Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
NA PISADA DO BRINCANTE:
A DANÇA DO TAMBOR DE CRIOULA MARANHENSE E OS CANTOS DE
TRABALHO PORTUGUESES COMO POSSIBILIDADES CORPORAIS NO
PROCESSO DE CRIAÇÃO
São Luís − MA
2018
DOROTI FERREIRA MARTZ
NA PISADA DO BRINCANTE:
A DANÇA DO TAMBOR DE CRIOULA MARANHENSE E OS CANTOS DE
TRABALHO PORTUGUESES COMO POSSIBILIDADES CORPORAIS NO
PROCESSO DE CRIAÇÃO
São Luís − MA
2018
DOROTI FERREIRA MARTZ
DOROTI FERREIRA MARTZ
NA PISADA DO BRINCANTE:
A DANÇA DO TAMBOR DE CRIOULA MARANHENSE E OS CANTOS DE
TRABALHO PORTUGUESES COMO POSSIBILIDADES CORPORAIS NO
PROCESSO DE CRIAÇÃO
Aprovada em:____/____/____
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________
Prof.ª Drª. Tânia Cristina Costa Ribeiro (Orientadora)
Universidade Federal do Maranhão - UFMA
___________________________________________________
Prof.ªDrª. Gisele Soares Vasconcelos (1ª Examinadora)
Universidade Federal do Maranhão - UFMA
___________________________________________________
Prof.ª Drª. Michelle Nascimento Cabral Fonseca (2ª Examinadora)
Universidade Federal do Maranhão - UFMA
___________________________________________________
Prof.ªEspª. Tissiana dos Santos Carvalhêdo(3ª Examinadora)
EBTT - Instituto Federal do Maranhão – IFMA (Codó)
Dedico este trabalho ao meu círculo de amor
feminino ancestral, às mulheres fortes e guerreiras
das quais eu muito admiro. À minha mãe Dalva e
minhas irmãs Deise, Doris e Debora. A letra “D” é
a simbologia que nos une.
AGRADECIMENTOS
Esta pesquisa tem como objetivo a investigação dos elementos que compõe a dança da manifestação
popular do Tambor de Crioula e os tipos de cantos presentes nos Cantos de Trabalho portugueses, com
a intenção de destacar aspectos que influenciaram na construção corporal e cênica do trabalho da
pesquisadora enquanto artista-criadora. No intuito de aproximar o universo da cultura popular ao
campo teatral foram utilizados os estudos desenvolvidos por Eugênio Barba, acerca da técnica
extracotidiana no trabalho do ator, inserida nos estudos de Jerzy Grotowski a partir dos conceitos de
corpo-memória e voz, que possibilitam ao ator encontrar em seu corpo mecanismos que ativam a
presença e a energia para o processo criativo. Dialogamos com as contribuições de Graziela Rodrigues
com o método da anatomia simbólica para indicar as qualidades do corpo da dança do Tambor de
Crioula para a cena. Assim, buscamos através do diálogo com os autores, fundamentar a pertinência
do estudo em aproximar a cultura popular ao fazer teatral. Nesta pesquisa, utilizamos enquanto
caminho metodológico a etnocenologia, que propõe o estudo das práticas espetaculares de forma a dar
visibilidade aos sujeitos da pesquisa. A pesquisa foi realizada no Maranhão, no estudo do Tambor de
Crioula, e em Portugal, no estudo dos cantos de trabalho contou com entrevistas realizadas por
participantes das manifestações e pesquisadores. O estudo não busca ser conclusivo, no entanto
espera-se apontar possibilidades de interação entre a cultura popular com o trabalho do ator.
This works aims to investigate the component elements of the Tambor de Crioula, a popular
manifestation dance, and its types of chants presents on the portuguese Working Chants, with the
intention of highlighting the aspects that have influenced on the physical and scenic construction of
the researcher in question as an artist-creato. In order to approximate the universe of popular culture to
the theater field, were utilized on this the studies developed by EugênioBarba, upon extra-everyday
technique in the actor's work, inserted in the studies of Jerzy Grotowski on the concepts of body-
memory and body-voice, that allow the actor to find mechanisms that activate the presence and energy
in his body for the creative process. We dialogue with the contributions of Graziela Rodrigues, with
the method of symbolic anatomy to indicate the qualities of the body on the dance of Tambor de
Crioula for the scene. Thus, we seek through the dialogue with the authors, to base the pertinence of
the study in approaching popular culture to the theatrical act. In this research, we used ethnocenology
as a methodological path, which proposes the study of the spectacular practices in order to give
visibility to the subjects of the research. The research was carried out in Maranhão, in the study of
Tambor de Crioula, and in Portugal, in the study of working songs; it includes interviews conducted
by participants of the popular manifestations and researchers. The study does not seek to be
conclusive, however it is hoped to point out possibilities of interaction between popular culture and the
actor's work.
Keywords:Tambor de Crioula from Maranhão; Portuguese Working Chants; Memory; Dance; Actor's
work.
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS............................................................................................................ 11
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 12
ANEXOS ................................................................................................................................ 95
11
LISTA DE FIGURAS
Imagem 04 –Coreira Nivea bebendo conhaque para entrar na roda de Tambor .................... 35
INTRODUÇÃO
Neste capítulo apresento o contexto histórico das duas manifestações das quais me
debrucei. Inicio no terreno brasileiro com o estudo do Tambor de Crioula, em que
compartilho minha inserção na pesquisa de campo e destrincho parte deste universo através da
visão dos pesquisadores Rodrigo Ramassote e Sérgio Ferretti. Na mesma importância, dialogo
com as pessoas responsáveis por esta manifestação acontecer, as quais chamarei de
brincantes. No terreno português, através das tradições das “vindimas”, introduzo os cantos de
trabalho, no qual faço uma breve análise dos temas recorrentes e trago a contribuição da
pesquisadora Maria Nunes e, do folclorista e etnógrafo, Lopes Pires. Além de destacar as
cantadeiras que estiveram envolvidas com as atividades agrícolas em que esses cantos se
fizeram presentes. Apresento ainda as transformações políticas que influenciaram a
manifestação através da contribuição do autor Daniel Nunes.
No conceito de Tradição, trago a contribuição de Hampaté-Bâe seus estudos
pautados em diferentes culturas do continente africano, acrescentando em nossos estudos a
importância da Tradição Oral:
2
Parecer Técnico, Processo nº. 01450.005742/2007-71.
22
cabeceira3 do Tambor de Mestre Felipe, entende que a origem do tambor surgiu de tal
maneira:
A história do tambor vem da época dos escravos. É uma festa que ninguém pode
dizer que foi inventada por outro lado. Só as coisas do negro mesmo, dos preto, do
tempo da escravatura, essas coisas. A raiz do tambor ela vem daí. Hoje nós já temos
essa boa mistura em todo país, mas de primeiro a gente não era visto, porque era
coisa de preto, era coisa de negro mesmo da escravatura.(Tomás Pereira) 4
3
Nomenclatura utilizada no Tambor de Crioula União de São Benedito de Mestre Felipe, após seu falecimento,
para se referir aos quatro responsáveis pelo desempenho da brincadeira, Mestra Roxa, Mestre Thomaz, Mestre
Militão e D. Estela.
4
Brinca Tambor há 47 anos e é mestre cantador do Tambor de Crioula União de São Benedito. Entrevista
realizada pelo Laboratório Cisco na data de 29 de junho de 2017, concedida para este trabalho.
23
Deduz Américo que com a supressão da escravidão, não havendo mais a necessidade
por parte dos negros de se exercitarem para a luta contra o opressor branco, “ficou o
costume, e aos poucos foi se transformando em dança”. Para ele, assim, a introdução
da mulher no Tambor de Crioula se deu em época posterior à abolição, isto é,
quando sua conotação básica de luta deu lugar a uma coreografia tipicamente de
festa. Américo justifica esta sua afirmação através das informações eu lhe foram
prestadas por “um preto velho já bem idoso, que era de São Bento, amigo do meu
pai, e que foi acabar a vida em Coroatá. Se chamava José Leite. Ele viu ainda
quando era criança o exercício de luta, o jogo das pernas, mas ele não me dava datas.
Dizia apenas que quando tinha se entendido já via o jogo de pernas; e ele era um dos
que achavam incrível uma mulher dançar Tambor de Crioula [...]. Então ele aceitou
sem resistência o fato das mulheres dançarem”. (FERRETTI, 2002, p.51).
dos pretos. Mestra Roxa é coreira cabeceira de Mestre Felipe e, segundo ela, integra o grupo
há, aproximadamente, cinquenta e três anos. Ela explica, a partir de seu entendimento, a
origem do Tambor de Crioula e sua configuração:
O tambor meu avô ele sempre falava para gente era festa de escravo, eu não conheci
escravo. Mas naquela época “vamo faze uma festa” os escravos falavam, “vamo faze
festa com o quê? Nós vamo bate com o que?”, foram no mato, cortaram uma
madeira com três pedaços, cavaram a madeira, pegaram couro de boi, cobriram
couro e fizeram os três tambo. Fizeram um pequenininho, o meião e o grande. Aí
então, “que santo que nós vamos festejar? Vamos festejar São Benedito” aí começou
tambor, tá vendo? Começou tambor meu filho, e nós tamos dançando ele até agora.
(Maria da Graça Belfort) 5
A gente dança é todo dia, todo mês. É depender o tempo, qualquer, seja festa dele,
não seja, seja um batizado, seja um aniversário, seja um casamento, tudo que chama
tambor de crioula nós tamos dentro. Não tem dia pro tambor de crioula, tambor de
crioula é todo tempo. São João, Carnaval, Natal, Ano Novo, qualquer hora tem.
(Maria Estela Costa) 6
5
É coreira há, aproximadamente, 53 anos e integra os grupos de Tambor de Crioula União de São Benedito -
Mestre Felipe e o Tambor do Laborarte. Entrevista cedida pelo Laboratório Cisco, realizada em 28 de junho de
2017.
6
É coreira há, aproximadamente, 53 anos e integraos grupos de Tambor de Crioula Unidos de São Benedito -
Mestre Felipe, Tambor Mocidade Independente - Mestre Nivô e o Tambor Unidos de santa Fé. Entrevista cedida
pelo Laboratório Cisco, realizada em 29 de junho de 2017.
25
expressam as vozes que são abafadas ou até mesmo silenciadas num cotidiano opressor
(FERRETTI, 2002). É na roda do tambor que essas pessoas ganham voz, ganham corpo,
ganham a vez de se expressar. Na atmosfera dos tambores periféricos é possível vislumbrar
com mais clareza tal acontecimento: na construção da verdadeira identidade de “trabalhadores
comuns” em que pedreiros, empregadas domésticas, vendedores, pessoas simples, ganham o
protagonismo da fala, seja pela via oral ou corporal. Através do contexto em que os brincantes
estão inseridos é que Ramassote descreve a relação destes indivíduos com a manifestação do
Tambor de Crioula.
Só que eu tenho arrependimento, eu não sei lê nadinha, nem a assiná meu nome.
Que quando eu tinha 17, eu não tinha colégio, esse hospital era a Escola Régia,
ainda iam reformar aí pra hospital. Não tinha colégio nenhum aqui em Alcântara,
não tinha faculdade, não tinha essa escola Régia, não tinha o Inácio, não tinha nada,
não tinha nadinha. Depois sou eu que colho. Que a cidade, foi a primeira cidade
histórica que foi afundada, foi Alcântara. Tem um outro verso que canta “Alcântara
26
é minha terra, Maranhão é meu segredo, Eu não quero que se fale da terra que eu
como e bebo”.(Ana Benedita Ferreira Oliveira) 7
A coreira faz, ela faz os movimentos de entrada na roda, né, aí tem os giros, a troca
com a outra coreira, né, que tá dançando, aí depois ela vai, começa a dançar com o
tambor, aquela relação com o tambor grande, tem a punga, a marcação da punga,
mas eu acho que é basicamente isso. Essa marcação né, de giros, gira pra um lado,
gira pro outro, marcação com o coreiro, a punga, a entrada o momento que ela entra
na roda, o momento que ela sai e que ela continua dançando. Eu gosto muito de,
embora a gente, no centro da roda a gente faça um solo de dança, né, mas quando sai
da roda, do centro da roda e vai pra roda junto com as outras coreiras, eu acho que
ali também a gente não pode ficar só parada, eu acho que ali também requer
movimento, movimento de roda de dança, que dá um, valoriza ainda mais o
espetáculo. Bom a punga acontece junto com o tocador, né, a punga ela não é uma
coisa solta no tambor. (Rosangela de Jesus Santos Reis) 9
A dança da coreira carrega como gestual a punga. Para Ramassote (2006, p. 106),
“[...]a punga demarca a saída de uma coreira, a saudação e o pedido de entrada da
„dançadeira‟ seguinte. É um momento de interação e integração entre os brincantes, posto que
7
É coreira há 72 anos e participa do Tambor de Promessa, realizado em homenagem a São Benedito em
Alcântara. Entrevista realizada na data de 29 de agosto de 2017.
8
Laboratório de Expressões Artísticas é um grupo independente que trabalha com ações artísticas nas linguagens
da dança, teatro, música, cultura popular, fotografia e literatura. Os trabalhos produzidos pelo Laborarte contam
com espetáculos artísticos.
9
É coreira há aproximadamente 34 anos. Atualmente, é responsável pelo do Tambor de Crioula do Laborarte.
Entrevista realizada na data de 22 de agosto de 2017.
27
a punga da coreira deve estar em sintonia com o toque do tambor grande”. A punga de barriga
ou de umbigada acontece em um determinado momento da dança, onde as coreiras
concentram-se,de frente uma para outra, para encostar ventre com ventre ede forma
harmoniosa. Os motivos da punga são diversos: em primeiro momento, pode ser de convite ou
autorização à outra coreira dançar na roda, saudação à outra coreira que acaba de chegar,
demonstração de carinho e afeto e, até mesmo, como forma de brincadeira entre as coreiras no
cordão para animar a roda, como observei durante as pesquisas de campo. A coreira Rosa
Reis explica o que a punga significa durante a dança:
Mas tem a punga que você faz, que é o momento da umbigada, né, que é você bate
ventre com ventre com a outra coreira. É isso também é um, é uma coisa muito
forte, é muito forte também dentro da dança. É ... E ela acontece, eu acho que numa
sintonia, eu tô, eu tenho que tá em sintonia com a outra coreira pra gente chegar
junto nesse toque, né, que esse toque, que onde a gente vai passar uma energia a
minha energia pra outra coreira que tá dançando, né, a gente troca uma energia ali
naquele momento, não é só a questão da punga pra tocar de lugar, sair do centro da
roda, não é uma troca interior, também que acontece muito né, sabe uma coisa do
ventre, dali que é de ventre, de útero, de tudo ali, sabe? Então acho que é uma coisa
muito forte, é também marcada e depende muito da sintonia com outra coreira,
porque se não, não funciona. Ás vezes você dá uma punga, vai dá com outra coreira
que não tá no teu tempo, né, fica tudo fora. (Rosangela de Jesus Santos Reis)
Outra característica marcante da dança das coreiras são os giros frenéticos que
fazem com que as suas saias esvoaçantes pairem no ar de maneira altiva, com muita destreza e
elegância. Por ser este o recorte de nosso estudo, iremos nos ater em tratar de forma
minuciosa a dança da coreira em um subcapítulo próprio.
28
brincar. A fogueira é o primeiro ritual que inicia o tambor, pois sem os tambores afinados não
há brincadeira, não há festa, não há apresentação e pouco menos pagamentos de promessas. O
trato dos tambores, geralmente, fica na responsabilidade10 dos homens, enquanto as mulheres
se arrumam para dançar. Os homens são encarregados de buscar materiais para fazer a
fogueira, podendo ser lascas de madeiras, troncos e galhos de árvore, papelão ou outros
materiais de fácil acesso e manuseio. Uma vez a fogueira acesa é o momento de colocar a
boca dos tambores (parte superior dos instrumentos coberta pelo couro de animal) próxima ao
fogo, com muito zelo e atenção. Segundo os brincantes mais experientes, a afinação não pode
passar do ponto exato, razão pela qual é preciso ter paciência no manuseio destes tambores.
Os tambozeiros aproximam e distanciam, de tempo em tempo, os tambores do fogo para
alcançar tal afinação almejada.
10
Esta concepção de funções dentro dos tambores está se modificando, uma vez que é possível presenciar muitas
mulheres tocando os instrumentos e sendo responsáveis pelosseus manuseios na fogueira.
30
Eu muito raramente me coloco aqui em São Luís, ou em qualquer outro lugar, numa
situação de cantar, puxar o tambor. [...] Aprendi com Sardinha, que você tem que
contar o seu cotidiano, responder o seu amigo ali que tá numa certa implicância com
tua saia, ou com teu sapato, ou com tua roupa, e ai eu dou lá a resposta. Mas eu
11
Nome utilizado entre os brincantes para denominar o toque contínuo por determinado tempo dos tambores,
acompanhados ou não das toadas.
12
Que pode ser de cunho político, reclamações atreladas à falta de incentivo e fomento do Estado ao Tambor de
Crioula, como também da falta de bebida para os tocadores e coreiros.
31
13
É coreira há 12 anos, dança como tapuia no Bumba-meu-boi do Mestre Leonardo. Entrevista realizada na data
de 24 de agosto de 2017.
14
Informação concedida pelo brincante e coreiro Baé (Cleosvaldo Diniz Ribeiro) em uma oficina de Tambor de
Crioula, desenvolvida no Centro Cultural Mestre Patinho em São Luís/MA.
32
Porque é o santo preto, santinho pretinho. “O que é que nós vamos dar na nossa
festa? Vamos passar um café, um bolo de tapioca aquele bolo duro meu filho, pra
come”, até hoje tem essa história, passa o café e o povo come o bolinho duro e vamo
dançar tambor até umas hora. (Maria da Graça Belfort - Roxa).
15
Santo Mouro nasceu na Itália e foi filho de escravos. Entrou para um convento de padres Capuchinos, aonde
chegou a ser superior dos frades. Realizou milagres relacionados em ajudar os pobres.
33
após todas as coreiras dançarem, ele é colocado de volta ao altar e a brincadeira continua.
Alguns grupos realizam o ritual da entrada do santo na roda enquanto dançam, com exceção
das apresentações oficiais em que o santo não é colocado na roda, outros preferem ter um altar
para o santo, também nas brincadeiras não oficiais.16
16
Brincadeiras, apresentações ou brincadas oficiais fazem referência às apresentações contratadas pelo Estado
e/ou empresas privadas.
17
Nome utilizado pelos brincantes para referir-se ao espaço fixo de encontro do grupo. Geralmente, a sede é a
própria casa dos donos e donas do tambor.
34
santo possa “assistir” a roda. A ordem entre a marcha de Tambor e a Ladainha varia de
promessa para promessa, assim como a entrada do santo na roda, conforme pude observar
através das pesquisas de campo.
No interior do Maranhão, outros rituais também estão presentes na promessa. Um
deles é o “roubo” do santo18, em que em determinado momento da festa (próximo ao
amanhecer), o santo some do altar e os brincantes responsáveis pela promessa anunciam o
roubo para os demais participantes. Todos os brincantes saem pela vizinhança, de casa em
casa, tocando marchasna busca do santo e pedindo algumas prendas, como comida e bebida,
para os donos das casas. Assim que o encontram, voltam para o local da promessa e dançam
para ele com entusiasmo e o colocam de volta no altar. Sintetizando a presença do santo na
manifestação, fazemos o uso da seguinte citação de Ramassote (2006, p. 63): “[...] É no
„tambor de promessa‟ que essa apropriação fica mais explícita, pois nele ocorre a
materialidade da presença do santo: o santo é visto, o santo assiste, é banhado, roubado,
tocado, ele dança, é „salvo‟”.
18
Observamos este fato em uma promessa em Mocajituba, realizada por D. Maria Clóvis, irmã do Mestre
Wanderley de Mocajituba.
19
Público do Tambor de Crioula que podem ser amigos, parentes ou simpatizantes da manifestação. Geralmente,
estão localizados ao redor da roda de tambor.
35
Tem sido cada vez mais difícil manter o costume da bebidanas apresentações
oficiais. A rígida fiscalização de representantes do Estado repudia veementemente este tipo de
comportamento diante do público, restando aos brincantes beberem “escondido” antes ou
durante as apresentações. Não é difícil ouvir os cantadores tirarem versos de toadas em
menção à bebida: “Eu vou beber no mar, Eu vou beber no mar, Se aqui não tem cerveja eu
vou beber no mar” (toada que integra o repertório do Tambor de Mestre Felipe), ou ainda “Eu
vou falando mal, Eu vou falando mal, Tambor que não tem cachaça, Eu vou falando mal”
(toada cantada por Mestre Amaral durante as rodas de tambor), para reclamar da ausência da
bebida durante a brincadeira.
Nas brincadeiras de Tambores de Ponta de Rua20 e, principalmente, nas promessas
oferecidas a São Benedito, a presença das comidas e bebidas em abundância são quase que
obrigatórias. Elas são oferecidas pela pessoa que tem a obrigação da promessa ou angariada
20
Nomenclatura utilizada para denominar as apresentações não oficiais dos brincantes, onde a brincadeira é
realizada por divertimento, geralmente, na porta das sedes dos grupos.
36
de forma coletiva, onde a responsabilidade pela fartura da festa fica dividida com cada
participante do Tambor. Segundo Ramassote:
ele era bastante separada essa questão”. Por mais que ainda não se tenha um consenso sobre a
religiosidade no Tambor de Crioula, pude perceber nas visitas em campo que as duas
atmosferas se misturam e, na realidade dos brincantes, ficam indissociáveis, pois muitos
frequentam terreiros de religiões afro-brasileiras. Para este estudo, partiremos da perspectiva
de Hampaté-Bâ que dissolve as barreiras entre o sagrado e o profano:
22
Entidade africana pertencente às religiões de matrizes africanas que é sincretizada ao santo São Benedito.
(FERRETTI, 2002).
38
23
É coreira há 24 anos, dança nos Tambores União de São Benedito - Mestre Felipe, Tambor do Laborarte e
Pungar da Ilha. Entrevista realizada no data de 30 de novembro de 2017.
39
Ser coreira é aquela que coloca uma saia bonita, muitos colares e se invocar mesmo
para ser coreira. Que a coreira que é coreira ela tem que tá de pano na cabeça, tem
que estar de torço, tem que tá. [...]E tem vários tambores que dançam calçados, o
tambor de mestre Felipe e o tambor do Laborarte bem pouca. Tem umas que tem
problema “aí eu tenho medo de me cortar porque eu sou diabética”, e eu “bota um
sapato no teu pé”. Agora se eu te dissê uma coisa para vocês, se eu for dançar um
tambor calçada, não dá certo. E tem que tirar meu chinelo, meu sapato, pra mim
sentir firmeza onde eu tô pisando. Aí pronto! Dá tudo certo. (Maria da Graça
Belfort).
dá conta de expressar o modo de vida desses grupos – essa fórmula tem sido vendida
ao visitante, turista, espectador como sendo a autêntica cultura maranhense.
(RAMASSOTE, 2006, p. 120).
Além de todas as exigências para que exista uma boa apresentação, ou melhor, um
bom espetáculo, ainda há um agravante maior que transforma a relação dos brincantes com a
gestão da brincadeira. A burocratização dos editais de contratação do Estado tem forçado os
grupos a se enquadrarem em um formato de empresas, exigindo uma documentação e
administração a qual muitos dos brincantes são leigos, principalmente os brincantes mais
velhos, em geral não alfabetizados. Situação esta que D. Anica relata fazer parte, conforme
citamos anteriormente.
A necessidade de “legalizar” os grupos de Tambor de Crioula, para que estes
possam estar habilitados nos editais de credenciamento do Estado, obriga os responsáveis a se
enquadrar neste novo formato, sendo necessário providenciar um estatuto dos membros com
as respectivas funções administrativas dentro do grupo, a emissão de um CNPJ (Cadastro
Nacional de Pessoa Jurídica), a abertura de uma conta bancária em nome do grupo ou
associação, dentre outras providências necessárias exigidas pelo Estado e também pelas
instituições privadas. Tais medidas são complexas e exigem um conhecimento específico de
questões administrativas, das quais muitos desconhecem. Além disso, para a tramitação da
legalização, do que chamaremos de “grupo empresa”, é necessário dinheiro para dar entrada
nas documentações.
Para os grupos que não conseguem a legalidade do Tambor para se apresentar no
calendário oficial do Estado24, existe a opção de apresentarem pelas associações (que
funcionam como produtoras) com a ressalva de que parte do cachê sejautilizada para pagar os
serviços da mesma e o restante é destinado para ser dividido entre os participantes do grupo.
Os grupos que não se enquadram em nenhuma dessas formas de legalidade não se apresentam
no calendário oficial, isso faz com que a manutenção e a subsistência dos mesmos
estejamcomprometidas, uma vez que existem gastos em manter um grupo de pessoas.
Podemos perceber através deste breve apanhado histórico do Tambor de Crioula,
na visão dos pesquisadores e brincantes da manifestação, que o Tambor tem sofrido
significativas transformações ao longo dos anos. Enquanto, por um lado,essas alterações
24
O calendário de apresentação oficial acontece nas datas festivas do Carnaval e São João, além de
apresentações de programas turísticos ao longo do ano.
41
Vocês, com essa pesquisa, vocês olhem mais um pouco que a universidade ela pode
dá alguma coisa de ajuda pros grupos também, que ela tem essa capacidade, né? Não
é só tirar também dos grupos, entendeu? Tem que ajudar em alguma coisa, né,
chamar os grupos, ajudar em alguma coisa, né, porque precisa os grupos; nós
trabalhamos com muito sacrifício; porque este cachê que o governo dá não dá pra
nós manter o nosso grupo, de jeito nenhum, não dá. Então eu quero que, a
universidade precisa demais da nossa ajuda, ou da nossa colaboração, então eu quero
que ela olhe mais com carinho os grupos dos tambores de crioula, entendeu? [...]
25
Informação cedida pelo atual presidente do grupo de Tambor de Crioula de Mestre Felipe, Mestre Militão −
Raimundo Militão Pereira, coreiro, cantador e cabeceira no Tambor de Crioula União de São Benedito de Mestre
Felipe desde o ano de 1993. No ano de 2016, as reuniões do fórum eram acompanhadas pelo ex-presidente
Sérgio Costa e, atualmente, pelo Mestre Militão.
42
então o IPHAN tem que olhar um pouco pela gente, né não? (RAMASSOTE, 2006,
p. 121).
Pra fora, com doze anos eu comecei a tocá na rua junto com os outros! P‟que os
velhos levavam. Nóis não ia por conta nossa como hoje criança vai pra festa por
conta deles. Os velhos levava! Cê sabe um sarau com a turma de Maria de Inésia, a
turma de Nhé Inésia? Nhé Inésia era minha avó... Inésia, que era o nome dela, mas
todo mundo chamava Nhé Inésia! Aí, chegava convidava ela e ela ia com a turma
dela. Todo mundo.(COSTA; HAIKEL, 2013, p. 21).
Além do envolvimento com o Tambor de Crioula desde muito cedo, Mestre Felipe
também tinha um grande apreço pelo Bumba Meu Boi. Seu contato remete à infância quando
brincava de personagem do caboclo de pena. Em sua herança familiar, além da avó Nhé Inésia
ser envolvida com o Tambor de Crioula, a sua mãe Maria Cândida Figueiredo era envolvida
com as festas e o toque de caixas para o Divino Espírito Santo, Joana, irmã de mestre Felipe e
mãe de Zé Olhinho26, tocava instrumentos no Tambor de Crioula.
26
Sobrinho de Mestre Felipe, tocador de tambor e fundador do Bumba-meu-boi Unidos de Santa Fé. Antônio
Roxo,seu irmão, assume importantes funções no Boi, além de ser coreiro oficial de Mestre Felipe.
43
27
Depois, a sede muda para a Vila Conceição, no bairro do Coroadinho, onde permanece até hoje.
28
Jornalista, ator, diretor e autor de teatro, foi uma personalidade importante para cultura maranhense e para a
história do teatro do Maranhão. (Costa; Haikel, 2013).
44
participar da dança. Começou a dançar oficialmente com Mestre Leonardo, mas arriscava a
dança, às escondidas, quando pequena:
Olha só, eu vou tedizê uma coisa! Eu, quando era piquena, quando tinha tambô na
casa de Filipe, na casa da avó de Filipe, nós criança: eu, as minhas prima, as
meninas que morava lá na redondeza, nós ia e se juntava na bêra da casa pra dançá.
Eles dançavam lá na ramada, os grandes tocando e nós aqui ficava na bêra da casa
dançando, olhando no buraco da palha! Aí, foi que a gente ia dançando. A gente
reparava lá como elas faziam!(COSTA; HAIKEL, 2013, p.127).
Mestre Felipe herdou de sua avó Nhé Inésia a devoção a São Benedito, que já
realizava festas de promessas em devoção ao santo. Segundo depoimento de D. Mundica,
durante a festa, era realizado o levantamento do mastro de São Benedito com salvas de
Tambor ao Santo, rezas, oferecimento de “joias” que, em um carro de boi, eram representadas
por alimentos (arroz, farinha, azeite, tapioca, etc). Por fim, a festa acabava com a derrubada
do mastro (COSTA; HAIKEL, 2013).
Mestre Felipe fala da devoção que nutriu pelo santo:
P‟que São Binidito de minha avó, „té hoje não apara em casa e não dorme um
sábado em casa. Todo sábado ele tem que ir recebê uma ladainha, seja onde for!
Vem buscá… Eles levam, reza sábado, domingo vem s‟imbora. Se não trouxer
domingo, eles trazem na segunda-feira, p‟que não pode passá a semana fora. Aí, eles
vão levá. Aí terminou, vem pra casa! Quando chega no outro sábado já é outra
pessoa.... É milagroso! São Binidito é milagroso. É booom, Graças a Deus! É um
santo milagroso… é!(COSTA; HAIKEL, 2013, p. 27).
O sotaque tocado pelo Mestre é sem a matraca, específico da Baixada em que está
localizada a cidade São Vicente Ferrer. No entanto, Felipe explica que o toque de tambor se
diferencia nas regiões da Baixada, uma vez que cada uma apresenta um toque específico, com
variações no ritmo que podem ser mais compassados ou acelerados:
Tem muita Baixada aí que é diferente desse pessoal. Oiá é como nóis: São Vicente,
São Batista, Cajapió… é uma Baixada só... um ritmo só. É só um ritmo! [...] Esse
pessoal de Alcântara, já é outro ritmo.[...] É mais corrido. [...] O nosso é o mais
compassado. Mas já tão tuleran‟o. Tem muita gente que tá tuleran‟o. (COSTA;
HAIKEL, 2013, p. 115-116).
Em São Luís,Mestre Felipe se deparou com o sotaque que faz uso da matraca na
brincadeira (COSTA; HAIKEL, 2013, p. 117): “O tambô com matraca… eu não gosto
45
p‟que...lá pra casa, nunca eu vi tocan‟otambôcum matraca![...] Bumba-boi é que eu sei que
tem matraca. [...] Agora, cheguei aqui em São Luís, eu encontrei no boi… no Tambô de
Leonardo […]”. Além de manter no toque do grupo a característica do sotaque de sua região,
Mestre Felipe pedia para que ninguém batesse matraca no Tambor enquanto tocava. Assim,
continuou os fundamentos que aprendeu por toda a sua vida, deixando como herança para
seus coreiros e coreiras um legado de saberes.
A religiosidade e o Tambor de Crioula ainda é um assunto que gera muitas
discussões e pontos de vistas divergentes, no entanto, para Mestre Felipe essa questão era
muito esclarecida, pois cada coisa tinha o seu lugar:
Eu tenho meus incantado! É pra brincá cura, não é Tambô de Crioula! No dia de eu
brincá cura eu vou brincá minha cura, se eu vou brincá meu Tambô de Crioula, eu
vou pro Tambô de Crioula! Tá misturan‟o uma coisa, Mara… Como se diz?
Maribundo com furabundo. Não dá certo! Ou bem uma coisa, ou é outra. Esse é que
é o negócio! (COSTA; HAIKEL, 2013, p. 115).
Segundo a coreira Laís (Laís de Moraes Rego Silva), era evidente a separação que
Mestre Felipe estabelecia entre o Tambor de Mina e o Tambor de Crioula. Apesar de ser
próximo de algumas entidades e de realizar Tambores de Crioula em pagamentos de
promessas nos terreiros, o Mestre não delimitava nenhum tipo de incorporação para os
brincantes do grupo.
A coreira e integrante do grupo Laís Cazumbinha29, como Mestre Felipe gostava
de chamá-la, explica a relação do Mestre com a Mina e os Tambores de Promessas:
Quando o problema de saúde dele começou a se tornar mais grave, ele começou a ter
mais falta de ar, porque ele tinha enfisema pulmonar, né, ele fez tratamento em
alguns, então ele sempre tinha uma relação. Então, de vez em quando era chamado
pra fazer Tambor de Promessa. Eu não sei te dizer se, pra todos esses que a gente
vai, se ele frequentava, ou se ele só tinha relação com algumas entidades. Eu vou te
dar o exemplo do Maiobão, né, então, lá no Maiobão tem promessa, as entidades
pediram que fosse o Tambor de Mestre Felipe que fosse pra lá. Quando a filha de
santo da casa ficou com a incubência de fazer uma festa do Tambor de Crioula de
Promessa pra São Benedito, uma das entidades que é “Manezinho Bogi Boá” da
família légua, ele pediu que fosse o Tambor de Mestre Felipe, entendeu? (Laís de
Moraes Rego Silva).
29
Segundo a coreira, foi a primeira mulher a ser Cazumbá no Boi-Meu-Boi de Santa Fé. Isso gerou uma
resistência de Mestre Felipe que fez com que, a pedido de Zé Olhinho,a mesma pedisse autorização a seu esposo
Sergio Costa para dançar no Boi.
46
Quando ele faleceu, quando ele chegou no hospital teve uma roda de tambor na casa
dele. Ele foi enterrado no interior dele em São Vicente de Ferrer. Quando nós
chegamos em São Vicente de Ferrer, tinha vários tambores, vários, muitos, para
receber ele, né? Menino se eu te contar filho de Deus, eu dancei tambor a noite
toda... “Na vila de São Vicente rádio fala toda hora, na vila de São Vicente rádio fala
toda hora, boieiro eu vou me embora, boieiro eu vou me embora, boieiro eu vou me
embora, boieiro eu vou me embora, quando eu canto essa cantiga, boieiro eu vou
me embora, meu coração dá uma dor, boieiro eu vou me embora, eu me lembro de
Felipe, boieiro eu vou me embora, que Jesus Cristo levou, boieiro eu vou me
embora”.(Maria da Graça Belfort).
Com a morte de Seu Felipe a gente teve um momento de crise grande no tambor,
porque Seu Felipe não deixou um segundo, ele deixou essa tarefa pro grupo né.
Então assim, a referência do grupo de organização era Sergio, né, só que Sérgio não
é o mestre do tambor, então isso a gente foi esclarecendo aos poucos para que os
mais velhos começassem a perceber que a gente tinha que ter um mestre do Tambor
né.[...]Sérgio era sim a referência era liderança na parte de organização e
estruturação do grupo né, então seu Felipe não deixou, não deixou, isso foi um
momento de crise, até que a gente foi tendo assim o feedback de Tomás e de Militão
né, né. E aí a gente não teve critério para escolher um mestre, foi quando nós
decidimos, o grupo decidiu também que seriam eles dois, então nós temos dois
Mestres no grupo, né, dois Cabeceiras como a gente fala, então que é Militão e
Tomazinho, né.[...]Tomazinho sempre foi um cara muito querido por seu Felipe,
mas em compensação ele não toca e só canta, daí a gente decidiu que seriam eles
dois.(Laís de Moraes Rego Silva).
como o grupo se reorganizou após a partida de D. Mundica, que foi e ainda é uma grande
referência para as mulheres que dançam:
Com a morte de D. Mundica aí foi que as coisas foram se configurando, aí foi que as
coisas foram se configurando, Roxa foi tomando mais à frente, D. Estela também
com essa questão das roupas, da escolha de tecidos, Seu Felipe sempre chamou D.
Estela para isso, isso sempre foi atribuição dela, entendeu.[...] Então, a gente tinha
essas quatro figuras Maria Ribamar foi ficando mais afastada, ela foi embora para o
interior, ficou doente, né, ela esteve muito presente na transição entre a morte de Seu
Felipe e a morte de D. Mundica. Ela morou na época lá com D. Mundica, então ela
esteve muito presente fazendo companhia para D. Mundica. E aí com a morte de D.
Mundica, Maria Ribamar também foi se afastando aos poucos. E aí foi se
configurando isso, de forma que a gente tem duas pessoas. Marizinha também foi
embora para o interior e a gente ficou com duas pessoas Roxa e Dona Estela, que
são as duas Cabeceiras que a gente tem hoje. Então se as pessoas perguntarem a
gente vai dizer que tem dois Cabeceiras homens, Tomazinho e Militão e duas
Cabeceiras Mestra Roxa e D. Estela. (Laís de Moraes Rego Silva).
30
José Raimundo dos Anjos, filho caçula de Seu Felipe e D. Filomena dos Anjos, nasceu em São Vicente Ferrer
e migrou para São Luís no intuito de dar continuidade a seus estudos. No ano de 2003 assumiu funções da
coordenação do grupo e, hoje, é o responsável pela continuidade dos trabalhos desenvolvidos pelo pai,
dedicando parte de sua vida ao grupo Tambor de Crioula União de São Benedito. Assumiu a casa de Mestre
Felipe, mudando-se para morar na mesma, de modo a evitar que fosse vendida pelos familiares de Seu Felipe,
garantindo o funcionamento das atividades culturais na sede do grupo.
31
Às vezes o grupo recebe cachê para apresentação em Tambores de Promessas, outras vezes, apresentam
gratuitamente com o dono da festa, custeando a alimentação e o transporte dos participantes.
48
de pagamentos – no caso desse último item, eu sempre ficava impressionada com tamanha
organização. A diretoria que, nesta época32 era composta por Zé Raimundo como tesoureiro e
Sergio Costa como presidente, preparava um slide com o valor do pagamento de cada
brincante e justificava,para todos os participantes, o motivo pelo qual os brincantes cabeceiras
recebiam um valor maior − relacionado com o tempo de participação no grupo e suas
contribuições na condução da brincadeira. Todas as decisões são estabelecidas em assembleia,
de maneira democrática,todos têm fala e voz para decidir os assuntos do grupo em coletivo.
Esse formato de organização se apresenta de forma extremamente eficiente e transparente
para os integrantes do grupo. No entanto, é possível perceber como tais funções de
organização desgastam aos que estão à frente desta tarefa. Pude perceber a luta constante de
Zé Raimundo e Sergio Costa em manter a união do grupo, perante a um cenário de descaso e
desrespeito por meio dos editais do Estado que muito solicitam e pouco oferecem em troca:
Por parte dos grupos, reportaram críticas e insatisfações acerca do apoio intermitente
e precário das gestões públicas locais; lamenta-se sobre a decadência da tradição;
constata-se em certos casos a criação indiscriminada de novos grupos visando
apenas à obtenção do estipêndio oficial. (RAMASSOTE, 2006, p. 33).
Para este caso, temos o claro exemplo do que vem acontecendo com o Tambor de
Mestre Felipe e as medidas das políticas públicas. Desde o ano de 2016, pude presenciar a
existência de um grande rigor nas exigências para a inscrição dos grupos de Tambor de
Crioula em programações festivas de São Luís, fomentadas pelo governo. Taismedidas
acontecem em total desarticulação com os Tambores de tradição, onde a maioria dos
integrantes não possuem aptidões necessárias para retirar o CNPJ do grupo e inúmeras
documentações burocráticas, o que acaba por impossibilitar a participação dos grupos
tradicionais na programação da cidade.
Em momento algum são valorizados os saberes dos mestres, mestras e brincantes
da manifestação, pelo contrário, acima de qualquer item, é exigido que se apresente uma
empresa ou vínculo com uma associação para a efetivação do credenciamento nos editais do
Estado. No ano de 2016, no período de credenciamento para integrar a programação de
apresentações no São João, o Tambor de Mestre Felipe teve grandes dificuldades para retirar a
certidão negativa do CNPJ e conseguir entregar a documentação no prazo exigido pela antiga
32
A nova diretoria tem Zé Raimundo, enquanto tesoureiro do grupo, e Mestre Militão, como atual presidente.
49
Mas é assim o gostoso é que até hoje e mantido o mesmo ritmo, né, não se
acrescentou nada, por exemplo, a matraca, até hoje, não era usada por ele na época.
Até hoje foi se mantido também o não usar a matraca no Tambor, eu acho que isso é
bem marcante também, e manter também as músicas que Mestre Felipe deixou.
(Danira da Silva Costa).
falas, no toque, na dança, no canto, na nostalgia das lembranças vivas em cada um. Não posso
dizer que não conheci Mestre Felipe e D. Mundica, pois os conheci em fragmentos,
distribuídos em cada integrante do grupo. Posso até dizer que sou fruto de suas reverberações,
que são zeladas com carinho pelos os que tiveram mais proximidades com os Mestres e que
foram transmitidas com muito amor e cuidado. O meu corpo é o resultado do legado da dança
que D. Mundica nos deixou.
33
Nomenclatura utilizada para designar propriedade agrícola, conhecida por nós como fazenda.
51
as mesmas eram levadas para o lagar. Neste deslocamento, encontramos uma variação dos
procedimentos realizados na região do Douro para a região do Dão. Exemplificando esta
variação, utilizaremos o relato34 de Lopes Pires35:
34
Não faremos nenhum tipo de correção para a linguagem formal em nossas descrições, como forma de manter a
informalidade acolhedora pela qual fomos recebidos, por todos os entrevistados.
35
Etnógrafo e fundador da Associação de Passos de Silgueiros.
53
muitas vezes retiradas das cantigas dos ceguinhos, que andavam pelas feiras a cantar
a troco de uma esmola. Cantigas essas que contavam uma história, contava um
romance. Normalmente para poderem vender, tinham impressos na tipografia, em
um folheto, uma folha, e neste folheto tinham as quadras, e essas histórias contavam
desgraças[...]. (António Lopes Pires).
36
Procedimento típico da região do Douro, exemplo este já citado anteriormente no trabalho.
54
37
Ambas são cantadeiras e trabalhadoras do campo aposentadas.
55
O tema amor também é outro gênero musical português. Através dele canta-se a
despedida e a dor da distância causada pela separação, por motivos terceiros como trabalhos
em alto mar, serviços militares, etc. De acordo com Nunes (1978, p. 32) “a poesia de carácter
amoroso é um filão aurífero e inesgotável, com predomínio incontestável nas produções da
tradição oral popular”.
O tema religioso faz alusão às crenças do lirismo português na devoção e
exaltação a seres divinos, portanto, pode-se perceber o forte apelo ao catolicismo, ainda
predominante em Portugal. “Através das cantigas observa-se que a devoção popular se centra
em Jesus Cristo e na Virgem” (NUNES, 1978, p.59). Em referência ao tema religioso,
citaremos o canto “Nossa Senhora da Guia”, recolhido durante a pesquisa de campo na
Assops e cantado pela assessora da associação e ex-integrante do Rancho Folclórico de
Silgueiros, Maria Odete Nunes Madeira. Pode-se perceber a presença de dois temas, o amor e
a religião, sendo o tema religioso mais marcante em suas quadras.
38
Associação de Passos de Silgueiros abriga idosos trabalhadores do campo, em tempo parcial e integral.
39
Cidália Rodrigues Almeida, cantadeira e trabalhadora do campo aposentada.
56
escola com onze anos, e logo fui trabalhar para ganhar tanto quanto as mulheres mais velhas,
e isso veio a ser toda minha vida[..]”.
De acordo com Lopes Pires, a mulher na região do Dão sempre foi muito
sacrificada no trabalho, realizando funções que muitas vezes o homem não realizava por
serem denominadas como “coisas de mulher” – por exemplo, buscar água na fonte utilizando
grandes jarros levados à cabeça, função vergonhosa para os homens. No canto é possível
observar, através de suas letras, indício morais que julgam e determinam a conduta da mulher
do campo, induzindo a mesma a “se preservar. Essa atribuição de conotação moralistapode ser
percebida a seguir na quadra da música “Ó adro da macieira”, canto recolhido através das
três cantadeiras mencionadas anteriormente:
Ó macieira do adro,
Ó adro da macieira.
Ó i ó ai se te deixes abanar,
Se te deixas abanar,
Já não achas quem te queira.
57
Não há nenhum fato marcado para a vindima, nem nenhum fato marcado para a
missa, não há fatos assim marcados. Então o que há? Há um fato que se usa todos os
dias, e todos os dias é para todos os dias, e até era para o casamento. E por isso,
algumas pessoas tinham que casar de noite, às escuras, de madrugada, para ninguém
41
Nomenclatura utilizada em Portugal para se referir à roupa.
60
os ver. Porque usavam os fatos que traziam todos os dias, pois não tinham outro.
(António Lopes Pires).
de Jesus Santos Reis) exprime bem essa memória presente em nossas ações: “o teu corpo ele é
um corpo que ele vai dançar, né, de acordo com a tua vida, ele é um resultado de tudo que tu
faz, né, então teu corpo ele tem isso, então ele tem a vivência, né, e essa vivencia que tá junto
naquele momento da dança”. Somos frutos de memórias.
No campo teatral, a memória está presente no trabalho do ator, apontada
inicialmente por Constantin Stanislavski no conceito de memória afetiva e que logo se
tornaria a memória emotiva. A memória, a partir da perspectiva de Stanislavski, servia ao ator
como mecanismo para a construção da personagem, ou seja, servia então a obra. A pedagogia
desenvolvida pelo mestre seguia no intuito de revelar a “verdade cênica”, que propõe ao ator
recordar ocasiões vivenciadas em sua vida que lhe proporcionaram emoções específicas para
que possam ser “reconstruídos estímulos sensoriais que provocaram essas sensações” (DIAS,
2013).
O trabalho sobre a memória emotiva inicia uma importante vertente que
Stanislavski nos deixou de herança, no teatro por si mesmo, oportunizando o protagonismo do
trabalho do ator. A partir da perspectiva de Jerzy Grotowski, este estudo tomou outra
proporção aose aprofundarno ator, no processo impulsionado a partir da busca interior do ator,
que resulta na cena.
Como primeiro ponto de investigação, Grotowski aponta a memória como solo
fértil de estudo para o ator:
O corpo não tem memória, ele é memória. O que devem fazer é desbloquear o
“corpo-memória”. Se começam a usar detalhes precisos nos exercícios “plásticos” e
dão comando a vocês: agora devo mudar o ritmo, agora devo mudar a sequência dos
detalhes etc., não liberarão o corpo memória. Justamente porque é um comando.
Portanto é a mente que age. Mas se vocês mantêm os detalhes precisos e deixam que
o corpo determine os diferentes ritmos, mudando continuamente o ritmo, mudando a
ordem, quase como pegando os detalhes do ar, então quem dá os comandos? Não é a
mente nem acontece por acaso, isto está em relação com a nossa vida. Não sabemos
nem mesmo como acontece, mas é o “corpo-memória”, ou mesmo o “corpo-vida”,
porque vai além de nossa vida. (FLASZEN,2010, p. 173).
muscular no corpo, e que está conectado a um objetivo fora de si” (RICHARDS apud
BURNIER, 2009, p. 39), ou seja, está relacionado com uma ação interna que parte para o
externo. Portanto, o impulso é o que conduz o desejo, a motivação ou ainda a intenção
construída através da energia interna, para o externo, fazendo com que o movimento/ação
possa adquirir forma e presença.
No ano de 2014, participei no Lume Teatro42 da oficina “O corpo Multifacetado”,
ministrada pela atriz Ana Cristina Colla. Trabalhamos técnicas corporais diversas durante,
aproximadamente, seis dias. Dentre as técnicas estudadas, trabalhamos com a dança pessoal
desenvolvida por Luís Otávio Burnier, onde os movimentos externos eram resultados de
impulsos internos. Para cada dia de oficina, retomamos a técnica com o intuito de construir
caminhos que possibilitassem a ativação deste corpo que dança, com seus movimentos
pessoais a partir de impulsos que geram a dilatação deste corpo. No último dia da oficina, os
impulsos internos estavam tão vivos e presentes, que foi possível descobrir um caminho
dentro do meu corpo, permitindo acionar esses impulsos de maneira consciente. Quando
preciso estar presente em meus trabalhos corporais, retomo essa memória de impulsos que se
ativam em meu corpo.
A partir da busca por si, Grotowski vai além na compreensão da esfera do ator. A
partir da conjunção do encontro interior na construção das particularidades, o ator passa a ser
chamado de Performer.O texto “O Performer” (1987), redigido a partir de duas conferências
na Itália, aborda a última etapa de investigações:
Fala sobre o retorno às origens através do trabalho sobre si (ao mesmo tempo de um
retorno às origens para o trabalho sobre si). Ali, Grotowski aponta a corporeidade
antiga, ancestral, como uma via de acesso à criação que estaria dentro de cada um de
nós. Fala que a partir dos detalhes, como a lembrança das rugas, ou da voz distante
de um avô ou mãe, pode-se iniciar uma construção corporal que, em um segundo
momento, pode buscar ou se deparar com uma corporeidade ancestral e
desconhecida.(MATRICARDI, 2017, p. 1769).
“O Performer” foi um marco para um campo de visão mais alargado das noções
do ator sobre si mesmo, onde o diretor explica que: “O Performer, com letra maiúscula, é um
homem de ação. Ele não é um homem que faz o papel de outro. É o atuante, o sacerdote, o
42
Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP, é um coletivo teatral fundado pelo pesquisador
Luís Otávio Burnier, que realiza estudos e pesquisas relacionadas ao trabalho do ator através de uma
metodologia própria.
66
guerreiro: está fora dos gêneros estéticos”(GROTOWSKI, 2015, p. 2). A comparação que
Grotowski estabelece entre o ator e o guerreiro aproxima-o da situação da luta, onde o ator
trava uma batalha pessoal com seu próprio eu, colocando-se diante de seus limites e
superando-os, possibilitando o alcance do comportamento orgânico.
É importante ressaltar que muitos outros conceitos de Grotowski antecedem o
conceito de Performer, do qual irei apresentar. No entanto, seria necessário um fôlego maior
para me debruçar sobre cada um que o antecede e o justifica. Farei então um breve passeio
naquilo que me toca em sua nova descoberta no ator.
Segundo o diretor, o “Performer é um estado do ser”(GROTOWSKI, 2015) que
não está mais atrelado a representar algo no intuito de consolidar um espetáculo, mas de
transformar a si mesmo enquanto ofício teatral e individual. O conceito de Performer
perpassa um caminho já trilhado e muito explorado por Grotowski,o ritual. Entretanto, nesta
etapa de sua investigação, recebe uma nova perspectiva:
uma extensão do corpo, do mesmo modo que os olhos, as orelhas, as mãos: é um órgão de nós
mesmos que nos estende em direção ao exterior e, no fundo, é uma espécie de órgão material
que pode até mesmo tocar” (FLASZEN, 2010, p. 159). A partir da concepção de voz enquanto
parte do corpo, o diretor entende que a voz não deve ser trabalhada enquanto um instrumento
vocal, e sim como um princípio fundamental, a respiração.
Para o diretor“os atores não devem fazer exercícios vocais, mas devem usar a voz
em exercícios que envolvam todo o nosso ser e nos quais a voz irá se liberar
sozinha”(FLASZEN, 2010, p. 159). Através desse pensamento, ele desenvolveu exercícios
que trabalham a respiração do ator, no intuito de possibilitar um melhor uso do ar nos
pulmões. Na concepção de Grotowski, a respiração acontece de três maneiras: respiração
torácica superior (ou peitoral), respiração inferior (ou abdominal) e respiração total. Segundo
Grotowski, o ator fará melhor uso deste ar com a respiração abdominal, que é sustentada pelo
diafragma. Aponta que, quando acontece a respiração na região do tórax, o ar não pode chegar
à parte inferior dos pulmões, que comporta uma capacidade maior de ar, resultando em uma
respiração sem sustentação do ar. A respiração total seria um tipo de respiração ideal,
sustentada na respiração abdominal. No entanto, a região do tórax tem participação no trajeto
do ar nos pulmões, possibilitando uma respiração orgânica que se adapta aos diversos
movimentos do corpo.
Outro fator importante para o uso da voz, apoiada na respiração, é a expiração do
ar. Para o diretor, “a expiração conduz a voz, não há dúvida. Mas para conduzir a voz, a
expiração deve ser orgânica e aberta. A laringe deve estar aberta e isso não se pode obter com
a manipulação técnica do instrumento vocal” (FLASZEN, 2010, p. 151). Ou seja, a técnica de
respiração auxilia no não tensionamento da laringe e facilitando que o ar realize seu percurso
sem esforços, resultando em uma voz orgânica. Grotowski acrescenta ainda que:
corporais onde a voz pode ser projetada, adquirindo potência na emissão do vocal. Além
disso, apontaos vibradores como possibilidades de trabalhar as qualidades e diversidades
vocais, sustentadas em pontos que possibilitem uma vibração (física) no corpo, onde a voz
atinge a materialidade, no sentido de ganhar forma, cor e corpo no espaço. A voz no trabalho
de Grotowski, por ganhar corpo, está associada ao impulso, a energia e a presença,
aproximando a investigação vocal à busca de si mesmo, o que resulta na utilização da voz
orgânica e viva:
[...] Devem cantar, devem comportar-se como camponeses que cantam. Quando
fazem os trabalhos domésticos, deveriam cantar, quando se divertem, deveriam
cantar. Devem também brincar com vários sons; devem procurar como criar espaços
diferentes com o seu canto, como criar uma catedral, um corredor, um deserto, uma
floresta. Deveriam estender o seu ser através da voz, mas sem qualquer técnica
premeditada. (FLASZEN, 2010, p. 160).
Ao que me consta apontar, neste breve alinhavar dos conceitos desenvolvidos por
Grotowski em suas diversas etapas de investigação, é que o diretor construiu um caminho no
intuito de se aproximar daquilo que é de mais verdadeiro no Performer-ator-bailarino,
despindo-o de tudo o que o distancia do seu verdadeiro eu, que se ocupa em estar presente em
cena, estar vivo, crível e não mais preocupado em interpretar ou representar um outro. Para
isso, ele trabalha na esfera do trabalho físico, o que resulta na construção de um corpo
extracotidiano que se despe das máscaras irreais do cotidiano, desafia os seus limites, realiza
uma busca e transformação interior, além de trabalhar a ética na conduta do seu ofício. O
trabalho de Grotowski construiu, no solo das ancestralidades do Performer, mecanismos que
aproximam mais suas histórias e verdades, resultando no que nomeou de organicidade. Luís
Otávio Burnier explica seu significado:
Que difícil? Eu aprendi foi logo (risos), que difícil? Quando o tambor grande bateu,
eu achei a punga aqui Ó, onde tinha a punga. Ó coro! Ó coro! Neste momento D.
70
Anica se levanta e começa a mostrar os movimentos de sua dança. Em pé, ela abria
os braços e marcava a punga com um impulso do corpo para a frente, e uma
marcação de pés com avanço e recuo de forma alternada, com a marcação de dois
tempos. Depois de realizar essa sequência de movimentos ela realizava giros, com o
tronco semi-curvado para frente. Logo ela voltava a fazer a sequência anterior de
movimento. Tudo isso era acompanhado do canto, em que ela cantava músicas do
tambor de crioula (Ana Benedita Ferreira Oliveira).
No diálogo com a coreira foi possível perceber sua resistência aos novos formatos
da dança adotados pelas coreira mais novas. D. Anica destaca que: “Tem coreira aí que só
dança tambor é rolando, não dá a punga no tambor. E agora, eu não, eu tenho que achar o
sotaque do tambor, pra mim dá a punga.[...] Tá doido? Eu não vou dançar à toa”.
Na fala da coreira Fernanda, “[...] há uma política, né, dentro da roda pra você
entrar”. A política está relacionada às relações interpessoais entre as brincantes. Dentre as
relações interpessoais, está a relação entre as coreiras que partilham o espaço da dança. Para
que a dança não seja conflituosa é preciso estar em harmonia umas com as outras.
D. Anica destaca que: “Me dou bem com quem sabe dançar bem! Quem não sabe
eu saio da roda do tambor! Eu não, que eu não tô doida. Ou dança ou deixa eu dançar. A
senhora sai, vai pra uma festa no baile, a senhora vai errar, com o par? Tem que dançar é
certinho!”. Em sua fala fica clara a maneira com que ela administra sua relação com as outras
coreiras e como isso interfere em sua dança.
Fernanda explica o caminho que criou dentro dos Tambores do Maranhão para
conseguir ser respeitada pelos outros brincantes:
Porque nem toda a punga é uma punga de amizade, tem punga que é pra te tirar
mesmo, pra te mostrar que tu não sabe, que tu não é. Então eu tive que, por ser mais
“meladinha” - apesar da minha mãe ser uma preta azul – eu tive que mostrá de onde
eu vim, tive que contar toda uma história, é, verbalizando nas fogueiras,
conversando com as pessoas que se tornaram amigas, no decorrer do tempo, eu tive
que, que mostrar acho que mais no discurso, que na dança propriamente. Eu tive
montar um bom discurso, pra dizer de onde eu vim, pra que as pessoas não me tratar
mal. Sabe? (Fernanda Sá Macedo).
Bom, no terreiro assim, né, onde tem terra, que a gente vai pra brincar eu acho que é
pé no chão mesmo, sentindo a terra, sabe? Aquela coisa fria no pé eu acho legal.
Agora quando você vai dançar na cidade e você vai dançar no cimento, ai você tem
que calçar o sapato, porque ás vezes não dá, a gente fica com pé cheio de calo.
(Rosangela de Jesus Santos Reis).
Eu prefiro dançar descalça.[...] Sapatilha eu danço, mas como eu nunca tive um, fui
de um grupo, que tem que dançar de sapatilha e tudo, eu tenho esses, eu penso que é
um bom privilégio de poder tá livre e dançar descalça. Enfim, prefiro dançar
descalça. Me sinto mais livre pra fazer os movimentos, do tambor. (Fernanda Sá
Macedo).
72
A próxima contribuição que trago é da coreira Rosa Reis, que nos conta do trajeto
que realizou na aprendizagem da dança:
Desde garota eu sou apaixonada pela dança, e... Quando eu, na minha adolescência
quando eu cheguei nos doze, treze anos, eu consegui uma bolsa pra estudar no ballet
de Reynaldo Faray. Aí eu estudei o ballet clássico, comecei a participar dos
espetáculos de teatro, de dança, tinha um envolvimento com o teatro, também a
academia de Reynaldo. E a partir daí eu fui me envolvendo com a questão da dança.
[...]E quando eu descobri a cultura popular, que eu comecei a me aproximar mais
das tradições, de ver o Bumba Boi, de ver o Cacuriá, de ver o Tambor de Crioula, de
ter me aproximado do Laborarte, de ter chegado no Laborarte, aí eu comecei
também a pesquisar, né, a trabalha, a vivenciar a história da coreira, da dança, como
é que era, eu comecei a fazer as oficinas aqui no Laborarte.(Rosangela de Jesus
Santos Reis).
Rosa Reis começou a dançar com, aproximadamente, 25 anos e relata que em sua
família teve um parente músico, que possivelmente a influenciou em sua proximidade com a
música e a cultura popular. Explica também como sua relação e de seu esposo, Nelson Brito,
com a cultura popular reverberou nas filhas que também trilharam o caminho da cultura
popular maranhense:
E hoje também dentro da minha família, tem as minhas filhas, né, que todas tiveram
um envolvimento, desde garota sempre acompanharam a gente. Aí tem a Luana, que
entrou mais pro lado da dança, né, dança e teatro, a Camila também, tá na música,
dança e teatro e a Imira também, que passou por esse processo, mas ela se, se
encontra mais com a questão da produção. Então as meninas tem essa coisa também,
muito forte, de terem vivenciado isso com a gente… (Rosangela de Jesus Santos
Reis).
A dança de cada uma é uma dança bem particular, né, a gente se inspira em algumas
coreiras, como eu te falei, eu me inspirei em coreiras como D. Mundica, D. Ester, D.
Teté, D. Roxa, né, a gente se inspira nas coreiras, mas a gente não consegue
fazerexatamente como elas fazem, o teu corpo ele é um corpo que ele vai dançar,
né, de acordo com a tua vida, ele é um resultado de tudo que tu faz , né, então teu
corpo ele tem isso, então ele tem a vivência , né, e essa vivência que tá junto
naquele momento da dança. Eu acho que em qualquer dança, se eu entro pra dançar
o cacuriá, ai eu vou dançar mas eu vou levar toda uma história de vida pra ali junto
com meu corpo, e a mesma coisa acontece com o tambor de crioula, né. Então a
73
gente se inspira naquelas mulheres fortes, que representam, é, que você foi buscar,
né, mais um conhecimento, um aprendizado, e ali você deixa fluir o que tu sente
naquele momento que você tá dançando, nessa relação com o tocador e tudo mais,
né. Então, acho que é isso aí, aí a diferença tá justamente aí, na história de vida de
cada uma, né… (Rosangela de Jesus Santos Reis).
Ainda nos explica como ocorre a dança da coreira na roda do Tambor, destacando
a movimentação da coreira ao ser estimulada pela sonoridade de cada instrumento:
mestra Ana Duarte43. A ressignificação que a coreira aponta na dança, em relação aos
instrumentos, possibilita alguns tipos de variações do movimento durante a dança, de acordo
com a sonoridade das células rítmicas que cada instrumento propõe.
O último assunto que nos é relevante tratar é a presença da mulher na roda de
Tambor, que tem ganhado maior autonomia. Desde os primeiros passos desta pesquisa, no
ano de 2014 até o atual momento, percebo a evidente mudança no cenário de São Luís. A
figura da mulher passou a ter maior imponência, diminuindo o abismo que a separava dos
direitos dos homens dentro da brincadeira. Fernanda contribui com esta discussão, apontando
que:
Eu vejo, eu vejo várias mulheres que são comando de tambor. Eu vejo até mais
mulheres do que homem. Então, o que a mulher faz no tambor? Ela faz tudo! Ela
não só dança não, ela faz tudo, ela faz até a roupa dos caras. Ela que arruma eles pra
dança, manda ele para na hora que ela qué, e eles fazem. Porque sem a gente, sem a
coreira também, o que que é um tambor? [...] A gente tá em todos os momentos do
tambor. (Fernanda Sá Macedo).
Eu acho que faz parte, né, da manifestação já, eu já me entendi tendo as coreiras, né,
presentes nas rodas, e hoje você vê as coreiras também começam a tocar, você já vê
né, acho que já tinha, tem algumas coreiras que se interessavam em querer tocar o
tambor, mas os homens não deixavam, né. (Rosangela de Jesus Santos Reis).
43
Bailarina que dedicou sua vida ao estudo e a pesquisa da dança do Tambor de Crioula, traçando caminhos para
sistematizar esta dança.
44
Gonçalo Bispo dos Santos é coreiro e cantador no tambor de Mestre Felipe desde 1970.
45
Cleosvaldo Diniz Ribeiro, conhecido como Baé, é coreiro e tocador de zabumba no Bumba-Meu-Boi da Fé em
Deus.
75
pois sua mãe tinha uma forte relação com a manifestação do Bumba-Meu-Boi. Laís conta
uma particularidade de sua dança: “O meu ritual é muito… É a primeira vez que eu entro para
dançar eu sempre me benzo, então eu sempre faço um benzimento, é um ritual de pedir
licença pra poder dançar”.
Danira (Danira da Costa Silva) tem 42 anos de idade e exerce a profissão de
oficial de serviços gerais. Nascida e residente em São Luís, é coreira do Tambor de Mestre
Felipe há aproximadamente oito anos. Danira apresenta como herança familiar o Tambor de
Crioula, sendo a sua mãe responsável por um grupo. Danira compartilha sua maneira de
dançar: “eu gosto de dança tipo um facão, que quando chega na roda passa aquela energia
logo pra todo mundo, aí eu já me lembro de outra história, é tanta coisa envolvida, tanto
momentos de alegria, momento de espiritualidade, é tudo misturado”.
Para que seja possível organizar os movimentos do Tambor de Crioula, é
necessária a compreensão do corpo brasileiro na dança. Graziela Rodrigues desenvolveu o
método que apresenta uma formulação do corpo brasileiro para a dança. Uma pesquisa
realizada com diversas manifestações culturais, com o intuito de compreender e criar
símbolos para esse corpo. A autora nos mostra através da citação o interesse que possui no
corpo brasileiro:
torno do qual ocorre o círculo energético. Com esse simbolismo o corpo assume a
configuração de sua força psíquica. (RODRIGUES, 1997, p. 44).
Os pés apresentam uma íntima relação como o solo. Penetram a terra como se
adquirissem raízes, sugam-na como se recolhessem a seiva; amassam o barro;
levantam a poeira; mastigam, devolvem e resolvem a terra através de seus múltiplos
apoios. (RODRIGUES, 1997, p. 46).
tambor há cinquenta e três anos e apresenta uma estrutura corporal volumosa, com o quadril
largo e pesado. Danira apresenta o esforço máximo, com os pés enraizados, dança tambor há
vinte e quatro anos e apresenta uma estrutura corporal de volume reduzido, com o quadril
largo e pesado. Já a coreira Laís, apresenta o esforço médio, com raízes soltas, dança tambor
há dezessete anos e apresenta uma estrutura corporal pouco volumosa, com quadril médio e
leve. Para mim, as estruturas são essas.
Os pés são responsáveis por captar a energia do solo, oxigenar o corpo e devolvê-
la ao solo, funcionando como a respiração, onde o ar leva vida para nossos pulmões. Graziela
nos aponta como acontece este processo:
Enquanto um dos pés recolhe energia do solo, o outro libera energia para o solo. Na ação e
recolher, os pés sugam o solo(ventosa) acentuando o contato do metatarso e calcâneo e o
consequente aumento do arco do pé. Na ação de liberar os pés se expandem no solo,
amplificando, progressivamente, sua área de contato. O movimento desenvolve-se pela
alternância dos pés nas respectivas ações. (RODRIGUES, 1997, p. 46-47).
Na dança da coreira de Mestre Felipe, o “rabo” tem uma forte relação com o solo,
o que faz com que o movimento do quadril seja pesado. Enquanto isso, a tração entre a pelve
e o cóccix é responsável por concentrar essa energia que explode para os membros − reação
presente de forma geral na dança do Tambor de Crioula. Essa explosão de energia é resultante
de um impulso. Grotowski relaciona a região da bacia como responsável pelo impulso: “Onde
79
tem início essa reação? na parte do corpo que chamamos de „a cruz‟ (o cóccix), ou seja, a
parte inferior da coluna vertebral, incluindo a inteira base do torso, até o abdômen inferior. É
ali que têm início os impulsos” (FLASZEN, 2010, p. 172).
A região da bacia tem uma grande função na dança da coreira, pois gera o impulso
e articula o quadril,o que é acentuado no movimento “dançado miúdo” da coreira de Mestre
Felipe, gerando uma energia vitalque se espalha para o corpo durante a dança. Acredito, a
partir da observação e vivência na dança, que a bacia seja responsável por expandir esta
energia para além do próprio corpo que a gerou, trocando de corpo no momento da punga.
Danira nos aponta essa manifestação: “No momento que a gente faz a punga, tá fazendo uma
troca de força né?”. Além da troca de energias entre as coreiras, percebo uma interação
energética com sua a saia. Rosa Reis pontua que “o tambor é movimento de saia, a coreira
quando tá dançando é a saia”, neste momento, a saia é “animada”e é responsável por expandir
a energia gerada pela coreira para a roda de Tambor.
Na parte superior do corpo, a coluna exerce uma função importante ao conectar os
membros e a cabeça a essa energia oxigenada que percorre o caminho do solo ao céu. A
autora explica como acontece esse diálogo entre as partes do corpo, através da coluna:
A firme base estruturada nas raízes do mastro possibilita que as partes superiores da
coluna, tronco e membros gerem uma oposição quanto à direção de sua expansão e
integrem as distintas partes do corpo, evidenciando o corpo-mastro com a bandeira.
(RODRIGUES, 1997, p. 51).
46
Tradução de signos corporais (STELZER, 2010).
82
Começarei com o trabalho mais consolidado que possuo.“Lama” surgiu como ato
performático no ano de 2014, na disciplina Expressão Corporal I, com a orientação do docente
Leônidas Portella na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). O trabalho parte do poema
“O que o barro quer” de Paulo Leminski, que questiona relação da humanidade ao negar a
ligação com a terra no mundo contemporâneo. Essa negação é explicada por Pinsky(1994,
p.42): “A vida nas grandes cidades modernas estabelece uma distância enorme entre seus
habitantes e a natureza”.
Na construção corporal utilizei o arquétipo da Orixá Nanã, que carrega a
simbologia do feminino por ser a mais velha mulher do panteão dos Orixás, concretizando a
transição entre a vida e a morte (transmutação do ser humano). O ciclo da vida que relaciona
os homens a terra é apresentado por Reginaldo Prandi no mito intitulado como “Nanã fornece
a lama para a modelagem do homem”,onde: “Nanã deu a matéria no começo, mas quer de
volta no final tudo o que é seu” (PRANDI, 2001, p. 196).
83
47
Impedimento utilizado contra autoridades governamentais, onde há crimes de responsabilidade.
84
um arquétipo que trabalhei, mas um estado de presença, desnudado diante do público e dos
outros corpos que pesquisei e que permaneceram reverberados em mim.
quebrar essa casca endurecida de lama, com movimentos fortes e intensos, onde a dança da
coreira ganhava forma em meu corpo, sendo possível perceber os movimentos “giro” e o
“marcado”, diluídos em diversos outros movimentos de meu repertório corporal.
Neste momento dançava com meu corpo-coreira, com meu corpo-ancestral e com
a história de todos esses corpos que me atravessaram no trajeto de minha vida. “Quando
danço o outro em mim dança”. (RODRIGUES, 1997, p. 31).
dependente, mostrando-se como uma grande empresária que ampliou os bens de sua família,
após o falecimento de seu esposo.
Antonia era o nome de minha avó e só a conheci através das lembranças de minha
mãe. Ao me deparar com este solo feminino, que referencia mulheres fortes, autônomas e
independentes, acessei em mim essas memórias que ganharam vida através da minha voz,
sustentadas no meu corpo ancestral:
notas mais agudas, das quais tenho mais dificuldades. Também não tive que me preocupar em
decorá-los, eles já faziam parte de mim.
O trabalho de respiração e investigação da voz, nas caixas de ressonância e em
relação ao espaço, resultou em um canto potente que carregava as minhas impressões e
registros vocais, associados aos cantos interpretados pelas cantadeiras portuguesas. Pude
perceber que as emoções geradas por essas mulheres, que cantam suas vidas em memórias de
dores e nostalgias, estavam presentes em meus registros vocais. Neste momento, cantei a voz
das cantadeiras em cena.
89
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O primeiro passo foi traçado, apontando a direção dos muitos outros que serão
percorridos na estrada de tijolos dourados. Os caminhos investigados neste trabalho ainda
estão em andamento e seguem no fluxo de maturação, portanto, não pretendo chegar a
conclusões finais, mas apontar os resultados parciais dos estudos e processos que construí até
aqui.
O contato com os saberes tradicionais de duas distintas culturas mostrou-me,
através da proximidade com seus interlocutores, o afeto, a receptividade e a generosidade dos
ensinamentos. A escolha do caminho metodológico possibilitou uma maior riqueza no
contexto das culturas, principalmente, no estudo do Tambor de Crioula, onde tive o privilégio
de realizar a pesquisa tendo o tempo em meu favor. O tempo, este senhor que não têm dono,
foi o responsável por concretizar minha inserção participativa na brincadeira, conquistei meu
espaço de fazer parte e, como recompensa, ganhei a confiança, o respeito e o cuidado dos
brincantes.
A pesquisa sobre o Tambor de Crioula do Maranhão, com o olhar de dentro, me
possibilitou uma visão esclarecida, enquanto pesquisadora, dos processos internos da
brincadeira, o “lado B” da história, com suas asperezas, dificuldades, resistências e os
embates enfrentados pelos brincantes para garantir o direito à manutenção da cultura, visão
essa que quem é de dentro consegue acessar com maior clareza. Em via negativa, o
envolvimento afetuoso dificultou as escolhas técnicas e pontuais que a pesquisa exigiu.
Durante o processo de escolha das coreiras a serem entrevistadas, senti a
necessidade de dar voz às mulheres que não tinham tanta visibilidade, principalmente, no
âmbito da pesquisa no cenário acadêmico. No entanto, eram muitas as mulheres detentoras de
saberes e que apresentavam qualidades em seus movimentos, mas não ganham visibilidade
dentro dos grupos. Após decidir quais coreiras entrevistaria, outra dificuldade surgiu, o meu
tempo e o tempo das brincantes não se encontravam. Algumas coreiras, que julguei como
importantes para esta pesquisa, não puderam contribuir com suas experiências, pois não havia
agenda disponível para o encontro, limitando minhas escolhas às coreiras com disponibilidade
de agenda.
90
A partir da vivência nas duas diferentes culturas, pude perceber que o elo que as
une é a figura da mulher, que se mostra com características autônomas ebuscam, de certa
forma, o direito de se manifestar, se expressar, ganhar voz e ganhar a vez. Como contribuição
para esta discussão, busco os estudos de Jaime Pinsky (1994) pautados na História da
Evolução das Civilizações, quantoaos primeiro indícios da divisão das funções entre o homem
e a mulher na sociedade. Abordarei de maneira rápida o assunto, no intuito de sintetizar as
principais contribuições do autor para este tema. Segundo Pinsky:
Como resultado artístico, carrego os signos deste feminino que há em mim, junto
a outros corpos femininos que me atravessaram. Corpos femininos que dançam, que cantam,
sofrem, sorriem, seduzem, geram a energia e a vida para o ator, conversam e contam suas
histórias, mesmo com o silêncio. Quando estive em cena apresentado os trabalhos que
desenvolvi, não estive só, éramos muitas mulheres em corpo e em vida.
Em ligação ao teatro, os princípios apontados no segundo capítulo deste estudo,
perpassam a memória impressa no corpo, a memória ancestral, amemória do outro em mim, a
memória transcultural, ao corpo que é voz e ecoa suas histórias. Tais princípios direcionam o
trabalho do ator-bailarino, na esfera pré-expressiva, para a busca do corpo extracotidiano de
Eugênio Barba. Ao se aproximar de suas memórias, o ator transforma o seu ofício e aprofunda
a busca interna que resulta no encontro de suas raízes, de sua verdade cênica, no solo
ancestral do Performer de Grotowski.
O estudo do corpo-mastro de Graziela Rodrigues, através da anatomia
simbólica,nos permite acessar dispositivos da técnica do corpo brasileiro. Para atribuirmos
qualidades ao corpo que dança da coreira, elegemos os movimentos da punga de ventres, a
punga com os tambores, o giro, a dança na roda, o marcado, o dançado miúdo, molejo dos
braços articulados, pescoço articulado, remelexo dos quadris e a marcação da cabeça, todos
são possibilidades para o trabalho criativo do ator. Tais qualidades da dança, relacionadas ao
estudo de Rodrigues, resultam num corpo potente, o qual nomeei como corpo-coreira.
Portanto, os elementos aos quais referencio neste estudo, se apoiam nos conceitos
de corpo-memória, voz e corpo-mastro, permitindo a utilização dos elementos das
manifestações culturais nos processos criativos, treinamentos técnicos e exercícios cênicos do
ator, bailarino, performer, artista, professor etc. A contribuição deste trabalho é apontar e
compartilhar as riquezas que encontrei nestas culturas, para que cada um, que por elas se
interessar, trace seu próprio caminho na estrada de tijolos dourados.
93
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/TambordeCrioulaParecerT%C3%A9cnic
o.pdf. Acesso em 10 de outubro de 2017.
MATRICARDI, Luciano. “O Performer” de Grotowski:A busca pelo homem interior. In:
Memória ABRACE XVI - Anais do IX Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e
Pós-Graduação em Artes Cênicas. Anais. Uberlândia (MG) UFU, 2017. Disponível em:
<https//www.even3.com.br/anais/IXCongressoABRACE/32698-O-PERFORMER-DE-
GROTOWSKI--A-BUSCA-PELO-HOMEM-INTERIOR>. Acesso em 29 de dezembro de
2017.
MELO, Daniel. O essencial sobre a cultura popular no Estado Novo. Coimbra: Angelus
Novus, 2010.
NUNES, Maria Arminda Zaluar. O cancioneiro popular em Portugal. Lisboa: Biblioteca
Breve, volume 23, Instituto de Cultura Portuguesa, 1978.
PEREIRA, Fernando. Identidades profissionais, trabalho técnico e associativismo agrário
em Trás-os-Montes e Alto Douro.Dissertação. Vila Real: UTAD, 2004. Disponível
em:<https://bibliotecadigital.ipb.pt/bitstream/10198/923/12/Tese_Fernando_Pereira.pdf>.
Acesso em 05 de setembro de 2016.
PINSKY, Jaime. As primeiras civilizações. São Paulo: Atual, 1994.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
RAMASSOTE, Rodrigo Martins (Org.). Os Tambores da Ilha. São Luís: IPHAN, 2006.
REIS, Fernando Azevedo. A Música Popular e Folclórica como estratégia de
Ensino/Aprendizagem na Disciplina de Educação Musical do Ensino Básico (Uma
abordagem). Vila Real: UTAD, 2007. Disponível
em:<https://repositorio.utad.pt/bitstream/10348/64/3/phd_fareis.pdf>. Acesso em 14 de
setembro de 2015.
RODRIGUES, Graziela Estela Fonseca. Bailarino-Pesquisador-Interprete: processo de
formação. Rio de Janeiro: Funarte, 1997.
SLOWIAK, James. Jerzy Grotowski / James Slowiak e JaitoCuesta; tradução Julia Barros.
São Paulo: É Realizações, 2013.
STELZER, Andrea. A escritura corporal do ator contemporâneo. Rio de Janeiro: Confraria
do Vento, 2010.
95
ANEXOS
96
Nome:
Idade: Local em que reside:
Local de Nascimento: Profissão:
Qual grupo faz parte:
2) Como começou a dançar? Como aprendeu a dançar? Quem ensinou, onde e em que
ano?
7) Existe alguém na família que dança ou que é envolvido com a cultura popular?
13) Algumas coreira dançam com sapatos, outras preferem dançar descalça. E você? Por
que?
14) Cada saia é diferente ou são todas iguais? Ela influencia em seu movimento?
100
Nome:
Idade: Local em que reside:
Local de Nascimento: Profissão:
Qual grupo faz parte: Escolaridade:
1) Quando começou a dançar, quem te ensinou e como passou a ser coreira no Tambor
de Felipe?
5) Carro Virou,Canembá e Rolou engenho são toadas mais aceleradas, o que muda na
movimentação durante a dança?
Coreira Laís
Foto: Doroti Martz, 2017
103
Divulgação da apresentação
Concepção: Doroti Martz
Ano: 2015
Equipe Lama, com a presença do músicos Totti Moreira e Neto Corrêa e os performes
Doroti Martz e Victor Vihen na apresentação da performance Lama
na Fonte do Ribeirão em São Luís
Foto: Jerlyson Hugo, 2016
Disponível em mídia.
112
Disponível em mídia.