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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO − UFMA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS − CCH

CURSO DE LICENCIATURA EM TEATRO

DOROTI FERREIRA MARTZ

NA PISADA DO BRINCANTE:
A DANÇA DO TAMBOR DE CRIOULA MARANHENSE E OS CANTOS DE
TRABALHO PORTUGUESES COMO POSSIBILIDADES CORPORAIS NO
PROCESSO DE CRIAÇÃO

São Luís − MA

2018
DOROTI FERREIRA MARTZ

NA PISADA DO BRINCANTE:
A DANÇA DO TAMBOR DE CRIOULA MARANHENSE E OS CANTOS DE
TRABALHO PORTUGUESES COMO POSSIBILIDADES CORPORAIS NO
PROCESSO DE CRIAÇÃO

Monografia apresentada ao Curso de


Licenciatura em Teatro da Universidade
Federal do Maranhão, como requisito final
para a obtenção do grau de Licenciatura Plena
em Teatro.

Orientadora: Prof.ª Drª. Tânia Cristina Costa


Ribeiro

São Luís − MA

2018
DOROTI FERREIRA MARTZ
DOROTI FERREIRA MARTZ

NA PISADA DO BRINCANTE:
A DANÇA DO TAMBOR DE CRIOULA MARANHENSE E OS CANTOS DE
TRABALHO PORTUGUESES COMO POSSIBILIDADES CORPORAIS NO
PROCESSO DE CRIAÇÃO

Monografia apresentada ao Curso de


Licenciatura em Teatro da Universidade
Federal do Maranhão, como requisito final
para a obtenção do grau de Licenciatura Plena
em Teatro.

Orientadora: Prof.ª Drª. Tânia Cristina Costa


Ribeiro

Aprovada em:____/____/____

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________
Prof.ª Drª. Tânia Cristina Costa Ribeiro (Orientadora)
Universidade Federal do Maranhão - UFMA

___________________________________________________
Prof.ªDrª. Gisele Soares Vasconcelos (1ª Examinadora)
Universidade Federal do Maranhão - UFMA

___________________________________________________
Prof.ª Drª. Michelle Nascimento Cabral Fonseca (2ª Examinadora)
Universidade Federal do Maranhão - UFMA

___________________________________________________
Prof.ªEspª. Tissiana dos Santos Carvalhêdo(3ª Examinadora)
EBTT - Instituto Federal do Maranhão – IFMA (Codó)
Dedico este trabalho ao meu círculo de amor
feminino ancestral, às mulheres fortes e guerreiras
das quais eu muito admiro. À minha mãe Dalva e
minhas irmãs Deise, Doris e Debora. A letra “D” é
a simbologia que nos une.
AGRADECIMENTOS

Este é o importante momento de agradecer a tantas pessoas generosas que


contribuíram não apenas com esta pesquisa, que se concretiza com a ajuda de muitas mãos,
mas contribuem com a minha jornada. Foram muitos envolvidos e, para isso, se faz necessário
uma lista um tanto grande para não cometer injustiças:
Agradeço aos seres do plano invisível, às Deusas, Caboclas, Pretas Velhas, às
minhas ancestrais desencarnadas que cuidam do meu caminhar. Agradeço ao universo
masculino dos Deuses, Caboclos, Pretos Velhos e aos Encantados que pintam o mistério na
grande ilha da magia, em São Luís, que me recebeu e acolheu.
À minha família por incentivar a difícil decisão de seguir para tão longe e
estimular para que eu não desistisse no caminho.
Ao meu pai, por estar próximo e empolgado com minhas aventuranças
maranhenses-portuguesas.
A generosidade e os valorosos ensinamentos da Prof.ª Drª. Tânia Cristina Costa
Ribeiro, que orientou o meu percurso de pesquisa, mostrou-me como retirar os véus dos
objetos e sujeitos para não me perder no meio do caminho, mostrou-me a sabedoria de
guardar e retirar os materiais do cofo, para dar forma à gota que é a escrita monográfica.
À Associação de Passos de Silgueiros, por me receber com generosidade e
compartilhar do ouro que Sr. Lopes Pires cultiva com tanto amor. Agradeço ainda à Maria
Odete Nunes Madeira, pelos precisos apontamentos, às cantadeiras Maria Paixão de Jesus
Santos, Maria Alice Costa Ferreira e Cidália Rodrigues Almeida, por partilharem suas
histórias.
À Deolinda Flamino, por partilhar de seu entusiasmo pela vida e pelo trabalho no
campo. Ao seu neto Rui Teixeira, por ter a generosidade de apresentá-la para fazer parte deste
estudo.
Ao Tiago Daniel Lopes Botelho, por oferecer todo o apoio, suporte e afeto para a
pesquisa acontecer em terras portuguesas, de certo que sua companhia durante a pesquisa de
campo deixou tudo mais leve e colorido.
À Prof.ª Rita Gisela Martins de Azevedo, que oportunizou que o trabalho
acontecesse, com sua incrível orientação e direção. Que as vinhas continuem a iluminar sua
sala, casa e vida, pois foi um pedacinho de mim que ficou para ti em Portugal.
Ao grupo de Tambor de Crioula de Mestre Felipe, que me recebeu com grande
afeto e se transformou na minha família maranhense. Agradeço ao compartilhamento de
ensinamentos do Tambor de Crioula, em especial, Sérgio Costa, que muito me ensinou sobre
o Tambor e a capoeira da vida.
Às coreiras Anica, Fernanda, Rosa Reis, Danira, Laís, por partilhar ensinamentos,
histórias, vivências e o tempo para realizar a entrevista.
À produtora Laboratório Cisco, em nome de Hidalgo Romero, que cedeu a
entrevista realizada com Mestre Tomás, Mestra Roxa e D. Estela, que muito ajudaram neste
estudo.
À bailarina Ana Duarte, por acreditar na minha dança e compartilhar de seus
estudos e generosidades na dança.
À Paula Nicolau, historiadora, dançarina e grande amiga que acompanhou toda a
minha trajetória em terras paulistanas, maranhenses e portuguesas. Ainda iremos trilhar
estradas juntas.
Ao amigo e parceiro de trabalho Victor Vihen, pelos infinitos aprendizados e pela
generosa mão estendida para ajudar.
Aos que estiveram direta ou indiretamente ligados a essa pesquisa, sou grata pela
contribuição.
RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo a investigação dos elementos que compõe a dança da manifestação
popular do Tambor de Crioula e os tipos de cantos presentes nos Cantos de Trabalho portugueses, com
a intenção de destacar aspectos que influenciaram na construção corporal e cênica do trabalho da
pesquisadora enquanto artista-criadora. No intuito de aproximar o universo da cultura popular ao
campo teatral foram utilizados os estudos desenvolvidos por Eugênio Barba, acerca da técnica
extracotidiana no trabalho do ator, inserida nos estudos de Jerzy Grotowski a partir dos conceitos de
corpo-memória e voz, que possibilitam ao ator encontrar em seu corpo mecanismos que ativam a
presença e a energia para o processo criativo. Dialogamos com as contribuições de Graziela Rodrigues
com o método da anatomia simbólica para indicar as qualidades do corpo da dança do Tambor de
Crioula para a cena. Assim, buscamos através do diálogo com os autores, fundamentar a pertinência
do estudo em aproximar a cultura popular ao fazer teatral. Nesta pesquisa, utilizamos enquanto
caminho metodológico a etnocenologia, que propõe o estudo das práticas espetaculares de forma a dar
visibilidade aos sujeitos da pesquisa. A pesquisa foi realizada no Maranhão, no estudo do Tambor de
Crioula, e em Portugal, no estudo dos cantos de trabalho contou com entrevistas realizadas por
participantes das manifestações e pesquisadores. O estudo não busca ser conclusivo, no entanto
espera-se apontar possibilidades de interação entre a cultura popular com o trabalho do ator.

Palavras-chave: Tambor de Crioula Maranhense; Cantos de Trabalho Portugueses; Memória; Dança;


Trabalho do Ator.
ABSTRACT

This works aims to investigate the component elements of the Tambor de Crioula, a popular
manifestation dance, and its types of chants presents on the portuguese Working Chants, with the
intention of highlighting the aspects that have influenced on the physical and scenic construction of
the researcher in question as an artist-creato. In order to approximate the universe of popular culture to
the theater field, were utilized on this the studies developed by EugênioBarba, upon extra-everyday
technique in the actor's work, inserted in the studies of Jerzy Grotowski on the concepts of body-
memory and body-voice, that allow the actor to find mechanisms that activate the presence and energy
in his body for the creative process. We dialogue with the contributions of Graziela Rodrigues, with
the method of symbolic anatomy to indicate the qualities of the body on the dance of Tambor de
Crioula for the scene. Thus, we seek through the dialogue with the authors, to base the pertinence of
the study in approaching popular culture to the theatrical act. In this research, we used ethnocenology
as a methodological path, which proposes the study of the spectacular practices in order to give
visibility to the subjects of the research. The research was carried out in Maranhão, in the study of
Tambor de Crioula, and in Portugal, in the study of working songs; it includes interviews conducted
by participants of the popular manifestations and researchers. The study does not seek to be
conclusive, however it is hoped to point out possibilities of interaction between popular culture and the
actor's work.

Keywords:Tambor de Crioula from Maranhão; Portuguese Working Chants; Memory; Dance; Actor's
work.
SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS............................................................................................................ 11

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 12

CAPÍTULO 1 ‒ CULTURA E TRADIÇÃO: DO BRASIL À PORTUGAL ................... 20

1.1. Histórico e origem do Tambor de Crioula ........................................................................ 21

1.1.1. A punga dos homens ..................................................................................................... 22

1.1.2. Aspectos gerais .............................................................................................................. 23

1.1.3. Têm coreira na roda ....................................................................................................... 26

1.1.4. Sonoridades − sem tambor não tem festa ...................................................................... 28

1.1.5. Eu vim cantá a minha história ....................................................................................... 30

1.1.6. Santinho pretinho: devoção a São Benedito .................................................................. 32

1.1.7. Tambor que não tem cachaça eu vou falando mal......................................................... 34

1.1.8. O sagrado e o profano: quando não há distinção ........................................................... 36

1.1.9. Novas configurações: o Tambor e o Estado .................................................................. 38

1.2. O tambor de Mestre Felipe ............................................................................................... 42

1.3. Cantos de trabalho em Viseu/ Portugal: um canto de lembranças ................................... 50

1.3.1. Uma nova roupagem: o Estado e os cantos de trabalho ................................................ 57

CAPÍTULO 2 ‒ TEATRO DE MEMÓRIAS: TRAJETOS E PROCESSOS EM AÇÃO


................................................................................................................................................. 61

2.1. Primeiros apontamentos no corpo extracotidiano ............................................................ 62

2.2. Corpo e memória na busca das raízes ancestrais .............................................................. 63

2.3. A dança através das coreiras ............................................................................................. 69

2.3.1. A dança da Coreira e a Anatomia Simbólica ................................................................. 75


2.4. Corpo e memória ecoados na cena ................................................................................... 81

2.4.1. A performance Lama ..................................................................................................... 82

2.4.2. O choro da videira: um diálogo entre uvas e vidas........................................................ 85

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 89

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 93

ANEXOS ................................................................................................................................ 95
11

LISTA DE FIGURAS

Imagem 01 −D. Estela dançando no espaço Laborarte .......................................................... 28

Imagem 02 –Crivador, Meião e Tambor Grande afinando na fogueira ................................. 29

Imagem 03 –Cortejo na festa de São Benedito em Alcântara ................................................ 33

Imagem 04 –Coreira Nivea bebendo conhaque para entrar na roda de Tambor .................... 35

Imagem 05 –Mulher na colheita das vindimas ....................................................................... 51

Imagem 06 –Homens na pisa de uvas .................................................................................... 54

Imagem 07 –Cantadeiras de Passos de Silgueiros .................................................................. 56

Imagem 08 −Performance Lama na Fonte do Ribeirão .......................................................... 83

Imagem 09 −Performance Lama na 10ª Bienal da Une .......................................................... 84


12

INTRODUÇÃO

O presente estudo, “NA PISADA DO BRINCANTE: A dança do tambor de


crioula maranhense e os cantos de trabalho portugueses como possibilidades corporais no
processo de criação”, é um primeiro resultado de minha trajetória na busca de uma formação
dentro das artes cênicas, onde capturo no espetáculo cotidiano de pessoas simples e
extremamente generosas, experiências da cultura popular para contribuir em minha formação
enquanto artista, atriz, performer e futura artista-docente. Trago de meu histórico as memórias
que me direcionaram a percorrer o caminho das artes.
Nasci na região norte de São Paulo, em um bairro marginalizado e conhecido por
sua imensa violência, meu paraíso torto tinha o nome de VI. Brasilândia. Foi em uma dança
que meus pais se conheceram e deram início aos vinte e sete anos de desafios que viriam pela
frente. Destes desafios é que me encontro, a quarta filha e mais nova de uma geração de
mulheres, todas negras e marginalizadas.
Há oito anos, no Instituto Teatro Escola Brincante (SP) do bailarino e pesquisador
de cultura popular Antônio Nóbrega, tive um encontro tão marcante que serviu de pontapé
inicial ao caminho que eu iria percorrer, em proximidade ao universo da dança popular. Tive
o importante contato com a manifestação pernambucana do Cavalo Marinho, inserida no
universo do teatro físico, com a pesquisadora Juliana Pardo e o pesquisador Alicio Amaral da
Cia. Mundu Rodá. A partir deste encontro, que rendeu um ano e meio de estudos e diálogos
com as manifestações brasileiras no instituto, é que cheguei à conclusão que fazer cursos não
bastava, assistir trabalhos também não bastava, era preciso ir ao encontro dessas
manifestações, deslocar-me do confortável lugar de receptora e ter coragem para buscar o que
realmente me atravessou.
Após alguns anos amadurecendo essa ideia, decidi me preparar para ingressar no
ensino superior. Ingressei no ano de 2013 na Universidade Federal do Maranhão, no curso de
Licenciatura em Teatro - UFMA, sendo a primeira e até então única filha a cursar o ensino
superior. Entendendo a importância de buscar um pertencimento pessoal no teatro e na sua
brasilidade que potencializa meu trabalho, decidi partir do sudeste e encontrar possibilidades
de formação, em um encontro ancestral com a cultura nordestina. Assim, meu estudo
acadêmico é pautado nas observações das manifestações culturais que acontecem para além
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dos portões da universidade, que considero um lugar de possibilidades criativas para o


processo de formação do ator.
No intuito de me aproximar da cultura maranhense, mergulhei em algumas
manifestações que tive oportunidade naquele momento: Bumba Boi com os sotaques de
Matraca, Baixada, Zabumba e Costa de Mão; Cacuriá; Tambor de Crioula; Tambor de
Taboca; Capoeira; Festejos do Divino Espírito Santo; acompanhei rituais religiosos nos
terreiros Fanti Ashanti do Babalorixá Euclides (atualmente, o terreiro é conduzido pela
Yalorixá Kabeca, após a passagem do Babaloixá Euclides no ano de 2015), Terreiro Ylê Ashe
Obá Izoo do Babalorixá Wender e no Terreiro Ilê Axé Ogum Sogbô do Babalorixá Airton.
Buscava, ainda que de maneira inconsciente, um sentido de compreender minha relação com
as raízes culturais do Maranhão, já que em São Paulo tive acesso a releituras da cultura
maranhense.
Dentre as muitas manifestações que presenciei, uma fisgou-me profundamente
pelo ritmo, sensualidade, energia, brincadeira e atenção, em um rito sagrado e profano entre
dançadeiras e tocadores do Tambor de Crioula. O que me chamou a atenção foi a
desenvoltura complexa do movimento da coreira que gera energia e presença, jogo e atenção,
mesmo que em uma atmosfera descontraída da brincadeira. Entendi que, assim como a dança
do Cavalo Marinho é utilizada no trabalho corporal e técnico do ator, o Tambor de Crioula
também pode ser trabalhado na perspectiva da cena, a partir da percepção deste corpo dilatado
que Eugenio Barba define como um corpo em vida que dilata a presença cênica do ator e a
percepção do espectador, construindo a partir dele um corpo interessante para a cena.
A experiência que impulsionou pesquisar a dança do Tambor de Crioula, como
primeiro objeto empírico deste estudo, surgiu do interesse de aproximar o universo da
brincadeira do Tambor ao processo de formação do ator, onde iniciei os primeiros passos da
pesquisa de campo observando os aspectos da dança. Na busca por me aproximar da
manifestação, passei a ser integrante do grupo de Tambor de Crioula de Mestre Amaral no
ano de 2014, onde comecei a construir meus primeiros passos na dança do Tambor. No ano de
2015, em continuidade a investigação da dança, iniciei a minha trajetória no grupo de Tambor
de Crioula Unidos de São Benedito de Mestre Felipe, um dos importantes grupos tradicionais
de São Luís.
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Entendendo a cultura popular enquanto lugar de legitimidade e resistência de um


povo é que passo a priorizá-la em minhas práticas acadêmicas, de modo a estabelecer um elo
entre os saberes acadêmicos aos saberes popular.
Através da disciplina Prática de Extensão I, ministrada pela docente Tissiana
Carvalhedono semestre de 2015.1 na UFMA, desenvolvi o projeto de extensão intitulado “Na
pisada do brincante: a dança como elemento técnico do ator”. Na vertente do Cavalo Marinho
pernambucano e da dança dos orixás, esteprojeto visava experienciar as danças
popularescomo elementos de potência cênica no trabalho de treinamento técnico do ator. O
projeto foi ministrado no Centro de Artes Cênicas do Maranhão (CACEM) para a turma do
primeiro período do curso no ano 2015 e teve duração de aproximadamente um mês.
Na intenção de levantar referências bibliográficas para este estudo, pesquisei na
Biblioteca Setorial de Artes da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) o que havia sido
escrito sobre o tema Tambor de Crioula por alunos dos cursos de Teatro e Educação Artística
e, entendendo a partir desses escritos, os desdobramentos do tema nos cursos de Artes da
universidade. Durante a busca, encontrei um material generoso de escrita, porém pude
perceber que a maioria das monografias estava direcionada para a utilização do Tambor de
Crioula enquanto metodologia no ensino de teatro nas escolas, segundo a lei 10.639 que prevê
o ensino de conteúdos afrodescendentes e afro-brasileiros na escola. Caminho este, que por
um lado, mostra uma visão pedagógica, porém um tanto distante do que pretendia abordar.
Três escritas monográficas neste tema me entusiasmaram para a pesquisa, a
primeira foi a monografia intitulada “A Coreira do Tambor de Criola do Maranhão:
performance e jogo” de Cássia Pires (2009). Ela direciona seu olhar ao rito performático do
Tambor de Crioula, contextualizando o seu histórico e priorizando os ritos sagrados presentes
na manifestação, associa a desenvoltura do corpo ao corpo do performer e aproxima suas
qualidades aos aspectos profanos da brincadeira, na perspectiva do jogo teatral. O segundo
trabalho monográfico, intitulado “Tambor de Crioula Catarina Mina e as Novas Gerações” de
Zayda Costa (2009), parte de uma busca pessoal da identidade negra, que lhe foi negada desde
a infância, em um encontro de identidade com o Tambor de Crioula. Além damanutenção
dessa brincadeira na comunidade, através de oficinas formativas em escolas, de acordo com a
lei 10.639. O terceiro trabalho, intitulado como “O jogo Cênico em Espaço Circular: diálogo
teatral entre o jogo e a roda do tambor de Crioula na promessa ao São Benedito em Alcântara”
de Rosenilde Rodrigues Ferreira (2008), estabelece um diálogo entre o jogo teatral e o jogo
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ritualístico do Tambor de Crioula, presente no Tambor de Promessa a São Benedito na região


de Alcântara - MA.
Para abordar a experiência que impulsionou o estudo dos cantos de trabalho,
como segundo objeto empírico da pesquisa, é importante falar da oportunidade que tive em
realizar mobilidade acadêmica internacional entre a Universidade Federal do Maranhão
(UFMA) para a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), localizada em Vila
Real no norte de Portugal, onde ingressei no curso de Teatro e Artes Performativas.
Durante minha estada no país, em um processo de reconhecimento e adaptação,
busquei conhecer o povo português através do folclore e das manifestações tradicionais
portuguesas. A cidade de Vila Real faz parte da região de Trás-os-Montes, centrada no
trabalho rural de produção de vinhos. Neste contexto, a cultura e as manifestações populares
nascem desta prática, da qual os moradores usufruem e também produzem o próprio vinho
atravésde uma produção caseira, caracterizando este ato como algo corriqueiro e presente no
cotidiano destes indivíduos ou impressos em suas memórias como costumes de seus
antepassados.
O interesse em compreender os costumes transmontanos1 me impulsionou a
buscar manifestações culturais atreladas à feitura do vinho na região norte do país. Nesta
busca, encontrei a prática dos cantos de trabalho inseridos no processo das vindimas − um
processo de feitura dos vinhos de maneira manual, em que todas as etapas são realizadas por
trabalhadores e trabalhadoras rurais. Os cantos de trabalho, presentes nas vindimas, eram
utilizados para aliviar a dureza do trabalho do campo.
Na disciplina de Estágio Artístico e Projeto, realizei o projeto de extensão
intitulado “O Choro da vindima: um diálogo entre uvas e vidas” com o objetivo de
proporcionar uma pesquisa sobre os cantos de trabalhos na prática das vindimas por meio de
entrevistas realizadas com os detentores dos saberes da tradição portuguesa, os mesmos que
estiveram envolvidos com o trabalho rural na produção dos vinhos e em contato com os
cantos de trabalho. Além disso, a pesquisa propunha apresentar como resultado um
documentário artístico, acompanhado de um experimento cênico que retratasse o universo ao
qual os cantos de trabalho estavam presentes. A pesquisa contou com o auxílio da Associação
de Passos de Silgueiros, em nome do fundador, inspetor e folcloristaAntónio Lopes Pires e da
assessora Maria Odete Nunes Madeira, na região de Silgueiros ao norte de Portugal.
1
Habitantes da região de Trás-os-Montes, localizada no norte de Portugal.
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Tais experiências me atravessaram profundamente enquanto artista. Pude então


observar a qualidade dos impulsos internos − que, para Grotowiski,são constituídos de uma
memória corporal que tornam verdadeira as ações externas, seja no corpo ou na voz −
presentesnos corpos dos brincantes envolvidos na dança do Tambor de Crioula maranhense e
na voz que expressa o canto para aliviar a dureza do labor, os cantos de trabalho das tradições
portuguesas. É neste elo que duas culturas distintas se fundem em meu corpo.
A partir da percepção da potência destas manifestações para o teatro,surgiram
algumas questões: Como utilizar a qualidade física dos brincantes para a cena? Para que
serviria o canto tradicional português no trabalho do ator? Qual teórico do teatro desenvolve
os estudos do corpo e da voz trabalho do ator?Tais questionamentos me impulsionam a
investigar em meu trabalho, enquanto atriz criadora, quais as influências que estas
experiências geram nos meus processos criativos e em que elas resultam. Busquei autores do
teatro e da dança que desenvolvem estudos que compreendem o corpo em relação à cultura e
que priorizam, no trabalho do artista, o processo criativo e o trajeto que este percorreu que
resultou na cena.
No campo teatral trago a contribuição de Eugênio Barba, com os estudos
desenvolvidos acerca do trabalho do ator, que trabalha na perspectiva do corpo extracotidiano,
um corpo vivo que é sustentado pela construção de energia através de esforços internos,
gerando potência e presença à cena. Corpo este que apresenta uma proximidade ao corpo que
dança e se manifesta na cultura popular.
Outra vertente de trabalho que caminho é a partir da concepção da memória
enquanto veículo de criação e construção do corpo do ator para a cena, estudo este realizado
na perspectiva de Jerzy Grotowski. Este aponta o conceito de corpo-memória, onde o ator
busca, em seu solo ancestral, potências para seu trabalho que gerem caminhos internos e
pessoais de construção de energia, presença e verdade interior, de forma a possibilitar um ator
vivo em cena.
Para melhor compreender a maneira como o corpo brasileiro se organiza, trago a
contribuição da bailarina Graziela Rodrigues sobre as diversas manifestações brasileiras.
Através desse estudo, é possível perceber e apontar as qualidades potenciais destes corpos
para a cena, assinalando o caminho de construção e projeção de energia neste corpo, através
do método intitulado de anatomia simbólica.
17

Os estudos mencionados contribuem para esta pesquisa por apontarem


mecanismos que utilizam técnicas específicasna construção de um corpo crível para a cena e
que se aproxima do estado do brincante em festa, durante as manifestações.
Pesquisar manifestações populares que são transmitidas de geração a geração
através da oralidade e imitação e que apresentam a resistência de pessoas socialmente
oprimidas, me fez refletir sobre qual poderia ser o melhor caminho para desenvolver tal
estudo, uma vez que essas pessoas ganham um novo corpo quando realizam o seu ofício
durante a brincadeira, mostrando-se em forma de espetáculo. Como desafio, resolvi trilhar os
primeiros passos no universo teórico-metodológico da etnocenologia, metodologia esta que
possibilita perceber os significados que perpassam as práticas espetaculares, de forma que seja
possível dar ênfase à singularidade dos movimentosdas duas manifestações pesquisadas,
gestos e vozes aos seus integrantes, mostrando-se de forma espetacular. Parafraseando Pradier
(apud GREINER; BIÃO, 1999, p.28), “Devemos estar atentos para as expressões culturais,
possibilitar condições de reconhecimentos e visibilidade dessas manifestações e seus
sujeitos”.
Neste sentido, a etnocenologia considera um ou demais sujeitos, assim como o
pesquisador, pelo fato de oportunizar a interdisciplinaridade e valorizar os discursos e
experiências, a partir da memória e vivência cotidiana destes diversos sujeitos. Presente em
grande parte deste trabalho, a memória possibilita a transmissão de um conhecimento através
da oralidade, projetando os sujeitos entrevistados através de suas falas.
A partir da memória, fiz uso de conversas e entrevistas estruturadas. Dei ênfase a
pesquisa de campo através de registros fotográficos e filmagens, considerando também a
minha experiência enquanto pesquisadora participante no Tambor de Crioula. Além de outros
procedimentos para coleta e análise de dados, utilizei como recursos a máquina fotográfica,
para registros de fotos e vídeos, um gravador e um diário de bordo.
É importante ressaltar que optei por transcrever fielmente a fala dos entrevistados,
de acordo com suas pronúncias e uso de palavras, sem intervir ou corrigi-los. Na utilização da
fala dos brincantes no corpo do texto, priorizo apresentar o tempo de envolvimento na
brincadeira ao invés de revelar a idade dos brincantes. Escolhi tratá-lospelos apelidos ou
nomes pelos quais são conhecidos no meio que estão inseridos, revelando seus nomes após a
citação ou entre parênteses quando a citação está no corpo do texto.
18

No estudo dos cantos de trabalho apliquei entrevistas abertas, trabalhei com a


pesquisa etnográfica e também utilizei como recursosa máquina fotográfica, para registros de
fotos e vídeos, e o gravador. Os termos de uso de imagem, bem como o roteiro de entrevista
para este estudo, foram extraviados em viagem.
Para atender os objetivos traçados para esta pesquisa, a organização do estudo está
disposta da seguinte forma:
No primeiro capítulo, me detenho a apresentar as duas manifestações culturais e o
conceito de tradição oral, que tecerá este trabalho, na visão do pesquisador Hampaté-Bâ. No
estudo sobre o Tambor de Crioula evidencio os diversos fatores que pertencem à manifestação
através do diálogo com os pesquisadores Sérgio Ferretti, pioneiro nos estudos sobre o Tambor
de Crioula, e Rodrigo Ramassote, que traz algumas contribuições recentes através de uma
metodologia de pesquisa que se aproxima mais ao universo dos sujeitos pesquisados. E, na
mesma importância, trago a contribuição dos brincantes detentores do saber, referenciados por
meio de citações com suas falas.
Trago a contribuição do Tambor de Crioula de Mestre Felipe ao abordar seu
histórico e aspectos relacionados à influência do mestre para a configuração atual do grupo.
Em contribuição a este estudo, se faz necessário tratar da história do grupo por se tornar o
ponto central no estudo do movimento das dançadeiras.
Na pesquisa dos cantos de trabalho, apresento a manifestação inserida na prática
de produção dos vinhos, através dos aspectos históricos na visão do etnógrafo e pesquisador
António Lopes Pires. Para a análise dos cantos de trabalhos, conto com a contribuição da
autora Maria Nunes que apresenta os temas presentes nos cantos de trabalho portugueses. Na
perspectiva política trago a contribuição do autor Daniel sobre como os cantos de trabalho são
influenciados após as transformações políticas no país.
No segundo capítulo, me detenho na aproximação das manifestações culturais às
práticas da cena por meio do estudo de Eugênio Barba. Este prioriza o trabalho do ator,
considerando suas características culturais e sua contribuição no conceito de técnicas
extracotidianas. Além disso, estabeleço um diálogo com os estudos de Grotowski sobre os
conceitos de corpo-memória e corpovoz, onde realizo uma associação destes conceitos com os
da “busca de si mesmo” e ao de Performer que o diretor desenvolveu.
No estudo do corpo brasileiro na dança, trago a contribuição da bailarina
pesquisadora Graziela Rodrigues acerca do método da anatomia simbólica. Deste modo, é
19

possível organizar o movimento da dançadeira do Tambor de Crioula, destacando os


elementos presentes na dança do tambor. Os movimentos que encontramos através deste
estudo foram: a punga de ventres, a punga com os tambores, o giro, a dança na roda, o
marcado, o dançado miúdo, molejo dos braços articulados, pescoço articulado, remelexo dos
quadris e a marcação da cabeça.
Na aproximação das manifestações culturais ao meu processo criativo, utilizei
enquanto elementos de trabalho o “giro”, o movimento “marcado”, a voz e a história. Esses
elementos estiveram presentes nos processos de criação dos trabalhos intitulados “Lama” e
“O choro da videira: um diálogo entre uvas e vidas”.
20

CULTURA E TRADIÇÃO: DO BRASIL À PORTUGAL

Neste capítulo apresento o contexto histórico das duas manifestações das quais me
debrucei. Inicio no terreno brasileiro com o estudo do Tambor de Crioula, em que
compartilho minha inserção na pesquisa de campo e destrincho parte deste universo através da
visão dos pesquisadores Rodrigo Ramassote e Sérgio Ferretti. Na mesma importância, dialogo
com as pessoas responsáveis por esta manifestação acontecer, as quais chamarei de
brincantes. No terreno português, através das tradições das “vindimas”, introduzo os cantos de
trabalho, no qual faço uma breve análise dos temas recorrentes e trago a contribuição da
pesquisadora Maria Nunes e, do folclorista e etnógrafo, Lopes Pires. Além de destacar as
cantadeiras que estiveram envolvidas com as atividades agrícolas em que esses cantos se
fizeram presentes. Apresento ainda as transformações políticas que influenciaram a
manifestação através da contribuição do autor Daniel Nunes.
No conceito de Tradição, trago a contribuição de Hampaté-Bâe seus estudos
pautados em diferentes culturas do continente africano, acrescentando em nossos estudos a
importância da Tradição Oral:

A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os


aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não descortinam o segredo e
desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem
definidas. Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e material
nãodissociados. Ao passar do esotérico para o exotérico, a tradição oral consegue
colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes de acordo com o entendimento
humano, revelar-se de acordo com as aptidões humanas. Ela é ao mesmo tempo
religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e
recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade
primordial. (HAMPATÉ-BÂ, 2010, p.169).

Para Hampaté-Bâ, o conceito oral está relacionado com a preservação de uma


“sabedoria dos ancestrais” e sua tradição está na transmissão verbal “de uma geração para
outra”, o que possibilita evidenciar o ensino e a preservação das duas culturas das quais esses
aprendizados foram compartilhados durante as pesquisas de campo. Tal conceito tece não
21

apenas a manifestação do Tambor de Crioula,em que estive envolvida enquanto participante,


como também os Cantos de Trabalho portugueses do qual realizei uma pesquisa etnográfica,
recorrendoà memória de mulheres que praticavam trabalhos rurais e exerciam o canto durante
todo o processo.

1.1. HISTÓRICO E ORIGEM DO TAMBOR DE CRIOULA

O Tambor de Crioula é uma manifestação popular emblemática da região do


Maranhão, intitulada como patrimônio imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN). Foi reconhecida no ano de 2007 como patrimônio imaterial por
apresentar uma singular forma de expressão da cultura popular maranhense, salvaguardando a
tradição cultural local, ou seja, promove ações que visem proporcionar a preservação e
visibilidade à manifestação2.
No processo de construção do inventário do Tambor de Crioula enquanto
patrimônio imaterial, a manifestação foi registrada no Livro das Formas de Expressão do
IPHAN como sendo parte da família do Samba (RAMASSOTE, 2006, p. 22). Segundo o
parecer técnico do registro do Tambor de Crioula do Maranhão, dentre as manifestações que
compartilham da família do samba estão os cocos e algumas modalidades do samba de roda,
que convergem da musicalidade dos tambores e dos movimentos coreográficos juntamente
com a umbigada. O pesquisador e antropólogo Sérgio Ferretti (2002, p. 45) explica a
aproximação dessas distintas culturas quando afirma que “as danças negras consideradas
como profanas, e portadoras de traços distinguidores de um folclore africano [...] eram aqui
conhecidas como batuque, ou samba – por influência da palavra semba – umbigada em dialeto
africano”.
O tambor de crioula, assim como todo o legado da cultura afro-brasileira, surge
do tráfego de povos africanos escravizados que necessitavam manter conexões com suas
origens. Para isso, utilizavam seus costumes e cultura como forma de subsistência,
sendofortemente reprimidas pelos escravocratas. Mestre Tomaz, cantador e integrante

2
Parecer Técnico, Processo nº. 01450.005742/2007-71.
22

cabeceira3 do Tambor de Mestre Felipe, entende que a origem do tambor surgiu de tal
maneira:

A história do tambor vem da época dos escravos. É uma festa que ninguém pode
dizer que foi inventada por outro lado. Só as coisas do negro mesmo, dos preto, do
tempo da escravatura, essas coisas. A raiz do tambor ela vem daí. Hoje nós já temos
essa boa mistura em todo país, mas de primeiro a gente não era visto, porque era
coisa de preto, era coisa de negro mesmo da escravatura.(Tomás Pereira) 4

Não há ainda estudos que comprovem a origem do Tambor de Crioula, mas


algumas pesquisas destacam indícios dessa origem, como a do pesquisador e antropólogo
Sérgio Ferretti. Ferreti se deteve a pesquisar de forma aprofundada a manifestação e aponta
através de entrevistas e pesquisas bibliográficas no livro “Tambor de Crioula: ritual e
espetáculo” que a dança era praticada “essencialmente pelos negros escravos e seus
descendentes” e que era utilizada, inicialmente, como exercício de lutas, com a presença
apenas de homens.

1.1.1.A PUNGA DOS HOMENS

Sobre a prática da luta, Ferretti exemplifica, como via de comparação, a citação de


Edson Carneiro no livro “Negros Bantus” sobre uma luta africana com o nome “batuque”,
encontrada no interior da Bahia (CARNEIRO apud FERRETI, 2002). Esta apresenta como
elemento de sua composição o toque do berimbau. Quanto aos movimentos corporais, o autor
descreve a luta que consistia em derrubar o adversário com um golpe contra as pernas do
mesmo, com um forte solavanco nas coxas no intuito de derrubá-lo. Caso este caísse,a luta
estaria encerrada. O autor Edson Carneiro conclui que o Batuque lhe parece uma variação da
Capoeira. O que nos diz interesse nessa comparação, proposta por Ferretti, é que tal descrição
é muito próxima a punga do homem dentro da dança do Tambor de Crioula, o que demonstra
indícios desta dança estar atrelada à capoeira, à defesa e manutenção da luta dos negros
escravizados, reforçando assim a hipótese da origem da manifestação.

3
Nomenclatura utilizada no Tambor de Crioula União de São Benedito de Mestre Felipe, após seu falecimento,
para se referir aos quatro responsáveis pelo desempenho da brincadeira, Mestra Roxa, Mestre Thomaz, Mestre
Militão e D. Estela.
4
Brinca Tambor há 47 anos e é mestre cantador do Tambor de Crioula União de São Benedito. Entrevista
realizada pelo Laboratório Cisco na data de 29 de junho de 2017, concedida para este trabalho.
23

Antigamente, a dança do Tambor de Crioula era uma luta de caráter violento e


com predominância de homens. Com o tempo, a configuração desta foi se transformando e
dando espaço à presença da mulher, apresentando como movimentação marcante e
caracterizantedo Tambor de Crioula a “punga de barriga”, da qual falaremos mais adiante.
Para explicar este possível acontecimento, utilizaremos a entrevista realizada por Ferretti com
o diretor de teatro Américo Azevedo onde:

Deduz Américo que com a supressão da escravidão, não havendo mais a necessidade
por parte dos negros de se exercitarem para a luta contra o opressor branco, “ficou o
costume, e aos poucos foi se transformando em dança”. Para ele, assim, a introdução
da mulher no Tambor de Crioula se deu em época posterior à abolição, isto é,
quando sua conotação básica de luta deu lugar a uma coreografia tipicamente de
festa. Américo justifica esta sua afirmação através das informações eu lhe foram
prestadas por “um preto velho já bem idoso, que era de São Bento, amigo do meu
pai, e que foi acabar a vida em Coroatá. Se chamava José Leite. Ele viu ainda
quando era criança o exercício de luta, o jogo das pernas, mas ele não me dava datas.
Dizia apenas que quando tinha se entendido já via o jogo de pernas; e ele era um dos
que achavam incrível uma mulher dançar Tambor de Crioula [...]. Então ele aceitou
sem resistência o fato das mulheres dançarem”. (FERRETTI, 2002, p.51).

A punga do homem pode ser encontrada no interior do Maranhão e é realizada


como forma de divertimento, onde os participantes desafiam uns aos outros e ainda apresenta
o caráter violento de derrubar o adversário com a pernada. Existem outras formas de
intervenção dos homens na roda do Tambor de Crioula, em que os mesmos dançam com as
mulheres dentro da roda ou fora, entre eles, no entanto essas expressões não são muito
comuns em São Luís. Atualmente, a presença da mulher na dança é predominante,
acarretando uma atmosfera de brincadeira e descontração, atribuindo esta nova característica à
manifestação.

1.1.2. ASPECTOS GERAIS

O Tambor de Crioula é uma manifestação que conta com o toque de tambores, a


dança em roda e os cantos de toadas, além de ser constituído por homens e mulheres − sendo
a mulher, atualmente, responsável pela dança e fundamental no contexto da brincadeira. A
manifestação não tem data específica para acontecer, sendo realizada como forma de
divertimento e também associada de forma ritualística em devoção a São Benedito, o santo
24

dos pretos. Mestra Roxa é coreira cabeceira de Mestre Felipe e, segundo ela, integra o grupo
há, aproximadamente, cinquenta e três anos. Ela explica, a partir de seu entendimento, a
origem do Tambor de Crioula e sua configuração:

O tambor meu avô ele sempre falava para gente era festa de escravo, eu não conheci
escravo. Mas naquela época “vamo faze uma festa” os escravos falavam, “vamo faze
festa com o quê? Nós vamo bate com o que?”, foram no mato, cortaram uma
madeira com três pedaços, cavaram a madeira, pegaram couro de boi, cobriram
couro e fizeram os três tambo. Fizeram um pequenininho, o meião e o grande. Aí
então, “que santo que nós vamos festejar? Vamos festejar São Benedito” aí começou
tambor, tá vendo? Começou tambor meu filho, e nós tamos dançando ele até agora.
(Maria da Graça Belfort) 5

Os motivos da realização do Tambor podem ser dos mais variados contextos, e os


locais também variam. D. Estela, coreira cabeceira do Tambor de Mestre Felipe há mais de
vinte anos,descreve como acontece o Tambor de Crioula:

A gente dança é todo dia, todo mês. É depender o tempo, qualquer, seja festa dele,
não seja, seja um batizado, seja um aniversário, seja um casamento, tudo que chama
tambor de crioula nós tamos dentro. Não tem dia pro tambor de crioula, tambor de
crioula é todo tempo. São João, Carnaval, Natal, Ano Novo, qualquer hora tem.
(Maria Estela Costa) 6

Em virtude da influência do turismo, o tambor tem ocupado lugares formais,


como hotéis, eventos, universidades, bares e, ainda, nas apresentações oficiais organizadas
por instituições públicas ou privadas. Essa diversidade atribui aspectos positivos e negativos à
manifestação, sendo positivas a visibilidade e a divulgação da brincadeira em contextos que
normalmente não estaria presente e, enquanto aspecto negativo, a brincadeira tem se
apresentado em palcos durante as apresentações, com padrões que não são orgânicos em seu
cotidiano, como exemplo distotemos as roupas padronizadas, que levam o nome de fardas e
que acarreta numa espetacularização da manifestação.
Os participantes da brincadeira são, em sua grande maioria, ascendentes de
escravos. A presença de negros marginalizados ainda é predominante na manifestação, pois

5
É coreira há, aproximadamente, 53 anos e integra os grupos de Tambor de Crioula União de São Benedito -
Mestre Felipe e o Tambor do Laborarte. Entrevista cedida pelo Laboratório Cisco, realizada em 28 de junho de
2017.
6
É coreira há, aproximadamente, 53 anos e integraos grupos de Tambor de Crioula Unidos de São Benedito -
Mestre Felipe, Tambor Mocidade Independente - Mestre Nivô e o Tambor Unidos de santa Fé. Entrevista cedida
pelo Laboratório Cisco, realizada em 29 de junho de 2017.
25

expressam as vozes que são abafadas ou até mesmo silenciadas num cotidiano opressor
(FERRETTI, 2002). É na roda do tambor que essas pessoas ganham voz, ganham corpo,
ganham a vez de se expressar. Na atmosfera dos tambores periféricos é possível vislumbrar
com mais clareza tal acontecimento: na construção da verdadeira identidade de “trabalhadores
comuns” em que pedreiros, empregadas domésticas, vendedores, pessoas simples, ganham o
protagonismo da fala, seja pela via oral ou corporal. Através do contexto em que os brincantes
estão inseridos é que Ramassote descreve a relação destes indivíduos com a manifestação do
Tambor de Crioula.

O tambor e a periferia criam-se mutuamente. Onde mais as pessoas se sentariam na


porta, ascenderiam uma fogueira, chamariam o vizinho, abririam a própria casa para
oferecer um café com bolo de tapioca a todos quantos chegarem? Onde mais as
mulheres seriam dispensadas da cozinha para virarem atração da casa? Onde mais
negros e negras teriam a fama de melhores cantadores, tocadores, dançadeiras, de
quem mais sabe, de quem é mais capaz de ensinar? Onde mais seriam os grandes
donos do tesouro?[...] É por isso que a periferia assusta a cidade. É lá o lugar da
diferença. É de lá que o tambor rufa o inconformismo, desdenha da mesmice, do
padrão. É lá que a toada ignora a submissão, que a fogueira consome a dor e
transforma-a em força radiante. É lá que os pés das coreiras vão sedimentando um
outro lugar e seus gritos ultrapassam fronteiras. (RAMASSOTE, 2006, p. 70).

Mesmo não havendo um local específico e designado para a manifestação


acontecer, ainda é possível ver o protagonismo de pessoas de condições mais humildesno
Tambor de Crioula, tanto em São Luís, quanto no interior do estado. É possível perceber
pessoas de outras camadas sociais envolvidas na manifestação, no entanto, a partir do
convívio que tive na pesquisa de campo, pude perceber uma predominância de habitantes das
regiões periféricas de São Luís ou em condições marginalizadas nos interiores. D. Anica, a
coreira de 89 anos mais antiga de Alcântara segundo informações concedidas pelos brincantes
da região, relata as dificuldades por ela encontrada devido à falta de estrutura do município
em sua juventude, o que reverberou de maneira significante em sua trajetória.

Só que eu tenho arrependimento, eu não sei lê nadinha, nem a assiná meu nome.
Que quando eu tinha 17, eu não tinha colégio, esse hospital era a Escola Régia,
ainda iam reformar aí pra hospital. Não tinha colégio nenhum aqui em Alcântara,
não tinha faculdade, não tinha essa escola Régia, não tinha o Inácio, não tinha nada,
não tinha nadinha. Depois sou eu que colho. Que a cidade, foi a primeira cidade
histórica que foi afundada, foi Alcântara. Tem um outro verso que canta “Alcântara
26

é minha terra, Maranhão é meu segredo, Eu não quero que se fale da terra que eu
como e bebo”.(Ana Benedita Ferreira Oliveira) 7

1.1.3.TÊM COREIRA NA RODA

Em minhas observâncias em campo, pude perceber que a roda de tambor é o lugar


em que a expressão popular se desenha. Ela é composta por mulheres dançantes (chamadas de
coreiras entre os brincantes), que ocupam grande parte desta, alinhadas lado a lado no que é
chamado de “cordão” e, na outra parte da roda, ao lado direito do Tambor Grande, estão os
tocadores (conhecidos como tambozeiros na brincadeira) e cantadores (recebem o nome de
coreiros, podem solar ou responder os versos) compondo a roda na brincadeira. Por fim, o
conjunto dos três tambores que realizam o toque, denominados como “parelha”, ocupam parte
da roda completando o círculo. Todos, dispostos lado a lado, deixam o espaço central livre
para que a coreira possa realizar a evolução de sua dança. A coreira Rosa Reis, que hoje é
responsável pelo Tambor de Crioula do Laborarte8, descreve como acontece a dança dentro da
roda de Tambor de Crioula:

A coreira faz, ela faz os movimentos de entrada na roda, né, aí tem os giros, a troca
com a outra coreira, né, que tá dançando, aí depois ela vai, começa a dançar com o
tambor, aquela relação com o tambor grande, tem a punga, a marcação da punga,
mas eu acho que é basicamente isso. Essa marcação né, de giros, gira pra um lado,
gira pro outro, marcação com o coreiro, a punga, a entrada o momento que ela entra
na roda, o momento que ela sai e que ela continua dançando. Eu gosto muito de,
embora a gente, no centro da roda a gente faça um solo de dança, né, mas quando sai
da roda, do centro da roda e vai pra roda junto com as outras coreiras, eu acho que
ali também a gente não pode ficar só parada, eu acho que ali também requer
movimento, movimento de roda de dança, que dá um, valoriza ainda mais o
espetáculo. Bom a punga acontece junto com o tocador, né, a punga ela não é uma
coisa solta no tambor. (Rosangela de Jesus Santos Reis) 9

A dança da coreira carrega como gestual a punga. Para Ramassote (2006, p. 106),
“[...]a punga demarca a saída de uma coreira, a saudação e o pedido de entrada da
„dançadeira‟ seguinte. É um momento de interação e integração entre os brincantes, posto que

7
É coreira há 72 anos e participa do Tambor de Promessa, realizado em homenagem a São Benedito em
Alcântara. Entrevista realizada na data de 29 de agosto de 2017.
8
Laboratório de Expressões Artísticas é um grupo independente que trabalha com ações artísticas nas linguagens
da dança, teatro, música, cultura popular, fotografia e literatura. Os trabalhos produzidos pelo Laborarte contam
com espetáculos artísticos.
9
É coreira há aproximadamente 34 anos. Atualmente, é responsável pelo do Tambor de Crioula do Laborarte.
Entrevista realizada na data de 22 de agosto de 2017.
27

a punga da coreira deve estar em sintonia com o toque do tambor grande”. A punga de barriga
ou de umbigada acontece em um determinado momento da dança, onde as coreiras
concentram-se,de frente uma para outra, para encostar ventre com ventre ede forma
harmoniosa. Os motivos da punga são diversos: em primeiro momento, pode ser de convite ou
autorização à outra coreira dançar na roda, saudação à outra coreira que acaba de chegar,
demonstração de carinho e afeto e, até mesmo, como forma de brincadeira entre as coreiras no
cordão para animar a roda, como observei durante as pesquisas de campo. A coreira Rosa
Reis explica o que a punga significa durante a dança:

Mas tem a punga que você faz, que é o momento da umbigada, né, que é você bate
ventre com ventre com a outra coreira. É isso também é um, é uma coisa muito
forte, é muito forte também dentro da dança. É ... E ela acontece, eu acho que numa
sintonia, eu tô, eu tenho que tá em sintonia com a outra coreira pra gente chegar
junto nesse toque, né, que esse toque, que onde a gente vai passar uma energia a
minha energia pra outra coreira que tá dançando, né, a gente troca uma energia ali
naquele momento, não é só a questão da punga pra tocar de lugar, sair do centro da
roda, não é uma troca interior, também que acontece muito né, sabe uma coisa do
ventre, dali que é de ventre, de útero, de tudo ali, sabe? Então acho que é uma coisa
muito forte, é também marcada e depende muito da sintonia com outra coreira,
porque se não, não funciona. Ás vezes você dá uma punga, vai dá com outra coreira
que não tá no teu tempo, né, fica tudo fora. (Rosangela de Jesus Santos Reis)

Outra característica marcante da dança das coreiras são os giros frenéticos que
fazem com que as suas saias esvoaçantes pairem no ar de maneira altiva, com muita destreza e
elegância. Por ser este o recorte de nosso estudo, iremos nos ater em tratar de forma
minuciosa a dança da coreira em um subcapítulo próprio.
28

Imagem 01 − D. Estela dançando no espaço Laborarte

Fonte: Foto de Doroti Martz., 2017.

1.1.4. SONORIDADES − SEM TAMBOR NÃO TEM FESTA

O toque do Tambor de Crioula é composto pelo conjunto de três tambores


denominado como parelha, sendo que estes recebem o nome de Tambor Grande, Meião e
Crivador. Em alguns grupos do Maranhão, podem ser ainda acompanhados pelo instrumento
com o nome de matraca − baquetas de madeira que podem ser confeccionadas com cabo de
vassoura ou material semelhante. Os três tambores são fabricados a partir do mesmo tipo de
madeira (mangue sororó, pau d‟arco, angelim, faveira ou mescla), onde a mesma é
manipulada para que a parte interna fique oca. Depois de todo o tratamento do corpo de
madeira do tambor, o couro de animal (que pode ser de boi, vaca, veado, cavalo ou tamanduá)
é colocado de molho na água com o intuito de ficar maleável para adequar-se melhor ao corpo
do tambor. Após este processo, o corpo de madeira é coberto por este couro, finalizando
assim sua confecção.
Pude observar nas rodas de Tambor que para o toque dos tambores acontecer é
preciso que eles sejam afinados ao calor da fogueira. É neste lugar que se inicia a ciência do
29

brincar. A fogueira é o primeiro ritual que inicia o tambor, pois sem os tambores afinados não
há brincadeira, não há festa, não há apresentação e pouco menos pagamentos de promessas. O
trato dos tambores, geralmente, fica na responsabilidade10 dos homens, enquanto as mulheres
se arrumam para dançar. Os homens são encarregados de buscar materiais para fazer a
fogueira, podendo ser lascas de madeiras, troncos e galhos de árvore, papelão ou outros
materiais de fácil acesso e manuseio. Uma vez a fogueira acesa é o momento de colocar a
boca dos tambores (parte superior dos instrumentos coberta pelo couro de animal) próxima ao
fogo, com muito zelo e atenção. Segundo os brincantes mais experientes, a afinação não pode
passar do ponto exato, razão pela qual é preciso ter paciência no manuseio destes tambores.
Os tambozeiros aproximam e distanciam, de tempo em tempo, os tambores do fogo para
alcançar tal afinação almejada.

Imagem 02 – Crivador, Meião e Tambor Grande afinando na fogueira

Fonte: Foto de Doroti Martz, 2017.

10
Esta concepção de funções dentro dos tambores está se modificando, uma vez que é possível presenciar muitas
mulheres tocando os instrumentos e sendo responsáveis pelosseus manuseios na fogueira.
30

A fogueira proporciona o encontro, o ensinamento através da oralidade entre os


que estão começando o aprendizado no tambor e os mais experientes. É lugar de troca, é lugar
de segredo e lugar de saberes. Algumas vezes, presenciei em momentos anteriores a roda de
Tambor, os brincantes reunidos ao redor da fogueira a contar causos e conversar sobre os
fundamentos da brincadeira, onde os brincantes mais experientes compartilhavam suas
vivências através da fala.
Uma vez os couros afinados, é hora de iniciar a roda de tambor.Os tambores são
dispostos lado a lado, compondo a roda junto aos coreiros, coreiras e cantadores. A marcha11
do tambor se inicia com o toque do Meião que sustenta a mesma pulsação, sem variação. Em
seguida, é o momento do Crivador marcar o toque repenicado com pequenas variações,
compondo com a frase do Meião. Depois, o Tambor Grande inicia seu toque com variações e
improvisações que dialogam com os outros tambores. Para os tambores que são adeptos ao
uso da matraca, ela é o último instrumento a compor o toque, apresentando uma marcação
variada no corpo de madeira do Tambor Grande (FERRETTI, 2002).

1.1.5. EU VIM CANTÁ A MINHA HISTÓRIA

O canto compõe o universo da brincadeira e, também, é um momento importante


de interação entre os brincantes, pois nele é possível compartilhar histórias pessoais, situações
que acontecem no momento da roda, elogiar alguém que está na festa ou algum participante
da brincadeira. É um momento de divertimento e descontração, mas também é um momento
de denúncia para explicitar uma situação que o cantador é contra12, evidenciar rixas e desafiar
cantadores presentes no local. Para melhor descrever o universo do canto trago a experiência
da coreira Fernanda, que relata uma situação vivenciada na roda que foi resolvida através do
canto:

Eu muito raramente me coloco aqui em São Luís, ou em qualquer outro lugar, numa
situação de cantar, puxar o tambor. [...] Aprendi com Sardinha, que você tem que
contar o seu cotidiano, responder o seu amigo ali que tá numa certa implicância com
tua saia, ou com teu sapato, ou com tua roupa, e ai eu dou lá a resposta. Mas eu

11
Nome utilizado entre os brincantes para denominar o toque contínuo por determinado tempo dos tambores,
acompanhados ou não das toadas.
12
Que pode ser de cunho político, reclamações atreladas à falta de incentivo e fomento do Estado ao Tambor de
Crioula, como também da falta de bebida para os tocadores e coreiros.
31

sempre respeito, sempre gosto mais de ouvir. Só respondo em determinados


momentos, que a coisa tá muito arrochada, aí eu tenho que me colocar, porque se
não volto pra casa, e eu tenho meus filhos, né? Eu não posso ser humilhada na rua,
eu tenho que me colocar em determinados momentos pra que eu possa voltar pra
casa com a minha dignidade intacta. [...] Porque uma vez eu fiz uma saia pra mim,
na mão né, e fui dançar. Quando eu cheguei na roda, uma pessoa, aí tiraram uma
onda com a minha saia, que saia era essa – no canto – que saia era essa, que dança
era essa, aí eu tive que esperar o momento pra mim entrar na cantoria, e contar a
minha história. Contei desde o meu avô, até os dias de hoje num verso só. Desde
esse dia essa pessoa me trata super bem.(Fernanda Sá Macedo) 13

A presença da mulher em outras funções dentro do Tambor de Crioula tem


ganhado muita visibilidade nos últimos tempos. Para os brincantes mais antigos, essa relação
ainda não superou as regras tradicionais que não permitem que mulheres desempenhem
algumas tarefas, como cantar e tocar o tambor. Durante as entrevistas com a coreira D. Anica
pude perceber sua resistência nos fundamentos antigos, que lhes foram ensinados, e os novos
que permitem a presença da mulher na dança do Tambor, como também no canto, no toque e
até sendo responsável por um grupo. Destaco a fala de Anica com tal posicionamento: “Eu
não canto porque eu não tô acostumada a cantar. Eu só faço é ensinar, os versos que meu pai
me ensinou e minha mãe, mas cantar não[...].Sei os versos[...].Não canto porque mulher não
canta é só homem! Só os tambozeiros. E aí eu fico com vergonha eu não canto”. Ressalto,
ainda, que durante a entrevista a coreira cantava versos de Tambor de Crioula para ilustrar o
assunto ao qual abordava.
Não existe uma ordem de cantos para o Tambor de Crioula, mas uma convenção
entre os brincantes mais tradicionais de que as três primeiras marchas devem ser tocadas para
o santo protetor São Benedito14. Mestra Roxa explica como acontece o canto na brincadeira:
“O começo canta para São Benedito, ai canta para São Benedito primeiro, aí depois, canta pro
dono que está fazendo a festa, entendeu a pessoa, aí depois você leva todo tipo de cantiga, se
canta até de manhã…”. As demais marchas, normalmente, se utilizam dos temas de amor,
autoapresentação, autoelogio ao cantador, reverência aos santos, recordações amorosas,
situações vivenciadas e desafios entre os cantadores. Os temas estão presentes tanto nas
toadas como nos versos improvisados pelos cantadores. Para finalizar, canta-se a despedida.

13
É coreira há 12 anos, dança como tapuia no Bumba-meu-boi do Mestre Leonardo. Entrevista realizada na data
de 24 de agosto de 2017.
14
Informação concedida pelo brincante e coreiro Baé (Cleosvaldo Diniz Ribeiro) em uma oficina de Tambor de
Crioula, desenvolvida no Centro Cultural Mestre Patinho em São Luís/MA.
32

Alguns gruposreverenciam São Benedito ao final do tambor, cantando toadas em homenagem


ao santo.

1.1.6.SANTINHO PRETINHO: DEVOÇÃO A SÃO BENEDITO

São Benedito15 está presente constantemente no universo do Tambor, seja nas


toadas, no altar ou na fé dos brincantes que praticam a brincadeira. Cada brincante encontra
um significado próprio na relação do santo com a manifestação segundo suas crenças ou
referências pessoais. Para Ramassote (2006, p. 42), “[...]São Benedito, o santo protetor dos
negros aparece no teatro das memórias como um escravo que foi à mata, cortou um tronco de
árvore e ensinou os outros negros a fazer e a tocar o tambor”. Podemos perceberuma possível
identificação dos participantes, uma vez que o santo aparece como o criador da manifestação
e aquele que ensina como fazê-la, presenteando as pessoas que eram escravizadas com a
brincadeira e cujos ascendentes deram continuidade ao decorrer das gerações em respeito e
devoção ao santo. Outra possível leitura na relação do santo com a manifestação está pautada
também no aspecto da identificação, por ser um santo negro e de origem humilde, que ajudou
os pobres ao longo de sua vida. Mestra Roxa explica a presença do santo no Tambor:

Porque é o santo preto, santinho pretinho. “O que é que nós vamos dar na nossa
festa? Vamos passar um café, um bolo de tapioca aquele bolo duro meu filho, pra
come”, até hoje tem essa história, passa o café e o povo come o bolinho duro e vamo
dançar tambor até umas hora. (Maria da Graça Belfort - Roxa).

Outras manifestações brasileiras são adeptas a São Benedito, possivelmente pela


mesma relação de identificação que citamos acima. No Tambor de Crioula, além dele estar
presente na crença e fé de seus adeptos, o santo ganha materialidade uma vez que tem sua
imagem representada pela Igreja Católica ao vincular a brincadeira e sua presença no altar.
Além disso, o santo participa da brincadeira quando entra na roda e dança com todas as
coreiras. Neste momento, a coreira que inicia a roda entra com a imagem do santo na mão e
dança em frente ao Tambor Grande. A toada é direcionada para o santo, enquanto este estiver
dentro da roda. Em seguida, a coreira passa a punga para a outra participante com o santo e,

15
Santo Mouro nasceu na Itália e foi filho de escravos. Entrou para um convento de padres Capuchinos, aonde
chegou a ser superior dos frades. Realizou milagres relacionados em ajudar os pobres.
33

após todas as coreiras dançarem, ele é colocado de volta ao altar e a brincadeira continua.
Alguns grupos realizam o ritual da entrada do santo na roda enquanto dançam, com exceção
das apresentações oficiais em que o santo não é colocado na roda, outros preferem ter um altar
para o santo, também nas brincadeiras não oficiais.16

Imagem 03 –Cortejo na festa de São Benedito em Alcântara

Fonte: Foto de Doroti Martz., 2017.

No Tambor de Promessa são feitos rituais específicos para São Benedito. As


Ladainhas, por exemplo, são rezas e canções dedicadas a São Benedito que acontecem em
momentos específicos. É comum que as Ladainhas sejam conduzidas por uma rezadeira ou
pela coreira mais experiente na brincadeira. O altar de São Benedito pode estar em dois
diferentes espaços, dentro da casa ou sede17 que recebe a festa ou do lado de fora onde
acontece a roda de Tambor. O altar é posicionado de frente para o tambor, de modo que o

16
Brincadeiras, apresentações ou brincadas oficiais fazem referência às apresentações contratadas pelo Estado
e/ou empresas privadas.
17
Nome utilizado pelos brincantes para referir-se ao espaço fixo de encontro do grupo. Geralmente, a sede é a
própria casa dos donos e donas do tambor.
34

santo possa “assistir” a roda. A ordem entre a marcha de Tambor e a Ladainha varia de
promessa para promessa, assim como a entrada do santo na roda, conforme pude observar
através das pesquisas de campo.
No interior do Maranhão, outros rituais também estão presentes na promessa. Um
deles é o “roubo” do santo18, em que em determinado momento da festa (próximo ao
amanhecer), o santo some do altar e os brincantes responsáveis pela promessa anunciam o
roubo para os demais participantes. Todos os brincantes saem pela vizinhança, de casa em
casa, tocando marchasna busca do santo e pedindo algumas prendas, como comida e bebida,
para os donos das casas. Assim que o encontram, voltam para o local da promessa e dançam
para ele com entusiasmo e o colocam de volta no altar. Sintetizando a presença do santo na
manifestação, fazemos o uso da seguinte citação de Ramassote (2006, p. 63): “[...] É no
„tambor de promessa‟ que essa apropriação fica mais explícita, pois nele ocorre a
materialidade da presença do santo: o santo é visto, o santo assiste, é banhado, roubado,
tocado, ele dança, é „salvo‟”.

1.1.7.TAMBOR QUE NÃO TEM CACHAÇA EU VOU FALANDO MAL

A bebida também apresenta um protagonismo importante na brincadeira, sendo


consumida pelos coreiros e coreiras durante todo o tambor e até oferecida à assistência19. É
extremamente aclamada pelos brincantes, pois, segundo eles, a mesma serve para esquentar a
brincadeira. Em minhas observações de campo foi possível verificar que, durante a marcha,
alguns tambozeiros deixam de tocar os instrumentosse não for oferecida a bebida. Algumas
coreiras também reclamam quando não são servidas, parando de dançar para irem beber.

18
Observamos este fato em uma promessa em Mocajituba, realizada por D. Maria Clóvis, irmã do Mestre
Wanderley de Mocajituba.
19
Público do Tambor de Crioula que podem ser amigos, parentes ou simpatizantes da manifestação. Geralmente,
estão localizados ao redor da roda de tambor.
35

Imagem 04 –Coreira Nivea bebendo conhaque para entrar na roda de Tambor

Fonte: Foto de Doroti Martz., 2017.

Tem sido cada vez mais difícil manter o costume da bebidanas apresentações
oficiais. A rígida fiscalização de representantes do Estado repudia veementemente este tipo de
comportamento diante do público, restando aos brincantes beberem “escondido” antes ou
durante as apresentações. Não é difícil ouvir os cantadores tirarem versos de toadas em
menção à bebida: “Eu vou beber no mar, Eu vou beber no mar, Se aqui não tem cerveja eu
vou beber no mar” (toada que integra o repertório do Tambor de Mestre Felipe), ou ainda “Eu
vou falando mal, Eu vou falando mal, Tambor que não tem cachaça, Eu vou falando mal”
(toada cantada por Mestre Amaral durante as rodas de tambor), para reclamar da ausência da
bebida durante a brincadeira.
Nas brincadeiras de Tambores de Ponta de Rua20 e, principalmente, nas promessas
oferecidas a São Benedito, a presença das comidas e bebidas em abundância são quase que
obrigatórias. Elas são oferecidas pela pessoa que tem a obrigação da promessa ou angariada

20
Nomenclatura utilizada para denominar as apresentações não oficiais dos brincantes, onde a brincadeira é
realizada por divertimento, geralmente, na porta das sedes dos grupos.
36

de forma coletiva, onde a responsabilidade pela fartura da festa fica dividida com cada
participante do Tambor. Segundo Ramassote:

A comida na festa de São Benedito adquire uma importância significativa. Distribuí-


la não apresenta apenas alimentar os convidados, mas seguir o exemplo de caridade
do santo, demonstrar abundância, superação das dificuldades. E o seu preparo além
de unir brincantes e comunidade, revela aspectos fundamentais para continuidade
dessas práticas. (RAMASSOTE, 2006, p. 80).

1.1.8. O SAGRADO E O PROFANO: QUANDO NÃO HÁ DISTINÇÃO

O universo do Tambor de Crioula apresenta em si a dualidade de aspectos


sagrados e profanos. Questão essa muito discutida pelos pesquisadores da área, no entanto,
não há ainda um consenso sobre a existência do sagrado no Tambor de Crioula. Em 1930,
Mário de Andrade publicou “Música de Feitiçaria no Brasil”, apontando o Tambor de Crioula
como vertente do Tambor de Mina, uma religião afrodescendente cultuada em terreiros no
Maranhão. O folclorista Domingos Vieira Filho opõe-se a este ponto de vista, e afirma ainda
que “essa assertiva do grande mestre paulista não procede. O Tambor-de-Crioula no
Maranhão é simples dança para divertir, sem a menor pertinência com a religiosidade do
negro maranhense e seus descendentes” (FERRETTI, 2002, p. 49). Já na perspectiva de
Ferretti (2002, p. 119), o Tambor de Crioula possui “por um lado, um sentido religioso ou
sagrado, e por outro, sentido festivo ou profano, podendo ser considerado como um ritual que
faz parte de um sistema religioso, incluindo-se entre momentos de divertimento”.
É possível perceber a divergência de posicionamentos entre os pesquisadores
apontados, a relação estabelecida entre os brincantes sobre o tema também apresenta opiniões
e posicionamentos divergentes. Para D. Estela (Maria Estela Costa), coreira do Tambor de
Mestre Felipe, “o tambor de crioula não tem entidade. Só tem entidade no tambor de Mina.
No tambor de crioula dançamos nós mesmos, quem carrega seja lá quem for, às vezes tem
umas que eles vêm, aí eles dançam bonitinho[...]”. A coreira Laís21 (Laís de Moraes Rego
Silva) explica o ponto de vista de Mestre Felipe sobre este assunto: “Então, seu Felipe tinha
uma relação muito próxima com essa coisa de terreiros, mas ele separava completamente isso.
Então, tipo assim, nunca havia uma mistura disto nos rituais do tambor de Crioula, nunca, pra
21
É coreira há aproximadamente 17 anos, integrando o grupo de Tambor de Crioula União de São Benedito -
Mestre Felipe. Entrevista realizada em 28 de novembro de 2017.
37

ele era bastante separada essa questão”. Por mais que ainda não se tenha um consenso sobre a
religiosidade no Tambor de Crioula, pude perceber nas visitas em campo que as duas
atmosferas se misturam e, na realidade dos brincantes, ficam indissociáveis, pois muitos
frequentam terreiros de religiões afro-brasileiras. Para este estudo, partiremos da perspectiva
de Hampaté-Bâ que dissolve as barreiras entre o sagrado e o profano:

Uma vez que se liga ao comportamento cotidiano do homem e da comunidade, a


“cultura” africana não é, portanto, algo abstrato que possa ser isolado da vida.Ela
envolve uma visão particular do mundo, ou, melhor dizendo, uma presença
particular no mundo – um mundo concebido como um Todo onde todas as coisas se
religam e interagem.(HAMPATÉ-BÂ, 2010, p. 169).

A presença de São Benedito estabelece uma ligação com o universo do sagrado.


Os aspectos que já apontamos anteriormente na louvação ao santo, principalmente nos
Tambores de Promessa, são responsáveis por sacralizar a brincadeira. No entanto, a
aproximação da roda do Tambor de Crioula com os cultos do terreiro de Mina no Maranhão
pode também contribuir na construção da identidade sagrada que este possui. Para Ramassote
(2006, p. 54), “a ligação mais frequente e importante entre o tambor de crioula e a mina é a
relação feita entre São Benedito e Vereketi”, tal ligação é estabelecida através dos brincantes
e alguns chefes de terreiros que justificam as aparições sobrenaturais de entidades durante a
brincadeira. Através da entrevista realizada por Ferretti, o Pai de Santo Euclides do Terreiro
Fanti Ashanti explica a relação de Averekete22 e essas possíveis aparições no Tambor:

S. Benedito protege diversas entidades africanas, nagôs como BossuDoru e Opelavi,


além de Caboclos e Pretos Velhos. Há pessoas fanáticas por Tambor de Crioula que
acabam sendo possuídas por entidades, pois Tambor de Crioula é uma tradição
africana e quem tem vodum de origem africana acaba caindo no santo. Ademais, o
tambor de Crioula pertence a um santo católico, S.Benedito, que proteje um vodum,
ToiAverekete – da tradição Iorubá-Nagô, como protege outras entidades. Talvez por
isso há pessoas que são possuídas pelo santo quando dançam Tambor de Crioula.
(EUCLIDES apud FERRETTI, 2002, p. 123).

Estive no ano de 2016 na região de Icatu (MA), no Tambor de Promessa de Prova


de Fogo, coreiro e cantador da região, onde pude observar a manifestação realizada no interior
do estado. Nesta ocasião, estava acompanhando o grupo de Tambor de Crioula de Mestre

22
Entidade africana pertencente às religiões de matrizes africanas que é sincretizada ao santo São Benedito.
(FERRETTI, 2002).
38

Amaral e notei a presença de uma “entidade” que se manifestou em um morador da região. As


coreirasrelataram que a entidade está presente em todas as promessas realizadas pelo coreiro
mencionado, possuindo sua própria indumentária, composta pela saia, blusa, torso de cabeça e
colares. Sua forma de dançar é bastante peculiar, pois dança com uma garrafa de cerveja na
cabeça sem o uso das mãos para segurá-la, contando apenas com o equilíbrio para mantê-la
apoiada no topo de sua cabeça. Mesmo com a garrafa em equilíbrio, a entidade realizava os
giros do Tambor de Crioula com extrema intensidade, servindo a bebida para os coreiros e
coreiras com os quais simpatizava. Ela atendia pelo nome de D. Tereza de Légua.
A coreira Danira que dança, aproximadamente,há oito anos no Tambor de Mestre
Felipe, explica a relação que tem com o santo e como isso influencia na sua dança na roda de
Tambor:

Menina quando eu tô dançando, eu penso no São Benedito, e na virada eu penso no


Avereketi, eu fico até arrepiada, ó, só de falar, inclusive eu tenho promessa!
Devendo promessa pra ele, por isso muitas coisas ainda não aconteceu, porque eu tô
devendo essa promessa. É muito simples, não precisa ser a noite toda não, é só umas
pungada e tal.[...] Porque quando você é devota, você não é apenas aquela coreira,
você é uma coreira que também dança com vontade, dança com fé, dança com
aquele axé, transmitindo aquele axé, pra outras. Isso que hoje me faz ser diferente,
porque eu gosto de dançar com aquela vontade de dançar, daquela força, com aquela
força espiritual, que eu sei que já vem do santo, né? É assim, como se eu tivesse
passando aquela minha força para as outras coreiras. (Danira da Silva Costa)23

1.1.9.NOVAS CONFIGURAÇÕES: O TAMBOR E O ESTADO

Outro aspecto importante no Tambor de Crioula é a intervenção do Estado. No


intuito de dar maior visibilidade à manifestação, acaba por modificar toda a estrutura da
brincadeira, gerando pontos positivos e negativos por tal intervenção. Ao discorrermos sobre
tal tema, não iremos apontar a data exata que essa intervenção se iniciou, tendo em vista que
essas mudanças significativas foram feitas ao longo da história da manifestação, apontaremos
o que julgamos de maior importância nesta interferência que criou padrões e demandas para
os grupos do Tambor de Crioula do Maranhão.
As primeiras modificações evidentes a serem apontadassão a criação e a
institucionalização dos grupos de Tambor. Inicialmente, a brincadeira era informal, realizada

23
É coreira há 24 anos, dança nos Tambores União de São Benedito - Mestre Felipe, Tambor do Laborarte e
Pungar da Ilha. Entrevista realizada no data de 30 de novembro de 2017.
39

de forma marginalizada e sem uma quantidade de pessoas específicas para acontecer,


passando a ganhar maior visibilidade pelo Estado e aSecretaria de Cultura e Turismo da
cidade São Luís. Segundo o pesquisador Ferretti (2002), as entidades governamentais e
empresas privadas passam a utilizar da imagem da manifestação para divulgar a cultura da
cidade, como forma de atrair e agradar o turista, propagando apresentações da brincadeira
para este público. Então, a brincadeira que era realizada como forma de pagamento de
promessa ou confraternização entre os participantes e adeptos passa a ter a função de
espetáculo popular para o público interessado.
Ao longo deste processo, novas exigências são impostas aos brincantes, como a
criação de grupos com uma quantidade específica de participantes e apadronização da
vestimenta, que fica intitulada como “farda”. A indumentária padronizada das mulheres é
composta por anágua, shorts e saia com a mesma estampa e modelo do grupo, blusa branca
com renda, torso na cabeça e colares. Os homens devem compartilhar da mesma estampa e
modelo de camisa, calça e o uso de chapéu. Algumas coreiras utilizam sapatilhas para dançar,
outras dançam descalças. Mestra Roxa explica o que é ser coreira e o uso dos adereços no
Tambor:

Ser coreira é aquela que coloca uma saia bonita, muitos colares e se invocar mesmo
para ser coreira. Que a coreira que é coreira ela tem que tá de pano na cabeça, tem
que estar de torço, tem que tá. [...]E tem vários tambores que dançam calçados, o
tambor de mestre Felipe e o tambor do Laborarte bem pouca. Tem umas que tem
problema “aí eu tenho medo de me cortar porque eu sou diabética”, e eu “bota um
sapato no teu pé”. Agora se eu te dissê uma coisa para vocês, se eu for dançar um
tambor calçada, não dá certo. E tem que tirar meu chinelo, meu sapato, pra mim
sentir firmeza onde eu tô pisando. Aí pronto! Dá tudo certo. (Maria da Graça
Belfort).

Além da padronização e criação dos grupos, a brincadeira passa a ganhar tempo


de começo, meio e fim, determinado pelos contratantes. Há ainda a necessidade de renovar a
vestimenta do grupo anualmente, sendo um dos critérios que serão avaliados durante o evento
pelos referidos fiscais:

Os fiscais são os guardiões do bom espetáculo, da certeza de que o turista virá e


encontrará uma mostra das festas e dos rituais, tudo isso sob medida para o tempo
disponível e expectativa do visitante, ávido pela beleza das cores padronizadas, dos
movimentos sincronizados e sons ritmados. Muito embora a espetacularização seja
apenas um aspecto, uma maneira de fazer o tambor proposta pelo Estado – que não
40

dá conta de expressar o modo de vida desses grupos – essa fórmula tem sido vendida
ao visitante, turista, espectador como sendo a autêntica cultura maranhense.
(RAMASSOTE, 2006, p. 120).

Além de todas as exigências para que exista uma boa apresentação, ou melhor, um
bom espetáculo, ainda há um agravante maior que transforma a relação dos brincantes com a
gestão da brincadeira. A burocratização dos editais de contratação do Estado tem forçado os
grupos a se enquadrarem em um formato de empresas, exigindo uma documentação e
administração a qual muitos dos brincantes são leigos, principalmente os brincantes mais
velhos, em geral não alfabetizados. Situação esta que D. Anica relata fazer parte, conforme
citamos anteriormente.
A necessidade de “legalizar” os grupos de Tambor de Crioula, para que estes
possam estar habilitados nos editais de credenciamento do Estado, obriga os responsáveis a se
enquadrar neste novo formato, sendo necessário providenciar um estatuto dos membros com
as respectivas funções administrativas dentro do grupo, a emissão de um CNPJ (Cadastro
Nacional de Pessoa Jurídica), a abertura de uma conta bancária em nome do grupo ou
associação, dentre outras providências necessárias exigidas pelo Estado e também pelas
instituições privadas. Tais medidas são complexas e exigem um conhecimento específico de
questões administrativas, das quais muitos desconhecem. Além disso, para a tramitação da
legalização, do que chamaremos de “grupo empresa”, é necessário dinheiro para dar entrada
nas documentações.
Para os grupos que não conseguem a legalidade do Tambor para se apresentar no
calendário oficial do Estado24, existe a opção de apresentarem pelas associações (que
funcionam como produtoras) com a ressalva de que parte do cachê sejautilizada para pagar os
serviços da mesma e o restante é destinado para ser dividido entre os participantes do grupo.
Os grupos que não se enquadram em nenhuma dessas formas de legalidade não se apresentam
no calendário oficial, isso faz com que a manutenção e a subsistência dos mesmos
estejamcomprometidas, uma vez que existem gastos em manter um grupo de pessoas.
Podemos perceber através deste breve apanhado histórico do Tambor de Crioula,
na visão dos pesquisadores e brincantes da manifestação, que o Tambor tem sofrido
significativas transformações ao longo dos anos. Enquanto, por um lado,essas alterações

24
O calendário de apresentação oficial acontece nas datas festivas do Carnaval e São João, além de
apresentações de programas turísticos ao longo do ano.
41

afetam a estrutura primordial de brincadeira, descontraída para um aparato turístico na cidade,


por outro, possibilitam a visibilidade da brincadeira ao proporcionar um lugar de legitimidade
para os brincantes, distanciando-os dos preconceitos existentes na sociedade maranhense e
possibilitando a autonomia para que possam se expressar através do toque, do canto e da
dança do Tambor de Crioula. Ramassote (2006, p. 69) destaca as contribuições do processo da
institucionalização dos Tambores do Maranhão: “Foram elencados aspectos positivos dessa
espetacularização, como a divulgação a quebra do preceito, a renda gerada; e aspectos
negativos como a perda da originalidade, o oportunismo na criação de grupos, a
burocratização na relação com o Estado”.
Na referida citação dos pontos positivos e negativos das transformações no
Tambor de Crioula, o processo de institucionalização provoca em seus aspectos negativos,
sérias problemáticas para a continuidade dos grupos e brincantes tradicionais do Maranhão. A
partir do diagnóstico percebido pelos brincantes e dirigentes de grupos é que surge uma
articulação interna para reivindicar possíveis soluções e diálogo com os órgãos
governamentais, apresentando suas reais necessidades diante deste panorama atual. Tal
articulação entre os brincantes já vem acontecendo há algum tempo, no entanto, voltou a
ganhar forçano ano de 2016, mas logo caiu no desinteresse dos mesmos. No segundo semestre
de 2017, os encontros ganharam força e deraminício ao Fórum de Tambor de Crioula de São
Luís, organizado pela coreira e representante de Tambor, Rosa Reis25. Em depoimento a
Ramassote, Dona Maria dos Santos, mais conhecida entre os brincantes como mestra Maria
do Coco, sintetiza a atual situação do Tambor de Crioula no Maranhão e ainda aciona a ajuda
dos órgãos que acredita poder interceder pela manifestação:

Vocês, com essa pesquisa, vocês olhem mais um pouco que a universidade ela pode
dá alguma coisa de ajuda pros grupos também, que ela tem essa capacidade, né? Não
é só tirar também dos grupos, entendeu? Tem que ajudar em alguma coisa, né,
chamar os grupos, ajudar em alguma coisa, né, porque precisa os grupos; nós
trabalhamos com muito sacrifício; porque este cachê que o governo dá não dá pra
nós manter o nosso grupo, de jeito nenhum, não dá. Então eu quero que, a
universidade precisa demais da nossa ajuda, ou da nossa colaboração, então eu quero
que ela olhe mais com carinho os grupos dos tambores de crioula, entendeu? [...]

25
Informação cedida pelo atual presidente do grupo de Tambor de Crioula de Mestre Felipe, Mestre Militão −
Raimundo Militão Pereira, coreiro, cantador e cabeceira no Tambor de Crioula União de São Benedito de Mestre
Felipe desde o ano de 1993. No ano de 2016, as reuniões do fórum eram acompanhadas pelo ex-presidente
Sérgio Costa e, atualmente, pelo Mestre Militão.
42

então o IPHAN tem que olhar um pouco pela gente, né não? (RAMASSOTE, 2006,
p. 121).

Por fim, é necessária a articulação das instâncias governamentais com os


membros que produzem e participam do Tambor de Crioula, junto ao IPHAN, para solucionar
tais problemáticas de forma coletiva e sem imposições, assim haverá um esclarecimento de
todas as instâncias para salvaguardar a brincadeira.

1.2.O TAMBOR DE MESTRE FELIPE

No ano de 1924, na região de Taboca em São Vicente Ferrer no Estado do


Maranhão, Felipe Neres Figueiredo (posteriormente conhecido como Mestre Felipe) nasceu
no berço da cultura popular, tendo forte influência de sua família, predominantemente,
envolvida com manifestações populares. No livro “Mestre Felipe por ele mesmo” de Sergio
Costa e Marco Aurélio Haikel, Mestre Felipe relata que já tocava os tambores Meião e o
Crivador com sete anos de idade em casa, por influência de sua avó que realizava festas de
tambor. Ele ainda conta a experiência tocar fora em festas com seus doze anos de idade:

Pra fora, com doze anos eu comecei a tocá na rua junto com os outros! P‟que os
velhos levavam. Nóis não ia por conta nossa como hoje criança vai pra festa por
conta deles. Os velhos levava! Cê sabe um sarau com a turma de Maria de Inésia, a
turma de Nhé Inésia? Nhé Inésia era minha avó... Inésia, que era o nome dela, mas
todo mundo chamava Nhé Inésia! Aí, chegava convidava ela e ela ia com a turma
dela. Todo mundo.(COSTA; HAIKEL, 2013, p. 21).

Além do envolvimento com o Tambor de Crioula desde muito cedo, Mestre Felipe
também tinha um grande apreço pelo Bumba Meu Boi. Seu contato remete à infância quando
brincava de personagem do caboclo de pena. Em sua herança familiar, além da avó Nhé Inésia
ser envolvida com o Tambor de Crioula, a sua mãe Maria Cândida Figueiredo era envolvida
com as festas e o toque de caixas para o Divino Espírito Santo, Joana, irmã de mestre Felipe e
mãe de Zé Olhinho26, tocava instrumentos no Tambor de Crioula.

26
Sobrinho de Mestre Felipe, tocador de tambor e fundador do Bumba-meu-boi Unidos de Santa Fé. Antônio
Roxo,seu irmão, assume importantes funções no Boi, além de ser coreiro oficial de Mestre Felipe.
43

Mestre Felipe ocupava-se da profissão de carpinteiro em São Vicente. Quando se


mudou para São Luís, passou a trabalhar como faxineiro no Hotel Veneza e, depois, no Hotel
Central no ano de 1947, aproximadamente.
Em 1973, fundou o Tambor de Crioula União de São Benedito na sua
casalocalizada na Vila Passos27, junto com sua turma, composta por vizinhos e brincantes da
cultura popular. Inicialmente, as oficinas e encontros aconteciam na sede da Vila Passos e,
posteriormente, passou a acontecer no espaço Laborarte, onde a convite de Nelson Brito28,
Mestre Felipe desenvolveu oficinas de Tambor de Crioula com artistas que faziam parte do
elenco dos espetáculos.
O Laborarte foi importante para promover uma maior visibilidade ao Tambor de
Crioula União de São Benedito, possibilitando que o grupo participasse de eventos no âmbito
nacional e internacional, como o Festival Internacional de Expressões Ibéricas - FITEI na
cidade de Porto, em Portugal. Após a temporada que passou com o Laborarte, Mestre Felipe
decidiu retomar as atividades em sua sede, onde ganhou a presença dos artistas que
acompanhavam suas oficinas no Laborarte e que passaram a integrar o grupo, do qual muitos
permanecem até o presente momento.
Felipe foi casado com Raimunda do Carmo Pereira, mais conhecida como D.
Mundica pelos brincantes do grupo. D. Mundica nasceu em São Luís em 1924, na região
Central, e se mudou para São Vicente com dez anos de idade, onde conheceu Felipe. Através
da entrevista concedida a Sérgio Costa e Marco Aurélio Haikel (2013, p. 124), D. Mundica
explica o início do relacionamento com Mestre Felipe: “Ele era sem vergonha!...Ele já me
namurava assim ó, desde piquena!”. Mestre Felipe acrescenta ainda informações sobre o
início deste relacionamento:“Desde criança? Quando nóisnascimo já foi namurando,
rapá!..Nóis era vizinho de murá perto, rapá...Eu ia pra roça, passava no terrêro dela! Eu ia pro
poço, passava no terrêro dela!... Ela ia pro colégio, passava na minha porta!”.(COSTA;
HAIKEL, 2013, p. 62).
D. Mundica também era envolvida com a manifestação do Divino Espírito Santo,
tocando caixa na festa da mãe de Mestre Felipe. Através da entrevista,afirma que gostava de
tambor desde muito pequena, no entanto, no interior de São Vicente Ferrer, criança não podia

27
Depois, a sede muda para a Vila Conceição, no bairro do Coroadinho, onde permanece até hoje.
28
Jornalista, ator, diretor e autor de teatro, foi uma personalidade importante para cultura maranhense e para a
história do teatro do Maranhão. (Costa; Haikel, 2013).
44

participar da dança. Começou a dançar oficialmente com Mestre Leonardo, mas arriscava a
dança, às escondidas, quando pequena:

Olha só, eu vou tedizê uma coisa! Eu, quando era piquena, quando tinha tambô na
casa de Filipe, na casa da avó de Filipe, nós criança: eu, as minhas prima, as
meninas que morava lá na redondeza, nós ia e se juntava na bêra da casa pra dançá.
Eles dançavam lá na ramada, os grandes tocando e nós aqui ficava na bêra da casa
dançando, olhando no buraco da palha! Aí, foi que a gente ia dançando. A gente
reparava lá como elas faziam!(COSTA; HAIKEL, 2013, p.127).

Mestre Felipe herdou de sua avó Nhé Inésia a devoção a São Benedito, que já
realizava festas de promessas em devoção ao santo. Segundo depoimento de D. Mundica,
durante a festa, era realizado o levantamento do mastro de São Benedito com salvas de
Tambor ao Santo, rezas, oferecimento de “joias” que, em um carro de boi, eram representadas
por alimentos (arroz, farinha, azeite, tapioca, etc). Por fim, a festa acabava com a derrubada
do mastro (COSTA; HAIKEL, 2013).
Mestre Felipe fala da devoção que nutriu pelo santo:

P‟que São Binidito de minha avó, „té hoje não apara em casa e não dorme um
sábado em casa. Todo sábado ele tem que ir recebê uma ladainha, seja onde for!
Vem buscá… Eles levam, reza sábado, domingo vem s‟imbora. Se não trouxer
domingo, eles trazem na segunda-feira, p‟que não pode passá a semana fora. Aí, eles
vão levá. Aí terminou, vem pra casa! Quando chega no outro sábado já é outra
pessoa.... É milagroso! São Binidito é milagroso. É booom, Graças a Deus! É um
santo milagroso… é!(COSTA; HAIKEL, 2013, p. 27).

O sotaque tocado pelo Mestre é sem a matraca, específico da Baixada em que está
localizada a cidade São Vicente Ferrer. No entanto, Felipe explica que o toque de tambor se
diferencia nas regiões da Baixada, uma vez que cada uma apresenta um toque específico, com
variações no ritmo que podem ser mais compassados ou acelerados:

Tem muita Baixada aí que é diferente desse pessoal. Oiá é como nóis: São Vicente,
São Batista, Cajapió… é uma Baixada só... um ritmo só. É só um ritmo! [...] Esse
pessoal de Alcântara, já é outro ritmo.[...] É mais corrido. [...] O nosso é o mais
compassado. Mas já tão tuleran‟o. Tem muita gente que tá tuleran‟o. (COSTA;
HAIKEL, 2013, p. 115-116).

Em São Luís,Mestre Felipe se deparou com o sotaque que faz uso da matraca na
brincadeira (COSTA; HAIKEL, 2013, p. 117): “O tambô com matraca… eu não gosto
45

p‟que...lá pra casa, nunca eu vi tocan‟otambôcum matraca![...] Bumba-boi é que eu sei que
tem matraca. [...] Agora, cheguei aqui em São Luís, eu encontrei no boi… no Tambô de
Leonardo […]”. Além de manter no toque do grupo a característica do sotaque de sua região,
Mestre Felipe pedia para que ninguém batesse matraca no Tambor enquanto tocava. Assim,
continuou os fundamentos que aprendeu por toda a sua vida, deixando como herança para
seus coreiros e coreiras um legado de saberes.
A religiosidade e o Tambor de Crioula ainda é um assunto que gera muitas
discussões e pontos de vistas divergentes, no entanto, para Mestre Felipe essa questão era
muito esclarecida, pois cada coisa tinha o seu lugar:

Eu tenho meus incantado! É pra brincá cura, não é Tambô de Crioula! No dia de eu
brincá cura eu vou brincá minha cura, se eu vou brincá meu Tambô de Crioula, eu
vou pro Tambô de Crioula! Tá misturan‟o uma coisa, Mara… Como se diz?
Maribundo com furabundo. Não dá certo! Ou bem uma coisa, ou é outra. Esse é que
é o negócio! (COSTA; HAIKEL, 2013, p. 115).

Segundo a coreira Laís (Laís de Moraes Rego Silva), era evidente a separação que
Mestre Felipe estabelecia entre o Tambor de Mina e o Tambor de Crioula. Apesar de ser
próximo de algumas entidades e de realizar Tambores de Crioula em pagamentos de
promessas nos terreiros, o Mestre não delimitava nenhum tipo de incorporação para os
brincantes do grupo.
A coreira e integrante do grupo Laís Cazumbinha29, como Mestre Felipe gostava
de chamá-la, explica a relação do Mestre com a Mina e os Tambores de Promessas:

Quando o problema de saúde dele começou a se tornar mais grave, ele começou a ter
mais falta de ar, porque ele tinha enfisema pulmonar, né, ele fez tratamento em
alguns, então ele sempre tinha uma relação. Então, de vez em quando era chamado
pra fazer Tambor de Promessa. Eu não sei te dizer se, pra todos esses que a gente
vai, se ele frequentava, ou se ele só tinha relação com algumas entidades. Eu vou te
dar o exemplo do Maiobão, né, então, lá no Maiobão tem promessa, as entidades
pediram que fosse o Tambor de Mestre Felipe que fosse pra lá. Quando a filha de
santo da casa ficou com a incubência de fazer uma festa do Tambor de Crioula de
Promessa pra São Benedito, uma das entidades que é “Manezinho Bogi Boá” da
família légua, ele pediu que fosse o Tambor de Mestre Felipe, entendeu? (Laís de
Moraes Rego Silva).

29
Segundo a coreira, foi a primeira mulher a ser Cazumbá no Boi-Meu-Boi de Santa Fé. Isso gerou uma
resistência de Mestre Felipe que fez com que, a pedido de Zé Olhinho,a mesma pedisse autorização a seu esposo
Sergio Costa para dançar no Boi.
46

Devido ao agravamento de seu estado de saúde, Mestre Felipe ficou internado na


UTI de um hospital público em São Luís e faleceu no dia 18 de julho de 2008, com
complicações respiratórias e insuficiência cardíaca. Mestre Felipe foi um grande ícone da
cultura popular maranhense e referência para o Tambor de Crioula, tendo a oportunidade de
representar o Estado do Maranhão por diversas cidades brasileiras e, inclusive, outros países.
Um mês antes de sua passagem, foi homenageado pelo grupo Afro-reggae no Rio de Janeiro.
Mestra Roxa relata o momento do enterro de Mestre Felipe:

Quando ele faleceu, quando ele chegou no hospital teve uma roda de tambor na casa
dele. Ele foi enterrado no interior dele em São Vicente de Ferrer. Quando nós
chegamos em São Vicente de Ferrer, tinha vários tambores, vários, muitos, para
receber ele, né? Menino se eu te contar filho de Deus, eu dancei tambor a noite
toda... “Na vila de São Vicente rádio fala toda hora, na vila de São Vicente rádio fala
toda hora, boieiro eu vou me embora, boieiro eu vou me embora, boieiro eu vou me
embora, boieiro eu vou me embora, quando eu canto essa cantiga, boieiro eu vou
me embora, meu coração dá uma dor, boieiro eu vou me embora, eu me lembro de
Felipe, boieiro eu vou me embora, que Jesus Cristo levou, boieiro eu vou me
embora”.(Maria da Graça Belfort).

Com a partida do mestre, houve mudanças e transformações significativas no


grupo. Laís explica os primeiros direcionamentos tomados pelo grupo:

Com a morte de Seu Felipe a gente teve um momento de crise grande no tambor,
porque Seu Felipe não deixou um segundo, ele deixou essa tarefa pro grupo né.
Então assim, a referência do grupo de organização era Sergio, né, só que Sérgio não
é o mestre do tambor, então isso a gente foi esclarecendo aos poucos para que os
mais velhos começassem a perceber que a gente tinha que ter um mestre do Tambor
né.[...]Sérgio era sim a referência era liderança na parte de organização e
estruturação do grupo né, então seu Felipe não deixou, não deixou, isso foi um
momento de crise, até que a gente foi tendo assim o feedback de Tomás e de Militão
né, né. E aí a gente não teve critério para escolher um mestre, foi quando nós
decidimos, o grupo decidiu também que seriam eles dois, então nós temos dois
Mestres no grupo, né, dois Cabeceiras como a gente fala, então que é Militão e
Tomazinho, né.[...]Tomazinho sempre foi um cara muito querido por seu Felipe,
mas em compensação ele não toca e só canta, daí a gente decidiu que seriam eles
dois.(Laís de Moraes Rego Silva).

Três anos após o falecimento de Mestre Felipe, sua companheira D. Mundica


faleceu no ano de 2011 com enfisema pulmonar, após ter ficado internada em um hospital
público na cidade de São Luís. Novamente, há a necessidade de um reajuste e recuperação
com a perda das duas grandes referências do Tambor de Crioula para o grupo, personalidades
estas que muito contribuíram para o Tambor de Crioula no Maranhão. A coreira Laís explica
47

como o grupo se reorganizou após a partida de D. Mundica, que foi e ainda é uma grande
referência para as mulheres que dançam:

Com a morte de D. Mundica aí foi que as coisas foram se configurando, aí foi que as
coisas foram se configurando, Roxa foi tomando mais à frente, D. Estela também
com essa questão das roupas, da escolha de tecidos, Seu Felipe sempre chamou D.
Estela para isso, isso sempre foi atribuição dela, entendeu.[...] Então, a gente tinha
essas quatro figuras Maria Ribamar foi ficando mais afastada, ela foi embora para o
interior, ficou doente, né, ela esteve muito presente na transição entre a morte de Seu
Felipe e a morte de D. Mundica. Ela morou na época lá com D. Mundica, então ela
esteve muito presente fazendo companhia para D. Mundica. E aí com a morte de D.
Mundica, Maria Ribamar também foi se afastando aos poucos. E aí foi se
configurando isso, de forma que a gente tem duas pessoas. Marizinha também foi
embora para o interior e a gente ficou com duas pessoas Roxa e Dona Estela, que
são as duas Cabeceiras que a gente tem hoje. Então se as pessoas perguntarem a
gente vai dizer que tem dois Cabeceiras homens, Tomazinho e Militão e duas
Cabeceiras Mestra Roxa e D. Estela. (Laís de Moraes Rego Silva).

No processo de reconfiguração do grupo, Zé Raimundo30 passa a assumir as


funções de coordenação e se torna fundamental para a continuidadedo grupo. Além de ocupar
uma importante função na brincadeira, por entender de questões administrativas, é
responsável pela parte burocrática de inscrição nos editais de apresentações oficiais,
negociação de cachês (apresentações privadas) e na articulação de transporte e alimentação
com os donos de festas (participação em Tambores de Promessas31). Durante a brincadeira, Zé
fica atento a todas as necessidades que possam surgir, que variam de problemas técnicos com
equipamentos de som a servir água e bebidas aos brincantes. Após a apresentação, Zé é o
responsável por providenciar o pagamento de cada brincante, em dinheiro ou depósito em
conta.
No ano de 2015, após ingressar no grupo de Tambor de Mestre Felipe, pude
perceber que todas as questões burocráticas do grupo eram tratadas com muita transparência.
Aconteciam reuniões, de tempos em tempos, para informar os brincantes do calendário de
apresentações, pontuar questões referentesà entrada de novos integrantes, resolver pendências

30
José Raimundo dos Anjos, filho caçula de Seu Felipe e D. Filomena dos Anjos, nasceu em São Vicente Ferrer
e migrou para São Luís no intuito de dar continuidade a seus estudos. No ano de 2003 assumiu funções da
coordenação do grupo e, hoje, é o responsável pela continuidade dos trabalhos desenvolvidos pelo pai,
dedicando parte de sua vida ao grupo Tambor de Crioula União de São Benedito. Assumiu a casa de Mestre
Felipe, mudando-se para morar na mesma, de modo a evitar que fosse vendida pelos familiares de Seu Felipe,
garantindo o funcionamento das atividades culturais na sede do grupo.
31
Às vezes o grupo recebe cachê para apresentação em Tambores de Promessas, outras vezes, apresentam
gratuitamente com o dono da festa, custeando a alimentação e o transporte dos participantes.
48

de pagamentos – no caso desse último item, eu sempre ficava impressionada com tamanha
organização. A diretoria que, nesta época32 era composta por Zé Raimundo como tesoureiro e
Sergio Costa como presidente, preparava um slide com o valor do pagamento de cada
brincante e justificava,para todos os participantes, o motivo pelo qual os brincantes cabeceiras
recebiam um valor maior − relacionado com o tempo de participação no grupo e suas
contribuições na condução da brincadeira. Todas as decisões são estabelecidas em assembleia,
de maneira democrática,todos têm fala e voz para decidir os assuntos do grupo em coletivo.
Esse formato de organização se apresenta de forma extremamente eficiente e transparente
para os integrantes do grupo. No entanto, é possível perceber como tais funções de
organização desgastam aos que estão à frente desta tarefa. Pude perceber a luta constante de
Zé Raimundo e Sergio Costa em manter a união do grupo, perante a um cenário de descaso e
desrespeito por meio dos editais do Estado que muito solicitam e pouco oferecem em troca:

Por parte dos grupos, reportaram críticas e insatisfações acerca do apoio intermitente
e precário das gestões públicas locais; lamenta-se sobre a decadência da tradição;
constata-se em certos casos a criação indiscriminada de novos grupos visando
apenas à obtenção do estipêndio oficial. (RAMASSOTE, 2006, p. 33).

Para este caso, temos o claro exemplo do que vem acontecendo com o Tambor de
Mestre Felipe e as medidas das políticas públicas. Desde o ano de 2016, pude presenciar a
existência de um grande rigor nas exigências para a inscrição dos grupos de Tambor de
Crioula em programações festivas de São Luís, fomentadas pelo governo. Taismedidas
acontecem em total desarticulação com os Tambores de tradição, onde a maioria dos
integrantes não possuem aptidões necessárias para retirar o CNPJ do grupo e inúmeras
documentações burocráticas, o que acaba por impossibilitar a participação dos grupos
tradicionais na programação da cidade.
Em momento algum são valorizados os saberes dos mestres, mestras e brincantes
da manifestação, pelo contrário, acima de qualquer item, é exigido que se apresente uma
empresa ou vínculo com uma associação para a efetivação do credenciamento nos editais do
Estado. No ano de 2016, no período de credenciamento para integrar a programação de
apresentações no São João, o Tambor de Mestre Felipe teve grandes dificuldades para retirar a
certidão negativa do CNPJ e conseguir entregar a documentação no prazo exigido pela antiga
32
A nova diretoria tem Zé Raimundo, enquanto tesoureiro do grupo, e Mestre Militão, como atual presidente.
49

SECMA – Secretaria do Estado e da Cultura do Maranhão, não ficando fora do calendário


festivo por pouco. No ano de 2017, o grupo foi vetado em primeira instância para o
credenciamento do edital que compôs a programação do Carnaval, por apresentar como
membro representante do grupo o coreiro Sérgio Costa que ocupa um cargo de funcionário
público − professor na rede pública de São Luís. Através das novas interpretações dos
funcionários do Estado de uma clausura do edital, que permaneceu com a mesma estrutura
dos anos anteriores, um grupo antigo e de tradição foi vetado de compor a programação
oficial de São Luís. Após uma reunião com os responsáveis pela SECTUR - Secretaria de
Cultura e Turismo do Estado do Maranhão, o grupo foi contemplado com apenas uma
apresentação, assim como outros cinquenta grupos de Tambor de Crioula.
Segundo os relatos dos brincantes, alguns grupos se apresentam apenas nas datas
festivas, com fomento do governo, e durante o ano todo deixam de existir. Começa-se, então,
a se formar empresas culturais, que apresentam toda a documentação necessária para o
credenciamento nos editais, no entanto, não há fundamentos em tais grupos − não
desenvolvem atividades regulares, não se encontram para estabelecer vínculos entre os
brincantes e nem desempenham atividades nas comunidades em que estão inseridas. Isto
reflete na brincadeira, que se torna técnica aos olhos do expectador, como se fosse algo
profissional, mas sem emoção ou afeto entre seus integrantes.
É no sentido da afetividade desenvolvida entre os brincantes do Tambor de
Crioula União de São Benedito, que o grupo apresenta um diferencial quando se apresenta,
seja em uma apresentação oficial ou em uma apresentação informal. É possível perceber uma
atmosfera de respeito e alegria entre os brincantes, herança essa deixada por Mestre Felipe e
D. Mundica. A coreira Danira expõe como se manteve os fundamentos do Mestre no Tambor:

Mas é assim o gostoso é que até hoje e mantido o mesmo ritmo, né, não se
acrescentou nada, por exemplo, a matraca, até hoje, não era usada por ele na época.
Até hoje foi se mantido também o não usar a matraca no Tambor, eu acho que isso é
bem marcante também, e manter também as músicas que Mestre Felipe deixou.
(Danira da Silva Costa).

Quando eu ingressei no grupo, em 2015, encontrei-o num momento de


reestruturação e adaptação após a partida dos Mestres. Mesmo não tendo os conhecido em
vida, conheci os diversos fragmentos presentes em cada integrante, presente nos corpos, nas
50

falas, no toque, na dança, no canto, na nostalgia das lembranças vivas em cada um. Não posso
dizer que não conheci Mestre Felipe e D. Mundica, pois os conheci em fragmentos,
distribuídos em cada integrante do grupo. Posso até dizer que sou fruto de suas reverberações,
que são zeladas com carinho pelos os que tiveram mais proximidades com os Mestres e que
foram transmitidas com muito amor e cuidado. O meu corpo é o resultado do legado da dança
que D. Mundica nos deixou.

1.3. CANTOS DE TRABALHO EM VISEU/ PORTUGAL: UM CANTO DE


LEMBRANÇAS

Em Portugal, a tradição das vindimas é uma forma manual da produção de


33
vinhosem grandes propriedades, mais conhecidas como “quintas” , onde todas as etapas
eram realizadas por trabalhadores do campo. Para os trabalhadores, a época de vindimar que,
normalmente acontecia no período entre julho a outubro, era um acontecimento de interação e
socialização com outras pessoas, principalmente quando o percurso de deslocamento seguia
para outras regiões. Durante todas as etapas de feitura dos vinhos, os cantos de trabalhos
estavam presentes como forma de estimular, divertir e aliviar a dureza do labor.
A pesquisa etnográfica aconteceu na Associação de Passos de Silgueiros, ao norte
de Portugal, e foi conduzida pelo etnógrafo e folclorista António Lopes Pires. A Associação
de Passos de Silgueiros (Assops) é um espaço voltado para atender a comunidade de
Silgueiros, com diversas atividades: assistência a jovens através de atividades culturais,
atendimento aos idosos da região com repouso temporário e integral, serviços de cantina
solidária, doações de refeições para os moradores da região, além de apresentar um rico
museu etnográfico, construído pelo próprio fundador Lopes Pires e sua assessora Maria Odete
Madeira. O museu é composto por uma biblioteca com um acervo de obras portuguesas
etnográficas e peças etnográficas que retratam os costumes e a cultura portuguesa.
Durante a pesquisa, não foi possível participar nem acompanhar da prática das
vindimas, uma vez que a alteração das condições climáticas na região antecipou o processo de
colheita. Portanto, contamos apenas com relatos de experiência dos entrevistados.

33
Nomenclatura utilizada para designar propriedade agrícola, conhecida por nós como fazenda.
51

Trataremos do assunto utilizando verbos no passado, pois, atualmente,as


produções de vinhos em grandes propriedades são realizadas através de processos mecânicos.
O processo manual ainda pode ser encontrado em pequenas propriedades e voltado para
consumo próprio. A pouca quantidade de uvas não permite a realização dos procedimentos de
forma tradicional (passando por todas as etapas na feitura de maneira manual).
O trabalho no campo era árduo e poderiam durar semanas, dependendo do
tamanho da quinta e da casta de uvas. O grupo de trabalhadores era composto por homens e
mulheres, pertencentes a uma classe social muito baixa, que enfrentavam as altas
temperaturas do verão rigoroso da região do Douro. Muitas vezes se deslocavam a pé até o
destino do vindimar, levando horas ou até mesmo um dia inteiro para chegar ao local (REIS,
2010).

Imagem 05 – Mulher na colheita das vindimas

Fonte: Acervo de Lopes Pires, 2012.

O processo tradicional das vindimas apresentava etapas da poda ou colheita e a


pisa das uvas. Durante a colheita, era o momento estar no campo, onde com o uso de uma
tesoura, cortava-se de forma rápida e certeira para evitar o desperdício de uvas. Em seguida,
52

as mesmas eram levadas para o lagar. Neste deslocamento, encontramos uma variação dos
procedimentos realizados na região do Douro para a região do Dão. Exemplificando esta
variação, utilizaremos o relato34 de Lopes Pires35:

No Douro, os homens levavam as uvas nas costas, cestos com aproximadamente


50 kg presos por uma vara, e para animar o esforço a frente ia uma concertina. Aqui
no Dão não, as uvas eram deitadas para gamelas, que eram recipientes de madeiras
com o fundo pequeno e a boca era alargada. As gamelas eram transportadas a cabeça
das mulheres.(António Lopes Pires).

Seguiremos então com o procedimento adotado na região do Dão. Uma vez


colhidos, os cachos de uvas eram despejados em gamelas, que eram levadas na cabeça pelas
mulheres e despejadas nas dornas (carroças específicas para o trajeto das uvas levadas por
bois), por fim, as uvas eram despejadas no lagar. O lagar era um tanque que comportava as
uvas, geralmente, em um espaço fechado no porão da casa ou sala específica para este
procedimento. No lagar também era feita a etapa de pisas das uvas, atividade realizada
normalmente por homens. Os quilos de uvas, que poderiam chegar a um metro de
profundidade, alcançam a cintura dos homens na sua árdua tarefa de extrair o suco com o
atrito dos pés. Como finalização do processo de feitura dos vinhos, o mosto das uvas (suco
extraído pelo processo da pisa) era conservado em barris para a fermentação do vinho,
chegando ao produto final.
Segundo Lopes Pires, dentre as manifestações culturais que se iniciaram no
campo, os cantos de trabalho contribuem de forma significante para a cultura portuguesa
atual, sendo mantida e ressignificada por grupos, ranchos folclóricos e por adaptações
contemporâneas eruditas. Os cantos de trabalho surgem como meio de amenizar o sofrimento
e tristeza do trabalho duro, como estímulo de ânimo para os afazeres mais difíceis, bem como
para festejar e socializar, nos momentos de descanso e lazer dos trabalhadores. Lopes Pires
explica como surgiram as canções na tradição das vindimas e como desencadeou a
popularização destes cantos para o povo português:

Nas vindimas se cantava músicas de trabalhos, e também se cantava muitas vezes


aquilo que o povo chamava rimance, ou rimansus, ou romances. Que eram histórias,

34
Não faremos nenhum tipo de correção para a linguagem formal em nossas descrições, como forma de manter a
informalidade acolhedora pela qual fomos recebidos, por todos os entrevistados.
35
Etnógrafo e fundador da Associação de Passos de Silgueiros.
53

muitas vezes retiradas das cantigas dos ceguinhos, que andavam pelas feiras a cantar
a troco de uma esmola. Cantigas essas que contavam uma história, contava um
romance. Normalmente para poderem vender, tinham impressos na tipografia, em
um folheto, uma folha, e neste folheto tinham as quadras, e essas histórias contavam
desgraças[...]. (António Lopes Pires).

Segundo Lopes Pires, os cantos de trabalho acompanhavam as etapas de colheita e


a pisa de uvas. Na colheita, um dos cantos era a capela de vozes femininas − a tarefa da poda,
geralmente, era protagonizada por mulheres −, enquanto os homens eram responsáveis por
levar os cestos de uvas ao lagar36e por realizar a pisa das uvas (os homens se ocupavam das
funções que “exigiam” esforço físico, força). O canto dos homens tinha maior predominância
na pisa das uvas, onde se cantava o “desafio”, quadras versadas pelos homens durante a pisa.
A complexidade deste canto está na improvisação constante, o que não permitia que houvesse
pausas ou momentos de silêncio, podendo durar horas sem interrupções. No canto ao desafio
era possível observar a presença, segundo Lopes Pires, de instrumentos que serviam também
como estímulo, pois esta etapa exigia grande esforço físico e levava muito tempo para ser
realizada, sendo comum a presença do acordeon, do bumbo e até mesmo da gaita.

36
Procedimento típico da região do Douro, exemplo este já citado anteriormente no trabalho.
54

Imagem 06 – Homens na pisa de uvas

Fonte: Acervo de Lopes Pires, 2007.

Os cantos de trabalho apresentam como temas o trabalho, o amor e a religião. No


primeiro tema, trabalho, contamos com a exemplificação de Nunes (1978, p. 48): “Os
próprios trabalhos do campo são cantados pelo povo enquanto neles participam; aparecem
várias alusões às lavras[...]”, sendo comum a descrição das atividades realizadas no campo,
com algum tipo de referência dramática ao sofrimento e a dureza no labor. Como
exemplificação, utilizaremos trechos do canto de trabalho recolhido na Associação de Passos
de Silgueiros, com as cantadeiras D. Maria Paixão de Jesus Santos e D. Maria Alice Costa
Ferreira37:

Fui ao Douro às vindimas


Fui ao Douro às vindimas, ai,ai.
Não achei de vindimar,
Vindimaram-me as costelas
Olha o que eu lá fui ganhar.

37
Ambas são cantadeiras e trabalhadoras do campo aposentadas.
55

O tema amor também é outro gênero musical português. Através dele canta-se a
despedida e a dor da distância causada pela separação, por motivos terceiros como trabalhos
em alto mar, serviços militares, etc. De acordo com Nunes (1978, p. 32) “a poesia de carácter
amoroso é um filão aurífero e inesgotável, com predomínio incontestável nas produções da
tradição oral popular”.
O tema religioso faz alusão às crenças do lirismo português na devoção e
exaltação a seres divinos, portanto, pode-se perceber o forte apelo ao catolicismo, ainda
predominante em Portugal. “Através das cantigas observa-se que a devoção popular se centra
em Jesus Cristo e na Virgem” (NUNES, 1978, p.59). Em referência ao tema religioso,
citaremos o canto “Nossa Senhora da Guia”, recolhido durante a pesquisa de campo na
Assops e cantado pela assessora da associação e ex-integrante do Rancho Folclórico de
Silgueiros, Maria Odete Nunes Madeira. Pode-se perceber a presença de dois temas, o amor e
a religião, sendo o tema religioso mais marcante em suas quadras.

Nossa Senhora da Guia ou ai,


Nos venha esperar ao rio,
Sou rapariguinha nova, posso ter algum desvio.
Posso ter algum desvio ou ai,
Posso ir cair ao mar,
Nossa Senhora da Guia nos há de acompanhar.
Nos há de acompanhar ou ai,
As margens do rio Dão,
Que não livrou meu amor quando for a inspeção.
Quando for a inspeção ou ai,
Quando for inspecionado,
Nossa Senhora da Guia livrai o meu namorado.

A presença da mulher ganha espaço em funções que, normalmente, são destinadas


a homens − trabalhos que exigiam mais esforços − pela necessidade de obter maior autonomia
financeira, pois os homens recebiam mais por realizarem a tarefa da pisa. Em entrevista com
as três cantadeiras e moradoras da instituição38, Maria Alice, Maria Paixão e Cidália39, todas
afirmam terem deixado o estudo, ainda muito novas, para se dedicarem ao trabalho no campo
e atender as necessidades financeiras da família. D. Maria Paixão afirma ter participado da
árdua pisa das uvas para poder ganhar um pouco mais no trabalho das vindimas: “Eu saí da

38
Associação de Passos de Silgueiros abriga idosos trabalhadores do campo, em tempo parcial e integral.
39
Cidália Rodrigues Almeida, cantadeira e trabalhadora do campo aposentada.
56

escola com onze anos, e logo fui trabalhar para ganhar tanto quanto as mulheres mais velhas,
e isso veio a ser toda minha vida[..]”.

Imagem 07 – Cantadeiras de Passos de Silgueiros

Fonte: Foto de Doroti Martz, 2015.

De acordo com Lopes Pires, a mulher na região do Dão sempre foi muito
sacrificada no trabalho, realizando funções que muitas vezes o homem não realizava por
serem denominadas como “coisas de mulher” – por exemplo, buscar água na fonte utilizando
grandes jarros levados à cabeça, função vergonhosa para os homens. No canto é possível
observar, através de suas letras, indício morais que julgam e determinam a conduta da mulher
do campo, induzindo a mesma a “se preservar. Essa atribuição de conotação moralistapode ser
percebida a seguir na quadra da música “Ó adro da macieira”, canto recolhido através das
três cantadeiras mencionadas anteriormente:

Ó macieira do adro,
Ó adro da macieira.
Ó i ó ai se te deixes abanar,
Se te deixas abanar,
Já não achas quem te queira.
57

Sobre a menção da presença da mulher nos serviços rurais, em minha última


entrevista, realizada na região de Celeirós, tive acesso a D. Deolinda André Flamino40 que
levou uma de suas quintas para demonstrar os trabalhos desenvolvidos de forma autônomapor
ela. Com o auxílio de cinco funcionárias para as práticas rurais da azeitona e das vindimas, D.
Deolinda participava de todas as etapas do trabalho rural e as administrava anualmente em
suas cinco quintas.
Em seu relato afirmou realizar as tarefas sem grandes dificuldades: “Eu faço isso
como se costuma a dizer com os pés nas costas, não tenho problema nenhum de resolver os
assuntos, não me mete isso obstáculos. Eu viro-me de qualquer maneira, não tenho problema
porque sou sozinha. Não, não tenho problema nenhum”. Através de seu relato, associado ao
depoimento das três cantadeiras também trabalhadoras da terra ao norte de Portugal, é
possível destacar não só a importância que essas mulheres disponibilizam para o
desenvolvimento da cultura vinícola do país, como também contribuem enquanto memórias
vivas nos saberes dos cantos de trabalhos portugueses.

1.3.1.UMA NOVA ROUPAGEM: O ESTADO E OS CANTOS DE TRABALHO

Com a implantação do Estado Novo em Portugal, no período de 1933 a 1974, as


políticas de apoio ao trabalho ruralista foram adequadas ao plano cultural próprio,
conservador e modernista do governo de Salazar. Dentre as veias ideológicas contidas neste
plano estão:

1) o nacionalismo autoritário (dos segmentos republicano presidencialista e


conservador radical); 2)o catolicismo conservador ( incluindo o integralista e
democrata-cristão); 3) o integralismo lusitano, com uma grande afinidade ideológica
à Action Française e tido, por vários autores, como uma variante nacional do
fascismo; 4) a doutrina fascista; 5) um certo modelo desenvolvimentista. (MELO,
2010, p. 14).

Tais veias ideológicas serviram como base de uma política conservadora e


excludente, onde os avanços propostos foram em benefício do próprio Estado. Como
segmento ideológico do estado autoritário, foram alteradas as relações ruralistas em favor do
desenvolvimento deste setor. A cultura e os costumes tradicionais sofreram um tipo de
40
Proprietária e administradora de cinco quintas na região de Celeirós, norte de Portugal.
58

espetacularização através da catalogação destas manifestações, criação de acervos e


bibliotecas nacionais que passam a servir como plano político na projeção nacionalista.
No setor rural, outras iniciativas privadas contribuíram para a implantação de
recursos tecnológicos. Na citação a seguir, observamos os incentivos realizados no setor
agrário:

Programas que visavam um amplo espectro de acções, nomeadamente: infra-


estruturas agrícolas; apoio às explorações agrícolas; floresta, investigação e
desenvolvimento, formação e educação, organização e estudos estratégicos;
transformação e comercialização de produtos agrícolas. (PEREIRA, 2004, p. 9).

As modificações estipuladas pelo governo de Estado Novo e as necessidades de


expandir a comercialização dos produtos, acarretaram em transformações na cultura do campo
e no manuseio do trabalho rural, em virtude das exigências da qualidade do produto final.
Uma vez que a nacionalização começa a projetar Portugal para outros países, o interesse
estrangeiro nos produtos e na cultura tornam-se evidentes para a ascensão deste plano como
forma de mostrar as qualidades do país, recuperando a autoestima que havia sido afetada
drasticamente pela crise econômica de 1929.
Neste contexto, é possível perceber o motivo pelo qual os cantos de trabalhos
estão ausentes das práticas do campo nos dias de hoje. A utilização de máquinas e outros
processos avançados provocaram a diminuição gradativa dos procedimentos manuais,
atingindo as manifestações culturais que acompanhavam essas práticas, ou seja, a quase
extinção dos cantos de trabalhos na produção de vinhos.
Na propagação da cultura, a presença de António Ferro marca uma nova tendência
na cultura portuguesa, uma vez que este foi o criador do Secretariado da Propaganda Nacional
(SPN) em 1933, através do ditador António de Oliveira Salazar. A missão da SPN foi referir-
se apenas a tudo o que fosse nacional, construindo uma política cultural como imagem do
regime nacionalista. Para esta missão, utilizavaas manifestações nacionais e festas públicas
como meio educativo para servir a propaganda,além dos meios de comunicação como forma
de divulgação. A censura também se fez presente na política de propaganda, vetando
quaisquer que fossem os assuntos que não estavam relacionados ao nacionalismo ou aos que
contestavam plano político nacional.
59

No regime nacionalista de Ferro, um de seus planos mais ousados para a política


ditadora em Portugal foia implantação do nacionalismo extremo português, que previa “[...]
integrar aos portugueses no pensamento moral que deve dirigir a nação, enquanto
complemento indiscutível obra de ressurgimento. A esta missão chamará Ferro de política do
espírito” (MELO, 2010, p. 24). Este plano político resultou em uma nova configuração da
cultura portuguesa.
A Política do Espírito resgatou a cultura tradicional portuguesa e promoveu a
visibilidade de obras de arte, em caráter nacional e no exterior, agrupando informações e
conteúdos acerca da cultura nacional e classificando os costumes das tradições por regiões.
Seu objetivo é promover o nacionalismo e a cultura como propaganda do regime. Um dos
planos mais marcantes de Ferropara a elevação da cultura foi o “surgimento do projeto-síntese
dos cursos e conferências da cultura popular” em 1947. O projeto foi malogrado, no entanto, é
importante ressaltar a tentativa de estabelecer uma “alta cultura”, que previa a ascensão das
sínteses por meio de estudiosos da cultura popular, resultando em uma divulgação oral por
meio de conferências. (MELO, 2010, p. 25).
Outra modificação na cultura, através da Política do Espírito, se deu na
classificação dos grupos tradicionais, dos fatos41 específicos de cada região e os tipos de
danças e músicas que seriam cantadas por região, dando início aos grupos conhecidos como
Ranchos Folclóricos Portugueses. Tal medida foi utilizada para a projeção desses grupos de
forma a ser mais bem aceita pela sociedade burguesa e aos mais abastados, ou seja, estes
grupos ganharam uma roupagem mais “atrativa e saudável”.
A problemática desta situação está na construção de uma atmosfera
completamente artificial,ao estabelecer padrões para os ranchos folclóricos de cada região que
não condizem com a realidade real de um povo simples, que canta e dança suas dores e
alegrias. Neste caso Lopes Pires exemplifica muito bem a condição da realidade do povo do
campo:

Não há nenhum fato marcado para a vindima, nem nenhum fato marcado para a
missa, não há fatos assim marcados. Então o que há? Há um fato que se usa todos os
dias, e todos os dias é para todos os dias, e até era para o casamento. E por isso,
algumas pessoas tinham que casar de noite, às escuras, de madrugada, para ninguém

41
Nomenclatura utilizada em Portugal para se referir à roupa.
60

os ver. Porque usavam os fatos que traziam todos os dias, pois não tinham outro.
(António Lopes Pires).

Neste sentido, tais transformações estabeleceram padrões para a cultura


portuguesa que não condizem com a realidade de origem de cada manifestação. A utilização
dos Ranchos Folclóricos na projeção de uma cultura atribuiu características que hoje os
identifica, alterando toda a identidade originária dessas manifestações. Como exemplo disto,
temos os cantos de trabalhos das vindimas que foram classificados como cantos do Douro −
região referência de produção dos vinhos, apesar da produção vinícola desenvolver-se por
toda Portugal −, assim como os cantos de sachar milho foram caracterizados como cantos da
região do Minho.
Portanto, a intervenção do Estado modificou a cultura Portuguesa e produziu
estereótipos errados de seu povo, através dos Ranchos Folclóricos. Hoje, as características
específicas das regiões torna possível a identificação de seus apreciadores, através da
indumentária que os grupos utilizam, dos tipos de instrumentos utilizados para o toque e os
cantos de trabalhos específicos.
61

TEATRO DE MEMÓRIAS: TRAJETOS E PROCESSOS EM AÇÃO

Neste capítulo serão abordados os conceitos norteadores deste trabalho, apoiados


no trabalho do ator e bailarino e no contato com suas origens e memórias, com o intuito de
gerar um corpo para a cena com qualidades e potências. Este corpo crível, que é acreditável e
que carrega não apenas uma verdade, mas a verdade pessoal do ator, apresenta enquanto
resultado, uma dilatação deste corpo em energia, que se aproxima ao corpo do brincante
durante a manifestação e o seu ofício do ser e estar na brincadeira.
Para entrelaçar a cultura popular à arte da cena, busco contribuições nos estudos
desenvolvidos por Eugênio Barba.Através das técnicas extracotidianas, é possível investigar o
processo criativo do ator-bailarino na construção do trabalho artístico ou do espetáculo, as
características culturais e pessoais que são potencializadas no espaço do treino, do ensaio e no
trabalho anterior a cena no campo da pré-expressividade.
Através do interesse de compreender o caminho interno do trabalho do ator, é que
recorro aos estudos desenvolvidos por Jerzy Grotowski. Ele revela o conceito do corpo-
memória, que possibilita ao ator buscar, em seu quintal de memórias, técnicas corporais que
apontem caminhos internos para construir e acessar o corpo-presença, através dos impulsos
internos.
A aproximação deste corpo-memória ao corpo brasileiro, nos leva a percorrer a
estrada que a bailarina Graziela Rodrigues traçou em sua pesquisa sobre as danças e
manifestações culturais brasileiras. Na cultura popular, falar do corpo brasileirosignifica falar
de um corpo marginalizado, um corpo que contém uma história, considerando que esses
aspectos estão impressos na dança, no canto e nos gestos destes corpos potenciais.
Em diálogo com esses conceitos é que teço minha própria história corporal. Ela
caminha com a história de outros corpos impressos no meu, onde distintas culturas passam a
caminhar comigo, reverberando nos trabalhos intitulados “Lama” e “Choro da Videira: Um
diálogo Entre Uvas e Vidas”.
62

2.1. PRIMEIROS APONTAMENTOS NO CORPO EXTRACOTIDIANO

No trajeto da organização do trabalho do ator, Eugênio Barba se depara com as


experiências vivenciadas por seus atores no contato com manifestações de distintas culturas.
O intuito de buscar técnicas diferentes das que já possuíam em seus corpos, atribui a seus
atores novos mecanismos corporais, possibilitando a ativação de corpos vivos para a cena.
Barba passa a considerar a experiência em distintas técnicas e culturas, por possibilitarem aos
seus atores o “vestir-se” e o “desvestir-se” desses corpos vivos. Este foi um importante marco
para o diretor realizar os estudos da Antropologia Teatral: “Antropologia Teatral é o estudo
do comportamento cênico pré-expressivo que se encontra na base dos diferentes gêneros,
estilos e papéis e das tradições pessoais e coletivas” (BARBA, 2009, p.25).
Organizada pelo ISTA - International School of Antropology Theatre (Escola
Internacional de Antropologia Teatral), a Antropologia Teatral está pautada no estudo sobre o
ator e para o ator, estabelecendo um olhar atento ao processo criativo e na liberdade do ator-
bailarino. Barba justifica seu enfoque no ator, se opondoà visão do etnocentrismo teatral já tão
utilizada ao longo da história do teatro:

É o etnocentrismo que observa o teatro do ponto de vista do espectador, isto é, do


resultado.Omite-se assim o ponto de vista complementar: o processo criativo de
cada ator e o conjunto do qual toma parte, com toda a rede de relações,
conhecimentos, maneiras de pensar e adaptar-se do qual o espetáculo é fruto.
(BARBA, 2009, p. 27-28).

A Antropologia Teatral impulsiona o estudo do “comportamento pré-expressivo


do ser humano em situações de representação organizada”(BARBA, 2009, p. 26). Isso resulta
no conceito de técnicas extracotidianas, responsáveis por atribuir, através do trabalho físico
do ator, um corpo crível para a construção de uma presença cênica que seja capaz de atrair a
atenção do espectador. Em linhas gerais, o que diferencia ambas as técnicas é que a técnica
cotidiana preza pelo esforço mínimo com o intuito de economizar o uso de energia do corpo,
enquanto a técnica extracotidiana funciona ao inverso, se utiliza do máximo de energia interna
para um resultado mínimo.
É importante destacar que a técnica extracotidiana se distancia da técnica virtuosa
para a cena por propiciar a comunicação. A técnica virtuosa propicia o distanciamento e o
63

assombro. As técnicas extracotidianas tecem um caminho de construção energética corporal,


resultando em um estado de presença cênica. Podemos compreender os caminhos construídos
através da pré-expressividade para a cena:

A pré-expressividade é, portanto, o alicerce do trabalho do corpo extracotidiano,


pois é nesse nível que o ator busca treinar uma maneira operativa, técnica e orgânica
de articular tanto suas ações físicas e vocais no espaço como, e principalmente, sua
dilatação corpórea, sua presença e manipulação de energias. (STELZER,
2010, p. 64).

O termo “Energia”, utilizado por Barba, é responsável por atribuir qualidades


extracotidianas e tornar o corpo do ator um corpo crívelpara a cena, em que a palavra
propriamente dita apresenta, enquanto definição etimológica, o sentido de “estar em
trabalho”.
A busca do ator em ativar essa energia, que gera presença através das técnicas
extracotidianas, é apontada em diversas culturas com o objetivo de estar presente e de gerar
vida para o ator em cena. Para Barba (2009, p. 37), “a vida do ator baseia-se, na realidade, em
uma alteração do equilíbrio”, onde o equilíbrio é a “capacidade do homem de manter-se ereto
e de mover-se desse modo no espaço - é o resultado de uma série de inter-relações e tensões
musculares em nosso organismo”. O equilíbrio instável do ator permite que as tensões
internas construam a energia do corpo-presença para a cena.
No estudo de Barba, o corpo cênico dilata-se através de esforços internos para
construção de uma energia que gera presença. Ao mesmo tempo, o corpo é atravessado por
experiências transculturais em suas técnicas e vivências, o que se aproxima do estudo que
propomos, compreender a construção de um corpo para a cena que é fruto de distintas culturas
e experiências, que podem se configurar enquanto técnica pessoal.

2.2.CORPO E MEMÓRIA NA BUSCA DAS RAÍZES ANCESTRAIS

Ao debruçar-me na observação de corpos que carregam suas histórias, em seus


gestos, movimentos e vozes, é que percebi a sutileza de sermos resultados de memórias. A
memória de nosso antepassados, a memória de nossas vivências, escolhas, caminhos, resultam
em nossa história no presente, e possivelmente no futuro. A brincante Rosa Reis (Rosangela
64

de Jesus Santos Reis) exprime bem essa memória presente em nossas ações: “o teu corpo ele é
um corpo que ele vai dançar, né, de acordo com a tua vida, ele é um resultado de tudo que tu
faz, né, então teu corpo ele tem isso, então ele tem a vivência, né, e essa vivencia que tá junto
naquele momento da dança”. Somos frutos de memórias.
No campo teatral, a memória está presente no trabalho do ator, apontada
inicialmente por Constantin Stanislavski no conceito de memória afetiva e que logo se
tornaria a memória emotiva. A memória, a partir da perspectiva de Stanislavski, servia ao ator
como mecanismo para a construção da personagem, ou seja, servia então a obra. A pedagogia
desenvolvida pelo mestre seguia no intuito de revelar a “verdade cênica”, que propõe ao ator
recordar ocasiões vivenciadas em sua vida que lhe proporcionaram emoções específicas para
que possam ser “reconstruídos estímulos sensoriais que provocaram essas sensações” (DIAS,
2013).
O trabalho sobre a memória emotiva inicia uma importante vertente que
Stanislavski nos deixou de herança, no teatro por si mesmo, oportunizando o protagonismo do
trabalho do ator. A partir da perspectiva de Jerzy Grotowski, este estudo tomou outra
proporção aose aprofundarno ator, no processo impulsionado a partir da busca interior do ator,
que resulta na cena.
Como primeiro ponto de investigação, Grotowski aponta a memória como solo
fértil de estudo para o ator:

O corpo não tem memória, ele é memória. O que devem fazer é desbloquear o
“corpo-memória”. Se começam a usar detalhes precisos nos exercícios “plásticos” e
dão comando a vocês: agora devo mudar o ritmo, agora devo mudar a sequência dos
detalhes etc., não liberarão o corpo memória. Justamente porque é um comando.
Portanto é a mente que age. Mas se vocês mantêm os detalhes precisos e deixam que
o corpo determine os diferentes ritmos, mudando continuamente o ritmo, mudando a
ordem, quase como pegando os detalhes do ar, então quem dá os comandos? Não é a
mente nem acontece por acaso, isto está em relação com a nossa vida. Não sabemos
nem mesmo como acontece, mas é o “corpo-memória”, ou mesmo o “corpo-vida”,
porque vai além de nossa vida. (FLASZEN,2010, p. 173).

Para Grotowski, o passado é um terreno potente e é, através dele, que o ator se


conecta com uma “corporeidade antiga, que podia ser de si mesmo, de um conhecido, ou um
ancestral”(DIAS, 2013, p. 99). Ao acessar essa memória corporal, o ator ativa aquilo que será
fundamental para o estudo de Grotowski, o impulso. O trabalho do ator está relacionado com
o conceito de intenção, do qual podemos defini-lo como “algo que se passa a um nível
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muscular no corpo, e que está conectado a um objetivo fora de si” (RICHARDS apud
BURNIER, 2009, p. 39), ou seja, está relacionado com uma ação interna que parte para o
externo. Portanto, o impulso é o que conduz o desejo, a motivação ou ainda a intenção
construída através da energia interna, para o externo, fazendo com que o movimento/ação
possa adquirir forma e presença.
No ano de 2014, participei no Lume Teatro42 da oficina “O corpo Multifacetado”,
ministrada pela atriz Ana Cristina Colla. Trabalhamos técnicas corporais diversas durante,
aproximadamente, seis dias. Dentre as técnicas estudadas, trabalhamos com a dança pessoal
desenvolvida por Luís Otávio Burnier, onde os movimentos externos eram resultados de
impulsos internos. Para cada dia de oficina, retomamos a técnica com o intuito de construir
caminhos que possibilitassem a ativação deste corpo que dança, com seus movimentos
pessoais a partir de impulsos que geram a dilatação deste corpo. No último dia da oficina, os
impulsos internos estavam tão vivos e presentes, que foi possível descobrir um caminho
dentro do meu corpo, permitindo acionar esses impulsos de maneira consciente. Quando
preciso estar presente em meus trabalhos corporais, retomo essa memória de impulsos que se
ativam em meu corpo.
A partir da busca por si, Grotowski vai além na compreensão da esfera do ator. A
partir da conjunção do encontro interior na construção das particularidades, o ator passa a ser
chamado de Performer.O texto “O Performer” (1987), redigido a partir de duas conferências
na Itália, aborda a última etapa de investigações:

Fala sobre o retorno às origens através do trabalho sobre si (ao mesmo tempo de um
retorno às origens para o trabalho sobre si). Ali, Grotowski aponta a corporeidade
antiga, ancestral, como uma via de acesso à criação que estaria dentro de cada um de
nós. Fala que a partir dos detalhes, como a lembrança das rugas, ou da voz distante
de um avô ou mãe, pode-se iniciar uma construção corporal que, em um segundo
momento, pode buscar ou se deparar com uma corporeidade ancestral e
desconhecida.(MATRICARDI, 2017, p. 1769).

“O Performer” foi um marco para um campo de visão mais alargado das noções
do ator sobre si mesmo, onde o diretor explica que: “O Performer, com letra maiúscula, é um
homem de ação. Ele não é um homem que faz o papel de outro. É o atuante, o sacerdote, o

42
Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP, é um coletivo teatral fundado pelo pesquisador
Luís Otávio Burnier, que realiza estudos e pesquisas relacionadas ao trabalho do ator através de uma
metodologia própria.
66

guerreiro: está fora dos gêneros estéticos”(GROTOWSKI, 2015, p. 2). A comparação que
Grotowski estabelece entre o ator e o guerreiro aproxima-o da situação da luta, onde o ator
trava uma batalha pessoal com seu próprio eu, colocando-se diante de seus limites e
superando-os, possibilitando o alcance do comportamento orgânico.
É importante ressaltar que muitos outros conceitos de Grotowski antecedem o
conceito de Performer, do qual irei apresentar. No entanto, seria necessário um fôlego maior
para me debruçar sobre cada um que o antecede e o justifica. Farei então um breve passeio
naquilo que me toca em sua nova descoberta no ator.
Segundo o diretor, o “Performer é um estado do ser”(GROTOWSKI, 2015) que
não está mais atrelado a representar algo no intuito de consolidar um espetáculo, mas de
transformar a si mesmo enquanto ofício teatral e individual. O conceito de Performer
perpassa um caminho já trilhado e muito explorado por Grotowski,o ritual. Entretanto, nesta
etapa de sua investigação, recebe uma nova perspectiva:

Ritual é performance, uma ação realizada, um ato. Peças, apresentações, espetáculos


são rituais degenerados; ritual é um tempo de grande intensidade; intensidade
provocada; quando a vida torna-se ritmo. Ritual é a palavra que assombrava
Grotowski desde o início de seu trabalho teatral. Em seus espetáculos, foi muitas
vezes acusado de tentar criar novos ritos para a plateia. No Parateatro, críticos o
atacaram por tentar criar um ritual público e, no Teatro das Fontes, por apropriar-se
de rituais de culturas tradicionais. Em sua última fase de investigação, Artes Rituais
ou Arte como veículo, ele encontra a maneira de articular, em palavras e na prática,
sua relação com ritual: ritual é ação e o Performer é um atuante. (SLOWIAK, 2013,
p. 127).

A “arte como veículo” propicia um ato de transformação do indivíduo, passando


por etapas de investigação que, se servem do ritual de Grotowski, para encontrar mecanismo
de transformação através do próprio ofício. Nesta etapa de investigação, o ritual em
Grotowski direciona o Performer na busca de sua essência, ligada à seriedade do ser, aquilo
que não pode ser aprendido e que não veio de fora. Para Grotowski, “a essência parece uma
coisa pequena, mas é nossa” (GROTOWSKI, 2015).
O estudo da memória é voltado para a construção da presença, através da ativação
de impulsos internos que aproximam o ator-Performer à sua verdadeira essência. É
importante destacar que, tal estudo não esteve voltado apenas para os aspectos físicos do ator,
abrangendo questões subjetivas deste corpo, no qual a voz passa a ser analisada e estudada
enquanto parte do corpo. Grotowski dedicou-se a profundos estudos sobre a voz: “A voz é
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uma extensão do corpo, do mesmo modo que os olhos, as orelhas, as mãos: é um órgão de nós
mesmos que nos estende em direção ao exterior e, no fundo, é uma espécie de órgão material
que pode até mesmo tocar” (FLASZEN, 2010, p. 159). A partir da concepção de voz enquanto
parte do corpo, o diretor entende que a voz não deve ser trabalhada enquanto um instrumento
vocal, e sim como um princípio fundamental, a respiração.
Para o diretor“os atores não devem fazer exercícios vocais, mas devem usar a voz
em exercícios que envolvam todo o nosso ser e nos quais a voz irá se liberar
sozinha”(FLASZEN, 2010, p. 159). Através desse pensamento, ele desenvolveu exercícios
que trabalham a respiração do ator, no intuito de possibilitar um melhor uso do ar nos
pulmões. Na concepção de Grotowski, a respiração acontece de três maneiras: respiração
torácica superior (ou peitoral), respiração inferior (ou abdominal) e respiração total. Segundo
Grotowski, o ator fará melhor uso deste ar com a respiração abdominal, que é sustentada pelo
diafragma. Aponta que, quando acontece a respiração na região do tórax, o ar não pode chegar
à parte inferior dos pulmões, que comporta uma capacidade maior de ar, resultando em uma
respiração sem sustentação do ar. A respiração total seria um tipo de respiração ideal,
sustentada na respiração abdominal. No entanto, a região do tórax tem participação no trajeto
do ar nos pulmões, possibilitando uma respiração orgânica que se adapta aos diversos
movimentos do corpo.
Outro fator importante para o uso da voz, apoiada na respiração, é a expiração do
ar. Para o diretor, “a expiração conduz a voz, não há dúvida. Mas para conduzir a voz, a
expiração deve ser orgânica e aberta. A laringe deve estar aberta e isso não se pode obter com
a manipulação técnica do instrumento vocal” (FLASZEN, 2010, p. 151). Ou seja, a técnica de
respiração auxilia no não tensionamento da laringe e facilitando que o ar realize seu percurso
sem esforços, resultando em uma voz orgânica. Grotowski acrescenta ainda que:

O ar conduz a voz. Usem o ar. Não o economizem. Tomem fôlego quando


precisarem. E depois, não poupem. É o ar que trabalha. Não é o instrumento vocal. É
a própria expiração que age. Se querem mandar a voz mais longe, mandem o ar para
um ponto fantástico, fantástico porque é tão longe, longe sim, sim! Mandem o ar!
Expirem! Não o poupem. (FLASZEN, 2010, p. 151).

Suas investigações ainda perpassam o estudo das caixas de ressonância da voz no


corpo, divididas em três partes: cabeça, tórax e nasal. As caixas de ressonância são apoios
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corporais onde a voz pode ser projetada, adquirindo potência na emissão do vocal. Além
disso, apontaos vibradores como possibilidades de trabalhar as qualidades e diversidades
vocais, sustentadas em pontos que possibilitem uma vibração (física) no corpo, onde a voz
atinge a materialidade, no sentido de ganhar forma, cor e corpo no espaço. A voz no trabalho
de Grotowski, por ganhar corpo, está associada ao impulso, a energia e a presença,
aproximando a investigação vocal à busca de si mesmo, o que resulta na utilização da voz
orgânica e viva:

[...] Devem cantar, devem comportar-se como camponeses que cantam. Quando
fazem os trabalhos domésticos, deveriam cantar, quando se divertem, deveriam
cantar. Devem também brincar com vários sons; devem procurar como criar espaços
diferentes com o seu canto, como criar uma catedral, um corredor, um deserto, uma
floresta. Deveriam estender o seu ser através da voz, mas sem qualquer técnica
premeditada. (FLASZEN, 2010, p. 160).

Ao que me consta apontar, neste breve alinhavar dos conceitos desenvolvidos por
Grotowski em suas diversas etapas de investigação, é que o diretor construiu um caminho no
intuito de se aproximar daquilo que é de mais verdadeiro no Performer-ator-bailarino,
despindo-o de tudo o que o distancia do seu verdadeiro eu, que se ocupa em estar presente em
cena, estar vivo, crível e não mais preocupado em interpretar ou representar um outro. Para
isso, ele trabalha na esfera do trabalho físico, o que resulta na construção de um corpo
extracotidiano que se despe das máscaras irreais do cotidiano, desafia os seus limites, realiza
uma busca e transformação interior, além de trabalhar a ética na conduta do seu ofício. O
trabalho de Grotowski construiu, no solo das ancestralidades do Performer, mecanismos que
aproximam mais suas histórias e verdades, resultando no que nomeou de organicidade. Luís
Otávio Burnier explica seu significado:

A palavra organicidade vem de órgão, relaciona-se com o que é orgânico (de


organicus), que diz respeito aos órgãos e aos seres organizados[...]. Não tem nada a
ver com o “natural”, mas com a impressão de natural que é a coerência da
organização interna de um determinado sistema gera. (BURNIER, 2009, p. 53).

Portanto, o trabalho de Grotowski sobre o corpo-memória, ou melhor, corpo-vida,


resulta na construção da ação verdadeira, com presença, energia, organicidade, com a
transformação pessoal do ator e a sua superação diante dos desafios.
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Para este estudo, que parte da busca de um reconhecimento em duas distintas


culturas e no terreno de meu passado ancestral, essas experiências me atravessam e passam a
fazer parte da história de meu corpo e, logo, da minha verdade enquanto existência, meu
corpo-vida, corpo-ancestral. Me inspiro no trajeto e mecanismos apontados por Grotowski,
sem a menor pretensão de reproduzir seus conceitos com afincos, pois seu ofício levou toda
uma vida de investigação e um rigoroso e preciso trabalho físico, além dos estudos teóricos.
No entanto, este estudo impulsiona-me a buscar em meu próprio terreno, quem sou e para
onde desejo caminhar com minha história.

2.3.A DANÇA ATRAVÉS DAS COREIRAS

Neste subcapítulo investigo a dança da coreira, com o intuito de destacar outros


fatores que pertencem ao universo feminino da roda e, através da fala destas protagonistas,as
suas experiências na dança. A partir da vivência destas coreiras é que tecemos os caminhos
que apontam que a dança do Tambor de Crioula “não é só uma dança”, mas também a história
que cada brincante traçou com os seus pés.
Como critério de escolha para o estudo da dança das coreiras, contei com a
experiência de três mulheres de diferentes contextos e faixa etárias do Estado do Maranhão.
Elas pertencem aos grupos que categorizei para esta pesquisa, como coreiras experientes,
intermediárias, e jovens. No perfil de coreiras experientes, trago a contribuição de D. Anica
(Ana Benedita Ferreira Oliveira), com de 89 anos e que dança tambor há 72 anos na cidade de
Alcântara. Como coreira intermediária trago a contribuição de Rosa Reis (Rosangela de Jesus
Santos Reis), com 58 anos e que dança tambor há 34 anos em São Luís. No perfil de coreiras
jovens, trago a contribuição de Fernanda (Fernanda Sá Macedo), com 30 anos e que dança
tambor há 12 anos em São Luís.
D. Anica começou a dançar tambor aos 17 anos de idade, além de seguir a
tradição de caixeira, herdada de sua bisavó. Observa-se que a sua família apresenta um
histórico de parentes envolvidos com a cultura popular. A coreira aponta que não teve
dificuldades nem empecilhos para aprender a dança:

Que difícil? Eu aprendi foi logo (risos), que difícil? Quando o tambor grande bateu,
eu achei a punga aqui Ó, onde tinha a punga. Ó coro! Ó coro! Neste momento D.
70

Anica se levanta e começa a mostrar os movimentos de sua dança. Em pé, ela abria
os braços e marcava a punga com um impulso do corpo para a frente, e uma
marcação de pés com avanço e recuo de forma alternada, com a marcação de dois
tempos. Depois de realizar essa sequência de movimentos ela realizava giros, com o
tronco semi-curvado para frente. Logo ela voltava a fazer a sequência anterior de
movimento. Tudo isso era acompanhado do canto, em que ela cantava músicas do
tambor de crioula (Ana Benedita Ferreira Oliveira).

No diálogo com a coreira foi possível perceber sua resistência aos novos formatos
da dança adotados pelas coreira mais novas. D. Anica destaca que: “Tem coreira aí que só
dança tambor é rolando, não dá a punga no tambor. E agora, eu não, eu tenho que achar o
sotaque do tambor, pra mim dá a punga.[...] Tá doido? Eu não vou dançar à toa”.
Na fala da coreira Fernanda, “[...] há uma política, né, dentro da roda pra você
entrar”. A política está relacionada às relações interpessoais entre as brincantes. Dentre as
relações interpessoais, está a relação entre as coreiras que partilham o espaço da dança. Para
que a dança não seja conflituosa é preciso estar em harmonia umas com as outras.
D. Anica destaca que: “Me dou bem com quem sabe dançar bem! Quem não sabe
eu saio da roda do tambor! Eu não, que eu não tô doida. Ou dança ou deixa eu dançar. A
senhora sai, vai pra uma festa no baile, a senhora vai errar, com o par? Tem que dançar é
certinho!”. Em sua fala fica clara a maneira com que ela administra sua relação com as outras
coreiras e como isso interfere em sua dança.
Fernanda explica o caminho que criou dentro dos Tambores do Maranhão para
conseguir ser respeitada pelos outros brincantes:

Porque nem toda a punga é uma punga de amizade, tem punga que é pra te tirar
mesmo, pra te mostrar que tu não sabe, que tu não é. Então eu tive que, por ser mais
“meladinha” - apesar da minha mãe ser uma preta azul – eu tive que mostrá de onde
eu vim, tive que contar toda uma história, é, verbalizando nas fogueiras,
conversando com as pessoas que se tornaram amigas, no decorrer do tempo, eu tive
que, que mostrar acho que mais no discurso, que na dança propriamente. Eu tive
montar um bom discurso, pra dizer de onde eu vim, pra que as pessoas não me tratar
mal. Sabe? (Fernanda Sá Macedo).

É importante perceber o que está em jogo na roda da dança do Tambor de Crioula.


Para além da coreira desempenhar os movimentos de maneira “correta”, é preciso que ela
ganhe espaço e respeito. Tarefa árdua da qual eu passei no aprendizado da dança, uma vez
que não sou maranhense e nem estava inserida no contexto dos brincantes, o que me
proporcionou um desafio ainda maior para meu aprendizado.
71

A indumentária da coreira está completamente ligada com sua dança. Em relação


à saia, D. Anica diz que prefere dançar com uma saia específica: “essa só quando rasgar!”. A
coreira Fernanda acrescenta a sua relação com a saia e nos explica o motivo de sua
preferência:“Não danço com qualquer uma! Não gosto de dançar com a saia de outra coreira.
Porque eu acho que na saia tá a nossa força, né? Então, você vai dançando, você vai
descobrindo qual saia que você se identifica mais”.
A saia tem sua especificidade, cada saia é diferente, tem um peso único, um corte
que possibilita que ela rode, mais ou menos, e um tipo de tecido que possibilita diferentes
movimentos. Rosa Reis nos explica a relação da coreira com a saia e como ela interfere
completamente no movimento durante a dança:

O tambor é movimento de saia, a coreira quando tá dançando é a saia, você pega na


ponta da saia, pega de um lado, pega de outro, pra girar, te dá aquela imponência,
quando ela tá girando a saia, tá entendendo. Então a saia é fundamental e tem que
ser saia rodada mesmo, a saia meio que, dê um giro bonito. (Rosangela de Jesus
Santos Reis).

O calçado também é muito discutido entre as coreiras. Algumas dizem que o


mesmo auxilia no movimento, já outras não gostam de utilizá-lo. D. Anica nos explica a
forma que ela acredita ser a correta de dançar: “Não é só descalço, de sapato não. Dançar de
sapato cai toda a viagem, porque ela não pode dar a punga! É, porque atrapalha! É sim. Olha
Deus me livre, eu danço é descalça!”. Rosa Reis já se posiciona de maneira diferente:

Bom, no terreiro assim, né, onde tem terra, que a gente vai pra brincar eu acho que é
pé no chão mesmo, sentindo a terra, sabe? Aquela coisa fria no pé eu acho legal.
Agora quando você vai dançar na cidade e você vai dançar no cimento, ai você tem
que calçar o sapato, porque ás vezes não dá, a gente fica com pé cheio de calo.
(Rosangela de Jesus Santos Reis).

A coreira Fernanda explica a liberdade em dançar descalça:

Eu prefiro dançar descalça.[...] Sapatilha eu danço, mas como eu nunca tive um, fui
de um grupo, que tem que dançar de sapatilha e tudo, eu tenho esses, eu penso que é
um bom privilégio de poder tá livre e dançar descalça. Enfim, prefiro dançar
descalça. Me sinto mais livre pra fazer os movimentos, do tambor. (Fernanda Sá
Macedo).
72

A próxima contribuição que trago é da coreira Rosa Reis, que nos conta do trajeto
que realizou na aprendizagem da dança:

Desde garota eu sou apaixonada pela dança, e... Quando eu, na minha adolescência
quando eu cheguei nos doze, treze anos, eu consegui uma bolsa pra estudar no ballet
de Reynaldo Faray. Aí eu estudei o ballet clássico, comecei a participar dos
espetáculos de teatro, de dança, tinha um envolvimento com o teatro, também a
academia de Reynaldo. E a partir daí eu fui me envolvendo com a questão da dança.
[...]E quando eu descobri a cultura popular, que eu comecei a me aproximar mais
das tradições, de ver o Bumba Boi, de ver o Cacuriá, de ver o Tambor de Crioula, de
ter me aproximado do Laborarte, de ter chegado no Laborarte, aí eu comecei
também a pesquisar, né, a trabalha, a vivenciar a história da coreira, da dança, como
é que era, eu comecei a fazer as oficinas aqui no Laborarte.(Rosangela de Jesus
Santos Reis).

Rosa Reis começou a dançar com, aproximadamente, 25 anos e relata que em sua
família teve um parente músico, que possivelmente a influenciou em sua proximidade com a
música e a cultura popular. Explica também como sua relação e de seu esposo, Nelson Brito,
com a cultura popular reverberou nas filhas que também trilharam o caminho da cultura
popular maranhense:

E hoje também dentro da minha família, tem as minhas filhas, né, que todas tiveram
um envolvimento, desde garota sempre acompanharam a gente. Aí tem a Luana, que
entrou mais pro lado da dança, né, dança e teatro, a Camila também, tá na música,
dança e teatro e a Imira também, que passou por esse processo, mas ela se, se
encontra mais com a questão da produção. Então as meninas tem essa coisa também,
muito forte, de terem vivenciado isso com a gente… (Rosangela de Jesus Santos
Reis).

Rosa aponta um fator importante para a construção do corpo da coreira,


relacionada com a experiência e vivência pessoal no processo de aprendizado. É possível
destacar as influências que agregaram e constituíram sua dança, além de construir seu corpo
de coreira:

A dança de cada uma é uma dança bem particular, né, a gente se inspira em algumas
coreiras, como eu te falei, eu me inspirei em coreiras como D. Mundica, D. Ester, D.
Teté, D. Roxa, né, a gente se inspira nas coreiras, mas a gente não consegue
fazerexatamente como elas fazem, o teu corpo ele é um corpo que ele vai dançar,
né, de acordo com a tua vida, ele é um resultado de tudo que tu faz , né, então teu
corpo ele tem isso, então ele tem a vivência , né, e essa vivência que tá junto
naquele momento da dança. Eu acho que em qualquer dança, se eu entro pra dançar
o cacuriá, ai eu vou dançar mas eu vou levar toda uma história de vida pra ali junto
com meu corpo, e a mesma coisa acontece com o tambor de crioula, né. Então a
73

gente se inspira naquelas mulheres fortes, que representam, é, que você foi buscar,
né, mais um conhecimento, um aprendizado, e ali você deixa fluir o que tu sente
naquele momento que você tá dançando, nessa relação com o tocador e tudo mais,
né. Então, acho que é isso aí, aí a diferença tá justamente aí, na história de vida de
cada uma, né… (Rosangela de Jesus Santos Reis).

Fernanda Sá Macedo,ao iniciar-se no universo das coreiras, encontrou alguns


empecilhos que a impediram num primeiro momento de se aproximar da brincadeira,
relacionada com suas referências familiares. A sua mãe apresentava uma religião com
condutas rígidas, não a permitindo estar envolvida diretamente nas rodas de Tambor. Para
Fernanda, essa foi sua maior dificuldade em aprender a dançar. Ela nos relata que:

Quando eu nasci no bairro da Liberdade em 86, a minha amiga de família, a senhora


referência de roda na minha casa era Das Dores, né, específico em tambor, era Das
Dores do Tambor de Crioula da Floresta, ela geralmente não saia no boi, só no
tambor. E das Dores ela sempre foi minha inspiração, porque apesar da minha mãe
ser protestante, com a Das Dores eu podia ver o tambor, e não podia dançar, mas eu
podia ir na fogueira, eu podia ver as pretas dançando, porque nessa época não tinha
jovens dançando, era uma coisa de gente preta e da periferia. [...] Então, só a partir
daí que eu comecei a ter a proximidade com o tambor, através de Das Dores na
minha casa, isso foi eu com cinco, seis anos. Mas por a saia não podia, minha mãe
não permitia. A religião, né, ela é muito ligada a religião e não deixava, eu tinha que
me conter só em vê. (Fernanda Sá Macedo).

Ainda nos explica como ocorre a dança da coreira na roda do Tambor, destacando
a movimentação da coreira ao ser estimulada pela sonoridade de cada instrumento:

Olha, eu penso que tem, a caminhada do tambor, o giro do tambor, a punga do


tambor, o descanso da coreira, a dança na roda da coreira, tem a conversa da coreira
durante a tocada do tambor, sempre tem uma conversinha de uma coreira pra outra,
né? E tem a marcação de dança, de crivador, meião, de matraca, de canto, tem hora
que você, você dança pro canto, tem hora que você dança pros tambores, tem hora
que você dança pra um tambor só, individual que não necessariamente é o grande,
né? Isso, a minha experiência na roda, então, é meio isso!(Fernanda Sá Macedo).

As informações concedidas por Fernanda são importantes para o estudo da dança,


pois ela agrega uma visão particular de sua vivência à dança do Tambor. Quando ela aponta o
“descanso da coreira”, se refere à postura de cócoras que não é comum de se visualizar dentro
da roda de Tambor. As únicas coreiras que já presenciei nesta postura foram Fernanda e sua
74

mestra Ana Duarte43. A ressignificação que a coreira aponta na dança, em relação aos
instrumentos, possibilita alguns tipos de variações do movimento durante a dança, de acordo
com a sonoridade das células rítmicas que cada instrumento propõe.
O último assunto que nos é relevante tratar é a presença da mulher na roda de
Tambor, que tem ganhado maior autonomia. Desde os primeiros passos desta pesquisa, no
ano de 2014 até o atual momento, percebo a evidente mudança no cenário de São Luís. A
figura da mulher passou a ter maior imponência, diminuindo o abismo que a separava dos
direitos dos homens dentro da brincadeira. Fernanda contribui com esta discussão, apontando
que:

Eu vejo, eu vejo várias mulheres que são comando de tambor. Eu vejo até mais
mulheres do que homem. Então, o que a mulher faz no tambor? Ela faz tudo! Ela
não só dança não, ela faz tudo, ela faz até a roupa dos caras. Ela que arruma eles pra
dança, manda ele para na hora que ela qué, e eles fazem. Porque sem a gente, sem a
coreira também, o que que é um tambor? [...] A gente tá em todos os momentos do
tambor. (Fernanda Sá Macedo).

Outro direito que as mulheres estão conquistando, ao longo da história do Tambor


e que hoje se torna mais evidente, é o de adquirir ensinamentos para tocar os tambores. Como
referência às mulheres que tocam tambor em São Luís, destaco as mulheres do Terreiro de
matriz africana Fanti Ashanti, a coreira Carla do Tambor de Mestre Felipe que, atualmente,
realiza o projeto “Mulheres que dão no couro”, como objetivo de ensinar mulheres a tocarem
os três tambores da brincadeira. Dentre os espaços que oferecem aulas de Tambor que
contemplem as mulheres, estão o Laborarte, na condução de Mestre Gonçalinho44, e o Centro
Cultural Mestre Patinho, na condução do coreiro Baé45. A coreira Rosa Reis complementa este
assunto através de sua fala:

Eu acho que faz parte, né, da manifestação já, eu já me entendi tendo as coreiras, né,
presentes nas rodas, e hoje você vê as coreiras também começam a tocar, você já vê
né, acho que já tinha, tem algumas coreiras que se interessavam em querer tocar o
tambor, mas os homens não deixavam, né. (Rosangela de Jesus Santos Reis).

43
Bailarina que dedicou sua vida ao estudo e a pesquisa da dança do Tambor de Crioula, traçando caminhos para
sistematizar esta dança.
44
Gonçalo Bispo dos Santos é coreiro e cantador no tambor de Mestre Felipe desde 1970.
45
Cleosvaldo Diniz Ribeiro, conhecido como Baé, é coreiro e tocador de zabumba no Bumba-Meu-Boi da Fé em
Deus.
75

Por fim, este estudo pretendeu apresentar como é o funcionamento da roda de


Tambor, na perspectiva da dança, com o olhar da coreira. Foi possível apresentar os contextos
pessoais e comuns da dança do Tambor de Crioula para dar continuidade a este estudo,
lidando com os termos técnicos da dança e do movimento desta coreira, que possui um trajeto
e uma história vinculada a seu corpo, resultados de uma identidade impressa em seus
movimentos, dos quais trataremos com maior atenção.

2.3.1.A DANÇA DA COREIRA E A ANATOMIA SIMBÓLICA

Durante o processo de pesquisa da manifestação do Tambor de Crioula, me


deparei com citação “A dança apresenta uma coreografia livre e variada” (FERRETTI, 2002,
p. 66). Essa é uma grande referência quando se pesquisa a dança do Tambor de Crioula. Meu
ponto de vista, enquanto pesquisadora participante na condição de coreira e que estuda os
movimentos da dança popular, não me permite compreender que tal coreografia seja livre.
Observei os corpos em movimento das coreiras e cheguei à percepção de que acontecem
movimentos específicos durante a dança. Para melhor contribuir nesta perspectiva de estudo,
realizei a análise dos corpos de três coreiras durante a dança no Tambor de Crioula de Mestre
Felipe, por apresentarem qualidades de movimentos distintas. Então,os aproximei aos estudos
desenvolvidos pela bailarina-pesquisadora Graziela Rodrigues.
Para iniciarmos, trago um breve histórico de cada coreira, pontuando informações
de suas histórias na dança. D. Estela (Maria Estela Costa) tem 78 anos de idade e exerce a
profissão de doméstica. Nascida na cidade Central do Maranhão, localizada no interior do
Estado, reside em São Luís desde seus dezessete anos. É coreira do Tambor de Crioula de
Mestre Felipe há mais de vinte anos. D. Estela tem como herança familiar a dança do Tambor
de Crioula, onde sua avó e sua mãe também eram coreiras. Para D. Estela, a função da coreira
“no grupo, é dançar e cantar. Ela tem que dançar e cantar.... O puxador puxa lá a toada, então
ele é só puxa toada e botar verso, quem responde somos nós, as coreiras que tem que
responder a toada”.
Laís (Laís de Moraes Rego Silva) tem 34 anos de idade eexerce a profissão de
bióloga. Nascida e residenteem São Luís, é coreira do Tambor de Mestre Felipe há dezessete
anos. Laís também apresenta envolvimento com a cultura popular em seu histórico familiar,
76

pois sua mãe tinha uma forte relação com a manifestação do Bumba-Meu-Boi. Laís conta
uma particularidade de sua dança: “O meu ritual é muito… É a primeira vez que eu entro para
dançar eu sempre me benzo, então eu sempre faço um benzimento, é um ritual de pedir
licença pra poder dançar”.
Danira (Danira da Costa Silva) tem 42 anos de idade e exerce a profissão de
oficial de serviços gerais. Nascida e residente em São Luís, é coreira do Tambor de Mestre
Felipe há aproximadamente oito anos. Danira apresenta como herança familiar o Tambor de
Crioula, sendo a sua mãe responsável por um grupo. Danira compartilha sua maneira de
dançar: “eu gosto de dança tipo um facão, que quando chega na roda passa aquela energia
logo pra todo mundo, aí eu já me lembro de outra história, é tanta coisa envolvida, tanto
momentos de alegria, momento de espiritualidade, é tudo misturado”.
Para que seja possível organizar os movimentos do Tambor de Crioula, é
necessária a compreensão do corpo brasileiro na dança. Graziela Rodrigues desenvolveu o
método que apresenta uma formulação do corpo brasileiro para a dança. Uma pesquisa
realizada com diversas manifestações culturais, com o intuito de compreender e criar
símbolos para esse corpo. A autora nos mostra através da citação o interesse que possui no
corpo brasileiro:

Falamos de um corpo que se encontra à margem da sociedade brasileira, porém é


este mesmo corpo um receptáculo do inconsciente coletivo. Dentre as tantas
expressões este corpo capta o sagrado, que faz-se presente em meio às contingências
do profano. A sua manifestação, fruto de integrações, aprofunda o significado do
que seja A Dança. (RODRIGUES, 1997, p. 27).

No trajeto de pesquisa, ela se depara com um corpo que “antes de tudo é


guerreiro” e que se manifesta “refazendo e recontando uma história em íntima relação com a
identidade pessoal e coletiva” (RODRIGUES, 1997, p. 27). Através de seus estudos
desenvolveu a Anatomia Simbólica, da qual faremos uso, onde organiza a qualidade dos
movimentos através da estrutura anatômica corporal, relacionando-a com a simbologia do
mastro festivo pertencenteàs festas de manifestações da cultura popular:

A estrutura absorve o simbolismo do mastro votivo, enunciada pelo estandarte que


representa os santos de devoção. A parte inferior do mastro liga-se à terra e a parte
superior interliga-se com o céu. O corpo representa o próprio mastro festivo, em
77

torno do qual ocorre o círculo energético. Com esse simbolismo o corpo assume a
configuração de sua força psíquica. (RODRIGUES, 1997, p. 44).

Na concepção de corpo-mastro, a autora trabalha a ideia do corpo enquanto um


eixo que se liga ao céu e a terra e, através dessas oposições de vetores, é que a energia
percorre o trajeto constante entre a parte inferior com a parte superior deste corpo-mastro de
maneira orgânica. O mastro está presente nas festas de promessas do Tambor de Crioula e,
carrega em si, a simbologia de seus devotos ao se conectarem a São Benedito. O mastro é
fincado no chão e seu tamanho deve ser grande o suficiente para dar a impressão de que este
alcança as nuvens. Pude perceber, nas pesquisas de campo, que no topo do mastro há uma
bandeira com a imagem de São Benedito, em homenagem ao santo.
A primeira relação estabelecida neste corpo-mastro é com o solo, onde os pés dos
brincantes se conectam com a terra e, no qual, associo o corpo da coreira que ao dançar
macera o chão com os pés. Para Graziela, os pés atribuem uma importante função ao
movimento:

Os pés apresentam uma íntima relação como o solo. Penetram a terra como se
adquirissem raízes, sugam-na como se recolhessem a seiva; amassam o barro;
levantam a poeira; mastigam, devolvem e resolvem a terra através de seus múltiplos
apoios. (RODRIGUES, 1997, p. 46).

Os esforços realizados pelos pés em relação ao solo são classificados de três


formas: o esforço mínimo, que realiza apenas um contato com a superfície e resulta na
sutilização dos apoios; o esforço médio, que estabelece um contato além da superfície e
proporciona raízes soltas; e o esforço máximo, que realiza a penetração ao solo e resulta no
enraizamento (RODRIGUES, 1997, p. 46).
O primeiro movimento da coreiraé um movimento de base para sua dança, que
chamarei de “marcado”, um movimento de avanço e recuo do centro para a diagonal, podendo
ser para a diagonal direita ou esquerda do corpo-mastro. Durante seu deslocamento para
frente e para trás, realiza a transferência de peso entre os pés em três tempos. No que pude
observar, na análise dos movimentos das coreiras, o esforço realizado pelos pés tem relação
com a estrutura corporal da coreira e com seu tempo de experiência na dança.
Na análise do movimento “marcado” com as coreiras de Mestre Felipe, D. Estela
apresenta o esforço máximo, com os pés enraizados enquanto realiza o movimento. Ela dança
78

tambor há cinquenta e três anos e apresenta uma estrutura corporal volumosa, com o quadril
largo e pesado. Danira apresenta o esforço máximo, com os pés enraizados, dança tambor há
vinte e quatro anos e apresenta uma estrutura corporal de volume reduzido, com o quadril
largo e pesado. Já a coreira Laís, apresenta o esforço médio, com raízes soltas, dança tambor
há dezessete anos e apresenta uma estrutura corporal pouco volumosa, com quadril médio e
leve. Para mim, as estruturas são essas.
Os pés são responsáveis por captar a energia do solo, oxigenar o corpo e devolvê-
la ao solo, funcionando como a respiração, onde o ar leva vida para nossos pulmões. Graziela
nos aponta como acontece este processo:

Enquanto um dos pés recolhe energia do solo, o outro libera energia para o solo. Na ação e
recolher, os pés sugam o solo(ventosa) acentuando o contato do metatarso e calcâneo e o
consequente aumento do arco do pé. Na ação de liberar os pés se expandem no solo,
amplificando, progressivamente, sua área de contato. O movimento desenvolve-se pela
alternância dos pés nas respectivas ações. (RODRIGUES, 1997, p. 46-47).

Na sequência deste caminho interno do corpo-mastro no corpo da coreira, o


movimento segue através dos joelhos que “influenciam significativamente o posicionamento
da bacia no alinhamento de toda a estrutura física” (RODRIGUES, 1997, p. 48). O joelho no
Tambor de Crioula fica semiflexionado e funciona como pulso do corpo, sendo responsável
pelo molejo do movimento. O joelho é responsável também por transportar a energia interna
dos pés à bacia. A bacia é extremamente importante para o corpo na dança brasileira, pois ela
é quem espalha a energia para a parte superior do corpo. Graziela explica o movimento
interno que ocorre na região da bacia durante a dança:

A pelve apresenta-se na estrutura física exercendo oposições. Através do


direcionamento do cóccix para o solo consequentemente as cristas ilíacas se
elevam.A força de tração, na região do sacro, materializa-se no imaginário pelo
sentido físico da apropriação de um “rabo”. (RODRIGUES, 1997, p. 49).

Na dança da coreira de Mestre Felipe, o “rabo” tem uma forte relação com o solo,
o que faz com que o movimento do quadril seja pesado. Enquanto isso, a tração entre a pelve
e o cóccix é responsável por concentrar essa energia que explode para os membros − reação
presente de forma geral na dança do Tambor de Crioula. Essa explosão de energia é resultante
de um impulso. Grotowski relaciona a região da bacia como responsável pelo impulso: “Onde
79

tem início essa reação? na parte do corpo que chamamos de „a cruz‟ (o cóccix), ou seja, a
parte inferior da coluna vertebral, incluindo a inteira base do torso, até o abdômen inferior. É
ali que têm início os impulsos” (FLASZEN, 2010, p. 172).
A região da bacia tem uma grande função na dança da coreira, pois gera o impulso
e articula o quadril,o que é acentuado no movimento “dançado miúdo” da coreira de Mestre
Felipe, gerando uma energia vitalque se espalha para o corpo durante a dança. Acredito, a
partir da observação e vivência na dança, que a bacia seja responsável por expandir esta
energia para além do próprio corpo que a gerou, trocando de corpo no momento da punga.
Danira nos aponta essa manifestação: “No momento que a gente faz a punga, tá fazendo uma
troca de força né?”. Além da troca de energias entre as coreiras, percebo uma interação
energética com sua a saia. Rosa Reis pontua que “o tambor é movimento de saia, a coreira
quando tá dançando é a saia”, neste momento, a saia é “animada”e é responsável por expandir
a energia gerada pela coreira para a roda de Tambor.
Na parte superior do corpo, a coluna exerce uma função importante ao conectar os
membros e a cabeça a essa energia oxigenada que percorre o caminho do solo ao céu. A
autora explica como acontece esse diálogo entre as partes do corpo, através da coluna:

A firme base estruturada nas raízes do mastro possibilita que as partes superiores da
coluna, tronco e membros gerem uma oposição quanto à direção de sua expansão e
integrem as distintas partes do corpo, evidenciando o corpo-mastro com a bandeira.
(RODRIGUES, 1997, p. 51).

Durante a dança, o tronco realiza pequenas torções no movimento “marcado”


enquanto acompanha os pés, que se locomovem para a diagonal. Essas torções reverberam nas
omoplatas (escápulas) e geram outros movimentos ao corpo:

Relacionando as mais distintas ações corporais de várias manifestações brasileiras,


observamos que a região das omoplatas move-se, frequentemente, alternando-se e
proporcionando a soltura dos ombros. Esta região também participa incisivamente
das torções. Tomando como referência uma das omoplatas, vemos que ela estará em
oposição às suas partes inferiores, ou seja, estabelece-se a relação com o seu lado
contrário, sendo comum a sua ligação com os pés ou com os joelhos. As frequentes
torções acentuam a força de tração para o centro do corpo, pois este movimento faz
com que o tronco serpenteie o eixo de equilíbrio. (RODRIGUES, 1997, p. 53).
80

O corpo da coreira de Mestre Felipe apresenta a característica do tronco que


serpenteia o eixo de equilíbrio, com movimentos ondulados para frente e para trás − quando
se marca a punga nos tambores − ou um movimento “marcado” e lateral − quando se realiza
o movimento “dançado miúdo”. Segundo a coreira Laís, este movimento é uma das
características que diferencia o movimento da dança dos demais tambores de São Luís, onde:
“O dançado miúdo, o quadril, eu acho que é uma, é uma diferença grande porque nós temos
um remelexo de quadril”.
No “dançado miúdo”, a coreira realiza uma espécie de variação do “marcado” em
que se acentua o movimento de transferência de peso nos pés, com deslocamento lateral,
ocasionando um molejo evidente do quadril. Este movimento é realizado em frente ao
Tambor Grande com evoluções de passos acelerados eum deslocamento quecontorna a roda e
retorna ao Tambor Grande, uma caminhada em semicírculo. Outra variação deste movimento
na dança é o deslocamento lateral em linha reta,variando a direção para o lado direito e
esquerdo e mantendo os movimentos característicos dos pés, onde a dançante interage com os
demais tambores e brincantes na roda.
Os braços se movimentam na lateral do corpo em oposição, para cima e para
baixo, e, em alguns momentos, são suspensos simultaneamente. As mãos das coreiras podem
estar segurando a saia ou, quando livres,relaxadas e semifechadas.
A cabeça se move conforme a articulação do pescoço. A coreira Laís apresenta
esse movimento articulado bastante acentuado, por influência do movimento de D. Mundica,
sua grande referência de dança.
O “giro” da coreira contempla todos os elementos do corpo-mastro que já
dialogamos. Inicia-se com o movimento de marcação dos pés, com esforço máximo. Seu
deslocamento ao redor do eixo do corpo gera a torção do tronco, começando nos joelhos
semiflexionados, que impulsiona o movimento para a bacia e esta, por sua vez, apresenta a
torção com “rabo” pesado em relação com o chão. A parte superior se divide em dois blocos:
no bloco inferior estão o troco, os ombros, omoplatas, braços e mãos, do qual chamaremos de
tronco mastro; e na parte superior estão o pescoço e a cabeça, do qual chamaremos de topo
mastro. Seguindo o fluxo da torção, o tronco mastro se desloca em um bloco único. No topo
mastro, o pescoço e a cabeça não acompanham o movimento do tronco, eles permanecem em
seu eixo frontal, enquanto o corpo se movimenta em torção. Quando o ombro, em torção,
81

passa na frente do queixo, a cabeça e o pescoço realizam a torção com o movimento


acelerado, sendo finalizado antes do tronco mastro chegar ao eixo frontal. A movimentação
permanece nesta sequência até que se finalize o giro.
Quanto aos movimentos específicos das três coreiras que observei, a coreira Laís
apresenta em sua dança a predominância do “marcado miúdo”, o quadril articulado com o
“rabo” pesado e estabelecendo uma relação com a terra. A coreira Danira apresenta
intensidade em seu movimento, rápido e preciso, forte e pesado. A coreira Estela apresenta o
peso do movimento acentuado na bacia, presente em todos os passos que utiliza na dança, e,
em oposição, o eixo de sua cabeça está direcionada para o alto, demonstrando altivez em seu
corpo.
Através da pesquisa de campo, pude perceber o caminho com que a dança se
organizava no corpo da coreira, o peso do corpo distribuído nos pés descalços e sustentados
pelo quadril, a marcação dos pés no movimento articulado da coluna e o impulso interno para
o giro da coreira de forma precisa e sustentada. Todos esses movimentos dão forma a uma
dança fluida e precisa e, ao mesmo tempo, forte e expansiva.
Por fim, apresento os movimentos pertencentes à roda de Tambor, apontados
pelas coreiras e percebidos por mim: a punga de ventres, a punga com os tambores, o giro, a
dança na roda, o marcado, o dançado miúdo, molejo dos braços articulados, pescoço
articulado, remelexo dos quadris e a marcação da cabeça. Os gestos46 presentes na dança são:
o sorriso, a conversa da coreira, a sedução, o benzimento e a demonstração de sentimentos por
meio da punga.
O intuito de aproximar a história desses três corpos à pesquisa de Graziela é, para
além de possibilitar sua reverberação em trabalhos cênicos, compreender de maneira
organizada o funcionamento dos movimentos em dança, que inspiram e contagiam o meu
movimento e a história de meu corpo enquanto atriz, dançarina e performer. A história do
outro passa a também ser minha história: “Em toda a rede de manifestações da cultura popular
(focos da pesquisa) seus intérpretes trazem uma história de vida que revela a necessidade de
resistir a muitos embates” (RODRIGUES, 1997, p. 75).

46
Tradução de signos corporais (STELZER, 2010).
82

2.4.CORPO E MEMÓRIA ECOADOS NA CENA

As pesquisas realizadas em contato com a cultura popular se agregaram em meu


corpo, atribuindo qualidades aos processos criativos em que estive envolvida ao longo da
graduação. O corpo-coreira e o corpo voz se fundiram em meu corpo-artista, corpo-performer,
corpo-atriz e corpo-dança, na medida em que experimentava na sala de trabalho às
possibilidades destes corpos. A partir destas diversas investigações é que se consolidaram dois
trabalhos, dos quais farei uma breve apresentação ao compartilhar os elementos que utilizei
durante os processos de ensaio.

2.4.1.A PERFORMANCE LAMA

Começarei com o trabalho mais consolidado que possuo.“Lama” surgiu como ato
performático no ano de 2014, na disciplina Expressão Corporal I, com a orientação do docente
Leônidas Portella na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). O trabalho parte do poema
“O que o barro quer” de Paulo Leminski, que questiona relação da humanidade ao negar a
ligação com a terra no mundo contemporâneo. Essa negação é explicada por Pinsky(1994,
p.42): “A vida nas grandes cidades modernas estabelece uma distância enorme entre seus
habitantes e a natureza”.
Na construção corporal utilizei o arquétipo da Orixá Nanã, que carrega a
simbologia do feminino por ser a mais velha mulher do panteão dos Orixás, concretizando a
transição entre a vida e a morte (transmutação do ser humano). O ciclo da vida que relaciona
os homens a terra é apresentado por Reginaldo Prandi no mito intitulado como “Nanã fornece
a lama para a modelagem do homem”,onde: “Nanã deu a matéria no começo, mas quer de
volta no final tudo o que é seu” (PRANDI, 2001, p. 196).
83

Imagem 08 − Performance Lama na Fonte do Ribeirão

Fonte: Foto de: Jerlyson Hugo, 2016.

A performance é um ato político que se utiliza do corpo para denunciar a


estagnação da sociedade diante das repressões e retrocessos políticos, representados pelo
elemento Lama que seca e endurece. O trabalho teve o processo de construção entre os anos
de 2014 a 2017, e seu ápice criativo no processo de impeachment47 da ex-presidenta Dilma
Rousseff no ano de 2015, em que a única mulher a assumir o cargo de presidência no Brasil
foi retiradapor um golpe de estado.
No processo de construção deste corpo, busquei elementos da dança do corpo-
coreira para construir a presença cênica que necessitava para a performance. Estabeleci em
treinamentos pessoais, a construção de energia através do giro da coreira, para ativar o centro
energético do corpo na região da bacia e expandir esta energia no meu próprio eixo. A punga
de ventre me serviu como mecanismo para projetar esta energia para o espaço. Meu objetivo
era o de construir um estado cênico com presença, que não representasse um personagem ou

47
Impedimento utilizado contra autoridades governamentais, onde há crimes de responsabilidade.
84

um arquétipo que trabalhei, mas um estado de presença, desnudado diante do público e dos
outros corpos que pesquisei e que permaneceram reverberados em mim.

Imagem 09 − Performance Lama na 10ª Bienal da Une

Fonte: Foto de Bárbara Marreiros, 2017.

Durante a performance, o roteiro de ações seguiu-se da seguinte maneira: entrada


no espaço destinado para apresentação, em um estado de suspensão, neste momento
caminhava lentamente com o corpo sustentado e projetando a energia na região da bacia,
realizando pequenos impulsos dos movimentos da orixá Nanã e sendo acompanhadapor um
canto mantra, com o corpovoz ativo; no segundo passo, me relacionava com a lama, o
elemento da orixá que cobria o corpo todo, de forma a destruir a estética no arquétipo da
Orixá; na terceira etapa, realizava o congelamento externo do movimento, como micro
movimentos de tensão interna, sendo acompanhado de discursos políticos que marcaram a
história do Brasil e do Maranhão, sobrepostos aos discursos feministas da presidenta,
enquanto a lama endurecida em meu corpo; a última etapa da performance era o momento de
85

quebrar essa casca endurecida de lama, com movimentos fortes e intensos, onde a dança da
coreira ganhava forma em meu corpo, sendo possível perceber os movimentos “giro” e o
“marcado”, diluídos em diversos outros movimentos de meu repertório corporal.
Neste momento dançava com meu corpo-coreira, com meu corpo-ancestral e com
a história de todos esses corpos que me atravessaram no trajeto de minha vida. “Quando
danço o outro em mim dança”. (RODRIGUES, 1997, p. 31).

2.4.2.O CHORO DA VIDEIRA: UM DIÁLOGO ENTRE UVAS E VIDAS

O trabalho “Choro da videira: um diálogo entre uvas e vidas” foi um experimento


cênico realizado na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, na disciplina de Estágio
Artístico ou Projeto, orientada pela docente Rita Azevedo no ano de 2015. O experimento é
resultado da pesquisa etnográfica na região do Douro e Dão no norte de Portugal, com as
trabalhadoras do campo e detentoras dos cantos de trabalho portugueses.
Durante o processo de pesquisa, idealizei um encontro romantizado com a cultura
portuguesa, esperando participar do trabalho rural de vindimar e aprender os cantos com as
trabalhadoras, participando de todas as etapas de feitio dos vinhos para registrar em meu
corpo o trabalho do campo. Isso não aconteceu por dois motivos, o primeiro é que o processo
do vindimar ocorreu anteriormenteà pesquisa de campo e o segundo motivo por quase não
haver a manifestação dessa tradição no trabalho do campo.
A bailarina Graziela, ao se deparar com a ausência de algumas manifestações que
pesquisou, aponta em sua pesquisa que: “Houve grupos em que restavam apenas resquícios de
uma determinada manifestação e a resistência cultural era apenas lembrança” (RODRIGUES,
1997, p. 27). Assim funcionou minha pesquisa, acessando na lembrança dessas senhoras os
pequenos registros de suas emoções, de maneira nostálgica ao se reportar a um passado
sofrido.
No primeiro passo, depois de recolher os cantos de trabalho, passei a refletir os
lugares que acessei dessas senhoras, que revelavam uma dor, angústia e um olhar nostálgico
de saudades. Carregavam em si as marcas de um passado vivo e as dores que deformavam
seus corpos, já muito desgastados pela aspereza da vida. Passei a carregar a história destes
corpos em meu processo criativo.
86

O trabalho foi dirigido pela artista-docente Rita Azevedo. Em paralelo à disciplina


de Estágio Artístico e Projeto, a docente ministrava a disciplina de Dicção, da qual também
era sua aluna. Nos primeiros encontros, realizei exercícios que utilizávamos na disciplina de
Dicção, exercícios apontados por Grotowski em seu estudo “Em busca de um Teatro Pobre”,
um trabalho de técnica vocal sustentado na respiração. Para o diretor, “tudo está intimamente
ligado com a respiração” (GROTOWSKI, 1971, p. 100).Entendendo a voz como parte do
corpo, trabalhei de forma que os cantos de trabalhos fossem cantados com meu corpo todo,
com os corpos das cantadeiras impressos no meu corpo voz.
Fiz uso dos exercícios de respiração superior, inferior e respiração total,
trabalhando-os em decúbito dorsal em relação com o solo. Em seguida, passei a investigar a
projeção da voz nas caixas de ressonância, começando a inserir os cantos de trabalho no
ensaio e apoiando-os nas caixas de ressonância da cabeça, do tórax, em busca da projeção da
voz de cabeça, da voz de peito, da voz apoiada em meu corpo.
Para Grotowski, “a voz se estende para o exterior. É uma força material
(vibração), que pode até tocar as coisas. A voz pode acariciar, apunhalar, beliscar e fazer
cócegas. Trabalhara voz como se fosse algo separado do corpo afasta o ator de seu estado de
organicidade”(SLOWIAK, 2013, p. 219).O diretor aponta o caminho de trabalhar a voz,
apoiando-a no corpo interior, nos espaços que possibilitem a projeção, reverberação e
vibração no corpo, estendendo-a para o espaço enquanto ação.
Quando consegui atingir um controle e segurança dessa voz, que respira e
pertence ao corpo, passei a investigá-la em movimento, realizando exercícios de cantar
acompanhados de tipos específicos de caminhada − cantar enquanto dançava, cantar pulando
corda, tudo com o intuito de ativar o centro do corpo e, ao mesmo tempo, ter o controle do
tônus muscular através da sustentação do movimento. Em paralelo aos exercícios na sala de
trabalho, estava o processo de construir a dramaturgia, o cenário e o figurino para a cena.
Na construção do texto, optei por inserir a referência da mulher que é forte e
autônoma, referenciando as cantadeiras que entrevistei. Neste processo, tive acesso a uma das
maiores identidades femininas da cultura vinícola de Portugal, D. Antonia Adelaide Ferreira.
Ela é um mito presente na memória coletiva dos portugueses e uma das maiores proprietárias
de vinhos do país no séc. XIX, rompendo com os paradigmas criados sobre a mulher frágil e
87

dependente, mostrando-se como uma grande empresária que ampliou os bens de sua família,
após o falecimento de seu esposo.
Antonia era o nome de minha avó e só a conheci através das lembranças de minha
mãe. Ao me deparar com este solo feminino, que referencia mulheres fortes, autônomas e
independentes, acessei em mim essas memórias que ganharam vida através da minha voz,
sustentadas no meu corpo ancestral:

Um dos acessos à via criativa consiste em descobrir em si mesmo uma antiga


corporalidade à qual se está ligado por uma forte relação ancestral. Então não se está
nem no personagem nem no não-personagem. A partir dos detalhes, é possível
descobrir em si mesmo uma outra pessoa – seu avô, sua mãe. (GROTOWSKI, 2015,
p.5).

Na escolha dos cantos de trabalho recolhidos na pesquisa de campo, optei pelos


que se reportavam à mulher, atribuindo saudades, crenças, mensagens moralistas. O canto de
trabalho “Chora Videira” associa a mulher à videira, planta que produz as uvas e que quando
cortada, expele um líquido que é referenciado como o choro da mulher: “Chora videira, Ooo
videirinha, Chora videira, Ooo prenda minha, Chora videira, Deixa chorar, Chora videira na
beira Mar”.
O canto “Adro da Macieira”, também escolhido para fazer parte deste trabalho,
impõe regras moralistas ao comportamento da mulher, uma cautela ao manter sua
“integridade” para ser aceita por um homem: “Ó macieira do adro, Ó adro da macieira. Ó i ó
ai se te deixes abanar, Se te deixas abanar, Já não achas quem te queira”.
E por último escolhi o canto “Nossa senhora da Guia”, que coloca a mulher no
impasse amoroso de lutar contra seus desejos: “Nossa Senhora da Guia Ouai, Nos venha
esperar ao Rio, Sou rapariguinha nova, posso ter algum desvio, Posso ter algum desvio Ouai,
Posso ir cair ao mar, Nossa Senhora da Guia nos há de acompanhar”.
No processo de interiorizar esses cantos em meu corpo, passei a cantá-los fora do
espaço-tempo de ensaio, cantava em casa, tomando banho, caminhando na cidade. Era a
forma de transformá-los em algo corriqueiro, cotidiano e orgânico em mim, conforme o
diretor orienta: “Talvez devam trabalhar falando, cantando, mas não devem trabalhar a voz”
(FLASZEN, 2001, p 158). Como resultado, percebi a diminuição do esforço para alcançar as
88

notas mais agudas, das quais tenho mais dificuldades. Também não tive que me preocupar em
decorá-los, eles já faziam parte de mim.
O trabalho de respiração e investigação da voz, nas caixas de ressonância e em
relação ao espaço, resultou em um canto potente que carregava as minhas impressões e
registros vocais, associados aos cantos interpretados pelas cantadeiras portuguesas. Pude
perceber que as emoções geradas por essas mulheres, que cantam suas vidas em memórias de
dores e nostalgias, estavam presentes em meus registros vocais. Neste momento, cantei a voz
das cantadeiras em cena.
89

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O primeiro passo foi traçado, apontando a direção dos muitos outros que serão
percorridos na estrada de tijolos dourados. Os caminhos investigados neste trabalho ainda
estão em andamento e seguem no fluxo de maturação, portanto, não pretendo chegar a
conclusões finais, mas apontar os resultados parciais dos estudos e processos que construí até
aqui.
O contato com os saberes tradicionais de duas distintas culturas mostrou-me,
através da proximidade com seus interlocutores, o afeto, a receptividade e a generosidade dos
ensinamentos. A escolha do caminho metodológico possibilitou uma maior riqueza no
contexto das culturas, principalmente, no estudo do Tambor de Crioula, onde tive o privilégio
de realizar a pesquisa tendo o tempo em meu favor. O tempo, este senhor que não têm dono,
foi o responsável por concretizar minha inserção participativa na brincadeira, conquistei meu
espaço de fazer parte e, como recompensa, ganhei a confiança, o respeito e o cuidado dos
brincantes.
A pesquisa sobre o Tambor de Crioula do Maranhão, com o olhar de dentro, me
possibilitou uma visão esclarecida, enquanto pesquisadora, dos processos internos da
brincadeira, o “lado B” da história, com suas asperezas, dificuldades, resistências e os
embates enfrentados pelos brincantes para garantir o direito à manutenção da cultura, visão
essa que quem é de dentro consegue acessar com maior clareza. Em via negativa, o
envolvimento afetuoso dificultou as escolhas técnicas e pontuais que a pesquisa exigiu.
Durante o processo de escolha das coreiras a serem entrevistadas, senti a
necessidade de dar voz às mulheres que não tinham tanta visibilidade, principalmente, no
âmbito da pesquisa no cenário acadêmico. No entanto, eram muitas as mulheres detentoras de
saberes e que apresentavam qualidades em seus movimentos, mas não ganham visibilidade
dentro dos grupos. Após decidir quais coreiras entrevistaria, outra dificuldade surgiu, o meu
tempo e o tempo das brincantes não se encontravam. Algumas coreiras, que julguei como
importantes para esta pesquisa, não puderam contribuir com suas experiências, pois não havia
agenda disponível para o encontro, limitando minhas escolhas às coreiras com disponibilidade
de agenda.
90

No âmbito da pesquisa em Portugal, caminhei pela pesquisa etnográfica, tentando


captar o máximo que podia da manifestação dos cantos de trabalho, considerando o tempo
limitado. A pesquisa aconteceu durante, aproximadamente, um mês e meio e apresentou
muitas dificuldades em sua trajetória. Pesquisar algo de que não se conhece é extremamente
desafiador, principalmente, em uma cultura com costumes distintos dos meus. Iniciei o estudo
do zero, sem roteiro e sem um método prévio, descobrindo os caminhos durante a pesquisa de
campo.
O local em que a pesquisa aconteceu era extremamente distante da região em que
residia, pouco menos de 100 km, dificultandouma presença mais constante na associação e o
estabelecimento de vínculos com as cantadeiras que entrevistei. Fui muito bem recebida na
instituição, realizei aproximadamente três intensos encontros de longas horas. O etnógrafo
Lopes Pires, que orientou o estudo de campo, se empenhou em passar todos os seus
conhecimentos sobre os cantos, a tradição do vindimar e, ainda, me ensinar como desenvolver
uma pesquisa etnográfica, disponibilizando todo o acervo que possuía para a minha
disposição. A maior parte da pesquisa aconteceu em sua biblioteca, onde foram realizadas as
entrevistas e diálogos, além de me serem compartilhados os causos e cantos, em um espaço de
muita descontração e regado de comidas − o ato de comer apresentava em si o afeto e a
receptividade do povo português.
A entrevista com as cantadeiras não correu como idealizei. Por serem mais velhas,
não estavam acostumadas à língua portuguesa brasileira, portanto, pouco entendiam as
perguntas. Não consegui me comunicar com as cantadeiras, não consegui quebrar as barreiras
que nos distanciava. Eu era um corpo estranho ali, com características físicas das quais elas
não estavam acostumadas, o que provocou muitos estranhamentos. O encontro com as
cantadeiras aconteceu em um único dia, por motivos de saúde das mesmas que apresentavam
certa debilidade física. Durante a tentativa de conseguir que elas compartilhassem suas
histórias, me deparei com algo que não estava preparada, a dor do sofrimento físico e
emocional que o trabalho no campo custou a essas mulheres.
A escrita sobre os cantos de trabalho apresentou as informações de forma objetiva
e precisa, resultado da relação distanciada que tive com as cantadeiras durante a pesquisa de
campo. Diferente da escrita acerca do Tambor de Crioula, que apresentou os afetos da
pesquisa de campo e os segredos que me foram compartilhados.
91

A partir da vivência nas duas diferentes culturas, pude perceber que o elo que as
une é a figura da mulher, que se mostra com características autônomas ebuscam, de certa
forma, o direito de se manifestar, se expressar, ganhar voz e ganhar a vez. Como contribuição
para esta discussão, busco os estudos de Jaime Pinsky (1994) pautados na História da
Evolução das Civilizações, quantoaos primeiro indícios da divisão das funções entre o homem
e a mulher na sociedade. Abordarei de maneira rápida o assunto, no intuito de sintetizar as
principais contribuições do autor para este tema. Segundo Pinsky:

Ao homem cabia a caça e a preparação de todo o equipamento para a atividade,


enquanto a mulher era a coletora e a responsável pela educação dos filhos. Com as
mudanças ocorridas com a agricultura, o homem passa a derrubar os bosques e
preparar a terra para a lavoura, enquanto a rotina da lavoura fica nas mãos das
mulheres. São elas que cuidam da casa, das crianças, da comida e da colheita,
submetidas à rotina massacrante dos dias iguais, que tolhem a criatividade e reduzem
a imaginação ao horizonte de suas vidas. (PINSKY, 1994, p. 40).

Essa estrutura de subordinação que é imposta à mulher, se mantém até hoje em


nossa sociedade. O autor aponta que, nas culturas neolíticas, inicialmente, a forma de
sobrevivência estava atribuída à caça, com o protagonismo do homem no sustento do grupo.
Com as transformações decorrentes da “revolução agrícola”, a mulher passa a dominar as
técnicas da coleta que “propiciava mais alimentos ao grupo que a caça na maioria das
vezes”, ou seja, a mulher passa a ser a responsável pelo sustento do grupo. No entanto, para
manter a mulher na posição de subordinação, constrói-se uma manipulação ideológica que
atribui a mulher à imagem fragilizada e submissa na sociedade.
A fala das brincantes revela uma possível subordinação, imposta pelo universo
masculino da brincadeira: “Não canto porque mulher não canta é só homem” (Ana Benedita
Ferreira Oliveira - D. Anica), “tem algumas coreiras que se interessavam em querer tocar o
tambor, mas os homens não deixavam, né” (Rosangela de Jesus Santos Reis - Rosa Reis). No
entanto, esta relação vem sido alterada ao longo do tempo, com a mulher passando a
protagonizar a manifestação, ganhar lugar e força de expressão. No contexto de Portugal, as
três cantadeiras afirmaram ter realizado a tarefa da pisa de uvas para maior autonomia
financeira, tarefa esta que pertence aos homens e está associada ao uso da força. No contexto
do Maranhão, as coreiras passam a assumir funções dentro da brincadeira que também
pertenciam ao universo masculino:
92

As mulheres fazem as saias, as mulheres são as cherosas, as mulheres tão batendo


tambor, entendeu? Então o tambor é a gente. O homem é importante? Eu penso que
o homem foi importante, no passado, por que agora é as mulheres. (Fernanda Sá
Macedo).

Como resultado artístico, carrego os signos deste feminino que há em mim, junto
a outros corpos femininos que me atravessaram. Corpos femininos que dançam, que cantam,
sofrem, sorriem, seduzem, geram a energia e a vida para o ator, conversam e contam suas
histórias, mesmo com o silêncio. Quando estive em cena apresentado os trabalhos que
desenvolvi, não estive só, éramos muitas mulheres em corpo e em vida.
Em ligação ao teatro, os princípios apontados no segundo capítulo deste estudo,
perpassam a memória impressa no corpo, a memória ancestral, amemória do outro em mim, a
memória transcultural, ao corpo que é voz e ecoa suas histórias. Tais princípios direcionam o
trabalho do ator-bailarino, na esfera pré-expressiva, para a busca do corpo extracotidiano de
Eugênio Barba. Ao se aproximar de suas memórias, o ator transforma o seu ofício e aprofunda
a busca interna que resulta no encontro de suas raízes, de sua verdade cênica, no solo
ancestral do Performer de Grotowski.
O estudo do corpo-mastro de Graziela Rodrigues, através da anatomia
simbólica,nos permite acessar dispositivos da técnica do corpo brasileiro. Para atribuirmos
qualidades ao corpo que dança da coreira, elegemos os movimentos da punga de ventres, a
punga com os tambores, o giro, a dança na roda, o marcado, o dançado miúdo, molejo dos
braços articulados, pescoço articulado, remelexo dos quadris e a marcação da cabeça, todos
são possibilidades para o trabalho criativo do ator. Tais qualidades da dança, relacionadas ao
estudo de Rodrigues, resultam num corpo potente, o qual nomeei como corpo-coreira.
Portanto, os elementos aos quais referencio neste estudo, se apoiam nos conceitos
de corpo-memória, voz e corpo-mastro, permitindo a utilização dos elementos das
manifestações culturais nos processos criativos, treinamentos técnicos e exercícios cênicos do
ator, bailarino, performer, artista, professor etc. A contribuição deste trabalho é apontar e
compartilhar as riquezas que encontrei nestas culturas, para que cada um, que por elas se
interessar, trace seu próprio caminho na estrada de tijolos dourados.
93

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Caleidoscópio, 2009.
BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica a representação. São Paulo: Editora
Unicamp, 2009.
COSTA, Sergio; HAIKEL, Marco Aurélio. Mestre Felipe por ele mesmo: “Quero vê tambô
berrá é na ponta do dedo”. São Luís: Associação Folclórica e Cultural Tambor de Crioula
União de São Benedito, 2013.
DIAS, Natasha. As relações entre corpo e memória de Stanislavski a Grotowski - um
olhar de filiação artística. Dissertação (Dissertação em artes) USP. São Paulo, 2013.
Disponível em:<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27155/tde-25022014-
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GROTOWSKI, Jerzy. “Performer”. In.:eRevista Performatus, Inhumas, ano 3, n. 14, jul.
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_______________. Em busca de um teatro pobre. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,
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HAMPATÉ-BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. Metodologia e Pré-História
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IPHAN. Parecer Processo nº. 01450.005742/2007-71. Disponível em:
94

http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/TambordeCrioulaParecerT%C3%A9cnic
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MATRICARDI, Luciano. “O Performer” de Grotowski:A busca pelo homem interior. In:
Memória ABRACE XVI - Anais do IX Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e
Pós-Graduação em Artes Cênicas. Anais. Uberlândia (MG) UFU, 2017. Disponível em:
<https//www.even3.com.br/anais/IXCongressoABRACE/32698-O-PERFORMER-DE-
GROTOWSKI--A-BUSCA-PELO-HOMEM-INTERIOR>. Acesso em 29 de dezembro de
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MELO, Daniel. O essencial sobre a cultura popular no Estado Novo. Coimbra: Angelus
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NUNES, Maria Arminda Zaluar. O cancioneiro popular em Portugal. Lisboa: Biblioteca
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PEREIRA, Fernando. Identidades profissionais, trabalho técnico e associativismo agrário
em Trás-os-Montes e Alto Douro.Dissertação. Vila Real: UTAD, 2004. Disponível
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PINSKY, Jaime. As primeiras civilizações. São Paulo: Atual, 1994.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
RAMASSOTE, Rodrigo Martins (Org.). Os Tambores da Ilha. São Luís: IPHAN, 2006.
REIS, Fernando Azevedo. A Música Popular e Folclórica como estratégia de
Ensino/Aprendizagem na Disciplina de Educação Musical do Ensino Básico (Uma
abordagem). Vila Real: UTAD, 2007. Disponível
em:<https://repositorio.utad.pt/bitstream/10348/64/3/phd_fareis.pdf>. Acesso em 14 de
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RODRIGUES, Graziela Estela Fonseca. Bailarino-Pesquisador-Interprete: processo de
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SLOWIAK, James. Jerzy Grotowski / James Slowiak e JaitoCuesta; tradução Julia Barros.
São Paulo: É Realizações, 2013.
STELZER, Andrea. A escritura corporal do ator contemporâneo. Rio de Janeiro: Confraria
do Vento, 2010.
95

ANEXOS
96

ANEXO I - Entrevistas realizadas sobre o Tambor de Crioula no Maranhão

Entrevistas realizadas pela produtora Laboratório Cisco, na data de 28 de junho de


2017−Transcrição: Doroti Martz

1) Entrevistada: Maria Estela Costa (D. Estela)


Coreira e integrante do Tambor de União de São Benedito de Mestre Felipe.

2) Entrevistada: Maria da Graça Belfort (Mestra Roxa)

Coreira e integrante do Tambor de União de São Benedito de Mestre Felipe.

3) Entrevistado: Tomás Pereira (Mestre Tomás)


Cantador e integrante do Tambor de União de São Benedito de Mestre Felipe.

Entrevistas realizadas e transcritas pela pesquisadora

1) Entrevistada: Laís de Moraes Rego Silva (Laís)


Coreira e integrante do Tambor de União de São Benedito de Mestre Felipe.
Realizada em 28 de novembro de 2017.

2) Entrevistada: Danira da Silva Costa


Coreira e integrante do Tambor de União de São Benedito de Mestre Felipe.
Realizada em 30 de novembro de 2017.

3) Entrevistada: Fernanda Sá Macedo


Coreira e dança no Bumba-Meu-Boi de Mestre Leonardo.
Realizada em 24 de agosto de 2017.
97

4) Entrevistada: Ana Benedita Ferreira Oliveira


Coreira e participa do Tambor de Promessa realizado em homenagem a São Benedito em
Alcântara.
Realizada em 29 de agosto de 2017.

5) Entrevistada: Rosangela de Jesus Santos Reis (Rosa Reis)


Coreira e responsável pelo grupo de Tambor de Crioula do Laborarte.
Realizada em 22 de agosto de 2017.
98

ANEXO II - Entrevistas realizadas sobre os Cantos de Trabalho em Portugal

I - Entrevistas realizadas em 16 de outubro e 06 de novembro de 2015

1) Entrevistado: António Lopes Pires


Fundador e presidente da Associação de Passos de Silgueiros

2) Entrevistada: Maria Odete Nunes Madeira


Assessora da Associação de Passos de Silgueiros

II - Entrevistas realizada em 06 de novembro de 2015

1) Entrevistada: Maria Paixão de Jesus Santos


Cantadeira e trabalhadora rural aposentada

2) Entrevistada: Maria Alice Costa Ferreira


Cantadeira e trabalhadora rural aposentada

3) Entrevistada: Cidália Rodrigues Almeida


Cantadeira e trabalhadora rural aposentada

III - Entrevista realizada em 21 de novembro de 2015

1) Entrevistada: Deolinda André Flamino


Proprietária de quintas e responsável pela produção de vinhos.
99

ANEXO III - Roteiros para entrevista do Tambor de Crioula

ENTREVISTA ESPECÍFICA PARA COREIRAS

Nome:
Idade: Local em que reside:
Local de Nascimento: Profissão:
Qual grupo faz parte:

1) Há quanto tempo dança?

2) Como começou a dançar? Como aprendeu a dançar? Quem ensinou, onde e em que
ano?

3) Quais as dificuldades em aprender a dançar?

4) Como é sua relação com as outras coreiras?

5) Brinca em quais grupos?

6) Já participouou participa de outra brincadeira, como Boi, Lelê, Cacuriá, Divino


Espírito Santo?

7) Existe alguém na família que dança ou que é envolvido com a cultura popular?

8) O que uma coreira faz no Tambor de Crioula?

9) Cada coreira tem uma dança diferente?

10) O que sua dança têm de diferente das outras coreiras?

11) Quais os movimentos que a coreira faz durante a dança?

12) Quais os movimentos em que a punga acontece em sua dança?

13) Algumas coreira dançam com sapatos, outras preferem dançar descalça. E você? Por
que?

14) Cada saia é diferente ou são todas iguais? Ela influencia em seu movimento?
100

ENTREVISTA COREIRAS DE MESTRE FELIPE

Nome:
Idade: Local em que reside:
Local de Nascimento: Profissão:
Qual grupo faz parte: Escolaridade:

1) Quando começou a dançar, quem te ensinou e como passou a ser coreira no Tambor
de Felipe?

2) Qual a contribuição de Mestre Felipe na dança das coreiras? E de D. Mundica?

3) O que diferencia a coreira de Mestre Felipe das outras coreiras?

4) Quais as movimentações da coreira durante a dança?

5) Carro Virou,Canembá e Rolou engenho são toadas mais aceleradas, o que muda na
movimentação durante a dança?

6) Como o Tambor de Mestre Felipe se organiza após a partida do Mestre? O que


mudou?

7) O Tambor de Mestre Felipe faz apresentações em terreiros de Mina hoje, qual o


motivo destas apresentações, e qual a relação do Mestre com a Mina?
101

ANEXO IV - Registros Fotográficos do Tambor de Crioula

Tambor de Mestre Felipe no Carnaval Tambor de Ponta de Rua - Mestre Felipe


Foto: Victor Vihen, 2017 Foto: Doroti Martz, 2017

Brincada no espaço Mar à Vista Tambores na Fogueira – Tambor de


Foto: Doroti Martz, 2017 Mestre Felipe, Foto: Doroti Martz, 2017

Tambor de Ponta de Rua Tambor de Tambor de Mestre Felipe no Carnaval


Mestre Felipe, Foto: Doroti Martz, 2017 Foto: Doroti Martz, 2017
102

Entrevistados no Tambor de Crioula

Coreira D. Anica sendo entrevistada Coreira Rosa Reis no aniversário do


Foto: Doroti Martz, 2017 Laborarte, Foto: Doroti Martz,2017

Coreira Fernanda sendo entrevistada Coreira Danira sendo entrevistada


Foto: Doroti Martz, 2017 Foto: Doroti Martz,2017

Coreira Laís
Foto: Doroti Martz, 2017
103

Mestre Tomás no Tambor de Ponta Mestra Roxa no Tambor de Ponta


de Rua de Mestre Felipe de Rua de Mestre Felipe
Foto: Doroti Martz, 2017 Foto: Doroti Martz, 2017

Coreira D. Estela em brincada no espaço Mar à Vista


com o Tambor de Mestre Felipe
Foto: Doroti Martz, 2017
104

ANEXO V - Registros Fotográficos dos Cantos de Trabalho - Portugal

Lopes Pires sendo entrevistado Maria Odete Nunes Madeira no Museu


Foto: Doroti Martz, 2015 da Associação de Passos de Silgueiros
Foto: Doroti Martz, 2015

D. Deolinda André Flamino em sua quinta Equipe em viagem à região Celeirós


na região de Celeirós para realizar entrevistas
Foto: Doroti Martz, 2015 Foto: Tiago Botelho, 2015
105

Brasão da Associação Paisagem composta por vinhas na região do Douro


de Passos de Silgueiros Foto: Doroti Martz, 2015
Foto: Doroti Martz, 2015
106

Registro da Apresentação “O Choro da Videira: um diálogo entre uvas e vidas”

Composição cênica do experimento Cenário e adereços cênicos


Foto: Doroti Martz, 2016 Foto: Doroti Martz, 2016

Apresentação do experimento cênico


Foto: Fatima Salvador, 2016
107

Divulgação da apresentação
Concepção: Doroti Martz
Ano: 2015

Fotografia da atriz com a professora e diretora Rita Azevedo


Foto: Doroti Martz, 2016
108

Equipe técnica composta por Manuela Miranda no som


e Tiago Botelho na projeção
Foto: Doroti Martz, 2016

Intercâmbistas brasileiros que acompanharam o processo


de desenvolvimento da pesquisa
Foto: Doroti Martz, 2016
109

ANEXO VI - Registro Fotográfico da performance Lama

Apresentação da performance Lama Apresentação da performance Lama no


na 10ª Bienal da Une em Fortaleza 13º Congresso Internacional Mundos de
Foto: Bárbara Marreiros, 2017 Mulheres em Florianópolis
Foto: Chris Mayer, 2017

Performes Doroti Martz e Victor Vihen na performance Lama no


13º Congresso Internacional Mundos de Mulheres
em Florianópolis
Foto: Chris Mayer, 2017
110

Equipe Lama, com a presença do músicos Totti Moreira e Neto Corrêa e os performes
Doroti Martz e Victor Vihen na apresentação da performance Lama
na Fonte do Ribeirão em São Luís
Foto: Jerlyson Hugo, 2016

Músico Neto Corrêa na apresentação da


performance Lama na Fonte do Ribeirão
Foto: Jerlyson Hugo, 2016
111

ANEXO VII – Entrevistas transcritas

Disponível em mídia.
112

ANEXO VIII – Vídeo documentário “O Choro da Videira: um diálogo entre uvas e


vidas” do estudo de Cantos de Trabalho

Disponível em mídia.

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