uma
incógnita para mim e o grupo de atores. A imagem que sustentou nossa lógica ao longo das
apresentações é de que são estátuas que ganham vida e começam a narrar a história de
Antígona, mas nada na estrutura da encenação que foi à cena no ensaio aberto do dia
27/11/2016 encaminhava o espectador para esse entendimento. Assim, essas figuras poderiam
ser entendidas como o conjunto dos atores, o que não desvirtua a apreensão da montagem
como um todo, já que tanto atores quanto estátuas formam um grupo que se reúne com um
fim específico — narrar a saga dos labdácidas e fazer presente, uma vez mais, a história de
Antígona.
No dia 14/12 esse detalhe havia sido bastante modificado. O espetáculo se iniciou com
os atores imóveis na posição das estátuas, que se encaminham para o centro e param. Com a
mesma forma física, iluminados apenas por lanternas, iniciam a história. No fim do Êxodo,
última cena da peça, as estátuas reaparecem no escuro, iluminadas pelas lanternas, dizendo
alternadamente os textos com as vozes das personagens. Depois que a cena acaba, as lanternas
são apagadas e as estátuas aparecem nos lugares originais (Cristian e Hellen trocados) com a
mesma luz do início. Outro blecaute e o espetáculo acaba. Esse grupo de estátuas vivas — ou
atores — reaparece nas intervenções do coro, com exceção do quarto estásimo, transformando
o que no texto original são os comentários dos anciãos em cenas autônomas que ocorrem num
plano separado do plano dos acontecimentos (embora seu discurso os comente) atravessando
e comentando os restante das cenas não apenas pela palavra, mas pelas imagens e atmosferas
criadas.

220
As aspas duplas sem referência remetem a trechos do texto utilizado na encenação.
214

O
que chamei de divisão e multiplicação, quando se referem a personagens, são dois
mecanismos derivados de um mesmo princípio: haver mais de um ator assumindo
uma personagem. O que diferencia esses mecanismos é que na divisão os atores se
sucedem, permanecendo apenas um ator em cena como a personagem — dividindo, fatiando
uma personagem em diversas interpretações que se sucedem no tempo — enquanto na
multiplicação os atores assumem a personagem ao mesmo tempo. A segunda cena da
montagem, o prólogo de Antígona, é um exemplo dos dois mecanismos sendo empregados na
mesma cena. O discurso inicial de Creonte é um exemplo de divisão enquanto a concepção
original do quarto episódio e as suspensões líricas dos argumentos de Antígona são exemplos
de multiplicação. Quando se referem a vozes, a multiplicação é a enunciação em uníssono da
fala de alguma personagem individual (uma segunda camada da multiplicação dos corpos da
personagem) e a divisão é a dispersão dos textos originalmente do coro pelas vozes dos
atores, uma a cada vez, o que dialoga com a formulação mínima de Mégevand para a
coralidade, pela disposição particular e pluralidade de vozes que se respondem musicalmente.

EXEMPLO: SEGUNDA CENA – PRÓLOGO

A segunda cena da encenação entra no texto de Antígona propriamente dito. Aqui


temos Antígona informando Ismene do decreto real que proíbe os tebanos de sepultarem ou
mesmo chorarem Polinices, sob pena de apedrejamento, e depois tentando convencer a irmã a
ajudá-la na missão de enterrar o cadáver. Frente às negativas de Ismene, fundadas na
argumentação de fragilidade e impotência, Antígona assume uma posição agressiva em
relação à irmã, acusando-a de traição e desprezo pelas leis divinas e dizendo que mesmo que
Ismene mude de ideia, não poderá agradá-la no futuro. Pede ainda que a irmã a denuncie a
todos ou seu ódio contra ela tornar-se-á ainda maior. Antígona parte e Ismene, sozinha,
reconhece: “[...] mas parte com a certeza de que, apesar de seres uma louca, provas tua
dedicação por aqueles a quem amas.”
Na concepção original, as personagens de Antígona e Ismene eram assumidas por dois
atores cada uma. O ator homem ficava na dupla que fazia Antígona. Ismene, portanto, era
feita por duas mulheres. Esses atores se substituíam durante a cena em aproximadamente dois
terços de sua duração. No início do terceiro terço de cena os quatro atores se encontravam no
centro do espaço, formando uma cruz, em que uma Antígona ficava à frente de uma Ismene,
215

até que os atores que faziam a mesma personagem se juntavam, prosseguindo o debate como
figuras duplas, cujo texto era dito a uma ou duas vozes, alternadamente.
Penso que nessa cena, a duplicação de Antígona e Ismene já funciona por si como
efeito de coralidade, ‘espalhando’ a personagem pelo espaço, dividindo a figura em atores
diferentes que entram e saem de cena a todo momento enquanto o discurso permanece em sua
linha de raciocínio. Reforçando essa coralidade, alguns textos das duas personagens eram
ditos em uníssono, o que sublinhava ideias consideradas centrais no texto, como a
determinação e crença de Antígona na justeza de suas razões e a ideia que Ismene faz de sua
impotência frente ao todo da cidade e à estrutura de dominação masculina sobre a qual essa se
funda. O fato de Ismene ser feita por duas mulheres tornou-se mais uma forma de ressaltar sua
denúncia da dominação masculina através do medo que sente de lutar contra os homens.
Fazia-se necessário que esse texto fosse dito por vozes femininas, ainda inseridas em uma
estrutura de dominação masculina, mais de 2400 anos depois de sua escritura. Essa
organização da cena pode ser observada nos trechos a seguir, em que os uníssonos dos duplos
estão sublinhados:

ISMENE [Hellen] Infeliz de mim! Pensa primeiro em nosso pai, em seu destino,
odiado e desonrado, cegando os olhos com as próprias mãos ao descobrir seus
crimes, também na mãe e esposa dele — era uma só — que extinguiu a vida no laço
de uma corda, e, num terceiro golpe, nossos dois irmãos num mesmo dia mataram
um ao outro, fraternas mãos em ato de extinção recíproca. Agora que restamos eu e
tu, sozinhas, pensa na morte ainda pior que nos aguarda se contra a lei desacatarmos
a vontade do rei e a sua força. E não nos esqueçamos de que somos mulheres e, por
isso, não podemos enfrentar, só nós, os homens. [Renata] Enfim, somos mandadas
por mais poderosos e só nos resta obedecer a essas ordens e até a outras ainda mais
desoladoras. Peço perdão aos nossos mortos, mas sou obrigada a obedecer, querer o
impossível é loucura.
[...]
ANTÍGONA Quando me faltarem as forças, [Ana] pararei.
[...]
ANTÍGONA [Ana] Falando dessa forma ganharás meu ódio e te exporás a ser
odiada pelo morto eterna e justamente. [Cristian] Deixa-me enfrentar, nesta loucura
apenas minha, esses perigos; assim me livro de morrer envergonhada. Meu
sofrimento nunca há de ser tão grande, quanto gloriosa será minha morte!
216

Na versão que foi a público, com três atores, a personagem Antígona manteve-se
duplicada e Ismene era encarnada em apenas uma atriz. Os textos antes duplicados de Ismene
foram valorizados pela atriz em sua fala para suavizar a falta do duplo-Ismene.

A
troca de personagem em cena tem um nome autoexplicativo: consiste em que os
atores troquem a personagem que vinham assumindo no transcurso da cena, seja
uma dupla que faz uma troca entre si ou mais atores em uma espécie de rotação
(como no vôlei), assumindo personagens diferentes sem que a ação precise ser interrompida,
com um breve corte apenas para a reorganização espacial dos atores quando isso se faz
necessário.

EXEMPLO: OITAVA CENA – TERCEIRO EPISÓDIO

Essa cena nos traz Hêmon, filho de Creonte e noivo de Antígona. O corifeu se
pergunta se o jovem não vem amargurado com os recentes acontecimentos. Hêmon é
questionado pelo o pai e reafirma sua obediência às orientações paternas. Segue-se a isso um
discurso de Creonte sobre a importância da obediência no Estado, na família e no exército.
Hêmon responde ao discurso do pai com outro. Relata que Antígona é louvada secretamente
pela cidade e elogia a audácia da filha de Édipo, pedindo para que o pai reveja sua posição.
Inicia-se aí um duro embate de respostas ásperas, que culmina com a ameaça de Hêmon de
que a morte de Antígona “causará uma outra” e Creonte ordenando a morte imediata de
Antígona na frente do noivo. Hêmon afirma que a jovem não morrerá em sua frente e Creonte
não o verá mais, e sai. O corifeu fica apreensivo com essa saída “na explosão da raiva”, mas
Creonte permanece focado na condenação de Antígona.
Na concepção original, essa cena comportava uma troca em que a dupla Hêmon-
Creonte era substituída pelos atores que estavam assumindo o papel de coreutas. Na
concepção adaptada, o mecanismo tornou-se mais interessante, e a troca começou a ser
realizada como uma rotação. Assim, em uma rápida troca entre uma réplica e outra, a atriz
que fazia o Corifeu assume Creonte, o ator que fazia Creonte assume Hêmon e a atriz que
fazia Hêmon assume o Corifeu, o que pode ser observado no seguinte trecho:

CORIFEU [Hellen] Senhor, é justo que aceites o que há de oportuno nas palavras
dele; e tu, acolhe o que há de bom nas de teu pai. Ambos os lados falaram bem.
217

CREONTE [Cristian] Posso, na minha idade, receber lições de sabedoria de um


jovem?

HÊMON [Ana] Se houver razões. Sou jovem? Então olha mais para os meus atos
que para a minha idade.

(Troca de posições)

CREONTE [Hellen] Os atos consistem em exaltar rebeldes?

HÊMON [Cristian] Não espero que se honrem criminosos.

“CREONTE [...] Quem for obediente será bom governante como foi bom súdito e na tormenta das batalhas
permanecerá um combatente justo e corajoso.” Foto: Fernanda Abegg. Ensaio aberto realizado no Teatro Caixa
Preta – Espaço Rozane Cardoso em 27 nov. 2016.

C
hamo de suspensões líricas os momentos em que a personagem Antígona é
multiplicada por todos os atores, que assumem seu discurso ora em coro, ora em
duplas, ora sozinhos, sem que para isso precisem subverter a ordem do raciocínio.
A cena é suspensa e todo o foco se desloca para as palavras de Antígona, quase que em uma
paisagem psicológica, sem que existam interlocutores além do próprio público.
218

EXEMPLO: DÉCIMA CENA – QUARTO EPISÓDIO

O quarto episódio de Antígona é a cena do kommos, a lamentação. O kommos,


221
segundo Aristóteles (Poética 1452b apud Romilly, 1998, p. 25 ), “é um lamento que vem
ao mesmo tempo do coro e do palco.” Essa cena, cantado nas performances atenienses,
apresenta Antígona rumando para a morte e confrontando-se com os Anciãos de Tebas,
tocados por sua situação, mas convencidos de que a moça ultrapassou seus limites e “bateu no
pedestal da Deusa Justiça”. Não cessam, no entanto, de louvar sua coragem e a glória dos
motivos que a levam a morrer como “senhora de sua própria lei”.
Na concepção original, a personagem Antígona era duplicada durante todo o seu
diálogo com o corifeu. Renata Correa cantava uma melodia repetitiva, em tom de súplica,
confrontando corifeu e espectadores com seu olhar. Hellen Höher Bohrer enunciava as falas
de Antígona de maneira dura, cortante, contrapondo a súplica da primeira em uma postura que
poderia ser facilmente percebida como ressentimento e altivez. As duas deslocavam-se pelo
espaço em direções diferentes, sem nunca se olhar, mas aproximando-se ocasionalmente.
Na concepção adaptada, apenas Hellen, que dizia o texto na versão original, faz
Antígona, o que muda as necessidades de seu trabalho com o texto. Agora, ela precisa
trabalhar as nuances e intenções do texto, além de sua musicalidade, trabalho que não se fazia
necessário antes porque tanto as diferentes nuances quanto a musicalidade encontravam
equivalência no contraponto entre canto e fala endurecida. Para manter a musicalidade da
cena como um todo, João criou uma melodia ao vibrafone que acompanha Antígona desde sua
entrada até sua saída, no fim dessa cena.
Depois do diálogo entre Antígona e o Corifeu, aparece Creonte, que questiona o fato
de Antígona ainda não ter sido levada para sua prisão na caverna. Após essa interferência,
Antígona inicia o discurso que chamei durante o processo de grande argumento. Aqui,
falando a maior parte do tempo com o irmão, ela expõe o motivo mais profundo — os laços
fraternos e a impossibilidade de ter outro irmão — que a leva a enterrar o corpo de Polinices,
mas afirmar que não faria isso por um marido, nem mesmo por um filho, facilmente
substituíveis, em sua visão.
Na exposição do grande argumento é realizada a segunda suspensão lírica da
encenação, exposta no texto a seguir, com as vozes indicadas entre colchetes:

221
ROMILLY, Jacqueline de. A tragédia grega. Tradução de Ivo Martinazzo. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1998.
219

CREONTE [Cristian] Acaso não sabeis que lamentações na hora de morrer jamais
acabariam se trouxessem o mínimo proveito ao condenado? [...]

ANTÍGONA [Hellen] Túmulo, quarto nupcial, prisão eterna, cova profunda!


(Cristian e Ana saem de cena) Vou a ti em busca dos meus, dos quais Perséfone,
deusa dos mortos, já recebeu a maioria na mansão de Hades, seu esposo. [Cristian]
Eu, a última e a mais desgraçada, parto antes do fim natural dos meus dias. [Ana]
Lá, pelo menos, tenho esperança de que minha chegada agradará a meu pai, a minha
mãe e também a ti, meu irmão, {Ana e Cristian] pois quando morreste lavei e vesti
teu corpo com minhas mãos e sobre tua sepultura eu derramei a sagrada oferenda de
água. [Hellen] E agora, Polinices, por cuidar de teu cadáver recebo esta recompensa!
{Ana] Mas na opinião da gente sensata todo o meu cuidado foi justo. Mas eu nunca
faria isso por um filho, se fosse mãe, ou pelo marido, se tivesse um. Mesmo que
apodrecessem mortos eu não enfrentaria a força da cidade. [Hellen] Que leis me
guiam para dizer estas palavras? Se eu fosse casada e meu esposo morresse, eu
poderia encontrar outro, e de outro esposo teria um filho se eu perdesse algum;
mas, morta minha mãe, morto meu pai, jamais outro irmão meu viria ao
mundo. [Ana] Obedeci a essas leis quando te honrei acima de tudo. [Hellen] Mas
Creonte acha que pratiquei um crime de rebeldia, meu irmão! [Ana] Assim ele me
leva, presa em suas mãos; ainda virgem, [Cristian] nunca terei um leito nupcial,
[Hellen] nem ouvirei hinos de casamento, [Ana] nem sentirei os prazeres do amor,
[Cristian] nem criarei filhos. [Ana e Hellen] Abandonada pelos amigos, caminho
ainda viva para a morada dos mortos! [Ana e Cristian] Que lei divina transgredi?
[Cristian e Hellen] De que me adianta ainda erguer os olhos para os deuses? Que
aliados invocarei se por ser piedosa me acusam de impiedade? [Ana] Se essa
condenação agrada aos deuses, só reconhecerei meu erro depois de ter sofrido a
pena. (Cristian e Ana voltam aos seus lugares) [Hellen] Mas se os culpados são
outros, que provem penas tão pesadas quanto as que me impuseram injustamente!

CORIFEU [Ana] Sempre os mesmos ventos violentos agitam sua alma sofredora.

CREONTE [Cristian] Vão se arrepender por demorarem tanto para levá-la!

Antes de sair, Antígona dá seu último adeus à cidade e termina sua fala reafirmando
sua crença na justeza de suas ações e denunciando mais uma vez Creonte e sua decisão:
“Vede as penas que sofro dos homens apenas por meu culto à piedade!”
220

Grande argumento de Antígona. Foto: Fernanda Abegg. Ensaio aberto de 27/11/2016

DE ONDE VIEMOS E PARA ONDE VAMOS

A partir do olhar para os mecanismos corais, percebo que, em ANTÍGONA, a


coralidade existia como instauração de uma comunidade no seio do espetáculo. Uma
coralidade fundada nas lógicas de composição da cena, e não na necessidade de um grupo
numeroso, cuja presença poderia se impor por si mesma.
Uma tragédia grega não pode ser enquadrada como drama no sentido estrito proposto
por Peter Szondi, mas elementos da estética dramática, especialmente a identificação, são
cultivados até hoje em diversas formas dramatúrgicas no cinema e na televisão, o que gera um
hábito perceptivo nos espectadores que costumam ter contato com esses meios. Flávio
Desgranges, ao falar sobre a estética do drama, diz:
221

A relação do espectador com a cena teatral se vê caracterizada por forte


envolvimento emocional, marcada por identificação irrestrita com o protagonista.
Colado à pele do herói, cada indivíduo da plateia vivencia os acontecimentos que
constituem a sua trajetória: suas dores, sofrimentos, agruras, e também suas alegrias,
descobertas, resoluções. (DESGRANGES, 2017, p. 68222)

No teatro contemporâneo há a tendência de se opor a essa lógica ou pelo menos jogar


com esse hábito, satisfazendo-o apenas parcialmente, com repetidas chamadas à consciência,
herança das renovações da cena moderna, que recusam a identificação total. A obra deve se
completar na relação com o espectador, que finaliza as imagens e dá sentido ao discurso. Em
ANTÍGONA ‘sentido’ pode ser entendido tanto na dimensão de entendimento, ‘criação de
sentido’, quanto de direção da palavra e ação dos atores, já que os atores/personagens
dirigiam-se por muitas vezes diretamente aos espectadores, que eram tratados como se fossem
membros do conselho de anciãos, o coro da tragédia de Sófocles.
Desgranges aponta como um dos componentes das renovações da cena moderna “a
presença manifesta do ator, que se distingue do personagem, desnudando as técnicas de
convencimento” (DESGRANGES, 2017, p. 109). Também essa dimensão pode ser pensada
na coralidade de ANTÍGONA. Ouvimos, ao longo das apresentações, depoimentos que
descreviam momentos de identificação e comoção de espectadores, mas também efeitos muito
diversos, se não opostos. Paulo Alexandre223, único espectador que produziu registros escritos
públicos sobre sua experiência com o espetáculo, assistido por ele em 2017, frisa a dimensão
performativa que emergia do movimento dos atores pelas estruturas do texto e da cena:

A direção [...] mostra Antígona com uma força que contém a garra da personagem
grega de 500 a.c. que enfrenta uma sociedade onde a vida pública era dominada pela
figura masculina, mas que ao mesmo tempo nos coloca diante da energia daquelas
pessoas em cena, não importando quem são e que nos aproximam das Antígonas
guerreiras existentes ou adormecidas em cada um. (ALEXANDRE, 2018, s/p. Grifo
do autor224)

A energia é “daquelas pessoas em cena”, mas, ao mesmo tempo, não importa quem
são. Associo esta sensação do espectador ao intercâmbio incessante dos atores pela cena que,
ao mesmo tempo em que colocava em evidência os corpos individuais e o grupo que

222
DESGRANGES, Flavio. A inversão da olhadela: alterações no ato do espectador teatral. 2ª ed. São Paulo:
Hucitec, 2017.
223
Paulo Alexandre Laskoski é ator, diretor, dramaturgo e professor de teatro. Residia em Santa Maria/RS em
2017, mas não era conhecido de nenhum membro da equipe.
224
ALEXANDRE, Paulo. A Antígona adormecida. Portfólio. (site pessoal de Paulo Alexandre). Disponível em
<https://paulo20056.wixsite.com/pauloalexandre-1/blog/antigona> Acesso em 9 de julho de 2019.
222

compunham, fazia com que os lêssemos como totalmente descolados das personagens, o que
nos permite associá-los ao qualquer um. Para Paulo, a energia dos atores aproxima os
espectadores “das Antígonas guerreiras existentes ou adormecidas em cada um”, mas pode-se
avançar um pouco a leitura a partir da qualidade intercambiável dos atores. Invertendo o
sentido do pensamento, pode-se dizer que qualquer um pode ser obstinado e/ou injustiçado
como Antígona, qualquer um pode abusar da autoridade que venha a ter, como Creonte,
qualquer um pode se encontrar nas situações mostradas em cena. Essa chave de leitura foi
corroborada por discussões com espectadores após uma apresentação, em que surgiu uma
discussão sobre a identificação ou não com as personagens centrais. O fato de um homem —
e um homem de barba comprida — fazer Antígona em alguns momentos, especialmente
contracenando com um Creonte mulher, levantou questões de gênero e identidade de gênero,
que não foram aprofundadas por nós naquele momento e também não o serão aqui, mas
também leituras a respeito da instabilidade da vida e das possibilidades de que qualquer um
ocupe os lugares em que as personagens da tragédia se encontram.

Em ANTÍGONA, a coralidade operou uma fricção entre cena e texto, fábula e


materialização teatral, através da subversão dos lugares das vozes da tragédia. Constituiu
também a comunidade dos atuantes que, substituindo-se, aproximavam as personagens que
performavam do qualquer um, da igualdade das existências e da possibilidade de que qualquer
um se visse em relações como as vivenciadas na cena. Nossa investigação resultou nessa
escolha: uma forma cênica que pode reivindicar a coralidade como princípio de criação (em
uma composição um tanto racional, é verdade). A partir do impulso gerado por esse primeiro
confronto é que me lancei — e me lanço — à busca de imagens cênicas e teóricas que possam
nos apresentar variadas possibilidades proporcionadas pelo recurso à coralidade.

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