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DANIELA CARMONA

ECOS DO ARCAICO:
NARRATIVAS CONTEMPORÂNEAS DE PARTO
E PERFORMANCES PARA UM NOVO NASCER

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-gra-


duação em Teatro do Centro de Artes, da Universi-
dade do Estado de Santa Catarina, como requisito
parcial para obtenção do grau de Mestre em Teatro.

FLORIANÓPOLIS-SC
2019
Ficha catalográfica elaborada pelo programa de geração automática da
Biblioteca Central/UDESC,
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

Carmona, Daniela Carvalhaes


Ecos do arcaico: narrativas contemporâneas de parto e
performances para um novo nascer / Daniela Carvalhaes
Carmona. -- 2020.
228 p.

Orientadora: Bianca Scliar Cabral Mancini


Dissertação (mestrado) -- Universidade do Estado de
Santa Catarina, Centro de Artes, Programa de
Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis, 2020.

1. Performance. 2. Narrativas de parto. 3. Mitologias do


feminino. 4. Pesquisa-criação. I. Mancini, Bianca Scliar
Cabral. II. Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro
de Artes, Programa de Pós-Graduação em Teatro. III. Título.

2
DANIELA CARMONA

ECOS DO ARCAICO:
NARRATIVAS CONTEMPORÂNEAS DE PARTO
E PERFORMANCES PARA UM NOVO NASCER

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teatro do Centro de Artes, da Universi-


dade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Tea-
tro, área de concentração Teorias e Práticas Teatrais, na linha e pesquisa Linguagens Cênicas, Corpo
e Subjetividade.

Banca examinadora:

Orientadora:_______________________________________________________________________________
Profa. Dra. Bianca Scliar Cabral Mancini
UDESC

Membro interno: ___________________________________________________________________________


Profa. Dra. Luciana de Fátima Rocha Pereira de Lyra
UDESC

Membro externo: __________________________________________________________________________


Profa. Dra. Roxana Knobel
UFSC

FLORIANÓPOLIS-SC
2019
3
Louvo as Senhoras do Parto, faces da Grande Mãe,
onipresentes em todos os momentos de jornada,
sussurrando e inspirando suas forças.

Dedico esta pesquisa à minha bisavó


Tereza Gomez Espejo, parteira benzedeira espanhola
que ancorou sua jornada aqui no Brasil e vai comigo
a todos os partos.

Imagem da capa: arte sobre foto de Jerusa Mary da performance Trigemelar; e estátua da Senhora
Adormecida, encontrada em Malta, cerca de 3.000 a.C. Fonte: JOHNSON, Buffie. Lady of Beasts -
The Goddess and Her Sacred Animals. San Francisco: Harper & Row, 1988, pg. 90.
AGRADECIMENTOS

Agradeço fundamentalmente às mulheres que compartilharam generosamen-


te suas narrativas de parto comigo: Cristina Carmona, Gabriela Guadalupe, Ellen Bra-
ga, Tatiana Carmona, Andrea Tereza Marques, Isabella da S. Ribeiro, Larissa Pitman
Santos e Sitha Jennyfer Albisty Coulibaly; e a seus respectivos bebês Daniela (eu),
Benjamim, Zion, Maya, Rauã, Catarina, Canindé e Isaac. Agradeço também a todas
as gestantes que passaram por mim, presenças inspiradoras desta pesquisa; e à Lucia
Faria, parteira e amiga que construiu a ponte entre mim e as mulheres de Alto Para-
íso.

À Mariana Rotili, diretora e amiga com profundidade, leveza, sensibilidade e


ousadia para agregar-se a esta gestação e co-criar meus partos-performances.

Ao Jucca Rodrigues, amigo de fé e irmão camarada de Sampa, que me incen-


tivou a ingressar no Mestrado da UDESC e não me deixou desistir de começar.

À minha orientadora Bianca Scliar, que recebeu meu “embrião” de projeto


e soube indicar os caminhos da pesquisa-criação, fez-se presente sem jamais impor
sua visão ou interferir nas performances, com a dosagem equilibrada de suporte e
liberdade.

À amiga e colega de Mestrado Paula Gotelip (e sua filha Julia), que esteve
comigo na produção e viabilização das performances em diversos momentos, em
São Paulo e Florianópolis; ao amigo e colega de Mestrado André Francisco, por
ter me acompanhado em uma etapa fundamental do processo de criação, além da
generosidade e afeto em momentos cruciais dessa jornada; às/aos amigas/amigos
Vinicius Vianna, Rafaela Herran e Dayana Roberta, que participaram como atrizes/
atores convidadas/convidados das performances; à Daniela Maria Antures e Adriana
Miranda da Cunha por se agregarem à equipe de criação da performance Mamífera
Reptiliana; e a Jonas Golfeto, parceiro, amigo e amor de sempre, pelas filmagens e
fotos das performances.

À profa. dra. Ligia Moreiras Sena e ao prof. dr. Milton de Andrade, integrantes
da minha banca de Qualificação, por suas contribuições preciosas para a continuida-
de e refinamento da pesquisa.

Às professoras e professores do Programa de Pós-Graduação em teatro que


me permitiram ancorar as performances em suas disciplinas, a saber: Tereza Franzoni,
Maria Brígida de Miranda, Márcia Pompeo (in memoriam), Luciana Lyra e André Car-
reira; agradeço também às professoras e professores que me incentivaram deram sua
contribuição: Fátima Costa de Lima, Daiane Dordete, José Ronaldo Faleiro, Stephan
Baumgartel e Vicente Concílio; e a toda equipe de funcionários e técnicos do PPGT
do CEART-UDESC.

A todas e todos os colegas do Mestrado e Doutorado pela presença, incen-


tivo, ajuda, revisão, contribuição bibliográfica, direcionamentos, pitacos, lágrimas e
torcidas: Liliana, Fernando, Marcos, Angela, Bárbara, Sabrina, Mariana, Ohanna, Yuri,
Ana, Letícia, Roberta, Jefferson, Raquel, Antonia, Douglas, Vulcânica, Camila e Va-
nessa.

À Virgina Vianna por ter nos recebido no espaço Armazém Cultural - Coletivo
Elza com tanto afeto e entusiasmo, por ocasião da mostra Poéticas do Parto e da
posterior defesa de mestrado; e ao Kleber Marcos da Silva, técnico do espaço, por
toda a ajuda, disponibilidade e carinho nas montagens e apresentações.

A meus pais Fernando e Cristina, que com muito esforço me trouxeram ao


mundo com muito amor e sempre me apoiaram e me incentivaram nos caminhos e
descaminhos da arte e da vida. Assim como agradeço à minha família pela paciên-
cia, confiança, incentivo e amor: mana Tati e mano Tomás, cunhada Paula e cunhado
Johnny, e sobrinhos Kaique, Yasmin, Kauê e Maya.

A todas as doulas, parteiras, enfermeiras obstétricas, obstetras, ativistas inte-


grantes do movimento pela humanização da assistência à gestação, parto e pós-par-
to que me inspiram e com as/os quais me sinto irmanada nesta luta pela transforma-
ção do atendimento obstétrico às mulheres do Brasil.
E não menos importante, cito aqui as pessoas que contribuíram direta ou
indiretamente para que eu chegasse até o final: Angela Ferrari, Felipe Ferro, Jerusa
Mary, Renata Barreto, Sabrina Dias, Joana Zimmermann, Francielle Cardozo, Juliana
Luis, Jessica Nunes, Gabriela Müller, Lilian Galvão, Sandra Maciel, Nirah Shirazipour,
Dani Ribeiro, Jura Mendes, Ana Socorro, Maria da Guia, Luzia Vianna; e equipes dos
espaços Centro Árvore Raiz (Floripa-SC), Kailash Yoga (Floripa-SC), Coletivo NaCasa
(Floripa-SC), Casa 431 (Floripa-SC), equipe do 8o SPA-USP (São Paulo-SP), Espaço
Cactus (Barreirinhas - MA), CRESOL (São Luís - MA), Laborarte (São Luís - MA), CRAS
Liberdade (São Luís - MA) e equipe do SPAC - UDESC de 2019 (Floripa-SC).

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoa-


mento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de financiamento 001.

This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001.
É necessário “começar”?
(DELEUZE, GUATTARI, apud THAIN, 2008)

RESUMO: Esta pesquisa coletou e analisou narrativas de parto contemporâneas para
produzir uma prática cênica através da criação de três performances: Primagesta,
Trigemelar e Mamífera Reptiliana, apresentadas como conclusão do processo inves-
tigativo. Propõe-se um escopo teórico em torno das noções de transitoriedade e
corporeidade através da filosofia processual (Whitehead, Manning, Massumi) com o
intuito de fortalecer, no processo de pesquisa-criação, o potencial transformador das
narrativas sobre o acontecimento do parto. O trabalho mergulha no campo expan-
dido e imanente do Cosmos-parto para atrair ecos do passado, vibrar e impulsionar
modos de representar, narrar e parir no presente e no porvir. Ao colher narrativas
orais de mulheres que passaram pelo acontecimento de parir busco nos silêncios e
em suas vozes a presença de mitologias arcaicas para alcançar modos de resignificar
um feminino em um exercício poético e experimental. Assim apresento considera-
ções performativas e narrativas sobre o corpo sensível, o sujeito movente, a domes-
ticação e cerceamento do corpo feminino, a animalidade e a nudez.

Palavras-chave: performance; narrativas de parto; mitologias do feminino; pesquisa-


-criação.
ABSTRACT: This research collected and analyzed contemporary childbirth narratives
to produce a scenic practice through the creation of three performances: Primagesta,
Trigemelar and Mamífera Reptiliana, presented as the conclusion of the investigative
process. A theoretical scope is proposed around the notions of transience and cor-
poreality through process philosophy (Whitehead, Manning, Massumi) in order to
strengthen, in the research-creation process, the transformative potential of narrati-
ves about the birth event. The work plunges into the expanded and immanent field
of the childbirth-Cosmos to attract echoes of the past, vibrate, and propel ways of
representing, narrating, and giving birth in the present and the future. By collecting
oral narratives from women who have gone through the event of giving birth I seek in
the silences and in their voices the presence of archaic mythologies to achieve ways
of reframing a feminine in a poetic and experimental exercise. Thus I present perfor-
mative and narrative considerations about the sensitive body, the moving subject, the
domestication and curtailment of the female body, animality and nudity.

Keywords: performance; childbirth narratives; mythologies of the feminine; research-


-creation.
SUMÁRIO

Introdução: GERMINAÇÃO............................................................................... 11

Capítulo I: ÊXTASE - O confronto de si com o outro..........................................40


1.1. A domesticação do parto; a correção do corpo distorcido.................................42
1.2. O que testemunho, o que transformo em mim................................................. 50
1.3. O que se supõe ser o feminino, o intrinsecamente feminino..............................60
1.4. Onde e como se vai à “partolândia”...................................................................67
Índice das imagens....................................................................................................72

Capítulo II: TRANSBORDAMENTO - Animalidade..............................................74


2.1. O não humano mais-que-humano.......................................................................76
2.2. O animal fisio-biológico.......................................................................................80
2.3. O animal simbólico; nudez...................................................................................84
2.4. Corpos que afrontam...........................................................................................90
2.5. O corpo fabulado...............................................................................................95
Índice das imagens.....................................................................................................97

Capítulo III: ABUNDÂNCIA - Materialização.....................................................99


3.1. Performances, meus partos...............................................................................101
PRIMAGESTA.........................................................................................................107
Caminhos de Primagesta.........................................................................................116
TRIGEMELAR............................................................................................................119
Caminhos de Trigemelar..........................................................................................133
MAMÍFERA REPTILIANA...........................................................................................135
Caminhos de Mamífera Reptiliana...........................................................................156
MITOPROFÂNICAS..................................................................................................158
Caminhos de Mitoprofânicas...................................................................................168

Conclusão: “TERRA GRÁVIDA”.........................................................................170

Pós-escrito........................................................................................................174
Índice das imagens..................................................................................................179
Bibliografia........................................................................................................180

Apêndice I - Material de divulgação - apresentação das performances...........184

Apêndice II - Diário de bordo - narrativas de Alto Paraíso...............................192

Apêndice III - Diário de bordo - apresentações no Maranhão..........................199

Apêndice IV - Artigo publicado na revista Interfaces Brasil Canadá................209


GERMINAÇÃO

Canto de Deméter

Mulher:
Você me come, celebra e me acolhe
Quando faz amor, quando gesta, quando dá à luz.
Sou Mãe, Filha, Anciã, crio, mantenho e destruo.
Broto e faço brotar e esgoto as sementes da terra
da mulher, do homem, dos animais.
Sou a Égua Negra de cabelos de serpentes,
a Porta do Misterioso Feminino.
Entre no meu templo de Elêusis através da Vulva Sagrada
desça aos seus infernos e aos abismos do útero
e lá eu te resgato, sou Perséfone, Kore, Pluto
Oriente e Ocidente Norte e Sul,
meus largos braços
atravessam as eras e chegam até hoje, onde você está.
Não busque me simplificar.
Sou muito mais velha do que a mais velha das velhas
Grande Mãe, Senhora, Sábia da Terra e do Mar
Rainha das estações, do milho, da cevada
de tudo quanto você domestica.
Espalho-me para além da Grécia, para além da Ásia, para além da África
Para as profundezas da terra, de onde minha filha sobe
e para onde minha filha, que sou Eu, retorna, destruidora
Negra, Subterrânea, Vingadora.
Acaricie meu golfinho sagrado, minha pomba divina, minha yoni fértil.
Mergulhe nos Mistérios e Segredos de meus cultos,

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morra e renasça mil vezes em sua existência terrena.
Lá nos inúmeros úteros por onde você passa,
estou para te receber.
Lá nos inúmeros leitos e corpos a quem você se entrega,
estou para te redimir e te fecundar.
Lá nos inúmeros filhos que você gesta,
e nos inúmeros gritos de dor e prazer que você emite,
está minha voz relinchando.
Meu colo é seu. Tema e me ame e me louve e me cavalgue.
Sou Deméter1.

1
Inspirada nos estudos sobre Deméter descritos em WALKER, Barbara G. The Woman’s Encyclopedia
of Myths and Secrets. New York: Harper Collins Publishers, 1983.
Sobre o mito mais conhecido a respeito de Deméter, Patricia Monaghan conta:
“Uma vez Perséfone, a linda filha da terra, desapareceu; sua mãe, Deméter, não conseguiu encontrá-la
em lugar nenhum. A chorosa Deméter procurou e procurou pelos campos, clamando pela filha [...].
Deméter segurou com frieza o manto azul-esverdeado, depois desatenta rasgou-o em minúsculos pe-
daços, espalhando-os como flores de milho na grama. Mas as flores e a grama logo se desvaneceram,
pois Deméter era a fonte de todo crescimento; enquanto lamentava, a deusa retirou sua energia das
plantas, que começaram a murchar e murchar. Então, foi dito, Chloe (‘verde’) a terra feliz, mudou pela
primeira vez para a outonal Deméter amarelo-dourada.
A deusa vagou pela terra agonizante até chegar a uma cidade perto de Atenas. Lá, ela conseguiu um
emprego de babá para a rainha de Eleusis, Metanira, cujo filho Triptolemos ela [a deusa] queria fazer
imortal, defumando-o como um tronco na lareira. A rainha frenética a encontrou e a deusa disfarçada
foi revelada. Deméter permaneceu em Elêusis, no entanto, muitas vezes sentando-se tristemente jun-
to a um poço enquanto chorava pela perda de sua amada filha.
Um dia, a filha da rainha, Baubo (ou Iambe), viu a triste deusa no poço e tentou consolá-la. Deméter
recusou todas as suas palavras consoladoras e, assim, para fazer a deusa sorrir, Baubo expôs sua vulva
libidinosamente. Surpresa, Deméter riu, a primeira gargalhada que a terra faminta ouvira de sua deusa
em muitos meses. Pouco depois, Perséfone foi devolvida à mãe, e a primavera floresceu novamente
na terra. Em gratidão pela hospitalidade dos eleusianos, Deméter ensinou as artes da agricultura ao
Príncipe Triptolemos e depois disso estabeleceu seus misteriosos ritos naquela cidade.
Esta história grega da grande deusa é claramente uma metáfora das estações [...] Uma variante do
mito comum do Mediterrâneo que explica como a terra ama e consome seu próprio crescimento ver-
de, essa lenda é singular em sintetizar esse amor, não em uma relação sexual entre o filho moribundo
e sua mãe, mas em um vínculo familiar entre a mãe Deméter e sua adorada filha Perséfone.
Essa filha, a terra da primavera, era na verdade outra forma da própria Deméter. Na Sicília, a identida-
de de Deméter e Perséfone era canônica; elas foram apelidadas de Damatres (‘mães’) e foram trata-
dos como indistinguíveis. Mas a forma mais comum da grande deusa era uma trindade, em vez de um
par de divindades, e muitos estudiosos examinaram os famosos mitos de Deméter, na esperança de
encontrar a terceira parte da tríade feminina, a terra do inverno, a anciã envelhecida, a semente em
hibernação. A especulação geralmente se baseia em Hécate, que certamente parece ser a mais anciã
das possíveis figuras divinas na história. Além disso, ela aparece em momentos importantes; foi, por
exemplo, a única a testemunhar o desaparecimento de Perséfone. Como a terra onisciente, Deméter,
dificilmente poderia ter sido alheia aos acontecimentos em sua superfície, Hécate, portanto, parece
ser um aspecto de Deméter como ‘mãe-terra’ [...].” MONAGHAN, Patricia. The New Book of Goddes-
ses & Heroines. St. Paul: Publications, Llewellyn, 2000, pg. 100-102. Tradução minha

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Trajetória de vários partos

Invoco Deméter e sua regência sobre os ciclos da Terra, das mulheres, da vida,
da roda de perecimento e renascimento, traduções e espelhos da minha trajetória de
vida e arte até aqui para iniciar. Começo por Deméter e trago seu mito sobre o rapto
da filha Perséfone, e sua tristeza inconsolável que seca e entristece a terra, imanando
da narrativa de meu parto-rapto por minha mãe, para começar de mim, de minha
história de partos e mortes. Transformo estas histórias em barro úmido modelando a
terra da tristeza e do trauma de meu renascimento nesta existência para re-transfor-
má-las em arte, em cura, em cena.

Fragmento minha história para poder perceber nuances de uma totalidade


impalpável: eu mulher que reverencia e enuncia divindades e demonidades, mitos
das Deusas da Luz e da Sombra evocados para sustentar e inspirar a poética de meu
trabalho artístico. Como servidora da egrégora das mulheres que parem (do verbo
parir), fundamento minha busca como artista no ativismo, no serviço, na reflexão,
na contestação da institucionalização hegemônica e políticas de controle e gestão
da mulher, cuja ética pode ser notada de modo mais evidente na burocratização do
parir hoje. A trajetória desta Mãe: pesquisa atravessa distintos
fazeres aos quais de- [...] e a vovó, que tinha... diquei-me nos últimos
experiência de vários partos, achan-
vinte anos. Nos do um absurdo aquilo, achando que tinha recuos e saltos,
rastejos e que ter... assistência médica, que a médica tinha voos, escolhi
que vim ver, né, porque a médica não vinha. Até que
c o m u n i c a r- chegou uma hora, o seu pai saiu do quarto, foi atrás da, -me através
do corpo, da, da pessoa que estava lá de plantão na hora, que era essa da voz, do
moça, e falou com ela o que tava acontecendo, e ela veio, olhou,
intelecto, examinou e falou que realmente não tinha dilatação, que ela ia do espírito,
em desdo- aplicar uma injeção em mim, que foi a injeção que ela aplicou, que b r a m e n -
é de Valium , [...], porque eu simplesmente des, quase desmaiei,
tos de ser eu apaguei, eu... parei de fazer força, parei de sentir dor [...]” outros e
outras. Nas performan-
“[...] E ela pegou o fórceps, eu acredito que deve ter sido
ces que com- por causa do fórceps, eu não sabia que o papai tinha pe- põem este
dido pra não fazer isso, e ela tentou tirar você com
trabalho, bus- fórceps, eu me lembro dela ficar falando e eu
co modos de
ampliar encontros escutava, né, meio assim... meio grogue, em um momento
mas eu escutava falar “não,
em que passo a consi- não tá dando, derar o teatro como
um modo de fazer artístico grande o suficiente para re-
ceber o que preciso dizer, fazer, mostrar, expor, dissipar e propagar o que é híbrido
e incontido. O teatro transborda e se deforma todo para fazer caber meus mundos

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muitos, universos que brotam, morrem e já viram outros. Universos-bichos que me
habitam e me agitam por dentro querendo ser muitos ao mesmo tempo. Aquilo o
que Lygia Clark definiu como corpo-bicho aproxima-se tanto de como entendo mi-
nha própria trajetória artística, quanto o universo desenhado nesta pesquisa. Suely
Rolnik comenta, ao aprofundar sobre este conceito da artista brasileira Lygia Clark,
que inaugurou o atravessamento entre arte e clínica e fundou o campo híbrido que
conhecemos hoje como arte relacional:
Pássaros e leões nos habitam, diz Lygia - são nosso corpo-bicho. Corpo-vibrátil, sensível
aos efeitos da agitada movimentação dos fluxos ambientais que nos atravessam. Cor-
po-ovo, no qual germinam estados intensivos desconhecidos provocados pelas novas
composições que os fluxos, passeando para cá e para lá, vão fazendo e desfazendo. De
tempos em tempos, avoluma-se a tal ponto a germinação que o corpo não consegue
mais expressar-se em sua atual figura. É o desassossego: o bicho grasna, esperneia e aca-
ba sendo sacrificado [...]. Se nos deixarmos tomar, é o começo de outro corpo que nasce
imediatamente após a morte.” (ROLNIK, 2015)

Assim, este trabalho resulta de uma longa trajetória. Constitui-se de uma pes-
quisa-criação em torno das narrativas do parto contemporâneas que recolhi e de mi-
tos arcaicos fundamentais de as- pectos do feminino relacionados
ao parto, expressados eu não em quatro deusas; pes-
tô conseguindo”, qual-
quisa-criação esta quer coisa assim de “machucou, num- que resultou em três
-sei-o quê...”, e pegou, foi o que aconteceu,
performances principais e uma
porque machucou o seu rosto, cortou seu rosto.
“contação” Eu: O papai não tava com você? de histórias.
Mãe: Não, não deixavam entrar! Não deixavam entrar o
Para com- preender a
marido, não entrava nem marido, nem, nem mãe, ninguém...
metodolo- [...] Aí eu me lembro dela falar assim “olha...”, conversando, gia e a or-
né, falando alto e eu não enxergava nada, só via aquele lençol na
d e n a ç ã o frente, ela falando “olha, eu acho que não vai ter jeito, eu acho que do esco-
po inves- nós vamos ter que fazer uma cesárea”, e eu já tava com uma dor tigativo,
fortíssima embaixo, sentindo [...] que você já estava saindo, né. Aí o
é funda- que ela fez, ela, eu senti que empurraram... com a mão, sei lá com m e n t a l
p a r t i - o quê, empurraram você pra dentro, foi, porque o que me falaram lhar um
depois é que você tinha coroado. [...] Quando aparece a cabeça. Aí
pouco so- empurraram, só que não vinha o resto, não vinha seu corpo. E aí bre minha
t r a j e t ó r i a que falaram que eu tinha o útero não sei que jeito, né, retro... que culmi-
Eu: Não, se eu já tava com a cabeça lá, eu já tinha ultrapassado...
na hoje com Mãe: Pois é, é estranho isso, não tenta- esta compo-
sição sobre o ram tirar você e... desse jeito, aí... parir; portanto,
Eu: E você tava deitada.
esta introdução Mãe: Deitada. (eu: de costas) De me convida a
costas. Aí me, me deram
rever-me, girar em re- trospectiva para ver
meus partos como artista e como servidora.

Nascida em Paulicéia, no centro da paulistanice estereotipada pelo Bexiga, é


por lá mesmo que me concebo bicho-gente-arte. Meu pré-natal na Faculdade de Ar-
16
tes Plásticas, FAAP, torno-me designer e faço passagem relâmpago pela publicidade,
aversão crescente, quero outro parto que não este, este é fórceps! Quatro anos des-
cobrindo o que não quero me tornar, tornando-me; e destornando-me entornando o
caldo, morre a publicitária.

Concomitante a esta morte, já pedindo passagem sobre a publicitária ago-


nizante e pisando sobre esta, nasce a atriz. Esta brota pelo teatro de amantes ama-
dores em um gigantesco grupo de onde saem alguns melhores amigos e amigas,
pretensos atores e atrizes, pré-tensas cobaias: sou cria, tenho fome de mais e mais e
mais, e vou. Morre a amadora, mas não a amante, e já nasce a estudante.

Recuo para refazer-me atriz profissional, lapidar a auto-descoberta, colocar-
-me à prova, assentada no Teatro-escola Célia Helena2: vivo a experiência faísca de
uma onda que cresce constante e inexorável que vai culminar no maior e mais com-
plexo parto. Durante um ano sou aluna do diretor Antônio Araújo
anes-
(o Tó), em época de celebri- tesia, ela fa- dade midiática por conta da
primeira temporada de lou que ia dar aneste- O Livro de Jó3: terrível,
sia, deram uma anestesia, aí
generoso, abismáti- apaguei de novo , não me lem- co, ousado, paciên-
cia infinita aos que bro, e o que eu, eu me lembro é de represam ocea-
você já ter nascido, né [...] Não vi você,
nos com medo não carreguei você, nada, tiraram você [...]” de arrebentar.
“Mãe: Não te vi, não vi nem como você era. E
Acabou com meu ego e
eu sei que eu, que eu fui vi, ver você quando eu já
meu corpo estava no quarto, no quarto, que o seu avô, o pai da à exaustão.
, da vovó Lola, que é, que é... meu sogro, e, e o vovô
Fui feto em formação
João, o... a... a vovó, o vovô João não tava junto, meu
c o n s i s t e n - pai, e que foram na, na, no berçário (ri um pouco), foram te e rito de
no berçário e viram aã... você no berçário, e você tava as-
p a s s a g e m , sim com... com o rosto machucado, com pontos, com o... muitas vezes
d o l o r o s o . o rosto assim bem inchado, totalmente inchado, os olhos Ainda feto,
inclusive bem fechados, o nariz grudado na boca, a boca
viro adulta na assim inchada pra fora, o nariz totalmente grudado [...]” marra dando
a cara a tapa, desvirginada.
“Mãe: Eu não me lembro, não me lembro, eu acho que
Esta estudan- eu fui na... no berçário e olhava você através do vidro. te morre, mas
Eu: E porque... e não deixavam você pegar?
Mãe: Não, não deixavam eu pegar. [...] Ah,
2
O Teatro-escola Célia Helena era na época
uma escola profissionali-
naquela época não tinha esse negó- zante em interpretação
teatral nível técnico, localiza- cio de você carregar o bebê no da em São Paulo; hoje, além
da formação técnica profissio- berçário. Eles não da- nalizante, transformou-se em
uma faculdade de graduação em vam o teatro e também comporta cursos
de pós-graduação e cursos livres.
3
O Livro de Jó (1996), espetáculo dirigido por Antonio Araújo (Tó), com o Teatro da Vertigem, de São
Paulo.
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fica latente. Cede lugar à artista que já estava ali.

Nos próximos nove anos, percorro a curva da atriz recém-saída da escola que-
rendo ser celebridade - criança carente de aplausos e desesperada por reconheci-
mento e elogio - à artista criadora, de experimentações de ritmos mais lentos, es-
colhas degustadas como vinho, abertura de experiências, não sem escoriações mas
com convicção do caminho: incerto, incompleto e relutando em chegar a algum lugar
definitivo, em eterno devir.

Terceiro parto, depois do cordão umbilical com a escola cortado: O Balcão4,


meu puerpério profissional, verde e alucinada, de cara botando o peito es-
querdo de fora. A partir daí, morro e renasço de coletivo em coletivo: Cia.
bebê
Raso da Catarina5; Ágora - CDT6, p r a onde me multiplico, como atriz em
você car-
Tio Vânia e Ufa, Que Perigo!, dirigida por Celso Frateschi e
regar, eles
Roberto Lage respectivamen- só davam quan- te, como professora de teatro
do ia pro quarto.”
para adolescentes, pesqui- sadora, designer gráfica,
cenógrafa, contestadora, “Mãe: Trauma, eu, eu acho produtora, pau-pra-to-
que foi trauma mesmo, aã...
da-obra como todos ah, tomar aquele remédio, ficar por lá, quatro anos
de coletivo fun- tanto tempo em trabalho de parto, damentais para me
né, dois dias, sem assistência nenhuma,
transformar e me e... e ir pra maternidade, ter que voltar pra parir em atriz de
grupo; retorno casa, né, ir e voltar e dizer que não tinha dila- estudante à es-
tação, que não tinha isso, que não tinha aquilo...”
cola, ouvinte da graduação
“Mãe: Me senti abandonada, desde o começo, jogada pra
uma... uma parteira, né, que mal sabia as coisas, mal olha-
va e... falou só aquilo, que não tinha dilatação, mas acho
que nem chegou a fazer exame direito em mim, e... eu me
senti abandonada, principalmente pela médica, que eu achei
4
O Balcão, de um absurdo, e o hospital também. O hospital também não Jean Genet, di-
rigido por Mar- era dessas coisas, embora tivesse um quarto maravilhoso, celo Marcus
Fonseca, cum- mas eu trocaria aquele quarto por um quarto menor, com priu temporada
no TBC, em São mais gente [...], mas por uma assistência muito melhor Paulo (1997).
do que a que eu tive. Então, realmente... é, não tem
5
A Cia. Raso da Catarina foi fun-
dada em São Paulo
comparação, não posso dizer que o meu... que a pelo diretor e ator
Alessandro Azevedo minha experiência de, de parto... é um exem- em 1998, por oca-
sião da montagem do plo, não, não é! É um negócio assim terrível. espetáculo Lampião
Vai ao Inferno Buscar Maria Bonita, do qual
fiz parte como atriz. (Minha mãe, nosso “parto” - cesárea in-
traparto em hospital público em
6
Ágora – CDT (Centro de De- São Paulo, SP) senvolvimento Teatral) é um
espaço de investigação teatral fundado pelo diretor Roberto
Lage e pelo ator e diretor Celso Fra- teschi, que além de pesquisar e criar
espetáculos, promoveu importantes seminários para discutir o lugar do teatro na sociedade con-
temporânea brasileira. Fui integrante de 2000 a 2003.
18
em direção7, experimentando linguagens e loucuras. Enfim chego ao que achei que
era o meu fim, ou um fim, no embrião do projeto do Teatro da Vertigem, BR3, de
olhos fechados, apenas a promessa de um “petardo” que se segue à Trilogia Bíblica8.

E foi parto multíparo9: enorme, árduo, estranho, chocante, arrebatador. BR3:


experiência-limite, esgotamento físico, mental e emocional, escoriações reais no cor-
po e na alma, nenhuma gota poluída de arrependimento. Vou da pesquisa teórica
como dramaturge10 à louca drogada adolescente periférica personagem que é Helie-
nay, percorrendo ao longo da trajetória a viagem iniciática e catártica por terras de
São Paulo ao Acre, passando por Brasília, Mato Grosso e Rondônia; Brasil profundo,
arcaico, instável, predatório e predado, periférico até Bolívia e Peru e central na Amé-
rica do Sul, as identidades e formalidades e funções se desfazendo, desidratando e
esturricando ao sol do caminho. Desta jornada quase não volto, hipnotizada e viciada
em deslocamentos, que são o palco do BR3, uma navegação-encenação imprová-
vel pelo rio Tietê, que corta Sampa em sua mais completa sujidade. Nesta aridez e
degradação ambiental, ficamos eu e o grupo de criadores por mais uma gestação e
parto de exatos nove meses. De um total processual de três anos, uma vida. Que se
fecha com temporada no Festival riocenacontemporânea na Baía de Guanabara11. E
morre o sonho de ser da Vertigem. Chego onde achei que era o pico (para cima e
para o abismo) e percebo que dá para cavocar mais.

7
Em 2003 acompanho como aluna ouvinte e atriz convidada as aulas de direção teatral de Antonio
Araújo na ECA/USP.
8
A Trilogia Bíblica compreende os três primeiros espetáculos do grupo Teatro da Vertigem, baseados
em textos da Bíblia: Paraíso Perdido (baseado no Gênesis); O Livro de Jó (baseado no texto com
mesmo nome); e Apocalipse 1,11 (baseado no livro do Apocalipse Segundo João). Todos foram ence-
nados em espaços urbanos alternativos, respectivamente igrejas, hospitais e presídios.
9
Multípara, adjetivo, substantivo feminino: diz-se de fêmea que pode dar à luz muitos filhos no mesmo
parto; diz-se, de, ou mulher que teve mais de um filho. Fonte: https://www.dicio.com.br/multiparo/
10
Não há uma tradução em português do termo, que é de origem francesa. Dramaturge (nome):
Também chamado: dramaturg, um consultor literário na equipe de um teatro, empresa cinematográ-
fica, etc., cujas responsabilidades podem incluir seleção e edição de textos, ligação com os autores,
preparação de programas impressos e trabalho como relações públicas (tradução nossa do site www.
thefreedictionary.com/dramaturge).
11
Não cabe nesta dissertação o tamanho da experiência que foi fazer parte do projeto BR3. Mas bem
resumidamente posso condensar e situar toda esta trajetória da seguinte maneira: como dramaturge,
de janeiro a setembro de 2004, inclusa neste período a viagem de pesquisa de São Paulo ao Acre
por terra; como atriz, processo colaborativo de criação dramatúrgica e cênica, de outubro de 2004 a
junho de 2005; ensaios no rio Tietê, de janeiro a março de 2006; temporada no Tietê, de abril a junho
de 2006; ensaios e temporada no Festival riocenacontemporânea, na Baía de Guanabara no Rio de
Janeiro, setembro e outubro de 2007.
19
Eu-perséfone12 emerjo do abismo da Vertigem, depois de um sabático de três
meses mochilando pela Europa, e ingresso como diretora convidada de uma peque-
na preciosidade, Bartleby, adaptação para dois atores de Herman Melville13. Germi-
no-me diretora, em botão, revisito minha atriz para ser maestra em horizontalidade
com a equipe, as possibilidades e a longa vida do espetáculo, pilotado pelos verda-
deiros condutores, os atores. Doula14 pela primeira vez sem ainda o saber ao condu-

12
Perséfone: “‘Destruidora’, a forma Anciã da Deusa Tripla Deméter, cuja outra pessoa era Kore a Vir-
gem e Demeter-Plutão a Mãe (ou Preservadora). As três divindades sucederam-se ciclicamente como
os três pontos de um triângulo giratório - o símbolo de Deméter, o delta -, de modo que Kore e Per-
séfone eram frequentemente confundidas e chegavam a considerar a mesma Deusa. A fábula sobre o
rapto de Kore-Perséfone por Plutão foi uma invenção posterior. Ela era a Rainha do Submundo muito
antes de haver um Plutão masculinizado. Os místicos órficos a adoravam como Deusa dos abençoados
mortos, a quem eles dirigiam as fórmulas das orações [...] Ela segurava as chaves do céu e do infer-
no (Campos Elísios e Tártaro) [...].
Perséfone era realmente outro nome para Hécate, ou Hel, e tinha
governado o sumundo como a Mãe Kali Destruidora governou sob o nome
d e Prisni, o que pode ter

s i d o
a origem do
nome etrusco de Perséfone, Persipnei. Os romanos a chamaram de Proserpina. [...].
Como Kali, a Destruidora, ela era a deusa básica da morte desde o começo.” WALKER, Barbara G.
The Woman’s Encyclopedia of Myths and Secrets. New York: Harper Collins Publishers, 1983, pg. 786.
Tradução nossa.
13
Fui convidada pela atriz Cácia Goulart (minha colega de cena em BR3) e pelo diretor Joaquim Gou-
lart, do Núcleo Caixa Preta, de São Paulo, pra co-dirigir o espetáculo referido, uma adaptação para
o teatro de José Sanchis Sinisterra do conto homônimo de Hermann Melville, com Cácia e o ator Ro-
drigo Gaion. O espetáculo estreou em fevereiro de 2008 no SESC Avenida Paulista e fez uma longa
trajetória, viajando pelo país através de diversos prêmios e editais.
14
Doula: “Doula é a mulher treinada para oferecer apoio à mulher/família no processo da gestação,
parto e pós-parto/amamentação, auxiliando principalmente através de informações que levem à cons-
ciência a possibilidade de escolha da mulher para o momento do nascimento de seu filho e descons-
trução de mitos comumente relacionados a este processo. No pré-natal a doula auxilia orientando
não só a mulher, mas o seu/sua acompanhante sobre como este/esta pode participar desse processo,
informando sobre mudanças físicas e emocionais comuns na gestação, fisiologia do parto e da ama-
20
zir, invisível, seus processos, dar vazão, permitir, abrir espaços. Deste parto passo a
outro, auto-parto: mergulho em uma latinidade teatral intensa, risonha, despudora-
da, tradutora da trajetória amalucada da vida de artista: Orinoco15, rio amazônico e
espetáculo de DNA mexicano, roupagem venezuelana e apropriação antropofágica
minha, de Bete Dorgam e Dagoberto Feliz. Nasce a autonomia e a capacidade inteira
de materialização. Barco à deriva em rio interminável, performamos a nós mesmas,
disfarçadas de artistas decadentes de cabaré. Abro e fecho o pano e morro tempora-
riamente para o teatro. Foi lindo mas corrosivo, e me percebo germinando um ódio
aos meandros burocráticos de colocar um espetáculo para rodar; antes que o ódio
me sufoque, corto a trajetória e a coloco em inverno hibernante, tristeza-deméter
esperando melhores primaveras para expandir. Latência.

Quase mato o teatro em mim, mas é preciso coragem para ser covarde. Assu-
mo minha covardia de continuar. Neste ponto se dá a encruzilhada que me faz tomar
o outro caminho, que agora converge aqui nesta pesquisa, e reencontra e permite
o renascimento da atriz incubada na terra fria. Abraço intuitivamente o caminho do
yoga, percorrido há dez anos e que me chama para um equilíbrio integrado e desco-
nhecido até então; neste novo parto, dou à luz a instrutora de hatha yoga e, mesmo
antes de formada, confiando em minha habilidade de professora, o caminho do ensi-
no. Mergulho nas tradições, mitos, textos, entendimentos orientais, corporifico cinco
mil anos de práticas e me lambuzo de asanas, pranayamas, bandhas, yamas, niyamas,
pratyaharas, shivas e shaktis, devis e devas, chakras, kundalinis, upanisads, tantras,

mentação, como lidar com possíveis desconfortos da gestação, dicas de relaxamento e fortalecimento
da confiança da mulher para o parto e pós-parto.
[...] Durante o trabalho de parto e parto, a doula continua seu trabalho de fortalecimento da confiança
da mulher no processo auxiliando através de massagens, orientações de posturas e respiração, exer-
cícios, uso de calor, relaxamento. Também auxilia na comunicação com a equipe, orientando a mulher
sobre os procedimentos que podem vir a ser necessários ou repassando a equipe [...] a especificidade
daquela mulher/família. A doula também é a pessoa que cuida especialmente dos primeiros mo-
mentos pós nascimento [...]. Mesmo em casos onde uma cesariana é necessária, a doula está lá para
auxiliar no contato pele a pele imediato após o nascimento e na amamentação na primeira hora. No
pós-parto, a doula auxilia e faz orientações sobre a amamentação, cuidados com o bebê e cuidado
com/para a mulher neste momento onde o emocional e o físico estão bastante sensíveis, novamen-
te incluindo a família neste cuidado.” Autoria: Gabriela Zanella, doula e ex-presidente da ADOSC
(Associação de Doulas de Santa Catarina). Disponível em: https://www.facebook.com/pg/adoulasc/
posts/?ref=page_internal
15
Orinoco foi uma proposição minha e da atriz Bete Dorgam. Texto do autor mexicano Emilio Carballi-
do, fomos dirigidas pelo ator e diretor Dagoberto Feliz, estreando no Teatro João Caetano em 2009;
participamos também da V Mostra de Referências Teatrais de Suzano, SP; e fomos contempladas com
o Prêmio PROAC Circulação, apresentando o espetáculo em Araraquara, Suzano e Ribeirão Preto, em
SP.

21
mantras, yantras16, Índias e budas, vertigem que me reequilibra. Especializo-me, e
me centro me regro me alimento me restauro e re-equilibro meus fluxos. Navego
por espaços e estúdios parceiros, professora em lapidação, até sentir a segurança de
assentar meu lugar e forjar meu próprio espaço de práticas17.

Em um pequeno estúdio-útero em casa, nasço sem planejamento como sus-


tentadora e servidora da egrégora das mães. Não projetei este caminho e não foi
uma escolha deliberada. Mas se estou aqui, descrevendo esta pesquisa, foi por conta
deste passo “em falso” e às cegas que me assaltou mansamente, escolhendo minha
presença neste campo. Não tenho escolha, apenas sinto e sei que é necessário, ine-
vitável, estar aqui neste momento porque algo além do meu entendimento e alcance

me escolheu para tanto. Faz cinco anos que sinto serem vinte. Parto de novo para me
parir sem morrer e ampliar o mergulho neste campo da gestação e do parto que me
recebe generoso, sedutor, assustador. Não sou mãe18 e desconfio de minha capacida-
de, mas chegam mulheres que me autorizam e me empurram a ir mais e mais longe
e mais fundo. Engravido, amplio e re-transformo quem sou. Transformo as crenças,
reivindico meu direito como mulher a ser uma servidora desta egrégora materna.
Sem vergonhas ou pudores, olho para minha vagina, meu útero, meus seios, minha li-
bido e minha maternal condição como espaços sagrados e amplos de receptividade.

16
Os termos citados, em sânscrito, são elementos pertencentes à prática e filosofia do yoga e a outras
tradições espiritualistas e filosóficas indianas.
17
Durante quatro anos, de 2013 a 2016, fundei e mantive o estúdio Quintal da Yoga, em uma sala
pequena nos fundos da minha casa em São Paulo, no bairro de Pinheiros. Tive diversos alunos e alunas
e parceiros e parceiras.
18
Algumas pessoas, inclusive do meio teatral, me perguntavam insistentemente ao longo da pesquisa
se eu me sentia apta a falar sobre parto, por não ter passado por este processo. Fiquei me perguntando
se isso era realmente importante em uma pesquisa acadêmica dentro do teatro, eu sendo performer e
pesquisadora do parto. Por esta visão eu jamais poderia falar de lugares que não habitei como sujeito
movente. Cheguei à conclusão que estas inquirições sobre o fato de não ser mãe apenas demonstram
o quanto há uma mitificação sobre essa experiência e uma vontade de controle sobre sua importância.
22
Neste caminho sem paradas me faço doula, “aquela que serve”. Quero ver na minha
frente individualizar-se uma pessoa saindo da vagina de uma mulher. Quero sentir o
que é testemunhar esse lugar de rompimento da terra e transbordar neste mundo.
As parteiras começam a se apresentar: meus passos e buscas retrocedendo para
épocas dos saberes ancestrais do parir. Viajo ao centro do país para render honras a
mulheres velhas sábias, que “pegam menino” desde antes de serem mães, mães de
muitos e muitas, e espanto-me com a minha ignorância sobre o nascer. Redescubro
a bisavó Tereza19, espanhola bruja descendente de ciganos, benzedeira, curandeira
e parteira de centenas, peço sua benção, seu olhar, sua vigília e proteção. Deméter
estremece em mim, querendo fazer brotar e florescer e me fazer testemunha.

Quando inicio minha trajetória como doula, uma mulher, que não recordo
quem, pergunta, provocativa, se estou disposta a trabalhar em madrugadas, não ter
hora para voltar para casa, não saber o que vai comer, ter resistência física para ser a
primeira a chegar e a última a sair, sustentar emoções muito intensas e ter múltiplos
focos de atenção, saber o que dizer a cada momento, usar a intuição. Eu me surpre-
endo respondendo que sim, sei o que é isso sou atriz de teatro há quase vinte anos.
A experiência com a Vertigem retorna sob a forma de treinamento fundamental para
ser resiliente nos chamados da vida (mas não há experiência vivida como atriz que
possa igualar a intensidade de um parto, pelo menos até agora). Voltas e voltas.

Mergulhar na ilha de Santa Catarina diz respeito e respeita e reverencia meus


dois caminhos, agora convergentes e abrangentes, enamorados um do outro.

Estar aqui e perguntar o quê, por quê, para quê e como?

Em uma manhã obscenamente ensolarada, plantada no meio da semana, que


em Sampa seria heresia punida paulistanamente, estou na praia, olhando o mar e me
sentindo cega. Pressionada a escolher o que falar e como falar para me tornar mes-
tra, olho para mim e me sinto mestra de nada; inquietação que me impele a desistir.

19
Tereza Gomez Espejo, avó paterna de meu pai, chegou ao Brasil no final do século XIX, ainda crian-
ça. Assim como todos os parentes que vieram para cá, ela nasceu na cidade de Benameji, província de
Córdoba, em Andaluzia. Eu a conhecei e convivi com ela até meus 11 anos. Era uma fortaleza, referên-
cia da família, e sua origem cigana foi revelada a mim faz poucos anos, por haver muito preconceito e
estigma com relação aos ciganos na Espanha. Diziam que nunca havia perdido um bebê em suas mãos.
Quando faleceu, com 94 anos, em 1982, seu velório e enterro arrastaram uma multidão, famílias que se
formaram em suas mãos, centenas de afilhados e afilhadas, em Campinas, interior de SP, onde morava.
23
Quero retornar à arte, reinventar a atriz mas não
sei por onde, porquê, para quê ou como. É um
impasse que já dura semanas.

Disponho-me para meditar, olhando o mar


como ponto de atenção. Uma onda, e outra, e ou-
tra onda cresce, dissolve, acalma e começa tudo
de novo, de novo, de novo. E no inframince20 en-
tre uma onda e outra, rebenta no corpo uma voz
que ecoa o que quero, o que vejo, o que preciso
dizer: “a arte, Daniela, a arte está no próprio pa-
rir, no contar, no narrar a aventura do nascer, na
teatralidade da memória revisitada e caótica do
momento do nascimento, nos círculos de saberes
sobre ser mulher-mãe, no enfrentamento da du-
reza do contemporâneo da assistência obstétrica,
arte está em enxergar além e através do tempo e
lugar e puxar os fios das raízes primordiais da civi-
lização humana, que forja tudo que existe em mi-
tologias múltiplas e assustadoramente arcaicas e
atuais conviventes do mesmo espaço-mito-real”.

20
“Duchamp descreve o inframince como ‘o mais ínfimo dos
intervalos, ou a mínima das diferenças’ (DUCHAMP apud
PERLOFF, 202, P 101). Ele sugere que o conceito não pode
ser adequadamente definido – ‘dele só é possível dar exem-
plos’ (DUCHAMP apud DE DUVE, 1991, p. 160).[...] ‘a quen-
tura de um assento (que acabou de ser deixado) é inframin-
ce’; ‘O portão do metrô – naquele último instante em que as
pessoas o atravessam / Inframince’. [...]
As notas de Duchamp tentam tatear o que permanece elu-
sivo. A qualidade do que está entre, um intervalo que não
pode ser plenamente articulado. Não é o assento que está
em questão, ou mesmo a quentura no ‘assento (que acabou
de ser deixado)’, mas o que é deixado para trás. Não o as-
sento, a qualidade de deixidade (left-ness).
O inframince: a potencialidade de um campo relacional in-
cluir o que ainda não pode ser bem articulado, não obs-
tante possa ser sentido.” MANNING, Erin. Por uma prag-
mática da inutilidade, ou o valor do inframince. Galaxia
(São Paulo, Online), n..31, p.22-40, abr. 2016. http://dx.doi
.org/10.1590/1982-25542016126498

24
O teatro borbulha quando ouço a voz das mulheres que sirvo, quando permito
que elas narrem, quando as faço cantar juntas, quando conto histórias saborosas de
mitos fundamentais de fertilidade, de maternidade, de sexualidade. Em um quebra-
-ondas ensurdecedor, meus dois caminhos seminais, até então brincando separados,
trombam-se como dois adolescentes que antes não sabiam de si a não ser crianças
companheiras, “E eis que eles param e mudos, graves, espantados se olham nos
olhos: é que eles sabiam que um dia iriam amar.”21 Amar-se.

Ao proporcionar este encontro-concepção de um possível projeto, as ques-


tões começam a tomar forma. A primeira delas vem da observação das narrativas de
parto escritas, publicadas, públicas e compartilhadas em meios virtuais e presenciais
(rodas de gestantes e mães, principalmente) e da minha inquietante vontade de “ver-
-ouvir-através” dos véus do tempo os ecos dos saberes-matrizes ancestrais múltiplos
sobre o parir, passados através das gerações, fundamentalmente pelas mulheres, até
o século XX d.C.: Há um rito de passagem mítico implícito na experiência do parto,
possível de ser percebido nas narrativas das mulheres?

Para entender o que é um rito de passagem mítico, preciso primeiro procurar


o que se define ser mito, e não cabe apenas numa definição possível e universal. Co-
meço olhando para a definição do que é a principal função do mito dada por Mircea
Eliade, que para ele serve de alicerce estruturante dos ritos de passagem fundamen-
tais: “[...] a principal função do mito consiste em revelar os modelos exemplares de
todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamen-
to, quanto o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria.[...]” (ELIADE, 1994, pg. 13).
Esta definição de Eliade conversa com o conceito de mito vivo dado pelo etnólogo
Bronislaw Malinowski, (1884-1942), mencionado por Walter Boechat:
[...] o mito sempre ocupou um papel central na sociedade humana. [...] Malinowski [...]
propôs o conceito de mito vivo entre as sociedades tribais. Foi o primeiro a enfatizar esse
papel social do mito [...]. Os trabalhos de Malinowski deixam clara a noção fundamental
do mito vivo em sociedades tribais. Há uma importância essencial da mitologia na orga-
nização da vida diária dessas culturas. Sem o mito, essas sociedades simplesmente não
se organizariam. [...] todas as atividades, enfim, são ritualizadas e mitologizadas para
ganharem sentido. (BOECHAT, 2008, pg. 19)


Aprofundando um pouco mais na etimologia das palavras mito, mitologia, en-
contro também em Boechat pistas sobre como escavar o não-dito nas narrativas que

21
Trecho extraído da obra Um Sopro de Vida, de Clarice Lispector.
25
intuo emanar delas:
A palavra mitologia deriva do grego miéin, manter a boca e os olhos fechados. Derivados
de miéin são: mystérion (mistérios) e mystes, palavra que designa os neófitos nos misté-
rios, ou os iniciados. (BRANDÃO, 1966: 25ss).
O mito está, portanto, associado de forma definitiva ao misterioso e ao que não pode
ser expresso pelo discurso lógico da consciência: ao mundo do logos propriamen-
te dito. O mito seria uma roupagem ou um escafandro com o qual o homem
das sociedades tribais se veste pra entrar no mundo exterior [...].” (BOECHAT,
2008, pg. 17)

M a s as cosmovisões das sociedades tribais ecoam hoje pouco na


contemporaneidade urbana. Talvez o mito vivo perten-
ça a um recorte limitado de comunidades que ainda
se estruturam como as sociedades arcaicas pré-histó-
ricas. O que seria uma concepção de mito mais próxima e, portanto,
viva, para as sociedades urbanas agora? Ou uma definição onde caibam
tanto a concepção de mito vivo das sociedades tribais quanto novas concepções que
atualizem os significados de mito? Mais uma vez, é em Boechat que encontro uma
possível resposta, ou um apontamento para a escavação que me proponho fazer, nos
conceitos de mitopoese e mitologema. Mitopoese, segundo o autor, é a capacidade
espontânea da psique em criar mitos, ou imagens míticas, recriando mitologemas.
O mitologema é “um núcleo essencial do mito, que se repete nos mais diversos
mitos e nas mais diversas culturas.” (BOECHAT, 2008, pg. 24) Um exemplo de
mitologema é o nascimento mágico, onde divindades nascem de maneira sobre-
natural. Reflito se existiriam aspectos inerentes à experiência vivida do parto que
poderiam se configurar como mitologemas, não-conscientes para a maioria das
mulheres. Converso com Eliade novamente e sua atribuição à psicanálise como
o novo campo de estudos, no século XX, dos mitos, inclusive conceituando-os.
Para a psicanálise, é o componente inconsciente da psique humana o lugar do
mito na contemporaneidade. Eliade diz que “pode-se [...] afirmar não somente
que o inconsciente é ‘mitológico’, mas também que alguns de seus conteúdos
estão carregados de valores cósmicos; em outros termos, que eles refletem
as modalidades, os processos e os destinos da vida e da matéria vivente.”
(ELIADE, 1994, pg. 73)

Deixando a definição de mito como “mentira, falsidade” de lado por


algumas páginas (ela entra no campo da institucionalização do parto
quando se buscam os “mitos contemporâneos” da assistência obsté-

26
trica), e reconhecendo esta dupla definição, como mito vivo e como componente
imagético do inconsciente, volto novamente meu olhar para as narrativas de parto
e a maneira como têm sido difundidas e absorvidas pelo conjunto de pessoas que
fazem parte desta jornada materna, sejam as mulheres que gestam e parem, sejam
as sustentadoras e apoiadores destas. Percebo que as narrativas de parto comparti-
lhadas ganham força quando apropriadas como expressões de reconhecimento dos
saberes empíricos pelas mulheres que vêm logo atrás, grávidas, ansiosas por fontes
de conhecimento que as satisfaçam para além da literatura científica dos estudos da
área da obstetrícia. Esta percepção me traz uma segunda questão para a investiga-
ção: Em círculos de apoio às gestantes e mães (e pais), cada vez mais numerosas,
desponta uma nova “mitopoese do nascer”, criada espontaneamente pelas próprias
mulheres que narram suas experiências de parto?

As rodas de apoio a gestantes me remetem às reuniões cotidianas das socie-


dades tribais, que mantêm vivas tradições muito próximas às sociedades arcaicas,
pré-históricas, anteriores aos grandes impérios da Antiguidade. Foram e são socie-
dades que mitologizam a vida e todos os seus processos: nascimento, passagem
da infância à vida adulta, casamentos, falecimentos, entradas de estações, plantio e
colheita, onde podemos ver o conceito do mito vivo pulsando em cada detalhe. Com
parco mas intuitivo conhecimento sobre alguns mitos do feminino relativos à mater-
nidade, e aos aspectos, indissociáveis desta, da sexualidade e fertilidade, inicio uma
jornada de busca da origem destas supostas vozes que vislumbro nas narrativas, uma
viagem para o tempo remoto dessas sociedades arcaicas. Sigo vestida da convicção
de que a força do mito vivo das divindades femininas fundamentais, amalgamadas
pelo arquétipo da Grande Mãe, está presente, oculta, disfarçada, fugidia, em cada
mulher e cada homem que ousa mergulhar em seus aspectos femininos. Creio, como
Jung, que “os deuses [e deusas...] da antiguidade não morreram, mas permanecem
no inconsciente coletivo.” (BOECHAT, 2008, pg. 46)

É como estar nas ondas do mar do dia em que concebi a pesquisa: para frente
e para trás, corro ao passado e volto ao futuro, ou volto ao passado e corro para o
futuro, formando e desformando imagens. Vejo mulheres e homens nos círculos con-
temporâneos de sustentação do maternar em uma nova configuração espelhando as
antigas comunidades arcaicas do período Neolítico; onde os saberes eram comparti-
lhados por todos, a partir da experiência observada e tornada consciente; e também

27
a partir do convívio permanente com os ciclos da Natureza; uma atitude
coletiva de manutenção dos saberes sob a forma de ritos, narrativas e fes-
tividades. Hoje, nas sociedades contemporâneas ocidentais, apartadas da
Natureza, com núcleos familiares cada vez menores e sem a sustentação
explícita dos saberes dos ancestrais, essas novas comunidades vêm forman-
do uma consciência política e uma consequente atitude de reivindicação
crescente pelo direito de parir de toda mulher. Há um movimento político
mundial de mudanças de paradigma que se inicia na década de setenta na
Europa e se estende para a América; e que aqui no Brasil passa por uma
grande efervescência iniciada há dez anos, chegando ao poder público
sob a forma de pressão por leis que garantam o que os órgãos principais
já explicitam em suas diretrizes: o atendimento respeitoso e a devolução
do protagonismo do parto a quem lhe é de direito: a mulher e seu bebê22.
Reservo o mergulho no panorama brasileiro do atendimento ao parto mais
para a frente. Nos inícios do projeto, ele suscita em mim mais outras três
questões complementares: este movimento pode ser implicitamente ins-
pirado por um desejo atávico humano de retorno a um tempo de origens
das civilizações humanas, mais puro, mais abundante, mais conectado com
os ciclos naturais, menos hierárquico, mais comunitário, matrifocal, ou seja,

22
De 2017 para cá, ou seja, menos de três anos, esta efervescência está sendo colocada à
prova, por diversas tentativas de recuo de setores da sociedade ligados à saúde, ou mes-
mo expoentes da classe política conservadora. Três exemplos recentes, de 2019, valem a
pena serem citados:
- a declaração do Ministério da Saúde sugerindo a abolição do termo “violência obstétrica”
de documentos oficiais das políticas públicas da saúde, atendendo ao lobby das entidades
médicas, sendo que o é adotado na literatura científica mundialmente; posteriormente, por
recomendação veemente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, o Ministério da Saú-
de voltou atrás. Para saber mais: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/05/07/O-
-veto-ao-termo-viol%C3%AAncia-obst%C3%A9trica-pelo-governo?fbclid=IwAR0d0N-
4q14BN2BQkBOJ9dgDDNp5wziVO5ZDLpWr7d4Jc1qtedShw5HxjaCI ;
- a resolução do CREMERJ (Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro) proibindo
médicos do estado de assinarem “documentos que restrinjam ou impeçam sua atuação
profissional”, fazendo uma referência indireta aos planos de parto, documentos elabo-
rados pelas gestantes para expressar suas preferências em relação ao atendimento, um
direito previsto por lei. Para saber mais: https://oglobo.globo.com/sociedade/resolucao-
-do-cremerj-causa-revolta-em-defensores-do-parto-humanizado-23440403 ;
- e a proposta de PL da deputada estadual (PSL/SP) Janaína Paschoal, apresentada para
ser votada em regime de urgência, ou seja, sem passar por consulta pública, - e aprovada
- para que gestantes atendidas pelo SUS possam optar por cesárea, mesmo sem indicação
médica, o que contraria as mais recentes pesquisas e também normativas recomendadas
pela OMS (Organização Mundial de Saúde) sobre as boas práticas obstétricas. Para saber
mais: https://revistacrescer.globo.com/Gravidez/Parto/noticia/2019/06/polemica-pl-pro-
poe-que-gestantes-do-sus-tenham-direito-optar-por-cesarea-em-sao-paulo.html

28
mais “mítico”? Será que as palavras-brechas e os vislumbres que tenho das narrativas
contemporâneas de parto são sussurros dessas vozes arcaicas que carregam estes
saberes fundamentais? Ou são inspiradas por elas por um inconsciente coletivo que
perdura?

Trajetória em andamento, perguntas outras começam a cutucar a terra fértil


da prática e observação em sala de ensaio. E outras brechas esperadas e inesperadas
começam a pedir espaço e sem pedir licença. Irrompem. Em processo de recolha e
escuta das mulheres que estão comigo, que acompanho como professora de Yoga
Para o Parto e/ou como doula, afino minha recepção e minha porosidade. De início
fico com medo: da emoção vir, de chorar, de misturar minhas percepções e julgamen-
tos às temperaturas do sentir de cada mulher que se abre para mim. Quero a narra-
tiva da boca, diretamente, sem elaboração de linguagem escrita, mas para algumas
isto é obstáculo e constrangimento. Medo de dizer aquilo que não queria que se
dissesse. Mesmo assim, insisto. Quero a voz e a memória falha, a falta de ordenação,
o rascunho; que contar o que se viveu seja tão vivo ou tão matéria bruta quanto o
que se viveu sem contar. Juntas, eu e cada mulher em processo de escuta mútua,
invocamos Mnemósine, “a deusa memória, patrona do conhecer e do re-conhecer
[...]”. (BOECHAT, 2008) Procuro a inflexão23, a imanência, o virtual na experiência, os
ecos do passado que se presentifica e se futuriza ao mesmo tempo, condensando
ou esgarçando, ou parando o tempo real para buscar um outro tempo: o tempo da
experiência pessoal do parto.

E vem o choro, vem o espanto, vem o meu choro, vem o meu espanto. Não
é possível para mim ser um ente apartado da experiência, o próprio narrar me suga
para dentro dela. Dimensões várias se abrem e se interpenetram e novas questões
apontam meus caminhos. Quando estas mulheres estão no auge da intensidade da
dor e da abertura, no local onde o pensamento racional e as conexões lógicas se
dissolvem, e brota a porção animal de cada uma, o que perdura e vibra e se abre? Há
uma dissolução da identidade? Ou é outra identidade que assume? Em que consiste
o processo de individuação destas mulheres no momento do parto? Há uma narrativa

23
Inflexão: “Uma tendência que precede, não o obscuro, não o ainda não formado, mas aquilo que é
apreendido apenas enquanto é transformado; um entre criativo” (No original: “Inflexion: a tendency
that precedes not the obscure, not the unformed but that which is apprehended as it is transformed,
a creative in-between”. Tradução nossa da definição do termo colocada pelo grupo de pesquisa em
arte SenseLab, sediado no Canadá, e que batiza seu jornal virtual Inflexions – a journal for research
creation. http://www.inflexions.org/about.html)
29
possível diante de tanto corpo e poucas palavras na experiência do parto? Há uma
performatividade possível que possa dar conta desta experiência? Em que dimen-
sões se dá a reverberação da experiência do parto nos outros atores da experiência?
E no bebê?

Criar, sentir e pensar sobre matéria informe e fugaz

Nas bordas iniciais do processo de investigação, minha proposição pretendeu


associar pensamento e prática criativa. Ao longo do processo, não enxergo outra
possibilidade de caminho que não seja estar em experimentação prática e criativa
permanente, mesmo que o material-base da investigação – o entrelaçamento de
narrativas arcaicas e contemporâneas - esteja sendo cavocado e em contínuo pro-
cesso de assimilação. O que seria a amálgama entre estas duas pontes, e entre o
pesquisado e o experimentado por mim? Como me inserir como intérprete e cobaia
de mim mesma dentro de uma busca de algo que nunca vivenciei em meu corpo
(parir), ao menos nesta existência, e a partir desta busca produzir um conhecimento
que de saída parece inatingível, ou mera especulação dedutiva que jamais irá corres-
ponder ao potencial da experiência real? O que pode ser criado como obra poética
e artística, que forme um campo expandido para além da experiência biológica ou
psicológica ou mitológica, mas que também não se limite a ser um produto/espetá-
culo? Que possa ser prática ativista, política e poética? São muitas as questões que
me mobilizam desde o início desta caminhada, são elas que me movem no processo
de pesquisa e concepção desta dissertação.

Preciso de um chão fértil que alicerce e fortaleça o que pretendo fazer. E me


é dado, através da orientação, um apontamento que é desafio e provocação: pes-
quisa-criação (research-creation), uma das designações para processos ancorados
na prática como pesquisa. Novidade que sopra e me faz resistir por não entender
o tamanho daquilo que cabe nestas duas palavras e o tamanho maior ainda do que
cabe no hífen que liga uma à outra. Uma das definições colocadas por Alanna Thain,
artista pesquisadora do grupo canadense de pesquisa em arte SenseLab (no qual a
filosofia processual e a arte relacional são alicerces conceituais e práticos), é de que
a pesquisa-criação deve ser entendida como um método de intuição, uma técnica para
expandir a percepção que a coloca em contato imediato com a sensação, no que Brian
Massumi aqui chama de ‘pensar-sentir o que acontece’. Uma expansão da percepção nos

30
traz à ‘afecção afetiva’: ao nos abrirmos para maiores possibilidades de sermos afetados,
aumentamos nosso próprio poder para afetar em retorno. (THAIN, 2008)24

Começo a abraçar timidamente, e passo a passo mais convictamente, o que a


pesquisa-criação abre à minha frente, abraço largo e duradouro e em constante mu-
tação de substâncias. Mais do que tentar seguir premissas do conceito, a proposta é
o reconhecimento do que já é, e assunção de novas posturas e olhares frente ao que
já está se fazendo:
A investigação implica uma postura cuidadosa, uma abertura ao que já está acontecen-
do, uma percepção expandida do que nós já estamos participando. A prioridade cai não
em um termo ou outro na reunião da pesquisa-criação, mas no “entre” criativo. (THAIN,
2008)25

Estudos e ampliações que, no meio do caos de não saber ainda como co-
meço a andar (por não reconhecer ainda que já estava caminhando), tropeçando
nos conceitos e palavras (que são apenas outro idioma se fazendo conhecer para
procedimentos já experimentados), fazem com que eu me conduza à retomada de
minha prática em sala de ensaio. E o pensamento sobre ela. E o pensar-fazer-sentir
em movimento constante, trazendo à sala de ensaio as percepções dos encontros
com gestantes, mães e bebês, os encontros com as parteiras e doulas e ativistas, as
relações construídas e observadas.

Intuo que a ponte (o próprio hífen do termo pesquisa-criação) que liga as


partes constituintes da investigação precisa ser materializada no meu próprio cor-
po. É ele o papel desta escrita. Uma escolha: performar e narrar
com meu corpo, e m busca de uma linguagem
possível que pos- sa ex- por o que de tão íntimo
e indizível é a e x p e - riência do trabalho de

24
No original: “[...] research­-creation should be
understood as a me- thod of intuition, a technique for
expanding percep- tion that puts it into immediate
contact with sensation, in what Brian Massumi here calls
the ‘thinking­ feeling of what happens’. An expansion of per-
ception brings us into ‘affective co­ motion’: by opening us to more
possibilities for being affected, we in- crease our own power to affect in
return.” Tradução nossa.
25
No original: “Research implies an attentive posture, an openness
to what is already happening, an ex- panded perception of what
we are already participating in. Priority falls not onto
one term or another in the assemblage of research­
creation, but to the ‘creati- ve inbetween’.” Tradução
nossa.
31
parto e seus afetamentos, a partir das relações
que se fazem no processo. Um corpo em permanen-
te devir. Recorro novamente a uma das formulações e
condições da pesquisa-criação elaborada por Alanna
Thain:
Outra palavra para devir é ‘potencial relacional’,
‘[...] encontros com ambientes emergentes dos
quais nascem relações ou articulações’ (Erin
Manning). Um exemplo crítico de tal ambiente
é o próprio corpo. O corpo como ‘locus da pes-
quisa-criação’ é um tema recorrente [...], seu po-
tencial criativo entendido como o duplo devir de
afetar e ser afetado. (THAIN, 2008)26

Pesquisa-criação tem formulação ampla, diver-


sificada, múltipla, complexa e se esquiva de engessamen-
tos, como as práticas que propõe. É um procedimento. É um conceito. É um olhar
sobre a arte. É uma proposta artística, pedagógica, política e social. É uma ferramen-
ta que comporta diversas ferramentas, canivete suíço da arte e da pesquisa. É fim e
meio. Sem fim.

Sobre este chão movediço, instável, repleto de brechas e substâncias mutan-
tes, aberto ao espanto e ao erro, finco as estacas do meu caminho de investigação
teórico-prática. Parto das relações que já venho estabelecendo através do trabalho
com as gestantes. Estas relações são material de investigação e instigação, ao fazê-
-las falar sobre o evento do parto, oralmente, ativando a memória e também a toma-
da de consciência de suas transformações. O foco da investigação se faz na escuta
ao campo do parto e seus atores, mas fundamentalmente na relação destas mulheres
consigo próprias e com seus bebês. E na relação que estabeleço com elas e com a
narrativa que me é oferecida.

Encontro em uma das origens da pesquisa-criação o método do empirismo


radical, a possibilidade concreta de trabalhar a materialização da investigação em
obra de arte. O empirismo radical, termo definido por William James27, propunha um
26
No original: “Another word for becoming is ‘relational potential’, [...] ‘encounters with emergent
environments from which relations or articulations are born’. A critical example of such an environment
is the body itself. The body as the ‘locus of research­creation’ is a recurrent theme [...], its creative po-
tential understood as the double becoming of affecting and being affected.” Tradução nossa.
27
William James (1842-1910), nascido nos EUA, foi um pensador original nas disciplinas de fisiologia,
psicologia e filosofia. Sua obra-prima [...] The Principles of Psychology (1890), é uma rica mistura de
32
mergulho no indefinido, no não-categorizado, assu-
mindo o comprometimento com o processo e com
as relações, abrindo-se em direção a uma pragmá-
tica especulativa que contesta os modos existentes
de conhecimento. Parece-me uma boa definição ao
tipo de pesquisa a que me proponho, onde assumo
que talvez corra o risco de não encontrar uma lin-
guagem articulada final e deixe arestas por lapidar
e buracos por cerzir. Mas é da natureza própria do
observado: o próprio processo do parto e suas re-
verberações.

Narrativa, performance e mito: em busca de uma


linguagem híbrida

E de pronto chego ao ponto, elipsando ao


início proposto, o desenvolvimento de uma lin-
guagem-ponte, sinapse de partes diversas: parto,
narrativa-memória, mito, ativismo, protagonismo
feminino, sagrado e profano, corpo, performance,
animalidade. Enxergo em cada componente cami-

fisiologia, psicologia, filosofia e reflexão pessoal [...]. Contém


sementes de pragmatismo e fenomenologia e influenciou ge-
rações de pensadores na Europa e na América [...]. James es-
tudou na Harvard Lawrence Scientific School e na School of
Medicine, mas seus escritos eram desde o início tão filosóficos
quanto científicos. [...] James insinua suas preocupações re-
ligiosas em seus primeiros ensaios [...]. Oscilou entre pensar
que um “estudo da natureza humana” [...] poderia contribuir
para uma “Ciência da Religião” e a crença de que a experiên-
cia religiosa envolve um domínio sobrenatural, inacessível à
ciência, mas acessível ao sujeito humano individual.
James fez algumas de suas contribuições filosóficas mais im-
portantes na última década de sua vida. Em uma explosão de
escritos em 1904-5 (coletada em Essays in Radical Empiricism;
1912), ele expôs a visão metafísica mais comumente conhe-
cida como “monismo neutro”, segundo a qual há uma “coi-
sa” fundamental que não é material nem mental. Em [...] seu
influente Pragmatism (1907), ele apresenta sistematicamente
um conjunto de visões sobre verdade, conhecimento, realida-
de, religião e filosofia, que permeiam seus escritos a partir do
final da década de 1870. Tradução e adaptação nossas a partir
de: https://plato.stanford.edu/entries/james/#ChroJameLife
33
nhos transversais que cruzam-se, formando múltiplas encruzilhadas e possibilidades
interativas. Mas o como me perturba. Temo tentar enfiar pinos quadrados em bura-
cos redondos, quebrando as arestas artificialmente para que se formem enquadra-
mentos palatáveis; engessar assim uma resposta às perguntas apontadas no início:
há uma narrativa possível diante de tanto corpo e poucas palavras na experiência do
parto? Há uma performatividade possível que possa dar conta desta experiência?

Para encontrar respostas – que foram nascentes para novas perguntas – não
tive como objetivo inicial determinar a experimentação em linguagens já conceitu-
adas, como a performance e/ou teatro narrativo contemporâneo. Busquei olhar as
raízes aprofundadas no tempo e de natureza transbordante de conceitos preestabe-
lecidos: a narrativa oral que caracteriza as tradições míticas arcaicas de propagação
das histórias cosmogônicas, e que se transforma ao longo dos séculos e culturas na
boca e corpo dos contadores de histórias; e a performatividade intrínseca aos rituais
devocionais de louvação à terra, aos ciclos da natureza, às forças divinas do Cosmos,
aos ritos de iniciação, aos círculos sagrados femininos. Se o resultado artístico foram
performances que abarcaram a narrativa, ou narrativas que abraçaram a performan-
ce, aproximei-me da transversalidade de expressões como síntese decorrente deste
mergulho nas matrizes, mais do que a tentativa de colar minhas criações nos concei-
tos de teatro narrativo e performance. Assumo que retomei as premissas da pesqui-
sa-criação para evitar cair nessas canaletas limitantes.

As narrativas das mulheres são estímulos, sementes do processo, aponta-


mentos, direções para escavações mais profundas do meu trabalho como intérpre-
te. Palavras que projetam ideias e imagens, causam sensações-pensamentos, ativam
memórias e desarticulam a lógica; abrem portas e brechas de possibilidades de am-
pliação de significados. Ao invés de tentar encaixa-las em mitologias arcaicas do fe-
minino preexistentes, afino os ouvidos e puxo os fios que se penduram delas mesmas
para que eu seja a tecedora deste eco. As deusas da fertilidade é que pedem para
encarnar em cada experiência única de cada parto de cada mulher única, em cada
tempo único. Que eu possa fabular e encontrar outras narrativas não-semânticas para
dar conta das experiências do parto em meu corpo, em um corpo biologicamente
não-grávido, mas gravidamente ávido por ser transpassado pelas palavras narradas e
pelos mitos; profanando a humana experiência sagrada de parir, transbordar o bicho

34
selvagem para além do corpo-mulher e assim ser ponte para representar um direito,
um lugar de fala, uma poética política do irromper da vida.

Estruturações precárias (sujeitas a guinadas inesperadas)

Os caminhos de cada capítulo engendram-se dentro dos úteros de cada uma


dessas Mães. Assim, a partir da semente que a deusa grega Deméter lança nesta In-
trodução - GERMINAÇÃO, mergulho no Capítulo 1 – ÊXTASE, invocado pela deusa
pré-grega Eurínome. Discorro sobre o aspecto disfuncional da institucionalização do
parto a partir da contextualização histórica de seu início, tomando como base a obra
da historiadora italiana Silvia Federici e estudos da historiadora brasileira Mary Del
Priori e passando brevemente por Foucault. Atualizo a realidade das instituições de
saúde no Brasil com relação ao atendimento obstétrico tanto sob uma perspectiva
documental geral quanto sob a minha experiência direta como doula e testemunha
do intervencionismo excessivo na cena do parto, trazendo em primeiro plano duas
das narrativas que recolhi, dois partos que participei. Em contraponto a este “silen-
ciar” das forças do parto que insistem em afrontar a assistência, volto a atenção às
narrativas e às fissuras tanto nas palavras quanto nos silêncios que me provocam a
investigar estas forças invisíveis a partir de uma hipótese mitológica: ativo e presen-
tifico a memória das deidades representativas de atributos femininos fundamentais
do passado muito longínquo onde eram potências sustentadoras das comunidades
arcaicas dos períodos Paleolítico e Neolítico, faces múltiplas de uma única criadora
cósmica primordial, a Grande Mãe. Trago estas imagens e seus contextos à tona com
a suposição de encontrar o que seria um “feminino essencial” ou o Sagrado no fe-
minino; e portanto o Sagrado no parto. Desde ponto, especulo sobre uma experiên-
cia próxima do transcendente, inapreensível e transbordante, que seria o campo da
“partolândia”, que rebatizo de Cosmos-parto. E que clama por um novo vocabulário
que possa dar conta desta experiência.

O vocabulário, a linguagem, a especulação a respeito de que forças invisíveis,


que presenças são estas que estão presentes no Cosmos-parto, é discorrido no Capí-
35
tulo II – ANIMALIDADE, invocado pela deusa egípcia Sekhmet. Neste capítulo estão
os alicerces para a minha investigação prática em sala de ensaio. Percorro o rastro
primeiro dos partos de mamíferas não-humanas. O corpo, os sons, as condições, o
ambiente, as similaridades e diferenças: o que de animal “biológico” aproxima os
corpos-em-parto humanos dos corpos-em parto animais. Como estes animais se re-
lacionam com o toque de tudo que os circunda e os preenche? Como a animalidade
se apossa do corpo-em-parto humano e também abre alas para que outras presenças
invisíveis, para que deidades também estejam presentes, imanentes, caso haja con-
dições para isso? No caso dos corpos-em-parto humanos, especulo se a animalidade
não está em via de extinção a partir da medicalização excessiva do parto. Neste pon-
to, trago os estudos do médico e pesquisador Michel Odent a respeito da fisiologia
do parto e das mais recentes descobertas sobre as funções neurológicas e hormonais
que envolvem o processo do parto. Vou ao animal biológico que nós humanas e hu-
manos somos. Exponho a visão de Odent de que o componente cultural, crenças,
hábitos, rituais, interferências, são responsáveis por desconectar os corpos-em-parto
de suas funções naturais instintivas mais importantes para que o parto seja bem-su-
cedido. Em contraponto, trago o que seja talvez um modo de conhecimento oposto,
o ameríndio, no qual a subjetivação extrema é responsável pelo conhecimento total
do universo; onde os componentes sociais, culturais, biológicos se amalgamam e po-
tencializam o que o antropólogo Viveiros de Castro denomina de “experiência total”.
O nascimento, assim como a morte, é carregado de elementos rituais sustentado-
res para que estas passagens possam ser plenamente vivenciadas e apreendidas. O
xamã, neste modo de conhecimento, é o catalizador e organizador dos mitos e ritos.
O animal aqui chamo de “animal simbólico”, animal sagrado, totêmico. Este animal
se apossa dos corpo-em-parto quanto mais disponíveis e expostos estejam. Trago
aqui a experiência da nudez, do corpo exposto e observado, do corpo aberto, e as
diferenças de apreensão da experiência do parto, através das narrativas, de quem
pariu em instituições de saúde e de quem pariu em casa. Por último, fecho o capítulo
trazendo uma visão contemporânea do que seja um corpo em movimento, ou o que
entendo como sendo o corpo-em-parto, que intuo seja uma espécie de “síntese” das
duas visões anteriores: a visão da filosofia processual através da pesquisadora, artista
e filósofa Erin Manning. Através principalmente de sua obra Politics of Touch – Sen-
se, Movement, Sovereignty (Políticas do Toque – Sentido, Movimento, Soberania),
Manning estuda o corpo sensível, o corpo relacional e suas fricções com modos de
entendimento estáticos e categorizadores. Postulo aqui que os corpos-em-parto são

36
corpos que afrontam: a assistência, o controle, o Estado, a hierarquia. Mais do que
isso: corpos-em-parto são corpos em permanente transformação, em infinitos desdo-
bramentos, fricções, implosões e explosões. Animais, deidades, espectros, imagens-
-memória, dissoluções, o Cosmos-parto é um caldeirão borbulhante de presenças
e desterritorializações. Estes modelos de pensamento sobre o corpo me colocam
diante da experimentação prática. E me lanço nos braços da criação.

Quem ampara meu salto e me recebe é Iemanjá, senhora que preside o Capí-
tulo III – ABUNDÂNCIA. Em seu colo geracional, eu me espraio nas experimentações
para a criação das performances Primagesta, Trigemelar e Mamífera Reptiliana. No
meio do caminho, ainda faço um pequeno caminho alternativo inesperado para a
experiência da contação de histórias através da criação das Mitoprofânicas. Exponho
o processo de ensaios, fragmentos dos diários de bordo, do trabalho de campo,
as imagens, as dúvidas, os caminhos escolhidos e descartados, e ao fim de cada
compartilhamento, como tem sido a apreensão pelo público e o diálogo com este.
É um capítulo que não termina, pois que as performances estão em pleno processo
de ebulição e exposição, fazendo-se fluidas e abertas à mudança. Estão em meio. A
forma, as imagens e os vídeos são apenas uma apreensão parcial do movente, em
permanente devir.

Sobre procedimentos e engendramentos não ortodoxos...

O lugar desta explanação mata um pouco do mistério, mas que vejo necessá-
rio e inevitável, assim como condeno e vejo como inevitável vermos os objetos sa-
grados das culturas arcaicas descontextualizados de seus mistérios e forças ao serem
expostos em museus pelo mundo. Minha trajetória concomitante à de artista sempre
foi e é de uma buscadora de auto-conhecimento e consciência de mim mesma e dos
mundos nos quais transito. Esta trajetória se traduz em busca espiritual e sabedoria
por outras vias que não a científica, sem prescindir desta. Bibliografias não acadê-
micas, fontes orais, encontros com mestras e mestres, fazem parte da minha cons-
tituição como ser andante e interferente e não podem ser colocados à parte desta
pesquisa.

Não cabe aqui aprofundar ou descrever detalhadamente minha trajetória de
busca espiritual, mas basta seguir o fio umbilical: parte do catolicismo familiar, herda-

37
do; passa pelo espiritismo kardecista por curiosidade e vontade de enfrentamento,
ao perder a fé na formatação e dogmas católicos; resvala no budismo tibetano e
nos preceitos do hinduísmo, através da yoga (que permanecem como forças sus-
tentadoras e estéticas da minha prática); e desemboca com força na doutrina do
Santo Daime e no xamanismo e, dentro destes mas desde um tempo posterior trans-
bordando destes, da Umbanda. A partir da Umbanda, e neste momento ancorada
nela, espalho meus tentáculos curiosos para estudos sobre as mitologias femininas
e seus ritos, onde outras matrizes culturais se apresentam (a celta, a eslava, a grega,
a egípcia, a xamânica sul, centro e norte americana). Dentro da Umbanda e também
no meu cotidiano, exerço estudos e vivências mediúnicas, que abrem caminhos de
estudos oraculares, ainda em inícios. E chego recentemente ao Oráculo da Deusa
(MARASHINSKY, 2007), um jogo oracular que contém cinquenta e duas cartas, cada
uma com uma deusa de uma cultura diferente, sintetizando um aspecto do feminino
para ser estudado, assimilado, desafiado28.

O jogo em si é bastante acessível e fácil de ser encontrado e manipulado. Mas


cada deusa apresentada abriu para mim um universo infindável de conhecimento e
assombro, e fui atrás das matrizes de cada uma (não todas, mas aquelas que
representavam aspectos do feminino que me interessavam para a pesquisa,
já mencionados antes). Muitas delas já se apresentavam muito modificadas
no baralho, com mitos e reconhecimentos posteriores à instauração das so-
ciedades patriarcais, portanto domesticadas. O processo de investigação foi
seguir seus passos retrocedendo às suas origens, até quanto foi possível. E
foi possível, em algumas, retroceder muito.

O reconhecimento também de que eu estava falando com uma


única Grande Deusa, ou grande Mãe, libertou-me de ficar presa a
uma única cultura, ou a matrizes muito restritas, pois, apesar do
aspecto pictórico humano das cartas, muitas de suas aparições
nos tempos arcaicos não se configuravam como reconhecíveis
de forma humana, ou mesmo sua simbologia permanecia es-
tranha e velada. São forças, desdobramentos de uma única
divindade, vários nomes e faces para forças tectônicas, cósmi-
28
Este oráculo está permanentemente em consulta semanal, por vezes diá-
ria, e uso como procedimento ritual para meu autoconhecimento e consultas
eventuais de outras pessoas.
38
cas, naturais, reconhecidas pela humanidade como poderes do feminino que podem
se expressar tanto nas mulheres quanto nos homens.

Retornando às deusas estudadas: selecionei do baralho aquelas que já tinha


aprofundado e que me interessavam para conversar com as narrativas de parto e
com possibilidades das criações das performances. Antes de iniciar a escrita, decidi
escolher guardiãs de cada capítulo, desde a introdução, inspiradoras e provocadoras
dos conceitos e procedimentos investigados. E para isso, fiz um jogo oracular para
cada seção. As deusas que se apresentam aqui são quatro, que reconheço também
estarem em sustentação nas narrativas de parto, aparecendo nesta ordem: Demé-
ter, Eurínome, Sekhmet e Iemanjá. Para além de suas matrizes culturais, carregam
junto inúmeras outras deusas, sintetizando poderes, aspectos, qualidades, sombras,
elementos da natureza, animais totêmicos. Poderiam ser outras; mas o oráculo – e a
Grande Mãe - quis que estas se apresentassem. Dentro de cada nome, um universo
de possibilidades. Elas convidam quem as lê, sob a forma de Cantos invocatórios, a
entrar no meu parto. E assim, entrar em vários partos.

39
Índice das imagens

1. Detalhe de apresentação da performance Primagesta (nov/2018 - CEART/UDESC - Florianópolis)


Performer: Daniela Carmona
Foto original: Mariana Rotilli

2. Imagem de Deméter - Grécia, séc. V a.C. - arte sobre original.


Fonte: JOHNSON, Buffie. Lady of the Beasts - The Goddess and Her Sacred Animals. Rochester: Inner
Traditions International, 1994, pg. 162.

3. Detalhe de apresentação da performance Trigemelar (dez/2017 - Casa 431 - Florianópolis)


Performer: Daniela Carmona
Foto original: Jerusa Mary

4. Detalhe de apresentação da performance Trigemelar (dez/2017 - Casa 431 - Florianópolis)


Performer: Daniela Carmona
Foto original: Jerusa Mary

5. Uma das duas deidades irmãs, do Palácio de Knossos - Creta, séc. XVI a.C. - arte sobre original.
Fonte: JOHNSON, Buffie. Lady of the Beasts - The Goddess and Her Sacred Animals. Rochester: Inner
Traditions International, 1994, pg. 143.

6. Detalhe de ensaio da performance Mamífera Reptiliana (abr/2019 - CEART/UDESC - Florianópolis)


Performer: Daniela Carmona
Foto original: Spyder

7. Detalhe de vivência para a performance Mamífera Reptiliana (mar/2019 - Florianópolis)


Performer: Daniela Carmona
Foto original: Mariana Rotili

8. Relevo em mármore de Zeus como uma serpente - Ilha Zea nas Cíclades, séc. IV a.C. - arte sobre
original.
Fonte: JOHNSON, Buffie. Lady of the Beasts - The Goddess and Her Sacred Animals. Rochester: Inner
Traditions International, 1994, pg. 159.

9. Detalhe de apresentação da performance Primagesta (nov/2018 - CEART/UDESC - Florianópolis)


Atriz convidada: Rafaela Herran
Foto original: Mariana Rotili

40
10. Estátua em terracota de uma divindade entronada, provavelmente Deméter. Sicília, cerca do sécu-
lo VI ou V a.C. - arte sobre original.
Fonte: www.ancient.eu/image/621/seated-demeter-figurine/

11. Adaptação artística de detalhe de pintura em vaso grego. Grécia, cerca de 470-460 a.C.
Fonte: https://www.theoi.com/Gallery/O28.2.html

41
ÊXTASE
O confronto de si com o outro

Canto de Eurínome
Mulher:
Danço selvagem sobre o Nada,
nascida do Caos como você, nua.
Nada há sob mim ou sobre mim
A dança é minha essência, é sua essência.
Sou a Antes de Tudo, Deusa de Todas as Coisas
e rodopiando girando espiralando separo Mar e Céu.
Cabeça nas nuvens, tocando os pés no Mar,
crio o Vento Norte por trás de mim
Apaixonado, ele me persegue;
Inebriada de êxtase, tomada de gozo,
convulsionando de prazer,
agarro-o e moldo a Grande Serpente amante, Ófion.
Mulher, sabe você o que é o descontrole,
a fúria do desejo, a vertigem e a pulsão de criar?
Pode imaginar o que Ófion sente
ao me ver dançando assim?
Enrolando-se e esfregando lascivo
seu corpo sem corpo, nu de carne, ossos e materialidade,
por minha pele, cabelos, entranhas e dobras
em orgasmos dançantes
Ófion fertiliza meu útero de Tudo o Que Existe.
Assim prenhe, pomba amorosa, boto em êxtase o Ovo Universal,
que dividido em dois, transborda nossos filhos e filhas:
Sol, Lua, planetas e estrelas, Terra,
rios, mares, florestas e tudo que anda, nada,

42
voa e se aterra sobre a Terra

Mas macho é arrogante e egocêntrico, bem sabe...
Quer levar os louros de nossa concepção sozinho,
esse tal Ófion... gaba-se de ser o Único Pai.
Subjugo de meu corpo, de meu transbordamento
Opressão de minha força, de minha multiplicidade
Humilhação de minha condição criadora
Rapto de minha Natureza Primordial,
sufoco de minha essência.
Não. Não. Não.
Em nossa casa Olímpica, enfurecida,
quebro com um chute seus dentes
e ele vai-se para as profundezas da Terra,
para os infernos do Universo.
Quem pare é a Mãe. E Mãe sou.
De Titãs, deusas e mulheres.
De homens e heróis.
Crio, zelo, recrio e mantenho.
Sou seu orgasmo, sua pele nua, seus tremores, suas paixões.
Estou em cada óvulo seu, cada recomeço.
Cada orgia do mundo me carrega como motriz, matrix.
Grite meu nome, não se deixe domesticar. Sou Eurínome.1

1
Inspirado no mito de Eurínome. ’A Universal’, a Creatrix Pelasgiana, Eurínome (Themis é outro de
seus nomes) surgiu só e nua sobre o Caos, dançando sozinha uma dança de êxtase incessante. Fecun-
dada pela serpente Ófion, que foi moldada por ela mesma a partir do Vento Norte, transformou-se
em pomba e botou o Ovo Primordial, que foi chocado por Ófion e, ao cair, quebrou-se em dois e criou
tudo o que existe. Como, ao chegarem ao Olimpo, Ófion gabou-se de ter criado o Universo sozinho,
Eurínome se enfureceu e quebrou seus dentes, chutando-o e banindo-o para as profundezas abaixo
da terra.
Os pelasgianos foram um dos primeiros povos da era Neolítica a ocupar a Arcádia e diziam que o pri-
meiro homem, Pelasgio, foi criação de Eurínome, que antes já havia criado os sete poderes planetários
e colocado um par de Titãs para governar sobre eles; o Sol, a Lua, Marte, Mercúrio, Júpiter, Vênus
e Saturno. Assim como muitas outras deusas-símbolo da Grande Mãe, Eurínome foi demonizada e
transformada em um demônio masculino, pertencente ao inferno, descrito muitas vezes como um
Príncipe da Morte. Fontes: MONAGHAN, Patricia. The New Book of Goddesses and Heroines. St.
Paul: Llewellyn Publications, 2000, pp. 119; WALKER, Barbara G. The Woman’s Encyclopedia of Myths
and Secrets. New York: HarperCollins Publishers, 1983; pp. 287; GRAVES, Robert. The Greek Myths.
London: Penguin Books Ltd, 2011; tradução nossa.

43
“Ela: [...] ele falou “tá com oito
de dilatação, eu tô encostan-
do, ó, esse aqui é o nariz do
bebê; o batimento dele caiu
um pouco, mas não muito, tá
1.1. A domesticação do parto; normal; vamos encaminhar pra
cesárea”. Isso foi, né, essa se-
a correção do corpo distorcido quência de afirmativas assim,
eu fui seguindo tudo que ele
tava falando, acompanhando o
Domesticar: amansar, educar, do- que ele tava falando... quando m a r ,
ele concluiu com “vamos enca-
tornar dócil: implicações do que co- minhar pra cesárea”, foi realmen- nhece-
te... claro que naquele momento eu
mos como modos de “ins- não fiquei questionando mas “é isso? titucio-
nalização”. Acompa- Não é, mas...”, eu sei que rolou um... uma nhado ao
quebra de expectativa muito grande, né, de
processo de ins- se tá tudo bem, tá tudo bem, que é que tá titucionali-
rolando? Porque é que a gente vai pra
zação e con- cesárea? Porque é que não pode ser trole, podemos
r e c o n h e - anestesia? E ele falava “tem cesáreas cer uma conduta de infan-
na frente, casos de urgência na fren-
tilização te, então não vai ter como ter anes- das emoções e expressividades,
tesia mesmo, tem que ser cesárea”.
E daí eu fiquei naquele... nessa hora como quando, por exemplo, os fun-
eu senti, assim, a força minar, sabe? cionários e agentes da saúde, por dimi-
Porque, se tá tudo bem, tá tudo bem,
o que você espera ouvir é “vai aí que, que nutivos, falam com docilidade sussurrada
logo acaba, né, logo você tá com seu filho”. E aí
você ouvir “tá tudo bem, vamos pra cesárea”, você e infantilizada, falseiam uma intimidade ao
pensa “então não tá tudo bem”, ou “porquê?”, né? passar a mão na cabeça, tratando a mulher
Mas é um momento que você realmente, é... tá
muito cansada, sabe?” que vai entrar em uma maternidade como a

“Ela: [...] ele falar isso, você já, você não uma rês que vai ser abatida, um cachorro que
quer mais sentir aquela dor, você vai ser trancafiado.
já tá achando que você e
seu filho não
Há marcas contundentes deste começo de institucionalizações e
catalogações: cicatrizes, mutilações, chacinas e dores muito mais fundas e seminais
que marcam o início do que na contemporaneidade pesquisadoras como a socióloga
Riane Eisler, a arqueóloga Marija Gimbutas, a artista e pesquisadora Buffie Johnson,
a historiadora Merlin Stone, entre outras, denominam “sociedades de dominação”,
ou seja, o início do patriarcado, que situam aproximadamente em 2.500 a.C. na re-
gião que hoje compreende a Europa e a parte oeste da Ásia. Especialmente Eisler e
Gimbutas, embora não direcionem seus estudos e novas interpretações sobre acha-
dos arqueológicos para as regiões do continente africano subsaariano, do extremo
oriente ou mesmo das civilizações pré-colombianas do continente americano, bem
como da Oceania, especulam que o mesmo processo de substituição de “sociedades
de parceria” pelo modelo patriarcal tenha ocorrido simultaneamente em todas as
regiões do globo. Antes de ocorrer esta ruptura (sobre a qual discorro brevemente
mais à frente) entre os dois modelos principais de estruturação das sociedades, essas
pesquisadoras buscaram rever o conceito de “pré-história” forjado por esse mesmo

44
vão aguentar, e aí... é... você
não, né, eu... eu já tava achando
que não ia aguentar mais e ouvir
isso dele realmente minou assim,
sabe, eu meio que me entreguei a
modelo patriarcal sob um novo olhar, reco- essa, essa... constatação dele, não é
constatação a palavra, esse... ultimato
nhecendo este olhar patriarcal para o pas- assim, né, você se entrega, você fala
“então é isso, é isso”. Mas ao mesmo
sado como um recorte parcial e tradu-
tempo, eu não sei como que as coisas
tor de uma visão de mundo míope foram acontecendo, eu sei que já veio
entrando a enfermeira, é... já encami-
e tendenciosa. Pois os historiado- nhando tudo pra cesárea e sem muito res,
tempo, não tem muito tempo de você
antropólogos e arqueólogos de até as
raciocinar mesmo, entender o que é
primeiras décadas do século que tá rolando... eu sei que no cami- XX, chamam
nho pra sala de cirurgia eu precisei
de “pré-história”, ou seja, não ir no banheiro [...] e nessa ida pro c o n s i d e r a m
como um tempo digno de figu- banheiro eu tive um momento de rar como “his-
falar assim “não, não precisa ir pra
tórico”, mais de nove mil anos cesárea, eu preciso de uma aneste- de humanidade
sia pra poder seguir, mas não pre-
em organizações coletivas, com- cisa ir pra cesárea”, aí eu falei com preendendo os
períodos Paleolítico e Neolítico ela “eu não consigo anestesia?” e ( J O H N S O N ,
ela falou “não, nós já vamos re-
1994, pg. 5). Ao apartarem e ins- solver, nós já vamos resolver”. E t i t u c i o n a l i -
no que eu sentei no vaso e senti,
zarem este vasto período apenas senti essa vontade de fazer for- e singela-
ça, eu quis muito me movimen-
mente como “pré”, desconsideram, desprezam
tar, fazer os movimentos que a
a relevância histórica da passagem dos gente já tava trabalhando des- homens e
de sempre. E aí eu lembro que
mulheres deste tempo e a criação e con- eu fiquei tentando segurar nela solidação
de seus modos de vida, sua cultura, seus pra fazer esses movimentos e s í m b o -
ela não se ofereceu assim, né
los, seus mitos. [...], ela não ofereceu e eu fiquei
assim, meio que agarrando ela
onde dava assim, sabe, eu lem-
Procuro justamente esta voz “pré”, bro muito bem dessa cena assim q u e
porque ela ficou parada ali olhan-
se posiciona mais atrás, que ecoa, rever- do, esperando eu resolver o que b e r a ,
eu tava fazendo e não se ofere-
atravessa e marca o presente, a linguagem, ceu, sabe, assim “ó, tá aqui o meu a s
braço”, ou qualquer coisa. E... e aí
instituições para experimentar outros en- redos
eu falei com ela isso, de, de não
possíveis de serem encenados no coti- precisar da cesárea de “não tem d i a n o
como só a anestesia?” e ela “não,
dos nasceres. Estou aqui, forma e mo- nós já vamos resolver”, eu lembro vimento
pertencente uma sociedade ociden- dela falar isso “já estamos resol- tal con-
vendo, vamos que daqui a pouco
temporânea, cujos dispositivos de você vai estar com seu filho”. Fo- organiza-
mos seguindo pra sala de cirurgia.
ção e controle2 são tão explí- E aí esse caminho pra sala de cirur- citos que
gia, eu tava sentindo uma contra-
podem ser facilmente iden- tificados. Tais
ção, não tava, não tava tendo interva-
lo também, e... ou às vezes tinha, né,
2
Muito foi escrito sobre a conexão entre institu-
mas era tudo tão rápido, eu não sei, eu
cionalização e controle do corpo, principalmente
tava sentindo dor mesmo, constante
a partir da obra de Mi- chel Foucault História da
assim e... e a gente indo pra lá... pare-
Sexualidade (ver volume 1, A Vontade de Saber,
cia o infinito, parecia que aquela porta
cap. II, págs 19-57). En- tretanto, neste trabalho não
lá não chegava, sabe, eu muito tris-
me aterei em confron- tar ou complementar tais dis-
te mesmo, naquele momento eu só
cursos, posto que o foco aqui está na elaboração de
tava muito triste de estar entrando
trabalhos no campo da pesquisa-criação.
naquela sala, mesmo assim, eu tava
muito decepcionada. [...]” 45
(Graziela, cesárea intraparto em hospi-
tal público em Florianópolis, SC)
dispositivos são perpetuados através de protoco-
los e regras gerais exercidas por todas/todos que
simultaneamente performam tais condutas e são
subjugadas/subjugados a elas. Assim, a Institucio-
nalização de procedimentos sociais, de saúde, de
educação é, notoriamente, um dispositivo que,
através da premissa de amparar, limita a natureza
da experiência vivida. “Institucionalização - ação
de institucionalizar, de se tornar uma instituição
ou de atribuir caráter institucional a; oficialização;
ação de passar a pertencer, de fazer parte de uma
instituição ou de uma organização que atende às
necessidades sociais e coletivas de uma socieda-
de.”3 Cada um destes verbos, em sua literalidade,
recria imagens já testemunhadas nas cenas vistas,
sabidas e propagadas a partir de protocolos clí-
nicos para o trabalho de parto. Antes, protocolar
todo o ciclo da concepção, gestação, parto, pós-
-parto. Protocolar coloca o parto desnudo em pú-
blico, escancara a porta de uma experiência do fe-
minino, expõe teores e humores e odores íntimos
do parto, cientificiza e objetifica o nascimento.
Analogamente, remeto-me aos escritos de Michel
Foucault sobre a explicitação dos discursos sobre
o sexo (experimente trocar a palavra “sexo” por
“parto”...), assumindo desde agora a dimensão
sexual do parto:
[...] Sobre o sexo, os discursos [...] não cessaram
de proliferar: uma fermentação discursiva que
se acelerou a partir do século XVIII [...]. Mas o
essencial é a multiplicação dos discursos sobre
o sexo no próprio campo do exercício do po-
der: incitação institucional a falar do sexo e a fa-
lar dele cada vez mais; obstinação das instâncias
do poder a ouvir falar e a fazê-lo falar ele pró-

3
Fonte: https://www.dicio.com.br/institucionalizacao/ . Con-
sultado em: 23/09/2018
46
prio sob a forma da articulação explícita e do detalhe infinitamente acumulado. (FOU-
CAULT, 2017)

Protocolar o trabalho de parto arromba um dos redutos exclusivamente femi-


ninos, um acontecimento usualmente experienciado em confraria protetora: a cena
do parto. No contexto urbano contemporâneo ocidental - e especialmente em países
em desenvolvimento, onde a prática obstétrica ainda segue protocolos ultrapassa-
dos e não-recomendados pelas principais organizações de saúde -, observo o quanto
enfraquecer o corpo, mutilar a potência, despudorar o íntimo e assim uniformizar e
coletivizar o nascer tornaram-se condutas aceitáveis. Somos todas iguais perante a
instituição de saúde: um manual generalizante de pontos de passagem, ações nor-
mativas achatadas, catalogadas e fichadas. Deu certo, não deu certo. Dilatou, não
dilatou. Saiu pela vagina, saiu pelo abdômen. Controle de qualidade, índices de ex-
celência, partogramas4.

Preciso entender em que ponto se dá o início do processo de domestica-


ção do parto. Mesmo na configuração patricarcal hegemônica da humanidade des-
de cerca de 2.500 a.C., o parto supõe-se ser um reduto eminentemente feminino,
interdito aos homens, um mistério respeitado e não perscrutado da vida privada.
Encontro, para além das análises socio-filosóficas de Michel Foucault, no trabalho da
na historiadora italiana Silvia Federici uma origem institucional sólida diretamente
relacionada ao advento do capitalismo. A institucionalização do parto é parida junto
à sociedade de consumo, filhas do capitalismo mercantilista da transição da Idade
Média para o Renascimento, e da tomada do poder ideológico pela ciência, destaca
a autora (FEDERICI, 2017); e se estabelece e amadurece definitivamente, saindo das
casas para os hospitais e maternidades, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial
(OSAVA, 2004), cristalizando uma estrutura organizacional que é notadamente pa-
triarcal, masculina, invasiva e perscrutadora do mistério.

4
Documento de prevenção do trabalho de parto prolongado, editado pela OMS (Organização Mun-
dial de Saúde) e adotado no Brasil pelo Ministério da Saúde. Criado para garantir um melhor manejo
e acompanhamento do trabalho de parto nas instituições de saúde, é responsável muitas vezes por
determinar cesáreas intraparto desnecessárias, baseadas em parâmetros gerais que não contemplam
a singularidade de cada gestante, cada bebê e cada parto. A própria pressão por “resultados de ex-
celência” que precisam se enquadrar nos parâmetros do partograma muitas vezes gera pressão, por
parte da assistência, para que a gestante não se demore em cada fase do parto, o que gera ansie-
dade e medo nesta e a consequente paralisação do próprio trabalho de parto, o que leva a o que se
considera uma “cascata” de intervenções, tais como indução com ocitocina sintética, analgesia, entre
outras, que podem levar à cesárea, simplesmente porque o trabalho de parto não seguiu o protocolo
esperado.
47
A transposição do parto da casa para o hospital é uma incisão precisa e cirúr-
gica no parto doméstico, que, a partir do século XX, carrega a nova ciência como
alicerce e a normatização como reboco. Mas o processo inicia muito antes, de forma
crescente e assustadora. Com o nascimento, na Europa, do capitalismo no século
XVI, inicia-se a gradativa e definitiva transformação dos corpos dos trabalhadores do
campo e das cidades em máquinas de trabalho. Para que estes corpos sejam abun-
dantes em número, ocorre um lento
processo de degradação e sujeição
das mulheres, tanto na Europa quan-
to nas colônias da América, para a
reprodução desta força de trabalho.
O Estado, corroborado pela Igreja
e também pela Reforma Protestan-
te, determina que é preciso tirar o
poder das mulheres; um dos mais
eficientes mecanismos para esse
subjugo é a caça às “bruxas”, que
destrói “todo um universo de práti-
cas femininas, de relações coletivas
e de sistemas de conhecimento que
haviam sido a base do poder das
mulheres na Europa pré-capitalista
[...].” (FEDERICI, 2017, pg. 205)

Alicerce importante para este


processo é o advento da filosofia
mecanicista, que tem seu maior ex-
poente em Descartes, e dá susten-
tação ideológica aos mecanismos de institucionalização e domesticação dos corpos
da massa proletária nascente. Para que estes mecanismos sejam eficientes, é preciso
matar a concepção, segundo Federici, do corpo como um “receptáculo de poderes
mágicos”, uma concepção predominante em escala popular na Idade Média, apesar
do esforço da Igreja Católica e do Estado para erradicá-la. E Descartes, com suas
experimentações científicas para provar que não há nada de mágico ou espetacular
no corpo, é extremamente bem-sucedido em suas obras. O conceito do corpo como

48
lugar de poderes mágicos morre. Como diz Federici:
[...] Por trás da nova filosofia encontramos a vasta iniciativa do Estado, a partir da qual
o que os filósofos classificariam como “irracional” foi considerado crime. Esta interven-
ção estatal foi o “subtexto” necessário da filosofia mecanicista. O “saber” apenas pode
converter-se em “poder” se conseguir fazer cumprir suas prescrições. Isso significa que
o corpo mecânico, o corpo-máquina, não poderia ter se convertido em modelo de com-
portamento social sem a destruição, por parte do Estado, de uma ampla gama de cren-
ças pré-capitalistas, práticas e sujeitos sociais cuja existência contradizia a regulação do
comportamento corporal prometido pela filosofia mecanicista. É por isso que, em plena
Era da Razão – a idade do ceticismo e da dúvida metódica -, encontramos um ataque
feroz ao corpo, firmemente apoiado por muitos dos que subscreviam a nova doutrina.
(FEDERICI, 2017, pg. 257)

A filosofia mecanicista coloca a ênfase final para haver uma real, cruel e vio-
lenta intervenção nos corpos femininos. “Um elemento significativo, neste contexto,
foi a condenação do aborto e da contracepção como um maleficium, o que deixou o
corpo feminino – o útero foi reduzido a uma máquina para a reprodução – nas mãos
do estado e da profissão médica.” (FEDERICI, 2017, pg. 262)

Neste contexto as parteiras, antes as principais assistentes dos partos, são aos
poucos marginalizadas e apontadas como responsáveis por infanticídios e abortos.
Assim, começa um processo de perda do controle que possuíam sobre a procriação,
que passa a ser exercido por médicos homens ou farmacêuticos. Ainda assim, mes-
mo que clandestinamente, a comunidade feminina ainda prefere entregar os partos
às mãos das parteiras, correndo o risco de serem descobertas e enviadas às fogueiras
da Inquisição (FEDERICI, 2017). Há uma relutância natural em serem vistas em suas
intimidades do parto por homens. O parto domiciliar atendido por mulheres, ainda
que cada vez mais hostilizado, predomina até o século XX. Mas sofre um processo
inexorável de desqualificação, apropriação masculina, cientificista e intervencionista
ao longo de quatro séculos5.

5
Todo este panorama do advento do capitalismo na Europa e posteriormente nas colônias, e sua re-
49
Para olhar para a institucionalização moderna e contemporânea do parto, olho
para o imaginário do corpo feminino, uma mistura bizarra de visões religiosas e mo-
rais com concepções da filosofia mecanicista de Descartes, que carrega pressupostos
herdados da Idade Média. Há um ranço de susto, espanto e medo diante do que
parece ou quer parecer monstruoso. O corpo feminino é visto como uma aberração
invertida e mal-acabada do “completo” corpo masculino. As dissecações dos cadá-
veres femininos são feitas e interpretadas sob esta lente torta, propositalmente mío-
pe, que enxerga, antes mesmo das facas dissecadoras, o que quer enxergar: corpos
inferiores, maléficos para os homens e para as próprias mulheres, cheios de venenos,
putrefações, escuros, miasmas e demônios6. Encontro na historiadora brasileira Mary
Del Priore a afirmação de que é a partir de uma visão medieval do corpo feminino,
que perdura até a Idade Moderna, que este é considerado disforme e defeituoso, e
colocado em contraposição, como um “negativo” do corpo masculino. Ela escreve:
[...] O clitóris não passava de um pênis miniaturizado, capaz, tão somente, de uma curta
ejaculação. Sua existência apenas endossava a tese, comum entre médicos e estudiosos
da física natural, de que as mulheres tinham as mesmas partes genitais que os homens só
que – segundo Nemésius, bispo de Emésia no século IV – ‘elas a possuíam no interior do
corpo e não, no exterior’. Galeano [...], no século II de nossa era, [...] empenhou-se com
afinco em demonstrar que a mulher não passava, no fundo, de um homem a quem a falta
de calor vital – e portanto, de perfeição – conservara os órgãos escondidos. Nesta linha-
gem de ideias, a vagina era considerada um pênis interior, o útero, uma bolsa escrotal, os
ovários, testículos e assim por diante. [...] (DEL PRIORE, 1999)

A desqualificação moral e física dos corpos femininos, ao contrário do que se


suporia acreditar ser desmantelada pelas descobertas científicas da Idade Moderna,
a partir do século XVI, e pelo assombroso avanço das ciências médicas a partir do sé-
culo XVIII (com a criação de ferramentas, medicamentos e procedimentos, bem como
a proliferação das universidades científicas, impulsionadas pela Revolução Industrial),
manteve sua contaminação ideológica. A reavaliação da feminilidade das mulheres, a
partir de seus próprios corpos, “contudo, não desfaz o imaginário que sempre existiu
sobre ele, mas o incentiva a adquirir novas dimensões. É como se as viagens pelo
interior feminino não tivessem fim”, complementa Del Priore.

lação direta com a domesticação e subjugo das mulheres, está na obra Calibã e a Bruxa, de Silvia Fe-
derici. Não cabe nesta pesquisa o mergulho profundo que ela faz sobre esse assunto, mas é uma obra
fundamental para entender o recrudescimento do patriarcado a partir da ciência, do Iluminismo e da
concentração de poder nas mãos do Estado, que reconfigura a imagem da humanidade moderna.
6
Para maiores descrições destas imagens do corpo feminino no Brasil colônia, ver PRIORE, Mary Del.
Magia e Medicina na Colônia: o corpo feminino, in História das Mulheres no Brasil. Org. Mary Del
Priore. São Paulo: Contexto, 2018, pg. 84.
50
Segundo as descrições de Bessa e Ferreira7, o movimento de institucionaliza-
ção surge como uma possibilidade de “corrigir” o mal-feito da natureza. Os casos
problemáticos de partos começam a migrar para os hospitais e para as mãos dos
médicos homens e, rapidamente, mesmo os partos considerados normais, quando
tudo corre bem, vão para a segura instituição hospitalar, que além de oferecer o be-
nevolente serviço de corrigir os descaminhos do corpo da mulher, oferecem a reden-
ção do sofrimento do parto. É o saber-poder-fazer masculino que toma as rédeas do
processo, desqualificando saberes empíricos e femininos a respeito do parto, rele-
gando as parteiras tradicionais8 a posições marginais e marginalizadas (no Brasil uma
parteira tradicional, até o presente momento, não tem permissão para entrar em um
hospital, seja público ou privado, e exercer sua profissão). Entram em cena os instru-
mentos metálicos de facilitação e correção do parto: fórceps9, bisturis, cardiotocos;
bem como procedimentos profiláticos e assépticos para o controle total do processo:
lavagem intestinal, tricotomia (raspagem total dos pelos pubianos), ambiente estéril,
hiper-iluminado, anestesia, episiotomia (o popular “cortezinho” no assoalho pélvico),
cesáreas de rotina; e o cerceamento dos movimentos da mulher, obrigando-a a ficar

7
BESSA, LF, FERREIRA, SL. Mulheres e parteiras: contribuição ao estudo do trabalho feminino em
contexto domiciliar rural. Salvador (BA): GRAFUFBA; 1999.
8
Parteiras tradicionais são mulheres que aprenderam o ofício empiricamente, herdando um saber
tradicional passado de geração em geração, que não compreende uma formação acadêmica científi-
ca. Atuam predominantemente hoje em dia nas áreas rurais, onde o acesso a instituições de saúde é
difícil. Até o advento das instituições médicas, eram as responsáveis pela assistência ao parto. E em
sua maioria não cobravam pelos serviços. Parteiras contemporâneas, ou obstetrizes, são mulheres
com formação científica técnica ou acadêmica, que atuam em ambiente predominantemente urbano
em partos domiciliares ou em casas de parto. Normalmente seu trabalho é remunerado de maneira
particular ou, no caso das casas de parto, pelos órgãos públicos de saúde.
9
Fórceps: instrumento utilizado na extração do feto quando este já está próximo da saída do canal
vaginal, ou seja, coroando. Foi inventado no século XVI na Inglaterra e era muito utilizado em partos
normais, com pouca ou nenhuma preocupação sobre seus efeitos adversos, no feto e na mulher. É se-
melhante a uma tenaz, onde as pontas, hoje em dia, assumem a forma de duas colheres para encaixar
melhor a cabeça do bebê. Está sendo cada vez menos recomendado, devido à agressividade de seu
uso e do desconforto que causa na mulher, e substituído por procedimentos bem menos invasivos
(o fórceps, para ser usado, precisa que seja feita uma episiotomia, ou corte na vagina, para alargar a
saída).

51
em posição deitada, com as pernas elevadas, em posição passiva e submissa, para
que o médico seja onipresente, onipotente e autor de um nascer.

Toda esta história culmina e está explicitada atualmente tanto na legislação
que regulamenta a prática do atendimento à gestação, parto e pós-parto no Brasil,
quanto nas condutas cotidianas das instituições hegemônicas de atendimento (hos-
pitais e maternidades). Passa a ser motivo de investigação em meu processo criativo
pois interfere diretamente na apreensão da experiência do parto pelas mulheres que
deveriam ser as protagonistas deste. Interfere diretamente na compreensão, vocabu-
lário e imagens que a sociedade projeta do que seja um trabalho de parto. Interfere
diretamente em direitos reprodutivos reivindicados pelas mulheres, e feridos pela
gestão, legislação e assistência, que deveriam ser as responsáveis pela guarda e apli-
cação desses mesmos direitos. Interfere nas relações entre mães e bebês, entre mães
e companheiros, mas fundamentalmente entre mulheres consigo próprias, com seus
corpos, seus afetos, seus limites e potências. Não me é possível falar sobre o Cos-
mos-parto sem considerar os atravessamentos agudos das normativas (explícitas e
implícitas) e consequentes condutas em seu campo. Sou testemunha e receptora de
narrativas desses atravessamentos. Eles também clamam por fazer parte dos meus
processos de investigação e criação.

1.2. O que testemunho, o que transformo em mim

Pouco menos de oitenta anos tem essa nova história do parto. E avassaladora,
varrendo para um obscuro esconderijo soterrado crenças e saberes sobre a natureza
fisiológica do parto. Em minha trajetória de vida, eu mesma, até o nascimento de
meu terceiro sobrinho, acreditava como a maioria da sociedade ocidental contem-
porânea, em todos esses “mitos”10 laicos sobre o nascimento humano: cortezinho
na vagina, anestesia imprescindível, deitar em decúbito dorsal, cesáreas salvadoras,

10
Com relação ao conceito de mito como sinônimo de “mentira”, ou “ficção”: segundo Eliade, “em
nenhuma outra parte vemos, como na Grécia, o mito inspirar e guiar não só a poesia épica, a tragédia
e a comédia, mas também as artes plásticas; por outro lado, a cultura grega foi a única a submeter o
mito a uma longa e penetrante análise, da qual ele saiu radicalmente ‘desmistificado’. A ascensão do
racionalismo jônico coincide com uma crítica cada vez mais corrosiva da mitologia ‘clássica’ [...]. Se em
todas as línguas europeias o vocábulo ‘mito’ denota uma ‘ficção’, é porque os gregos o proclamaram
há vinte e cinco séculos.
[...] Essa tese, a saber, que os mitos divinos apresentados pelos poetas não podiam ser verdadeiros,
triunfou, inicialmente, entre as elites intelectuais gregas e, finalmente, após a vitória do cristianismo,
em todo o mundo greco-romano.” (ELIADE, 1994)

52
bebês grandes demais, incapacidade de dilatar. Berçários lindos e necessários. Ba-
nhos no bebê assim que ele nasce. Aspirações artificiais para que ele chore e respire.
Imunizações intermináveis no recém-nascido. Empurrar o útero para ajudar o bebê a
sair. Soro. Anestesia imprescindível. Toque vaginal constante para medir a dilatação.
Puxar o bebê para ajudá-lo a sair. Se estiver demorando, fórceps. Se estiver demo-
rando mais, cesárea. Bebê na iminência de se enforcar com circular de cordão umbi-
lical. São estes alguns dos elementos que compõem os “mitos” contemporâneos.

A institucionalização do parto tem um discurso poderoso, embasado pelo pa-


vor contemporâneo da dor, de qualquer dor, e pela acessibilidade relativamente fácil
de meios anestésicos para calar todas as dores. Nos dizeres de Pereira et al,
[...] o medo da dor e suas repercussões simbolicamente se concretizam na figura de um
“monstro” que “adoece” o processo até então fisiológico, macula o sentimento de pra-
zer de ser mãe e afasta a capacidade da mulher grávida de exercer seu protagonismo
consciente, distanciando-a dos sentimentos da maternagem, que sinalizam o verdadeiro
sentido da parturição, o prazer de gerar uma vida. [...] Este [o medo], pactuado com o
modelo biomédico e a mídia, obstaculiza o protagonismo e influencia a decisão das mu-
lheres. (PEREIRA, 2011, pg. 387)

Sentir dor é degradante. Sentir qualquer coisa que não seja prazer é degra-
dante? Qual dor e qual choro são dignificados e honrados? A dor do luto? A dor do
atleta? A dor do artista? A dor alheia? A dor do outro? A dor do parto não seria digna
de ser honrada? Esta não é uma dor com um propósito claro? E o parto, é somente
dor? A máxima bíblica, maldição do deus cristão ao “pecado original” de Eva - comer
do fruto da Árvore do Conhecimento, tentada por uma demonizada serpente em for-
ma de mulher, eis aí uma desqualificação primordial, mas não arcaica, no mito judai-
co-cristão formativo da humanidade... – condena a mulher a partir de sua formação
a um “suplício” inevitável: “E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a tua dor, e
a tua concepção; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e
ele te dominará.”11

Mas antes do Velho Testamento, as mulheres já pariam com dor: macacas,


mamíferas. A questão não vem da dor em si. Mas de como olhamos para esta dor,
como indivíduos e como sociedade. Qual a cultura que se constrói ao redor desta
dor? E a partir de que momento ela não é mais aceita? Quando o processo do parto
é levado para um hospital e colocado nas mãos de um/uma médico/médica e de
todo o aparato hospitalar para servi-lo, o parto se assemelha a qualquer patologia,
11
Bíblia Sagrada. In Genesis 3:16.
53
algo a ser corrigido, curado, controlado. Nascer
é muito perigoso. Por mais que se saiba que a
mulher em trabalho de parto em geral não está
doente, há sangue, há dor, há gritos, há súpli-
cas, há medo e o medo contagia e contamina,
é viral, espalha-se por todos os coadjuvantes da
cena do parto. O medo aumenta a dor, associa-
-se ao temor da morte, de algo errado, aumen-
ta a adrenalina, aumenta o enfraquecimento e a
falta de confiança no processo. E a necessidade
de intervenção, como resultado desta equação,
torna-se inevitável.

Fui testemunha da dor alheia do parto


como doula, diversas vezes. É assustador, quase
insuportável para quem vê e acompanha. Tive
ímpetos impossíveis de pedir para que a dor pu-
desse ser distribuída um pouco para mim tam-
bém, sentindo-me parcialmente culpada de não
poder aliviar em grande medida aquilo que vi
e também chamei de “sofrimento”. Todos os
discursos belos da humanização do parto, dos
círculos femininos, das máximas ouvidas - “a dor
é do tamanho do seu medo, se não há medo,
não há dor”, “o parto pode ser uma experiência
de êxtase sexual”, “toda mulher é capaz de pa-
rir por si” - desfaziam-se completamente inúteis
diante de uma mulher gritando de dor na minha
frente, nos meus braços, nos braços do compa-
nheiro, do obstetra, da enfermeira. Percebi que
uma grande parte das mulheres realmente mon-
ta no cavalo da dor e este cavalga impiedoso
com ela até o fim do processo. Ouvi mulheres
que qualificam seu processo de parto como algo
que nunca mais querem viver. E quase desisti

54
de ser esta “mulher que serve”, porque doeu em mim também, por dias, semanas.
Quase não consegui suportar a minha dor, vivificada na presença da dor da outra.
Descobri-me impotente, incapacitada de entrar no universo mais íntimo da mulher e
acompanhá-la em seus labirintos e passagens. Olhei para o processo do parto como
um castigo, uma punição inexplicável. Olhei para a dor e a impotência minha e da
mulher que paria e ceguei para o sussurro do poder feminino, da divindade, do sutil.
Só sangue, susto, medo, abandono, frustração.

Neste ponto de inflexão, duas experiências, uma teórica e outra empírica,


convergiram quase ao mesmo tempo, duas correntezas de afirmação de outra pos-
sibilidade em receber a experiência do parto a partir de um olhar mais abrangente;
uma grande angular apreendendo o campo geral do parto e logo em seguida te-
le-objetivando como ultrassom virtual a experiência do parto de dentro da mulher
e, indo além fundo e dentro, do bebê. Esta experiência singular escancarou a mul-
tiplicidade de atravessamentos e dimensões do trabalho de parto e das disfunções
a que ele está submetido. Mergulhada em pilhas de livros sobre gestação e parto,
dos artigos científicos a dissertações transcendentes e subjetivas, encontrei um texto
do pesquisador e médico francês Michel Odent sobre as condições necessárias para
que a mulher possa vivenciar a experiência do parto de forma integral e fisiológica.
E, quase concomitante a esta descoberta, doulei um parto que se iniciou poderoso,
íntegro, assumidos todos os atravessamentos, mas cujo processo terminou “aborta-
do” pela assistência e pela ambiência hospitalar; parto sequestrado e desqualificado
pela equipe de plantão que se apresentou tardiamente e assumiu o controle daquele
acontecimento, passando por cima da vontade e capacidade da mulher em cena e
seu desejo de percorrer aquele processo de maneira autônoma. Eu estive ali, em uma
aula prática que foi uma assustadora tradução experiencial do que eu havia acabado
de ler. Segundo Odent:
Na perspectiva científica atual, o processo do parto é controlado pelas estruturas arcaicas
do cérebro, compartilhadas [...] por todos os mamíferos. Dentro desse ponto de vista,
é possível apresentar o processo fisiológico do parto como um processo involuntário
e fazer referência à principal característica do Homo Sapiens, que é o desenvolvimen-
to enorme da parte do cérebro chamada neocórtex. Para simplificar, chamemos esse
“cérebro novo” de [...] “cérebro do intelecto”. Os comportamentos humanos instintivos
que foram se enfraquecendo [...], na verdade, reprimidos ou dissimulados pela atividade
neocortical. O conceito de inibição neocortical é um conceito-chave para entender a
natureza humana.
O neocórtex tem que cessar sua atividade durante o parto, pois parir não é trabalho para
o cérebro do intelecto. Quando nosso neocórtex está em repouso, nos assemelhamos
mais com os outros mamíferos. Durante um parto fácil, não medicalizado, há um momen-
to em que a mulher parece estar fora desse mundo, indiferente ao que está acontecendo

55
ao redor dela. Ela tende a esquecer o que leu, o que aprendeu e quais eram seus planos.
Às vezes se comporta de um jeito inaceitável para uma mulher civilizada: por exemplo,
ela pode começar a gritar e a xingar [...]. Ela pode ser mal-educada. Falar coisas sem sen-
tindo nenhum. Ficar em posições as mais estranhas e inesperadas – essas posições são
muitas vezes primitivas, quadrúpedes. O que queremos dizer é que quando a mulher em
trabalho de parto se comporta como se estivesse “em um outro planeta”, isso significa
que há uma redução da atividade neocortical. [...] O processo do parto precisa ser pro-
tegido contra toda estimulação do neocórtex, sobretudo da exposição à luz; da mesma
forma que deve ser protegido contra todo tipo de situação que estimule a atenção da
mulher, como, por exemplo, se sentir observada, a linguagem, ou pressentir algum peri-
go. A palavra-chave durante o parto é proteção. (ODENT, 2016)

Para que esta proteção seja efetiva, há que se profanar, no sentido Agambe-
niano12, a “sacralização e ritualização” hospitalar, em busca de uma instintiva prote-
ção. A ritualização hospitalar se expressa por protocolos que se transformaram ao
longo do tempo em dogmas laicos de cerceamento e controle, ambiência normativa
categorizadora, que olha para cada mulher como sempre a mesma, genérica, des-
considerando a singularidade de cada parto.

Na experiência vivida deste parto sequestrado, aquela mulher – e seu com-


panheiro –, com minha coadjuvância, conseguiram tomar para si procedimentos e
objetos hospitalares e jogar com eles a seu favor a ponto de entrar de maneira total
no “outro planeta” de sua subjetividade e individuação. Ela pôde se colocar pratica-
mente nua, exposta, sem se dar conta disto, e soltar todos os sons que a habitavam
e que permaneciam até então ocultos. Sons rolantes e uivantes que assustavam a
assistência e outras gestantes que não se permitiam mover-se ou gritar; ela jogava
o lençol carimbado do hospital no chão e acocorava uivando; montava na bola suíça
como cavalo e empurrava com os pés a parede do box do chuveiro; fazia o compa-
nheiro subir junto com ela a maca de uma minúscula baia e empurrava suas coxas
com os pés, arregaçando a vagina e se abrindo inteira. Transformava-se em muitas,
individuando-se e dissolvendo sua individuação na formação de uma próxima. O ani-
mal que morria, lygiaclarkeanamente, já era o germe do próximo a nascer.

Do meu lugar fluido, doula, mulher, amiga, suporte, tive o tempo e o privilégio
de olhar ao redor e perscrutar o cenário que a recebia: altamente assexuado, frio,
iluminado, inundado de sons e vozes maquinais da assistência sem ânimo, enfer-
meiras enfadadas por estarem de plantão na véspera do Natal; uma porta sempre
12
“É preciso [...] fazer uma distinção entre secularização e profanação. A secularização é uma forma de
remoção que mantém intactas as forças, que se restringe a deslocar de um lugar a outro.
A profana-
ção implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido profanado, o que
56
sendo aberta e fechada ruidosamente, utilizando o quarto de parto como corredor
de passagem sem a menor consideração pelas mulheres que estavam ali em trabalho
de parto. Em intervalos curtos, um ser interferente vinha demandar que ela ficasse
parada e quieta, para fazer os rituais de medição, no meio do furacão que era sua
respiração forte e vocalizada, seus movimentos de quadril, seus agarramentos lasci-
vos no companheiro. Até quase o fim, estas interferências foram débeis e incapazes
de enfraquecer a experiência autônoma dela. A dor estava ali, intensa, crescente,
mas ali estavam muitas outras formas moventes e energias, muitas outras aberturas e
atravessamentos, uma cegueira ao cenário ao redor, a entrega irresistível à força de
seu próprio corpo, a dissolução de sua identidade, um êxtase introspectivo deslum-
brante que me fazia silenciar e me afastar para contemplar, olhando para minha pró-
pria “inutilidade”, satisfeita, apenas protegendo o campo daquele acontecimento.
Sussurrava Eurínome, dançando perigosamente com Ófion a dança do êxtase divino,
invisível mas quase palpável.

Lembro de ser invadida pela sensação de inteireza e ter a honra de ser teste-
munha de uma experiência vivida a três, por completo. Era um desafio descomunal o
que aquela mulher vivia. Mas ela estava lá, desdobrada em animais e personas, sem
que ninguém pudesse chegar próximo ao vórtice vivenciado. Nas poucas vezes que
assumi fisicamente o apoio para que o companheiro descansasse, senti que mexia
junto com ela, era impactada pela força incontrolável do seu corpo e da sua voz. Ela
abria os olhos e não me via. Eu fechava os meus e a via e respirava fundo para não
me deixar levar pelo descontrole, quase irresistível.

estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso. Ambas as operações são
políticas, mas a primeira tem a ver com o exercício do poder, o que é assegurado remetendo-o a um
modelo sagrado; a segunda desativa os dispositivos do poder e devolve ao uso comum os espaços
que ele havia confiscado.” (AGAMBEN, 2007, pg. 60-61)
57
O parto não aconteceu13. Ao fim, a força da instituição e do não-conformismo
em passar o Natal fora de casa fez a assistência abreviar o processo de todas, todas
as mulheres que estavam parindo naquela manhã. Sem maiores justificativas, a não
ser que “estava demorando muito”14. Ela, com nove centímetros de dilatação, já
sentindo o reflexo de ejeção do bebê, a pressão no períneo, o não intervalo entre as
contrações, que agora se apresentava como uma única contração contínua podero-
sa. Faltava apenas um centímetro. Não lhe foi preservada a chance de transformar a
dor em triunfo. O desencorajamento foi completo: embora ela tenha suplicado mais
de uma vez que a permitissem ir até o fim, o que ouviu foram palavras sussurradas
de que tudo já iria terminar bem rápido, o sofrimento já ia cessar, com uma cirurgia
cesárea.

Percebi que de fato a dor foi apenas um aspecto da experiência, e não o mais
importante. E que, fundamentalmente, presenciei uma experiência única, delicada
e poderosa, daquele parto, daquela mulher, daquele casal, daquele bebê, engolida
pela força do dispositivo hospitalar, desencorajador, inibidor, altamente elicitante do
neocórtex, assexuado e moralista. Frente a uma vagina exposta, apresentava-se o
pudor dos panos, dos lençóis carimbados, dos ferros e luvas de borracha, da indigna-
ção mal disfarçada das enfermeiras pelos gritos, vocalizações e movimentos sexuais
que a mulher fazia. Vi a sela, o freio, o cabresto da domesticação do feminino, coloca-
dos na mulher selvagem. Vi esta mulher murchar impotente. E, depois de um silêncio
insuportável que durou cerca de vinte minutos, tempo em que permaneci em espera
e luto no corredor da sala de cirurgia, minha presença nesta foi permitida, onde pude
contemplar uma cena clichê de mau gosto, que poderia ser um quadro pintado por
algum cientista insinuando-se nas artes plásticas: dois homens debruçados sobre uma
barriga ainda aberta, em processo de sutura, conversando displicentes sobre a noi-

13
Provocação: na IV Conferência Internacional de Humanização do Parto e Nascimento, que aconte-
ceu em Brasília em 2016, estava em estudo substituir o termo “parto cesárea” por “extração cirúrgica
do feto”; e assim deixar de considerar que a cirurgia cesárea pode ser configurada como parto, já que
o verbo parir é verbo ativo e não passivo. Nenhuma mulher é “parida”, no máximo o bebê.
14
Tornei público o relato deste parto do meu ponto de vista, em minha página de uma rede social,
dois dias depois, mantendo o anonimato do casal e da assistência. Minha dor e inconformismo eram
tão grandes que precisei compartilhar, em um texto indignado, a experiência. Muitas doulas leram e
entraram em contato comigo, prestando ajuda, conforto, solidariedade. E por elas conheci o jargão
“cesárea de Natal”, assim como também existe “cesárea de Páscoa”, “cesárea de Ano Novo”, etc.
Referem-se às cesáreas que acontecem em feriados importantes, onde os plantões da assistência
muitas vezes contam com profissionais mau-humorados pela escala no feriado, sem a devida paciência
e olhar cuidadoso, onde a atitude apressada (e muitas vezes nesses feriados as maternidades lotam)
leva a cesáreas em série, para fazer a fila andar.
58
te de Natal próxima, um terceiro sentado ao lado em uma
cadeira, absorto no celular; enquanto a mulher permanecia
ali deitada, de braços ainda abertos em cruz, amarrados
com velcro (intuo que não tocou seu bebê). Havia um pano
erguido para que sua visão fosse separada do resto de seu
corpo imóvel e dessensibilizado. Ela chorava em silêncio.
Inseri-me neste quadro movente e sentei-me a seu lado,
perto de sua cabeça e a única coisa que nós duas consegui-
mos fazer juntas foi chorar muito. Por tudo. Por nada. Dali
pudemos contemplar os dois homens, indiferentes a nós e
constatar: mais uma vez eles tornam-se os autores do ato
final.

Em poucas horas perdi a inocência e a arrogância


teórica de anos de estudo e assunção de discursos alheios.
Tive uma aula prática contundente do que é a rotina de
um parto na esmagadora maioria dos hospitais do Brasil.
Entendi nas vísceras o porquê do movimento de humani-
zação do parto ter tido início junto às próprias mulheres,
aquelas que foram vítimas de violência obstétrica e viram
seus partos roubados, abortados, sequestrados. Olhei para
o absurdamente banal da situação vivenciada, do ponto de
vista da assistência, da enfermagem, desde a triagem aos
obstetras que assumiram o comando do processo. Pude
presenciar o que é uma mulher plenamente mergulhada
na experiência total do trabalho de parto ser impedida
de ir além e de ser responsável, junto com seu bebê, pelo
desfecho desta experiência. Pude supor o que foi para o
bebê estar apontado para a porta de saída, tão perto a
ponto de causar a sensação de força nesta saída e poder
ser tocado facilmente pelos dedos, e de repente ser retira-
do, impotente, de outro lugar imprevisto, onde passa a ser
apalpado, medido, esfregado, picado por mãos de látex.

59
E o quão rotineiro e assustadoramente ordinário é este desfecho. Pude testemunhar
o direito de parir de uma mulher e de um bebê lhes ser negado.

Mesmo uma experiência dita “bem-sucedida” de parto, ou seja, o bebê nas-


ceu por onde foi determinado pela fisiologia, configurando um parto normal, pode
ser assimilada como assustadora e não bem-vinda. A intervenção medicamentosa co-
bra seu preço e ainda é vista com conformidade submissa pela maioria das mulheres.
Passados muitos meses da experiência relatada acima, e alguns partos depois, esco-
lho trazer a esta pesquisa uma última experiência de parto da qual fui testemunha
nada isenta, nada distanciada, por ser irmã da mulher em questão. Por ser irmã, e por
“Ela: ter a honra de poder gestar junto com ela o parto desejado, para mim foi um grande
[...] É... desafio aceitar o desvio radical de rota e perceber o aprendizado contido nele.
eu acho as-
sim, por mais Tudo apontava para um desfecho de sonho: um parto domiciliar planejado,
que a gente
tente não criar com um obstetra considerado humanizado até a raiz, experiente, acolhedor,
uma expectativa ainda por cima amigo íntimo da família. Tudo o que se quer de estrutura para
de como vai ser
o parto, pra mui- um parto em casa estava lá: banheira, tecido acrobático, velas, nove meses
tas vezes a gente
não se frustrar... é... de preparação física, emocional e espiritual, chá de bênçãos, e o privi-
a gente sempre cria, légio de contar com a experiência anterior do primeiro filho, que ha-
é, num, num tem como
não criar assim. [...] De ser via sido poderosa, mas hospitalar. Uma preparação
um parto relativamente mais
tranquilo do que eu tinha passado com... no meu olímpica para que a bebê viesse agora de
primeiro parto, no sentido de... de estar em casa, ter maneira perfeita. Olímpica demais. E
um parto domiciliar, né, de não ter intervenção nenhu-
ma, de, de estar na... no... no aconchego da minha casa... nos deparamos com a diferença
é... eu tinha a expectativa de ter um... de... não adianta
não falar que não tinha, mas eu tinha a expectativa de ter fundamental entre estar “empo-
um parto na água... [...] É... então várias coisas eu me pre- derada” e estar “no comando”.
parei, né, fiz uma playlist, a gente montou a banheira
aqui em casa, a gente montou todo um aparato, as Poder no parto significa con-
velas... é, tudo pra que fosse do, da manei-
ra que a gente sonhava que... em, em fiança no processo para
“largar o ter, né. É... enfim, aí, é... no fim, o
que aconteceu que... como a gente não tem
freio” e se entregar controle de nada, né (ri), e isso cada vez pra mim tá cada vez
mais claro, porque... é, eu sou uma pessoa bem controladora e no
ao descontrole inerente meu, no meu, na minha gestação toda... é... isso reverberou bas-
à experiência total, desligar tante, né, a questão de ser controladora e de ter que soltar, e de
ter que deixar de ser, né, o tempo todo isso vinha pra mim. E
o cognitivo, apagar as luzes realmente eu não tive controle sobre nada, né, desde o fato da
Mara não, não estar na posição que deveria estar, né, teorica-
da racionalidade. Comando no mente deveria estar, que seria melhor, né, pra eu parir, que
parto é quase o oposto: contro- seria a posição cefálica... então isso já me mostrou que,
né, era, era a vontade dela, era ela estar pélvica ...
le de cada etapa, objeto, passos, “Ela: Mas claro, né, tipo... todo aquele so-
nho de ter, daí a partir do momen-
projeções, planejamento. Para quem to que você chega

60
na maternidade, vê tudo, é, vê todas
as intervenções que têm, por mais que
não, não... assim, por mais que não tem,
não tive uma intervenção, né, é... assim...
essas, o fato de você chegar num espa-
ço, né, que não é a sua casa, e aquele tem esta característica controladora muito presen-
entra-e-sai de enfermeira e pessoas te
perguntando isso, perguntando aquilo, te, conhecimento e preparo demais podem ter um
né, você não poder contar com, com... o
aconchego da sua casa, [...] é... tudo isso efeito-rebote. E foi o que aconteceu. Bolsa rota (a
acaba [...], tudo fora do controle, exata- bolsa rompe antes de o trabalho de parto iniciar),
mente. E o quarto, quando eu cheguei e
vi o quarto também, né, o lugar era úmi- protocolo dos médicos de esperar apenas vinte
do, eu falei ‘nossa, que horrível, né, ter,
ter o filho aqui’ [...]” e quatro horas15, o parto não começa, o cená-
“Ela: [...] Mas ficou reverberando aquele... rio se transforma em hospitalar, com indu-
todo aquele processo intenso e... aquela,
né... e mesmo o fato de não ter consegui- ção artificial16. E o que se seguiu foi um
do fazer do jeito que eu achava que era a,
a minha expectativa, né, não ter... de, de parto de menos de três horas, intenso
não ter tido o parto que eu queria ter tido. à beira do insuportável.
[...]”
“Ela: [...] Então essa intervenção, toda hora
as enfermeiras entram no quarto e acendem
a luz e... isso é muito chato, muito chato mes- Acabo de expor duas singu-
larida- mo, você não tem privacidade nenhuma... e des e reconheço não ser
fora a questão também de vacinas, né, que
a gente também... tinha decidido que a
15
As evidências gente não ia dar todas as vacinas, não ia científicas consideradas
para os protoco- fazer o coli, o colírio do olho e não conse- los da OMS (Organização
Mundial da Saúde) re- guimos, no fim... Na verdade uma vacina comendam aguardar até
setenta e duas hora com só a gente conseguiu mudar lá, mas o a bolsa rota (que é a bol-
sa rompida quando a gravi- resto teve que dar, porque senão... eles dez está a termo) para o
início do trabalho de parto. não liberavam a gente pra ter alta. Neste meio tempo, a
gestante deve observar a cor Eu: Uma chantagem, né? do líquido, que deve
ser transparente, se o bebê Ela: É, é uma chantagem o tempo continua se mexendo,
eventualmente passar por uma todo. Então isso eram coisas que a avaliação para verifi-
car os batimentos cardíacos do gente também não queria ter pas- bebê. Algumas partei-
ras esperam até uma semana de sado, né, se fosse o parto em casa, bolsa rota, quando sem
complicações. Esta informação ia ser muito mais tranquilo, né. sobre a recomendação
da OMS recebi em duas ocasiões: Mas... não teve como.[...]” os SIAPARTO (Simpósio
Internacional de Parto), em 2017 e “Ela: É, e eu vejo assim, ó, é... tan- 2018, pela enfermeira
obstétrica e parteira Maira Libertad to é que eu não conseguia... essa em suas palestras. Por-
tanto, a recomendação da equipe questão do controle, né, tava tão de obstetras da Tania
não seguiu as recomendações da presente assim que... é... eu tava, OMS quanto à conduta
de espera com a bolsa rota. tipo, o parto aqui, aqui em casa
tinha que estar tudo certinho, né,
16
Indução artificial é todo pro- tudo bonitinho assim pra mim, né, cesso interventor para
fazer o trabalho de parto co- tinha que estar... a banheira já tinha meçar sem aguardar
seu início espontâneo. Tem sido que estar pronta, tudo... e... e, e essa cada vez mais utiliza-
do o método de indução com demora de fi, de, de deixar tudo pron- comprimidos intra-
vaginais, o Misoprostol, que são to, aquilo ia me deixando estressada introduzidos na vagi-
na da parturiente de quatro em assim né. E no fim... (eu: não adiantou quatro horas, até
seis comprimidos. Neste proce- nada...) não adiantou em nada, né. dimento, a mulher
precisa ficar internada em repou- [...] É, eu tava preocupada com tudo, so e aguardar que
as contrações iniciem. Muitas assim, tipo ‘meu Deus, né... que que... vezes, se o bebê
ou o colo do útero, ou ambos, que que eu vou oferecer pra co, pras não está pronto,
o processo não é bem sucedido pessoas comerem, que vão estar aqui!’, e a gestante é
levada para uma cesárea. Sendo e tudo isso eu me preocupando, tipo, eu bem sucedido
ou não, as contrações tendem a não deveria estar me preocupando com ser muito mais
intensas e doloridas do que seriam nada disso, entendeu... eu acho. [...] En- naturalmen-
te. E este também é um fator que tão, coisas que eu não deveria estar me pode de-
sencadear uma cesárea, pois a mulher preocupando, no fim acabei tendo, pode não
aguentar a intensidade e a dor do pro- tendo que me preocupar.” cesso.
(Tania, parto normal em maternidade pri- 61
vada em Florianópolis, SC)
possível expandi-las como evidências generalizantes do atrito entre a norma cercea-
dora e a necessidade de liberdade para nascer e fazer nascer. Cada mulher – e nesta
categoria perigosa “mulher” corro o risco de excluir outros desdobramentos de se-
res humanos passíveis de conceber, gestar, parir e cuidar, como homens trans, e que
eventualmente o fazem – que embarca na navegação aventureira da maternidade
tem sua experiência de gestação e parto colada a uma condição cultural específi-
ca, movente. Em grande medida, constrói, agente ou paciente, sua trajetória até o
nascer e além dele; e constrói com o material que lhe é dado através de sua episte-
mologia pessoal e sua experiência. Mergulho neste mar materno e quanto mais me
aprofundo, mais espécimes encontro e mais me surpreendo ao ver a enorme diversi-
dade e complexidade deste universo que restrinjo à experiência do parto, mas que
se faz vasto dentro de cada mulher que pertence circunstancialmente a ele. Escuto
idiomas distintos, que se aproximam nos silêncios e se afastam, estranhando-se, nas
reviradas da memória de cada mulher que narra: se pariu em casa, uma língua; se pa-
riu na maternidade, outra língua; primeira vez, segunda vez, cada parto tão singular
que desafia qualquer normativa protocolo regra tutela.

Mas há substratos comuns, amálgamas: presenças, forças. Cheiros. Lampejos.


Chamas. Sons. Silêncios. Fugidias, invisíveis, trementes. Passam. Atravessam. Rodam.
Chamam. Esquentam. Esfriam. Amolecem. Retesam. Sopram. Umedecem. Derretem.
Abraçam. Acariciam. Arranham. Vêm à tona por um segundo, submergem. Silvos.
Sussurros. Uivos. Grasnados. Rugidos surdos. Suspiros. Gemidos baixos. Assovios.
Pios. Sibilos. Idioma universal não explícito que passa como corrente subterrânea,
por vezes aérea, de compreensão imediata não cognoscível entre fêmeas da espécie
humana. O feminino? O sagrado? O Sagrado no feminino?

1.3. O que se supõe ser o feminino, primordialmente feminino

No momento em que ouço as narrativas femininas que acolho, tento afinar


minha percepção para este “idioma universal”. O que procuro ouvir? É o que existe
ou o que quero determinar que esteja lá, imanente no discurso dessas mulheres? O
que posso configurar como sendo o feminino, intrinsecamente e primordialmente
feminino da experiência do parto humano? Sendo humano e feminino, indago o que
me instiga a descobrir, aos modos da arqueóloga que reflito para mim mesma, a voz
oculta e talvez interferente de mitologemas dos mitos arcaicos femininos, de deida-

62
des representativas de atributos femininos fundamentais, que supostamente dariam
sustentação espiritual a estas mulheres. Pois aparentemente estas deidades estão
museificadas e destituídas destes atributos e poderes no mundo contemporâneo
ocidental; perderam sua verdade. Segundo o historiador e filósofo italiano Furio Jesi,
“é costume dizer que um mito na sua forma originária ou muito antiga se apresenta
sempre como uma verdade: verdade presumida ou efetiva, mas ainda assim verdade,
ao menos nominalmente.” (JESI, 2010) Ainda segundo esta afirmação, questiono se
estariam as mitologias mais antigas, mitologias-raiz dos atributos e forças do femini-
no, fadadas a perecerem como força de verdade e “depois consideradas com ironia
polêmica, e enfim relegadas ao nível de contos de fadas”. (JESI, 2010)

Neste ponto faço um convite para revisitar a viagem que empreendi; espira-
lar no tempo e escavar um pouco mais o que é o “feminino” em um passado muito
remoto da humanidade que me assombra e ecoa em mim. Passado que pode estar
sendo invocado/atualizado por que talvez insista em bradar que não morreu, talvez
precise se manifestar novamente. Mas, quem sabe, transformado e se transformando
ininterruptamente para manter-se vivo? E o que, ou quem, o pode invocar, atualizar,
transformar? Façamos o exercício de fabular sobre este passado supostamente re-
moto.

Aqui cabe um pequeno parêntese, uma parada estratégica antes de empreen-


dermos esta viagem. Utilizo o verbo fabular, nesta pesquisa, derivado do conceito de
fabulação, uma faculdade formulada por Bergson e ampliada por Deleuze que “tem
o poder de falsificar a memória substituindo as imagens-lembrança reais por imagens
falsas, imagens-fábula, as quais interferem diretamente em nossa ação sobre o mun-
do. A fabulação rompe, portanto, a nossa suposta relação verídica com a vida ao se
inserir no sistema produtor de imagens.” (PIMENTEL, 2010, pg. 134-135). A fabula-
ção está diretamente relacionada à potência de ficcionarmos a realidade, de falsifi-
carmos a memória recriando um passado, e não simplesmente o conservando. Como
potência, ela é puro devir, borrando os limites entre a concretude e o movimento, “é
a linha de desterritorialização que os perpassa e os mantêm ‘vivos’, pois toda parada
de movimento é necessariamente morte” (PIMENTEL, 2010, pg. 136). Tanto as narra-
tivas de parto que recolhi quanto as mitologias arcaicas contadas e recontadas e re-
formuladas ao longo dos séculos me permitem fabular sobre fabulações, já que elas
mesmas foram e são fabuladas por quem as narrou e as narra. Fabular é criar sobre um

63
“Ela:
[ . . . ]
Que mui-
tas pesso-
as, eu não passado para inventar o futuro. Se olhamos para o passado apenas para tentar uma
sabia, eu des-
cobri isso de- aproximação de uma verdade última, a estrita e estreita realidade supostamen-
pois, disseram
que você chama o te fidedigna (esquecendo que este passado apenas deixa entrever algumas
bebê quando você poucas e parcas camadas de suas múltiplas “verdades” através de seus ar-
pisa na terra. Eu pisei
na terra... minha barri- tefatos arqueológicos), matamos este passado e o mumificamos des-
ga não tava muito grande,
eu tava com só sete quilos provido de vida e interferência em nosso presente. O papel do
a mais do que eu, e barriga pe- artista, “em
quena. Mas eu tava super bem, então eu pisava no barro, abai-
xava, agachava, e não-sei-o-quê [...]” con-
“Ela: [...] E eu tava sentindo dor mas eu tava feliz, eu tava tudo bem, eu não tava com tipo ‘ai, é,
tá doendo, eu vou ficar aqui sentindo dor...’, não, então, eu andei lá fora, eu... eu... vi o céu, vi
a Lua junto com o Sol, vi as estrelas saindo e vindo o céu... o azul... o Sol e... e a fogueira [...]. E
aquela fogueira continuou até as quatro da tarde quando ele nasceu. E... tinham três fogueiras
na verdade, porque aí, conforme as coisas foram acontecendo e era... Dia das Mães... (eu: olha
só!!!) domingo de mutirão, então todo domingo a gente faz mutirão aqui na terra, então tava
todo mundo na terra e todo mundo tava conectado comigo [...]. ”
“Ela: [...] e trouxe muito essa felicidade, trouxe muito essa alegria, trouxe muito essa... essa... esse,
esse espírito assim, sabe, então não foi um parto tipo ‘ai, que triste, ou...’ não, tipo, tudo bem, foi
tudo alegre, foi tudo... eu em cada contração, eu sentia contração, eu chamava o Arthur, o Arthur
vinha, ficava... me apertava [...], e toda vez que eu sentia contração ele vinha, eu falava ‘vem, Ar-
thur, agora vai, tá vindo, tá vindo!’, aí depois que passava eu falava uma besteira, a gente brin-
cava, a gente ria, todo mundo aqui dava risada, falava besteira... [...] o parto também pode
ter alegria, o parto também pode ter coisas boas, sabe, não é só dor e sofrimento, e tal...”
”Ela: [...] eu fiquei uma hora ali no chuveiro, aí eu dei uma dormida assim, e aí foi a hora
que eu comecei a me conectar com o espiritual, que foi aí a hora que eu comecei a
tra- subir, na verdade, não é nem descer, eu subi. E eu... eu sou da Umbanda, então
ponto ao eu...[...] tipo tive uma ajudinha ali
básica, como todas as mu-
etnógrafo, é extrair do mito lheres têm, mas eu pre-
senciei mesmo que
um atual vivido (potência de fabulação) e não tentar descobrir foi, às dez horas
por trás deste uma estrutura arcaica (modelo de verdade).” (PIMENTEL, da manhã, eu
já tava com
2010, pg. 137) muita
dor, aí
e u
Podemos então prosseguir, ficcionando por um momento que esquecemos
nossa língua e nossa cultura. Estamos caminhando em algum lugar da Europa Anti-
ga17 ou do Oriente Próximo18 ou da região onde a civilização egípcia mais tarde irá se

17
“O termo Europa Antiga foi criado para designar a civilização que se estendeu de cerca de 7.000
a 3.500 a.C. no sudeste europeu, mas o termo pode também ser usado para toda a Europa de antes
das invasões indo-europeias, incluindo as culturas megalíticas da Europa ocidental (Irlanda, Malta, Sar-
denha e partes da Grã-Bretanha, Escandinávia, França, Espanha e Itália) do quinto ao terceiro milênio
a.C.” Fonte: EISLER, Riane. O Cálice e a Espada. São Paulo: Palas Athena, 2007, pág 354.
18
Designa principalmente, nesta época do Neolítico, a região do Planalto da Anatólia, atual Turquia.
Nesta região floresceram duas grandes cidades, Catal Huyuk e Hacilar, cujos achados arqueológicos
revolucionaram a interpretação da cultura e das sociedades também da Europa Antiga e norte da
África.
Fonte: EISLER, Riane. O Cálice e a Espada. São Paulo: Palas Athena, 2007, pág. 47
64
desenvolver19; onde esses lugares não são assim e ainda nomeados. Diversos berços
da humanidade. Estamos presentificadas e presentificados para lá de 9.000 anos
contados de hoje para trás. Contemplamos comunidades, antes nômades, assenta-
das em locais próximos a rios, lagos de água doce e mares. Homens e mulheres em-
penhados/empenhadas em aprender a domesticar sementes e animais, e aprender a
extrair da Natureza seu sustento, sendo co-criadores/criadoras junto com ela. Estas
comunidades agora não mais perambulam, mas estruturam-se e protegem-se e con-
seguem construir suas próprias moradias, tecer suas roupas, produzir seus utensílios
domésticos com o barro, com a pedra. Não há sinal de armas, escravos, reis e rai-
fa-
nhas isolados em palácios suntuosos, fortificações militares, nem diferenças sig- l e i
p r a
nificativas de tratamento entre homens e mulheres. Tecnologias fundamentais S h i s
para o florescer da civilização – como o manejo da terra, a canalização de ‘Shis, o
Daniel tá
água, a manufatura de alimentos, a produção de tijolos – são criadas aí?’[...] ‘o Daniel
tá’, falei ‘então fala
e desenvolvidas igualmente por ambos. Este cotidiano é ma- pra ele subir agora e
terializado em uma profusão de artefatos artísticos, traz o tambor!’ [...] E aí o
Daniel veio com o tambor e co-
configurando uma meçou a tocar as músicas, tudo que a
gente adora, e aí quando ele chegou, sentou e
começou a tocar, a primei- ra música foi Jurema. Na hora que ele começou a tocar, eu
chamei a Shislia, segurei a mão dela e incorporei! Incorporei no meio de uma contração! Aí parou a contração,
então eu fiquei uns quinze minutos sem contração, que eles, que... ahnn... quem eu tava incorporada segu-
rou. Ela falou várias coisas pra todo mundo que tava lá, e falou que era pra eu manter a calma, que tava tudo
bem e... e que tava... tinha uma egrégora ali de parteiras que estavam ali e tudo, falou várias coisas bonitas e
pras pessoas da terra. E falou inclusive do Raí, que o Raí veio nessa terra, o primeiro bebê nascido aqui, por
causa... que ele ia trazer a união. E ele nitidamente fez todo mundo estar aqui, sabe?[...]”
“Ela: [...] E aí eu incorporei, ela falou várias coisas, eu tava incorporada com a Jurema que eu recebo, a cabo-
cla. E depois eu incorporei de novo, mas aí eu já não lembro direito, não sei te contar, mas aí... (eu: tudo bem.)
o povo aí sabe que eu incorporei de novo, devo ter falado um monte de coisa pra eles, até dei bronca em
alguns assim[...], tipo ‘vocês têm que fazer não-sei-o-quê!’, tipo alguma coisa, sabe, tipo ‘para de fumar, para
de não-sei-o-quê!’, enfim. E aí eles falaram que eu fiquei muito tempo sem sentir, sem sentir dor, né, nesse
processo de incorporação. E aí quando eu falo pras pessoas que eu incorporei no trabalho de parto, as
pessoas olham pra minha cara e ‘você incorporou no seu trabalho?’, tipo ‘é gente, eu incorporei no
meu trabalho! Incrivelmente!’ (rimos)
“Ela: [...] mas foi muito bom ver essa união de todo mundo,
l i n - todo mundo estar apoiando e, e todo guagem
não escrita tão contunden- te e realista quan-
to simbólica. (EISLER, 2007, pg. 47-56)

19
Escolho um recorte mais reduzido geograficamente por uma maior abundância de achados, pes-
quisas e reinterpretações mais contemporâneas das civilizações neolíticas nas regiões citadas, e de
onde se originaram os mitos femininos mais conhecidos e familiares à formação cultural ocidental. Mas
aqui não pretendo com isso diminuir a relevância e importância dos mitos arcaicos da América, África,
extremo oriente e Oceania.
65
Vemos nestes objetos, que reconhecemos sob a forma de restos arqueoló-
gicos em nosso tempo contemporâneo, diversas cenas cotidianas íntimas; simbolo-
gias religiosas de louvor à Natureza; refinamentos e detalhes ornamentais feitos por
quem se ocupa de sutilezas; cenas eróticas e cenas de parto. Não há registros de
cenas de batalha, de violência, de conquistas, de símbolos de poder como espadas,
lanças, barcos de guerra.

Especulamos que estes objetos refletem muito provavelmente a estrutura so-
cial, as crenças e a organização da vida íntima, religiosa e política daquelas socieda-
des. Cada qual tem sua expressão própria, suas particularidades, mas denotando,
em comum, sociedades pacíficas, onde as relações muito provavelmente se desen-
volvem como parcerias voltadas para o bem comum.

Dentre esses objetos, chamam nossa atenção especialmente aqueles desti-


nados a práticas devocionais a divindades femininas: são figuras opulentas, de seios
enormes, barriga saliente, quadril abundante, sem rosto definido, vaginas abertas, que
às vezes estão parindo pessoas, animais, plantas; figuras híbridas de mulher e animal,
mun-
do es- acompanhadas de fêmeas animais grávidas, ou animais simbólicos das metamor-
tar pre-
ocupado, foses femininas (borboletas, serpentes, pás-
sabe, em... em estar presente, né, saros); figuras esculpidas em ovos
estar sentindo a energia e... porque é muita ener- gia, parecia
que vibrava assim, sabe, tipo você manda luz pra de cerâmica ou madeira; re- todos os lugares
assim. E aí todo mundo me falou das sombras, né, ‘ah, que você vai ver
suas sombras no parto, tal...’. Eu vou dizer que eu não presentações vistas em via só as minhas, eu
vi de muitas mulheres, eu vi de todas as mulheres do pinturas, murais, mundo! Tipo, eu, eu era
todas elas, mas eu não, não... num, num, num... não era tipo uma coisa é... ‘isso é
por causa disso e por causa disso...’, não tinha essa... [...] escul- Mas eu sentia todas. Eu sen-
tia todas, eu sentia elas, elas, minha avó, minha bisavó, sentia todas as mulheres que passaram
pela minha vida e... e é isso, sabe? É... só do fato, aí eu recebo essa oportunidade de falar e, e eu quero ter
outra oportunidade de falar, porque as pessoas têm que entender que elas não precisam passar por certas
coisas, certos sofrimentos. E elas gostam de sofrer! [...]”
“Ela: [...] tem mulheres que falam assim ‘eu faço parto, eu isso, eu aquilo’, e, e chega na hora, amarela,
chega na hora não dá conta. Porquê? Porque no mesmo momento que tá nascendo, tá
morrendo, e muitas mulheres não têm coragem de olhar a morte. E aí?
turas, Como que essa mulher, que falou que era parteira, e ela tá lá no parto,
e ela não consegue olhar a morte? Nem dela, nem do pai, nem da
em casas, túmulos, santu- mulher dali, que tá ali parindo? Então ela não é parteira. Agora, se
uma mulher virou pra... a mulher que fez o meu parto tava na mi-
ários, tapeçarias, vasos ritu- nha cara, olhando pra mim, tipo sorrindo, calma e tranquila, me
alísticos, pratos. Em determi- vendo morrer e nascer, então ela é parteira, sabe? Tipo, é mui-
to simples. Se você consegue encarar todos os lados e tá
nados lugares, como cavernas ali presente, ok, entendeu? A questão é a presença, a
questão é o que a gente... não sei nem porque
ou espaços ocultos, podem se eu falei tudo isso...”
configurar em figuras ameaçadoras. (Ana, parto domiciliar com parteira
contemporânea em
Alto Paraíso, GO)
66
A Grande Mãe rege todos os aspectos da vida cotidiana, pessoal e social. Seus
aspectos cíclicos são reconhecidos nos corpos das mulheres e das fêmeas animais, e
Sua regência sobre o parto e nascimento, este sendo reconhecido e louvado como
um dos momentos culminantes dos eventos das comunidades, é pungente. Os aspec-
tos múltiplos da Grande Mãe, de doação de vida e também de morte e destruição,
que espelham os fenômenos da natureza, são reconhecidos e louvados igualmente.
A Grande Mãe, como força motriz, é multidimensional. A deusas são muitas e uma
só, detêm atributos diversos e poderosos por onde se estabelecem, são muito mais
antigas e complexas do que as mitologias escritas a partir do advento das grandes
civilizações patriarcais ilusoriamente nos fazem acreditar. Como diz Eisler:
[...] o culto à Deusa era ao mesmo tempo politeísta e monoteísta. Politeísta porque ela
era adorada sob vários nomes e diferentes formas. Mas era também monoteísta, porque
podemos afirmar com propriedade que aqueles povos tinham fé na Deusa, assim como
nós falamos em fé em Deus enquanto entidade transcendente. Em outras palavras, há
semelhanças marcantes entre os símbolos e imagens associados, em vários locais, à ado-
ração da Deusa em seus vários aspectos de mulher, ancestral ou criadora, e virgem ou
donzela. (EISLER, 2007, pg. 63)

Não estamos ainda em um mundo patriarcal e dua-


lista, que precisa fatiar os diversos as-
pectos do feminino em várias deusas
enfraquecidas, consortes de deuses
mais importantes, onipotentes e po-
derosos, para afirmar a supremacia
masculina sobre as supostas fragi-
lidades femininas. E “se a imagem
religiosa central era uma mulher
dando à luz e não, como no nos-
so tempo, um homem morrendo
na cruz, é razoável concluir que a
vida e o amor à vida – em vez da
morte e o temor da morte – fossem
dominantes naquela sociedade como o são na sua
arte.” (EISLER, 2007, pg 62-63)

Podemos seguir mais adiante para sermos


testemunhas oníricas dos momentos quase
simultâneos em que há rupturas violentas
67
e generalizadas deste modo pacífico e próspero de viver e desta visão de mundo
e estruturação de sociedade. Rupturas que vêm em várias ondas, hordas, chacinas,
invasões, expropriações. Das periferias do mundo gélido, das regiões mais seten-
trionais para o centro, cobiçando a abundância e os saberes dessas mulheres e ho-
mens, a estrutura já estabele- cida de cidades, a natureza mais
gentil e menos inóspita, o domínio da agricul-
tura, irrompem povos bélicos, em menor
número, em maior selvageria, sustentados
por divindades masculinas, violentas e
guerreiras. O po- der do ferro, da espa-
da, da força bruta. A destruição primeiro
material e depois ideo- lógica, cultural e social
de milhares de anos de sociedades de
modelo cultural de parceria, instaura
um novo mode- lo de sociedade, o
modelo de do- minação. Mas agora
não é o lugar de aprofundar cinco mil anos
de história do patriar- cado, que perdura ainda
hoje e é hegemônico. Desta História estamos sobrecar-
regadas, enfadadas, enchar- cadas, doutrinadas desde
a descoberta de que pode- mos falar.20 Esta viagem se
detém aqui.

Há um enorme abismo en- tre aquele tempo de socieda-
des de parceria e este tempo. Tal- vez as deusas que simbolizam
aspectos da Grande Mãe realmente estejam nos museus, nos trata-
dos, nos livros e fotografias, apenas para apreciação e fins antropo-
lógicos e de entendimento histórico. Há linguagem demais, letras
demais, interpretações demais sobre seus significados e sobre sua
influência formadora das antigas ci- vilizações neolíticas. Há muitos
desdobramentos e deturpações de sua força primordial, e mesmo
o tempo cobra esta validade. Supostamente, as narrativas de seus mitos perderam-
-na. O que quero empreender não será um caminho árido, ilusório, esquizofrênico,
20
Para saber mais sobre os sucessivos processos de invasões e tomadas de poder a partir de cerca de
4.000 a.C. sobre o que se denominam “Ondas Kurgan”, ver EISLER, Riane. O Cálice e a Espada. São
Paulo: Palas Athena, 2007; pg. 89-180.
68
fruto apenas da minha vontade? Retornando à pergunta acima antes desta viagem: é
o que existe ou o que quero determinar que esteja lá, imanente nas narrativas dessas
mulheres?

Concluo que não é possível resgatar a força dessas divindades pelo cami-
nho antropológico, arqueológico, sociológico, pelo menos não é possível levando
em conta o propósito desta investigação: a experimentação prática e concepção
das performances. Foi fundamental que eu passasse por este viés, olhasse para
as imagens, reconhecesse a história, validasse os registros, e ao mesmo tempo
passasse pelo processo de curiosidade, encantamento e assombro diante da
força e abrangência deste passado, da capacidade humana de forjar os mitos,
de dar dimensões artísticas, poéticas, aos fenômenos da Natureza, e de re-
conhecer os atributos cíclicos da Natureza em seus corpos, seus processos
fisiológicos, em permanente observação e conexão com o entorno, como
citado por Boechat (BOECHAT, 2008). Mas este caminho corria o risco de
me distanciar da experiência vívida das narrativas ouvidas, dos partos as-
sistidos, do impacto muito longe da lógica e do raciocínio que me impeliu a
empreender esta investigação.

A ponte entre as narrativas míticas arcaicas e as narrati-


vas contemporâneas não é possível por aí. A pista é
justamente o que sobra: ecos, sopros, fragmentos.
Imanentes. Escutar os partos como invocações, aber-
turas incompletas a dimensões míticas, impalpáveis, o já
citado “idioma universal”.

1.4. Onde e como se vai à “partolândia”

Porque quero revolver esse universo do parto, tão vasto, comple-


xo, agigantado e diverso, inapreensível por princípio, ao ponto de parecer
que não existe um propósito prático? O que quero com isso? O que quero
ver com isso?

Ao encontrar no submerso íntimo da experiência do parto algo transcenden-


te, transbordante e imanente, capaz de fortalecer e dar sentido a cada mulher, ou

69
ser humano que pare (do verbo parir), quero contribuir para a elaboração de um vo-
cabulário que seja capaz de transmitir este aspecto da experiência do parir. Este vo-
cabulário talvez possa ter a força de acionar vários processos: fazer emergir o poder
de cada gestante de permitir-se ser atravessada por outra pessoa, em processo de
individuação mútua; realizar o rito de passagem para a vida e as mortes necessárias
para que esta vida venha a este mundo; valorizar este processo como fundamental
para a transformação cultural dessa sociedade contemporânea; transgredir e profa-
nar os dispositivos de poder que cerceiam há séculos o corpo feminino e seus proces-
sos e experiências. Este corpo-em-parto não só está em processo de fazer nascer, é
um corpo que, se permitido, se se permitir, se lhe for dada a chance, pode vivenciar
uma experiência próxima a uma desintegração cataclismática e alcançar dimensões
semelhantes a desdobramentos espirituais. Este “lugar”, ou melhor dizendo, estado,
é nomeado genericamente como “partolândia”:
A “partolândia” vem para significar um estado alterado de consciência, um flash, instante
ou poucos minutos em que se perderia a razão, figurando, por isso, um “vazio no qual
não se pensa, somente se sente”, uma “ocasião em que se está em outro lugar e não mais
ali, sem saber quem está por perto ou que se está fazendo”, “uma zona de pensamento
em branco”. (CARNEIRO, 2013)

Nesta “partolândia” (que a partir do capítulo seguinte passarei a nomear


“Cosmos-parto”), o corpo feminino em parto pode ser o atrator/invocador de um
encontro com a dimensão mítica representada pelas deidades femininas arcaicas de
poder ilimitado. Não por suas histórias. Não por suas formatações. Sim pelo que fo-
ram e são capazes de despertar.

Então retorno às considerações de Furio Jesi sobre mito e linguagem, e me


permito tentar imaginar o que seria a experiência transcendente de homens e mu-
lheres diante do contato primeiro com suas deidades sob a forma da Grande Mãe.
“Construo” assim a ponte possível para a experiência do parto como este momento
de conluio direto, sem intermediários, com o transcendente:
No instante em que o mito é mais “genuíno”, ele é totalmente estranho à linguagem, e,
antes, opõe-se a ela. Na sua fase originária, o mito é verdade inexprimível, acessível so-
mente através da comoção que permite entrar em contato com um mundo super-huma-
no. Em tal fase, o mito é a coisa diante da qual a palavra se detém. (JESI, 2010) Grifo meu.

Cedo à tentação de visitar mais uma vez o passado matrifocal da humanidade:


ouvir os fragmentos de descrições esparsas sobre os Mistérios de Elêusis, ritos arcai-
cos de iniciação e adoração às deusas gregas Deméter e Perséfone, cujo “principal
objetivo era levar uma experiência de amor às passagens mais importantes da vida:
70
nascimento, sexualidade e morte” (KELLER, 1988). Dos nove dias de rituais e festivi-
dades, nas sétima e oitava noites, os/as aspirantes a iniciados/as, e apenas eles/elas,
penetravam no santuário por sua entrada em formato de vagina, triângulo yoni21, e
permaneciam por lá em silêncio, sob o efeito de uma bebida alteradora de consciên-
cia denominada kikeón; dizia-se que em silêncio entravam em contato direto com as
deusas, e guardavam para si as revelações.
Dizem-nos que os iniciados experimentavam uma visão especial, a ‘abertura dos olhos’.
Essa visão era a epifania da Deusa como Mãe Terra? [...] ou o nascimento justo da criança
justa? [...] Ou a experiência de morrer e renascer, cercada por um fluxo de amor muito
além da capacidade humana de traduzir palavras? Em todos os anos de sua celebração,
a experiência central da iniciação nunca foi revelada – talvez porque o próprio insight
místico fosse além no nominável, inefável.22 (KELLER, 1988)

Se as experiências narradas dos trabalhos de parto em determinados momen-


tos são inexprimíveis em palavras, bem ali naquele lugar em que as mulheres perce-
bem que não se lembram de mais nada e que estão em um lugar quase impossível
de ser descrito (para aquelas que conseguiram ultrapassar os obstáculos externos

de normatização e controle), há uma dimensão individual inconsciente que de certa


maneira “constrói” uma mitologia íntima do sentir, linguagem muda expressa em lí-
quidos, gemidos, perda de consciência. As mulheres hospedam forças e identidades
moventes que as deformam, dissolvem, implodem. Estas forças atravessam o bebê,
o ambiente, os atores do evento do parto, e os transformam constantemente e per-
duram mesmo após o acontecimento. Promovem sucessivos processos de dissolução
e retomada de formas que podem ser chamados de individuações. Aqui tomo como

Yoni é uma palavra sânscrita que significa “passagem divina”, “templo sagrado”, “lugar de nasci-
21

mento”, “fonte da vida”, e também designa a vagina. Fonte: CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de
Deus: Mitologia Oriental. São Paulo: Palas Athena, 2004.
22
No original: “We are told the initiates experienced a special seeing, the ‘opening of the eyes.’ Was
this vision the epiphany of the Goddess as Earth Mother? […] or the fair birth of the fairborn child? […]
Or the experience of dying and being reborn, encircled by a flow of love far beyond human ability to
translate into words? In all the years of their celebration, the central experience of the initiation was
never revealed – perhaps because the mystical insight itself was beyond naming, ineffable.” Tradução
nossa.
71
base o conceito de individuação de Gilbert Simondon:
Para Simondon, o indivíduo é emergente, não pré-constituído. No vocabulário de Simon-
don, existe uma relação intrínseca entre individuação (o processo), o pré-individual (a
força da forma) e o indivíduo (o ponto de virada que abre o processo para novas indivi-
duações). O indivíduo (a singularidade de um processo) nunca é o ponto de partida – é o
que emerge do meio da individuação. O indivíduo é como o acontecimento se expressa,
nunca o que o coloca em movimento. (MANNING, 2016, pg.53)23

A experiência do parto começa a ser engendrada muito antes dele e rever-


bera para muito além. Carrega uma multiplicidade de identidades moventes que se
intensificam durante o parto no universo interno das mulheres, dissolvendo o tempo
cronológico, o espaço físico, os limites do corpo físico; e modificam todo o campo
do parto, como todos e todas que nele habitam; é transindividual. O transindividual
é um conceito que, segundo Simondon, descreve “a coletividade no coração de to-
das as individuações, antes e além de qualquer diferenciação em indivíduos. Ele (Si-
mondon) mobiliza o transindividual para tornar aparente que qualquer mudança no
acontecimento é uma mudança na ecologia do qual ele é composto.” (MANNING,
2016, pg. 54)24

A pré-individuação, a força da forma, durante o acontecimento do parto


poderia conter a força mítica das deusas primor- diais, ecoando no
processo? E as individuações poderiam con- ter elementos
dessas forças, ou mesmo identidades, transcenden-
23
No original: “For Simondon, the individu- al is emer-
gent, not preconstituted. In Simondon’s vocabu-
lary, there is an intrinsic relationship betwe- e n
individuation (the process), the preindivi- du-
al (the force of form), and the individual
(the turning point that opens the pro-
cess toward new individuations). The
individual (the singularity of a pro-
cess) is never the starting point—it
is what emerges from the middling
of individuation. The individual is
how the event expresses itself,
never what sets it in motion.” Tra-
dução nossa.
24
No original: “[...] the collecti-
vity at the heart of all individu-
ations, before and beyond any
speciating into individuals. He
mobilizes the transindividual to
make apparent that any shift in
the event is a shift in the ecology
of which it is composed.” Tradu-
ção nossa.
72
tes que habitassem as mulheres no momento em que estão vivenciando esta passa-
gem do parto? Aquilo que chamo de “mitologia íntima do sentir” pode fazer ana-
logia às experiências místicas de contato com as divindades, experimentadas por
homens e mulheres dos tempos antigos? Esta mitologia íntima do sentir pode ser
substanciada em linguagem artística?

São estas as perguntas atuais que movem a continuidade das minhas investi-
gações e inspiram meus experimentos práticos sob a forma de performances cênicas.
A partir destas, e da constante reelaboração perante cada público que vem tomar
contato com elas, é que construo os próximos passos da minha pesquisa-criação.

73
Índice das imagens

1. Detalhe de vivência para a performance Mamífera Reptiliana (mar/2019 - Florianópolis)


Performer: Daniela Carmona
Foto original: Mariana Rotili

2. Detalhe de apresentação da performance Trigemelar (nov/2018 - CEART/UDESC - Florianópolis)


Performer: Daniela Carmona
Foto original: Mariana Rotili

3. Gravura do “homem do zodíaco”, do séc. XVI: “A concepção do corpo como um receptáculo de


poderes mágicos derivava em grande medida, da crença em uma correspondência entre o microcos-
mo do indivíduo e o macrocosmo do mundo celestial [...].” Arte sobre original, extraída do livro Calibã
e a Bruxa, de Silvia Federici.

4. Xilogravura alemã do séc. XVI: “Um exemplo revelador na nova concepção mecânica do corpo
[...], na qual um camponês é representado como nada mais do que um meio de produção: seu corpo
composto inteiramente de utensílios agrícolas.” Arte sobre original, extraída do livro Calibã e a Bruxa,
de Silvia Federici.

5. Detalhe de apresentação da performance Trigemelar (dez/2017 - Casa 431 - Florianópolis)


Performer: Daniela Carmona
Foto original: Jerusa Mary

6. Detalhe de apresentação da performance Trigemelar (nov/2018 - CEART/UDESC - Florianópolis)


Performer: Daniela Carmona
Foto original: Mariana Rotili

7. Detalhe de apresentação da performance Trigemelar (nov/2018 - CEART/UDESC - Florianópolis)


Performer: Daniela Carmona
Foto original: Mariana Rotili

8. Detalhe de vivência para a performance Mamífera Reptiliana (mar/2019 - Florianópolis)


Performer: Daniela Carmona
Foto original: Mariana Rotili

9. Detalhe de apresentação da performance Trigemelar (dez/2017 - Casa 431 - Florianópolis)


Performer: Daniela Carmona
Foto original: Jerusa Mary

74
10. A Deusa-pomba de Creta, coroada com pássaros, cones e chifres de touro. Creta, entre 1.700-
1.400 a. C. - arte sobre original. Fonte: JOHNSON, Buffie. Lady of the Beasts - The Goddess and Her
Sacred Animals. Rochester: Inner Traditions International, 1994, pg. 31.

11. Grande Mãe com cabeça de coruja segurando um bebê contra o peito. Chipre, entre 1.450-1.225
a. C. - arte sobre original. Fonte: JOHNSON, Buffie. Lady of the Beasts - The Goddess and Her Sacred
Animals. Rochester: Inner Traditions International, 1994, pg. 46.

12. Afrodite em terracota, montada sobre um cisne, carregando uma urna. Beócia, Grécia, séc. VI
a.C. - arte sobre original. Fonte: JOHNSON, Buffie. Lady of the Beasts - The Goddess and Her Sacred
Animals. Rochester: Inner Traditions International, 1994, pg. 75.

13. Detalhe de apresentação da performance Trigemelar (nov/2018 - CEART/UDESC - Florianópolis)


Performer: Daniela Carmona
Foto original: Mariana Rotili

14. Detalhe de vivência para a performance Mamífera Reptiliana (mar/2019 - Florianópolis)


Performer: Daniela Carmona
Foto original: Mariana Rotili

15. Apropriação artística de detalhe de um vaso minóico da necrópolis de Kalyra, uma pomba carre-
gando um peixe. Creta, entre 1.400-1.200 a. C. Fonte: JOHNSON, Buffie. Lady of the Beasts - The
Goddess and Her Sacred Animals. Rochester: Inner Traditions International, 1994, pg. 94.

75
TRANSBORDAMENTO
Animalidade

Canto de Sekhmet
Mulher:
Cuidado! Não me invoque
se não quiser perder a si mesma
se não puder aguentar a dissolução do humano.
Sou o perigo, os pelos eriçados,
a sede de carne fresca.
Esfrego meu corpo na areia ao Sol
e afio minhas garras poderosas na pedra.
Leoa no cio, na caça, na vigília das crias.
Sou a inquietude no parto,
a vontade de morder, de agarrar, de arranhar,
de urrar e rugir.
Adormeço a mulher e surjo no centro de tudo.
Minha morada é o deserto esturricante ao Sol,
fogo que não me consome e me acompanha.
Tu me encontras nua e excitada no deserto,
cercada de prenhes leoas.
Salto do olho do deus Rá, da vigília eterna,
já Leoa em caça,
enfurecida pela arrogância dos homens
em se arvorarem deuses.
O instinto grita, eu mato, eu devoro.
Desmedida, transbordante, dissolvente.
Se não me deterem, eu extermino a humanidade.
Sim: apenas a cerveja ocre me devolve a paz,
e me recoloca de volta à fronte de Rá.

76
Também há a calma e as lambidas,
o acalento, o filhote, a mama.
Sei docilizar em embriaguez de amor e afeto,
afagar e ronronar, qual gata.
Mas provoque a Leoa.
Verá a brasa incendiar
e começo tudo de novo. Fúria e êxtase.
Deixe que eu te invada e dilacere teus medos,
deixe que eu tome conta de ti.
Perca o medo do descontrole.
Olhe nos meus feros olhos.
Transforme-se em mim e ataque. Sou Sekhmet.1

1
Inspirado no mito de Sekhmet. Dentre os títulos associados a Sekhmet, alguns são indicativos de sua
imensa importância para os egípcios antigos. Ela é descrita por Mirella Faur como “Aquela na cuja
frente o mal treme; A Devoradora; A Senhora vermelha que aterroriza; a Senhora do lugar onde o tem-
po começou; a Senhora da Vida; a Incomparável; A Possuidora de todos os poderes; [...] Mesmo sendo
a mais importante das deusas leoninas egípcias, pouco se sabe sobre ela, que continua sendo uma di-
vindade enigmática, cujos mitos são interpretados de inúmeras maneiras, muitas vezes contraditórias,
personificando os aspectos opostos, mas complementares, da proteção e cura com o perigo, da fúria
e destruição. [...] Alguns mitos contam que o deus solar Rá a colocou sobre a sua testa na forma de
Uraeus, para vigiar a aproximação dos inimigos. Foi assim que Rá soube que a humanidade conspirava
contra ele, acreditando que era velho demais para governar. Os deuses encorajaram Rá para punir os
ingratos rebeldes e soltar o poder do seu olho vingativo sobre eles. Rá enviou Sekhmet transformada
em leoa para restabelecer a ordem, mas nesta metamorfose Sekhmet ficou enlouquecida pela raiva e
inebriada pelo gosto de sangue e passou a matar de forma incontrolada todas as pessoas que apare-
ciam na sua frente. Temendo o massacre total da humanidade e não tendo mais controle sobre a fúria
de Sekhmet, Rá lançou mão de um estratagema [...]. [Um] sacerdote moeu ocre vermelho e o misturou
com sete mil barris de cerveja colhida ritualisticamente pelas mulheres. Acrescentou raiz de mandrá-
gora e determinou aos outros sacerdotes que espalhassem o líquido ao redor do lugar onde Sekhmet
dormia feliz, após seu festim de sangue. Quando ela acordou e viu o líquido vermelho, pensou que
era um novo sangue e começou a lambê-lo, até que adormeceu pelo efeito narcótico da mistura e
perdeu assim seus instintos assassinos. A partir deste evento, Rá decretou que anualmente seja feita
a encenação ‘A destruição da humanidade’, seguida de celebrações com a cerveja preparada pelas
mulheres.” FAUR, Mirella. As Faces Escuras da Grande Mãe. São Paulo: Alfabeto, 2016, pg. 562-564.
Faur complementa ainda: “Fontes mais antigas mencionam a origem arcaica de Sekhmet, quando as
divindades se apresentavam com características de animais e algumas delas tinham os instintos selva-
gens das suas metamorfoses. [...] Sekhmet é uma deusa complexa e paradoxal, pois ao mesmo tempo
em que é representada como uma deusa solar, ela possui as características escuras das deusas lunares:
é extática, passional, intensamente sexual, guerreira corajosa, protetora dos mortos, associada com o
sangue menstrual e as manifestações negativas que surgem durante o ciclo menstrual e a menopau-
sa.“ FAUR, Mirella. As Faces Escuras da Grande Mãe. São Paulo: Alfabeto, 2016, pg. 564.

77
2.1. O não humano mais-que-humano

Uma fêmea entra em trabalho de parto. Quando possível, afasta-se ar-
redia, furtiva, da matilha, da manada, “Ela: da luz, dos predadores, dos machos,
[ . . . ]
do perigo. Sabe que não pode se Sabe, as- expor. O olhar invasivo de uma
câmera permanece, tentando sim, foi uma esquivar-se da percepção des-
coisa muito instin-
ta fêmea, tentando captar tiva assim, sabe, foi este lugar incaptável, pois
tudo, eu comecei a sentir
que vai apenas registrar a contração, que eu vi que ia ter casca, a superfície, a for-
ma momentânea do filho, que a Marcela ia nascer [...]” acontecimento. A fê-
mea entra em esta- “Ela: [...] com água, pra relaxar, pra não do extático, quieta a
sentir dor, mas... é inevitável, né? A dor é
princípio, farejan- inevitável, então eu tava já aceitando isso, en- do mas perdendo
o farejar. En- tão assim, é o processo, né? Você tem que sentir xergando, mas
a dor, senão não tem como você parir. [...] eu fiquei
não vendo, muito em mim, assim, muito, eu não, não consegui es- cheirando sem
cutar se alguém tava falando... eu tava muito em mim, na
olfato, inver- minha filha assim, é...muito, eu e ela assim, sabe, me con- tendo todos
os sentidos, centrando na respiração, então sempre: (faz a respiração entrando em
ritmada e profunda); então sempre querendo achar um lu-
si. É aquáti- gar, como... nesse momento eu me achei, eu me senti muito ca-terrestre,
um bicho assim, sabe, um animal assim, sabe, uma leoa, sei
p r e s s e n t e lá, que fica procurando um lugar pra parir assim, sabe? [...]” a água per-
to, mas não prescinde
“Ela: [...] a gente se sente um animal, eu já tava pelada,
da terra firme, não queria saber de nada, eu queria parir! Eu tava, terra que a
eu, tipo, não queria saber se eu tinha, tipo, tinha...
firma e permite. tava todo mundo lá me olhando mas eu queria O peso inevitá-
vel a empurra para era parir, não tava... Eu já tava lá pelada, e o chão, e neste
aí as meninas chegaram e tal... E eu tava
chão ela se deixa to- nesse processo assim tipo “ai, aonde mar. Pelo feto, pe-
eu vou parir? [...]”
las convulsões, pela dor, pela força acima de
si. As patas se contorcem e (Bia, parto natural retesam, alternam para
com parteira tradicional
o doce relaxamento, a lín- – Alto Paraíso, gua de fora, o arfar, todo
Goiás,
o ar do mundo não é suficiente. 2017) As nadadeiras batem inúteis,
o corpo pesado se arrasta. Não há conforto. Gemidos baixos, uivos
altos, ranger de dentes. Pausas-mortes que restauram. Novas ondas. Os pe-
los protegem dos machucados que viriam à pele nua. Ela circula e não encontra po-
sição, dá voltas em si, movida pelo útero, pelo feto girando em outras direções por
dentro, rasgando o caminho, cruel. A cabeça chicoteia, roda, pende, um orgasmo de
dor. Os olhos, esbugalhados no auge das contrações, semicerram no mergulho.

Outras fêmeas estão ali, invisíveis, circulam por dentro e por fora, elementais.
Outros corpos se apresentam, répteis, anfíbios, coleantes, escamas e guelras, garras

78
e pelos, toda a evolução da vida na terra se apresenta, desde a mais ínfima bactéria.
A vulva se arregaça, gritando em dueto com a boca. No fim-não-fim, o barulho do
mundo é ensurdecedor, a língua se mostra obscena serpente, o grito sai do fundo
da terra, do fundo do mar, do alto céu, em fogo a garganta, em fogo a vagina,
a cabeça-patas-gosmas do filhote pas- sa lentamente, torturantemente. As
mãos-patas-garras, se podem, al- “Ela: cançam e puxam, ou o filhote cai
no duro da terra, no mole do mar, [ . . . ] girando para receber o sopro. Si-
Durante
lêncio. Quietude de lambidas. o sábado e Farejar. Silêncio. Recolhimento
domingo eu não
das multiplicidades. Duas consegui comer, eu só presenças, fêmea-filhote.
Silêncio. Conhecem-se. comia o ovo com pimenta, Aderem-se. As mamas
e... foi três vezes eu comi ovo
reclamam a boca para com pimenta, uma vez no sábado se aliviarem. O tempo
e duas vezes no domingo. As outras
do não-tempo. coisas eu não conseguia comer, eu não
cons...eu bebia pouca água, não conseguia
descer nada assim, chegava com comida perto
O que de mim eu ficava com raiva, sabe? “Aaah, quando eu relato acima
tiver com fome eu falo! Não chega perto de mim!” Eu
é uma com- tava numa situ... assim mais... um pouco arisca, e eu queria pilação das
minhas ter o controle total assim do parto, não queria nenhum tipo de obser-
intervenção. [...]”
v a ç õ e s “Ela: [...] E aí quando ela fez o exame ela falou assim “você já tá f e i t a s
sete centímetros dilatada”. Quando ela falou isso, eu “Ahhh, sério?
a par- Não imaginava que eu tava dilatada!”, aí eu já dei um pulo da cama e tir de
u m a falei “agora vai, dá..., agora vai!” (rimos muito) Aí elas me deram um es- p e s -
timulante lá homeopático à base de beladona, eu acho, uma coisa assim,
quisa uns florais pra poder acelerar o processo. Aí logo depois disso foi mais a u -
três horas, ela nasceu. E aí eu... e eu achava que a maior dor que eu ia
d i o - sentir na vida era... essa passagem. E foi a sensação melhor que eu senti! visual
n a “Ela: [...] então quando ela começou a coroar, que eu senti aquela ardên- i n t e r-
cia, foi uma ardência muito prazerosa pra mim.
n e t ; Ela: [...] aí eu falei “não”, aí quando eu levantei assim, parece que recolhi
“ai! (de alívio)” ajustou, aí eu fiz uma força assim, segurei ele, aí
alguns ela nas... aí passou a cabeça. Aí na hora que passou a cabeça vídeos
de partos também foi um grande alívio assim, e não doeu, sabe, na de fême-
hora que ela passou, foi... foi prazeroso pra mim. Aí mais
as mamíferas uns dois minutinhos, um minuto, dois minutos, ela, eu de diversas
consegui fazer mais uma força assim, no expulsivo,
fontes e com- ela desceu. E foi o melhor momento, foi na hora pilei em uma
única edição. Víde- que eu escutei dizer “já tamo vendo a cabe- os de partos de
ça dela”. Nossa, pra mim foi um alívio,
fêmeas não-humanas foi na hora que eu mais me entreguei são difíceis de exe-
do parto inteiro foi esse momen-
cutar, pois em seus habi- to [...]. tats naturais, elas se
(Laura, parto natural com
escondem e na maior parte das vezes o processo é
parteiras aprendizes
noturno. Qualquer percepção - Alto Paraíso, dessas fêmeas de que estão
Goiás,
sendo vigiadas pode fazê-las parar 2017 o processo de parto e fugir ou
atacar, o que pode acarretar inclusive em morte materna e morte fetal.
É muito mais comum encontrar vídeos fei- tos em espaços controlados, como

79
zoológicos, parques, celas confinadas, ou mesmo, no caso das vacas e
éguas, em ambientes domésticos construído pelos humanos para per-
mitir que possam ter o processo de parto bem-sucedido. Posto isso,
o vídeo editado é uma assemblage destes momentos. Para assistir,
acesse https://www.youtube.com/watch?v=YvnXUwEuapA.

Viro e reviro as imagens devassadas que não deveriam ter sido


feitas, mas o foram. Envergonho-me de assistir e invadir os esconde-
rijos destas fêmeas não-humanas, que talvez não parissem se soubes-
sem do olho da câmera, voyer humano, estuprando seus partos. Mas
este escancaramento e conspurcação do momento sagrado-profano
permite que eu me desculpe perante cada uma, e valide cada uma nas
criações em sala de ensaio. Calma. Ainda não. Quero perscrutar ainda
minha matéria prima. Ursa panda, macaca, gorila, hipopótama, vaca,
leoa-marinha, leoa terrestre, égua. Algumas em estado selvagem, ou-
tras em cativeiro ou em ambiente doméstico. Resisto à tentação de
abrir mais um campo de estudo sobre a fisiologia do parto mamífero
não-humano. Não é o que interessa aqui. Quero ver os corpos, as
forças, as similitudes e diferenças com as fêmeas-mulheres que sou,
somos, quero ver o parto sem metais, panos, assistências, manejos,
toques alheios.

O que toca nesses corpos-fêmeas é o corpo-filhote, o corpo-


-chão-pedra-terra, o corpo-água, o corpo-ar, o corpo-mato. A ursa
panda, confinada e vigiada por câmeras, passa por processo tão inten-
so, poderoso, assustador, que a vigília e o confinamento não a inibem
de usar os corpos-paredes, corpos-grades, corpos-ladrilhos, para se
apoiar, virar de cabeça para baixo, rolar com as patas abertas, roçar
as costas, esconder-se. Aproxima-se da fêmea humana, seus membros
mais libertos, sua coluna flexível; de qualquer forma, ela não é tocada
por nenhum tratador, nenhum humano se faz presente nem interfere
no processo. Também a leoa-marinha, que joga a cabeça para todos
os lados e uiva, e a leoa terrestre, que urra em quase-ataque e roda
inquieta em torno de si para encontrar seu lugar, irmanam-se na fêmea
humana em sexualidade explícita e perturbadora. A gorila, na ponta

80
da similaridade quase total, traz o filhote da vagina ao colo, abraça-o e o beija e o
observa, e o amamenta como nas infinitas imagens que vemos e testemunhamos de
fêmeas humanos fazendo o mesmo com seus bebês.

O que procuro na análise e observação destas documentações, que considero


terem um caráter bastante invasivo, é tatear um caminho perceptivo para compreen-
der aquilo o que escuto das mulheres que narraram seus partos para mim. Em alguns
casos, ao refazermos juntas as paisagens selvagens, as palavras esparsas deixam à
mostra que há algo não-humano na humanidade do parto. Há algo perigoso. O ani-
mal se mostra assim, coloca a mulher em risco, expondo e impondo sua presença
em momentos, às vezes segundos, às vezes apontamentos. Uno as narrativas às
minhas próprias visões de quem acompanhei, caço esses animais às cegas, esses
encontros súbitos, nas curvas das contrações, nos mergulhos subterrâneos; essas
mulheres abrem seus corpos às metamorfoses inevitáveis e lhes é quase impos-
sível não serem tomadas pelas feras. O feto em convulsão, o corpo em convulsão,
invocam e clamam pelo selvagem. A humana não se reconhece, ao encontrar-se
com seu bicho. Encontra outra porção de si, perde-se aos olhos externos. Sekhmet
se apresenta solar, obscura, puro fogo, salta para o corpo humano e o metamorfo-
seia, dissolve e desafia.

Vivenciar a experiência do animal não-humano em parto me parece estar em


vias de extinção. Na desconstrução da naturalidade no descontrole, na des-
qualificação das dimensões outras àquelas estáticas e estáveis, os procedi-
mentos tornam o acontecimento do parto claro, sob holofotes em
máxima potência, através de mecanismos de exposição dos corpos
internos, onde os vãos secretos passam a ser dilacerados pelos pro-
tocolos clínicos: quase não há mais escuro, silêncio, solidão, liberda-
de de movimentos, autonomia. Quase não há mais mistério e se não
há mistério, o mito não se aproxima e não se tece. O animal se acanha,
acuado, e não se configura, não é engendrado. Mas que animal é este
que escasseia? Que qualidade é esta que caço? Animal literal, animal
simbólico, animal indiferenciado, animal totêmico?

As vias de extinção do animal do qual sigo o rastro atingem di-


retamente o que nomeio “animalidade do parto”. Dou permissão

81
a mim mesma para olhar para esta animalidade com as lentes da ciência ocidental,
da biologia e da fisiologia, lentes complexas de estudo suavemente familiares para
mim até uma profundidade necessária para ser parte desta egrégora materna, como
servidora, e para compreender que podem conversar com as lentes da mitologia, da
espiritualidade e da arte.

2.2. O animal fisio-biológico

Assim como invoco Sekhmet a ser a força mítica sustentadora deste capítulo,
invoco neste trecho a voz da ciência, no caso chamada de Saúde Primal, através de
um de seus expoentes mais lúcidos no que diz respeito à validação desta ciência aos
processos fisiológicos naturais – e animais - do parto: o médico e pesquisador Mi-
chel Odent. O que escrevo agora é o extrato das minhas observações empíricas dos
corpos animais em parto em conversa com as pesquisas e descobertas de Odent,
destacando sua advocacia em prol da autonomia nos partos humanos e sua sugestão
para que haja uma revisão total da medicina obstétrica tradicional. (ODENT, 2002)
(ODENT, 2016)

A espécie humana, a família mamífera. Mamíferas, nós, as ursas, as leoas, as


vacas, as macacas... Cérebros semelhantes: a porção límbica ou reptiliana, ou “primi-
tiva” – o cérebro de trás -, mais desenvolvida nas mamíferas não humanas; a porção
neo-cortical, ou cognitiva, ou “evoluída” – o cérebro da frente -, mais desenvolvida
nas mamíferas humanas. No ato sexual, no parto sexual, as semelhanças se acentuam
e se misturam.

Nas mamíferas não humanas, os corpos “animais” em parto, o cérebro repti-


liano aciona com facilidade e dispara reações instintivas, como gemer, convulsionar o
corpo, abrir a vulva, escancarar a boca, semicerrar os olhos, esfregar-se no parceiro
ou em alguma superfície. O corpo-em-parto, assim também em sexo, envia mensa-
gens contundentes ao cérebro, que responde acionando o corpo em uma explosão
balanceada de hormônios, orquestrando o processo em avanços e recuos, inibindo
o cérebro da frente, incitando dor, que incita endorfinas, que incitam mais ocitocina,
que incita mais dor, que incita mais endorfinas, que convocam mais ocitocina ainda,
afogando o corpo animal em uma química enlouquecida e coerente e arrastando-a
para outras dissoluções. A continuidade e o desfecho deste acontecimento, se não

82
há interrupções externas, é a incitação última da adrenalina, necessária para convo-
car a força expulsiva do útero e da fêmea, que a faz retesar os músculos e empurrar
seu filhote para o mundo. A saída final acontece então em uma suspensão do esforço
voluntário, o “reflexo de ejeção do feto”2, nome científico desencaixado e insensí-
vel para o coroamento do acontecimento, uma convulsão final involuntária, na qual
o corpo animal apenas se abre e deixa que o filhote saia, despenque, escorregue.
Nasça.

O corpo em parto humano, contemporâneo, ocidental: neocórtex aumenta-


do, necessidade de controle, medo do parto, medo da dor, medo do médico, medo
de enlouquecer, medo da morte, medo das próprias emoções incontidas. Filho do
cartesianismo predominante no entendimento do mundo e seus fenômenos, dualis-
ta, sobrepõe o intelecto ao corpo, crê nestas duas entidades separadas, estáticas,
sabotadoras uma da outra, em conflito de interesses permanente. Onde permite
que seu cérebro “primitivo” lhe tome de assalto? No sexo? Talvez. Nem sempre.
Pudores e imagens moralizantes podem também atravessar o sexo, assim como o
parto. Como corpo-fêmea mamífera, tem o mesmo aparato fisiológico para o parto
que suas parentes. Os mesmos hormônios. A mesma capacidade natural de orques-
tração. Mas em um ambiente interventor, que toma para si o protagonismo do acon-

tecimento, acontece uma solicitação quase onipresente do neocórtex, qual máquina


de ressonância magnética, apitando constantemente, sob a forma de luzes, sons,
conversas, palavras de ordem, mesmo as mais doces, conduções externas, picadas,
infusões, cortes, ações que invertem a orquestração interna da fêmea, colocando a

2
Expressão empregada primeiramente pela pesquisadora Niles Newton, na década de sessenta do
século XX, quando ela estudava os fatores inibidores do período expulsivo do parto em fêmeas de
ratos. “O nascimento é precedido por uma série irresistível e bem curta de poderosas contrações
uterinas altamente eficazes, que não deixam espaço algum para movimentos voluntários.” Fonte:
ODENT, Michel. Pode a Humanidade Sobreviver à Medicina? Rio de Janeiro: Instituto Michel Odent,
2016, pg. 53-54.
83
adrenalina como maestra do processo, excitando o neocórtex. Esta inibe a liberação
da ocitocina, que inibe as endorfinas, que inibem mais a ocitocina, que paralisa o
trabalho de parto, que pede mais ocitocina, desta vez sintética, que impulsiona a dor
a picos insuportáveis, que pedem anestesia, que cala toda a música, que por vezes
não sente-se convidada a voltar, que empurra o corpo humano em parto a empurrar
até o fim, já morto o “reflexo de ejeção do feto”, que rasga a vagina inutilizada ou
a inutiliza calada, rasgando o ventre e retirando o bebê pela abertura horizontal que
antes não havia, por que não existia, porque não seria ali, porque não.

Esta última narrativa está contida, com diferenças em detalhes, em mais do


que metade dos trabalhos de parto neste país Brasil. A “desanimalização” do parto.
O humano demasiado. Inflado. Mesmo em instanciações domésticas, em presença
de parteiras contemporâneas ou tradicionais, o vocabulário ainda permanece atado
à crença cultural de que o corpo humano em parto precisa de ajuda no processo,
pois “de acordo com o nosso condicionamento cultural, uma mulher é incapaz de
parir sozinha” (ODENT, 2016, pg. 55). Palavras como “manejar”, “ajudar”, “guiar”,
“controlar”, fazem parte deste paradigma dominante e estão impregnadas também
no vocabulário da humanização da assistência (ODENT, 2016, pg. 197).

Odent nos convida a olhar com desconfiança para a palavra “humanização”.
Em princípio, carregada de intenções altruístas, a “humanização” cai na mesma ar-
madilha da “medicalização”: propor novas normatizações e protocolos, manejar o
trabalho de parto de forma a evitar a violência obstétrica, mas sem desorganizar o
paradigma da intervenção. Ainda estamos no terreno da biopolítica: o corpo-em-
parto precisa estar “humanizado”, acolhido dentro de parâmetros, em formatações
estáticas e estanques. Muda o vocabulário, mas a intenção de intervir permanece.

E assim o animal se apresenta domesticado. O animal selvagem não se in-


dividualiza no corpo-em-parto, nenhum animal, ou apenas uma pálida presença. O
animal para quem assiste é assustador demais e tolerado até certo ponto. Quando
começa a se desnudar, tomar conta, desorganizar o humano, uma coleira lhe é colo-
cada.

84
Em provocação permanente ao vocabulário interventor, Odent propõe então
uma questão desafiadora:
Estamos, sempre, introduzindo rituais e crenças com o efeito de separar a mãe do bebê,
e temos que redescobrir na ciência que o bebê recém-nascido precisa, em primeiro lugar,
da sua mãe, e a mãe precisa do bebê recém-nascido. [...]
Por isso, devemos eliminar o que é especificamente humano, as crenças e os rituais do
parto. Eliminar o que é especificamente humano significa que durante o processo do
nascimento o neocórtex deve parar de funcionar. Ao mesmo tempo, temos que redesco-
brir, atender e satisfazer as necessidades universais que todos os mamíferos em trabalho
de parto têm, que é se sentir seguro – se existe um predador em volta, a fêmea libera
adrenalina para ter energia para lutar ou fugir, e vai adiar o parto até se sentir segura – e
ter privacidade – todas as fêmeas de mamíferos têm estratégias para não se sentirem
observadas quando dão a luz. [...]
No contexto científico atual pode-se dizer que a mulher foi programada para liberar um
coquetel de hormônios do amor quando está em trabalho de parto. Mas hoje, a maioria
das mulheres tem seus bebês sem depender da liberação desse coquetel de hormônios
[...]. E como não conseguem liberar facilmente os hormônios naturais, precisam de medi-
camentos que os substituem: precisam de ocitocina sintética no soro, precisam da anal-
gesia peridural para substituir as endorfinas, precisam de medicamentos para eliminar a
placenta. [...]
Estamos em um Ela: momento hoje em que o
número de [...] Mas sabe, rolou um mulheres que dão à luz
e que momento de... de ponderar assim se eu eliminam os hormô-
nios devia fazer isso ali, sabe, a galera passando mal naturais do amor
ali, esperando médico... eu falei “não vai ter jeito”... está tendendo
porque ele começou assim, já não tinha como bloquear o a zero. [...] Os
corpo pra fazer... parar de fazer isso. Por isso que... num mo- seres hu-
mento... depois de horas a gente lá no hospital, uma das poucas manos
coisas que eu observei de... da... [...] do processo ali do, do sistema ali, são
dos médicos, das enfermeiras, a movimentação ali, foi quando uma enfer-
meira chegou pra dizer que não era pra eu gritar ali onde eu tava gritando, pra eu
fazer as vocalizações ali onde a gente tava fazendo, que era no corredor. Foi um dos
poucos momentos que eu... saquei mesmo a interferência deles ali, sabe? E nes-
se momento que ela falou isso, eu fiquei com muita vergonha. Isso foi, foi uma
das coisas piores ali, porque rolou um “nossa, eu tô fazendo um escândalo!”,
sabe? E até então aquilo tava me ajudando muito. E aí ela chegar pra
falar isso, eu “nossa, tá todo mundo me ouvindo, tô fazendo
um escândalo...”
(Graziela, cesárea intraparto em hospital público em tão inteligentes e
tão es- Florianópolis, pertos, devido ao seu
neocórtex, Santa Catarina, 2017) que conseguiram tornar
os hormônios do amor em hormônios inúteis.
Precisamos levantar ques- tões sobre isso em termos da nossa ci-
vilização, [...] o que vai acontecer daqui a três ou quatro gerações se continuarmos nessa
direção? Se fizermos a pergunta dessa forma e percebendo que precisamos redescobrir
as necessidades básicas da mulher em trabalho de parto e do bebê recém-nascido e
atender às regras básicas e simples, podemos dizer que a prioridade hoje não é humani-
zar o parto. A prioridade hoje é mamiferizar o parto.3 Grifo meu.

Neste ponto, deixo a visita de Odent em espera respeitosa para percorrer os


rastros de outro animal nos corpos humanos, aquele que Odent pensa que deve se

3
Trecho de palestra proferida no Seminário BH pelo Parto Normal, em 2008, em Belo Horizonte,
MG. Disponível em http://www.sentidosdonascer.org/blog/2016/01/a-prioridade-hoje-e-mamiferizar-
-o-parto-por-michel-odent/
85
calar, que surge de crenças e rituais. Aqui nos separamos; não contradigo o cientista,
mas busco em prol da minha arte os rastros desse animal que percorre caminhos que
podem atravessar os do animal fisiológico: o animal simbólico.

2.3. O animal simbólico; nudez

O animal simbólico: instinto, imanência, representação cultural, subjetividade.


Um corpo não fisiológico que atravessa a concretude aparente do corpo biológico
humano em parto, desorganiza a percepção. Animais-espíritos, co-existentes, habi-
tam o útero, os ossos, saltam dos movimentos, pairam e rodeiam o corpo-mulher.
Animais do cosmos-parto, presenças desestabilizadoras. Presenças familiares nas
crenças e rituais da maior parte das sociedades arcaicas ainda existentes no mundo
contemporâneo, crenças e rituais que se enraízam profundamente no tempo, nas
sociedades arcaicas pré-históricas, conversando diretamente com elas.

Meus convidados aqui são, na ausência momentânea do contato direto com


os xamãs de sociedades arcaicas ameríndias sul-americanas4, pesquisadores que de-
dicam a vida a tentar traduzir o modo de pensamento destas sociedades e colocá-las
em contraponto ao modo de pensamento ocidental.

Recolhimentos antropológicos esparsos, fragmentos de reflexões sobre cren-


ças e construção cultural, tentam, como eu, assimilar o inassimilável para quem não
tem pertencimento ancestral. Pensamentos de brancos e brancas que friccionam a
via acadêmica com a oralidade ameríndia para fazer chispas, das chispas, brasas,
das brasas, fogo, tochas para iluminar e ver, ou vislumbrar, ou sentir as presenças
invisíveis do animal simbólico. Convido-me a pegar a tocha antropológica junto com

4
Por um bom tempo da pesquisa de campo e consequente elaboração deste material, eu me ressenti
de não conseguir alcançar consistência e profundidade na busca por mitos de maternidade e sexu-
alidade, ou deusas, que pertencessem às culturas ameríndias sul-americanas. Os livros não davam
conta do substrato que eu precisava. E por também ter sido familiarizada, no sistema educacional
hegemônico, com a cultura e a mitologia euroasiática dominante, percebi o quanto a cosmologia e o
modo de pensamento ameríndio sul-americano, que está lado a lado com a cultura africana aqui no
Brasil, foram desprezados como válidos e formadores da nossa sociedade. Somente na reta final da
pesquisa, consegui me aproximar dessa cosmologia de modo incipiente, não com mitos específicos,
mas com uma visão de mundo e de humanidade que conversa diretamente com a dimensão espiri-
tual do parto que quero aprofundar. Percebi que abri um outro campo de investigação que não cabe
dentro dos limites desta dissertação. Sinto-me devedora desta cosmologia e das culturas ameríndias
sul-americanas, o que me instiga a ir além e aprofunda-me nelas em futuras investigações.
86
Eduardo Viveiros de Castro5, Stélio Marras6 e outros e pedir de joelhos licença para
tentar ver o mundo com os olhos de quem eles estudaram.

Para os ameríndios sul-americanos, o corpo é habitado por um sem-fim de


“animais simbólicos”, entidades moventes, que no momento do parto se manifestam
para permitir (vida) ou interditar (morte) a experiência do nascimento. Esta experiên-
cia é um novo início do Cosmos, cercada de rituais de sustentação deste recomeço
de mundo, há entidades não-humanas participando deste rito-drama conduzido pe-
los corpos-em-parto da mulher e seu bebê. Esta crença está na mulher, está no pai
da criança, está em sua família, está na comunidade. Parto: uma experiência biopsi-
cossocial de integração, a partir da subjetividade dos envolvidos; uma “experiência
total – a íntima articulação entre a cosmologia, a psique e o substrato orgânico.”
(MARRAS, 1999, pg. 189).

Partindo desta escuta antropológica, minha Mnemósine me convida a dar sal-


tos para o passado das comunidades arcaicas adoradoras da Grande Mãe, para as
narrativas contemporâneas que recolhi, para esta modalidade de experiência ame-
ríndia, e nessas viagens tecer sinapses. Entre experiências, crenças e rituais tão di-
versos, vejo a visitação dos “animais simbólicos” percorrendo estas três instâncias:
plenamente integrada com a intimidade e singularidade de cada parto e sua socieda-
de e religiosidade (comunidades arcaicas neolíticas e cosmologia ameríndia sul-ame-
ricana); e fugaz, incipiente, assustadora e cercada de perplexidade e encantamento
pelas mulheres contemporâneas. Estas não estão sustentadas por uma cosmologia
consistente e ancorada na ancestralidade, que integre ritualisticamente todos os as-
pectos da experiência. Mas há experiência total em algumas delas, por momentos,
em quase todas as narrativas. Então a “eficácia” do parto para as mulheres de co-
munidades arcaicas e ameríndias é genericamente maior porque há um ancoramento
simbólico sustentador? Ou os atravessamentos do “animal simbólico” são intrínsecos
à experiência do parto humano, qual seja a cultura na qual o corpo-em-parto está in-
serido? Mesmo em sociedades controladoras, que adotaram um modelo de conheci-
mento científico positivista, fragmentado, onde a atividade do espírito é considerada
um resíduo da experiência, “há sempre um descompasso entre o ideal objetivante e
5
Antropólogo brasileiro, um dos principais pesquisadores nesta área, autor de inúmeros livros e arti-
gos. É discípulo do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss.
6
Professor e pesquisador em antropologia pela USP. Foi do corpo editorial da revista Sexta feira – an-
tropologia artes humanidades, principal publicação de referência deste tópico da dissertação.
87
a prática renitentemente subjetivante.” (MARRAS, 1999, pg. 190)

O não-dito das narrativas contemporâneas me dá as pistas dos “animais sim-


bólicos”, sobre os quais as deusas cavalgam. Os silêncios e perplexidades são o mito
“diante do qual a palavra se detém” (JESI, 2010). O mito contém o “animal simbóli-
co”: aquilo o que a pesquisadora Erin Manning chamou de mais-que-humano. Este
aparece na entrega irresistível, sem premeditações, do corpo-em-parto que mergu-
lha no Cosmos-parto, como escolho batizar a “partolândia”. Reconheço as visitações
animais como acontecimentos recorrentes e comuns nos corpos-em-parto, mas olho
também para as dife- renças, pois as visitações, os as-
E l a : q u e
saltos que os uela
coras, aq i mui-
[...] De có la de casal? [...] Fo e vestido,
“animais z na au eu tava d casa) eu fazia xixi, a mesmo,
a gente fe nal... (ri) no final da a ru
m ! E no fi u i (a p onta fora i, já que eu tô n ! (rimos muito)
sim- to b o rua, a q falei “ a ilo, né quei
ha e pela xixi, né, no... o que é aqu oda a roupa, já fi
sem calcin ontade de fazer d a i t
áv assim vira né, já tire
porque d inha”, aí já tava u já tava pelada, s, e
sem calc loucura toda, e pelada...[...] o s d ois dedo
Zeca c o m a rom- b ó -
aquela la girou o a hora minha bols ito
Ela: [...] n ç ã o e e
a contra , e ness lta mu licos”
a í v e io a próxim aixou de verdade , nove pra dez, fa ela
]E a í. .. le e n c m n o v e d a n ç a ”
Ela: [... aí que e tá co os) e executam,
u s e n t i q ue ele, d ora, minha filha, já ua preferencia (rim é, não vai
e u “ a g a í d a t e s m o , n
la falo úsica am são muito dife-
peu. Aí e e colocar uma m i dentro, tá pelad , né, não vai [...]
u c o , p o d e t á a q u e p o d e r ia
po nça, já q
u
se bem q
u Partolân- rentes entre si.
falou “da elada na rua...”, , eu já tava... na
and a r p e u
orque a... eu
Ela: [...] p dia, né, já tav
As diferenças são muitas, mas decorrem
do modelo cultural e social em que as mulheres estão inseridas e do qual extraem
também suas escolhas dos modelos de parto que mais as atendem: hospitalar ou do-
miciliar. Assumo esta categorização apenas momentaneamente, circunstancialmen-
te necessária para testemunhar a experiência apreendida destas mulheres a partir
destas escolhas: o ambiente do trabalho de parto e o modelo de assistência. Todas
as mulheres que narram no escopo desta pesquisa pertencem à demografia de uma
classe média urbana com acesso ao conhecimento formal; aquelas que percorreram
caminhos de conhecimento para além do científico, e/ou aquelas que escolheram
mudar-se para um meio mais próximo do rural definiram suas escolhas por um par-
to domiciliar, seja com parteiras contemporâneas, seja com parteiras tradicionais. A
partir de suas experiências espirituais e mudanças no modelo de crenças, optaram
pelo lugar e pelo apoio onde pudessem ter mais autonomia e evitassem o interven-
cionismo médico corriqueiro dos hospitais e maternidades.

88
Estas mulheres foram as que relataram o acontecimento do parto como ex-
tremamente poderoso, transformador e repleto de referências positivas e auto-re-
conhecimento de seu protagonismo. Seu vocabulário praticamente não contém
palavras do jargão médico-científico, a não ser em pouquíssimas ocasiões quando
vão contrapor aquilo ao que viveram. E são as que conseguem colocar em palavras,
assumindo a fraqueza destas em dar conta da “experiência total”, a dimensão do
Cosmos-parto, dos “animais simbólicos”, da permissão da entrega àquilo que con-
sideram “natural”. A dimensão sexual está mais presente e verbalizada; as mulheres
que passaram pelo parto hospitalar praticamente não mencionam, ou não tiveram de
fato conhecimento ou contato com esta dimensão. A nudez é um estado não só ine-
vitável, como desejável; não há vestimenta possível que consiga fazer parte do parto
plenamente vivenciado, um toque agressivo do qual se livram sem pudor, em um
determinado momento, variante para cada mulher. A nudez é de dentro e de fora, a
nudez é a permissão para o atravessamento, a nudez chama as deusas que pedem
para vestir por dentro os corpos-em-parto.

Mas mesmo as que estão dentro das instituições, por qualquer que sejam os
motivos, a força do Cosmos-parto, em poucos momentos, é tão avassaladora que
escapa da domesticação institucional e transborda assustadoramente, coloca os ato-
res coadjuvantes do acontecimento-parto em cons-
most
trangi- amiga minh rei as fotos pra uma mento, paralisia,
queria que a, e
eu tivesse c la “pelada?!”, eu ”si
omo, de ja m impotência.
Ela: [...] E fo leco? (rimo , né,
aquela forç i m uito longa m is o la ? ” [. .. s muito) Ca-
a con ]
a, q
ralho, acho uando eu parei assim tração, e eu ‘aaaaaaa Cami-
que eu vou , meio que aaaahhhhh
não, não te desmaiar!” me deu um !’ fazendo so-
preocupa, Ea teto
ninguém d í a Vera[...] a Vera olho , sabe, eu falei “ca-
esmaia pari u pra mim e
Ela: Deu, d b ndo, falo
epois deu om! Então tá, então v tu não vai desmaiar” u “não,
l a s apagar” co o utro que fo a mo lá!” [...] , e eu “tá
mo i um
gozar!”, aq rgasmo... mas que nã misto de... desse teto
hospi- uela o, nã ass
segundos).. assim, então “hãaaaa o engrenou assim, qu im, de tipo “vou
. uma loucu hh!” (fica co anto tu “Hã
ra... uma lo m a
talares se ucura assim a respiração suspensa a, vou
(Helena, pa , n e m se i explicar. E alguns
né...
abrem, cabe- rto domicil
iar com eq aí passa,
u
ipe de part
em Florianó eiras conte
los presos se sol- polis, SC, 2
017)
mporâneas,

tam e se molham, sangue


escorre, fezes e urina escapam, uivos e gritos
atravessam as portas sonolentas dos consultórios e corredores, acordando os obs-
tetras adormecidos, vaginas ficam expostas “antes do momento apropriado”, seios
tomam seu espaço total. A nudez se impõe e expõe corpos mais-do-quê, em excesso

89
de si. A nudez é o escancaramento das forças animais que tomam conta e borram os
contornos dos corpos, contaminando quem os toca ou teme tocá-los, transindividu-
ações inerentes ao processo do parto. Estes momentos moventes, estas individua-
ções e transindividuações, são lampejos, sustos, fogos-fátuos fadados à submersão
e desaparecimento pela imposição do con- trole e subjugo da instituição, que não
se deixa contaminar. Não perduram. Está na boca das mulheres a perplexidade
e o alívio por não perdurarem. Estão ex- cessivas. Os animais simbólicos são
abatidos e cada injeção, soro, química, Eu: metal, os trancafia e espanta. Os
[...]
corpos-em-parto contemporâneos no V o c ê geral não sabem mais lidar com
saca,
a intensidade da experiência total por hoje você muito tempo7. Loucura, insa-
nidade, perigo, indecência, terror, sabe, que pânico. Abismo.
você de... a
partir do mo-
mento que você
O corpo nu em parto per- entrou no chuveiro mite o corpo que exce-
de de si, que se projeta em ou- você ficou pelada o tras dimensões, que se
resto do parto todo,
“animiza” de outras entidades né? [...] O resto do par- e forças, e que perde
to todo, que você tava pe-
7
Não posso deixar de mencionar lada, que você ficou pelada aqui uma das mais recen-
tes e agressivas tentativas de (ela: sim) até o fim do teu par- recuo e demonização da
assistência ao parto domiciliar to. (ela: sim!) Tudo bem? Como ou fora das instituições
tradicionais (maternidades e é que foi ficar pelada? hospitais), de um corpo-
rativismo truculento, em res- Ela: Não, tudo bem! posta quase imediata à
permissão para que o CPN Eu: Você se sentiu constrangida em (Centro de Parto Normal),
encampado pelo IFSC (Ins- algum momento? tituto Federal de Santa
Catarina), seja finalmente Ela: Nenhum momento, nenhum mo- viabilizado. Trata-se da
última resolução do CR- mento! (ri) Meu marido falou que... que, M-SC (Conselho Regional
de Medicina de Santa ele falou depois, né, “putz, que... que Catarina), de agosto de
2019, proibindo as/ situação, né, tipo, você de quatro ali an- os obstetras de atende-
rem partos domicilia- dando e o seu médico atrás (ri mais)... seu res e em casas de parto
(como é o caso do CPN aluno!” mas, meu, tô pouco me ferrando! do IFSC), sob pena de
cassação do registro. Eu: Não te passou em nenhum momen- Embasa a resolução em
definições genéricas to... (ela: nenhum!) não te deu nenhum sem nenhum respaldo da
comunidade científica, constrangimento (ela: nenhum!) você ignora as últimas resoluções
da OMS e mesmo do pelada em trabalho de parto, (ela: ne- próprio Ministério da Saúde,
por exemplo orien- nhum) com um monte de homem em tando as/os obstetras a não
aceitarem os planos de volta de você, só eu de...? parto. E mais: promove um
clima de denuncismo e Eu: Nenhum. Nenhum. Pra mim isso delação, incitando a que co-
muniquem ao CRM so- era o de menos ali. E era uma coisa bre colegas que estejam come-
tendo estas “práticas ilí- que eu, eu cheguei a pensar an- citas” para que sejam punidos. A
comunidade sustentado- tes, né, que ia ter muito homem ra da humanização da assistência,
sob a forma das associa- no meu parto e talvez isso me ções de doulas, entidades médicas
como a REHUNA, ativistas constrangesse, né? Mas... e mesmo a classe política favorável
à humanização estão se po- não me constrangeu.[...] sicionando veementemente contra o
CRM-SC, pois vêem nesta re- solução claramente uma tentativa de
tomada de poder, por medo (Tania, parto normal in- de perda do protagonismo da cena do
parto. O corporativismo mé- duzido em hospital dico não suporta ver autonomia, não
suporta ser apenas coadjuvante, particular, em Flo- não dá conta de uma “experiência total”,
com a qual pouco pode interferir. rianópolis, SC, Patriarcado puro.
Para ler a resolução completa, aces- 2019) se https://sistemas.cfm.org.br/normas/
visualizar/resolucoes/SC/2019/193
90
seus contornos aparentemente estáticos
formais. Não existe mais a forma fixa,
mas formas moventes inesperadas, sur-
preendentes e que apontam para outras
formas e desdobramentos. O corpo es-
tático por vezes retorna e tudo se reen-
caixa nele, para em segundos se desor-
ganizar do que se considera o “normal”.
O próprio fato de a nudez estar sendo
testemunhada por olhos de fora, olhos
de audiência, já configura um tipo de to-
que, ou talvez um pré-toque, que causa
modificações no corpo-em-parto. Este
pode encolher-se, querer se esconder,
ou afrontar, tomar tamanhos gigantes, o
animal simbólico praticamente se revelar
por inteiro, demonstrando seu território
e desafiando quem quer que chegue per-
to.

Já fui diversas vezes rechaçada


para longe, empurrada e arranhada, as-
sim como dragada quase para dentro de
seu território oculto, agarrada firmemen-
te por abraços-de-tamanduá, ou garras-
-de-leoa, ou urso-panda-desamparado.
Tal como encontrar animais no meio de
um território selvagem que, por medo ou
empatia, atacam ou acolhem, o impacto
é muito grande e também me sinto nua,
exposta e assustada pela intensidade
do toque e do encontro. O toque em si,
quando acontece, já está precedido de
uma transformação pelo olhar externo
que vigia. O toque em um corpo-em-par-

91
to nu é muito complexo, e minha experiência diante das narrativas me leva a crer
que a necessidade e o desejo precisam partir dele, pois qualquer antecipação pode
ser uma afronta, uma violência, uma invasão diante dos infinitos toques que aquele
corpo-em-parto está recebendo em si: animais simbólicos, cavalgados pelas Deusas,
ou comandados por elas, ou abençoados por elas, sombras, entidades...

E fundamentalmente o feto, que convulsiona dentro, querendo atravessar,


abrindo um espaço que se quer crer impossível, friccionando, rodando, exigindo
passagem, sendo tocado fortemente pelas estruturas físicas moventes do corpo ma-
terno, e quiçá por outros animais simbólicos e entidades que o estão individualizan-
do constantemente para que ele se materialize do lado de fora. Este é o toque mais
contundente, o gatilho de todos os outros, o que acorda a nudez, o excesso, o trans-
bordamento do corpo-em-parto. O bebê é o outro corpo-em-parto, mas enquanto
está dentro do corpo-em-parto materno, faz parte deste, querendo separar-se, mas
ainda amalgamado, em uma espécie de despedida violenta e doce ao mesmo tem-
po, que necessita de uma dança interna para acontecer. Um pas-de-deux misterioso
em constante improviso, imprevisto.

2.4. Corpos que afrontam

Encaixo, ou encontro (pois encaixar pressupõe um


contorno ou grade limitadora) o corpo-em-parto (a
partir de agora subentendo que falo deste binô-
mio mãe-bebê) tanto na cosmogonia ameríndia, já
mencionada, quanto nos estudos em filosofia pro-
cessual de Erin Manning8, minha próxima e
fundamental investigadora convidada para
conversar com minha pesquisa. Aqui en-
tram também, através de seu olhar, como
já feito anteriormente com os filósofos da
técnica e do processo Gilbert Simondon e
Alfred North Whitehead, outros teóricos e

8
Embora já citada nos capítulos anteriores, ainda
é tempo da apresentação formal. “Erin Manning
preside a cadeira de pesquisa em arte e filosofia
relacional e leciona artes plásticas na Concordia
92
pesquisadores que conceituam com diversos nomes
o que reconheço no corpo-em-parto. É necessário
mover-se para desconstruir pensamentos hegemôni-
cos sobre o que é um corpo ou sobre “o que pode
um corpo”. (MANNING, 2007)

Antes de mais nada, para que possamos com-


preender o que vai ser exposto a partir daqui, sinto
ser preciso olhar para o corpo-em-parto não como
um corpo de gênero, de mulher, codificado dentro
das normas cartesianas de catalogação, comparti-
mentação e definição. Manning explicita esta neces-
sidade logo na introdução de Politics of Touch - Sen-
se, Movement, Sovereignty, destacando que “[...] é
necessário escrever contra a semente de um modelo
mente-corpo, razão-sentidos, que continua a privi-
legiar leituras severas de gênero, biologia e políti-
ca”9. (MANNING, 2007, pg. 12). Vamos falar sobre
o corpo sensível, que é o que um corpo-em-parto é,
sobre o toque, sobre outras possibilidades de o que
pode um corpo.

University (Montreal, Canadá). Ela dirige o Sense Lab (www.


senselab.ca), um laboratório que explora as intersecções entre
prática artística e filosofia através da matriz do corpo sensível
em movimento. Seu projeto de arte atual é intitulado Folds to
Infinity: uma coleção experimental de tecidos composta de
cortes que se conectam de várias formas, dobrando-se para
criar roupas e criando arquiteturas ambientais (http://www.
erinmovement.com). As publicações incluem: Relationscapes:
Movement, Art, Philosophy (MIT Press, 2009), Politics of Touch:
Sense, Movement, Sovereignty (Minneapolis: Minnesota Uni-
versity Press, 2007) e Ephemeral Territories: Representing Na-
tion, Home and Identity in Canada (Minnesota University Press,
2003).” Tradução nossa. Para ler o texto original, acesse http://
inflexions.org/participants.html#manning
9
No original: “[...] it is necessary to write against the grain of
a mind-body, reason-senses model that continues to privilege
staid readings of gender, biology, and politics.” Tradução nos-
sa.
93
Como estudar um corpo sensível a par-
tir de teorias do toque que pressupõem corpos
codificados e comparti- mentados em conceitos
estáticos, em aparatos sensórios isolados que
operariam como recep- tores a uma codificação
das emoções a posterio- ri? Como estudar o corpo
sensível em movimento se a maior parte dos estudos
sobre sentidos, o tato a partir do toque, congela
imagens, supõe relações polarizadas entre doador-
receptor, uma dicotomia onde há sempre um sujei-
to que afeta e um (sujeito/ objeto) que é afetado? O
modelo precisa ser outro. Como escreve Manning:

Que as mães pos- sam alterar a experiência de


seus filhos tocan- do-os não é algo que discuto.
O que eu contra- ponho é a noção de que os sen-
tidos são controla- dos por um corpo e ofertados
ou retidos a ou- tro. Essa atitude postula como
ponto de partida um corpo estável que existe em
um espaço-tempo pré-determinado que contém
um doador ativo e um receptor passivo. Politics
of Touch desafia essa suposição, posicionando
os sentidos rela- cionalmente como expressões
de corpos em mo- vimento. Isso pressupõe um
conceito ampla- mente alterado de tempo e
espaço. Enquanto no modelo de senso comum
ativo-passivo, tem- po e espaço estão localizados
como significan- tes estáveis nos quais o corpo
entra, dentro de um modelo relacional, espaço e
tempo são qualita- tivamente transformados pelos
movimentos do corpo. O corpo não se move
no espaço e no tempo, cria espaço e tempo:
não há espaço e tempo antes do movimento10.
(MANNING, 2007, pg. 12-13) Últimos grifos meus.

10
No original: “That mothers can alter the experience of
their young by touching them is not something I dispute. What
I counter is the notion that the senses are controlled by one
body and given to another or withheld. This attitude posits as
its point of departure a stable body that exists in a pre-given
space-time which contains an active giver and a passive
receptor. Politics of Touch chal- lenges this assumption, positio-
ning the senses relationally as expressions of moving bodies.
This presupposes a vastly alte- red concept of time and space.
Whereas in the active-passive commonsense model, time and
space are located as stable sig- nifiers into which the body en-
ters, within a relational model, space and time are qualitatively
transformed by the movements of the body. The body does not
move into space and time, it creates space and time: there is
no space and time before mo- vement.” Tradução nossa.
94
Há relação entre corpos categorizados, mas numa cena de parto, estas rela-
ções tendem a se engessar em atitudes protocolares ou esperadas para cada cate-
goria. Espera-se determinada atitude ou determinado toque de cada ator: o toque
da/do obstetra, o toque da/do enfermeira/enfermeiro, o toque da/do companheira/
companheiro, o toque da doula, o toque no feto/bebê. Mesmo os afetos acabam
sendo emoldurados em atitudes habituais. O próprio corpo-em-parto alimenta ex-
pectativas de desempenho categorizadas, por mais que a atualização do aconteci-
mento-parto destrua estas expectativas. A própria constatação desta destruição de
expectativas gera sentimentos e ações em cadeia no corpo-em-parto, que podem
ser favoráveis ao processo ou conflituosas a este. O olhar hegemônico para a catego-
ria mulher grávida vai de encontro ao modelo relacional. Excluem-se também outras
possibilidades de outros corpos não-binários: corpo trans em trabalho de parto, ho-
mem trans em trabalho de parto. Ao fazermos o esforço para des-categorizar, des-
-emoldurar, outras narrativas e outros animais se apresentam. Há muitos clichês nas
narrativas sobre o que é ser mulher, fêmea, isto vai ao encontro do corpo-biológico,
ou do corpo-Estado (MANNING, 2007). Um corpo-em-parto excede esta categoria.
As deusas dão permissão a que os corpos-em-parto se desterritorializem e sejam
matéria em potência. Sejam bicho. Sejam dissolvências. Por isso é tão difícil tocar um
corpo-em-parto. Ele não é apreensível.

Não é possível termos a dimensão do toque e suas


transformações entre os corpos do feto e da mãe.
É possível nada mais do que especular: os dois
corpos, par- tes de uma mesma entidade
c o r - po-em-parto, to-

95
cam-se alterando a dimensão dentro-fora. A presença do corpo-feto extravasa pro-
teticamente seus limites e redimensiona o corpo-mãe; “o corpo que toca é um corpo
que está sempre em excesso de si mesmo”11. (MANNING, 2007, pg. 136).

O que está nu são diversos corpos em processo, alterando a noção identitária:


vemos as individuações acontecendo, mas é impossível apreendê-las. Não vemos o
animal simbólico, mas ele está lá, vemos sua força para além do contorno do corpo-
-em-parto nu. O corpo-em-parto nu é indomável e inapreensível como corpo-Estado.
É indomesticável. Os toques mútuos mãe/feto, mãe/si-mesma, mãe/objetos, mãe/
chão, mãe/parceira/parceiro, mãe/doula, mãe/água, alteram qualitativamente a for-
ma-matéria. Não há mais mãe/feto. Há corpos processuais tocando-se e excedendo-
-se através do toque, inventando novos animais simbólicos, criando tempo-espaço e
espaço-tempo.

A fricção dos toques, pedra contra pedra que gera faíscas criativas, invoca
os animais simbólicos. O corpo-mãe e o corpo-feto são corpos esfoliantes em seus
toques no processo do parto. Dois corpos em metamorfose, sempre por tornar-se,
em um processo violento, fugindo da pejoratividade da palavra violência. “Esfoliar
implica verter camadas de pele. Também sugere um processo de renovação e tran-
sição.”12 (MANNING, 2007, pg. 19) Existe violência, uma brutalidade que faz os cor-
pos se excederem e chamarem as divindades do selvagem, o confronto, ao mesmo
tempo, o diálogo. Esfoliar-se mutuamente, “deixar ir”, a pele da serpente precisa ser
abandonada, e tal como a serpente, deixar ir requer movimento, convulsão, esforço,
violência. Os corpos-em-parto estão no processo de tornar-se ao se friccionarem e
tocarem-se em outras dimensões além da biológica. Não é só a vagina e o quadril
que se alargam, não são só os pulmões do feto que se expandem ao sair, muito
mais se expande e se avoluma nesta esfoliação mútua. O Cosmos-parto é como um
Big Bang, um universo em expansão que excede de si mesmo. Contamina todos os
corpos que estão próximos, um corpo múltiplo, coletivo em si, relacionando-se com
outros corpos individuando-se ao redor.

11
No original: “The body that touches is a body that is always in excess of its-self.” Tradução nossa.
12
No original: “To exfoliate implies shedding layers of skin. It also suggests a process of renewal and
transition”. Tradução nossa.
96
2.5. O corpo fabulado

Estou diante de dois modelos de pensamento sobre o corpo, o ameríndio e
o relacional. A despeito da enorme distância e diferença de origem, ambos me al-
cançam no entendimento do corpo-em-parto e alicerçam os caminhos experimentais
da linguagem cênica que quero desenvolver, como expressão criativa poética do
Cosmos-parto. Ambos me auxiliam na construção desta ponte que pode conectar
narrativas mitológicas fundamentais e narrativas contemporâneas particulares. O de-
safio que se apresenta é colocar o indescritível, o inapreensível, o não-categorizado
em matéria-forma. Através do meu corpo, aproximar-me da experiência total pela
performance.

O que pode um corpo? O que meu corpo em performance pode fazer? O que
ele pode experimentar, especular, para dar conta das narrativas apresentadas? Como
este meu corpo excede as narrativas dadas e cria novas possibilidades? Partindo da
premissa de que todo corpo é processual, como conduzo u m a
prática de investigação onde posso levar esta premissa
ao limite?

Narrar com o corpo, contar pelos silêncios,


sons e movimentos, criar a “fala” dos animais sim-
bólicos em mim, afastar-me do cognitivo para bus-
car relações outras com as narrativas míticas e
contemporâneas que tenham potencial para
provocar novas percepções e olhares sobre o
Cosmos-parto: saber-me corpo em devir me
liberta para pensar a invenção do parto fora
do verbal. Manning escreve ao tocar na máxi-
ma Spinozeana:
O que um corpo pode fazer depende das
expressões que nossos alcances tomam. A
expressão é dinâmica, alterando as infini-
tas combinações de matéria-forma, maté-
ria-conteúdo, forma-conteúdo. Uma ética
da expressão envolve a produção de “ex-
pressões atípicas”, que constituem “um
limite agudo da desterritorialização da lin-
guagem” (Deleuze e Guattari 1987, 99).

97
Pensar a-gramaticalmente é “trazer à tona a dimensão elástica da linguagem, estenden-
do seus elementos além do limite de suas formas conhecidas e funções convencionais”
(Massumi 2002, xxii). O pensamento agramático traz a linguagem à sua futuridade, ao seu
acontecimento, atraindo-a para o domínio do virtual. O corpo sensível em movimento é
uma invenção agramática.13 (MANNING, 2007, pg. 23)

Assim, o que se segue, louvando Sekhmet e seu fogo criativo que ilumina a
próxima etapa do caminho, é criação movente, água vertendo em forma, Iemanjá.

13
No original: “What a body can do depends on the expressions our reachings take. Expression is
dynamic, altering the infinite combinations of matter-form, matter-content, form-content. An ethics of
expression involves producing “atypical expressions” which constitute “a cutting edge of deterrito-
rialization of language” (Deleuze and Guattari 1987, 99). To think agrammatically is to “bring out the
tensile dimension of language by stretching its elements beyond the limit of their known forms and
conventional functions” (Massumi 2002, xxii). Agrammatical thinking brings language to its futurity, to
its event-ness, drawing it into the realm of the virtual. The sensing body in movement is an agramma-
tical invention.” Tradução nossa.
98
Índice das imagens

1. Detalhe de apresentação da performance Mamífera Reptiliana (abr/2019 - CEART/UDESC - Floria-


nópolis)
Performer: Daniela Carmona
Foto original: Mariana Rotili

2. Detalhe de apresentação da performance Mamífera Reptiliana (abr/2019 - CEART/UDESC - Floria-


nópolis)
Performer: Daniela Carmona
Foto original: Spyder

3. Imagem de Sekhmet entronada, que governa o Sol e as Tábuas do Destino. Egito, 1.350 a.C. - arte
sobre original. Fonte: JOHNSON, Buffie. Lady of the Beasts - The Goddess and Her Sacred Animals.
Rochester: Inner Traditions International, 1994, pg. 107.

4. Detalhe de apresentação da performance Mamífera Reptiliana (abr/2019 - CEART/UDESC - Floria-


nópolis)
Performer: Daniela Carmona
Foto original: Mariana Rotili

5. Detalhe de apresentação da performance Trigemelar (nov/2018 - CEART/UDESC - Florianópolis)


Performer: Daniela Carmona
Foto original: Mariana Rotili

6. Imagem de cena de um parto com uma Deusa Mãe em um trono, ladeada por leopardos. Catal
Huyuk, Turquia, entre 7.100-6.300 a.C. - arte sobre original. Fonte: JOHNSON, Buffie. Lady of the Be-
asts - The Goddess and Her Sacred Animals. Rochester: Inner Traditions International, 1994, pg. 102.

7. Detalhe de apresentação da performance Mamífera Reptiliana (abr/2019 - CEART/UDESC - Floria-


nópolis)
Performer: Daniela Carmona
Foto original: Mariana Rotili

8. Detalhe de vivência para a performance Mamífera Reptiliana (mar/2019 - Florianópolis)


Performer: Daniela Carmona
Foto original: Mariana Rotili

99
9. Alto relevo da Medusa em posição de parto, auxiliada por duas leoas. Perúgia, Itália, cerca de 500
a.C. - arte sobre original. Fonte: JOHNSON, Buffie. Lady of the Beasts - The Goddess and Her Sacred
Animals. Rochester: Inner Traditions International, 1994, pg. 110.

10. Detalhe de apresentação da performance Mamífera Reptiliana (abr/2019 - CEART/UDESC - Flo-


rianópolis)
Performer: Daniela Carmona
Foto original: Mariana Rotili

12. Apropriação artística de detalhe da impressão de um selo, mostrando a Grande Mãe com diversos
de seus símbolos, incluindo as leoas guardiãs. Creta, período palaciano tardio. Fonte: JOHNSON,
Buffie. Lady of the Beasts - The Goddess and Her Sacred Animals. Rochester: Inner Traditions Interna-
tional, 1994, pg. 108.

100
ABUNDÂNCIA
Materialização

Canto de Iemanjá
Mulher:
Sou o Princípio e estou em seu princípio,
circundando seu corpo desde sua semente,
no Vaso Sagrado de cada fêmea.
Estou em seu corpo em abundância
em seu choro salgado
em seu mar interior.
Sou infinita, desmesurada, imensa, generosa.
Mesmo em meu sono,
cada revirar meu faz brotar fontes de água
que alimentam o mar-eu.
Amamento a humanidade, os animais, os deuses e deusas,
a quem dei a luz violentamente.
Violada pelo filho lascivo, fugi em desespero,
em trabalho de parto ativo me joguei e avolumei
tornando-me um cosmos-mãe, seios-montanhas, rios de leite
vales de quadris, ventre vulcão
que irrompe e dele jorram todas as divindades,
Mãe da Vida que sou.
Recebo seus filhos, mulher, estou em seu olhar
ao mira-los pela primeira vez
e se surpreender mãe.
É-me inevitável criar, gerar, materializar, acalentar,
criar, gerar, materializar, acalentar,
e criar, gerar...
Entregue-se ao meu abraço inspirador
deixe que eu sopre ideias em seu útero fértil

101
e te amamente com sabedoria e ousadia.
Nomes múltiplos, viagens intermináveis,
baleias, peixes, narvais, enguias, sereias
minha corte aquosa para povoar seus sonhos,
rebentar suas resistências,
dissolver seus obstáculos,
salgar sua pele,
transmutar suas dores.
Solte-se nas minha ondas, crie.
Sou sua Mãe. Sou Iemanjá.1

1
Poema inspirado em um dos vários mitos de Iemanjá e estudos sobre sua natureza. Segundo Mo-
naghan: “Ela é uma das grandes deusas da África e da diáspora africana. Em sua terra natal original,
era a deusa iorubá do rio Ogum, onde se dizia que era a filha do mar em cujas águas se esvaziava.
Seus seios são muito grandes, porque era mãe de muitos dos deuses iorubás. Ela também é a mãe
das águas, Mama Wata, que deu origem a todas as águas do mundo. Mesmo enquanto dormia, criava
novas fontes, que jorravam toda vez que se virava. [...]
Na diáspora africana, Ymoja permaneceu uma divindade popular. Ela é Imanje ou Yemanjá nos cultos
afro-brasileiros, onde é a deusa do oceano da lua crescente. Em Cuba, ela é Yemaya, aparecendo em
muitas variantes [...]. Ela é Agwe no Haiti, La Balianne em Nova Orleans. É sincretizada com Nossa Se-
nhora de Regla e Maria, Estrela do Mar; no Brasil, ela é Nossa Senhora da Conceição, cujos seguidores
usam contas de cristal e saúdam sua aparição com gritos de ‘Odoya’ [...]. Fonte: MONAGHAN, Patricia.
The New Book of Goddesses and Heroines. 3a ed. St. Paul: Llewellyn Publications, 2000; pp. 320.
Um dos mitos primordiais de Iemanjá, segundo Prandi, conta que Obatalá (o Céu) e Odudua (a Terra),
deram a luz a Iemanjá e Aganju, que se casaram. Desta união nasceu Orungã. Este apaixonou-se pela
mãe e, aproveitando-se um dia da ausência do pai, violentou-a. Desesperada, Iemanjá fugiu, com o
filho em perseguição. Quando ele estava para alcançá-la, Iemanjá caiu e seu corpo cresceu de maneira
monumental, transformando-se em vales, montanhas, serras. De seus seios irromperam dois rios que
originaram o mar. E seu ventre imenso rompeu-se, saindo dele todos os orixás. Por isso diz-se que
Iemanjá é a mãe de todas as divindades. Fonte: PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo:
Cia. das Letras, 2001; pg. 382.

102
3.1. Performances, meus partos

Entro em sala de ensaio, finalmente. Nua, literalmente. Neste pródromo2, necessito


estar só e nua e sentir minha própria vergonha de me movimentar nua. A sala escura,
“[... cortinas cerradas, a porta trancada. O medo de que alguém entre, tenha a có-
] ela (a par- pia da chave e me flagre, acompanha-me todo o tempo. O que não me
teira) me deu
um... me fez tomar impede de me soltar para experimentar. Mas o neocórtex alerta
um... um banho de assen-
to, que eu fazia também com está lá, nem que seja em “modo stand-by”, um tantinho de
frequência, com folha de amo- adrenalina atrapalhando minha ocitocina experimental.
ra, artemísia... várias ervas e plan-
tas medicinais. Por isso que é bom,
né, a gente estar com gente que con-
segue, é... ter essa segurança de que Este é um elemento com o qual tenho que lidar o
tudo vai dar certo, porque está simples- tempo todo, ainda mais quando mais à frente chamo
mente rodeada da Mãe Natureza. [...]
Ela... ela tem um conhecimento tal que colegas e diretoras/diretores para o desenvolvimen-
faz com que... ela passa segurança de...
se precisar ir pro hospital, vamos, mas que to das performances: estar nua diante do olhar do
em princípio... se confiar, que dá [...]. Eu outro. Penso que esta sensação de ser observada,
adorei essa relação entre ela e minha mãe
(eu: ah, que legal) porque a minha mãe que ou na iminência de ser observada, aproxima-se da
talvez no lugar onde minha mãe talvez...
num... num tinha esses argumentos pra sensação dos corpos-em-parto, seja com olhares
me passar essa segurança, a parteira fazia respeitosos e não interferentes (mas um olhar sem-
isso e eu via também os olhos da minha
mãe brilhando, né, da, de, da felicidade pre será interferente, não?), seja com olhares julga-
de ver a filha, é... segura e bem cuida-
da, entendeu? Eu ficava feliz também dores que levam mãos e instrumentos a interferir. Lidar
pela minha mãe, porque eu via que com esta sensação análoga é um elemento perturbador
ela... a, a parteira lembrava ela mi-
nha avó! A minha avó também e estimulante para a experimentação.
estava lá, sabe, de forma in-
direta. E aí... (pausa longa)
e aí... eu fui tomar meu Inicio só e na maior parte do tempo estou só. Só com
banho de assen-
to... eu tenho meus animais simbólicos a postos para me atravessar. Não sei quem
uma
são, quais são, não sei que deusas irão se apresentar, não sei quem, além
de meu corpo, irá me guiar. Lanço-me o desafio: transformar em movimento e sons,
em narrativas não-verbais, os elementos das narrativas orais e das narrativas míticas

2
Pródromo: “O trabalho de parto é antecedido por um período preparatório denominado de pré-
-parto, período prodrômico (ou pródromo de trabalho de parto) ou período premonitório. Nesta
etapa vários sinais estão presentes, demonstrando que o trabalho de parto e o nascimento do bebê
se aproximam. O período premonitório do parto ou período pré-parto é caracterizado pela presença
de contrações, por vezes dolorosas, que ocorrem em intervalos e intensidade irregulares, não apre-
sentando ritmo. Essas contrações não são efetivas para dilatar o colo uterino e constituem o chamado
“falso trabalho de parto”, onde, embora haja contrações, não há alteração do colo do útero (ou seja,
não há a dilatação do mesmo com progressão para o nascimento do bebê).”
Fonte: https://anadoulaenutri.blogspot.com/2011/01/o-que-e-o-periodo-premonitorio-do-parto.
html, acessado em 25/09/2019
103
que circundam a experiência do parto. Cada performance parte desta premissa, mas
cada performance tem sua história própria de criação e caminhos não-repetidos,
surpreendentes. Em comum, meu corpo, meus sons, e vislumbres da experiência do
parto apreendida pelas narrativas e por meu testemunho como doula.

Quando dei início a esta pesquisa, a perspectiva era que a experimentação


prática resultasse em um espetáculo teatral coeso, de mais de uma hora de duração,
com dramaturgia escrita, outros atores e atrizes, música ao vivo, toda a parafernália
convencional a que estive habituada ao longo da minha trajetória profissional; terre-
no conhecido, pisado e repisado de segurança disfarçada de ousadia. Até aqui tinha
funcionado, porque não simplesmente passar de novo por esta estrada? Porque des-
de o início, o desafio da experiência do parto não seria possível de ser apreendido
em um espaço-tempo definido e linear, em uma narrativa convencional com início,
meio e fim; o parto é um “meio”, um corte, um irromper quase inapreensível. Reduzir
a experiência a personagens definidos, repetir as histórias das mitologias e das nar-
rativas, colocar o material de maneira a encaixar em um formato de “espetáculo
coi-
teatral”, embora pudesse me trazer uma visibilidade evidente, ape- sa também
quenava as descobertas e a intensidade do já testemunhado que eu... é... que eu
vejo que sim, se repetiu em
e ia no sentido oposto ao que eu queria traçar. Eu que- cada parto, é que... é... eu tô a
fim de, de... descansar (ri) na hora
ria encontrar algo que me jogasse em uma intensida- do... do... quando começou o tra-
de que “conversasse” com a intensidade do parto, balho, sim. Sempre acontece de noite
também, né, uma tendência a começar
que me colocasse na borda do Cosmos-parto de no anoitecer... é... e aí também tenho a
benção de sempre estar acompanhada de
maneira poética e contundente. Não conseguia uma parteira ou de uma enfermeira obste-
mais forçar uma formatação fixa, estática, repe- tra, que me... me... ou me convida ou me,
me diz ‘ok, pode ir lá, né, deitar se quiser’.”
tível.
“[...] eu deito de lado e, e fecho olhos quando
precisa, não sinto chegar a contração, que eu
Mais do que isso: olhar para esta experi- não chamo de dor, né, desde o primeiro parto
eu chamo ela de onda, aí dou uma mexida as-
mentação prática e perguntar para quem e para sim na barriga, né, no corpo, quadril e passa,
e fechos os olhos, me aquieto de novo, né?
quê estou fazendo, foi fundamental para chegar à E realmente igual a ondas do mar. Mas cres-
linguagem e a forma que tomou o processo de cria- ce, né, eu tô assim falando como se fosse,
tipo (rimos), uma música, tudo bem, mas
ção. O desejo de provocar novas narrativas, novos na verdade tá crescendo o negócio!”
diálogos, novos questionamentos me levou a enten- “[...] É... esse cansaço, não sei ex-
der que nesta pesquisa não poderia neutralizar o público plicar, sempre me deixa um pou-
co...não, eu, eu, eu lembro
já que ele seria a completude, quem “apararia” este “nasci- das parteiras falando
‘não, vamos le-
mento cênico” e daria conta de “cuidar desse bebê” sob a forma vantar um

104
pouquinho’, com todo o amor, mas eu ‘não, eu tô bem, nã, nã,nã’, eu vinha, fazia movimentos bem devagar...
Acho que o meu jeito de parir é assim (ri), é assim (eu: mais preguiçoso...), é... é...”

“Aí ele foi lá, falei ‘pode ir lá buscar a Val’, a parteira que tava ali fora, né, com os outros, ela veio... e ele
mostrou pra ela ‘e tá aí a cabeça!’, aí eu falei ‘posso ir pra banheira agora?’, eu adoro a banheira por causa
da água quente, pra mim é igual anestesia, única coisa que eu tenho pra me aliviar assim a lombar... é
meu luxo, não sei se sem (começo a rir), sem ela eu também faria (eu: mas já que tem, né...) é, é tão
gostoso, gente, eu vou, eu gosto de entrar nesse momento, né, [...]”

“[...] acho que eu fiz, ter tido umas... quatro, cinco contrações no máximo até a saída do bebê,
né, entramos, tive umas duas contrações, aí depois saiu a cabeça, senti aquele círculo assim,
mas esse círculo é o momento... eu não diria que é o mais doloroso, sabia? É igual a essa
história da, das dores, que eu não chamo de dor, que eu prefiro chamar de onda, esse de
círculo de fogo, que chamam que é o momento da cabeça, que o mais assim, forte,
doloroso, não é o mais doloroso, é uma coisa... é uma coisa... (entusiasmada) de-
b a gostosa de se sentir, porque quer dizer que ele está chegando, tá coroan- te.
do, tá... tá aqui, tá uma parte dentro, uma parte fora, não tem uma
coisa mais linda? É tipo, uaaaaaauuuuu!”
(Satya, parto domiciliar com parteira tradicional -
Ao ob- Alto Paraíso, servar a impor-
Goiás)
tância das rodas de conversa subsequentes
às encenações, optei por sair da caixa preta do teatro. Eu queria sair da caixa, de
qualquer caixa. Para me encaixar em qualquer espaço que me desse a oportunidade
de provocar, de disparar, detonar diálogos e narrativas outras. Assim, direcionei as
encenações a locais onde poderia contribuir com a convivialidade das gestantes,
famílias, mães, profissionais da área da saúde, gestoras/gestores, políticas/políticos,
ativistas, estudantes...

Na sala de ensaio, despida da minha experiência anterior - atriz formada e for-


jada na interpretação teatral stanislavskiana e posteriormente em outras linguagens,
quase sempre calcadas em textos dramatúrgicos e personagens construídos -, despi-
da literalmente e partindo do vazio, coloquei-me no risco ao experimentar a lingua-
gem da performance, linguagem não habitual, que até o desenrolar desta pesquisa
não havia experimentado a não ser como espectadora. Tal como os chamados dos
animais de poder, descritos como espectros que se aproximam para oferecer forças,
habilidades, capacidades em determinadas situações rituais, a linguagem da perfor-
mance veio até mim e decidiu-se, passando a conduzir as experimentações criativas.
Quando vi, estava lá.

De fato, a performance mostrou-se claramente a categoria artística que me-


lhor abrigou minhas propostas criativas. Precisamente por abarcar uma infinidade de
tentativas de conceitua-la, por ser híbrida, movente, com bordas e limites borrados,
indefinidos, conversa com o Cosmos-parto e minhas apreensões deste quase sem
filtro. Aqui cabe entender brevemente em que consiste esta linguagem, sem pre-
tender aprofundar em suas multiplicidades (para isso seria necessário no mínimo um
capítulo inteiro), mas sim contextualizar a escolha para chegar a esta investigação.

105
Como categoria artística reconhecida como tal, torna-se apreensível, estuda-
da e assumida a partir da década de 60 do século XX, nos EUA. A performance
evoluiu a partir de vários campos de estudos que convergiram ao longo de todo
o século XX, como a antropologia, a sociologia e o teatro tradicional, e sua termi-
nologia se deve fundamentalmente aos escritos de Richard Schechner
a partir da década de 70 sobre estes dois campos das
ciências sociais e do tea- tro. Adicionalmente, pesquisa-
dores como RoseLee Gol- dberg atribuem o surgimento
da performance a uma de- corrência das vanguardas
artísticas europeias do iní- cio do século - funda-
mentalmente o futurismo, o dada- ísmo e o surrealismo.
Posteriormente, são reconhecidos como elementos fun-
dantes e influentes também o te- atro de vaudeville, o
cabaré, os artistas de rua, de circo, expressões
cênicas que nos séculos an- teriores eram con-
sideradas “marginais”, de pouca ou nenhuma
importância artística, onde o improviso da/do
performer e sua presença cê- nica e virtuosismo
eram o centro da atenção. Portanto,
a performan- ce é um gênero fruto de
muitas mães e pais “à margem”, ou
como Marvin Carlson cita Turner, “limi-
nóides”, ativida- des que “marcam lugares
onde a estrutura convencional não é mais
respeitada, mas por serem mais lúdicas, mais
abertas ao acaso, elas também são muito mais
capazes de ser subver- sivas [...].” (CARLSON,
2010, pg. 34).

Quando chega aos anos 60, no meio artístico ligado às artes


cênicas, entra por outras portas que não somente o teatro, como por exemplo a
dança, e torna-se, dentro de uma década, o principal meio de expressão da arte con-
ceitual, “que privilegiava uma arte das ideias em detrimento do produto, uma arte
que não se destinasse a ser comprada ou vendida [...].” (GOLDBERG, 2007, pg. 7).
Goldberg procura situar a história da performance como

106
[...] a história de um meio de expressão maleável e indeterminado, com infinitas variá-
veis, praticado por artistas insatisfeitas/insatisfeitos com as limitações das formas mais
estabelecidas e decididas/decididos a pôr sua arte em contato direto com o público. Por
esse motivo, tem sempre tido uma base anárquica. Devido à sua natureza, a performance
dificulta uma definição fácil ou exata, que transcenda a simples afirmação de que se trata
de uma arte feita ao vivo pelos artistas. (GOLDBERG, 2007, pg. 10).

A arte da performance como tal desenvolveu-se, portanto, como resposta a


um anseio por que- brar as convenções tradicionais da arte
e suas regras limitan- tes e ultrapassadas. Poder
sair da caixa preta do teatro, experimentar rela-
ções diretas com o ambiente e o público, prescindir de
um texto dramatúrgico, de per- sonagens definidos, da ló-
gica aristotélica, utilizar novas mídias e recursos cênicos,
buscar provocações, fricções e relações que afetassem
a si próprias/próprios e que as/os assistisse, com-
partilhar suas próprias expe- riências e histórias de
vida em cena, eram anseios e objetivos dos artistas da
performance. Na década de 60 o corpo foi alçado à
categoria de obra de arte e transformou-se no elemen-
to central das performances, sua presença per se, viva e
presente, sem artifícios ex- pressivos ou demonstrativos.
Aqui tomo a definição de Carlson do protagonismo
do corpo e do indiví- duo na performance como
um diálogo direto com minhas proposições e
composições desta investigação:
[...] Seus praticantes, quase por
definição, não baseiam seu trabalho em
personagens pre- viamente criados por outros
artistas, mas em seus próprios corpos, suas
próprias autobiografias, suas próprias experiências,
numa cultura ou num mundo que se fizeram performativos
pela consciência que tiveram de si e pelo processo de se
exibirem para uma audiência. Desde que a ênfase esteja na
performance e em como o cor- po ou self é articulado por meio
da performance, o corpo indivi- dual permanece no centro de tais
apresentações. A arte performática típica é arte solo, e o artista típico da
performance pouco faz uso das adjacências cênicas elaboradas pelo palco tradicional [...].
(CARLSON, 2010, pg. 17).

Em cena, é meu corpo que empresto a forças, afetamentos e ações experi-


mentadas nos momentos presentes das apresentações. Não me coloco como uma
personagem que interpreta uma mulher grávida em trabalho de parto, nem me co-

107
loco como “tradutora” das vozes das mulheres que narraram seus partos para mim.
Busco o Cosmos-parto através de uma “invocação”, pelo movimento, pela voz e
pelos elementos cênicos, dos afetos entre eu e mim-mesma, entre eu e as narrativas
em off, entre eu e quem me assiste. É sempre um salto no abismo. Nunca sei como
vai se desenrolar e como será o desfecho.

O que se segue agora é o compartilhar de meus comentários e anotações


sobre o processo de investigação e criação de meus partos-performances. Peço li-
cença e benção à Senhora das Águas Salgadas, à mãe Iemanjá, que preside e ancora
o trono da Geração, presente em toda criação, seja de gente, seja de bichos, seja de
projetos. Peço sua permissão e colo. Odoyá!

108
PRIMAGESTA

Apresentação UDESC-CEART - Nov/18


Performer Daniela Carmona e público
Foto: Mariana Rotili

109
Apresentação UDESC-CEART - Nov/18
Público em espera
Foto: Mariana Rotili

110
Apresentação UDESC-CEART - Nov/18
Performer Daniela Carmona
Foto: Mariana Rotili
A primeira. Começa com uma provo-
cação em sala de aula para que eu intro-
duza às/aos colegas alguns conceitos do
capítulo “Objects and Subjects”, do livro
Adventures of Ideas, de autoria do filóso-
fo Alfred North Whitehead, fundador da
perspectiva que conhecemos hoje como
filosofia processual. Poderia fazer isto sob
a forma de palestra, fala, mas escolho pa-
rir meu primeiro experimento utilizando
esta tarefa como pretexto. Parto da afir-
mação de Whitehead de que o sujeito e
objeto são termos relativos. Whitehead
desafia a estrutura sujeito-objeto da expe-
riência como tem sido tratada por filósofos
desde Descartes: “O sujeito é o conhece-
dor, o objeto é o conhecido. Então, com
essa interpretação, a relação objeto-sujeito
é a relação conhecido-conhecedor.”3 (WHITEHEAD, 1933, pp. 175) Whitehead reba-
te: “[...] a relação sujeito-objeto é a estrutura fundamental da experiência.”4 (WHI-
TEHEAD, 1933, pg. 176) Grifo meu.

O capítulo é uma faísca para a criação: um trabalho de parto testemunhado


pela audiência, apresentado como um evento recreativo. Estou dentro de uma sala,
só, nua, molhada, o público fora. Um ator convidado performa um enfermeiro que
conduz e informa o público. Um cordão umbilical vermelho-sangue, úmido, que se
inicia fora, através de corredores e passagens, culmina dentro da sala de parto, fe-
chada. Uma expectativa frustrada, a de ver o trabalho de parto. O público é impedi-
do de entrar. Mas escuta: gritos, gemidos, respirações, pausa, vocalizações, gritos,
mais gemidos, pausa, gemidos, gritos, choro, respirações, pausa, grito, grito, grito
intenso, silêncio. Ao público é dada agora a oportunidade de efetuar os primeiros
cuidados com o recém-nascido: eu, corpo-em-parto e recém-nascida. Sala escura,
3
No original: “[...] The subject is the knower, the object is the known. Thus, with this interpretation, the
object-subject relation is the known-knower relation.” Tradução minha.
4
No original: ”[...] the subject-object relation is the fundamental structure of experience.” Tradução
minha.
111
Apresentação UDESC-CEART - Nov/18
Performer Daniela Carmona
Foto: Mariana Rotili

112
Apresentação UDESC-CEART - Nov/18
Performer e público
Foto: Mariana Rotili
eu me largo no chão, eu-recém-nascida, em
tremor, gemidos, choro, o cordão umbilical
enrolado em seu fim em mim. Mala-do-bebê
com objetos para cuidado. Nenhum objeto
cuida (faca, chave de fenda, cubo mágico,
vela, lanternas, canetas, maracá). Pessoas
me rodeiam. Veem o bebê ou veem a per-
former? Pegam os objetos e não usam. Não
sabem o que fazer. Não há instrução, só um
recém-nascido nu, molhado, trêmulo, balbu-
ciante, que agarra dedos, mãos, o que passar
por sua vista. Não sou tocada por ninguém.
O enfermeiro, não-interferente-indiferente,
assiste pelo celular uma sessão na TV Sena-
do. Trilha sonora indesejável, as pessoas in-
comodam-se. O enfermeiro então se dirige a
eu-recém-nascida e me veste cuidadosamen-
te, vestido de mulher adulta. Levanto. Olho
cada um da audiência, digo “eu só queria
que me pegassem no colo”. Saio. Fim. Pri-
meira, segunda e terceira sessões de Prima-
gesta se desenrolam ainda nesta formatação
experimental.

Desdobramentos e lapidações
A partir desta experiência desejo apro-
fundar a experiência do toque. Mas desejo
que continuem não me vendo e construam
na mente o parto escutado. Introduzo mais
um sentido, o tato. Além do toque e o ele-
mento mítico-profano. A enfermeira agora é
uma sacerdotisa; e também uma enfermei-
ra. A sala fechada e escura. O público pode
entrar. Mas cego, vendado, conduzido pela
sacerdotisa-enfermeira. Cadeiras se perfilam
Apresentação UDESC-CEART - Nov/18
Atriz Rafaela Herran 113
Foto: Mariana Rotili
Apresentação UDESC-CEART - Nov/18
Performer Daniela Carmona
Foto: Mariana Rotili

Apresentação UDESC-CEART - Nov/18


Público 114
Foto: Mariana Rotili
em espiral. Dentro eu-corpo-em-parto já estou em pródromo, nua, molhada, cami-
nhando, respirando fundo, gemidos sutis. Água escorre, balde oco, sons-sussurros.
Roço de leve os corpos do público nesta acomodação. Sala fechada, o trabalho de
parto inicia. Todas e todos são minhas “doulas”, meus acompanhantes, minha equi-
pe, minhas parteiras e parteiros, toco, abraço, aperto, descanso, peço acolhida com
gestos, aperto, gemidos, gritos, respirações, pausa, gritos, gemidos, toque, abraço,
aperto de mãos, gritos. Recebo e dôo, sou repelida, abraçada, tocada com vergo-
nha, agarrada com veemência. Culminância: a um canto, o parto finaliza com o grito
da expulsão; caio no instante seguinte no outro sujeito da próxima ocasião, a recém-
-nascida. A mesma mala-do-bebê está agora ao centro. O público se desvenda. Lan-
ternas estão à espe- ra. Alguns vão até
mim, outros se petrificam nas ca-
deiras, miram de longe. Os objetos
não-acolhedores ficam incômodos
nas mãos, sem uso. De novo, a
hesitação do to- que. De novo, o
constrangimen- to perante um
recém-nascido que é uma mulher
nua: tentativas tí- midas, incômodo
com o áudio vindo do celular, agres-
sivo. O tempo, es- garçado propo-
sitadamente, obri- ga as pessoas
a “fazerem algo”. Desenham em
partes “inocentes” do meu corpo,
como pés e mãos. Tocam o maracá. Cantam baixinho. Tocam minhas
mãos. Eu agarro. A sacerdotisa-enfermeira vem e me veste com roupas de mulher
adulta. Vai embora. Levanto. Olho cada um nos olhos, mas desta vez não falo nada.
Falo ao olhar corpo. Saio. Fim.
Sessões em Florianópolis e em São Luis do Maranhão5; experiências diversas, conver-
sas mais diversas ainda.

Ouvir um parto, ser tocada por uma mulher em parto, ainda que em perfor-
mance, causa comoção. É uma experiência fortemente afetiva, e aqui a relação entre
a performer e público passa a ser o centro da performance. Cada pessoa venda-

5
Ver Apêndice III.
115
da não sabe o que acontece às outras,
mas como to- das/todos são tocadas/
tocados, imagi- na que algo semelhante
aconteça com os outros participantes.
Cada uma/um imagina um parto, os
movimentos, o que está se passan-
do dentro do corpo-em-parto, e de
acordo tam- bém com suas imagens
e construções culturais e/ou experien-
ciais sobre parto, constrói o que sinto: sofrimento, dor, prazer, desamparo, força. O
próprio trabalho de parto que performo, desde o início em que estou perambulando
pela sala, nua e molhada, em movimentos-de-parto, causa em mim calores, cala-
frios, vontade de chorar, medo, excitação. A água que manipulo dentro do balde
de alumínio, e com a qual me molho e me lavo, coloca meu corpo em um lugar de
exposição e vulnerabilidade que me traz para o medo e ao mesmo tempo vontade
de ser observada. Os sons que emito desconstroem minha identidade e por segun-
dos me dissolvem e alteram meu estado de consciência. Cada reação e toque de
cada pessoa que toco me enternece me acolhe ou me agride, minha vulnerabilidade
aumenta. Percebo o não-dito do impacto emocional das/dos participantes também
por outros caminhos: as vendas molhadas pelos choros de algumas/alguns. Olhar
para o espaço no pós-parto e não achar a mulher que os tocou, mas sim um bebê em
desamparo, jogado, com um corpo de mulher, causa outras diversas reações: frusta-
ção, constrangimento, paralisia, pena, desejo de acolher, horror pelos objetos, risos,
indignação. A indiferença da sacerdotisa/enfermeira, que na construção cultural seria
a pessoa “certa” a cumprir esse papel
de cuidadora, causa indignação,
espanto, choque, raiva, risos, estranha-
mento, desejo de agredir. Eu, deitada,
molhada, trêmu- la, balbuciante e sem
que ninguém, ou quase ninguém,
toque em mim, sinto desamparo, ca-
rência, surpresa, curiosidade, desejo
de gritar, frio, abandono, desejo
de vingança. Tudo está sendo constru-
ído e desconstruí- do simultaneamente

116
e coletivamente. Os afetos são erigidos e atravessados, os animais simbólicos estão
ali rondando cada sujeito da ocasião, cada superject, somos sujeitos e objetos si-
multaneamente: somos corpos em transformação, em individuações e transduções
ininterruptas.

A experiência total de Primagesta envolve narrativas múltiplas em cada fabu-


lação do parto que se desenha na mente de cada participante, envolve a presença
invisível do sagrado para mim, envolve os animais simbólicos que me atravessam, e
que no toque compartilho com cada participante, envolve a esfoliação dos objetos
cortantes e do áudio agressivo que sai do celular, e que machuca o ambiente da re-
cém-nascida, envolve todos os sentires que transbordam da experiência, envolvem
as posteriores falas que questionam as atitudes tomadas, ou as omissões cometidas.
As perguntas atravessam as falas mais do que as afirmações: “Como se acolhe um
recém-nascido? Como se toca um corpo-em-parto? Porque não ajudei? Porque ouvir
um corpo-em-parto perturba tanto? Porque choramos? O que fazer com os objetos,
como usá-los em um corpo desamparado e vulnerável? Porque me sinto tão mal?
Porque ouço gritos, gemidos e respirações ofegantes e associo a sofrimento?”

117
Caminhos de Primagesta

Debate pós-apresentação no Laborarte - jan/19


Foto: Fernando Nascimento

Outubro/2017
• Primeiro esboço apresentado na disciplina de pós-graduação “Fabulações da Pai-
sagem”, ministrada pela profa. dra. Bianca Scliar;
• Duas apresentações/sessões na abertura da Mostra Sem Censura, do coletivo de
artes visuais NaCasa, em Florianópolis.

Novembro/2018*
• Três apresentações/sessões da segunda versão no CEART-UDESC, por ocasião da
qualificação de Mestrado.

Janeiro/2019
• Uma apresentação/sessão da segunda versão no espaço Laborarte, em São Luís,
Maranhão.

Dezembro/2019
• Apresentação da segunda versão na Mostra Poéticas do Parto no Armazém Cul-
tural - Coletivo Elza, em Florianópolis.

* Link para acesso ao vídeo de Primagesta (apresentação UDESC-CEART, nov/2018)


https://www.youtube.com/watch?v=jY3D-fMQxNg&t=1029s
Obs: Primagesta é uma performance feita em uma sala escura, portanto, o vídeo capta fundamentalmente o áudio. Apenas
alguns vislumbres vindos da luz das lanternas do público podem ser vistos. 118
Ficha técnica

Criação e atuação: Daniela Carmona


Direção: Mariana Rotili
Atores/atrizes convidadxs: Vinicius Vianna (abertura da Mostra Sem Censura); Rafaela
Herran (apresentação CEART-UDESC); Dayana Roberta (apresentação Laborarte)
Vídeo apresentação CEART-UDESC: Jerusa Mary

119
Ensaio no Laborarte - Jan/19
Performer Daniela Carmona e atriz Dayana Roberta
Foto: Fernando Nascimento

Debate pós-apresentação no Laborarte - Jan/19


120
Performer Daniela Carmona, atriz Dayana Roberta e público
Foto: Jura Mendes
TRIGEMELAR

Apresentação SPA-USP 2018 - Set/18 121


Performer Daniela Carmona
Foto: Spyder
Ensaio para Colóquio Fabulações da Paisagem - Nov/17
122
Performer Daniela Carmona
Fotos: Paula Gotelip
Três partos, dentro de um mesmo parto: parto abortado, parto-quase, parto
interditado, meu parto. O parto de minha mãe. O parto da/do obstetra. Começa com
uma provocação que se faz em sala de aula, mas extrapola as bordas da academia e
da obrigatoriedade. Tenho a necessidade premente de começar por mim, por meu
início, por saber deste início distópico e violento. Vêm a mim as incontáveis vezes em
que pude acessar as experiências dos partos já relatados e dos partos que acompa-
nhei como doula, diretamente conectados aos conceitos de inflexão – aquilo que é
iminente à ocasião real, mas ainda não aconteceu - e de transitoriedade do sujeito
e reconhecimento deste como superject, o sujeito do acontecimento (WHITEHEAD,
1978). Whitehead, ao alterar ontologicamente a compreensão dos elementos con-
formadores de um acontecimento, sugere um desvio da noção de sujeito, já que, em
sua estruturação de descrição da compreensão da experiência, o acontecimento e
suas relações derivam a composição tanto dos sujeitos quanto dos “objetos”, e não
o oposto, como quis a tendência fenomenológica, entre outros que surgem para
ancorar o experimento desta performance. Este ancoramento se faz sobre solo sub-
terrâneo arenoso e movediço, que se dissolve e propõe novas direções para que eu
prossiga na criação em eterno devir.

Eu o nomeio Trigemelar. Pois é um parto a três, simultâneos. Assim componho


todos os partos. Nunca é parido apenas um bebê, ou uma nova pessoa. A mulher
que gestou se pare, o bebê se pare, se há o pai, este se pare, a doula, obstetra, equi-
pe, família ao redor: o parto é um evento amplo, transbordante da aparente duração
de sua passagem. Neste caso, as três partes se fazem três partos, que são o mesmo,
uno e múltiplo. E eu, como intérprete una e múltipla, assumo todas as figuras huma-
nas deste experimento: o feto, a mãe e a/o obstetra.

Aquilo que chamo “meu parto” é a história de como nasci, ainda em aberto,
lacunas que não consigo e não conseguirei preencher, e assim assumo esse episódio
do meu início de vida como um filme com diversos black-outs. Começo do meio: o
parto já está imanente à ocasião-recorte do experimento. Há um eu-feto em inflexão
para sua saída de um lugar latente, pendurada em posição cefálica6, passivamente
pendente sobre uma piscina de parto7, na qual irá se materializar em um próximo
6
Posição cefálica é a posição em que o feto se coloca, ao se aproximar da hora do parto, com a cabeça
encaixada próxima ao colo do útero, portanto é a primeira parte do corpo a sair.
7
Piscina de parto geralmente é uma piscina inflável que é muito utilizada em partos domiciliares, para
proporcionar conforto e alívio das dores das contrações e permitir também que o bebê nasça na água
123
Apresentação CEART-UDESC - Nov/18
Performer Daniela Carmona
Fotos: Mariana Rotili

124
superject. Como paisagem sonora que a afeta, entra em off a narrativa do parto sob
a perspectiva da/do obstetra, narrativa fabulada por inteiro a partir de dados forneci-
dos pela narrativa “real” de minha mãe, ou o que sobrou de memória da experiência
real. A narrativa feita pela/pelo obstetra tem como pano de fundo o som de uma má-
quina hospitalar, que apita monótona, ritmada, e o som de uma respiração ofegante.
Um som que soa cotidiano para uma instituição de saúde; um reforço normalizado
da situação médica de recepção e entendimento do parto como algo que precisa
ser “corrigido”, domado, estabilizado e formatado em protocolos uniformizantes;
um parto disfuncional narrado de maneira displicente e crua, afetando o eu-feto
que não pode agir sobre a ocorrência-desfecho. Eu-feto progressivamente vou me
perturbando com a narrativa e me impulsiono a me debater dentro do útero-tecido
apertado, sufocada pelas palavras. Decido nascer sozinha, saindo da posição passiva
em suspensão para despencar do útero e me parir em eu-mãe dentro da piscina de
parto. A água fria me recebe e acalma.

Ensaio para Colóquio Fabulações da Paisagem


Nov/17
Detalhe objeto de cena
Foto: Paula Gotelip

Água: substância simbólica de geração de vida e acolhimento. Nela já estão


mergulhados, em inflexão, os elementos que constituirão o terceiro parto. Já são
visíveis, embora disformes, (pois se misturam, devido à cor branca, ao fundo desta
piscina), a camisa e a calça azuis de uniforme hospitalar, a touca cirúrgica, as luvas

se assim a mãe o desejar.


125
Apresentação CEART-UDESC - Nov/18
Performer Daniela Carmona
Fotos: Mariana Rotili

126
de borracha, e os bebês-fotos em suas bolsas amnióticas8, feitas de luvas cirúrgicas
inchadas de vinho-sangue.

É neste cenário quase vivo, neste “oceano primordial”, que eu-mãe vivencio
meu parto dentro da água, onde meus gritos nas contrações só se dão submersos,
quase inaudíveis, onde me escondo dos olhares da audiência ao me contorcer e me
proteger dos olhares externos. Eu sou meus movimentos corporais, minha voz, minha
dor, perco a identidade, o gênero, a idade, tudo que me identifica externamente, e
me deixo levar pelo corpo em convulsão. Sou um corpo-em-parto; estou no Cosmos-
-parto. Este lugar quase indizível não é um lugar de inconsciência ou entorpecimen-
to, mas aproxima-se da noção de consciência do corpo, expressada por José Gil e
comentada por por Erin Manning:
A consciência do corpo como Gil a define depende de “uma osmose completa entre a
consciência e corpo”. Essa osmose não pode ser mantida infinitamente: aparece em sur-
tos de intensidade, de dor, por exemplo [...]. Em tais casos, Gil sugere, não há mais um
senso de um corpo-objeto ou uma visão externa sobre o corpo (uma “imagem do cor-
po”). Essa sensação de consciência no movimento provocada pela osmose da consciência
e do corpo leva, em vez disso, a uma amplificação do campo da experiência relacional
através do qual um corpo em co-composição emerge.9 (MANNING, 2014, pp.11)


Erin Manning, citando o teórico português José Gil, discorre em seu artigo
sobre algumas proposições sobre o movimento e o corpo, e sobre uma “filosofia do
corpo” que o postula não como uma entidade fixa, mas como “[...] bordas, contor-
nos, forças e intensidades: um corpo é seu movimento”, ela escreve. Eu me aproprio
destas proposições para olhar para estes corpos-em-parto que são meu corpo e tudo
o que o atravessa, e não se fixa, mas se molda a partir das relações: com as narrativas
em off, com os elementos cênicos, com o público, com seus próprios sons e movi-
mentos.

8
Bolsa amniótica é a bolsa dentro do útero, repleta de um líquido denominado âmnio, que envolve o
feto durante toda a gestação. Ela é responsável por isolar o feto do contato externo, tanto do ambien-
te quando do corpo da mãe, mantendo um meio estéril protetor ao feto.
9
No original: “Body-consciousness as Gil defines it depends on ‘a complete osmosis between cons-
ciousness and body.’ Such an osmosis cannot be held infinitely: it appears in spurts of intensity, in pain,
for instance [...]. In such instances, Gil suggests, there is no longer a sense of a body-object or an exter-
nal view on the body (a ‘body-image’). This felt awareness in the moving provoked by the osmosis of
consciousness and body leads instead to an amplification of the relational field of experience through
which a co-composing bodying emerges.” Tradução nossa.
127
Apresentação CEART-UDESC - Nov/18
Performer Daniela Carmona
Fotos: Mariana Rotili

128
Apresentação Colóquio Fabulações
da Paisagem - Dez/17
Performer Daniela Carmona
Foto: Jerusa Mary

A água me possibilita experimentar um estado de ausência do entorno e len-


tidão e suspensão parcial da gravidade. No início, tomo todo o tempo que quero e
preciso para me apropriar do elemento, do isolamento oceânico. A piscina é meu
oceano, minha mãe, colo iemanjânico divino. Sinto-me autorizada a elaborar em mi-
nha experiência como performer este Cosmos-parto. E decido, ao tomar distância da
experiência real de minha mãe, que não teve a oportunidade de vivenciar seu Cos-
mos-parto, roubado pelo sistema de “saúde”, pela negligência a que foi submetida.
A narrativa em off que afeta o eu-mãe do acontecimento é a do bebê, criando um
lugar de expressão para esta experiência em que pouco pode agir para determinar o
desfecho do parto. Eu também tive abortada a experiência de nascer a partir do meu
esforço e do esforço da minha mãe. E é essa experiência de abortamento do nascer
do parto vaginal que coloco na narrativa do bebê: o choro descontrolado e desam-
parado. Este choro aos poucos se soma a outro choro de outro bebê, depois a outro,
e mais outro, até que se torna quase insuportável, a paisagem sonora agressiva e
beirando o desespero. Coletivizo a revolta pelo abandono, pela ausência de contato,
pela frieza branca e asséptica de uma sala apartada de afeto, lugar onde permaneci,
onde permanecemos todas/todos que nascemos frutos de violências, distantes de
nossas mães, por muitas horas, sem contato pele-a-pele10, sem podermos ser ama-
mentadas/amamentados. Eu-mãe, conforme vou ouvindo esses bebês em choros de
dor, transformo a experiência inicial de prazer e introspecção em tensão e acuamen-
to. As contrações são violentas e tensionam o corpo todo, em suas contorções. As
roupas e assessórios da/do obstetra grudam-se na minha pele e tento me livrar. Uma
máscara cirúrgica é levada à minha boca, e o grito final, que seria culminante da irrup-
ção do bebê, acontece velado, silencioso, veemente, junto ao último choro do último
10
Contato pele-a-pele é o primeiro contato do bebê recém-nascido com o corpo de sua mãe, uma
ação importante para garantir a vinculação afetiva de ambos, estimular a amamentação e promover a
troca de microrganismos da mãe para o bebê.
129
Apresentação CEART-UDESC - Nov/18
130
Performer Daniela Carmona
Fotos: Mariana Rotili
bebê. E assim eu-mãe dou à luz o/a obstetra.

Este é o parto da/do obstetra, o próximo superject. Eu-obstetra levanto-me


abruptamente e permaneço estática em pé. Não há nenhuma emoção aparente. Len-
tamente, mecanicamente, metodicamente, medicamente, visto cada peça de roupa,
cada acessório. Observo o público que me observa. Observo cada objeto que pego
e visto. Observo a água da piscina e os fetos-fotos (fotos de rostos de bebês recém-
-nascidos, em preto e branco), dentro dos sacos amnióticos que são luvas cirúrgicas.
Observo cientificamente. Passivamente, eu-obstetra sou afetada pela narrativa em
off do parto de minha mãe, por ela mesma, a narrativa “real”. Real? Não completa-
mente. É miragem também, mito também, fabulação também. Mnemósine brinca
com os fatos e os embaralha. Ouvi a narrativa de meu parto contada por minha mãe
diversas vezes, a cada vez ela muda, desde o tom até detalhes e fatos. Mais de qua-
renta anos a separam deste acontecimento. E a consciência fugaz, que vem e vai ao
longo do tempo e em comparação com outras histórias que se somam e que ela ouve
e assimila, revela-se tanto na reflexão sobre o que foi esta experiência quanto na sua
reverberação na história dos não-partos-acontecimentos de meus irmãos, nascidos
de cesáreas eletivas11, sem o vivenciar do trabalho de parto. Como contraponto, há
de paisagem sonora, recebendo a narrativa, o som de um bebê amamentando. Mi-
nha mãe não me amamentou e oito horas após o nascer foi que nos conhecemos,
quando eu já não sabia mais como mamar, e ela já não sabia mais como fazer. Dou
este presente a ela e a mim, uma reverberação sonora potencial que tem o intuito de
apaziguar suas e minhas culpas.

Há uma ação culminante: eu-obstetra pego as bolsas amnióticas, uma a uma,


cuidadosamente. Observo todos os detalhes. Do bolso do uniforme, uma pinça cirúr-
gica emerge rápida e mergulha diretamente na pele das bolsas, rasgando-as, reali-
zando as cesáreas sem demora, os restos sendo descartados para fora da piscina. As
fotos se desfazem, tingidas de vinho-sangue, e seus restos colocam-se na borda da
piscina, berçário imprevisto, para contemplação.

Como finalizar? Questão nebulosa, mas que precisa ser materializada de algu-
ma forma: como sair desta paisagem, sabendo da iminência, da inflexão para outros

11
Cesárea eletiva é a cesária que é marcada previamente, sem esperar o bebê sinalizar que está pron-
to. A parturiente não entra em trabalho de parto.
131
percursos em outras paisagens, que conversam com esta
que este acontecimento propõe? Tomando como provo-
cação a citação de Deleuze e Guattari “É preciso...come-
çar?”, esta performance é, tanto quando o momento nar-
rado de cada parto, um recorte, um ápice de tomada de
forma (WHITEHEAD, 1978) de um campo muito mais am-
pliado. Ao atualizar uma experiência passada de manei-
ra poética e em auto-criação, reconheço em mim, como
estou neste momento, a reverberação desta experiência
em minha trajetória dupla: de servidora desta egrégora
das mães e de artista. Redimensionar meu próprio parto
é nascer de novo, e de novo, e de novo, enriquecida pe-
las experiências compartilhadas de outros partos que me
cercam. É fazer nascer de novo minha mãe, meu pai. É
olhar para o direito de parir e ser parida/parido que todo
ser humano, ser mamífero, tem. É colocar aquela/aquele
obstetra do passado em uma possibilidade de revisitar a
experiência e renascer, mesmo que hipoteticamente. E
assim o fim no meio que é o término deste acontecimen-
to pode ser um retorno cíclico: eu-obstetra me coloco
dependurada como o eu-feto de volta ao tecido sobre
a piscina. Agora como obstetra, mas assumidamente
eu de novo, em outro superject, propondo-me a passar
pela experiência com um salto de consciência maior. As
identidades transitórias dos sujeitos dos partos, a minha
contemplação destes se dissolvem ao revisitar e compor
através das memórias e narrativas que persistem e se so-
brepõem na composição performativa. Na cena, as nar-
rativas compõem uma singular justaposição de tempo,
onde as três personagens da encenação, do parto, in-
terpõe suas narrativas simultaneamente, atribuindo uma
nova camada de sentidos e afetos. Brian Massumi advo-
ga por uma concepção fluida entre sujeitos e objetos,
onde, através da obra de W. James explicita que
Apresentação Colóquio Fabulações
da Paisagem - Dez/17
Performer Daniela Carmona 132
Foto: Jerusa Mary
[...] o que o objeto definitivamente teria sido, e o que precisamente terá sido o papel
dos sujeitos, é claro apenas em retrospectiva após cada integração - até o momento eles
já estão em trânsito para outro “terminus”. Já está novamente em andamento. James
chegará tão longe quanto dizer que o que constitui um sujeito e um objeto varia. Um
elemento que foi um sujeito em um “terminus” pode ser retomado como um objeto
no próximo, ou funcionar como ambos ao mesmo tempo [...]. Isto é óbvio quando você
lembra que, como percebedor, você sempre é perceptível por outro, em cuja experiência
você figura como um objeto. Ou que um objeto pode ser retomado como uma memória,
passando do status objetivo para o subjetivo.12 (JAMES, apud MASSUMI, 2011, pg. 31)

O autor em seu livro Semblance and the Event discute as identidades transi-
tórias dos componentes dos acontecimentos a partir da perspectiva do empirismo
radical de William James - entre outras referências que na contemporaneidade são
expoentes da filosofia processual - dando ênfase na relação fluida entre sujeitos e
objetos e sua determinação através das relações que estabelecem entre si e entre
outros componentes a cada acontecimento. Tais aspectos são relevantes para meu
processo criativo na medida em que Massumi chama a atenção para os modos rígidos
através dos quais mantemos um olhar analítico aos objetos que estudamos. Como
pesquisadora, também sou sujeito e objeto de estudo de mim mesma no momento
em que me coloco em criação, experimentação e atuação; objeto de estudo da dire-
ção e do público; sujeito observante do público; e sucessivamente e transitoriamente
habitando “identidades” moventes.

Ofereço meu parto em narrativa cênica poética para coletivizar e irmanar mi-
nha experiência às narrativas de partos abortados, de violências, de possibilidades
de renascimento. Quem assiste impacta-se com a história e estranha a nudez. Inco-
moda-se com o respingar da água, que muitas vezes transborda da piscina em ondas
reverberantes das ondas das contrações. Hostiliza o eu-obstetra. Não se aproxima
muito. Sai no meio. A nudez agora vista, escancarada, do eu-feto e do eu-mãe tam-
bém me constrange e estimula. Por duas vezes, apresento Trigemelar ao ar livre, o
tecido atado a um galho alto de uma árvore robusta, a piscina aos pés desta árvore,
em locais de passagem de transeuntes. O parto escancarado ao ar livre, transforma-
do em evento público, ressalta minha fragilidade e acorda minhas vergonhas, escon-

12
No original: “[...] What the object will definitely have been, and what precisely will have been role
of the subjects, is clear only in retrospect after each integration—by which time they are already in
transit to another terminus. Already all over again in the making. James will go so far as to say that
what constitutes a subject and an object varies. An element that was a subject at one terminus may be
taken up as an object in the next, or function as both at the same time [...]. This is obvious when you
remember that as a perceiver you are always perceivable by another, in whose experience you figure
as an object. Or that an object may be retaken up as a memory, crossing from objective to subjective
status.” Tradução nossa.
133
didas parcialmente pela água e pelos objetos flutuantes. Sinto frio, medo de cair do
tecido ao nascer do eu-feto, dor nos músculos, a respiração fica ofegante pela água
fria, pelos gritos e pelos mergulhos, o esforço na precisão dos gestos do eu-obstetra,
indo contra o tremor provocado pela excitação anterior do eu-mãe e pelo frio. Sinto
prazer ao deitar na borda da piscina e olhar para a copa das árvores. Sinto vontade
de estender esse momento e não sair dali. Sinto pena dos bebês-fotos se dissolven-
do na borda da piscina. E me emociono com a narrativa de minha mãe. Esta emoção
é o toque compartilhado com quem assiste. Esta dor tornada pública é o gancho da
provocação. Minha história é infelizmente banal e corriqueira. Tristemente coletiva e
revoltantemente atual.

134
Caminhos de Trigemelar

Novembro/2017*
• Apresentação no colóquio Fabulações da Paisagem, organizado pela profa. dra.
Bianca Scliar, com a participação das/dos alunas/alunos da disciplina de mestrado
“Fabulações da Paisagem”, de integrantes do SenseLab e do núcleo de pesquisa
Laboratório de E.i. (Programa de Pós-graduação em Teatro CEART-UDESC), na
Casa 431.

Setembro/2018**
• Apresentação no evento SPA-USP (Seminário de Pesquisa em Artes da USP), onde
apresentei também o projeto de pesquisa de Mestrado.

Novembro/2018
• Apresentação no CEART-UDESC, como parte da mostra das performances para a
qualificação de mestrado.

Novembro/2019
• Apresentação na Mostra Poéticas do Parto no Armazém Cultural - Coletivo Elza,
em Florianópolis.

*link para vídeo da apresentação no Colóquio Fabulações da Paisagem


https://www.youtube.com/watch?v=ZHoBjgmbRNc
**link para vídeo da apresentação no SPA-USP 2018
https://www.youtube.com/watch?v=mqCgEUnQWkg

Apresentação Colóquio
Fabulações da Paisagem Dez/17
Performer Daniela Carmona
Foto: Jerusa Mary
135
Ficha técnica
Criação e atuação: Daniela Carmona
Direção (a partir de 2018): Mariana Rotili
Voz em off do obstetra: Jonas Golfeto
Voz em off da mãe: Maria Cristina R. C. Carmona
Vídeo apresentação colóquio Fabulações da Paisagem: Bianca Scliar
Vídeo apresentação SPA-USP: Spyder
Vídeo apresentação UDESC-CEART: Ângela Ferrari

136
MAMÍFERA REPTILIANA

Ensaio ato performativo Partolândia - Maio/18


Performer Daniela Carmona 137
Foto: Felipe Ferro
Mamífera Reptiliana não nasce rápido: parto lento, em etapas e camadas mais
profundas, buscando o cerne do parto, o miolo da experiência, experimentando o
que deva ser a Partolândia. Partolândia: esta é sua primeira fase, seu pródromo.
Nome parco, clichê, de pouco alcance, no momento da concepção não consigo sair
dele, pois é justamente esse “lugar” o da
minha investigação. Portanto, o pródro-
mo da experiência é um exercício, um ato
performativo, pesquisado, concebido e
concretizado para a disciplina de mestra-
do Corpo, Rito e Performance, ministrada
pelo prof. dr. Milton de Andrade.

Parto do conceito, desenvolvido por


Michel Odent, da necessidade de “mami-
ferizar” o parto; melhor dizendo, propor
o inverso de um ritual formal para que o
parto possa ser possível da maneira mais
natural e eficiente, próximo ao que acon-
tece com as fêmeas mamíferas de outras
espécies:
[...] para podermos redescobrir e atender as ne-
cessidades da mulher em trabalho de parto e do
bebê recém-nascido é seguir uma regra simples:
aprender a eliminar, no período perinatal, tudo que
é especificamente humano. O que isso significa? Que devemos eliminar todas as crenças
e rituais que interferem com o processo de nascimento [...] Nós constantemente repro-
duzimos tais rituais. [...] Nós sempre encontramos desculpas para separar a mãe do bebê
recém-nascido.
[...] É a reprodução do mesmo ritual. Estamos, sempre, introduzindo rituais e crenças
com o efeito de separar a mãe do bebê, e temos que redescobrir na ciência que o bebê
recém-nascido precisa, em primeiro lugar, da sua mãe, e a mãe precisa do bebê recém-
-nascido. Vai levar tempo redescobrir esta verdade.
Por isso, devemos eliminar o que é especificamente humano, as crenças e os rituais do
parto. Eliminar o que é especificamente humano significa que durante o processo do
nascimento o neocórtex deve parar de funcionar. (ODENT, 2016)

Ao mesmo tempo, contraditoriamente e em rebeldia a Odent, para poder me


reconciliar mais à frente com ele parto de outro ponto, as mitologias arcaicas do fe-
minino dos tempos do Paleolítico e Neolítico. Em sociedades arcaicas de parceria13,

13
Aqui utilizo o conceito de sociedades de parceria concebido por Riane Eisler em O Cálice e a Espa-
da – nosso passado, nosso futuro, para designar as sociedades arcaicas matrifocais, onde a igualdade
138
Apresentação Partolândia - Jun/18
139
Performer Daniela Carmona
Fotos: Karin Veras
onde as passagens fundamentais da vida eram ritualizadas e os mitos atualizados e
revividos constantemente, especula-se que o momento do parto era vivenciado da
maneira mais natural possível, alicerçado pela confiança nas divindades protetoras e
pela observação da natureza. Ritualizar o parto no momento em que este acontece
não tinha sentido algum, visto ser esse momento algo íntimo, isolado das vistas da
comunidade, efetuado ou em locais afastados (beira de rio, no meio da mata) ou
dentro da casa. A fé no processo estava estruturada nos ritos e mitos. Mas não o
processo em si. Ainda hoje, em algumas sociedades tribais, pejorativamente deno-
minadas “primitivas”, o processo de parto é algo que diz respeito somente à mulher
e seu bebê14.

Nas sociedades contempo-


râneas ocidentais urbanas, enxergo
a tentativa de “retornar” a modos
mais próximos da natureza no pro-
cesso de parir gerando muitas vezes
uma romantização do momento do
trabalho de parto; e uma consequen-
te tentativa de “glamourizar”, ritua-
lizar o ambiente e os paramentos,
baseada em referências múltiplas e
confusas de diversas culturas (man-
tras, incensos, velas, tecidos, flores, pétalas de rosas, guirlandas de flores na ges-
entre gêneros e a proeminente posição das mulheres em tais sociedades configurava uma sociedade
de não-dominação, de contribuição mútua para o bem estar comunal.
14
Em sua obra Pode a Humanidade Sobreviver à Medicina?, Odent cita uma passagem descrita pelo
linguista Daniel Everett, em seu livro Don’t Sleep, There Are Snakes, de 2008, sobre os índios Pirahãs,
que vivem na Amazônia brasileira, com os quais conviveu. Estes conservam características de organi-
zação ainda pré-agrícolas, do período Paleolítico. As mulheres parem seus filhos sozinhas, em locais
variados: “Na estação seca, quanto há praias às margens do [rio] Maici, é muito comum que a mulher
em trabalho de parto entre no rio sozinha, ou às vezes acompanhada de uma outra mulher da família,
até ficar com a água na altura da cintura, fique de cócoras e tenha seu filho. O bebê nasce diretamente
no rio. Na opinião dos Pirahãs, essa é a forma mais limpa e mais saudável para o bebê e para a mãe.”
(EVERETT, apud ODENT, 2016, pg. 46-47)
Em outra passagem, Odent cita também dois antropólogos que viveram na década de setenta do
século XX junto aos !Kung San, caçadores-coletores no deserto do Kalahari, na Namíbia, Botswana e
Angola, no continente africano. Os !Kung também ainda hoje vivem de maneira muito próxima a seus
ancestrais do período Paleolítico. A antropóloga ficou íntima de Nisa, uma das mulheres da tribo, mãe
de quatro filhos. Nisa diz: “Sempre me recusei a parir com alguém por perto. Sempre quis ficar sozinha.
Porque, apesar de as pessoas quererem nos ajudar, segurando e tocando na nossa barriga, elas fazem
doer ainda mais. Eu não queria sentir mais dor. Por isso sempre fiquei sozinha.” (ODENT, 2016, pg. 48)

140
Vivência
Mamífera
Reptiliana
Mar/19
Performer
Daniela
Carmona
Fotos:
Mariana Rotili

141
tante...). Talvez uma fuga inconsciente da intensidade da experiência do parto, do
incontrolável? De maneira inversa (no sentido do aconchego e da acolhida), é algo
semelhante à quase-ritualização dos protocolos e procedimentos feitos com as ges-
tantes na maioria dos hospitais, sempre iguais, sequenciais, dispositivos de controle
do processo do parto. Por caminhos diferentes (pelo afeto ou pela institucionaliza-
ção), a tentativa em ambos é conseguir algum tipo de controle sobre o processo.
Mas para que este seja realmente uma experiência total, o que precisa acontecer é o
não-controle, a entrega ao imponderável, à força do corpo autônomo e instintivo, o
corpo processual. O neocórtex precisa estar “desligado”.

Um terceiro ponto de partida me instiga para a investigação dos movimentos


corporais do parto: os partos de mamíferas não-humanas. O parto-bicho literal. O
que nos amalgama. Ou o que nos distancia? Do discurso das narrativas de parto
ofertados a mim, o bicho está lá e o reconhecimento deste à espreita se faz presente.
O bicho pertence ao Cosmos-parto (à partolândia...). Virar bicho é deste lugar. Então,
ao bicho: vou em busca de registros reais, de imagens. Um trabalho de investigação
como garimpo em local escasso: há poucas, pouquíssimas, imagens em vídeo de
partos de animais em estado selvagem. Pois o parto dos animais domésticos já está
institucionalizado, com ajuda, acompanhamento, intervenções, inclusive cesáreas.
Nos animais em seu habitat original, a dificuldade se faz pela própria natureza do
processo: as fêmeas buscam se esconder, a maioria pare durante a noite, em com-
pleta escuridão; algumas fêmeas inclusive retêm o feto e tentam pausar o processo
se percebem alguma ameaça por perto, ou percebem-se observadas. Para quem faz
essas imagens, há que se ficar muito de longe, à espreita. Ou, se estas fêmeas estão
em cativeiro, monitora-las com câmeras, sem a presença física humana.

Quero a multiplicidade de possibilidades e alguma unicidade que me faça


reconhecer em todas elas o Cosmos-parto. Sim: movimentos do quadril sinuosos,
convulsivos; olhos que semicerram; a respiração ofegante; os gemidos (ou urros ou
assobios ou gritos); a cabeça que ricocheteia de um lado para outro; e a boca que
se abre no momento da expulsão do feto, às vezes com a língua projetada para fora.
Depois de tudo, um silêncio imenso aconchegante para receber o filhote. Toda a
intensidade se desmancha logo após o ápice e sobra o descanso. Como no coito.
Orgasmo-parto.

142
Este último caminho é o que me estrutura e estimula meus primeiros experi-
mentos em sala de ensaio. Escolho que animais estudar: quadrúpedes como a vaca
e a hipopótamo-fêmea (mobilidade reduzida dos membros, deitam-se de lado para
parir); a macaca, a ursa-panda (pela mobilidade independente dos membros e si-
milaridade de movimentos com as fêmeas humanas); e animais sem pernas, muito
distantes do humano, como a leoa-marinha (mas com muita maleabilidade na co-
luna e nos quadris, como as fêmeas humanas). Além da corporalidade, estudo seus
sons também. Experimento ressonâncias, emissões, introjeções. Experimento textos,
sons, canções, experimento performar os animais com as narrativas de fundo e estí-
mulo. Experimento o Cosmos-parto a partir do cotidianamente visto, revisto, revira-
do, em doulagens muitas. Estudo, presencio, incentivo, mergulho, observo, choro,
impacto-me. Entretanto não vivencio de dentro do oceano-âmnio, não sinto uma
pessoa passando pela minha buceta, não tremo de dor, de medo, de prazer, não
sei do mistério que é ser atravessada por alguém. Pálida ideia, desejo, temor de ser
aquela mulher redonda, roliça, prenhe, imensa, de uma beleza anti-cosmetológica,
de uma majestade cósmica, de uma intensidade indecifrável, atravessada por forças
inapreensíveis. Os bichos me emprestam suas forças através de seus movimentos.
Vou por esta estrada para me aproximar do acontecimento do parto.

Coloco em preâmbulo ao ato performativo Partolândia o oposto à animalida-


de, tudo aquilo que vem da concepção cultural do humano: parir ritualisticamente,
decupar cada fase; saber de cada hormônio, medir a dilatação, controlar a respira-
ção; criar uma trilha sonora, uma play-list; acender um incenso; invocar as figuras
sagradas do feminino que
invocam e pro- tegem o parto,
Iemanjá, De- méter, Senhora
das Feras sob a forma de
Sekhmet, Eu- rínome, entre
tantas e tantas; p a r a m e n t a r-
-me; meditar; traçar um rito
como uma mis- sa para receber

143
aquele, aquela, que se forma dentro de meu oceano particular; perfumar-me. Ah, o
controle... Assim começo.

Para prosseguir e chegar ao bicho resgato trechos das narrativas das mulheres
e as trago para a cena, em pedaços sobrepostos. Há nelas algo que trava a voz. Algo
que não se ritualiza. O escape do ritual se dá através de um vórtice que vem pela
dor imensa e intensa. A dor necessária. A dor que entorpece e joga aquelas que se
dispõem a topar por inteiro o desafio de mergulhar sem equipamento de segurança
em uma realidade paralela, invisível, das entranhas de cada uma, no Cosmos-parto.
O lugar de suspensão. O tempo não conta, o entorno é irrelevante, o escuro engole
tudo. Inundadas de ocitocina, endorfinas, dopaminas, entorpecidas e drogadas de
si próprias, matam o neocórtex diversas vezes. E libertam o bicho. A fera. O urro. O
gozo animal.

Meu caminho de experimentação e criação se pavimenta então no que se


des-ritualiza para poder romper. Não se rebenta a semente no ritual. Este precisa
ser sacrificado em prol do instinto bruto. É preciso brutalizar o parto e respeitar a
brutalidade do bicho-humano que se manifesta. Todas as deusas se retiram para o
abismo, viram nuvens, se liquefazem. Permitem a profanação do ritual, como nos
ritos arcaicos de fertilidade eleusianos: que os intercursos sexuais descontrolados
e livres rompam com o sagrado e ocorram sobre a relva, a terra, a pedra, sob suas
bênçãos. Intensidades do corpo e convulsões do ventre desestruturam o esqueleto,
os músculo e os fluídos. O ventre, deliberadamente explicitado, esfera transparente
cheia de vinho-sangue, passeia ao redor do corpo erupcionado, segue a animaliza-
ção gradativa do corpo-em-parto. A boca que se abre em ressonância de caverna e
dá passagem aos gritos, urros, rugidos de dor e prazer, abrindo fendas, túneis, por-
tais, veias, tendões, ossos, ligamentos. Tudo se afasta, febril, tudo se aperta, cruel.

As velas e os panos, os incensos e os ícones, as flores e coroas são despreza-


dos, pisoteados, atropelados. Panos caem e apenas escurecem a visão, mas o corpo
se expõe nu, a vagina se mostra escancarada, vira do avesso a alma, vira do avesso o
passado, vira do avesso a família, vira do avesso o universo. Do útero ectópico uma
tampa salta e liberta o líquido que marca o caminho tortuoso do parto, vaza, escoa a
vida, mancha a pele e marca o começo do fim. Despida do ritual, espremo a voz e o
útero-esfera nos últimos esforços de expulsão, expulsiva. Útero murcho de exaustão.

144
O último grito é canto, vagina e garganta se unem e ecoam, o som eleva-se da terra
e sobe, o último líquido verte e vaza para a terra, a música que atravessa o ar cessa.

Silêncio. Lentidão. O cheiro da cria. O reconhecimento. A língua doce acari-


cia a cria inerte e úmida. As patas e os dedos tocam as rugas. O amor brota de uma
vez. O toque se transmuta em aconchego e o leite finalmente afirma que a nova vida
aterrissou. O ritual se reconstitui. A fêmea humana se refaz e o bicho se acalma.

Desdobramentos e evoluções

Segunda fase: a renomeação, o


estudo das Senhoras das Feras e seus
animais totêmicos. Chega até mim,
a partir de um jogo com o Oráculo
das Deusas, a neces- sidade de apro-
ximar as divindades do processo de
animalização. Sinto vontade de pre-
sentificar, para de- pois, sob sua pró-
pria permissão, trair esta presença na
gradativa animaliza- ção do processo.
A Senhora das Feras é uma espécie de
chave. Designa não uma deusa espe-
cífica, mas inúmeras deusas a partir
do período Neolíti- co, com as quais
determinados animais, simbolizando determinados atributos, comungam, acompa-
nhando ou transformando-as parcialmente em suas formas e forças.

Nesta segunda etapa, inicio uma parceria com uma direção cênica, que pri-
meiramente chega com um colega, homem, que prefiro preservar a identidade. A
parceria se revela limitada por perceber que eu anseio por uma equipe de úteros
e portanto os ruídos na comunicação e nos rumos do processo tolhem o desen-
volvimento na direção e verticalidade que pretendo. Na sequência, aproxima-se a
parceira que permanece, Mariana Rotili, historiadora, performer, diretora, fotógra-
fa e pesquisadora. Com ela, o estudo dos animais dá um salto e vamos realmente
para experimentações corporais e vocais que extrapolam as mamíferas: a serpen-

145
te, a pomba, o peixe, a leoa. A leoa. A Leoa
prenhe. A Deusa-Leoa Sekhmet. O princípio
do instinto selvagem, a brutalidade, a violên-
cia, a visceralidade. Sem abrir mão das fêmeas
mamíferas do início da pesquisa, presentes no
momento em que o Cosmos-parto se instala,
escolhemos a deusa que preside o ritual que
irá ser destruído, e que por excelência se per-
mite quebrar todas as amarras, por ser a leoa o
animal que a sustenta e a configura. Ou quem
sabe ela tenha se escolhido.

Não a nomeamos, mas sabemos quem


é. E rebatizamos a agora performance Mamí-
fera Reptiliana. Reptiliana que vem do cérebro
primitivo, límbico, instintivo, que rouba o pro-
tagonismo do neocórtex. O detonador científi-
co do Cosmos-parto. Colocamos a Deusa-Leoa
em caminhada convocatória para seu ritual de
des-ritualização. Há a personificação momen-
tânea em meu corpo desta figura não-huma-
na ou semi-humana, feita de cordas, doura-
dos, máscara, pintura. Por baixo, a mulher. A
caminhada chama o público para alcançar o
templo-palco. Caminhada solene onde lam-
pejos da leoa-bicho escapam nas mãos-patas,
nos dentes à mostra, em agachamentos que
preparam a postura quadrúpede. Chegada ao
templo, o público a ultrapassa e se acomoda.
Eu-leoa fico de quatro observando meu alvo:
o útero-esfera, pendurado no altar ao fundo,
repleto de cerveja-sangue a ser vertido no
processo. Vasos e vasilhas de barro cheios de
sementes e frutas vermelhas, velas e tochas la-

Ensaio Mamífera Reptiliana - Abr/19


Performer Daniela Carmona 146
Foto: Spyder
Ensaio Mamífera Reptiliana - Abr/19
Performer Daniela Carmona
Fotos: Spyder

147
deiam o caminho em triângulo, afunilando até o altar. Eu-leoa me encaminho lenta
até o útero, contendo o impulso e correr e abraça-lo. Caminhada de quatro que vai
se humanizando até chegar ereta em frente a meu objeto de devoção. Despara-
mento a pele da Deusa-Leoa lentamente e quase nua, com apenas as faixas que vão
portar o útero. Em uma primeira versão inicio a encenação com um trecho escrito por
Lygia Clark em carta a Mario Pedrosa:
“Quantos seres sou eu para buscar sempre do outro ser que me habita as realidades das
contradições? Quantas alegrias e dores meu corpo se abrindo como uma gigantesca
couve-flor ofereceu ao outro ser que está secreto dentro de meu eu? Dentro de minha
barriga mora um pássaro, dentro do meu peito, um leão. Este passeia pra lá e pra cá
incessantemente. A ave grasna, esperneia e é sacrificada. O ovo continua a envolvê-la,
como mortalha, mas já é o começo do outro pássaro que nasce imediatamente após
a morte. Nem chega a haver intervalo. É o festim da vida e da morte entrelaçadas.”15
(CLARK, apud ROLNIK, 2015)

A des-ritualização começa.

Tomando como estudo complementar o conceito de sujeito movente de Whi-


tehead, e de individuação de Simondon, a Deusa Leoa individua-se em gestante em
parto, que depois individua-se progressivamente mais rápido nos animais em parto,
voltando à fêmea humana por momentos apenas. A partir da desparamentação da
Deusa, eu-gestante tomo o útero do altar e o acomodo sobre meu útero. Espero o
momento. O momento que passa dos pródromos ao início efetivo do trabalho de
parto. Este vem e me fragiliza, resisto aos animais à espreita. Mas a força destes ven-
ce meu medo, ou o leva a reboco, e toma conta do acontecimento. E deste momento
em diante o ato performativo, que antes denominava-se Partolândia, se presentifica
novamente. A des-ritualização e a presença dos animais exige um empenho corporal
e energético que me leva ao limite, as pausas ficam cada vez menores, e destruo os
elementos de cena, emborcando os vasos, passando por cima das frutas, liberando

14
Este texto está como prefácio do artigo de Suely Rolnik. Fonte original: Lygia Clark, carta a Mário
Pedrosa, 1967; in Sonia Lins, Artes, 1996.

Ensaio Mamífera Reptiliana - Abr/19


Performer Daniela Carmona 148
Foto: Spyder
Ensaio Mamífera Reptiliana -
Abr/19
149
Performer Daniela Carmona
Foto: Spyder
a cerveja-sangue do útero-esfera. O público que
me observa não é capaz de me inibir e nisto traio
conscientemente as mamíferas não humanas. O
desnudamento é quase total e retiro desta vez to-
das as palavras, vindas de mim ou de um áudio em
off, as narrativas das mulheres transformam-se em
ação. Só sons e a trilha sonora. Ao fim, o silêncio e
a delicadeza da mamífera lambendo a cria e a le-
vando ao seio para amamentar. A mulher-mãe está
esvaziada de tudo, nua, serena, plena de sua cria.

Antes mesmo de iniciar a performance, em


preparação e montagem, pressinto as presenças
estranhas que irão me atravessar. Sinto que vou
adoecer, calor e frio se alternam e preciso de dose
extra de concentração, ou dose extra de neocór-
tex, para conseguir dar conta das demandas prá-
ticas desta segunda apresentação (consideran-
do que Mamífera é decorrência de Primagesta,
apresentada apenas em sala de aula). Comparo
a vestimenta da Deusa-Leoa, ou o processo de
transformação nela, ao “miolo do Boi”, que é a
figura encarregada nas festas dos diversos Bum-
ba-meu-boi pelo Brasil de “vestir o Boi”. Relatos
de amigos e amigas que têm ou tiveram esta fun-
ção contam que algo do Boi animal “encarna” ou
“monta” em cima e faz com que se entre em um
estado alterado de consciência, que leva o “mio-
lo” a fazer movimentos muito além da capacidade
individual que teria sem a paramenta do Boi. Em
determinado momento, na iminência de entrar no
templo-palco, desconfio da minha capacidade de
dar conta, de tanto que tremo. Mas é justamente
este tremor e esta alteração que toma meus mús-
culos que me impulsiona para a movimentação e
Preparação Mamífera Reptiliana - Abr/19
Performer Daniela Carmona 150
Foto: Spyder
dá o tom da minha voz e dos meus movimentos. Quando abrimos a roda de conver-
sa, logo após a apresentação, esta contaminação em muitas pessoas do público se
faz clara. Há pessoas ali que não tinham a menor ideia do que iam assistir. E mesmo
sem acompanhar a pesquisa ou ter alguma informação sobre parto, ou mito, ou mes-
mo teatro, declaram estar “perturbadas”, sem ar, chocadas. Uma das futuras mu-
lheres que me ofertam a narrativa, na verdade a última, está grávida de oito meses
e assistiu a performance. Está nitidamente impactada e revela que a bebê, durante
toda a performance, nunca se mexeu tanto e com tanto vigor. Ela me conta que teve
a impressão de que a bebê queria saltar para a cena. Palavras como “medo”, “excita-
ção”, “chocada”, “força”, “aflição”, “querer parar”, “quase insuportável”, “beleza”,
“assustador”, vêm com frequência; e também “não consigo expressar”, “não sei o
que senti”, “difícil apreender as sensações”, também carregam as falas. Lembro-me,
e resgato na minha fala esta lembrança, de uma colega que assistiu a primeira apre-
sentação, quando ainda era Partolândia. Ela é mãe e comentou: “se não virar bicho,
não pare”.

Olho hoje para Mamífera Reptiliana e sinto que chego nela a um ponto cul-
minante da investigação prática, onde a tradução não-verbal das narrativas contem-
porâneas e míticas converge o mais próximo possível do que fabulo ser o Cosmos-
-parto. Ao longo do lento processo de maturação, eu e Mariana fomos despindo-a
de vozes, de confusões sonoras, de textos projetados, levando tudo para o corpo e
a voz. Mesmo a trilha que ainda permanece – a saber, duas músicas do grupo Dead
Can Dance, “Dance of the Bacchantes” e “Yulunga” – não chega a nos satisfazer e
sentimos ser um meio de caminho, um estudo, um esboço de algo a ser criado futu-
ramente em parceria com úteros musicais, que venha em colaboração com as inves-
tigações e experimentações sonoras que desenvolvemos até aqui.

151
Apresentação Mamífera Reptiliana - Abr/19
Performer Daniela Carmona
Foto: Mariana Rotili

Apresentação Mamífera Reptiliana - Abr/19


Performer Daniela Carmona
Foto: Mariana Rotili

Apresentação Mamífera Reptiliana - Abr/19


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Performer Daniela Carmona
Foto: Spyder
Apresentação Mamífera Reptiliana - Abr/19
Performer Daniela Carmona
Fotos: Mariana Rotili

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Apresentação Mamífera Reptiliana - Abr/19
Performer Daniela Carmona
Fotos: Mariana Rotili

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Apresentação Mamífera Reptiliana - Abr/19
Performer Daniela Carmona
Foto: Mariana Rotili

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Apresentação Mamífera Reptiliana - Abr/19
Performer Daniela Carmona
Fotos: Mariana Rotili

156
Apresentação Mamífera Reptiliana - Abr/19
Performer Daniela Carmona
Fotos: Mariana Rotili

157
Caminhos de Mamífera Reptiliana

Junho/2018
• Apresentação na conclusão da disciplina “Corpo, Rito e Performance”, ministrada
pelo prof. dr. Milton de Andrade, ainda intitulada Partolândia.

Abril/2019
• Apresentação dentro da programação do SPAC 2019 (Seminário de Pesquisa em
Artes Cênicas – CEART/UDESC), já com o título definitivo*.

• Apresentação dentro da programação do SPAC 2019 (Seminário de Pesquisa em


Artes Cênicas – CEART/UDESC), já com o título definitivo*.

Novembro/2019
• Apresentação na Mostra Poéticas do Parto no Armazém Cultural - Coletivo Elza,
em Florianópolis.

Ficha técnica

Concepção e atuação: Daniela Carmona


Direção: Mariana Rotili
Figurino Mamífera Reptiliana: Daniela Maria Antunes
Fotos Partolândia: Karin Veras
Fotos Mamífera Reptiliana: Mariana Rotili e Spyder
Vídeo Mamífera Reptiliana: Spyder

* Link para video de ensaio da apresentação no SPAC 2019


https://www.youtube.com/watch?v=mmgVBmmHjRk

Link para vídeo da apresentação no SPAC 2019


https://www.youtube.com/watch?v=l4SGNo-yHiY

Camarim pós-apresentação
Mamífera Reptiliana - Abr/19 158
Foto: Mariana Rotili
Debate pós-apresentação Mamífera Reptiliana
Abr/2019
Fotos: Mariana Rotili

159
MITOPROFÂNICAS

Apresentação na vivência Memórias do Ventre Livre,


evento “Na Luz do Partejar II” - Jun/18
160
Performer Daniela Carmona
Foto: desconhecido
Mitoprofânicas não estava prevista para esta pesquisa. Não estava no horizon-
te, não era um parto planejado, mas brotou inesperada, simples, sem pretensões de
performance. Contações, narrativas encenadas, pequenas disparadoras de diálogos,
um micro-projeto atrelado ao grande projeto.

A primeira Mitoprofânica não tinha nome no início da elaboração. Conforma-


va-se em ser um chamado para uma vivência denominada Memórias do Ventre Livre,
sobre histórias de partos em um evento sobre parteria tradicional16. As organizadoras
do evento sabiam de minha pesquisa de mestrado em desenvolvimento e de meu
trabalho com gestantes; e por isso me chamaram.

Esta experiência de narrativa cênica é uma pequena contação de história que


tece o mito de uma deusa arcaica – a deusa Deméter no caso - a uma história pessoal
de nascimento: minha própria narrativa de parto. Em cena encarno, em uma mesma
persona, Deméter e minha mãe, ambas as histórias misturadas, expondo experiên-
cias de violência, abandono e reencontro.

Após finalizar a coleta das narrativas iniciais e uma primeira parte do estudo
dos mitos arcaicos, no processo de concepção dramatúrgica de Mitoprofânicas esco-
lhi Deméter, deusa múltipla, potente. Minha escolha cai sobre um recorte de um de
seus mitos: parte da conexão preciosa mãe-filha, caminha pela perda deste vínculo
a partir do rapto da filha-menina pelo deus dos infernos e sua violação, do amadu-
recimento e da aceitação resignada da passagem menina-mulher, e a consequente
criação cosmogônica dos ciclos das estações a partir desta relação delicada entre

16
Evento “Na Luz do Partejar” (vivência formativa em saberes da parteria tradicional), em sua 3a edição
em Botucatu, no interior de São Paulo, no final de maio de 2018. Acompanho este evento desde sua
primeira edição, em maio de 2017, em Alto Paraíso de Goiás.

Apresentação na vivência Memórias do Ventre Livre,


evento “Na Luz do Partejar II” - Jun/18
(à direita, Dona Francisquinha, parteira indígena) 161
Foto: desconhecido
Apresentação em
Barreirinhas - MA
Jan/19
Performer
Daniela Carmona
Fotos: Dayana Roberta

162
Deméter e Perséfone. Resgato dentre as narrativas
colhidas a de meu próprio parto, história rememo-
rada e re-tecida a muito custo por minha mãe e por
minhas próprias lembranças do relatos. Foi um parto
de dois dias repleto de violência obstétrica17, que re-
sultou em uma cirurgia cesariana desnecessária (ou,
como se usa hoje no jargão do movimento pela hu-
manização do parto, uma “desnecesárea”).

Transformo o mito de Deméter em uma histó-


ria humana, entrelaçado ao fato contemporâneo da
narrativa de parto, na tentativa de coletivizar a histó-
ria particular de meu parto para que se seja relatada
em símbolo/mito performado. Aqui, Deméter/minha
mãe, eu/Perséfone, passo de maneira quase imper-
ceptível entre mito e fato: há uma história dentro de
outra história. Trago o signo do sangue derramado,
através de um objeto/útero e ao mesmo tempo o
bebê recém nascido, uma bola transparente cheia de
vinho, que se esvazia aos poucos, o vinho/sangue es-
correndo no chão, manchando os meus pés, respin-
gando nos participantes, até que um resto disforme
sobra para estar frágil nos meus braços.

Hoje, refletindo sobre as apresentações, ob-


servo que nelas há um esforço em despertar memó-
rias recentes do que vivi e redistribuir a experiência
com os ouvintes, convidados a tornarem-se partici-
pantes e testemunhas de uma narrativa de poder,
sofrimento e vulnerabilidade. Desperto nas encena-
ções histórias mais antigas que a história vivida para

17
“Art. 2o: Considera-se violência obstétrica todo ato praticado
pelo médico, pela equipe hospitalar, por um familiar ou acom-
panhante que ofenda, de forma verbal ou física, as mulheres
gestantes, em trabalho de parto ou, ainda, no período puerpé-
rio.” PL./0482.9/2013, publicada no Diário Oficial do Estado de
Apresentação no CRESOL Santa Catarina, em 19/01/2017.
São Luis - MA - Jan/2019
Performer Daniela Carmona
163
Foto: Dandara Mendes Fabiano do Rosário
entender os ciclos do mundo e os ciclos das mulheres. Refaço em meu corpo e voz
o percurso do mito e da história mundana, cruzando narrativas a um só tempo reais
e simbólicas. Ofereço em sacrifício a experiência de parto de minha mãe ao me parir
para sacralizar e coletivizar esta experiência e despertar memória e consciência de
outros partos, deixados em silêncio, incompreensão ou escuridão; ou festa, luz e ale-
gria.

As apresentações

Desde a primeira experiência, encenada na zona rural de Botucatu, houve o


desejo e a abertura para que os participantes pudessem falar sobre suas histórias de
nascimentos, de suas mães. Sentamos ao ar livre, em círculo, estruturação que pas-
sou a ser adotada em todas as apresentações e que me convidava a mover-me em
todas as direções, buscar o olhar de cada participante. Considero esta uma fase em-
brionária da encenação, ainda antevendo a narrativa transbordante a ser extrapolada
a outras possibilidades.

Após a apresentação, sob o formato de uma vivência, estimulei os participan-


tes a se reunirem em pequenos grupos e compartilharem suas histórias de nascimen-
to. Cada grupo elegeu uma história e solicitei que narrassem em primeira pessoa,
vestindo a voz das mães relatando a experiência do parto. Catártico: a maioria das
histórias era de sofrimento, incompreensão, medo, e com graus variados de violência
obstétrica. Por outro lado, relatos como o parto de Dona Francisquinha18, presente
ao evento, ofereceram ao grupo outras possibilidades do nascer: afeto, acolhimento,
encorajamento, delicadeza, sacralidade.

Outros lugares pelos quais Mitoprofânica passou receberam-na como uma


abertura provocativa para que profissionais pudessem discorrer sobre temáticas di-
versas. Foi o caso da abertura de uma palestra sobre violência obstétrica19. A audiên-
cia era composta de gestantes, companheiros, algumas doulas e familiares das ges-
tantes. Na organização estavam enfermeiras obstétricas professoras do curso técnico
18
Parteira indígena da etnia shawandawa, do Acre, já atendeu mais de 1.500 partos; também uma das
“Las Trece Abuelas”, conselho de anciãs indígenas do mundo todo, que se reúnem periodicamente
para troca de saberes e manutenção e preservação das culturas ancestrais.
19
Palestra proferida pela bióloga profa. dra. Ligia Moreiras Sena, por ocasião de um ciclo de palestras
164
A presentação
no CRESOL
São Luis - MA
Jan/2019
Foto: Dandara
Mendes Fabiano165
do
Rosário
CRESOL
São Luis - MA - Jan/2019
Foto: Dandara Mendes Fabiano
do Rosário

de enfermagem. Fui recebida no auditório e não havia possibilidade de nos colocar-


mos em roda. Diante deste aparente obstáculo, levei a encenação para o corredor
da plateia, onde podia trazer a narrativa para mais perto de uma vivência coletiva.
Apesar de não poderem compartilhar suas histórias devido ao formato fechado da
palestra, a comoção foi grande, inclusive das organizadoras e da palestrante, que
abordou suas sensações com relação à apresentação durante a palestra.

Mitoprofânica foi apresentada em agosto de 2018 em um evento específico


do meio obstétrico, o “Agosto Dourado”20. Fui convidada por um grupo de doulas e
enfermeiras obstétricas de Florianópolis para apresentar a performance no posto de
saúde do SUS do bairro dos Ingleses, norte da cidade. Um evento repleto de ativida-
des. Presentes estavam a equipe de atendimento do postinho, mães e pais recentes
com seus bebês, familiares e gestantes, da comunidade do bairro. Concentrei-me em
estabelecer uma conexão individual e intimista com cada participante onde cada pe-
daço da história foi narrada para cada um dos presentes. Abrimos uma roda de con-
versas e espontaneamente as mulheres quiseram compartilhar suas histórias. Houve
comoção, choro, confissões de mágoas, auto-culpabilizações. As percepções das mu-
lheres estavam repletas de sensações de abandono, falta de informação, tratamento
negligente e/ou agressivo, impotência. Havia uma ânsia por entender a experiência,
encontrar um sentido para o sofrimento, encontrar alívio para culpas diversas. Todas
as mulheres que expuseram suas experiências eram predominantemente de baixa
renda atendidas pelo SUS.

Relato aqui também a apresentação que fiz para a comunidade acadêmica de


teatro da UDESC21 com o objetivo de analisar não só a temática mas também os as-

sobre parto humanizado, promovido pelo IFSC (Instituto Federal de Santa Catarina), em junho, julho e
agosto de 2018, em Florianópolis. Ligia é bióloga, doutora pela Faculdade de Saúde Coletiva da UFSC
com a tese Ameaçada e sem voz, como num campo de concentração - A medicalização do parto como
porta e palco para a violência obstétrica. Ativista dos direitos reprodutivos da mulher; compôs minha
banca de qualificação.
20
O Agosto Dourado celebra nacionalmente a importância da amamentação e é marcado por diversos
eventos comemorativos e informativos.
21
Na ocasião, apresentei na disciplina de Mestrado “Introdução ao Teatro Feminista”, ministrada pela
166
pectos da composição. Porém a temática vencia: os participantes queriam falar sobre
o impacto da história como ativadora das memórias de seus próprios partos e, no
caso de algumas mulheres que são mães, os partos de seus filhos e filhas. Refleti so-
bre minha criação estética, pouco comentada, e um desejo de tornar a performance
mais contundente através desta. Até este momento, esta era também para mim uma
preocupação menor.

De fins de dezembro de 2018 a fins de janeiro de 2019, realizei pesquisa de


campo no Maranhão em viagem que pretendia um estudo sobre as parteiras tradi-
cionais do estado, para um futuro projeto acadêmico sobre parteiras tradicionais de
algumas regiões do Brasil. No último quarto da viagem, minha contrapartida pôde
ser ofertada, através da realização de três apresentações de Mitoprofânica e uma da
performance Primagesta. Quatro experiências memoráveis, que abriram janelas e
construíram pontes renovadoras, algumas surpreendentes, para as potencialidades
do meu trabalho.

No Maranhão o atendimento obstétrico nos hospitais ainda é problemático:


práticas ultrapassadas, invasivas, histórico vasto de violências. Muitas mulheres têm
medo de parir nos hospitais. E em algumas destas, este medo as leva a recorrer à
familiaridade das parteiras locais, que em geral são pessoas benquistas e próximas
de suas comunidades. Nas rodas de conversas após as apresentações, ouvi frases
contundentes expondo esta preferência pelas parteiras: “ah, se eu tivesse teimado
um pouco mais, tinha ido com Dona Fulana!”, “a parteira Siclana jamais me trataria
assim como me trataram!”. Abrir uma conversa sobre estes assuntos com um mote
artístico era novidade e pelo inusitado se viram refletindo sobre suas histórias e con-
sequências.

Mulheres transbordavam suas histórias com uma consciência apurada da in-


serção destas em um cenário coletivo que poucas vezes vi se apresentar: consciência
política, afetos, virulência, delicadezas e apoio mútuo. Estão cansadas de serem mal-
tratadas por uma ciência da saúde de má qualidade, preconceituosa, discriminatória,
excludente e obsoleta. Há uma necessidade urgente de falar, identificar as lacunas,
os abismos, mobilizar forças para construir pontes sobre eles. A impressão que im-
pregna em mim é a de uma população maltratada desde a fase embrionária, que

profa. dra. Maria Brígida Miranda, em novembro de 2018.


167
Apresentação no
CRAS Liberdade - Jan/19
Performer Daniela Carmona
Fotos: Dayana Roberta

168
precisa de muita resistência para ultrapassar as barreiras impostas pela segregação
em vários níveis.

Desdobramentos

A experiência com Mitoprofânica e as narrativas do mito de Deméter e de


meu parto abrem possibilidades mais amplas. No atual momento, eu e Mariana Ro-
tili estamos desenvolvendo Mitoprofânicas das outras deusas em estudo nesta pes-
quisa: Eurínome, Sekhmet e Iemanjá. Escolhemos os mitos de cada deusa e quais
narrativas contemporâneas de parto podem conversar com eles, seguindo a estrutu-
ração composta pela Mitoprofânica Deméter. Cada deusa terá seu paramento e seu
útero-esfera, e levamos para a sala de ensaio a pesquisa de linguagem corporal e
vocal que desenvolvemos nas experimentações com as performances. Seguindo este
caminho, estamos lapidando as agora Mitoprofânicas no plural, para que ganhem em
apuro estético e contundência, mas sem prescindir da simplicidade e facilidade de
circulação, que tem sido uma de suas maiores qualidades.

169
Caminhos de Mitoprofânica

Junho/2018
• Vivência “Memórias do Ventre Livre”, no evento “Na Luz do Partejar” - módulo III,
na Demétria (Botucatu - SP)

Julho/2018
• Abertura de palestra sobre violência obstétrica, ministrada pela profa. dra. Lígia
Moreiras Sena, no ciclo de palestras sobre Parto Humanizado, no IFSC (Florianó-
polis - SC)

Agosto/2018
• Evento “Agosto Dourado” (comemoração do mês da amamentação), no Posto de
Saúde dos Ingleses (Florianópolis - SC)

Novembro/2018
• Apresentação na disciplina “Introdução ao Teatro Feminista”, ministrada pela
profa. dra. Maria Brígida Miranda (CEART - UDESC)*
• Abertura da formação em Yoga Para o Parto, no espaço Arunashala, (Florianópolis
- SC)

Janeiro/2019
• Espaço Cactus (Barreirinhas - MA)
Centro de Referência de Economia Solidária, CRESOL (São Luis - MA)
CRAS Liberdade (São Luis - MA)

Fevereiro/2019
• Abertura do Curso “Capacitação em Atuação Contra Violência Obstétrica”, mi-
nistrado pela profa. dra. Lígia Moreiras Sena

* Link para apresentação na disciplina “Introdução ao Teatro Feminista”


https://www.youtube.com/watch?v=nUFXALGbUSo
Vídeo: Maria Brígida Miranda

170
Índice das imagens

1. Detalhe de apresentação da performance Trigemelar (dez/2017 - Casa 431 - Florianópolis)


Performer: Daniela Carmona
Foto original: Jerusa Mary

2. Imagem de Mama Wata em madeira, do povo Ovimbundu, Angola. Cerca de 1950-1960 - arte
sobre original.
Fonte: https://africa.si.edu/exhibits/mamiwata/who.html

4. Imagem de Mama Wata em madeira, do povo Yorubá, Nigéria. Idade desconhecida - arte sobre
original.
Fonte: https://www.christies.com/lotfinder/Lot/statue-yorouba-mami-watayoruba-mami-wata-statue-
-6065272-details.aspx

5. Apropriação artística de ilustração de Pedro Rafael para o capítulo sobre Olocum. Fonte: PRANDI,
Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pg. 402.

171
“TERRA GRÁVIDA” 1

Conclusão

O Começo do Mundo (Aruá)2

“Havia dois irmãos, Andarob, o irmão mais velho, e Paricot, o mais novo. Tinham
uma irmã, Antoinká. [...]
Não é como na Bíblia, que quando Deus se formou era só água. Para nós, era só
terra, não tinha água.
O começo do mundo surgiu assim. Não existia ninguém neste mundo, não existia
mundo. [...]
O mais novo disse: - Eu sei o que vou fazer, eu vou formar o mundo. [...] Vou formar
o mundo e no mundo que vou formar, vou criar de tudo. E tudo que eu falar vai
existir.
Paricot decidiu: - Vou me casar. Vou dar meu jeito, ter uma mulher para mim.
Não existia mulher alguma – só a irmã dele.
Não tem aquele munduru, aquele cupim? Um montinho de terra?Aquela foi a mu-
lher de Deus. Ela era mulher; o buraco do cupim era como vagina de mulher, por
lá Paricot tinha relação com ela. Txapob, o buraco do cupim, era como se fosse a
vagina da mulher. [...]
A mulher de Paricot, o cupim, ficou grávida. A gravidez não era como a de hoje, só
de um filho. Ela é a terra, a terra é que engravidou. Paricot engravidou a terra de
vários tipos de gente, vários povos, que tiveram um só pai. [...]
A terra engravidou, prenhe de vários povos que iam nascer.[...]”

1
Terra Grávida, título extraído do livro de Betty Mindlin e narradores indígenas.
2
Esta narrativa está no livro citado acima, faz parte do capítulo O Começo do Mundo; é um mito cos-
mogônico da criação da humanidade, narrado oralmente por Awünaru Odete Aruá (chefe da Aldeia
Indígena Guaporé) e transcrito por Betty Mindlin. O povo Aruá está situado no estado de Rondônia e
seus mitos fundantes contêm diversos elementos similares aos de outros povos da mesma região, de
línguas do tronco Tupi-Mondé. MINDLIN, Betty e narradores indígenas. Terra Grávida. Rio de Janeiro:
Record: Rosa dos Tempos, 1999.
172
Esta narrativa-abertura final é minha reverência e o reconhecimento da minha
ignorância, estranhamento e encantamento frente às mitologias ameríndias. Sinto-
-me devedora de aprofundamentos futuros neste modo de conhecimento e apre-
ensão do Mundo tão próximo e tão distante da cultura à qual sou familiarizada; re-
conheço em minhas heranças maternas este tronco, que enxergava muito distante
e quase apagado, apenas nomes e histórias-fábulas esparsas3. Esta abertura se deu
já no final do processo investigativo, através do contato inesperado com parteiras
de diferentes nações indígenas e seus modos de parteria4. Em suas falas, sempre a
terra como presença viva, como ser pensante e atuante, como Mãe, como nutridora
e da qual se assumem guardiãs. Seus modos de enxergar a gravidez, o nascimento
e os cuidados maternos sempre são coletivos, comunitários, processos que dizem
respeito a todas e todos de cada aldeia, de cada nação, pelos quais todas e todos se
responsabilizam. O maternar é o engravidar de toda uma comunidade.

Embora minha trajetória neste processo de investigação tenha sido em gran-


de parte solitária - e em determinados momentos esta sensação de solidão me fez
perder referenciais e me senti no escuro e perdida, esvaziada de sentido -, hoje reco-
nheço as imensas e fundamentais contribuições que recebi e as parcerias que forjei
no caminho. Mesmo antes de sequer pensar em formalizar um processo acadêmico
de pesquisa, olho para um coletivo imenso de gestantes, bebês, mestras e mestres,
companheiras e companheiros, que deram sentido à pesquisa, amalgamado com o
coletivo das artes cênicas do qual faço parte há muitos anos. Ao fim deste processo,
em mim há um sentimento de pertencimento e sustentação destas duas culturas, que
me deram passagem e permissão para engravidar de ambas nesta cópula poética.

No fim retorno ao início, novamente grávida de perguntas, tentativas de res-

3
Minha família materna, além das heranças europeias portuguesa e italiana, tem ascendência indígena
muito longínqua. Meus tios-avôs contam que um bandeirante português “casou-se” (ou sequestrou)
com uma índia Tupi-Guarani chamada Bartira, da região do sul de Minas Gerais; e deste casamento
a família Carvalhaes foi gerada. Não existe nenhum documento que comprove a veracidade dessa
história. Mas é nítido pelos traços físicos da família de meu avô materno que são, somos, descenden-
tes de indígenas. Vamos dizer assim que um “passarinho verde” me sussurrou em sonhos que é tudo
verdade...
4
Dois eventos foram fundamentais para esta aproximação: a vivência formativa “Na Luz do Partejar –
módulo III”, em Botucatu, que teve como parteira-símbolo Dona Francisquinha Shawandawa, da nação
que dá seu sobrenome, da região do Alto Purus, no Acre; e a quarta edição do evento “Raízes”, em
Alto Paraíso de Goiás, que reuniu parteiras, erveiras e erveiros, raizeiras e raizeiros e pajés, em quatro
dias de trocas de saberes, cursos e vivências. Tive a oportunidade de entrar em contato com parteiras
das nações indígenas da região da Chapada dos Veadeiros, bem como parteiras quilombolas.
173
postas e apontamentos para o futuro. Como o ato de engravidar, de criar, de gerar,
gerei ao longo desses dois anos o que posso chamar de crias, emprestando a mim
uma ampliação da espécie e me tomando como fêmea mamífera que dá à luz as suas
crias. Assim como crias em processo de crescimento e apreensão do mundo, minhas
crias-performances apresentam-se em eterno devir, evitando aportar e consolidar
uma forma cristalizada e desprovida de movimento. Não é de sua natureza; foram
feitas para moverem-se e não serem catalogadas.

Ao olhar para todo o processo investigativo, percebo que o olhar da arte pre-
valeceu sobre o antropológico, o sociológico, o biológico, o histórico, mas serviu-se
de todas essas lentes, ou degraus, ou terras férteis para se fazer proeminente. O que
significa dizer que foi atravessado por essas abordagens para delas extrair o poético
da experiência do parto; abordagens que constituem seu DNA, mas que se ocultam
e permanecem nos bastidores para que emerja e se centralizem as forças e potências
invocadas por minha própria criação. Não há dúvida que estas forças existem e se
manifestam a cada experiência do parto em cada corpo-em-parto; todo o percurso
percorrido investigativo foi um processo de apropriação de saberes e criação de no-
mes, imagens, sons, percursos, movimentos, pulsos, intervalos: composições.

As composições finais, que não se findam mas se dão o direito de se apresen-


tarem sempre em transitoriedade formal, permanentemente grávidas de possibilida-
des, são a resposta à principal pergunta formulada no início da investigação (aponta-
da na Introdução), norteadora dos caminhos escolhidos teóricos e práticos: Há uma
narrativa possível diante de tanto corpo e poucas palavras na experiência do parto?
Há uma performatividade possível que possa dar conta desta experiência?

Mais do que responder com um “sim”, que reconheço e assumo ser meu “sim”,
as performances que constituem essas composições devolvem a pergunta ao público
que as assiste, com um desejo, uma vontade, uma expectativa: que cada uma/um
que compartilhe comigo a experiência do acontecimento performático sinta-se con-
vidada/convidado a fabular sobre suas próprias histórias. Assim como a concepção
de um ser animal (humano ou não) só se faz sob a condição da partilha de matéria-
-prima de dois outros seres, criação multiplicada em fábula e mito sempre a partir de
uma “cópula” entre dois princípios (Paricot e a terra-cupinzeiro, Iemanjá e seu filho
incestuoso Orungã, Eurínome e Ófion, Deméter e Zeus/Iason), a concepção de novos

174
devires e possibilidades de narrativas do nascer se dá na cópula das apresentações
com quem as assiste. Não há um fim em-si. Há a permissão para que nasça um ato de
fabulação através deste encontro entre minhas composições, reinvenções dos mitos,
narrativas e memórias ofertadas, e a presença de quem vê. Retomando Whitehead,
o que importa aqui, o que está à frente, é a relação entre todos os envolvidos no
acontecimento.

Entendo assim minha contribuição e agência simultaneamente no campo das


artes cênicas e no campo do maternar tal como o “híbrido de arte e clínica” de que
fala Sueli Rolnik ao analisar os caminhos de Lygia Clark. Aqui não trato da clínica no
sentido terapêutico ou científico; e sim a exposição de possibilidades de olhar para
o campo do nascer confrontando os velhos paradigmas do campo da saúde e da
medicina, que são o presente estagnado, e puxar das várias camadas do passado um
diálogo com o futuro, para forçar este presente a ser passagem, a ser instante, a se
atualizar.

A arte tem essa potência: apontar pra a criação de novos nasceres, para novas
possibilidades de ritualizar esta passagem seminal da vida reconhecendo que trans-
cende as formas estabelecidas e os protocolos domesticadores. É uma afronta. Meu
corpo-em-parto, minha nudez, meus sons, minhas narrativas não-verbais, os animais
simbólicos, as divindades invocadas: são fricções, provocações, catalisações de re-
flexões e diálogos e embates. Com gestantes, famílias, profissionais da obstetrícia,
ativistas, políticas/políticos, gestoras/gestores, estudantes de medicina, parteiras,
crianças e adolescentes, em espaços e eventos aglutinadores destes atores: busco as
pontes possíveis para que as performances, não somente estas, mas outras que estão
por vir, tenham fluência e co-criem com quem as receber.

A partir deste ponto, são estes encontros que eu e minhas crias ansiamos
por percorrer e dar sentido e propósito à investigação acadêmica. Amplio o alcance
também ao oferecer a possibilidade de compartilhar minha metodologia de experi-
mentação e criação cênica a outras/outros artistas e pesquisadoras/pesquisadores
do campo não só das artes cênicas, mas de outros campos também como antropo-
logia, sociologia, psicologia; de fato consigo reconhecer minha investigação teórica
e prática, pelas várias camadas abordadas, no campo dos Estudos Culturais. Este
reconhecimento me abre horizontes e possibilidades amplos para que a investigação
das potências do nascer possa prosseguir.
175
PÓS-ESCRITO
Transbordamento além

176
A Metalização do Parto

Este parto ainda está em gestação. Dentro do escopo da criação das perfor-
mances, junto com Mariana Rotili, seria a quarta. O tempo exíguo que nos sobrou
quando do surgimento da necessidade de materializarmos essas ideias não permitiu
que pudéssemos nos dedicar à criação efetiva. Ficamos maturando a ideia e também
percebemos que ela necessita de um aprofundamento e uma radicalidade e elabo-
ração que extrapolam o formato de uma performance curta e pede um evento cê-
nico de maior porte. Nela cabem elementos de todas as outras performances. Nela
cabem todas as narrativas. A criação e realização ficou então decidida para um mo-
mento posterior à presente pesquisa, um pacto para um futuro próximo, a conclusão
em cena de toda a investigação prática e teórica, mas que transborda e ultrapassa os
limites da dissertação e da investigação prática dentro da academia.

“Uma mulher está parida, com as pernas abertas e seu


bebê no colo, em uma maca de hospital. Tudo nela está
prateado: a cor de sua pele, o bebê, a roupa que está
usando, a cicatriz saliente da cesárea. E tudo que a
rodeia e toca ou invade seu corpo é de metal ou de cor
metalizada: maca, lençol, objetos hospitalares diversos
(bisturi, fórceps, pinça cirúrgica, seringa...). Junto à mu-
lher está o/a obstetra, sem gênero definido, pois todo
o corpo está coberto com o uniforme hospitalar, tudo
também metalizado em prata.”


Sentia a necessidade urgente, perante os retrocessos normativos institucionais
e corporativos na área da obstetrícia de 2018 para cá, de trabalhar o tema da medi-
calização do parto. O conceito de medicalização é minuciado por Lígia M. Sena em
sua tese de doutorado, de onde destaco duas de suas várias definições:
Para Conrad (1992), a medicalização pode ser descrita como o processo pelo qual pro-
blemas que antes não possuíam caráter médico passam a ser definidos e tratados como
se assim o fossem, adquirindo status de doenças ou distúrbios. Assim, o processo de me-
dicalização está presente no momento em que problemas inerentemente humanos que
eram antes manejados pelas pessoas em suas redes de relações sociais próximas aden-
tram a jurisdição da profissão médica: passam a ser definidos e discutidos por meio de
termos médicos, utilizando-se da linguagem médica para descrevê-los, empregando-se
um quadro de referência conceitual ou de saber médico para sua compreensão e utilizan-
do intervenções médicas para “tratá-los”, ainda que não tenham sido considerados até
então necessariamente patológicos e, portanto, não haja necessidade de “tratamento”,
da forma como a racionalidade médica assim compreende. [...] trata-se também e funda-

177
mentalmente de um processo sociocultural [...].
É justamente sobre o seu componente sociocultural que se apoia a definição e compre-
ensão do processo de medicalização de acordo com Irving Zola (1972). O autor a define
como o processo pelo qual mais e mais eventos da vida cotidiana passam a estar sob do-
mínio, influência e supervisão médica. A medicina passa, por meio da medicalização dos
processos naturais, a se tornar uma das maiores, senão a maior, instituição de controle
social, incorporando, ou até mesmo substituindo os elementos de controle presentes em
instituições tradicionais como a religião e a lei, adquirindo prestígio, influência e condição
de repositório da verdade, interpretada como “a palavra final” e lugar onde julgamentos
definitivos são realizados por especialistas supostamente neutros em sua objetividade e
moralidade. [...] Consequentemente, a interpretação biomédica dos fatos da vida coti-
diana retira de sua compreensão os elementos legais e religiosos, muitos componentes
ético-sociais e culturais da relação com o próprio corpo, a vida, a natureza, o sofrimento
e a morte, fazendo com que o controle médico e científico substitua a regulação sócio-
-cultural e/ou o controle moral e punitivo [...]. Controle que passa a ser feito, com esta
substituição, sob a suposta idoneidade e caráter benemérito da “terapêutica”. (SENA,
2016, pg. 26)

No processo de recolha das narrativas de parto, somado às experiências mi-


nhas na doulagem, constantemente esbarrei neste embate/fricção entre liberdade
de escolhas do corpos-em-parto versus o cerceamento institucional dos dispositivos
hegemônicos da saúde. A palavra cerceamento me conduz ao conceito de cercamen-
to, no sentido de cercar, delimitar, um termo extraído da obra de Federici, que desig-
na a privatização das terras comunais (pertencentes ao campesinato livre) por parte
do Estado, na transição da Idade Média para a Idade Moderna (FEDERICI, 2017).
Cercamento, para mim, traduz com propriedade a privatização do corpo-em-parto e
a normatização e domesticação deste.

Na história do parto mencionada no Capítulo I (um trabalho de parto às vés-


peras do Natal que terminou inexplicavelmente em uma cesárea), eu, a gestante
e o companheiro ficamos confinados em um espaço minúsculo, espaço-baia, para
o trabalho de parto, o que nos levou a nos transbordarmos para os corredores e
o chuveiro. Mas no início não. Também não sabíamos exatamente nossos limites e
possibilidades. Também nos sentíamos os três “cercados”. Em casa, algumas horas
antes, o espaço era nosso. Agora, era uma aridez acanhada, estranha e hostil. E an-
tes que entendêssemos que, justamente pela pouca atenção dada pela equipe (já
que o hospital estava lotado e os obstetras engatavam uma cesárea atrás da outra),
podíamos nos espalhar, ficamos tentando libertar os movimentos dentro da “baia”
de parto. Em momentos diferentes, tanto eu quanto a gestante e seu companheiro
esbarramos e nos machucamos em peças metálicas: as manivelas de ajuste da cama
hospitalar, o carrinho de metal no meio do caminho com apetrechos para medição

178
da frequência cardíaca e pressão arterial, a ponta
de uma prateleira mal colocada que insistia em
receber nossas cabeças, um suporte para soro
“Esta é a imagem congelada
que insistia em ser reposicionado no meio do ca-
do desfecho de um parto, que
minho. Depois, quando a cesárea se confirmou, a
ao longo do evento teatral
gestante me relatou sobre a seringa assustadora será desenvolvido em ordem
da anestesia (e a ordem imperativa “fica imóvel cronológica inversa, de trás
senão vai ser pior pra você!”), os braços abertos para frente, onde aos poucos
em cruz e amarrados em duas estruturas de metal é vista a ordem com que cada
objeto foi “invadindo” e cer-
e as faixas de velcro, o soro na veia com antibióti-
cando, domando, restringindo
co, banquinhos de ferro... e eu, ao entrar na sala
o corpo-em-parto da mulher e
de cirurgia logo após a cesárea, dou de cara com do bebê. Esta mulher, a partir
o carrinho com as ferramentas hospitalares apro- do início da ação, não para
priadas: pinça, tesoura, bisturi, agulha... de falar, exceto em pouquís-
simos momentos de respiro,
e em sua boca há dezenas
Todo este aparato tecnológico e tecnocrá-
de fragmentos das narrativas
tico é utilizado para fazer nascer um bebê, para de parto contemporâneas,
“acolher” um bebê; todo um arsenal de mate- disparadas como uma metra-
riais sintéticos frios e mecânicos, manuseados por lhadora incessante, como um
mãos mecânicas e frias. E, apesar de já ter resva- slam. O/a obstetra intervém o
tempo todo, mas fala somente
lado no tema da medicalização do parto na per-
com termos técnicos e voca-
formance Trigemelar, eu e Mariana Rotili sentimos
bulário próprio da obstetrícia.
que o momento político e os retrocessos sucessi- Ao longo de todo o processo,
vos pediam que déssemos foco ao “corpo medi- a mulher vai sendo “des-me-
calizado”, ao corpo “cercado”5. Mas, para além talizada” até chegar ao mo-
mento em que ela está limpa,
5
Ainda cabe aqui explicitar a mais recente e polêmica reso- grávida, com seu útero intacto
lução do CFM (Conselho Nacional de Medicina) que, mais
uma vez, acena ao “cercamento” dos corpos-em-parto no e pleno, e pronta para parir.”
Brasil; destaco que esta resolução também está sendo con-
testada e condenada pela Defensoria Pública do Estado de
São Paulo, pela Defensoria Pública da União e pelo MPF,
pois fere a constituição. O CFM publicou, em setembro de
2019, a resolução que trata da “recusa terapêutica”, que
garante a pacientes o direito de recusar o tratamento, mas
mediante a assinatura de um termo se responsabilizando
por sua decisão. As únicas pacientes que não têm direito à
recusa terapêutica são as gestantes em trabalho de parto,
que podem assim ser submetidas a procedimentos contra a
sua vontade e escolha, se o/a médico/médica entender que
colocará a vida do feto em risco ou que o procedimento
será mais adequado, abrindo assim a porta para episioto-
179
“A iluminação, os objetos e o espaço
são concebidos como um confinamen-
to, um cercamento hospitalar, com
aparatos próprios das instituições de
saúde. É uma encenação-baia, em
espaço exíguo como uma cela.”

Pressupostos dramatúrgicos
Daniela Carmona

de simplesmente ilustrar este cercamento, queríamos desta vez colocar a oralidade


em cena, as narrativas em voz alta, em uma espécie de clamor, de reivindicação de
direitos, em uma espécie de “slam”6 do parto, em contraste com o corpo confinado.

Sabemos que esta cria já está sendo concebida, a terra está sendo arada, a
fecundação já está em fomento, o fogo já foi ateado, as águas já estão borbulhando.
A Metalização do Parto, prateada, violenta, crítica, em fio de navalha, está em curso.
Reinterpretando Lygia Clark, é o novo pássaro dentro da minha barriga, a nova leoa
no meu peito passeando inquieta, meus corpos-bicho, corpos vibráteis avoluman-
do-se para germinar em novas expressões, o Cosmos-parto sendo engendrado para
uma nova expansão, desafiando-me a experimentar o que pode um corpo.

mias, manobras e cesáreas sem indicação, entre outros procedimentos que podem vir a ser enqua-
drados como “violência obstétrica”. O CRM assume que a mulher não é responsável por seu bebê e
que este está acima de sua integridade. Novamente vemos as mulheres gestantes transformadas em
simples receptáculos de bebês, à mercê das vontades alheias. Para saber em detalhes sobre a resolu-
ção, acesse https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2019/2232
6
Slam: em tradução livre, poesia falada. Segundo a atriz, MC, diretora e poeta paulista Roberta Es-
trela D’Alva: “Poderíamos definir o poetry slam, ou simplesmente slam, de diversas maneiras: uma
competição de poesia falada, um espaço para livre expressão poética, uma ágora onde questões da
atualidade são debatidas, ou até mesmo mais uma forma de entretenimento. De fato, é difícil defini-lo
de maneira tão simplificada, pois, em seus 25 anos de existência, o poetry slam se tornou, além de um
acontecimento poético, um movimento social, cultural, artístico que se expande progressivamente e
é celebrado em comunidades em todo o mundo.
Foi no ano de 1986, no Green Mill Jazz Club, um bar [...] no norte de Chicago, nos Estados Unidos,
que o operário da construção civil e poeta Mark Kelly Smith, juntamente com o grupo Chicago Poetry
Ensemble, criou um ‘show-cabaré-poético-vaudevilliano’ (Smith, Kraynak, 2009: 10) chamado Uptown
Poetry Slam, considerado o primeiro poetry slam. Smith, em colaboração com outros artistas, organi-
zava noites de performances poéticas, numa tentativa de popularização da poesia falada em contra-
ponto aos fechados e assépticos círculos acadêmicos. Foi nesse ambiente que o termo poetry slam foi
cunhado, emprestando a terminologia “slam” dos torneios de beisebol e bridge, primeiramente para
denominar as performances poéticas, e mais tarde as competições de poesia. Fonte: http://gerflint.fr/
Base/Bresil9/estrela.pdf, acessado em 08/10/2019.

180
Índice das imagens

1. Detalhe de vivência para a performance Mamífera Reptiliana (mar/2019 - Florianópolis)


Performer: Daniela Carmona
Foto original: Mariana Rotili

2, 3, 4. Detalhes de apresentação da performance Trigemelar (nov/2018 - CEART/UDESC - Florianó-


polis)
Performer: Daniela Carmona
Foto original: Mariana Rotili

181
Bibliografia

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BOECHAT, Walter. A mitopoese da psique: mito e individuação. Petrópolis: Vozes,


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CARNEIRO, Rita Maria Giatti Daquilo que os médicos quase não falam: transe e
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185
APÊNDICE I
Material de divulgação
apresentações
das performances

186
PRIMAGESTA

187
188
189
TRIGEMELAR

Primagesta
Criação e atuação: Daniela Carmona
Atriz convidada: Rafaela Herran
Direção: Mariana Rotili

Você está convidadx para assistir


a um trabalho de parto! E terá
a oportunidade de interagir com
o recém-nascido!!!

Quando: quinta, 08/11


Hora: 1a sessão -13h00; 2a sessão - 13h30
Local: sala Dança 2

projeto

Performances do Parto Trigemelar


Criação e atuação: Daniela Carmona
Direção: Mariana Rotili

Um triplo nascimento, 3 sujeitos moventes e


circunstanciais de um mesmo evento,
em um mesmo corpo.

Quando: quarta, 07/11


Hora: às 19h00
Local: na árvore ao lado do
corredor de acesso ao Depto. de Música,
atrás do deck.

190
 
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Certificamos que o trabalho intitulado ECOS DOS MITOS FEMININOS ARCAICOS NAS


NARRATIVAS CONTEMPORÂNEAS DE PARTO: Investigação empírica de uma
linguagem cênica que ouça/crie tais ecos e busque experimentar uma nova mitologia
contemporânea do nascer de Daniela Carvalhaes Carmona, foi apresentado no evento 
8º Seminário de Pesquisas em Andamento (SPA), realizado em 03/09/2018 a 07/09/2018
.
 
 
São Paulo, 16 de setembro de 2018.

191
MAMÍFERA REPTILIANA

192
MITOPROFÂNICA Deméter

193
APÊNDICE II
Diário de bordo
narrativas Alto Paraíso

194
Diário de bordo Alto Paraíso – trabalho de campo
Junho/2018

Esta é a transcrição do diário de bordo escrito à mão relatando a experiên-


cia de recolhimento das narrativas de mulheres de Alto Paraíso, que pariram suas/
seus filhos com parteiras tradicionais e contemporâneas, em casa. Optei por manter
também o relato dos encontros que tive com algumas das parteiras, que foram fun-
damentais para o contato e recepção das mulheres que atenderam. Foram 5 dias
intensos e emocionantes, onde eu me adaptei o tempo todo para dar conta da dis-
ponibilidade (ou falta dela) das mulheres depoentes.

Sexta
Chego em Alto sexta feira de tarde. Ainda e com apenas uma certeza de de-
poimento: Lucia1, aprendiz de parteira. Colega do Na Luz do Partejar, amiga, enga-
jada até a tampa da cabeça no caminho de ser parteira.

Lili2, como sempre anjo da guarda, me acolhe. Sem ser parteira, doula, mãe ou
aprendiz, é um ancoradouro e aglutinadora de mulheres sábias e mulheres/meninas
por tornar-se. Mãe-de-santo médium do astral, uma geniazinha, pequena libélula que
se faz gigante.

De noite. Lucia, aprendiz de parteira. Visita de comadres em sua casa. Depoi-


mento de um parto que se contará 3 vezes, por 3 olhares. Este, o de Lucia, se perde
nas confusões tecnológicas do meu computador3. Palavras que vão ao vento dos
chips e não ficam. Conformo-me. Lucia é uma ponte de outras mulheres, é ela quem
consegue os contatos das parteiras da Chapada e das mulheres que pariram com
elas. Está inscrita no projeto.

1
Optei por manter os nomes originais das parteiras, até como uma homenagem e reverência a elas que são tão
invisibilizadas pelo sistema oficial institucional e mesmo pela sociedade.
2
Lilian Galvão, psicóloga e pedagoga, na época residindo em Alto Paraíso, é uma das criadoras e gestoras da vi-
vência formativa Na Luz do Partejar, que reúne parteiras de todas as tradições do Brasil, já em sua quarta edição.
3
Minha intenção era também poder ter um recorte alternativo de narrativas, as das parteiras. Cheguei a gravar 3
narrativas. Mas optei posteriormente por não usa-las na pesquisa nem na investigação prática. Os materiais das
parteiras aguardam para um novo projeto.

195
Sábado
Combinamos [eu e Lucia] de visitar o Moinho, para ver Dona Flor e Deja. Mãe
e filha. Parteira-mestra e aprendiz relutante. Deja não quis dar seu depoimento, tem
medo dos partos. Faz em deferência e amor à mãe, que praticamente se aposentou.
Mas quer mesmo é aprender a atender no resguardo, cuidar dos bebês. Ainda insisto
por protocolo mas sorrimos ao perceber que não sai nada mesmo.

O Moinho, casa e refúgio de Dona Flor, é bairro rural quilombola. Toda a famí-
lia da Flor está lá: 9 filhos e filhas de sangue, 22 adotados, mais netas e netos. Lugar
difícil de chegar mas a peregrinação a Dona Flor é constante. Hoje ela está bem de
saúde e bem-humorada. E com tempo. Sei que da boa prosa saem mais saberes do
partejar e disfarçadamente deixo meu caderninho a postos.

Estamos cercadas por suas garrafadas, ervas, sabonetes íntimos, toda sua me-
dicina intuitiva para as mulheres. Flor é feiticeira. Evangélica. Médium. Certeira. Nem
lê nem escreve as letras; lê e escreve as plantas e as mulheres.

Passa receita de candidíase. Pra herpes genital. Dá conselhos: “e vem mulher


aqui querendo engravidar sem o homem. Milagre ainda não faço!”; “vocês que pa-
gam dinheiro pra se formar como doulas, como parteiras, vocês podem cobrar. Eu
não, pois aprendi fazendo. Mas não esfolem as mulheres!”

Justo. Pois está nesse momento, com a ajuda de assistentes e biólogas, dando
aulas em sua primeira e última turma de formação de parteiras e doulas na tradição.
Dois anos e meio. Terá 83 anos quando a formação acabar. Não dá mais conta. E a
formação está abarrotada de mulheres sedentas dos seus saberes. É a primeira vez
em sua vida que recebe por seu trabalho, excetuando as consultas ginecológicas e
a venda de seus produtos. Muito incensada, visitada e celebrada, não é lembrada
quando envolve dinheiro. Marina Abramovic4 esteve com ela, a filmou e a incluiu
no filme Espaço Além. Mas Flor e filha reclamam que nem foram convidadas para
nenhuma exibição. E não receberam nada pelo filme. É uma queixa constante: as
celebridades a veem como uma também, abusam de sua imagem e prestígio, e de-
pois desaparecem. Com muita dificuldade, a equipe de Alto Paraíso que a auxilia

4
Artista performer sérvia, referência mundial na arte da performance. O documentário em questão foi filmado no
Brasil, a partir de suas experiências com diversas egrégoras espirituais.

196
conseguiu o dinheiro, através de uma plataforma de financiamento coletivo, para
começar a construção da Casa de Cura e Nascimento Flor do Moinho. E Flor repete
essa história incessantemente.

De lá, saímos engordadas de Flor e flores para a casa/fazenda de Nirah. Partei-


ra intuitiva da tradição e contemporânea, Nirah é quase uma entidade. Canadense,
de origem árabe, mulher linda de paralisar. Sempre com turbantes, sementes, penas
e tecidos naturais sobre o corpo. Está grávida de 4 meses. Tem atendido muitos
partos em Alto com as bênçãos de Dona Flor. Mulher sem medo, muita confiança na
dimensão transcendente do parto. Desta, vou gravar a narrativa.

Chegamos em sua casa mágica, cheia de objetos misteriosos e belos do mun-


do todo, tecidos, instrumentos musicais desconhecidos, máscaras, esculturas... Casa
octogonal, toda de madeira, no centro de uma clareira dentro da mata do cerrado.
Somos recebidas com um creme de açaí com maracujá delicioso, que ela acabou de
fazer e diz, sorrindo, que é o que consegue comer. Gelado, leve e adocicado. Muitos
enjoos no início da gravidez. Eu, sempre muito falante, diante de Nirah e seu espaço
encantado, fico mais calada. Pareço querer absorver as presenças e aprender por
outros canais.

Quero que ela escolha um dos muitos partos que já atendeu, apesar do pouco
tempo de atuação (4 anos). Nirah surpreende: escolhe o parto de um bebê morto.
Parto no Canadá, após ser constatada a morte do bebê com 36 semanas de ges-
tação. Não tenho como recusar e começo a gravação. Ela narra em sua língua de
natureza, o inglês. Todo o processo e como foi acolher com todo amor, cuidado e
compreensão dessa dimensão maior da morte. Eu e Lucia ficamos completamente
em silêncio e imóveis. Não consigo nem olhar para o computador pra checar se está
tudo bem com a gravação. Nem respiro. Nirah narra este parto-passagem com uma
delicadeza e intensidade que nos atravessa os úteros. Mulher rara.

De lá, suaviza tudo levando-nos para uma cachoeira escondida. Nadamos


nuas, água transparente, pele transparente, palavras transparentes. Será nesta curta
viagem meu único banho [de cachoeira].

197
Domingo
Acordo com mensagem de Ana5, que pariu seu filho na comunidade de per-
macultores, a primeira criança nascida lá. Me recebe pela manhã em sua casa simples,
lá está sua mãe, que acompanhou o parto, mulheres fortes. A criança, um menino,
é um encanto. Ana é de Sampa, mas está nessa jornada de viver em comunidade. É
umbandista. Conta seu parto com muitos detalhes, idas e vindas. A parteira, Amma,
também é de fora, EUA. A conheci no 1º Na Luz do Partejar e estava começando
como parteira. Amigas muito íntimas. Ana conta que no início Amma não queria
atender, estava insegura. E foi ela, gestante, que a convenceu.

Momentos muito leves. Parto cheio de gente, fogueiras, rezos, incorporações,


conexões múltiplas. Generosidade. Comunidade sustentadora em todas as direções.

Segunda de manhã
Pela manhã, novamente tudo decidido de última hora.

Bia. Carioca, mãe da Marcela. Casa muito simples, é artesã. Faz zarabatanas
de rapé. Artesanato fino. Quando chego, está saindo da casa o pai da menina. Que
participou do parto inclusive disponibilizando sua chácara para isso. Depoimento
lindo, forte, repleto de insights. Descubro que estão separados desde a gestação. É
esforço empreenderem o parto juntos. Parto atendido pela parteira tradicional Dona
Domingas. Que não faz toque, não arreda pé da posição de auxílio, que reza a barri-
ga, que dá ovo cozido com pimenta para o final do T.P.6, que usa no períneo óleo de
mamona aquecido.

Parto-bicho-gente. Político. Consciente. Entregue. Análises posteriores da di-


mensão que seu parto tomou. Reverberações. Outras mulheres bebem da fonte de
Bia. Influenciadora. Reconhece-se bicho e percebe que não há como fazer diferente.
Marcela sorri para mim o tempo todo do depoimento. Crianças maravilhosas. Estão
me dizendo que fizeram parte também. Foram atendidas. Acolhidas.

5
Todos os nomes das mulheres que narraram seus partos para mim foram modificados para preservar o anonima-
to, bem como os nomes de suas/seus filhas/filhos.
6
T.P.: trabalho de parto.

198
Tarde de segunda
Em casa de Lili, recebo Laura. Que foi atendida pela 1ª parteira, Lucia, junto
com Dani Ribeiro7.

Já sei de uma versão da história. E o que colho é outra narrativa, completa-


mente outra. Chega com Carolina, a bebê, e ao iniciar, Lili, que está na cozinha, não
se aguenta e pede permissão pra sentar junto e ouvir também.

Laura é do contra. Contra toda a família. Peregrinou em Goiânia por mais de


cinco obstetras e não se identificou com nenhum. Queria ter a filha em casa, com
parteira. Escolheu Dona Domingas. A família, revoltada, rompeu com ela. E ela pei-
tou. Seu relato é longo, minucioso, cheio de idas e vindas. Foram quase 3 dias de T.P.
Que na sua percepção, não passaram de 10 horas. Parto cheio de reviravoltas. Cura
familiar. Ligações para pedir a benção dos pais. Troca de parteiras (D. Domingas de
última hora foi ficar com o filho doente; passou a bola e as bênçãos para Lucia e Dani
Ribeiro, parteiras iniciantes). Outra parteira no meio do caminho para fazer toque
(Márcia). Parto em pé, bebê lavado pelo líquido amniótico no expulsivo. Entrega
quase orgásmica no final. Dimensões múltiplas da fé.

Terça de manhã
Uma das preciosidades de Alto Paraíso: Satya. Professora de Kundalini Yoga,
mãe de 3, mulher linda, francesa, negra, serenidade pura. Quando estive no 1º Na
Luz do Partejar, estava grávida do 3º filho e dando aulas para gestantes. Sempre a vi
de branco e de turbante, a indumentária típica dos adeptos da Kundalini Yoga. Mas
Satya me recebe “à paisana”, a cabeleira afro solta, de vestido curtinho, em sua bela
casa. Seus filhos estão por ali e circulam por nós. O mais novo, quase 2 anos já. Fica-
mos em um terraço do lado de fora, no jardim, dia lindo, último dia.

Satya teve todos os filhos em casa, cada um com uma parteira diferente. Sur-
presa, descubro que este último queria que fosse com Naoli Vinaver8, que mora per-
tinho de casa, em Floripa. Mas percebeu que seria complexo, com mais dois filhos,
mudar-se para a ilha. Então “importou” uma parteira tradicional da Bahia, muito

7 Dani Ribeiro, bióloga, também é parteira iniciante e uma das assistentes de Dona Flor.

8 Naoli Vinaver é parteira mexicana, inicialmente da tradição, mas desde que chegou ao Brasil, firmou-se como
parteira contemporânea. Muito conhecida e requisitada, mora em Florianópolis, onde lidera uma equipe de parto
domiciliar, a Ama Nascer.

199
experiente.

Mas o dia do nascimento custou a chegar, passou das 42 semanas. E o tempo


da parteira era escasso e estava no fim. Satya confiou que estava tudo bem e se en-
charcou de paciência e alegria, fazendo trilhas e longas caminhadas com os filhos e a
parteira.

Conta: que não é uma dimensão necessariamente intuitiva e que te faz “saber
tudo sobre seu bebê.” Ela não tinha a menor ideia de que gênero ele era. E não es-
tava encanada com isso.

Foi um parto em família e sem pressa. Parto dentro e parto fora. Muitos mo-
mentos acompanhada de todos. Muitos momentos só. E pura confiança em seu cor-
po e sabedoria anterior. Ela sabe que o corpo sabe. E agora sabe que pode ajudar
mais mulheres a saberem também. É o que faz de melhor.

200
APÊNDICE III
Diário de bordo
apresentações no Maranhão

201
Diário de bordo Maranhão – apresentações de Primagesta e
Mitoprofânica Deméter
Janeiro/2019

Em São Luís do Maranhão, apresentei Primagesta uma vez e Mitoprofânica


Deméter duas vezes. O diário de bordo original, escrito à mão, compreende a via-
gem toda, inclusive conversas com parteiras tradicionais de São Luís. Mas opto por
transcrever aqui apenas as experiências das apresentações de São Luís, atendo-me
ao foco da investigação. Fica de fora a apresentação de Barreirinhas (Lençóis Mara-
nhenses), pois desta não registrei nada em diário.

16/01/2019 – quarta-feira
Relato da apresentação da Mitoprofânica de Deméter. No CRESOL – Centro de Re-
ferência de Economia Solidária, no Centro Histórico de São Luís, gerido por Luiza,
feminista e ativista, coletivo de mulheres de cooperativas de artesanato local.

Dois dias antes, combinamos essa apresentação, com a impulsividade e as-


sertividade costumeiras de Dayana Roberta1, colega da UDESC; Dayana se propôs a
missão de me fazer circular, em uma semana, o máximo possível com as performan-
ces. Um pouco atordoada, mas ao mesmo tempo feliz, vou aceitando e correndo
para agilizar o material de divulgação. E tudo isso fazendo turismo!

No dia combinado, chegamos mais cedo e o espaço, na loja mesmo e em fren-


te ao café, é preparado com cadeiras em roda. Eu me paramento, respirando fundo
para conter minha habitual ansiedade e fazer tudo com calma, repetindo mantrica-
mente que vai dar tempo, vai dar tempo, vai dar tempo... confio, desconfiando, nas
mudanças de última hora da narrativa, tornando-a mais teatral e dando mais tempo
ao silêncios e ao corpo. Resolvo mudar minha posição desta vez2, aproveitando um
pufe de pneus que me acolhe de pernas cruzadas. Vou adotar esta posição mais ele-
vada...

1
Dayana é maranhense, atualmente doutoranda no PPGT do CEART-UDESC. Engajada nas políticas culturais do
estado do MA, foi a maior responsável pela viabilização das apresentações no estado.
2
Até aqui, sempre iniciava sentada no chão, na mesma linha da roda do público.

202
As mulheres (só mulheres!) vão chegando, de todas as idades e lugares e pro-
fissões. Acadêmicas, faxineiras, gestoras, vendedoras, assistentes, aposentadas, do-
nas de casa, estudantes... A roda fica lotada. Fico impressionada com a capacidade
de articulação de Dayana e o engajamento e comprometimento do público presente.

E pela primeira vez me coloco mais elevada para estar no mesmo nível da
roda. A princípio meu desejo era que todxs sentassem no chão, como vinha fazendo.
Mas Dayana, desde Barreirinhas, me alertou que não era costume e que muitas pes-
soas não tinham a destreza, capacidade e vontade de sentarem-se no chão. Compre-
endi que meu caminho é jogar com a situação, lugar e costumes que se apresentam.
Tentar impor uma maneira fixa de compor o espaço cai nos mesmos equívocos e
autoritarismo de um palco italiano, que força um único tipo de relação palco/plateia.
E minha proposta é o oposto: compartilhar uma história pessoal, fazendo-a pública
e coletiva, e estimular o público a fazer o mesmo; pessoalizar as relações; des-hie-
rarquizar; descolonizar. O quanto de crenças e procedimentos pré-fabricados ainda
existe em mim?

A apresentação transcorre com o tempo mais dilatado e me permito silêncios


e pausas corporais que me soam mais orgânicas e me auxiliam a entrar em um estado
de fluxo. O texto não é decorado, mais sei e domino o que narro. E não há hesitação
ou dúvida.

Falar sobre o nascer por si só é impactante. Algo que liga as pessoas, assim
como o morrer. Ouvir a história de um nascimento para muitxs desperta memórias
pessoais de família, de trajetória. Percebo cada vez mais que não há indiferença ou
falta de interesse no campo do nascer. E assim a roda posterior se abre em relatos,
choros, risadas, histórias tristes, chocantes, alegres, entusiasmadas. Tenho a tendên-
cia a falar muito. Dayana, em Barreirinhas, apontou minha dificuldade de escuta pro-
funda. De não-interferência.

Aqui ganho a chance de exercitar meu silêncio, sabendo que o que tinha que
dizer já disse durante a apresentação. E percebo a potência da linguagem poética
teatral e narrativa na abertura instantânea das relações de empatia entre pessoas que
não se conhecem. Algo mais-do-quê acontece ali, invisível, permeando os espaços
das falas e dos corpos. Mitoprofânica é um disparador, um detonador, um pavio para

203
alquimias coletivas. Cheguei ao objetivo maior.

17/01/2019 - quinta
Como eu e Dayana havíamos combinado, hoje foi dia de Primagesta. Voltar a
performar esta que foi minha primeira e despretensiosa criação atrelada à pesquisa
me dá um frio bom na barriga. Foi a que escolhi para ser a abertura da minha quali-
ficação. E as mudanças cruciais que fiz a transformaram de fato em uma experiência
coletiva e emocional, mais arriscada e imprevisível, e por isso mais saborosa. Nunca
sei o que esperar do público.

O espaço escolhido, o Laborarte, é um espaço cultural dentro do Centro His-


tórico que existe e resiste desde a década de 70 do século XX. Fica em um casarão
restaurado, com várias salas imensas, espaços de circulação e um teatro. Escolho
uma sala que pode ser completamente fechada, com 3 enormes janelas de madeira
e 3 portas. Chegamos 2 horas antes e o casarão está em plena atividade: aula de ca-
poeira para crianças e adolescentes, ao mesmo tempo que uma aula de zumba. Tudo
muito ruidoso e caótico. Penso que talvez não consigamos o silêncio que a apre-
sentação exige. Mas meus colegas, Dayane (que fará a personagem da Sacerdotisa/
Enfermeira, conduzindo e orientando o público) e Fernando (colega de mestrado na
UDESC, também maranhense) não parecem nada preocupados. Me calo e resolvo
confiar. Aquecimento, preparo e instruções. Com o fim das aulas ao redor, o barulho
agora é da bagunça e correria das crianças pelo casarão, que aguardam seus pais
virem busca-las. Fico nua, me lambuzo de óleo e começo o mergulho no estado de
semi-transe que o estar nua e vocalizar me traz. Dayane, já paramentada, desce para
recepcionar o público.

E este tempo de espera até que os primeiros sejam conduzidos parece inter-
minável. Dilatado. Tenho um medo momentâneo de perder a concentração e divagar
ou me distanciar da experiência. E isso se agrava um pouco ao perceber que Dayana
não seguiu minha 1ª instrução: conduzir o público de 3 em 3 pra dentro da sala, para
otimizar o tempo. Ela vai trazendo muito vagarosamente, 1 por 1, as 17 pessoas
presentes. E este lugar de espera silenciosa, e cega para o público, passa a ser meu
também. O que me obriga a começar a interação e o movimento antes do previsto.
O que me leva novamente ao mergulho no estado alterado de consciência. O que

204
me faz me conectar novamente com a performance, com meu corpo, com minha voz,
minhas emoções. Dayana não tem pressa nenhuma. E nem eu mais. Por enquanto.

Ao estar com todos, mais uma desobediência à instrução: ligar o celular na TV


Senado3 nesta 1ª parte da performance, e não quando estou performando o recém-
-nascido. Isto me causa um estremecimento momentâneo, pois não é mais possível
interagir diretamente com ela. Aceito a interferência inesperada. E um novo campo
de transversalidades se abre: algo extremamente verborrágico e agressivo, porém
devido ao volume baixo causa apenas uma espécie de zumbido irritante; e meus
sons em trabalho de parto. A contaminação do áudio do celular dialoga com as per-
turbações sonoras que presencio quando vou acompanhar gestantes como doula,
nos hospitais e maternidades: vozes distraídas e tagarelas da assistência, TV ligada,
áudios abertos dos celulares, entra-e-sai de enfermeirxs, residentes, obstetras, anes-
tesistas, pediatras... interferências que perturbam os trabalhos de parto.

Prossigo. No escuro, realmente não sei quem é quem e mal consigo distinguir
o gênero de quem toco. Sinto de imediato uma receptividade maior do que as outras
vezes e disposição em me acolher. A intensidade do som, ou da respiração, impacta
os toques, abre campos de relações, traz os participantes para o protagonismo. E
me permito prolongar mais os estados e o silêncio, o choro, os gemidos, o tempo de
permanência com cada um/cada uma.

Perco também alguns pudores e me permito tocar com outras partes do meu
corpo (que está nu e úmido de óleo e água) os participantes: cabeça, mãos, coxas,
peito, costas... sem intenções eróticas, mas com intenções de afeto.

Afasto-me para finalizar o trabalho de parto e chego ao fim em último grito.


Escolho um canto da sala para performar o recém-nascido. A Sacerdotisa/Enfermeira
quase já vem me vestir e eu intercedo veementemente pela única vez. Ela entende e
conduz o público a tirar as vendas e me acolher agora em outra persona. A primeira
pessoa que se aproxima vem com o objeto que para mim é o mais agressivo: uma
enorme faca de cozinha. Neste momento arrepio toda e sinto medo. Será que ela vai
usar a faca para me machucar? Não usa, brinca de “cortar o cordão”. Alívio. Perfor-

3
Desde a apresentação na Mostra Sem Censura a trilha incidental é uma audiência da TV Senado, escolhida na
hora, mas para ser acionada no momento em que estou como recém-nascida.

205
mo este bebê e percebo que o tempo se esgarça e as pessoas tentam se aproximar
tímidas, me tocam com suavidade, mas não sabem o que fazer com os objetos, ou
comigo.

Até aqui, nada muito diferente das apresentações anteriores. Dayana está
afastada mas no meu campo de visão. Olho incessantemente para ela, para que
venha logo me “salvar” daquilo que considero um impasse. Ela me olha, mas não se
mexe. Grito por dentro “Dayana, por favor, vem logo!!”. Mais uma desobediência às
instruções.

Então o inusitado começa a acontecer e mais uma vez a desobediência de


Dayana mostra o caminho certo: saber esperar e dar permissão ao novo. As pessoas
começam a me acolher de fato, já que não posso sair daquele lugar de recém-nas-
cida. Uma mulher vem com o balde de água e me banha, com delicadeza. O calor
intenso me ajuda a receber esse banho com prazer e surpresa. Começam a dialogar
baixinho como cuidar de mim. Duas pessoas permanecem o tempo todo me ilumi-
nando com as lanternas. Três mulheres então me pegam no colo e me tiram da poça
de água, levando-me para o centro da cena. Um dos homens coloca minha cabeça
no colo e me faz cafuné. Outra mulher pega uma echarpe e me esfrega. E todos
começam juntos a cantar uma canção de ninar. Minha reação natural é me acalmar
até quase adormecer. Só então Dayane chega junto, com o vestido, e sem precisar
pedir ajuda, recebe o auxílio de mais 3 pessoas para me vestirem, todos sussurrando
e cantando baixinho.

Estando pronta, eu me levanto, Dayana está muito emocionada. Eu também,


Meu olhar em silêncio para cada participantes ativo é de agradecimento. E saio de
cena chorando muito.

Foi a primeira vez que tal grau de relação se deu; que o bebê foi completa-
mente acolhido. O debate posterior deu de maneira muito aberta e as percepções e
apreensões eram surpreendentes. Sentiram falta da mãe ao tirarem as vendas. Des-
creveram suas próprias narrativas imagéticas do trabalho de parto, transformando-o
em múltiplos partos. Doeram-se por mim. Olhavam o recém-nascido como um “ser
nascido”, não necessariamente uma pessoa. Os homens relataram a impossibilidade
de ter compreensão total do processo, mas sentiram-se impactados com a intensi-

206
dade. Algumas mulheres relataram tanto empatia quanto recusa, por considerarem
sofrido demais. E para estas, acolher o recém-nascido foi um bálsamo. Os objetos
dentro da mala causavam impasses e sentimentos diversos: curiosidade, repulsa, hor-
ror, descaso, agressão. Ao passo que os objetos utilizados estavam todos fora da
mala: o balde com água, a echarpe, o colo...

Ao longo de todo o processo, da entrada do público ao final do debate, sen-


ti-me em plenitude. As portas e janelas abertas possibilitaram uma completude in-
tegral dos participantes, tornando-os co-autores ativos da dramaturgia cênica. As
desobediências de Dayana mostraram-se certeiras e abriram novas possibilidades,
que mesmo com relutância inicial abracei e incorporei.

Foi uma experiência poderosa para todxs. E não me furtei a abrir a todxs estas
sensações que aqui descrevo. Um partaço!

21/01/2019 – segunda
Última apresentação da jornada Maranhão – Mitoprofânica – CRAS Liberdade

Desta provável, possível apresentação, até a véspera eu não sabia de nada.


Onde, quando, como iria ser. Fiquei 2 dias meio isolada de contatos em Alcântara4,
me esvaziando e desacelerando, e quando retornei já caí direto sem escalas nos
festejos da Queima de Palhinha de tia Da Guia5, que é o ritual de desmontagem do
presépio, até de madrugada. Portanto, não havia nem possibilidade de eu sentar pra
fazer o material de divulgação. Acreditei inclusive que não tinha sido possível orga-
nizar esta apresentação. Bem tarde, no final do festejo, recebo de Dayana a confir-
mação: seria no CRAS do bairro Liberdade, um dos 4 bairros que fazem parte do 1º
quilombo urbano do MA: Liberdade, Fé em Deus, Camboa e Diamante. Um território
imenso, ao lado do rio, em processo de urbanização, com ainda alguns barracos de
palafita sobre o mangue. Ao lado, um rio suntuoso.

4
Cidade histórica e turística a 1 hora de barco de São Luís, onde também está uma base militar estratégica do
exército.
5
Tia Da Guia, ou Maria da Guia, é tia de meu anfitrião Vinicius Vianna, também colega de mestrado da UDESC.
Tradicionalmente, ela faz este festejo religioso, no bairro Fé em Deus, e abre a casa para as rezas, cantos e cele-
bração para mais de 100 pessoas, oferecendo comida e bebida a todas e todos. Ficamos muito próximas. Da Guia
é professora da pós-gradução da UFMA na cadeira de Estudos Africanos.

207
A pessoa responsável por produzir e agendar essa apresentação, Maykon Lo-
pes, é presidente do CISAF/Centro de Integração Sócio-Cultural Aprendiz do Futuro.
Líder comunitário muito articulado e combativo, uma figura interessantíssima, topou
comigo e Dayana no meio do Centro Histórico, na quarta-feira, logo após a apresen-
tação do CRESOL. Em 5 minutos estava articulada minha apresentação.

E agora eu a via se materializar como a derradeira desta temporada mara-


nhense. Amanheci já no computador, a toque de caixa, fazendo o folder eletrônico
pra ajudar a divulgação, que já estava em andamento informalmente. Como minha
volta do MA estava marcada para o dia seguinte, de manhã, aproveitei pra arrumar
mala e tralhas, junto com a produção dos objetos e figurinos da performance. Uma
tremenda confusão: roupas e objetos espalhados, coisas para deixar pra trás, pro-
blema de espaço, fui ficando ansiosa e um pouco irritada, acreditando que teria sido
melhor não ter marcado esta última pra dar tempo de curtir este último dia. Mas não
havia mais tempo pra desistências, então fui almoçar fora, cedo, e pegar um Uber. O
lugar era meio complicado e longe das rotas de ônibus. São Luís não é muito fácil de
se locomover sozinha, vindo de fora. Resolvi desta vez não arriscar.

Ao chegar no CRAS (recém-inaugurado), o atendimento à população aconte-


cia normalmente. Plena segunda-feira, eu era olhada ali apenas como mais uma. E
era. Recebo uma mensagem do Maykon avisando que iria atrasar e que não o espe-
rasse. Fiquei apreensiva novamente. Ali no CRAS as atendentes não sabiam de nada,
a diretora (que era quem sabia e também a responsável pela divulgação) não estava
e provavelmente não voltaria, Maykon também não estaria... Resolvi baixar o fogo e
confiar que tudo iria dar certo. Conseguiram falar com a diretora, que confirmou mi-
nha presença e a apresentação, e mostram uma sala de reuniões, pequena. Mas com
capacidade para uma roda de 18 pessoas. Sala acanhada, limpa, cadeiras de plástico.
Pensei, ok, é isso mesmo que você precisa, fazer em qualquer, QUALQUER lugar que
fosse possível reunir pessoas em roda.

Dayana chega e, com a efusão habitual, percebendo que já estou adiantada


nos preparativos, começa a convocar as pessoas. Consegue colocar todos os funcio-
nários e funcionárias na roda, cidadãos em atendimento, desavisados e desavisadas
de última hora6 e de repente estamos com roda lotada novamente, gente em pé por
trás.
6
Da Guia, Julia e as filhas (lá de Quebra Pote) aparecem também. Quebra Pote foi um dos primeiros bairros rurais
que visitei em São Luís, para conhecer algumas parteiras. Julia foi nossa anfitriã por lá. 208
Percebo o quanto fez bem à performance a proposta de trazer mais para o
corpo a narrativa. Oralidade e Corporeidade. A proximidade grande com o público,
agora mais reduzido e semelhante ao de Barreirinhas, cria cumplicidade e empa-
tia. Há mais homens desta vez, que se portam de maneira mais retraída, um pouco
constrangida até, mas empática também. Bem no final da apresentação, Maykon
chega de mansinho e assiste da porta. Está visivelmente emocionado. E entra para a
roda para participar da conversa. Percebo entre as funcionárias do CRAS uma lucidez
com respeito às distopias do atendimento obstétrico do MA. Fazem uma correlação
muito contundente com a discriminação por classe social e também racial. Há um
viés preconceituoso e estereotipado no modo de tratar as gestantes no sistema de
saúde, aqui fundamentalmente o público. Novamente deparo-me com relatos de
pessoas que nasceram com parteiras, por medo dos hospitais. Ou por hábito mesmo:
em São Luís há muita gente que veio do interior, onde a cultura da parteira ainda é
forte. Maykon relata a experiência triste do nascimento de sua filha, que teve parada
respiratória durante o parto por negligência da equipe e falta de atenção adequada.
Foram largados em T.P. por horas, sem assistência. A menina nasceu com problema
e tem um leve retardo mental. Xs participantes se emocionam com suas próprias his-
tórias. E eu viro coadjuvante mais uma vez.

Sinto uma sensação boa de dever cumprido e uma rasteira positiva na minha
desconfiança. Dayana está muito feliz. Foi uma grande parceira!

Ganho de presente/cachê um passeio educativo e instigante pelo bairro com


o Maykon. Tenho um tempinho de 45 minutos ainda antes de visitar meu mano Vini-
cius no hospital7, então ele faz um itinerário bem interessante por uma avenida que
beira todos os bairros deste importante quilombo urbano. Área de muita pobreza,
considerada pejorativamente pelos moradores da cidade como perigosa, é um caldo
interessantíssimo de experiências tradicionais e contemporâneas. Há várias Casas de
Mina8 no bairro, a escola municipal é no antigo e centenário matadouro da cidade
(um prédio lindo), vemos os moleques nadando no rio e pescadores idosos de bar-
co pescado próximo ao mangue. Há blocos de carnaval, casas populares, palafitas,
trapiches, praças, um mundo muito rico e diversificado. A esmagadora maioria da

7
Meu anfitrião teve um problema de saúde agudo e precisou ficar internado mais de uma semana.
8
Casa de Mina é a expressão religiosa afro-brasileira típica e exclusiva do Maranhão. Diferentemente da maioria
das casas de Umbanda e Candomblé pelo Brasil, que têm origem yorubá, a Casa de Mina descende dos cultos
aos voduns do Benin, no noroeste do continente africano. O outro tronco do Benin na América é o vodu em Cuba.

209
população é negra, como meu amigo Maykon, que me leva pra tomar água e limpar
minha sandália do barro na casa dela e me encaminha gentilmente para o ponto do
Uber.

Grata pela acolhida. Grata pela abertura. Grata por tantos aprendizados. Ma-
ranhão conquistou um espaço importante dos meus afetos.

210
APÊNDICE IV
Artigo publicado na
revista eletrônica
Interfaces Brasil Canadá

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Acesso eletrônico:
https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/interfaces/article/view/15822

Profanar o sagrado, sacralizar o profano: reflexões poéticas sobre práticas


de performance em contextos específicos
37

Profanar o sagrado, sacralizar o profano: reflexões poéticas sobre


práticas de performance em contextos específicos

Desecrate the sacred, sacralize the profane: poetic reflections on


performance practices in specific contexts

Daniela Carvalhaes Carmona¹


Maria Brígida de Miranda²

Submetido em 6 de abril e aprovado em 14 de maio de 2019.

Resumo: No presente relato apresento reflexões sobre uma série de apresentações da


performance Mitoprofânica, um solo criado dentro do projeto Performances do Parto,
uma investigação cênica poética a partir do universo do parto como parte de um universo
maior de práticas, a maternidade. A encenação foi criada para ser apresentada em eventos
e coletivos que lidam com temáticas do nascimento no Brasil; tece uma trama dupla com
um dos mitos de Deméter - deusa grega que sintetiza aspectos de poder do feminino - e
a narrativa de um parto real, para abordar o assunto da violência obstétrica. A partir dos
desdobramentos dialógicos dos públicos participantes nas referidas apresentações, busco
situar quais caminhos esta encenação pode percorrer para ser utilizada como ferramenta
poética detonadora de diálogos, novas narrativas e reflexões a respeito do atendimento às
gestantes e mães no sistema de saúde brasileiro.
Palavras-chave: Performance. Mitologias do feminino. Narrativas de parto. Violência
obstétrica.
Abstract: In the present paper, I introduce reflections about a series of sessions of
the Mitoprofânica performance, a solo created within the Performances do Parto
(Performances of Childbirth) Project, which is a scenic poetic investigation from
the universe of childbirth as part of a larger universe of practices, the maternal. The
performance was created to be presented at events and collectives that deal with birth
issues in Brazil; weaves a double plot with one of the myths of Demeter - a Greek goddess
who synthesizes aspects of feminine power - and the narrative of a real birth, to address
the subject of obstetric violence. Based on the dialogical unfolding of the participants in
these presentations, I seek to locate which paths this performance can take to be used as
a poetic tool to arouse dialogues, new narratives and reflections on the care of pregnant
women and mothers in the Brazilian health system.
Keywords: Performance. Mythologies of the feminine. Childbirth narratives. Obstetric
violence.

Interfaces Brasil/Canadá. Florianópolis/Pelotas/São Paulo, v. 19, n. 1, 2019, p. 37-53.

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