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liberdade. Ela vive na terra verde com sua mãe, Deméter, crescendo sob os
olhos sempre vigilantes dos deuses e deusas no Monte Olimpo.
Mas quando Perséfone conhece a enigmática Hades, ela experimenta
algo novo: escolha. Zeus chama Hades de ‘senhor’ dos mortos como uma
piada. Na verdade, Hades é a deusa do submundo, e nenhum amigo de Zeus.
Ela oferece santuário a Perséfone em sua terra dos mortos, para que a jovem
deusa possa escapar de seu destino olímpico.
Mas Perséfone encontra mais do que liberdade no submundo. Ela
encontra o amor e a si mesma.
Eu não sou filha da minha mãe.
Perdi minha herança, meu direito de primogenitura. Não tenho o
privilégio da verdade. As histórias contadas em fogueiras, o mito do meu
sequestro e do meu estupro, são tudo o que resta de mim. Para sempre serei
conhecida como a garota que foi roubada para ser a esposa de Hades, senhor
de todos os mortos. E nada disso é verdade, ou está tão fragmentado que a
verdade nada mais é do que uma sombra, malformada. As histórias estão
erradas. Não sou quem dizem que sou.
Eu sou Perséfone, e minha história deve começar com a verdade. Aqui
está, ou o mais próximo que posso contar.
—Oh, Deméter. — Eles sussurravam, jogando flores em sua estátua nos
templos e bosques sagrados, ungindo sua amada testa com mel e leite, se
esticando em seus pés de mármore na agonia de adoração.
Na Grécia de muito tempo atrás, os deuses surgiam e caíam em destaque
de acordo com os caprichos do povo. Héstia era amada, depois Hermes, depois
Ares e o próximo deus ou deusa em uma longa história de inconstância
mortal. Nunca se manteve o pico da popularidade por muito tempo, mas
minha mãe não se preocupava. Ela era adorada. Para ser justa, ela amava as
pessoas tanto quanto elas a amavam.
Ela me amava acima de tudo.
—Você será a rainha de todos os deuses. — Ela sussurrava em meu
ouvido enquanto descansávamos sob seu caramanchão verde
perfumado. Ouvíamos o murmúrio de orações mortais pronunciadas através
das flores que desabrochavam nas videiras. Ela simplesmente batia palmas e,
juntas, ríamos enquanto o trigo amadurecia e as uvas brotavam ao longo das
fileiras compridas e baixas do caramanchão. Tudo o que minha mãe tocava
ficava dourado, ganhava vida e eu estava maravilhada com ela.
—Você será rainha. — Ela disse, repetidamente, e eu quase acreditei, mas
eu não queria. Cada vez que ela dizia essas palavras, meu coração doía e eu
mudava de assunto, mostrava a ela uma colmeia de abelhas particularmente
gordas, ou o forro de um ninho de gaivota, aperfeiçoado por suas penas
prateadas. Seu rosto se fechava e ela me fazia dizer também que eu seria a
rainha de todos os deuses, superando de longe meus concorrentes em beleza,
influência e charme. Eu era uma nova evolução, parte de uma geração de
jovens deuses e deusas criados não de espuma ou outros meios misteriosos,
mas pelo poder de suas mães imortais. A filha de Hera era Hebe, a filha de
Afrodite era Harmonia e a filha de Deméter era
Perséfone. Perséfone. Eu. Repetíamos a ladainha enquanto ela penteava e
passava óleo no meu cabelo: era nas minhas estrelas que eu seria maior do que
todas as outras. E então, é claro, Deméter também seria melhor.
Eu temia isso com todo meu coração.
Eu não queria ser maior do que as outras deusas - principalmente queria
ser deixada em paz. Eu era uma criança quieta. Eu vagava pela floresta com as
ninfas de minha mãe. Eu poderia brincar com os filhotes de lobos ou tigres,
poderia subir nas árvores mais altas, poderia comer qualquer fruta venenosa
que tocasse e nada jamais me faria mal. Nisso, no início, eu era filha de minha
mãe, e a terra me embalava como sua própria filha.
Cresci devagar, selvagem e alta, meu reflexo nas margens do rio era o de
uma linda criatura beijada pelo sol. Afinal, eu era descendente de Deméter,
uma deusa com perfeição na carne. Eu vivia no verde indomado, deitada por
horas sob os raios de sol ou brincando com coelhos nos prados. Esses foram
meus dias pastorais, quando eu era livre e ainda não era uma mulher. Minha
vida era simples e idílica, embora surpreendentemente vazia, antes.
Mesmo agora, às vezes, sonho com ela.
Seu nome era Charis, e ela era uma das ninfas da floresta de minha
mãe. Na maior parte, as ninfas eram criaturas gentis; elas frequentavam os
festivais de Pan, procuravam outras criaturas terrestres por prazer. Elas
sempre eram felizes nos jardins perfeitos de minha mãe e entre as árvores, o
que era conhecido, então, como a Floresta dos Imortais.
Charis não era como elas. Ela era uma ninfa, sim, mas carregava o
profundo arrependimento mais comum aos mortais. Ela me fascinou
infinitamente. —Porque você está tão triste? — Eu perguntei a ela, mais e mais,
mas Charis não disse nada, tecia flores em minha crina longa e
emaranhada. Seus dedos eram gentis, seus olhos se encheram de lágrimas.
Ela nunca falou com ninguém.
Era perto do aniversário do meu nascimento. A maioria dos deuses não
contava seus anos - de que adiantaria contar para sempre? -, mas minha mãe
zelosamente acompanhava os meus. Logo, seria a hora de minha introdução
ao Olimpo, hora de eu conhecer todos os deuses, particularmente as deusas
com as quais sempre fui comparada. Eu nunca havia saído da floresta, minha
casa, e a ideia de deixar aquele amado santuário despertou em mim uma
profunda ansiedade.
Mas tentei não pensar nisso. Fiz coroas de flores e o sol nasceu e se pôs,
marcando outro dia mais próximo do temido início do meu futuro. Os
momentos passaram rápido demais, agora que eram mais preciosos, e faltavam
três meses para minha viagem ao Olimpo, quando tudo mudaria.
As ninfas dedilhavam suas liras nas bordas de piscinas de espelhos,
conversando sobre heróis e fofocas do Olimpo. Sentei-me à beira da água e do
mundo delas, observando as nuvens flutuando sobre todos nós. Charis estava
ao meu lado e não trocamos palavras; sua presença era companhia
suficiente. O dia estava novo e quente - os dias sempre foram quentes - e o ar
cheirava a brotos e pêssegos maduros.
Charis me pegou pela mão e me levou a uma árvore.
Eu não sabia o que era amor. Eu tinha ouvido as músicas, tinha visto as
ninfas ficarem obcecadas por sátiros e mortais tolos (tolos o suficiente para
tentar a ira dos deuses se aventurando na Floresta dos Imortais) e testemunhei
desgosto quando os amantes perdiam o interesse ou, pior, se transformavam
em árvores ou constelações porque provocavam a ira de um deus ou outro. Se
isso era amor, eu não queria tomar parte nisso. Parecia tão inconstante,
destrutivo, sem sentido.
Isso foi antes de ela me beijar, é claro.
—Estou com medo. — Eu disse. Estávamos olhando o céu juntas,
sentadas nos braços do grande carvalho. Eu estava enrolada ao lado do tronco,
e ela estava mais longe ao longo do galho mais baixo, perto o suficiente para
que eu sentisse seu calor, cheirasse seu cheiro verde musgoso. Meu estômago
estava vibrando, embora eu não entendesse por que - nervosismo,
talvez. Pavor com a viagem ao Olimpo. Os dias estavam passando e eu sentia
que estava prestes a perder tudo o que já havia conhecido.
—Receosa? — Ela me perguntou, proferindo a primeira palavra que eu a
ouvi falar. Meus olhos se arregalaram quando ela se aproximou, balançando a
cabeça, as lágrimas sempre presentes sob seus cílios não derramadas. —Você
não deve temer, filha de Deméter. Você não tem nada a temer.
—Charis, — eu sussurrei. —Sua voz...— Era o som de pedras raspando
umas nas outras, áspera, profunda, o rosnado de um urso.
—Fui amaldiçoada por minhas indiscrições do passado —, ela sorriu
para mim com tristeza. —Achei que, se você ouvisse minha voz, encontraria
uma companheira melhor.
Olhamos uma para a outra por um longo momento, sentindo uma fúria
em mim - dor por ela ter escondido seu segredo de mim por tanto tempo,
desconfiada, supondo que eu iria, que poderia, jogá-la fora. Eu não sabia o que
responder, mas forcei um sussurro: —Você não é um brinquedo para se
descartar. Eu nunca faria isso com você.
—Outros sim. — E suas lágrimas começaram a cair. Elas riscavam seu
rosto, linhas prateadas como as caudas de cometas. Toquei-a, exatamente
como havíamos feito cem, mil vezes antes: um dedo na bochecha, uma coisa
confortável e reconfortante. Ela ficou quieta, de olhos fechados, e permitiu-me
enxugar as lágrimas e, quando terminei, tão simples e suave como uma oração,
envolveu minha cintura com os braços, puxou-me para perto dela, para que
pudesse me beijar.
Eu tinha visto ninfas fazerem isso entre si e peguei um herói e uma das
garotas da árvore se encontrando na cerca viva. Eu sabia o que era um beijo,
mas não para que servia.
Agora, havia suavidade contra meus lábios. No meu nariz, seu cheiro de
coisas verdes selvagens, folhas e grama. E quando ela me puxou para mais
perto, me pressionou com força contra seu peito, senti um fogo pegar dentro
de mim. Estava tão quente, esse novo batimento cardíaco que queimava meu
corpo, minha pele, descia até meus dedos das mãos e dos pés e subia
novamente, e ela tinha um gosto quente e bom. Eu estava bebendo dela, e ela
me beijou mais profundamente, e havia muita emoção em mim, em cada parte
de mim, uma alegria pura, desenfreada e apaixonada.
Isso, então - isso era amor. Eu finalmente entendi.
Nós nos encontramos naquela noite, sob a lua prateada brilhante, a lua
crescente de Artemis pairando baixa no céu oriental. Nós também nos
encontramos na cerca viva de sarça, e lá o luar modelou as linhas e curvas de
seu corpo.
—Você é tão linda. — Disse ela, movendo os dedos sobre a minha pele
até que formigou, depois doeu. Ela afastou o linho das minhas pernas, meus
quadris, enquanto nos deitávamos lado a lado e murmurávamos juntas. Em
seus braços, senti coisas que nunca havia sentido, e ela tocou aqueles lugares
que eu ainda não havia entendido. Talvez eu fosse ingênua, quase uma mulher
antes de vir a saber tudo que podia saber sobre mim mesma, sobre o consolo
que poderia encontrar no abraço de outra pessoa - mas não me
arrependo. Naquela noite, sob as estrelas, sob ela, eu conheci o amor. Tudo se
resumia a isso: esse momento, esse toque, esse beijo. Foi fácil e perfeito, e eu
nunca esqueceria em toda a minha imortalidade. Eu amava Charis naquela
cerca viva, sob aquela lua, com tudo o que eu era.
—Nós vamos embora —, eu disse a ela mais tarde, quando ficamos
deitadas juntos como uma videira. Ela acariciou minha bochecha com o nariz
e me beijou suavemente, e eu senti como se soubesse de tudo, que poderia fugir
do meu destino vil e ser feliz: verdadeiramente, para sempre feliz. —Vamos
embora antes que minha mãe me leve ao Olimpo. — Eu sussurrei, e ela
concordou, e foi isso. O plano foi feito e meu coração cantou. Nós duas
seríamos livres.
A cada dia, nós nos reuníamos, percorríamos novos caminhos pela
floresta juntas, e todas as noites eu deixava o caramanchão de minha mãe para
ficar com Charis sob as estrelas. Os dias se passaram enquanto formávamos
nossos planos. Um mês antes do Olimpo, na noite de lua cheia, partiríamos em
um pequeno coráculo da formação das ninfas. Desceríamos rio abaixo e
sairíamos do jardim abençoado de minha mãe, e encontraríamos nosso
caminho para as cavernas nas montanhas do norte. Juntas, lá, viveríamos e
amaríamos.
Naquelas tardes douradas preguiçosas, com a juba negra de Charis
apoiada no meu colo, ouvindo seu batimento cardíaco, enrolando meus dedos
com os dela, o arranjo parecia perfeito - perfeito, como sua pele e seu cheiro e
sua risada. Não me preocupei com o pequeno detalhe de que cada lugar nesta
terra pertencia à minha mãe, que não havia, na realidade, nenhum lugar onde
pudéssemos nos esconder onde Deméter não nos encontrasse e me roubasse
de volta. Não pensei em comida - os deuses não precisam comer, mas as ninfas
precisam - nem em abrigo. Charis e eu acreditávamos que o mundo proveria
para nós, como sempre fez, aqui na Floresta dos Imortais - aqui, onde eu era
uma deusa, e todas as criaturas e vida verde deveriam fazer uma reverência
para mim. Eu não acreditava que jamais saberia nada menos do que aquele
doce privilégio em que nasci.
A última manhã foi como qualquer outra. Levantei-me e cumprimentei
o sol, sentei-me impaciente enquanto minha mãe penteava meus cachos e me
fazia recitar suas palavras favoritas: —Serei a maior de todas os deusas, maior
que Hebe e Harmonia. Eu serei a rainha do Olimpo. — Murmurei sem
entusiasmo enquanto ela trançava videiras no meu cabelo, espalhava minha
pele com néctar e óleos de flores. Eu evitei seus abraços, beijei sua bochecha e
saí para a floresta para encontrar minha amada.
Tudo estava dourado. Sempre estava. Os pássaros cantavam e os animais
deitavam, refrescados pelas nascentes e lagos, enquanto ninfas cantavam
canções de amor eterno e alimentavam umas às outras com uvas de dedos
roxos. —Você viu Charis? — Eu perguntei quando eu passei, e elas disseram
que não, então eu corri, mais fundo na floresta.
Não era típico de Charis estar ausente de nosso ponto de encontro
favorito, os braços daquele velho carvalho onde tudo isso, onde nós, tínhamos
começado. Mas ela não estava lá. Ela não estava na lagoa do espelho. Ela não
estava mais adiante no riacho e não estava no bosque de salgueiros, outro de
nossos locais favoritos. Meu coração trovejou no meu peito enquanto eu fazia
círculos cada vez maiores ao redor da Floresta dos Imortais, chamando seu
nome. Eu estava no centro de um prado, as mãos cerradas em punhos, o medo
- pela primeira vez - alojando-se no fundo da minha barriga, borboletas
desconhecidas girando e girando e batendo contra meus ossos. Charis não
estava em lugar nenhum.
Eu estava voltando para o caramanchão da minha mãe, com o coração
doendo, quando ouvi. Se eu não estivesse no limite, cada vez que respirasse,
nunca teria ouvido um som tão pequeno e suave. Fiquei muito quieta e escutei
com mais atenção - lá estava ele de novo. Um gemido. Estava perto e, embora
meu coração pulasse, fiquei parada e escutei até ouvir e posicionar. Pronto,
pronto... Era lá.
Eu ainda não tinha procurado por Charis entre as sarças, e o som vinha
de além da cerca viva. Deslizei para mais perto e espiei por entre espinhos e
flores vermelhas, esperando ver uma ninfa e um sátiro, esperando qualquer
outra coisa, qualquer coisa menos o que estava lá.
Charis estava deitada no chão, em nosso solo sagrado, estômago
pressionado contra a terra, boca enlaçada por trepadeiras que se enrolavam em
seu corpo, retorcendo-se e retorcendo-se, enquanto eu observava. Atrás dela,
acima dela, dentro dela, estava um homem - um homem dourado que brilhava
como um raio enquanto grunhia e empurrava. Repetidamente, ele
empurrava. Lágrimas caíram e as vinhas se apertaram, cortando tornozelos e
pulsos perfeitos. Minha Charis foi mantida em cativeiro enquanto fazia o que
queria com ela.
A raiva cresceu em mim antes que eu pudesse pensar ou entender o que
estava vendo, e eu estava gritando, gritando alto o suficiente, eu tinha certeza,
para ser ouvida no Olimpo, meio mundo de distância. Eu estava me movendo
através da cerca viva por um momento, preparada para arranhar e rasgar,
quando o homem se virou e olhou para mim, e eu caí de joelhos.
Ele estava sorrindo, os dentes de um branco deslumbrante em uma boca
maliciosa e gotejante, quando saiu dela, se levantou, cresceu. Ele era mais alto
do que as árvores mais altas da floresta de minha mãe, e então, com uma
grande risada, ele se fragmentou em mil raios de luz muito brilhantes - mil
vezes mais brilhantes que o próprio sol. Gritei, cobri meu rosto com as mãos e,
quando pude ver de novo, ele havia sumido.
Charis também.
Eu caí, estupefata. Onde ela estivera, onde aquela violenta blasfêmia
acontecera, havia uma pequena roseira. As rosas eram brancas, orvalhadas e,
enquanto eu observava, moviam-se com um vento imperceptível.
Eu tinha ouvido histórias das conquistas de Zeus. Ele voltaria para a
terra, luxurioso, precisando de algo que sua esposa, Hera, não poderia fornecer
- ou, talvez ela pudesse, e ela simplesmente o considerava desprezível. Ele
tinha o que queria com qualquer criatura que lhe apetecesse e, se elas não
fossem complacentes, ele as punia. Ele havia feito isso centenas de vezes, talvez
milhares. Eu conhecia essas histórias - as ninfas as sussurravam umas para as
outras - mas, vergonhosamente, elas nunca me preocuparam. Elas nunca se
aplicaram a mim. Mas agora, aqui - aqui estava um pesadelo ganhando vida. A
garota que eu amava foi estuprada diante dos meus olhos, e ela não existia
mais.
Naquele espaço de tempo simples e comum, eu havia perdido tudo.
Corri até o ar queimar meus pulmões como fogo, até chegar ao
caramanchão de minha mãe. —Perséfone, o que aconteceu? — Ela perguntou,
estendendo os braços para mim tão abertamente. Minha mãe, minha mãe que
poderia fazer crescer uma floresta a partir de uma semente, que poderia dar
vida a um mundo. Como eu desejava, esperava, que ela pudesse desfazer o
que já havia sido feito. Eu chorei e contei a história, e ela ouviu,
empalidecendo.
Quando terminei, ela me segurou perto e deu um tapinha no meu ombro
com força. —Perséfone... eu sinto muito. Sinto muito. Zeus - ele consegue o que
quer, e a pobre criatura não pode ser transformada de volta.
—Ela se foi? — Eu sussurrei. —Mas…
Durante toda a minha vida, acreditei que minha mãe poderia tornar o
impossível possível. Na minha imaginação de infância, ela podia cantar a lua,
mudar o padrão das estrelas, desfazer o mundo e construí-lo de novo, se
quisesse.
Deméter tirou a mão do meu ombro e se afastou.
—Não há nada que possamos fazer. — A resignação pesou em suas
palavras. Seu rosto estava inexpressivo, as mãos tremendo. —Por favor,
esqueça ela. Esqueça Charis. É o que ela teria desejado. Você não conhece Zeus
- você não sabe do que ele é capaz...
Havia lágrimas em seus olhos. Eu nunca tinha visto minha mãe
chorar. Ela estendeu a mão para mim, mas eu recuei de seu toque, recuando
uma vez, duas vezes. Minha mãe estava chorando. Era estranho,
assustador. Ela parecia uma estranha.
—Zeus fez isso, — eu cuspi, cravando minhas unhas nas palmas das
minhas mãos. Senti a raiva crescer e apertar dentro de mim, um nó invisível. —
Zeus…
Deméter abriu e fechou a boca. Seu rosto se enrugou. —Zeus consegue o
que quer. — Ela repetiu, estupidamente.
—Como você pode dizer aquilo? E se fosse eu? — Eu não conseguia
respirar, segurei meu peito como se meu coração estivesse caindo, caindo,
caindo sobre a grama esmeralda perfeita. —Você não estaria aí, você não diria
isso, você viria me pegar, você iria...
Ela estava olhando para o chão, e a compreensão repentina me
devorou. Parei de falar e pisquei para minha mãe.
—Você... Você viria me buscar, — eu sussurrei. —Não é? — As palavras
permaneceram entre nós por batimentos cardíacos, e então ela balançou a
cabeça, esfregou os olhos com dedos longos e trêmulos.
—Ele não faria nada parecido com uma de suas filhas —, disse ela. —Eu
não acho.
Houve um silêncio por muito tempo. O silêncio mais alto e mais
nítido. Minha mãe manteve os olhos fixos na parede de seu caramanchão e eu
senti mil coisas se moverem entre nós. Tantas palavras não ditas, espinhosas,
quebradas.
Eu era filha de Zeus.
—Você nunca me contou, — eu sussurrei. —Achei que você tivesse
acabado de me criar - como uma de suas árvores ou seus campos.
—Eu não sou tão poderosa. — Ela se preocupou com a ponta da roupa,
mexendo-a de um lado para o outro, olhando para o tecido e não para mim. —
Perséfone, — ela murmurou. —Sinto muito... Não há nada que possamos fazer.
—Zeus é meu pai, — eu disse, juntando as palavras rapidamente,
engolindo grandes pulmões de ar. —Se ele estivesse me estuprando, você não
viria em meu auxílio. Minha amada se foi agora, morta por Zeus, e você não
vai fazer nada para me ajudar.
—Isto é errado. Por favor... —Ela levantou a mão para me tocar, mas a
largou quando, novamente, eu recuei. Lágrimas escorreram por suas
bochechas em linhas brilhantes e silenciosas. —Ele pode ser tão cruel,
Perséfone. Você não sabe. Não posso fazer nada. Nada que alguém possa
fazer. Eu sinto muito. Por favor, acredite que eu sinto muito. — E então, minha
mãe, a deusa Deméter, estendeu as mãos para mim. Sua voz falhou quando ela
disse: —Perdoe-me, estou feliz por ter sido ela e não você.
O que eu poderia fazer? O que eu poderia dizer? Ela tinha falado a
verdade e não havia mais nada em nenhuma de nós. Toda a raiva, o ódio, a
dor profunda e duradoura se juntou do meu corpo e foi drenada para a
terra. Eu estava vazia.
Eu me virei e deixei o caramanchão de minha mãe. Ela tentou me dizer
algo, mas eu não ouvi, talvez não tenha ouvido, e comecei a correr quando
meus pés sentiram o chão da floresta sob eles. Corri de volta - de volta à cerca
viva de sarça. Ajoelhei-me ao lado da roseira e chorei até minhas lágrimas
correrem. As folhas das rosas esvoaçaram, embora ainda não houvesse vento,
e eu senti tudo o que eu estava se partindo em pedaços minúsculos. Eu tinha
perdido Charis e tinha perdido nosso lindo futuro.
Meu estômago se agitou enquanto eu cravei minhas unhas nas palmas
das minhas mãos novamente e novamente, sentindo a picada delas contra
minha pele dolorida. Não conseguia pensar em minha mãe, minha mãe com
lágrimas, olhos arregalados e pele pálida. Mas tudo que pude ver foi seu rosto,
sua boca formando a palavra mais odiada: ‘Zeus’.
Passei um dedo sobre as pétalas brancas de uma rosa, segurei-a até ficar
branca também, oca e sem forma, até me tornar um começo. Então, em branco,
eu me levantei e me virei, vendo, sem ver, as estrelas que haviam surgido, o
céu noturno que se arqueava sobre mim, apagando o dia.
No céu balançava a lua em forma de foice e uma miríade de
constelações. Minha mãe me disse uma vez que as estrelas são incontáveis, que
Zeus as criou infinitas - infinitas, como eu.
A dor estava lentamente sendo substituída por outra coisa em meu
coração, em meu corpo, que eu ainda não entendia e não entenderia - não por
um tempo ainda. Essa semente estava crescendo, enroscando-se em meu ser,
mudando os pedaços quebrados em alguma nova aparência do que já foi.
Zeus - meu pai - era o rei de todos os deuses e ele poderia fazer o que
quisesse.
E eu o recompensaria, algum dia, por tudo o que ele fez.
Eu, Perséfone, jurei.
Deixei Charis onde ela estava, rosas e folhas balançando sob a lua
sorridente. Logo, logo eu seria levada ao Olimpo, comparada pelos deuses aos
meus pares, expulsa da única casa que conheci a passar uma noite no mesmo
palácio brilhante que abrigava Zeus. Zeus, o deus alegre e dourado que
estuprava e destruía sem arrependimento.
O que eu faria quando o visse? O que eu diria? Ele me puniria pelas
verdades que poderiam sair da minha boca? Minha mãe parecia com tanto
medo.
Eu tinha que parar com isso.
Coloquei minha cabeça em minhas mãos, encostei-me no velho carvalho,
tentei acalmar as dores espalhadas dentro de mim.
Para quem uma deusa ora? Fiquei imóvel, minha cabeça girando em
círculos apertados. Não temos nada e ninguém a quem pedir ajuda, salve-
nos. Eu não acreditava em mim o suficiente.
As estrelas brilharam, silenciosas como sempre. Eu me dobrei e deitei na
terra negra, sentindo os lugares vazios e solitários em mim desmoronarem até
que nada restasse além de escuridão e o cheiro de rosas brancas que eu não
podia ver no escuro.
—Fale o menos necessário —, ela sussurrou em meu ouvido, a ansiedade
aguçando suas palavras. —Vai acabar antes que você perceba.
Mordi meu lábio, mas mantive minha cabeça erguida enquanto Deméter
pressionava sua mão contra minhas costas, me guiando em direção à
gigantesca boca dourada que nos engoliria no Olimpo. Eu inspirei e expirei e
desejei que minhas mãos parassem de tremer. Não olhei de volta para minha
mãe.
Um passo e depois outro, conforme nos aproximávamos da abertura do
reino de Zeus. Nenhum deus ou semideus ou ninfas ou sátiros permaneciam
ao redor dos portões - eles já estavam lá dentro, eu imaginei, bebendo ambrosia
e rindo ruidosamente de quaisquer truques grosseiros de festa que haviam
inventado. Esta era a noite que eu temi minha vida inteira. Essa era a noite em
que eu seria apresentada como uma deusa aos olímpicos.
Minha mãe me cutucando a cada passo do caminho, eu segui em frente.
Colunas se ergueram nas nuvens, para cima e para longe de nós. Não
havia teto dentro do Palácio do Olimpo, apenas um céu sem fim que mudava,
aos caprichos dos deuses, para noite, para dia, para eclipse, para cem milhões
de estrelas. Uma música de lira distante provocou meus ouvidos e risos, e
quando cruzamos o limiar do palácio, uma voz desencarnada proclamou tão
alto, e para meu horror: —A deusa Deméter, acompanhada por sua filha,
Perséfone!
Incontáveis pares de olhos - colocados como joias em rostos brilhantes e
perfeitos - fitaram minha mãe e eu.
Eu queria desaparecer, queria encolher e ficar menor do que uma gota,
queria me esconder nas profundezas da terra em ruínas. Naquele momento,
eu teria dado qualquer coisa, feito qualquer barganha, para ir embora daquele
lugar. Minha mãe fez uma pausa, acenou para alguém e tocou meu ombro
suavemente. —Coragem. — Ela sussurrou, e eu desci os luminosos degraus de
mármore com minha cabeça erguida, tentando não me importar com os
sussurros, tentando imaginar que eu estava - mais uma vez - em casa, na
Floresta dos Imortais. Que eu estava com Charis, e o raio que nos separou
nunca tinha me atingido.
—Deméter, ela é tão adorável quanto você nos disse. Mais adorável.
A deusa que se aproximou, rindo baixinho, deslumbrou meus olhos. Ela
era linda, mais bonita do que parecia possível ou real. Ela usava a longa túnica
branca da moda grega comum, mas era tecida de um material transparente,
diáfano e revelador. Rosas cor-de-rosa enredavam seu cabelo e seu sorriso era
tímido, contagiante. Eu inclinei minha cabeça em reverência. Embora eu nunca
a tivesse conhecido, eu reconheci Afrodite.
—Você é uma criatura tão bonita, — ela respirou, me abraçando
totalmente, dando um beijo na minha bochecha. Ela cheirava a rosas. —Você
tem os olhos de sua mãe.
Por cima do ombro dela, eu vi uma garota, uma garota como eu. Nova
neste lugar, este jogo. Ela era bonita, magra, olhos baixos, cabelo repleto de
flores rosa, igual ao de sua mãe.
—Perséfone, — minha mãe disse, embora a introdução fosse
desnecessária. — Esta é Afrodite e sua filha, Harmonia.
Sorri, me perguntando se deveria dizer algo, comecei a falar, mas
Harmonia não olhou para mim, não deu um passo à frente nem ofereceu a
mão. Ela permaneceu imóvel como uma estátua enquanto sua mãe
efervescente ria, passando a mão branca pelos cachos da filha.
—Ah, eu devo encontrar Ares, então vou deixar você para se entregar às
festividades. Divirta-se, Perséfone. Você nunca terá outra primeira vez.
— Afrodite piscou para mim, mas houve uma mudança amarga em seu
sorriso. Ela olhou ao redor, agarrando o braço de Harmonia, e teria seguido
em frente se não tivesse sido parada por uma figura tremeluzente.
—Afrodite, apresente-me ao seu companheira encantadora! — Sua voz
era suave e doce, mas havia uma tendência nela que eu não conseguia
identificar. Eu olhei para ele bem a tempo de ser beijada na boca.
—Oh! — Eu dei um passo para trás, passando minha mão sobre meus
lábios, mas ele estava rindo, Afrodite e minha mãe estavam rindo - Harmonia
estava muda, ainda - e eu senti a vergonha tomar conta do meu rosto na forma
de um rubor de donzela.
—Perséfone - conheça seu meio-irmão, Hermes. — Disse minha mãe,
escondendo sua diversão com a mão.
Seu cabelo era preto e encaracolado, e suas sandálias eram aladas. —
Você é tão adorável quanto sua mãe nos informou, — ele disse, zombando de
Afrodite, e se curvou profundamente, agarrando minha mão para beijá-la. —E
eu sou o deus dos ladrões e da bajulação e de tudo o que há de errado no
mundo. É sempre tão divino conhecê-la!
Nunca conheci ninguém que falasse tão rápido. Suas palavras se
misturavam, assim como ele, entrando e saindo de vista, um contorno
nebuloso tremendo como uma folha ao vento, vibrando.
—Eu tenho outro nome, — ele sussurrou em meu ouvido, então disparou
atrás de mim. No canto do meu olho apareceu uma rosa branca, oferecida a
mim por sua mão brilhante. —É Mercúrio. — Ele riu, e eu o afastei, dei um
passo em direção à longa fila de mesas que gemiam sob travessas de uvas e
bolos, frutas deliciosas derramando-se de taças de ouro.
Uma rosa branca. Charis se tornou uma rosa branca. Charis que estava
perdida para mim.
Inclinei-me na mesa e tomei um gole de uma das taças para firmar minha
cabeça. Eu nunca tinha bebido ambrosia antes - tinha gosto de uvas e frutas
raras, esmagadas e aperfeiçoadas nas mentes dos deuses. Era uma bênção, mas
não era real - eles a criaram com seus pensamentos, seus desejos. Eu encarei a
taça girando e percebi que seria considerada rude por Afrodite, pela estátua
Harmonia. Eu não tinha me desculpado. Eu tinha sido impensado. Eu tinha
me comportado como se nada disso importasse para mim - e não importava.
Ainda assim, olhei para cima e tentei encontrá-las, mas elas haviam
desaparecido no mar de imortais reunidos.
Suspirei e levantei a taça aos lábios novamente, mas congelei no lugar
antes que a bebida tocasse minha língua. Pronto, aquele homem - por trás, e
apenas por um segundo, eu o confundi com Zeus. Sangue quente trovejou por
mim. Não era ele; talvez tenha sido Ares ou Poseidon. Mas, ainda assim, Zeus
estava aqui. Este era o seu palácio e ele governava tudo o que
inspecionava. Todos nós. Em algum lugar deste grande salão, ele respirava,
falava, ria, observava.
—Peço desculpas se ofendi. — Hermes apareceu tão de repente que eu
pulei, derramei ambrosia na frente do meu vestido. Ele acenou com a mão
sobre o tecido, e o líquido gotejou para fora dele, rastejando sobre meus seios
e descendo pelo meu braço para se acomodar na taça mais uma vez.
Eu o encarei e ele se curvou novamente. —Eu não quero assustar.
Eu não sabia o que dizer, então não disse nada. Ele estendeu a mão para
mim, mas eu recusei, segurando minha taça com força. Hermes balançou a
cabeça e franziu a testa.
—Eu ouvi o que aconteceu com Charis. — Mais uma vez, ele sussurrou
em meu ouvido, lábios tão próximos que roçaram minha pele ali.
Eu enrijeci. Ele havia falado o nome dela, o nome da minha
amada. Ninguém tinha falado em voz alta para mim desde que tinha
acontecido, e eu mesma murmurei apenas na escuridão da noite. Gostava de
sussurrar o nome dela nas águas moventes do riacho; as ondulações captavam
e carregavam os sons privados de minha dor.
—O que você sabe sobre Charis? — Eu respirei. —
Como você poderia saber?
Ele pegou a taça da minha mão trêmula e a colocou sobre a mesa. —Eu
sei que Zeus pega o que quer, sempre. Eu sei o que ele fez com ela, que ele
partiu seu coração. — Seus olhos estavam baixos, e quando ele os ergueu, eles
queimavam com uma luz forte. —Eu, também, gritei contra sua violência,
Perséfone. Você não está sozinha. — Sua expressão se suavizou. —Em mim,
você tem um amigo.
—Um amigo?
—Sim. — Ele ofereceu sua mão mais uma vez, e eu aceitei, timidamente
colocando meus dedos em sua palma trêmula. Ele agarrou com força e quase
me arrastou para além de duas colunas que pastavam no céu. Ficamos em uma
sacada estreita e, bem abaixo, a terra girava, verde-azulada e brilhante. Era tão
linda, a fusão de cores vivas. Agora, neste momento, muitos mortais estavam
vivendo suas vidas naquele orbe giratório. Tanta dor de cabeça, amor,
sofrimento e vida. Eu me inclinei no parapeito da varanda e olhei para baixo,
pasma.
—Zeus tirou muito de mim. Aprendi a conviver com as perdas. Uma
existência digna ainda é possível. — Hermes se virou para mim, os cotovelos
na grade, os olhos procurando meu rosto. —Mas você não precisa deixar
que eles — Ele lançou um olhar azedo por cima do ombro. —ditem como as
coisas devem ser, Perséfone.
Essas palavras - era como se ele conhecesse meu coração. Eu abri minha
boca e fechei, lágrimas transbordando nos cantos dos meus olhos. Eu não
poderia chorar de novo, não aqui, não no Olimpo. —Meu caminho está
definido, — eu sussurrei, entrelaçando meus dedos, como o padrão da minha
vida. —Eu sou filha de Zeus, e sou, portanto, uma olímpica, com tudo o que
isso acarreta. — Eu balancei minha cabeça desamparadamente. —Eu perdi
meu amor. Eu me sinto tão vazia. Eu não sei o que fazer.
Por um longo momento, pensei que ele estava rindo, e ele estava, mas
sua boca estava aberta como um animal faminto de água, e ele se aproximou,
os lábios se curvando enquanto dizia uma única palavra, o desafio, a chave: —
Rebelde.
Rebelde.
Como se pudesse, como se fosse possível.
—É. — Seus olhos estavam em chamas, brilhando intensamente e, pela
primeira vez em um mês, senti meu coração mudar para algo diferente de
tristeza. Um lampejo de esperança brilhou de dentro de mim, sob os escombros
do meu coração partido.
—Você pode ouvir o que estou pensando? — Eu sussurrei, e ele me
surpreendeu acenando com a cabeça.
—Não tudo. Principalmente, eu sinto sentimentos. É um presente de
sorte de se ter. — Ele cintilou momentaneamente, sumiu e então reapareceu
com um cacho de uvas na mão. Ele começou a arrancá-las, uma por uma, e
jogou-as na boca, o tempo todo me olhando com seu sorriso largo demais.
—Eu gostaria de poder fazer algo, ir a algum lugar, para ficar longe de
tudo isso. — Eu acenei com a mão para a multidão atrás de nós. —Mas não há
nenhum lugar na terra que não seja o domínio de minha mãe, e minha mãe
teme Zeus. — Minha voz falhou e tossi na mão. —Eu também temo Zeus.
—Oh, doce, doce Perséfone, — disse Hermes, inclinando-se mais perto,
como se estivéssemos compartilhando um segredo. —Nosso pai é violento,
egoísta e não existe para outro propósito que não seja sua própria
saciedade. Você diz que sua mãe teme Zeus e que você teme Zeus. Você quer
escapar de tudo isso, mas não tem para onde ir.
Hermes tremeluziu e apareceu imediatamente do meu outro lado. —
Você diz que toda a terra é domínio de sua mãe.
—É, —eu respondi, perplexa. —Qualquer criança sabe disso.
—Tudo o que está na terra. — Ele ergueu as sobrancelhas, olhando
intensamente para mim.
Eu cruzei meus braços sobre meu peito. —Sim. Sim claro.
—Mas...— Ele mastigou uma uva, depois outra. —Não o que está sob ela.
—O que você -
—Perséfone!
Mesmo enquanto eu sentia os dedos frios de minha mãe agarrando meu
braço, a sentia me puxar através das colunas, ouvia sua névoa de tagarelice, as
palavras de Hermes pulsavam dentro de mim. Eu andei em uma névoa. Eu
cambaleei, olhei para Hermes de boca aberta e - devagar, deliberadamente - ele
piscou e me soprou um beijo.
E desapareceu.
—Perséfone, você está me ouvindo? — Deméter exclamou, empurrando
algumas mechas perdidas para trás de sua testa pálida, acariciando minha mão
e esfregando com força, muito forte - seu hábito nervoso.
Eu deveria ter notado o tremor em sua voz, mas não foi até que ele entrou
na minha linha de visão e eu pisquei, uma, duas vezes, que percebi o que havia
acontecido, o que estava para acontecer.
—Querida, eu quero que você conheça seu pai, oficialmente. — Ela
respirou fundo, e eu a encarei, a maneira como o tecido de seu vestido
estremeceu no espaço sobre seu coração. —Perséfone, este é Zeus.
Medo e raiva borbulharam em minha espinha enquanto eu olhava para
cima, para cima, para o semblante brilhante do rei de todos os
deuses. Zeus. Zeus, que destruiu minha vida.
Zeus, meu pai.
—Ela é linda. — Ele explodiu em sílabas como sinos batendo. Elas
correram pelo palácio, reverberando repetidas vezes, de modo que as
conversas pararam, as palavras foram cortadas e cada deus e deusa avançou
para ver quem Zeus elogiava. Ele pegou minha mão e a beijou, e a única coisa
que eu sabia era que seus lábios estavam molhados, e eu encarei por muito
tempo a marca que eles deixaram na minha pele. Estremeci, escondi minha
mão e suas grandes sobrancelhas prateadas se levantaram. Ele inalou como se
fosse falar, mas minha mãe se colocou entre nós. Fiquei boquiaberta com a mão
dela em seu pulso, acariciando os cabelos brilhantes ali.
—Ela se parece com você, Deméter. — Zeus abriu os braços, o rosto
radiante. —Bem-vinda ao Olimpo, minha filha!
Eu me encolhi dentro de mim, desejando poder tremer e ir embora,
rápido como Hermes.
Mas eu não consegui, e meu pai me envolveu em um abraço tão forte que
a respiração me deixou e olheiras giraram diante dos meus olhos. Ele estava
rindo - ah, eu conhecia aquela risada, e a senti como um chute no
estômago. Minhas mãos se fecharam em punhos.
Ele riu quando terminou com Charis.
Eu o odiei tanto naquele momento que não sabia o que fazer.
Era o instinto, a luta fora de seu alcance, como me perdi facilmente na
multidão. Eu deslizei de volta entre as colunas na varanda e esperei por um
longo momento no pequeno espaço entre o mármore e a grade e a escuridão
sem fim e as estrelas. Meu coração batia forte e meus ouvidos zumbiam, e eu
não sabia o que pensar ou como sentir. Hermes disse ‘rebelde’, como se fosse
uma coisa simples frustrar Zeus, para escapar de seu alcance e poder
infinitos. Como eu poderia? Era impossível, tudo era impossível e eu estava
tão cansada, tão zangada, tão triste.
Esfreguei meus olhos e encarei o globo giratório e cintilante. Daqui,
parecia uma pedra que eu poderia embalar na minha mão. Muito
pequeno. Tão vulnerável.
Não havia nada que eu pudesse fazer. Eu estava presa.
Nem Zeus nem Deméter vieram me procurar, e foi bom. Se eu o tivesse
ofendido, se o tivesse irritado, eu cairia em sua ira em breve, não é? Abaixei
minha cabeça em minhas mãos.
Houve risos logo atrás da coluna e, apesar de tudo, me virei para olhar,
espiando pela borda do mármore.
Eu conheci Atena uma vez, quando ela visitou minha mãe. Lembro-me
de pensar que ela ria muito para alguém que se dizia tão sombrio e deu um
beijo de despedida em minha mãe com ternura. Aqui, agora, seus cachos
negros estavam presos sob um diadema reluzente, e ela colocou um braço
sobre o ombro de uma garota mortal. Uma taça apareceu entre elas, e Atena
bebeu profundamente, inclinando a cabeça para trás até que a taça fosse
esvaziada. Ela a jogou por cima do ombro e, rápida como um falcão, puxou a
boca sorridente de sua companheira para um beijo.
Eu assistia, enfeitiçada, sem fôlego, o coração batendo forte em um ritmo
que quase esqueci. Atena e a garota se separaram para respirar, rindo, os
braços entrelaçados. Eu corei; minha pele estava escorregadia. Respirei fundo
e voltei para o meu esconderijo atrás da coluna, na varanda que pairava sobre
a terra.
Charis.
Cravei minhas unhas em minhas palmas e me concentrei em respirar.
Não foi repentino, como o quarto atrás de mim escureceu, lançando
longas sombras da luz da tocha no chão da varanda. Foi uma coisa gradual, e
quase não percebi, exceto pelo silêncio. Ninguém ria ou falava; não houve
tilintar de taça ou som de lira. Tudo, tudo caiu em um silêncio que rastejava
em meus ouvidos e rugia.
Eu balancei minha cabeça, me endireitei, olhei novamente ao redor da
coluna no grande salão. Por todo o palácio, um silêncio profundo rastejou, frio
como um calafrio. Eu vi os deuses e deusas estremecerem, e então a escuridão
caiu como uma cortina, tornou-se completa. As próprias estrelas foram
apagadas por três terríveis batidas de coração.
Ouviu-se o som de passos no mármore e a luz voltou.
—Hades chegou. — Eu ouvi o sussurro - o sussurro de Atena - e
comecei. Hades? Fiquei na ponta dos pés, tentando ter um vislumbre.
Todos nós lá fomos tocados pela crueldade de Zeus, de uma forma ou de
outra. Nós éramos sem sentido para ele, brinquedos para brincar e jogar
fora. Mas a história da traição final de Zeus era bem conhecida.
Zeus, Poseidon e Hades foram criados a partir da terra em um tempo
antes do tempo - o tempo dos Titãs. Eles lançaram sortes para determinar qual
deles governaria o reino do mar, o reino dos mortos e o reino do céu. Poseidon
e Zeus escolheram as palhetas mais longas, então Hades não teve escolha a não
ser reinar sobre o reino dos mortos, o Submundo.
Só mais tarde veio à tona que Zeus havia consertado os procedimentos
para ter certeza de que ele conseguiria o que queria - tornar-se governante do
maior reino, bem como de todos os deuses. Ele nunca teria arriscado um jogo
de azar justo. Nunca poderia ter escondido seu esplendor naquele mundo de
escuridão sem fim.
Eu estremeci, envolvendo meus braços em volta da minha cintura. Hades
raramente aparecia no Olimpo, optando por passar seu tempo, em vez disso,
isolado naquele lugar de sombras, sozinho.
Meus olhos procuraram a multidão murmurante. Embora eu não tivesse
certeza da aparência de Hades, presumi que reconheceria o deus do submundo
quando o visse.
Mas onde ele estava? Lá estavam Poseidon e Atena, sussurrando por trás
de suas mãos. Eu vi Artemis e Apollo se separarem enquanto Zeus se movia
entre eles, subia vários degraus altos e cambaleava em seu trono elevado,
erguendo sua taça de ambrosia no alto.
—Perséfone. — Eu pulei, o coração acelerado, e Hermes sorriu para mim,
seu rosto a um palmo do meu.
—Você tem o hábito de me assustar. — Sussurrei para ele, mas ele
balançou a cabeça e levou um dedo aos lábios. Minha sobrancelha franziu
quando ele pegou minha mão e me levou para o chão do grande salão, para
me demorar novamente entre os deuses. Eu me sentia nua, perdida, mas
Hermes ficou atrás de mim e me deu uma cotovelada para frente. Eu cedi e
tropecei um passo, dois passos. Finalmente, minha frustração aumentando, eu
me virei para adverti-lo, mas parei no meio do movimento porque - eu tinha
topado com alguém. A vida desacelerou, desacelerou, desacelerou. Murmurei:
—Com licença. — Olhei para a mulher que não reconheci, nunca tinha visto
antes, meu coração parou até que trovejou em um salto gigantesco contra meus
ossos.
Tudo parou.
Seus olhos eram negros, cada parte deles, sua pele pálida, como
leite. Seu cabelo caia até a nuca, cachos da cor da noite que brilhavam, lisos e
líquidos, enquanto ela inclinava a cabeça, enquanto olhava para mim sem uma
mudança de expressão. Ela não era bonita - as linhas de sua mandíbula, seu
nariz, eram muito orgulhosas, muito afiadas e retas. Mas ela era hipnotizante,
como um redemoinho de água escura, onde segredos se escondiam.
Eu olhei para ela e me perdi em seus olhos negros, e não a vi pegar minha
mão, mas a senti segurá-la, como se fosse para estar na gaiola de seus dedos,
suavemente embalada.
—Olá. — Disse ela, sua voz mais suave do que um sussurro. Pisquei uma
vez, duas vezes, tentando afastar a sensação de que a tinha ouvido falar antes
- talvez em um sonho.
E então, —Eu sou Hades. — Ela disse.
Meu mundo caiu.
Hades... Hades, o senhor do submundo... era uma mulher.
—Mas, mas...— Eu gaguejei, e ela me observou com uma curiosidade
felina, a cabeça inclinada ao som da minha voz enquanto eu tentava recuperar
meus sentidos. —Eles o chamam de senhor do submundo. Eu pensei-
—É uma calúnia. — Ela respirou. Tive que me inclinar para frente para
ouvir suas palavras. Seu rosto permanecia imóvel, plácido, como se ela
estivesse usando uma máscara.
Eu não sabia o que dizer - que estava protegida? Devo me desculpar por
não saber? Ela ainda segurava minha mão, os dedos enrolados em minha
palma como uma videira. —Sinto muito. — Consegui dizer. Não havia mais
nada dentro de mim, e o momento se estendeu por uma eternidade enquanto
meu coração batia contra a porta do meu peito.
Eu tinha esquecido que Hermes estava lá, e ele pigarreou agora, pisando
ao nosso lado, olhando para nossas mãos, juntos.
—Hades —, ele murmurou, o queixo inclinado, o sorriso torcendo para
cima e para cima. —Começou, agora que você a conheceu.
—O que? — Minha cabeça girou; tudo estava acontecendo muito
rápido. Seus olhos nunca deixaram os meus, duas estrelas negras me puxando.
Meu sangue batia rápido e quente, e eu não entendia o que estava acontecendo,
mas meu corpo sim. Não, ela não era bonita, mas não precisava ser. Fui atraída
por ela, enfeitiçada por ela, uma planta se inclinando para beber em seu
sol. Mesmo assim, ela não soltou minha mão.
—Hermes, posso ter um momento com ela? — Ela perguntou, virando-
se para ele. Quando seus olhos se afastaram, eu senti um vazio, um vazio, uma
dor grande e sombria.
Hermes franziu a testa, balançou a cabeça uma, duas vezes e cintilou até
o nada.
Ela levantou minha mão, então, tão lentamente que eu segurei minha
respiração até que seus lábios pressionaram contra minha pele, mais quente do
que eu imaginava, e macios. Algo dentro de mim se estilhaçou quando ela me
engoliu novamente com seus olhos escuros e disse: —Você é adorável,
Perséfone.
Eu encarei sua cabeça inclinada, fascinada.
—Obrigada. — Eu sussurrei. Ela se levantou.
Onde os lábios de Zeus estavam úmidos, ásperos, empurrando com força
suficiente contra minha mão para deixar uma contusão... ela era o oposto -
gentil. No entanto, eu a senti em todos os lugares. Eu estremeci, fechei meus
olhos. Ela não largou minha mão, mas a virou, traçando a linha da minha
palma com o polegar.
—Foi uma grande honra conhecê-la, vê-la. Você desafia minha
imaginação. — Um pequeno sorriso brincou em sua boca enquanto ela
balançava a cabeça, traçando seus dedos contra a palma da minha mão. —
Espero ver-te de novo.
Ela parecia prestes a dizer mais - parecia esperançosa - mas algo mudou
e seus olhos piscaram. Ela suspirou, apertou os lábios e apertou minha
mão. Hades se virou e desapareceu na multidão de olímpicos.
—Não... — Eu coloquei minha mão sobre meu coração, inspirando e
expirando.
—Na frente de todos os outros. — Hermes estava brilhando ao meu
lado, inclinando-se perto; ele balançou sua cabeça. —Ela é estúpida ou muito
corajosa.
Eu me senti como se estivesse acordando de um sono muito longo. Fiquei
olhando para o chão, imaginando o que era real, o que era um sonho. —Eu não
entendo. Isso... ela era Hades?
—A morte. — Ele riu, e ergueu sua taça de ambrosia para mim, como se
estivesse brindando. —Começou.
—Eu não entendo...
—É melhor você começar a entender, e rápido, menina. — Hermes riu
de mim, sorrindo maliciosamente. Rápido como um piscar, ele agarrou minha
mão e a virou. Onde Hades tinha me beijado, onde sua pele tocou a minha,
havia uma leve camada de ouro. Brilhava agora, sob a luz das estrelas.
—Você, Perséfone, filha de Deméter, filha de Zeus... você terá escolhas a
fazer. Muito em breve. — Eu podia sentir o cheiro da doce ambrosia flutuando
de sua boca. —Tudo o que será, ou poderia ser, depende do que você decidir
fazer —, ele me disse. — Você deve escolher sabiamente.
—Mas por que-
Ele passou um braço sobre os ombros de Artemis, que acabara de se
aproximar, com o irmão ao lado. Ambos olharam para mim com sorrisos de
desculpas.
Como um só, Hermes, Apolo e Artemis se voltaram para as mesas cheias
de ambrosia, falando um com o outro em voz baixa, e eu apreciei o momento,
o momento que estive procurando a noite toda, para ficar sozinha.
Observei minha mão, observei o brilho do pó de ouro. Acima, além das
colunas do titânico Palácio Olímpico, as estrelas ainda brilhavam e cantavam.
Eu estava encantada? Pelo resto da noite, ninguém falou comigo, me
tocou. Eu nem conheci Hebe, filha de Hera. Junto com Harmonia, ela era
minha rival, segundo minha mãe. Rival para quê? Tudo parecia tão absurdo,
tão irrelevante. Toda essa opulência, essa falsa camaradagem.
Sentei-me do lado de fora do palácio, encarei meu colo e desejei, desejei,
que Hades me encontrasse. Essa era a única entrada, a única
saída. Certamente, mais cedo ou mais tarde, ela viria. Talvez ela pegasse minha
mão novamente. Enfeitasse-me com seu pó de ouro.
Mas ela não veio. No final, quando os deuses estavam espalhados pelo
chão, ambrosia tão espessa que minhas sandálias grudavam a cada passo,
vaguei, cautelosa, até que encontrei Zeus inconsciente, esparramado, uma
perna pendurada no braço de seu trono. Eu estava segura. Por enquanto.
Hades não estava lá.
Acordei minha mãe, puxei-a para cima, ajudei-a a subir em sua
carruagem de vacas que nos empurrou para baixo, através dos céus, de volta à
nossa terra acenando.
Através do ar quente, através da floresta, de volta ao caramanchão,
minha casa de toda a vida, me movi sem ver, deitei e olhei.
Eu estava enfeitiçada. Eu não conseguia pensar em nada além da deusa
dos mortos.
—Para ser honesta, não me lembro muito sobre a noite passada.
— Deméter sorriu suavemente, balançou a cabeça. —Mas não foi terrível - foi
terrível? Zeus foi favorável a você, eu acho.
Ficamos juntsa no caramanchão, o sol do fim da manhã brilhante e
ondulado, atravessando as folhas verdes e as videiras. O ar cheirava a terra
quente e frutas doces, mas quando coloquei uma das uvas na boca, o gosto era
amargo.
—Não foi terrível. — Eu segurei minha língua em relação a Zeus. Minha
mãe sabia o quanto eu o odiava. Mas há um tópico que devo abordar. —Hades
—, eu sussurrei, assustando-me ao falar o nome dela aqui, em voz alta. Nosso
encontro, as palavras que compartilhamos apenas horas atrás - pareciam um
segredo, um segredo todo meu, e eu os protegia. —Ela é uma mulher. Você
nunca me disse isso.
Deméter suspirou, sentou-se em uma ondulação acomodatícia de
vegetação. Ela abriu as mãos e estudou meu rosto. —Nunca importou,
Perséfone. Eu não estava escondendo de você.
—Eu não disse que você estava. — Alisei minha túnica embaixo de mim
e me sentei em frente a ela, meus olhos fixos no chão. —Zeus é... cruel com ela?
— Eu não queria saber que ele era, mas, ainda assim, eu precisava perguntar.
—Oh...— Minha mãe exalou mais uma vez, deu um tapinha no espaço
acima do meu joelho. —Ele a provoca. Chama-a de 'senhor' dos mortos porque
ela favorece a companhia de mulheres. Ela não é como ele ou Poseidon. Hades
é boa.
Meus lábios se separaram, surpresos. —Você está familiarizada com ela,
então?
—Oh...— Ela hesitou. —Não, ninguém está, não realmente. Exceto,
suponho, pelos mortos. Mas esse é um assunto muito sombrio para uma
manhã de ouro, na manhã seguinte à sua estreia. Estou tão orgulhosa de você,
minha Perséfone. — Ela estendeu os braços para mim e eu me senti como uma
garotinha de novo quando encostei minha cabeça em seu ombro. Mas eu não
sentia o antigo conforto florescer em meu coração quando ela me segurou em
seus braços. Ela estava tremendo um pouco.
—Falando... de Zeus...— ela falou pausadamente em meu cabelo,
parando por um longo momento durante o qual nenhuma de nós se moveu -
ou respirou. —Já que ele não conseguiu falar muito com você na noite passada,
ele esperava remediar isso...— Ela juntou as palavras afetadas como frutas
vermelhas em uma árvore venenosa. Eu arqueei para trás dela com horror.
Havia muita tristeza em seus olhos.
—Ele virá hoje mais tarde para que possa abençoá-la, familiarizar-se com
você.
— Aqui, — eu sussurrei. —Zeus está vindo aqui?
—Perséfone, eu não pude dissuadi-lo. Eu tentei - por favor, acredite em
mim, eu tentei. Assim que ele tem uma ideia na cabeça... —Ela parecia tão
pequena, tão derrotada.
Eu encontrei meus pés, limpei minha garganta, fechei meus olhos
quando os medos de minha mãe colidiram com os meus. —Sinto muito, mas
não estarei aqui quando ele vier - não posso estar. Eu faria algo errado. Eu o
faria ficar com raiva de mim. Contigo.
Minha mãe estava assentindo, seu lindo rosto pálido.
—Isso pode ser melhor —, ela sussurrou, acariciando a videira azul
ipomeia que se enrolava como um cachorrinho em seu colo. —Eu vou... vou
pensar em uma desculpa para você. Tudo ficará bem. Estará. — Ela não
parecia convencida e seus olhos brilhavam como luas. —Sinto muito,
Perséfone.
Fiquei parada por um momento, desarmada, enquanto olhava para
minha mãe, minha mãe que mentiria para o rei de todos os deuses por mim,
por mim. Minha mãe. Depois de Charis, eu duvidei dela. Mas eu sabia, sempre
soube, a profundidade de seu amor por mim, mais profundo do que as raízes
mais profundas, mais profundo do que o próprio Submundo. Palavras
encheram minha garganta; Eu poderia dizê-las, poderia dizer qualquer coisa,
mas as palavras nunca seriam suficientes, de verdade.
Ela se levantou, lisa, alta e serena. Eu não pude ajudá-la, não pude salvá-
la. Eu não pude me salvar.
Meu coração se partiu e eu precisava ir embora, precisava escapar de sua
bondade e coragem, de suas mãos trêmulas, do medo enterrado atrás da calma
de seus olhos. Então, lentamente, beijei minha mãe em sua bochecha fria e me
virei e saí, com as trepadeiras agarrando meu cabelo.
Sob as nuvens rosadas, sob o zumbido de coisas crescendo, eu me
xinguei, fechei meus punhos. Eu me sentia uma covarde e uma traidora. Eu
deveria ter ficado. Mas para me envolver em um encontro de pai e filha com
Zeus? Minha pele gelou com o pensamento.
Não me lembro como me movi pela floresta - devo ter corrido, porém,
porque minhas pernas estavam sangrando o sangue azul dos imortais. Ele
acumulava em minhas canelas rasgadas por espinheiros, e eu tropeçava e caía,
repetidamente. Eu não sabia para onde ir. As ninfas me olharam quando passei
por elas. Elas devem ter pensado que eu estava louca. Eu só queria ficar
sozinha, segura em um novo mundo, onde Zeus nunca poderia ir. Uma ideia
despertou em meu coração então, e segui a curva do sol no céu, criando meu
próprio caminho através da floresta coberta de vegetação.
Finalmente, as árvores caíram, o solo amoleceu sob meus pés e eu me
joguei em direção ao mar.
Minhas pernas não conseguiam me carregar rápido o suficiente. Corri
pelas dunas, levantando uma névoa de areia. Senti um ritmo dentro de mim: o
bater das ondas, o bater do meu coração. Eu caí na areia quente, afundei
minhas mãos profundamente em seus fragmentos úmidos e dourados e chorei
- soluços úmidos e fortes - pela desesperança, a injustiça, a prisão nos olhos de
minha mãe. Eu soluçava enquanto o vento cantava através das ervas marinhas,
enquanto a arrebentação crescia, derramava, a água removia a terra, a água
varria tudo.
Com os olhos cheios de lágrimas, olhei para o azul infinito do oceano. Eu
tinha estado aqui algumas vezes, mas não muitas. Minha mãe me trouxe aqui
uma vez, quando eu era muito pequena, para brincar com as ninfas do mar. A
risada delas era estranha, mas doce, gentil. Elas fizeram para mim um colar de
pérolas, o chamaram de corações de ostras. Elas me mostraram uma ostra,
então, fizeram cócegas nela para que ela sorrisse para mim, para que eu
pudesse ver a dura pérola brilhante dentro. Minha mãe e eu rimos e o sol
brilhava como uma pedra amarela polida, e tudo que eu conhecia era alegria.
Levantei-me, tirei o pó da areia da túnica e aproximei-me do mar. As
ondas batiam contra a terra, mais e mais, e eram tão altas e ainda tão
reconfortante, um barulho estrondoso que silenciou meu coração.
Quando Zeus chegasse e me encontrasse desaparecida, ele ordenaria que
minha mãe me encontrasse. E ela não teria escolha a não ser perguntar a suas
flores, suas árvores, suas vinhas e grama onde eu me escondi e - todos traidores
- eles se dobrariam e se moveriam, recriariam minha trilha. Seria pega tão
rapidamente quanto um coelho na boca de uma raposa.
E quando eu fosse arrastada até Zeus, eu cuspiria nele. Eu gritaria e
soluçaria. Eu diria: —Você tirou a única pessoa que significava algo para mim.
— Eu diria: —Por que minha mãe tem tanto medo de você? O que você fez com
ela? — E ele me olharia com aquela torção presunçosa nos lábios e riria até que
seus lados doessem, enquanto as mãos de minha mãe tremiam, enquanto ela
encolhia cada vez mais em sua sombra elétrica. Então ele me puniria de alguma
maneira inteligente - talvez eu me tornasse uma roseira como Charis, ou um
espelho d'água, ou uma criatura monstruosa que nenhuma mãe ou doce ninfa
poderia amar - e eu estaria perdida para sempre.
Eu falaria a verdade, mas não faria diferença. Zeus seria o mesmo de
antes, minha mãe a mesma, encolhida diante dele, e o padrão se repetiria
indefinidamente. Não havia nada que eu pudesse fazer para impedir.
Nada.
Desci até a água do mar, senti-a passar pelos meus pés, me refrescando,
fechei os olhos e ergui o rosto para a luz. Eu estava cansada: cansada do
mundo, cansada até os ossos. Eu queria meus dias felizes de volta, aqueles
poucos dias rindo ao sol de mãos dadas com minha amada, sentindo seu calor
ao meu lado enquanto a noite caía e as estrelas apareciam. Eu era tão inocente
para a dor do mundo, a dor que um pai cruel poderia causar. A dor do coração
se partia ao meio.
Eu queria que minha vida fosse linda de novo. Não importa as coisas
sujas que se escondiam em meu futuro, aquele futuro que Zeus e minha mãe
planejaram para mim, eu poderia me apegar ao passado brilhante e adorável,
quando isso, tudo isso, se tornasse muito difícil de suportar? Será que eu
sempre lembrar que, uma vez, a minha vida tinha sido bonita, que eu tinha
experimentado e sentido, a beleza? Isso poderia me sustentar por toda a vida
de um imortal? Eu era tão jovem. Eu tinha experimentado tão pouco, no
grande esquema da eternidade. Será que a memória daquele punhado de
meses, tênue e puído ao longo dos séculos, bastaria?
—Filha de Deméter…
As palavras foram tão suaves, a princípio, que quase não as ouvi por
causa do barulho do mar. Mas voltaram, como música: —Filha de Deméter…
Adorável - tão adorável. Elas cavalgavam as ondas para cima e para
baixo, seus longos cabelos verdes trançados com pérolas ou penteados para
cima com pentes de coral. Seus olhos eram leitosos e úmidos, a pele lisa e
esponjosa, branca como a barriga de tubarões. Minhas velhas amigas. As
ninfas do mar.
—Vocês lembram de mim? — Eu murmurei, estendendo minhas
mãos. —Faz tanto tempo…
Elas desembarcaram uma por uma, um fluxo de mulheres ágeis com
sorrisos assustadores e escorregadios. Elas me abraçaram, beijaram,
sussurraram em meus ouvidos e, quando riram, era o som da maré quebrando.
—Nunca esquecemos, filha de Deméter. Nos sentimos sua falta.
Entrei na água com elas e elas me seguraram, como uma rainha em uma
cadeira.
Quando eu era pequena, elas encheram minhas mãos com pedaços
quebrados de cerâmica alisada pela água, conchas iridescentes e outros
mistérios das profundezas. Elas o fizeram novamente, amontoando coisas
brilhantes e estranhas sobre mim; logo minhas palmas transbordavam com um
tesouro úmido e brilhante.
—Obrigada. — Eu sussurrei, e carreguei tudo de volta para a
costa. Fazendo um pequeno buraco na areia quente, enterrei.
A pele molhada ao longo das minhas costas formigou e eu me levantei,
limpando a areia grossa de minhas mãos e braços. O vento estava ficando mais
forte e a água batia com mais força na areia e nas rochas, repetidamente, como
se - batendo na terra - pudesse dar forma à terra, à pedra, em algo novo, algo
mais parecido com ela, líquido e lúcido e mudando. Abaixei-me e juntei um
punhado de oceano. As ninfas do mar, caladas agora, me observavam com
olhos brancos que não piscavam. Fazia tantos anos desde a última vez que as
vi, mas elas se lembravam de mim. Quanto mais demorariam para me
esquecerem? Para o mundo me esquecer?
—Perséfone...— A ninfa do mar roçou os dedos palmados na pele fria da
minha perna. Estremeci, embora a sensação não fosse desagradável, apenas
surpreendente.
—Não temos flores no oceano —, sussurrou ela para mim. —Perséfone,
você vai colher flores para nós? Amamos tanto as coisas bonitas, e elas são as
mais bonitas de todas. Se você colher flores para nós, teceremos coroas para
nós e para você. Seremos todas adoráveis juntas. — Mais uma vez, a mão dela
na minha perna. —Oh, escolha flores para nós, Perséfone!
Era um desejo simples de conceder. A água escorria pelo meu corpo
enquanto saía do oceano e puxei minha túnica encharcada até minhas
coxas. Pegadas se arrastaram atrás de mim até a beira da água, como se eu
tivesse acabado de sair de uma concha recém-criada nos segredos espumosos
das profundezas.
Havia uma flor perto da costa, sufocada por ervas marinhas. Era branca
e simples, não era a mais linda do reino de minha mãe, mas admirei sua
teimosia, brotando aqui na areia, tão longe de sua terra natal.
O que aconteceria comigo depois dessa hora roubada?
Eu não conseguia pensar nisso. Eu não poderia.
Encontrei um pedaço de violetas e arranquei uma das pequenas flores
roxas.
O que Zeus diria para mim? Ele se lembraria de Charis?
Eu arranquei outra flor.
Hades beijou minha mão... esta mão. Ela a polvilhara com pó de ouro. Eu
arranquei outra flor e olhei para os meus dedos. Ainda havia um brilho de ouro
sobre elas. Eu queria sempre lá. Sempre.
Eu arranquei outra flor.
—Rebelde. — Hermes me disse.
Eu arranquei outra flor.
Logo, minha saia estava cheia de pétalas e folhas, perfumadas com
perfumes doces e aquecidos pelo sol. Eu segurei o tecido recolhido com força
em minhas mãos, flores pastando contra meus braços, meus dedos, macios
como pele. Flor e flor eu colhi, como se estivesse enfeitiçada. Finalmente,
lânguido, acordado de um sonho, levantei meus olhos de pálpebras pesadas.
Eu estava em um vale desconhecido, uma tigela redonda de terra com
árvores em sua borda, cobrindo a grama e as flores silvestres que floresciam
por dentro e por dentro. Fiz uma pausa perto do fundo, as pétalas flutuando
da minha saia, e me virei para ir embora. Eu havia vagado longe demais em
minha busca encantada; Já não ouvia a crista do mar.
Dei alguns passos para trás e então vi.
Era vermelha, vermelha brilhante, vermelha como o sangue de
mortais. Eu assisti ela se mover, para frente e para trás, carregada por um vento
que eu não conseguia sentir. Me seduziu.
Eu precisava dessa flor. Eu precisava aceitar.
Quando dei um passo à frente, senti a terra se mover sob meus pés como
areia, mas ainda assim alcancei, envolvi minha mão brilhante ao redor do caule
da flor. Suas pétalas eram finas, como pergaminho.
Eu a arranquei, levei-a ao nariz, senti seu cheiro: doce, mas fraco como a
luz do crepúsculo.
Eu respirei novamente e senti o chão ceder.
Rolei e caí em uma chuva de flores. A terra tremeu como uma égua
selvagem, desesperada para se livrar de mim, e gritei, agarrando-me primeiro
a um arbusto irregular, depois a uma raiz quebrada. Eu escorreguei, me soltei,
gritei, certa de que seria engolida como uma uva pela minha própria terra, a
terra de minha mãe. Ela saberia? Ela me encontraria enterrada tão fundo? Ou
ficaria perdida e consciente para sempre - uma semente imortal, nunca
crescendo?
Mas então parou.
Parou.
E inspirei e expirei e tossi uma nuvem de poeira.
A poeira era multicolorida e separada em feixes de luz do sol poente. Eu
me levantei, ou tentei, e fiz uma careta quando vi como meu tornozelo direito
torceu embaixo de mim. Os deuses não são impermeáveis - levaria uma hora
ou mais para curar a quebra do osso. Afundei e peguei pétalas esmagadas da
minha saia, a flor vermelha há muito desaparecida e esquecida.
Eu conhecia terremotos, já os tinha experimentado antes: a terra se
erguendo e se movendo como um animal, impossível de sentar.
Mas isso tinha sido diferente de alguma forma... e estranho.
A poeira começou a limpar enquanto eu esperava, impaciente. A
escuridão havia se acumulado no centro do vale e, à medida que meus olhos
entendiam isso, divisei um gigantesco buraco esculpido na terra. Era tão largo
quanto os portões do Olimpo e não tinha estado lá antes. Levantei-me e me
apoiei contra um afloramento de rochas, esperando, observando.
Eu ouvi isso antes de vê-lo sair da boca, antes de ver o metal se
retorcendo e os cascos faiscando. Veio como um estrondo de trovão, e pelo
buraco irromperam dois cavalos pretos selvagens em arreios - e atrás deles,
uma carruagem pesada, escura como o céu noturno.
No leme estava Hades.
Caí de joelhos, senti meu tornozelo girar dolorosamente embaixo de
mim, enquanto os cavalos empinavam, enquanto relinchavam para o céu que
escurecia, sacudindo a cabeça como monstros. Quando a carruagem pousou
na terra, Hades saltou e colocou a mão em cada um dos pescoços da besta,
sussurrou baixinho para eles, de modo que eles espetaram suas orelhas pretas
em sua direção, suavemente, ficaram eretos e quietos. Ela sorriu com tanto
carinho.
Do chão da carruagem, Hades juntou um fio escuro e fraco, enrolado
como uma corda. Ele se desenrolou quando ela o tocou, longo e fino, como
uma cobra. Ele brilhou na luz que lutava quando ela o segurou perto do peito,
gentil como uma mãe. Ela falou algumas palavras fracas que eu não pude ouvir
e ergueu as mãos sobre a cabeça. O fio subiu em espiral para o céu e começou
uma subida em direção à cúpula dos céus. Ele brilhou, piscou dentro e fora de
vista e se foi.
Hades observou o céu por um longo momento, enquanto eu a observava.
Quando ela baixou o olhar, captou a destruição do vale com os olhos, ela
me observou também: amassada no terreno acidentado, flores mortas, minhas
companheiras.
Seu rosto, como antes, era uma máscara de mármore branco, ilegível, mas
por um único instante, sua máscara rachou e eu vi - surpresa? Excitação? Eu
não poderia dizer com certeza, mas ela deu um passo em minha direção,
acenando com a mão.
—Perséfone, — ela disse, sua voz suave como um sussurro. —Por que -
por que você está aqui?
—Eu estava... colhendo flores. — Corei, sentindo-me infantil, e gesticulei
sem jeito para as pétalas esmagadas no fundo do vale. Ela olhou para os caules
sem cabeça e as flores achatadas, sem compreender.
—Colhendo flores. — Ela repetiu.
—Para coroas. — Mordi as palavras, cambaleei e me virei para ir embora,
mancando, mas ela me impediu, avançando e envolvendo os dedos em meu
pulso. Eu pulei, assustada.
—Perdoe-me. — ela sussurrou, mas ela não soltou, seus dedos flexíveis
e gentis em minha pele. Aqui, estando tão perto uma da outra, e tão longe da
multidão super perfumada de olímpicos, eu respirei seu perfume, e isso me
acalmou. Ela cheirava a terra - terra boa e amável - e a piscinas ocultas de água
negra, coisas que cresciam profundamente. Sombrio, familiar.
Eu mordi meu lábio enquanto ela olhava para o meu tornozelo, enquanto
suas sobrancelhas se juntavam e seus olhos se enchiam de preocupação. —
Minha chegada machucou você.
Eu balancei minha cabeça. —Eu vou curar. — Mas ela estava ajoelhada,
tocando a circunferência inchada do meu tornozelo - tão suavemente, como o
bater das asas de uma mariposa.
Sem uma palavra, Hades se levantou, se afastou de mim e voltou para
sua carruagem. Observei, perplexa, enquanto ela abria a porta da altura da
cintura, abaixava a mão e pegava uma caixa tosca. Ela voltou correndo com
ela, ajoelhou-se aos meus pés novamente.
—Isso não vai doer, eu prometo. — Ela disse. Da caixa, ela retirou o
menor dos frascos de vidro, removeu o lacre com cuidado e um líquido escuro
como tinta e frio gotejou do frasco no meu tornozelo.
Observei, hipnotizada, enquanto, a dez batidas de minhas pálpebras,
minha pele machucada recuperava sua tonalidade regular, o inchaço
murchava. Coloquei meu peso no tornozelo e ele não apresentou queixa.
—Notável. — Eu respirei.
Hades parou o frasco e colocou-o de volta em sua caixa, sorrindo.
Prendi a respiração, olhando para a deusa do submundo. Eu estava
errada antes. Ela era linda. Senti minha consciência de sua beleza como uma
dor e temi que ela notasse, me perguntasse o que estava acontecendo, então
limpei a garganta, esfreguei os olhos, busquei palavras simples para quebrar o
feitiço.
Eu disse: —O que era isso? Esse líquido?
—Uma única gota do rio Lete, um rio do meu reino. Suas águas se
enchem de esquecimento. Então aquela queda... —Ela apontou para meu
tornozelo reparado. —Isso fez o osso esquecer que estava quebrado.
—Ah, inteligente!
Ela se levantou, segurando sua caixa debaixo do braço, e novamente
sorriu. Era um sorriso pequeno e tímido, modesto. Eu nunca tinha conhecido
outro deus ou deusa de maneira tão gentil. Eu a encarei e não lamentei por
isso.
—Obrigada, — eu murmurei. —Você é muito gentil.
Ela encolheu os ombros; a máscara de pedra novamente caiu sobre suas
feições. Senti uma pontada profunda como uma raiz velha. Eu a observei
enquanto ela voltava para sua carruagem, a caixa em seus braços. —Como
você disse, seu tornozelo teria se curado sozinho. Simplesmente acelerei o
processo. Foi por causa do meu descuido que tudo aconteceu.
—É... é assim que você sempre vem do submundo? — Eu estava lutando
por palavras. Eu queria falar com ela por mais tempo, mantê- la por mais
tempo, se pudesse. Como um cachorrinho, fui atrás dela até a carruagem; ela
se adiantou e entrou. Coloquei meus dedos suavemente sobre a borda escura
entalhada, como se, segurando minhas mãos ali, eu pudesse segurá-la.
—Não, — ela me disse. —Eu raramente subo à superfície. A verdadeira
porta para o submundo está bem no coração da Floresta dos Imortais. — Hades
acenou em direção às árvores, em direção à minha casa. —Mas a viagem é
longa e eu tinha um assunto urgente. — Ela fez uma careta.
—Urgente? — Lembrei-me do fio serpenteante, como ela o guiou
suavemente para o céu.
—Uma alma desceu ao meu reino por engano - não era sua hora de
morrer. Então eu a trouxe de volta.
—Você viajou todo esse caminho pela alma de um mortal? — Não
consegui esconder meu espanto. Eu tive pouca interação com os humanos, mas
os deuses geralmente viam os mortais com diferentes níveis de desprezo ou
indiferença. Havia alguns, como minha mãe, que amavam seus adoradores,
mas não muitos, que eu saiba, e certamente nenhum que teria empreendido tal
viagem, do submundo para a face da terra, para o bem de uma única alma.
—Claro —, disse Hades, e repetiu: —Não era a hora dele.
Olhamos uma para a outra por um longo momento. Eu sorri.
—Foi muita gentileza sua. — Falei, por fim, fracamente, porque não
conseguia encontrar palavras verdadeiras o suficiente para transmitir a
profundidade de minha admiração.
Ela começou a recolher as rédeas, mas parou agora, baixando-as de volta
para a borda da carruagem. Ela se abaixou e pegou uma das minhas mãos,
abaixou a cabeça e roçou os lábios na minha palma.
Minha mão estava manchada de terra e pólen amarelo, e eu queria roubá-
la de volta dela, envergonhada, mas não conseguia quebrar essa conexão. Seu
rosto se ergueu diante de mim, seus olhos negros brilharam.
Eu olhei dentro daqueles olhos, me perguntando quais pensamentos
fermentavam por trás deles.
Ela era recortada pelas nuvens, pelo brilho do sol acima da concha do
vale, laranja e vermelho, uma desarmonia de brilho contra a palidez de sua
pele, a escuridão ilimitada de seu olhar.
—Zeus está vindo me ver hoje. — Minhas palavras me
surpreenderam; Eu não queria falar sobre ele. Mas me sentia tão segura. Hades
tinha sido gentil com um mortal e eu estava faminta por gentileza. Então -
hesitante, cabeça baixa - contei minha história. Contei a ela sobre Charis e Zeus,
sobre os planos de minha mãe para mim. Eu disse a ela que Zeus pretendia me
abençoar e que eu não desejava nada que ele tivesse a oferecer.
Eu disse a ela que não tinha para onde ir.
Quando terminei minha história, não me senti melhor, mas havia algo
novo e claro em meio às sombras dentro de mim, e reconheci com gratidão:
alívio.
Hades não tinha falado uma palavra desde que comecei. Ela
simplesmente ouviu. Mas ela abriu a boca agora, olhos escuros brilhando, e
uma única lágrima riscou sua bochecha. Caiu na minha mão, brilhou ali. —Eu
sinto muito, Perséfone.
Sua lágrima na minha palma - parecia uma coisa preciosa.
Eu estava exausta, exausta, mas balancei a cabeça em agradecimento e
me virei para ir embora. Alguém sabia agora, sabia da farsa de Zeus, da
tragédia de Charis, e isso era o suficiente.
—Espera.
Hades puxou minha mão e eu senti a pulsação de seu coração ali.
—Você acredita em coincidência, Perséfone? — Ela abaixou a cabeça e eu
inclinei a minha para cima. De novo, aquele cheiro: lugares escuros, nunca
conhecidos; água lisa; segredos da terra. Ela não esperou que eu respondesse -
eu não sabia como responder - mas continuou: —Não acredito que caminhos se
cruzem por acaso. Não acredito que duas pessoas que foram preditas para se
juntar ao destino pudessem, aleatoriamente, tropeçar uma na outra um dia
após seu primeiro encontro...
Preditas? Meu coração trovejou enquanto ela falava, mesmo enquanto
ela mantinha sua voz suave, sussurrando.
—Perséfone, — ela disse, nunca tirando os olhos dos meus; a intensidade
dentro deles me assustou. —Posso te ajudar.
—Mas como? Não há como... Zeus-
—Você vai vir comigo, até o submundo?
Meu coração parou, parou de bater por um momento. E outro.
—Venha para o meu reino —, disse Hades. —e você será livre.
Eu suspirei. —Hades.
As implicações da escolha que ela me ofereceu pesaram meu coração. Eu
quero isso? Posso deixar minha mãe? Minha floresta? É isso que Hermes quis
dizer, rebelar-se? Não poderia ser encontrada sob a terra; Zeus não me tocaria
lá. Ele deve ter sido o que Hermes tinha em mente. Mas como ele sabia?
Eu não sabia o que fazer e meu coração bateu forte contra minhas
costelas, preso e encurralado.
Os fardos do dia pareciam frágeis agora, dissolvidos, quando reconheci
nessa escolha a primeira escolha verdadeira que tive em toda a minha vida. Era
sagrado para mim, uma coisa nova e jovem, e eu a segurei com o cuidado de
um filhote.
—Hades. — Eu disse novamente, e olhei profundamente em seus olhos,
seus olhos ilimitados, e eu queria cair neles. Eu queria cair na terra com ela.
Mas então me lembrei das mãos trêmulas de minha mãe.
—Eu não sei o que fazer. Posso ter algum tempo para considerar isso?
Eu temia que ela dissesse não. Eu temia que ela sacudisse as rédeas, e o
mundo engolisse seu corpo e seus animais, e ela iria embora, deixando para
trás apenas seu cheiro e o fantasma de sua mão na minha.
Mas ela ficou.
Ela endireitou as costas e inclinou a cabeça para mim. —Claro. Perdoe
minha ousadia. Eu sinto sua dor e não consigo suportar. Qualquer ajuda que
eu possa oferecer a você, Perséfone, eu a dou gratuitamente.
Fechei os olhos enquanto ela roçava os lábios na minha palma. Mesmo
na luz pálida, eu vi o borrifar de pó de ouro, como uma tatuagem marcando os
lugares que seu corpo tocou o meu. Agora ela segurou as rédeas em suas mãos,
e os cavalos tremeram, antecipando sua grande descida. Eles mantinham suas
cabeças pretas erguidas, os olhos girando.
—Vou aguardar sua resposta. — Disse Hades, e movi minha mão para o
meu coração.
—Obrigada. — Arrisquei um pequeno sorriso triste. —Minha mãe estava
certa sobre você.
Ela inclinou a cabeça e ergueu uma sobrancelha. —Deméter falou de
mim?
—Ela disse que você é diferente. Que você é boa. Você é boa para mim.
Algo parecido com diversão enrolou a linha de sua boca. —Se você me
deixar em paz, Perséfone, — ela sussurrou, tão baixinho que eu tive que me
inclinar mais perto para ouvir suas palavras. —Eu estarei ainda melhor.
Pressionei meus dedos em meus lábios.
Suas palavras permaneceram entre nós quando ela levantou a mão para
mim ao se despedir. Os cavalos relincharam e empinaram, a carruagem
estremeceu e toda a assembleia sombria saltou para o fosso diante de mim,
engolida inteira. Os gritos dos cavalos ecoaram muito depois de os animais e
Hades terem desaparecido.
O chão se moveu embaixo de mim, mas mais calmo desta vez, e a grande
boca cortada na terra se costurou, como se fosse por uma costureira invisível.
Atordoada, saí do vale, procurei o oceano novamente. Siga em frente, eu
me ordenei. Não olhe para trás.
Juntei um punhado de flores e as levei para as ninfas do mar.
Elas me teceram uma coroa, como haviam prometido, e eu a usei, aceitei
suas lisonjas e abraços, mas meu coração estava perdido em um lugar para o
qual nunca tinha viajado. As ninfas tentaram me trazer de volta; elas cantavam
canções do mar, acariciavam meus braços com as mãos suaves como
conchas. A água salpicou minhas pernas e senti o gosto de sal nos lábios.
Eu me virei para ir embora.
—Fique um pouco —, imploraram. —Filha de Deméter, por favor.
—Preciso ir para casa. — Disse eu, e saí, as estrelas brilhando no caminho.
Zeus não veio naquele dia, ou no próximo ou no próximo. Deméter se
preocupava e caminhava pelo caramanchão. A preocupação a deixou
descuidada, de modo que suas flores geraram frutos estranhos e venenosos, e
suas vinhas se enredaram em nós impossíveis. Fiquei longe, refugiei-me na
Floresta dos Imortais.
Encontrei um buraco em uma árvore velha e misericordiosa, enrolei-me
nele e acumulei meus pensamentos como bolotas.
—Você está distraída. — As ninfas da minha mãe sussurraram para mim,
puxando minhas mãos, minhas roupas. Elas estavam preocupados comigo -
elas sabiam quem era meu pai. Elas sabiam que Zeus viria, mais cedo ou mais
tarde. Talvez elas soubessem mais do que eu, pois alguns choraram e
esconderam o rosto ao me ver. Tentei manter a calma, descobrindo outros
cantos escondidos - lugares para sentar-me sozinha com meu coração em
conflito.
No quarto dia, ele veio.
Entrei no caramanchão e vi minha mãe abraçando apaixonadamente um
estranho.
Zeus.
Ele se endireitou, alto, alto demais para os limites de nossa pequena casa,
mas as paredes vivas e o teto rangeram e se esticaram para acomoda r sua
massa. Zeus limpou a boca com as costas da mão e minha mãe, ofegante,
puxou a túnica para baixo sem uma palavra ou olhar para mim.
Eu olhei, em silêncio, enquanto Zeus examinava meu corpo com seus
olhos nada paternais. Meu estômago revirou de ódio. Eu cerrei meus punhos
ao meu lado, dei um passo para trás a cada passo que ele dava em minha
direção. Nós paramos e ficamos olhando um para o outro. Era quase cômico, e
uma espécie de riso louco borbulhou dentro de mim, mas eu o reprimi.
—Filha de Deméter. — Ele entoou úmido. Eu estreitei meus olhos,
empurrei para baixo com grande esforço a necessidade dentro de mim de
negar o título, de dizer a ele, Esse não é meu nome. A tensão entre nós se
propagou como a erva daninha mais tenaz.
Finalmente, minha mãe se mexeu.
—Diga olá para o seu pai, Perséfone. — Ela sussurrou.
Mordi minha língua com tanta força que senti o gosto de sangue. Eu não
podia falar com ele, não iria, mas ele interpretou mal o meu silêncio.
—A criança é tímida, Deméter, — ele riu, alcançando meus ombros. Eu
vacilei quando suas mãos grandes deram tapinhas nas minhas costas,
acariciando a pele nua ali, demorando muito. —Você cresceu —, disse ele. —
Cresceu bem. E estou impaciente para lhe contar minha surpresa.
Lancei um rápido olhar para minha mãe, e seus olhos encontraram os
meus, estranhamente claros - não, vagos. Suas mãos tremiam tanto que ficaram
borradas nas bordas. Eu inalei, abri minha boca, mas Zeus soltou uma risada
tão alta que eu coloquei minhas mãos nos ouvidos, horrorizada. O
caramanchão reverberou com o som: folhas balançaram em suas vinhas; meu
coração estremeceu dentro do meu peito.
—Nós preparamos um lugar para você no Olimpo, — ele disse, sorrindo,
uma vez que o terremoto diminuiu. —Você deve vir comigo, viver em meu
palácio no Monte Olimpo com o resto de sua família imortal. — Ele abriu os
braços, como se tivesse dentro deles uma abundância de presentes para mim.
Eu treinei minhas feições por um longo momento, juntando suas
palavras com cuidado, enquanto minha mãe ficava parada e observava, minha
mãe com seus olhos fixos, suas lágrimas que começaram a derramar,
contadoras da verdade silenciosas, sobre suas bochechas.
—Perséfone...— ela começou, tossindo baixinho em sua mão quando sua
voz falhou. —Eu te abriguei, te criei, porque eu não suportaria me separar de
você. Mas agora você aprenderá a história e tradição olímpica, cultura e
equilíbrio - uma série de coisas que nunca poderiam ser compreendidas
totalmente comigo aqui na terra.
Ao ouvi-la, não pude deixar de pensar nos pássaros falantes que repetem
frases ouvidas sem qualquer sentido verdadeiro de seu significado. Eu sabia
que ela não queria dizer nada disso, não acreditava em nada disso, não queria
nada disso para mim. Eu a conhecia como meu próprio coração. Essas palavras
eram de Zeus, não dela.
Ainda assim, ela disse, com tristeza: —Você será muito mais feliz no
Olimpo.
Eu não pude evitar; Eu ri.
Deméter balançou a cabeça, como se para negar suas mentiras, e colocou
o rosto entre as mãos, fechou os olhos.
Eu me arrastei para trás até a beira do caramanchão, senti galhos
familiares pressionando minhas omoplatas.
Eu me tornaria o brinquedo dos imortais. O novo brinquedo brilhante de
Zeus. Minha mãe sabia disso com tanta certeza quanto eu, mas como ela
poderia impedir? O que ela poderia fazer? Em sua mente, Zeus era rei. Zeus
conseguia o que queria. Zeus ganhava o jogo da minha vida.
Mais mentiras.
Na verdade, Zeus apenas tornou minha escolha muito mais simples.
O medo subiu pela minha espinha, mas minha língua estava se movendo
antes que eu soubesse o que diria. —Pai —, eu disse, e a palavra tinha gosto de
bile, mas forcei a civilidade em minha voz. —Por favor... devo dizer adeus. Dê-
me mais uma noite para me despedir de minha mãe, minhas ninfas. Eu amo
muito todas elas, e ficaria com o coração partido se as deixasse de repente.
Eu nunca tinha falado verdadeiramente com Zeus antes, e ele me
considerou por um longo e tenso tempo, enquanto minha mãe empalidecia,
mordia o lábio, cruzava e desdobrava as mãos.
—Muito bem, — ele explodiu finalmente. —Uma noite. Voltarei amanhã
para buscar você. Até então... —Ele brilhou em uma nuvem dourada, brilhou
e se foi.
Desaparecido tão completamente que quase pude acreditar que ele
nunca tinha estado lá. Exceto pelo fedor de ozônio queimando minhas
narinas. Exceto pela expressão miserável no rosto de minha mãe.
—Perséfone...— Ela parecia murcha e tão perdida - Deméter, deusa de
toda a terra. Fechei meus olhos, esfreguei meu rosto, tentei desacelerar meu
pulso catapultante. Ela me envolveu em seus braços e estava chorando, e era
tudo tão terrível. Minha mãe cheirava a ele, a seu corpo dourado. Seu fedor me
deixou doente, mas eu a segurei com força.
—Eu não sei o que fazer, — ela sussurrou, tremendo. —Eu não sei como
te salvar.
—Eu sei.
Eu beijei sua testa, entrelaçando meus dedos com os dela. Seus olhos me
faziam perguntas, mas não pude oferecer respostas. O que esse ato
desesperado, minha escolha, significaria para ela? Zeus se vingaria dela? Será
que ele entenderia - ou se importaria - que eu tivesse feito isso por minha
própria vontade, que ela não fosse a culpada? Ela não podia saber para onde
eu estava indo, o que estava prestes a fazer, porque eu queria que ela
continuasse inocente, irrepreensível.
Então eu disse: —Eu te amo, mãe. — Ela acenou com a cabeça uma, duas
vezes. Ela segurou meu rosto com as mãos, procurando no fundo dos meus
olhos como se procurasse por algo. Então ela simplesmente se virou e saiu do
caramanchão.
Eu estava tremendo. Ajoelhei-me na grama macia e doce de nossa casa,
inspirando e expirando o perfume verde.
Este era o meu momento, só meu.
Lembrei-me da maneira como Hades pegou minha mão e chorou na
minha mão.
Ela era estranha e uma estranha, e eu a seguiria até a terra dos mortos e
das trevas. Eu desistiria de tudo que conhecia pela possibilidade...
A possibilidade de quê, Perséfone?
Mordi meu lábio com muita força, inspirei e expirei e contei minhas
respirações; havia algo reconfortante na neutralidade dos números.
Liberdade.
Isso era o que eu queria. Havia liberdade no submundo?
Hades era boa. Eu sabia disso, sem questionar. Ela segurou minha mão
como se estivesse quebrada, como se só ela pudesse consertá-la. Ela me fez
sentir como se eu brilhasse, como uma coisa dourada. Havia algo profundo,
sombrio e tão bonito nela. Quando me lembrei de seus olhos tristes, meu
coração deu um salto.
Em uma vida sem escolhas, esse ato ousado poderia me colocar no
caminho da liberdade que eu ansiava mais do que qualquer outra coisa na - ou
acima - da terra.
—Rebelde. — Sussurrei a palavra e me levantei, lancei meu olhar sobre
o caramanchão, olhei longamente para as flores - tão adoradas e familiares - e
as coisas bonitas: velas e pedras preciosas que minha mãe e eu colecionamos
ao longo dos anos que compartilhamos juntas. Eu sabia que não levaria
nada; não havia nada que eu precisasse. Não precisava do lindo pente de
concha ou do colar de pérolas que as ninfas do mar me deram. Não precisava
da primeira flor que minha mãe plantou para mim, preservada e perfeita como
no dia em que floresceu. Talvez minha mãe precisasse. Talvez isso a
confortasse.
Eu me levantei e saí do caramanchão para a Floresta dos Imortais, de
mãos vazias, sozinha.
Não podia deixar minha mãe me ver partir e não podia dizer adeus. Já
me sentia assombrada por seu rosto desesperado, suas mãos trêmulas. Seria
melhor para nós duas se eu simplesmente desaparecesse, como estrelas
piscando ao romper do dia.
Então, rastejei ao longo da linha de árvores e encontrei o grande
carvalho. —Adeus. — Eu sussurrei em sua casca áspera, passando meus braços
ao redor de seu grande tronco. Ele me segurou desde o início e até o fim.
Suponho que sempre senti a localização da entrada para o Mundo
Inferior. Era o único local que eu - e todos os habitantes da floresta –
evitávamos, como que por instinto. Agora eu me esgueirei para o centro mais
profundo da Floresta dos Imortais, aqueles caminhos escuros e espinhosos que
eu sempre contornei, nunca pisei. Eles estavam crescidos e assustadores, e
animais de olhos arregalados se acalmaram e me observaram como se eu fosse
um fantasma passando.
A trilha serpenteava sob galhos nodosos que arqueavam sobre minha
cabeça, entrelaçados. Lembrei-me de rir e correr com as ninfas, e lembrei-me
do silêncio que tomou conta de nós quando nos aproximávamos dessas trilhas,
como não podíamos nos forçar a entrar, não suportávamos ficar.
Agora meu coração trovejava e eu sentia um empurrão, algo invisível me
incitando a me virar, voltar para minha vida, de volta para a luz, mas eu
continuei, teimosa e obstinada. As árvores ao meu redor ficavam mais
próximas e mais velhas, e trepadeiras lenhosas me faziam tropeçar em todas
as oportunidades.
Gradualmente, o ar começou a mudar. Houve uma sensação de
respiração presa, de grandeza iminente, e as amoreiras fortemente
entrelaçadas deram lugar a uma clareira extensa.
Eu pausei.
As árvores ao redor lançavam sombras que tremeluziam sobre a terra
compactada e ali, do outro lado... Conforme o sol se afastava do dia e a
primeira estrela surgia no céu, eu vi: uma cavidade pedregosa levando para
dentro escuridão, larga o suficiente para uma carruagem e dois cavalos. As
colunas eram velhas, mais velhas do que eu conseguia entender, e a suave
rocha cinza que formava a cúpula era esculpida com imagens de homens e
deuses do início do mundo. O começo de tudo. Uma leve rajada de ar frio saiu
pela abertura e brincou com meu cabelo, passando os dedos frios pelo meu
rosto. Acenando para mim, parecia.
Meus olhos se moveram como se estivessem enfeitiçados pela única
árvore de romã que prosperava ao lado da entrada, ou, mais verdadeiramente,
como parte da própria entrada. As raízes e as pedras se entrelaçaram,
inseparáveis, e - enquanto a ansiedade com a minha queda iminente apertou
meu coração e enfraqueceu meus joelhos - estendi a mão e segurei a árvore
para me apoiar.
Meus dedos acariciaram a curva vermelha suave de uma fruta. Eu
poderia dizer com um toque que estava madura, e puxei-a de seu galho,
segurei-a na palma da minha mão, apreciando seu peso reconfortante. Era do
reino de minha mãe, sim, mas era meu também. E embora tivesse deixado tudo
para trás, amarrei a romã em uma dobra da túnica - comida para a viagem,
raciocinei comigo mesma, mas é claro que não precisava de comida. Eu estava
simplesmente com medo e queria algo que pudesse segurar, cheirar, saborear
que me lembrasse da terra, das coisas em crescimento, da luz. A luz faz uma
romã. Eu precisava carregar um pouco dessa luz comigo, mesmo quando dei
as costas para ela e escolhi a escuridão.
Eu cruzei um pé além do limite entre acima e abaixo. Havia uma vastidão
diante de mim e o ar me fez estremecer, mas não olhei para trás. Eu não
podia. A pele formigou na parte de trás do meu pescoço e - uma mão na pedra
fria da entrada - me movi para frente, peguei meu ritmo lento e cauteloso para
algo um pouco mais rápido e desci, desci, desci.
O tempo passou - quanto eu não poderia dizer - e fui embalada em um
estado impensado, meu avanço constante tão involuntário quanto meu
batimento cardíaco. Eu podia ver, embora apenas um pouco. Tudo estava frio
e quieto até que, de repente, um som suave me assustou. Como sandália em
pedra. Eu esperei na escuridão, semicerrando os olhos. Uma forma sombria em
forma de pessoa destacou-se da escuridão, aproximou-se e evoluiu para a
silhueta cintilante de um jovem com uma das mãos roçando na parede fria.
Hermes. De alguma forma, ele iluminava o espaço ao nosso redor com
um brilho suave.
—Você começou sem mim, — ele comentou ironicamente, pegando
pedaços de folhas de sua túnica. —Eles nunca começam sem mim.
Eu vacilei. —Por quê você está aqui? — O medo subiu e se agarrou aos
meus ossos. Outro deus neste lugar abandonado? Zeus o havia
enviado? Parecia improvável, mas-
—Não seja tola. — Hermes bateu na minha testa e levantou uma
sobrancelha. —Hades me pediu para buscar você. Estou aqui para levá-la ao
submundo.
—Eu não preciso ser levada. Eu já estou indo. — Eu parecia mais
corajosa do que me sentia, e seus olhos brilhantes se suavizaram.
—Permita-me acompanhá-la, então, Perséfone. — Ele podia sentir meu
medo, minha preocupação, eu tinha certeza. Ele ofereceu seu braço e eu o
peguei com algum alívio. Fiquei grata por sua presença. A rigidez da minha
coluna diminuiu e eu exalei um suspiro que não tinha percebido que estava
segurando.
Hermes piscou para mim e apontou o dedo para seus pés. Suas sandálias
abriram asas - brancas como pombas - e ele me agarrou pela cintura e me içou
para o quadril como se eu fosse uma criança, e voamos. Minha visão distorceu
e tremeluziu. Meu estômago caiu dentro de mim, eu engasguei e fechei os
olhos, enterrei meu rosto em seu ombro. Ele riu. —Você está bem segura, eu
garanto.
E então... apenas um instante depois -
—Você pode soltar. — Disse Hermes, ainda rindo. Eu separei meus
membros de seu corpo, encontrei chão sólido sob meus pés e abri meus olhos.
Estávamos em uma caverna estreita iluminada por tochas de parede que
queimavam com um estranho fogo verde. O espaço diante de nós se estendia
até uma alfinetada preta; parecia não ter fim. Comecei a me perguntar a que
profundidade estávamos, e o peso da terra - minha terra - parecia pressionar
meus ombros, minha cabeça. Eu me senti sufocada, tão distante dos grandes
espaços abertos e do céu para sempre da minha floresta. Depois de alguns
goles desesperados de ar, coloquei a mão sobre o coração, desejando que sua
batida se estabilizasse.
Hermes bateu os pés e as asinhas dobraram-se para trás.
—Estamos aqui? — Eu perguntei a ele. —Este é o submundo?
—Quase. — Ele se espreguiçou, as mãos acima da cabeça e se inclinou
para frente, balançando os braços. —Eu me exibi, — ele confessou, sorrindo. —
Normalmente demora mais para chegar aqui. Mas você estava nervosa, e eu
não queria prolongar sua jornada.
—Oh. Obrigada.
—Era o mínimo que eu podia fazer. — Ele sorriu para mim por um
momento. —Você se saiu bem, Perséfone. E você está quase lá.
—Onde estamos agora?
Ele gesticulou amplamente. —Este é o corredor que a levará ao portal
que a levará ao rio que a levará ao submundo. — Ele acenou com a cabeça em
direção ao corredor sem fim. —Sempre em frente. Você não pode se perder.
Começamos a caminhar juntos e contei as tochas ao ritmo de nossas
sandálias arrastando a pedra. Desisti aos dois mil e quarenta e três, e
parecíamos não estar mais perto de... nada.
—Eu só posso levá-la até o portão. — Hermes finalmente murmurou ao
meu lado.
—Qual é a distância até o portão?
Ele apontou.
Meu rosto estava a um palmo de um portão de metal escuro. Não estava
lá um momento atrás, eu tinha certeza. Os trilhos de ponta afiada estavam
envoltos em um musgo que eu nunca havia encontrado antes; brilhava verde
sob a luz da tocha. Toquei o ferro, hesitante, e ele queimou minha pele, mas o
portão se abriu, balançando para fora sem um rangido.
O ar aqui cheirava a água sombreada, a coisas esquecidas. A Hades.
—Bem, é sempre bom ver você, Perséfone - boa sorte. — Hermes estava
se virando para sair e eu agarrei seu braço automaticamente, com tanta força
que ele estremeceu.
—Por favor, não me deixe, Hermes, — eu sussurrei. —Por favor.
—Sabe, você é muito bonita quando faz beicinho. — Ele estava
flutuando acima do solo, sandálias aladas tremulando, e ele se inclinou para
dar um beijo na minha bochecha. —Você deve entrar no Submundo sozinha,
Perséfone. Uma jornada simbólica, se você quiser.
—Mas estou com medo.
Ele se desvencilhou do meu alcance, vagando pelo corredor, os planos
de seu rosto brilhando na luz verde fantasmagórica.
—Claro que você está com medo —, suas palavras ecoaram ao meu
redor. —Isso não seria tão precioso se viesse sem custo.
—Hermes!
Ele desapareceu.
Eu estava sozinha, no início do Submundo.
Eu esperei.
Não sei por que esperei, mas esperei - esperei que ele voltasse, para dizer
que estava apenas me provocando, que é claro que ele me guiaria direto para
o palácio de Hades - ou caverna, ou qualquer tipo de residência onde ela
morava aqui embaixo. Minha bravata vacilante havia desaparecido junto com
meu meio-irmão.
Ele não voltou e, por fim, me senti uma tola, apenas parada ali, esperando
ser salva.
Mordi meu lábio, me virei e atravessei o portão, pisei de pedra em pedra,
e nada parecia diferente, mas a atração do ar era mais forte agora, fria e
atraente. Ela se enrolou em minhas pernas como uma corda, e obedeci a seu
puxão, impaciente para ser feito, para estar lá, para ver Hades. Logo comecei a
correr.
Não havia nada além da passagem interminável e do vento frio, o fogo
verde, a terra dura sob meus pés doloridos. Parei uma ou duas vezes, bati as
palmas das mãos nas paredes escarpadas em frustração, mas não pensei em
voltar. Se esta caverna durasse para sempre, eu andaria para sempre.
Então eu senti cheiro de água.
Quase escorreguei para a escuridão líquida que se agitava, fervia e
lambia meus pés, mas de alguma forma me contive, agarrando a borda da
parede com as mãos de nós dos dedos brancos. Diante de mim se estendia um
grande rio. Eu podia apenas ver as águas em movimento e, acima de tudo, um
nada infinito de preto.
Para entrar na terra dos mortos, você deve atravessar o rio Styx. Eu sabia
disso, tinha ouvido falar disso aqui e ali, mas nunca tinha dado muita atenção
aos costumes mortais a respeito da morte. Há histórias de um misterioso
barqueiro, Caronte, que trocava uma passagem segura sobre o rio por moedas
de ouro. Não tinha moedas, nada precioso. Senti um pânico crescente; Eu não
seria capaz de atravessar. Eu ficaria presa aqui na borda, presa entre dois
mundos. Lugar algum.
Sussurros. Sussurros distantes e vazios. Eles aumentaram gradualmente,
abafados no início, mas logo meus ouvidos foram varridos em um
crescendo. O barulho me cercou como o vento, e fui empurrada para frente e
para trás pelas minúsculas palavras urgentes. Quando as últimas sílabas
ecoaram, enfraqueceram e foram embora, eu senti sua ausência, temi o silêncio
e estremeci, fugindo para trás na água batendo.
Ele atravessava o rio em uma barcaça quebrada que deveria ter
afundado, mas não afundava. Eu não conseguia vê-lo, na verdade: sua
aparência não parava de mudar, e em um momento ele era um homem velho
com uma barba, no próximo um esqueleto com pedaços de carne pendurados
entre as costelas, no próximo uma criança pequena e triste.
—Bem-vinda ao submundo. — Vieram os sussurros, como antes, e
percebi que eram compostos por centenas, milhares de vozes diferentes
reunidas em uma. Ele / ela / isso - Caronte - estendeu para mim uma mão
emaranhada na pele. —Moeda para passagem.
Eu recuei. Isso era horrível, mais horrível do que eu jamais poderia ter
imaginado. Meu coração parecia ter parado de bater. Minha boca estava seca,
minha língua inútil. Tossi e gaguejei: —Não tenho dinheiro. Mas Hades
convidou...
—Não importa por que você está aqui, apenas que você está. — Havia
diversão no murmúrio preguiçoso. —Você deve me pagar ou não pode
atravessar.
—O que eu posso te dar? O que você vai levar?
—De um mendigo morto, peguei um olho. — E dentro do redemoinho
de carne e osso, encontrei um único olho azul olhando para mim, brilhando. —
De outro, eu tirei um coração. — Eu ouvi o coração bater muito devagar. —
Que parte de sua carne, Perséfone, você me ofereceria que eu já não tenha em
múltiplos?
Eu me desesperei, pensei descontroladamente. Minhas mãos
pressionaram contra minha clavícula, roçaram meu pescoço, juntando
punhados de cabelo preto como a noite.
—Você vai levar isso? — O cabelo se acumulou em minhas palmas, seu
brilho azulado mudando de forma que a luz das tochas atrás de mim deslizou
como óleo verde sobre sua superfície. O olho azul flutuante olhou para mim,
observando enquanto eu oferecia meu cabelo ao barqueiro dos mortos.
—Feito. — O corte foi rápido, embora não fosse indolor. Toquei minha
bochecha com a mão e senti o sangue se acumular ao longo da fina fatia que
Caronte tinha feito com sua lâmina. Ele segurou minhas mechas caídas em
uma mão, e os sussurros aumentaram novamente, ficaram mais altos agora,
como lamentos, mas mais altos, se unindo em um único gemido penetrante. Eu
me senti nua, com frio, mas me afastei da terra e entrei no barco, e Caronte
mergulhou nas águas escuras.
Às vezes eu tinha um vislumbre do meu cabelo no corpo sempre mutável
e remendado de Caronte enquanto ele navegava no rio. Mas a visão me deixou
enjoada e tonta, então desviei o olhar, para cima na escuridão ou para baixo na
água. Era apenas cabelo; ele voltaria a crescer, deveria crescer de novo, embora
eu não tivesse certeza de que iria. Nunca havia sido cortado antes.
Lembrei-me das palavras de Hermes sobre o custo da escolha e percebi
que havia feito meu primeiro pagamento.
A barcaça não deslizava suavemente. Nós colidimos com coisas que
fizeram as tábuas rangentes baterem umas nas outras e chocarem meus pés. O
som estava úmido, o que atingimos sólido. Vi rostos sob a água, mãos
estendidas, como se implorassem: almas afogadas, corpos nas ondas. Fechei
meus olhos, esfreguei minha pele para aquecê-la.
Quando nos aproximamos da terra firme, saí do barco e subi na margem
rochosa. Caronte, sem sussurros, afastou-se de mim e disparou, de volta à
escuridão e ao outro extremo da costa. Fiquei tremendo, observei-a
desaparecer. Depois que meus nervos se acalmaram, meu coração se acalmou,
virei minha cabeça para encarar totalmente meu destino, o reino dos mortos.
Era uma terra plana e nua, até onde meus olhos podiam ver. Apesar das
tochas, havia escuridão acima e ao meu redor, e à distância assomava uma
grande estrutura delgada, um agrupamento de torres e torres brancas e
passarelas altas e largas, amarradas juntas como se com planos desenhados no
sonho de um arquiteto louco. O palácio no Olimpo era algo que os mortais
imaginavam para nós, tornado real com suas crenças. Esta era uma criação que
nenhum mero mortal poderia conjurar, tão caótica que meus olhos doeram
quando eles traçaram seu labirinto de pontes e escadas. As torres eram altas,
estreitas, inclinadas. Era tudo feito de mármore? Ele tombava e parecia curvar-
se, como um animal aleijado. Essa coisa quebrada deveria ser a casa de Hades,
o palácio do submundo.
Hesitei, com medo.
Do outro lado da planície escura veio uma avalanche silenciosa de vozes
- sussurros novamente, embora menos angustiantes do que a língua
remendada de Caronte. Eu passei meus braços em volta de mim, esfriei até os
ossos e forcei minhas pernas a se moverem para longe da água, em direção ao
palácio branco e, eu esperava, Hades. Minha pele se arrepiou; um arrepio
correu para cima e para baixo nas minhas costas, como se alguém invisível
acariciasse os raios da minha espinha. Eu precisava terminar isso. Eu precisava
descansar. Tensa e assustada como estava, ouvindo vozes deslocadas, temi
estar em perigo de perder minha sanidade. —Quase lá. — Falei baixinho para
mim mesma e me apressei.
O palácio era puro mármore branco e, quando me aproximei, vi as
fendas, tantas fendas. Uma das torres menores havia caído e desmoronado,
agora um caminho irregular e triste de mármore quebrado no chão. Contornei
seus pedaços afiados, agachei-me para pegar em minha mão um fragmento
macio e frio que se desintegrou em pó quando o apertei. Tudo aqui, mesmo a
pedra, estava morrendo ou morto. Sentia os mortos ao meu redor, sentia seus
olhos me observando, ouvia suas vozes falando de mim. Mas eu não via
nenhum deles, ainda não, e fiquei feliz por isso. Eu rastejei por um túnel na
torre quebrada e me encontrei diante de uma escada que conduzia à entrada
do palácio.
Se eu tivesse presumido que Hades me encontraria na entrada, me
cumprimentaria, me faria entrar com um sorriso e uma reverência, eu estava
enganada. Ninguém estava lá. Parei na soleira, incerta, o coração batendo mais
rápido do que as asas de um beija-flor.
—Hades? — Eu gritei, me amaldiçoando quando minha voz
tremeu. Respirei fundo, lembrei-me de que havia completado minha missão,
feito o que nenhum outro deus antes de mim ousara fazer. Eu estava com
medo, mas estava aqui, livre de Zeus, e isso era - tinha que ser - o suficiente.
—Hades? Você está aqui? — Tentei de novo, reunindo coragem para
gritar. Minha voz ecoou de volta para mim em zombaria de uma resposta: você
está aqui, você está aqui, você está aqui...
—Tudo bem, então. — Eu sussurrei, e entrei sem ser convidada no
palácio do Submundo.
Os corredores giravam e giravam como os túneis de um viveiro de
coelhos. Achei que estava indo em uma direção apenas para me descobrir
fazendo uma grande curva, até que fiz um círculo e voltei ao início. Era
enlouquecedor, mas não tive forças para ficar com raiva. Eu mantive uma mão
na parede de mármore e caminhei para cima e para baixo, girando e girando,
esperando encontrar Hades, preocupada em encontrar algo horrível.
Quando me aproximei de uma curva do corredor, ouvi música e parei
para ouvir. Era uma melodia suave de cordas, calmante; isso me atraiu. Eu
olhei ao redor da esquina para a porta aberta de uma grande sala.
Ela estava vestida de preto, toda de preto e na moda de um homem
mortal. Seus pés estavam descalços no chão de ladrilhos de pedra, e ela puxou
o cabelo para trás em uma torção atrás dos ombros. Ela não me notou; ela
estava se movendo em suaves arcos ao redor da sala. Dançando, eu percebi,
enquanto admirava seus gestos cuidadosos e olhava, hipnotizada, para a
nuvem de luz que ela segurava e girava e atirava: ela se separou e se fundiu,
mudando de um arco para uma orbe para uma chuva de luz, piscando sobre o
sombras no espaço escuro. E a música - vinha de todos os lugares e de lugar
nenhum. Eu senti isso no chão, nas paredes, dentro de mim.
Eu respirei rapidamente - talvez engasguei - e então houve silêncio, e ela
ficou paralisada, no meio da curva, olhando diretamente nos meus olhos,
lábios separados em uma expressão de surpresa. Surpresa por estar lá,
presumi, espiando pelos cantos do palácio inclinado de seu reino profundo e
escuro.
—Olá, — eu sussurrei, e quase ri, a palavra soou tão comum e fora do
lugar. Minhas pernas tremiam, mas segurei seu olhar e dei um meio sorriso. —
Vim.
—Então você veio. — Hades respondeu, endireitando-se. Com um piscar
de seus dedos, a nuvem de luz se apagou. Ela ficou parada por um longo
momento, e então, hesitante - como se estivesse incerta - ela estendeu os braços
para mim, os abriu bem.
Parecia um sonho, tudo isso - minha descida, os horrores do Styx, a dança
da luz de Hades. Mas meu coração estava batendo tão forte que eu ouvi e
também senti, e minha túnica estava úmida e manchada, e meu cabelo... Eu
pressionei o pouco que restou dele contra meu pescoço, repentinamente
envergonhada por estar diante da deusa do submundo em tal desordem.
Mas eu não aguentei mais, e corri pela sala até ela, enterrei meu rosto em
seu ombro. Não solucei, não chorei, embora quisesse, pude sentir minha
persistente força acumular-se das solas dos meus pés no chão de mármore
rachado. Pressionei minha boca em seu pescoço, contra o tecido escuro de sua
roupa, e a inspirei.
Ela me segurou, e não era um abraço caloroso, mas era um abraço, no
entanto. Quando eu afrouxei meu aperto sobre ela, ela recuou, colocou as mãos
nos meus ombros com os braços estendidos e me olhou.
—Você escolheu isto. — Ela disse simplesmente, e eu assenti. Ela me
puxou para perto de novo, embora com cautela, como se não soubesse
consolar, mas quisesse tentar. Minha orelha apoiada em seu seio, eu escutei
seu batimento cardíaco, e seu ritmo me lembrou de uma música que eu
conhecia.
—Hermes trouxe você? — Ela perguntou, arqueando para trás para
pegar meu olhar.
—Sim. — E então, porque eu precisava contar a ela, precisava explicar:
—Zeus pretendia me levar com ele para o Olimpo.
—Entendo. — O choque primeiro, e algo semelhante à raiva, agitou as
piscinas planas de seus olhos. —Bem, ele não terá você agora.
—Não, ele não vai. — Eu estremeci.
—Venha comigo.
Hades pegou minha mão propositalmente e me levou por uma série de
corredores longos e escuros. Tentei me lembrar de nossas voltas, mas logo
desisti, confusa e perdida, grata pelo senso de direção de Hades. Finalmente,
ela parou diante de uma porta e, além dela, havia um pequeno quarto com
uma cama menor e uma única lâmpada a óleo.
—Durma, — ela disse, suave e baixa. —Você está segura.
Seguro.
Fechei os olhos para saborear a palavra e apreciei a sensação da presença
constante de Hades ao meu lado. —Eu mal posso acreditar que estou aqui, —
eu sussurrei. —Estou realmente aqui, dentro da terra. Contigo.
—Durma agora, Perséfone. — Ela entoou, como se as palavras fossem
um feitiço, e ela tocou meu braço tão suavemente que eu senti uma lágrima
picar meu olho.
—Boa noite. — Eu sussurrei, e sua pele deixou minha pele, e eu sabia
sem olhar que estava dourada, dourada por toda parte, e então ela partiu, cada
parte dela: seu cheiro, seus olhos, sua voz como a música de outro
mundo. Deitei na cama e encarei a escuridão.
Minha cabeça e meu coração estavam cheios, mas meu corpo estava
exausto e, em poucos instantes, adormeci.
—Perséfone, Perséfone - onde você está? Oh, minha filha amada! Zeus, onde ela
poderia estar? Você a levou? Você a roubou de mim? — Minha mãe geme e bate no
peito e procura cinzas no fogo enquanto o rei dos deuses ri, dá de ombros e a deixa
chorando, sozinha.
Acordei assustada, sem fôlego. Meu coração parecia que ia quebrar a
gaiola dos meus ossos. Pressionei minhas mãos contra meu rosto, surpresa ao
encontrar meus olhos doloridos e úmidos. Eu estava chorando em meu sono. E
minha mãe - minha mãe chorou por mim no sonho. Mas era apenas um sonho.
Tonta, eu me sentei, desembaraçando minhas pernas dos cobertores
torcidos. Eu sabia onde estava, por que estava aqui, mas acordar de um
pesadelo neste lugar frio, sem verde à vista, sem luz do sol, sem canto de
pássaros... Senti o peso da terra empurrando para baixo sobre mim novamente,
e foi só quando levantei os olhos, notei Hades parada na porta, que o peso se
dissipou e me lembrei de respirar.
Levantei-me, lavei o rosto e caminhamos juntas; nós não falamos. Eu não
tinha noção da hora porque não havia céu. Achei, aqui, o tempo era irrelevante,
já que nada crescia, nada mudava. Os corredores serpenteavam para cima e
para baixo, terminando em escadas tão estreitas que meus quadris roçavam as
paredes, e me perguntei o que tudo isso significava, minha vida, a própria vida,
que levava a uma conclusão tão estranha e sombria.
Hades me guiou até uma varanda. Em vez de estrelas, meus olhos
encontraram uma escuridão ininterrupta.
—Seu cabelo. — Ela disse, tocando as pontas ásperas que roçavam
minhas orelhas, um dedo gentil roçando meu pescoço nu.
—Eu vendi.
Assistimos à manhã sem sol em silêncio. Depois de um tempo, parei de
esperar o nascer do sol.
—Sinto muito —, disse ela. —Existem tantas... leis no submundo. O que
é recebido deve ter valor igual ao que é dado. Estas são leis antigas, mais
antigas do que eu - mais antigas do que a terra. — Suas mãos agarraram o
corrimão de mármore. —Eu não poderia tornar mais fácil para você, embora
eu quisesse.
Estendi a mão e toquei seu braço. Ela não vacilou; ela não reagiu de
forma alguma. Então, deixei minha mão cair e sussurrei: —Foi minha
decisão. Eu me rebelei.
—O que você disse? — Hades me fixou no local com uma intensidade
de olhar que eu nunca tinha visto dela antes. Eu me sentia presa, fascinada.
—Eu me rebelei, — eu repeti obstinadamente. —Hermes me disse...
—Hermes, — ela riu, pressionando as pontas dos dedos na têmpora. —
Claro. — Seu rosto pálido - luminoso como uma lua cheia na escuridão que nos
rodeava - se contraiu de agitação. —Ele é um amigo querido, mas intrometido
nato. Ele disse alguma coisa para você sobre... tudo isso?
Eu hesitei. —Tudo de quê? Eu não tenho certeza se entendi.
Hades riu por um momento, nervosamente, os braços cruzados sobre a
cintura.
—Isso...— Ela limpou a garganta e tentou novamente: —Isso nunca
aconteceu antes. Ninguém, mortal ou imortal, jamais escolheu entrar no Mundo
Inferior. Não sabemos o que vai acontecer.
Meu coração estava afundando. Ela parecia diferente da noite anterior,
distante, presa em seus pensamentos. Eu me sentia muito sozinha. Então me
lembrei do rosto de Charis. Eu o pintei perfeitamente para os olhos da minha
mente, repassei a violação imperdoável de Zeus, segurei a imagem horrível
sobre meu coração como um escudo. Havia razões para eu ter vindo a este
lugar, e se eu as esquecesse, me perderia no desespero.
Hades estava me observando, mas eu não conseguia ler nada em seu
olhar negro e estável.
—Perséfone, por que você veio aqui, de verdade?
—Verdadeiramente? — Eu já tinha contado a ela sobre Charis, sobre
Zeus e seu plano de me levar para o Olimpo. A pergunta dela tinha um motivo
mais profundo, eu tinha certeza, mas não pude discernir; ela estava muito
distante agora. —Eu vim por uma chance, — eu murmurei finalmente,
resolvendo fazer as palavras soarem mais nítidas do que eu pretendia. —Eu
vim por uma escolha.
Ela assentiu, sem expressão. —Sim, bem - você percorreu um longo
caminho. Espero que você encontre o que está procurando. — Ela se
endireitou, se sacudiu, como se acordasse de um sonho, e então se virou e
caminhou de volta pelo corredor em um passo rápido, acenando para mim
com um olhar por cima do ombro. Eu corri para alcançá-la. —Eu estava
esperando você acordar para que eu pudesse lhe mostrar o Submundo. — Ela
disse, e nós rapidamente abrimos nosso caminho através do palácio. Dava três
passos para cada um dela.
—Há tanto aqui que você deve descobrir, veja. Há até mesmo beleza. Não
é muita, mas é minha casa.
Tentei imaginar como deve ter sido para ela, como continuou a ser, seus
incontáveis anos no subsolo. Acordar na escuridão e sussurros em vez da luz
do sol e do canto dos pássaros. De alguma forma, ela parecia satisfeita com a
escuridão, então não tive pena dela - ou de mim mesma. Seu mundo era o meu
agora, e eu estava ansiosa para explorá-lo ao lado dela.
Saímos do palácio e caminhamos juntas pela terra dura, nossos passos
silenciosos sob o vento de palavras sussurradas. Eu podia ver, vagamente, pela
luz das tochas, mas então algo caiu sobre nós - como uma névoa - e eu fiquei
cega na espessa névoa negra. Hades pegou minha mão e apertou com força.
—Há feitiços de escuridão aqui que descem sem aviso, — ela disse, sua
voz baixa, seu hálito quente em meu ouvido. —Não os tema. Se você esperar
um momento, conte até dez, eles evaporam. — E mesmo enquanto ela
murmurava as palavras, a escuridão começou a se dissolver, se separar como
um bando de morcegos assustados, e eu pude ver novamente, olhar para os
planos plácidos do rosto de Hades. Um caminho - mais escuro do que a terra
escura em que estávamos - se estendia longa e larga diante de nós. Notei as
paredes distantes da caverna arqueando-se no alto, mas meus olhos não
conseguiam encontrar a cúpula, o teto, onde as paredes se juntavam. Quando
olhei para cima, tive uma sensação de espaço ilimitado, mas isso não podia ser
verdade: em algum lugar acima de nós - muito, muito acima de nós - a grama
crescia. A menos que…
O Submundo era um lugar para o qual você poderia viajar, fisicamente
encontrar, sob a terra, ou era outro mundo, como o Olimpo? Eu tinha
caminhado aqui, encontrado o portão. Mas minha mente não conseguia
entender essa vastidão escura, não conseguia conectá-la de nenhuma forma à
terra que eu conhecia tão intimamente. Mais uma vez, me imaginei pega em
um sonho acordado. Nada parecia real. Não este caminho, não a mão de Hades
na minha, não aqueles montes de pedra à frente, ou o s om da água batendo.
Mas foi a água que me tirou dos meus pensamentos. Eu sabia muito
pouco, mas conhecia este lugar. Hades chamou-me para ficar perto dela na
costa rochosa do rio Styx. Procurei por Caronte, o escutei, mas estávamos
sozinhas e dei um suspiro secreto de alívio.
—Aqui, os rios Lethe e Styx se misturam —, disse Hades, passando o
braço sobre as ondas. —Você experimentou as águas do Lethe, suas
capacidades de cura. Mas uma gota desses rios combinados, e você esqueceria
tudo que você sempre foi, tudo que você sempre soube. — Seus olhos
seguraram os meus, o preto deles brilhando, lisos como óleo. —Esquecimento.
Eu estremeci, com frio.
—Mas quem poderia querer o esquecimento, algo tão final, tão absoluto?
— Eu me perguntei, perplexa, mesmo quando éramos acompanhadas por
um... ser, uma alma, eu imaginei, fina e rala como a fumaça de brasas
morrendo. Ela não nos cumprimentou - na verdade, ela passou por nós - e se
ajoelhou na água, abaixou a cabeça para beber.
Quando ela se levantou, ela se virou e olhou para mim com os olhos tão
vazios que eu dei um passo para trás, tirei minha mão do aperto de Hades e
me afastei para que ela não passasse por mim novamente. Ela não parecia mais
feliz em seu esquecimento, e um gemido escapou de sua garganta, o som tão
miserável que senti meu próprio coração apertar em simpatia.
—Por tudo que eu vi e tudo que fiz, eu nunca gostaria de esquecer, —
Hades disse, observando a balbúrdia de almas, a cabeça baixa sobre os ombros,
em direção à escuridão. —Mas alguns querem. E é escolha deles.
—Hades...— eu comecei, preocupando meu lábio com os dentes. —
Havia - pessoas no rio, afogadas no rio, quando eu vim de barco... e eles me
alcançaram, e seus rostos estavam tão angustiados...
Hades acenou com a cabeça, seus olhos baixaram de modo que os longos
cílios negros sombreavam suas bochechas.
—Novamente, uma lei antiga - o submundo está repleto de leis
antigas. Se você nadar na água, afunda-se nela, o Styx leva você. Mantém
você. Você nunca pode sair. — Hades segurou minhas duas mãos,
posicionando-se na minha frente, de modo que seu nariz se inclinasse em
direção ao meu. —Aquelas almas tentaram atravessar de volta, retornar à terra
dos vivos, mas o rio as prendeu. E eles ficarão presos para sempre.
Eu engoli em seco; meus olhos vidrados enquanto eu imaginava o
horror. E se eu tivesse pulado do barco de Caronte? Ser capturada dessa forma,
molhado, frio, escuro... e perdida para sempre - era pior do que qualquer
punição que Zeus já havia planejado.
—Não entre na água, Perséfone. Promete-me.
—Eu prometo. — Minha voz soou estranha, distante.
Hades me puxou junto e eu a segui, olhando para as ondas negras com
um novo pavor.
Caminhamos em silêncio até nos aproximarmos dos montes de
pedra. Não eram pilhas redondas de rocha como eu havia imaginado, mas
habitações - cavernas pequenas, empoeiradas e cinzentas, centenas delas,
talvez milhares, milhões. Não consegui decifrar o fim delas; elas estavam
alinhadas como uma coleção de crianças fastidiosas, e elas desapareciam no
túnel de escuridão além. À medida que nos movíamos entre elas, fiapos
esvoaçavam para fora das portas, reunidos diante de nós: mulheres, crianças,
homens. Aqui e ali os espíritos transparentes de gatos ou cães se espalharam,
e uma das mulheres cavalgava uma égua fantasma bufante. As almas
observaram Hades e eu com expressões em branco e, embora nenhum de seus
lábios se movesse, os sussurros aumentaram de volume e tom, um tornado de
som.
Hades inclinou a cabeça para a multidão. —Perséfone, esta é a aldeia dos
mortos. Essas almas são mortais cujas vidas expiraram. Alguns estão aqui há
dias, alguns desde o início dos tempos.
Eu não sabia o que fazer, como agir. Olhei para a forma delgada de uma
jovem com cabelos da cor das nuvens e sorri meu sorriso mais caloroso, mas
seu rosto se fechou com força e ela se dobrou sobre si mesma, virando-se,
curvada como uma flor pesada demais para seu caule.
A voz de Hades aumentou para falar sobre os sussurros, e ela se dirigiu
ao público de uma maneira afetuosa, mais como uma mãe do que uma
rainha. —Aqui está a deusa Perséfone —, disse ela, apoiando as mãos nos meus
ombros, —filha de Deméter e Zeus. Ela é minha convidada e peço a todos que
a tratem com bondade e a recebam bem.
Suas palavras foram recebidas com uma quietude constrangedora e os
sussurros zumbiram, densos e indecifráveis. As almas - tantas agora, e mais
aparecendo a cada momento - olharam para nós duas, não com admiração ou
mesmo curiosidade, mas com uma antipatia muda. Eu assisti, chocada,
enquanto algumas das almas zombavam de Hades e abertamente cerravam os
punhos.
Ainda assim, Hades ofereceu-lhes palavras imperturbáveis. —Vocês não
vão recebê-la? — Ela perguntou, e parecia que ninguém iria, e eu não queria
que ninguém o fizesse; Eu queria ir, para nunca mais voltar. Mas então uma
jovem avançou.
Ela era mais opaca do que seus companheiros - quase sólida - vestida
com uma fina túnica branca comum aos gregos, o cabelo preso com correntes
douradas pendentes. Seus olhos brilharam maliciosos e suas pernas estavam
sem sandálias, e quando ela parou diante de mim, ela inclinou a cabeça e
sorriu.
—Uma filha de Zeus, não é? — Ela proclamou alto o suficiente para um
eco. Eu me encolhi com a reverberação do nome odiado de meu pai. Mas o
rosto da mulher não continha malícia, e seu sorriso torto suavizou-se para um
leve divertimento. —Bem-vinda ao submundo, deusa. Nós — Ela gesticulou
amplamente. — somos os mortos.
Eu estava tensa, inquieta, rodeada pelas almas pasmadas e ainda abalada
pela minha longa jornada; uma risadinha nervosa escapou da minha
garganta. Eu coloquei a mão em meus lábios, mas a mulher sorridente riu
agora também.
—Tenho o prazer de conhecê-la. — Disse ela em um tom mais baixo, e
agarrou meu braço com seus dedos fortes, como os mortais fazem quando se
cumprimentam.
—Obrigada. — Eu me senti um pouco mais calma, embora a multidão
ainda estivesse olhando.
Hades suspirou, abaixou a cabeça entre nós duas e sussurrou: —Eles são
piores, Pallas. Mais zangados.
—Eu faço o que posso para reprimi-los, mas... Eles pararam de me
ouvir. Eles acham que estou sob seu feitiço... — A mulher - Pallas - balançou a
cabeça e sorriu ironicamente. —Eles não confiam em mim, Hades. Mas, oh,
onde estão minhas maneiras? Perséfone... —Ela pegou minha mão, inclinou-se
sobre ela e beijou-a. Seus lábios permaneceram por um momento em meus
dedos, macios, mas muito frios. Estremeci involuntariamente e Pallas jogou os
braços para o alto.
—Eu perdi meu contato com o sexo frágil, querido Hades, — ela riu. —
Diga-me, Perséfone, é porque eu estou - hmm, como coloco isso delicadamente
- morta? — Ela pressionou as mãos nos quadris e piscou.
Hades riu e me virei para olhar para ela, surpresa. —Perséfone, Pallas é
minha amiga mais querida em todo o submundo, minha fiel companheira.
—Oh. — Eu respirei, e meu estômago caiu. Meu coração fervilhava de
sentimentos terríveis: confusão, solidão, perda. Perda de quê? Algo que eu
nunca tive para começar...
De repente, eu estava furiosa comigo mesma e estava corando. Eu queria
esconder meu rosto, mas havia almas por toda parte. E o que isso
importa? Hades tinha me fornecido refúgio e eu estava grata por isso, e não
tinha o direito de esperar mais, de querer mais -
—Não é o que você pensa —, disse Pallas suavemente, colocando a mão
na minha bochecha quente. —Você nunca ouviu meu nome antes,
Perséfone? Você não conhece meu conto de aflição? — Ela disse a última
palavra com um toque sardônico nos lábios, mas seus olhos estavam opacos,
tristes.
—Eu não tenho certeza - eu estava muito protegida -
—Permita-me —, disse Hades, oferecendo um aperto no ombro de
Pallas. —Nossa adorável Pallas perdeu a vida em um acesso de raiva e paixão,
a mais poderosa das emoções mortais e imortais.
—Verdade —, Pallas sorriu. —Vá em frente, vá em frente.
—Pallas era a amada da deusa Atena. Você está familiarizada com ela,
Perséfone?
Eu concordei. —Um pouco, sim.
—Elas brigaram e, em um... acidente de raiva, Atena atravessou Pallas
com uma espada.
—Oh, que horrível! — Eu engasguei, boquiaberta, mas Pallas inclinou a
cabeça, encolheu os ombros magros.
—Eu era mortal, fraca e Atena era forte. Nós amamos... —Sua voz falhou,
mas ela deu de ombros novamente e cruzou os braços. —Nós amávamos muito
e profundamente, e lutávamos como feras. Ela era muito sábia para mim e eu
era muito impetuosa para ela.
—Foi por uma razão tola que brigamos - tão pequena, tão tola que, agora,
não consigo me lembrar. Quando eu morri, Hades teve pena de mim, tornou-
se uma amiga para mim quando eu não tinha ninguém e nenhuma esperança.
— Ela deu um tapinha na mão de Hades, olhou para ela calorosamente. —E
Atena... bem, mesmo os deuses não podem vir ao Submundo para visitas
casuais. Eu tenho autoridade, porém, que ela sente minha falta. — Os olhos de
Pallas brilharam. —Ela pegou meu nome, você sabe. Pallas Atena. — Ela olhou
para seus pés descalços. —Já se passaram trezentos anos.
Minha mão encontrou meu coração, que estava se partindo por ela, e eu
disse: —Oh, Pallas. — Lembrando-me de Atena bêbada e acariciando a garota
mortal no Monte Olimpo.
—Foi há muito tempo. Mas não consigo esquecer. Então Hades fica com
pena de mim. Nós nos tornamos amigas, eu acho.
—Sim, nós somos. — Hades sorriu.
Ofereci minha mão a Pallas e ela a segurou, olhando para ela com
saudade. —Espero que possamos ser amigas também.
Ela assentiu. —Nós vamos. Bem, é claro que vamos! — Ela colocou meu
pulso na dobra de seu braço, agarrou Hades com a mão livre e puxou nós duas
para longe dos mortos reunidos e de sua aldeia estranha, triste e sussurrante. O
mar de almas se abriu quando passamos, e eu fiquei tão feliz por ir embora que
sorri amplamente, chamei a atenção de Hades e ela abaixou a cabeça em minha
direção, sorrindo também.
Observei novamente a solidez de Pallas em comparação com as pessoas
que deixamos para trás. Eu não conseguia ver minha mão em seu braço, e seus
passos levantaram a poeira, assim como os de Hades e os meus. Fiquei
intrigada com isso, como ela parecia viva, exceto pela frieza de sua pele e uma
névoa quase imperceptível.
—O que me interessa, Perséfone —, disse ela, enquanto nos
aproximávamos da entrada do palácio de Hades. — É como você veio para o
submundo.
—Eu caminhei aqui. — Eu disse simplesmente. Ela riu e deu um tapinha
na minha mão.
—É simplesmente incomum... Ninguém, exceto Hermes, entra no
Mundo Inferior a menos que tenha morrido.
—Mas por que isso?— Eu perguntei a ela. —Foi uma jornada difícil, mas
não impossível, e...— Comecei a me preocupar que talvez Zeus viesse me
buscar, afinal, descer aqui e me levar embora, me punir, e minha mãe, e
possivelmente Hades, se ele descobrisse para onde eu tinha ido.
Hades balançou a cabeça; seu cabelo brilhava sob a luz das tochas e seus
olhos brilhavam como pedras negras. —Medo, Perséfone. Eles são imortais,
mas temem a morte mais do que os mortais. Nenhum deus ou deusa se
atreveria a entrar no meu reino, porque temem nunca poder deixá-lo.
—E eles poderiam deixar isso? — Eu perguntei, minha boca seca, palmas
úmidas.
—Você é livre para fazer o que quiser.
—Eu não quis dizer - só me perguntei - você disse que existem leis...
Eu estava com medo de ter ferido os sentimentos de Hades, ou parecia
ingrata, mas ela olhou além de Pallas para mim e sorriu seu sorriso gentil. —
Você está livre, — ela disse novamente. —para fazer o que quiser. Meu reino é
seu, e quando você se cansar dele... sua terra irá recebê-la de volta.
Meu coração acelerou como algo solto apanhado pelo vento. Eu queria
agradecer a Hades, dizer a ela o quanto eu apreciava tudo o que ela fez por
mim, como eu apreciava sua bondade, mas as palavras adequadas não
tomaram forma, e Pallas nos soltou para escalar e passar pelas ruínas de a torre
caída. —Verdade seja dita, — ela disse, de costas para Hades e para mim. —os
deuses são sábios em temer este lugar. Existem perigos aqui, destinos piores
que a morte. Você a avisou para ficar longe do Styx, Hades?
—Sim-
—Tudo escuro e indecoroso se esconde no submundo. Existem horrores
diferentes de qualquer um que você possa encontrar lá em cima, acima do solo.
—Você está assustando ela —, disse Hades, e Pallas olhou para mim, seu
rosto se desculpando. —Não foi minha intenção, mas ela mora aqui agora e
precisa saber ... eu gostaria de saber.
—Eu quero saber —, eu disse, surpresa com a força da minha voz. —e
não tenho medo de ter medo.
Pallas se virou para mim, gritou e bateu palmas. —Aí está! É por isso que
você está aqui, você e mais ninguém. Só poderia ser você... —Ela acenou com
a cabeça para Hades, e seus olhos se encontraram em um olhar pesado. Os
lábios de Pallas se curvaram em um sorriso.
Atravessamos a porta do palácio.
Eu não conseguia dormir. Rostos fantasmas das almas presas no rio Styx
me assombravam cada vez que fechava os olhos. Frustrada, levantei-me e
andei de um lado para o outro no meu quarto. Sozinha com meus
pensamentos, com a escuridão, me sentia esmagada e minha pele estava
arrepiada. Então, saí, ciente de que nunca encontraria o caminho de volta pelo
labirinto de corredores e escadas tortuosos.
Tudo estava tão quieto, um silêncio ensurdecedor que eu não conseguia
suportar, e quase ansiava pelo coro de sussurros dos mortos. A pressão do
silêncio em meus ouvidos era dolorosa.
—Oh! Perséfone?
Pallas - ela quase trombou comigo e agarrou meus braços para recuperar
o equilíbrio.
—Eu não vi você. Eu sinto muito. Achei que você estava dormindo.
—Eu não poderia. Eu esperava que uma caminhada pudesse ajudar-
—Venha, venha! Eu só tenho uma coisa para inquietação.
Eu a segui por um corredor que fazia um arco para a esquerda, e ela me
puxou pela mão para uma sala iluminada - luz inconstante dourada e branca -
ocupada por uma lira lindamente esculpida e Hades.
Pallas se jogou no chão, cruzou as pernas sob o corpo, pegou a lira e
começou a dedilhar, as notas claras e brilhantes, cintilantes. Ela sorriu
enquanto tocava, e sua alegria era contagiante.
Hades cruzou para mim, perguntas em seus olhos, a esfera de luz
brilhando em sua palma. Eu sorri; Fiquei muito feliz em vê-la. —Eu posso
dizer que você está ocupada; Eu não quero interromper-
Mas ela sorriu, parou minha boca com o dedo e jogou o orbe sobre nossas
cabeças; choveu sobre nós, cintilando como pequenas estrelas na noite de seu
cabelo.
—Como...— eu comecei, e então sua mão estava na minha, e a luz ainda
estava caindo - não, pairando no ar - e Pallas fez as cordas cantarem, felicidade
para meus ouvidos. Hades me girou ao redor, e eu estava envolta em fios de
teia brilhantes, dançando com tentáculos de luz. Eu me sentia selvagem. A pele
de Hades brilhava e meu coração ficou preso na garganta.
E então ela estava dançando também, um turbilhão de escuridão e brilho.
Mudei-me para o canto, coloquei minha mão contra a parede e observei
Hades girar e girar. Quando a música parou, ela se esparramou no chão ao
lado de Pallas, rindo, respirando com dificuldade, seus olhos negros
brilhantes.
Eu me sentia como uma pobre criança olhando pela janela do
comerciante para algo lindo, um tesouro, que eu nunca poderia pagar.
—Boa noite. — Murmurei, tão baixinho que elas podem não ter me
ouvido, e me virei da sala e caminhei de volta pelo corredor, refazendo meus
passos insones. Várias curvas erradas depois, encontrei meu quarto e,
lentamente, sentei-me na cama, atordoada.
Eu conhecia esse sentimento. Eu sabia o que era.
Deitei em cima dos cobertores e fechei os olhos para o escuro, cobrindo a
testa com as mãos.
—Ela é tão linda. — Eu sussurrei, e fiquei ali acordada por longas horas,
pensando.
—Acorde, Perséfone.
Abri os olhos, esfreguei a mão no rosto, no cabelo, desacostumada à sua
falta irregular. Pisquei para limpar meus sonhos e, na penumbra do quarto, vi
Pallas ajoelhada ao lado da cama, sorrindo para mim como alguém com um
segredo. Eu puxei meus joelhos para baixo dos cobertores e sorri de volta para
ela.
—Você dorme como um morto —, ela sorriu e me ajudou a ficar de pé. —
Hades está em modo oficial hoje - ela tem que cumprimentar alguns novos
heróis que chegaram aos Campos Elísios. — Pallas me encarou, as mãos nos
quadris, enquanto me inclinei sobre a bacia para lavar o rosto. —Ela não
poderá atender você por um tempo, e ela me implorou para cuidar de
você. Assim! Vamos ver que tipo de travessura podemos fazer.
Tentei esconder minha decepção, mas Pallas fez um som de cacarejo com
a língua e agarrou minha mão, levando-me para fora do quarto antes que eu
pudesse me secar; riachos de água correram sobre minhas bochechas. —Você
a verá em breve, adorável. Diga-me, o que você sente pela nossa rainha dos
mortos?
—Eu sinto...— Eu sentia tantas coisas por Hades, e era tudo tão novo que
eu ainda não tinha correspondido as palavras aos sentimentos. Pelo menos,
nenhuma palavra que eu estivesse preparada para compartilhar em voz
alta. —Gratidão, — eu gaguejei. —e carinho. Ela me deu minha liberdade. Não
sei como vou retribuir isso, mas gostaria de tentar.
—Mm. — Pallas respondeu, misteriosamente, e ela me conduziu com
perícia treinada através do labirinto sinuoso, segurando a língua o tempo
todo. Quando saímos do palácio, meu coração afundou um pouco: a grande
cúpula de escuridão se arqueava acima e o plano escuro do Mundo Inferior se
estendia diante de nós. Em breve, eu sabia, aprenderia a aceitar a escuridão,
mas meus olhos estavam tão famintos por luz que se agarravam a cada tocha
por que passávamos; o fraco brilho verde nunca era suficiente.
Escutei os sussurros do submundo e segui Pallas ao longo do longo e
difícil caminho ao lado do rio Styx. Quando chegamos à aldeia dos mortos, as
almas nos observavam, mas não falavam conosco - Pallas se movia com muita
determinação. Eu peguei vislumbres de crianças pequenas olhando através
das janelas entalhadas, de homens e mulheres fantasmagóricos agrupados
juntos, sussurrando - sempre sussurrando. Os cabelos da minha nuca se
arrepiaram, e temi perder Pallas na confusão monótona de moradias idênticas,
então acompanhei meu ritmo ao dela.
—Onde estamos indo? — Eu finalmente perguntei quando ela parou na
beira do rio turbulento.
—Eu quero te mostrar algo. Silêncio, agora - eu tenho que me concentrar.
Para meu horror, ela se ajoelhou em um lugar onde a água batia na pedra
e enfiou os braços até os ombros no rio.
—Pallas, não! Você não pode-
—Shh.
A água agitou-se, turva e negra, e pude ver cintilações de olhos e
membros sob as ondas. Mãos, sem unhas e brancas, agarraram Pallas, mas ela
estava calma, decidida. Ela as ignorou completamente.
—O que você está fazendo? — Eu assobiei, caindo de joelhos ao lado
dela. Ela me calou novamente e cambaleou para trás, com os braços esticados
sobre a água. A luz da tocha revelou uma corda cintilante presa em seus
punhos. Ela segurou a ponta dela, e o rio escondeu o resto.
—Pallas-
—Eu não corria perigo, desde que meu rosto ficasse acima da água. E
agora, —ela sorriu para mim, seus olhos brilhando, — nós podemos cruzar.
Meus dedos puxaram o cabelo desgrenhado contra meu pescoço e olhei
para a corda nas mãos de Pallas. —Você convocou Caronte? Com essa corda?
— O pânico quebrou dentro de mim com a ideia de pisar em sua barcaça
novamente, tão cedo.
—Não precisamos de Caronte. — Disse Pallas simplesmente, levantando
a corda sobre sua cabeça, puxando-a, de modo que a água envolvendo seu
comprimento ondulasse suavemente. Colocando os pés na margem do rio, ela
puxou a corda; esticou-se, cintilando como uma viga de prata, entre seu aperto
e o do Styx.
Vários momentos se passaram durante os quais nada mais aconteceu; Eu
me virei para ela, perplexa.
—Espere. — Ela sussurrou.
Então esperamos.
Então, houve um rugido tão repentino que tapei os ouvidos com as mãos
e gritei. Pallas sorriu para mim, apontando com o queixo. À distância, as águas
negras se separaram e eu vi que a ponta da corda estava amarrada a um laço
enferrujado em uma tábua apodrecida - que estava presa à frente de um navio
apodrecido com o rio Styx escorrendo por suas margens. À medida que subia
das profundezas, as águas se fecharam abaixo dela, e a embarcação, a pedido
de Pallas, flutuou silenciosamente para a costa.
—Viu? — Pallas riu. —Não há necessidade de Caronte!
—Graças aos deuses por isso,— sorri, aliviado e animado.
Ela saltou para a embarcação, saltou para cima e para baixo para - eu
imaginei - testar sua solidez. —Ela não está totalmente em condições de
navegar, mas ela servirá para uma excursão curta. Vamos, Perséfone!
Eu pisei nos trilhos, arranhei minhas sandálias na madeira alagada. —
Como dirigimos? — Eu perguntei, e Pallas apontou o dedo para mim, então
girou e apontou para o lado oposto do rio. Eu escorreguei e perdi o equilíbrio
quando a embarcação estremeceu e saltou naquela direção, para longe da vila,
do palácio, de Hades.
—Você é incrível! — Chamei-a sobre o rugido da água, e ela encolheu os
ombros, sorrindo amplamente, oferecendo-me a mão. Segurei-me nela e me
levantei, cambaleando um pouco com o balanço. Tentei não olhar muito para
a água, para as almas condenadas que se estendiam para nós e batiam nas
pranchas de madeira.
Finalmente, a embarcação bateu contra a terra e estremeceu até
parar. Desembarcamos rapidamente.
—Por que viemos aqui, Pallas? — Eu me perguntei por um momento se
ela pretendia me levar de volta à terra - mas é claro que ela não poderia ir para
lá. Os mortos não tinham permissão para deixar o submundo.
—Você descobrirá em um momento.
Batidas de cascos soavam em um forte staccato na costa rochosa.
Diante de nós estava o lugar onde a parede gigantesca se encontrava com
o solo, proporcionando uma borda de terra com alguns passos de largura antes
de mergulhar no Styx. Ao longo dessa borda se moviam duas sombras,
lustrosas e pretas, trotando tão facilmente que parecia que flutuavam - exceto
pelo som de seus cascos batendo contra a rocha. Eu os conhecia: os cavalos da
carruagem de Hades.
Eles se erguiam, mais altos do que eu me lembrava. Fora de nosso
alcance, eles diminuíram a velocidade, pararam, bufaram, movendo-se um
contra o outro e angulando seus grandes pescoços para nos examinar. Pallas
estendeu uma mão, plana, para o maior animal. Eu observei quando ele curvou
sua cabeça cinzelada para focalizar sua palma, e uma língua vermelha
serpenteou para lamber sua pele.
—Ébano —, disse Pallas, acariciando o pescoço desta criatura com a mão
livre. —O menor é Entardecer. Juntos, eles puxam a carruagem de Hades.
Eu os encarei com admiração e Pallas riu. —Vá em frente, eles não
mordem. Pelo menos, não frequentemente.
Ela sorriu, pegou minha mão e a colocou sobre o lado arfante de
Entardecer. Ele se moveu em minha direção, roçou sua grande cabeça contra
meu peito e estômago; lágrimas surgiram em meus olhos. Apesar de seu
tamanho imponente e da sensação de ameaça que os precedia, essas eram
criaturas da terra... vivas no submundo. Eles eram como eu.
—Acho que Noite está se apaixonando por você.
—Eu amo cavalos. — Eu sussurrei, acariciando a crina escura e
emaranhada, escovando a mecha de seus olhos. Ele e Ébano eram totalmente
mortais, exilados do mundo que eu deixei para trás. Eu me perguntei como
eles lidavam com a escuridão sem sol do reino de sua amante.
—Eles são lindos, não são? — Perguntou Pallas. Quando eu balancei a
cabeça em concordância, ela acrescentou: —É uma pena que eles sejam cegos.
—Oh... cegos. — Olhei nos olhos de Entardecer e encontrei uma brancura
leitosa em suas profundezas.
—Cegos de nascença - a única maneira de eles viverem aqui e não
enlouquecerem. — Pallas deu um tapinha no ombro de Entardecer. —Os
cavalos se dão bem em qualquer lugar se forem cegos. Eles não são como as
pessoas.
Eu concordei.
—Perséfone, por que você está tão triste?
—Não estou triste... acho que estou triste por eles, presos aqui.
—Hades os trata bem. Estraga-os, para ser sincero. E Ébano... — Ela
acariciou o veludo de seu nariz. —Ele está engordando! Hades o alimenta com
muitas maçãs.
Quando os cavalos se cansaram de nossos mimos e saíram para farejar o
chão, procurando grama (que crescia aqui, Pallas me disse, em uma área
especial que Hades havia criado apenas para eles), eu disse: —Obrigada,
Pallas, por me trazer aqui. Tenho saudades da Terra - mais do que percebi.
—Pensei que você poderia. — Ela me observou de perto. —É sempre
bom ser lembrada de casa.
Sentei-me no chão duro, senti o frio através da minha túnica. —Mas esta
não é sua casa agora?
—Não é sua?
Eu inclinei minha cabeça. É isso? Eu me perguntei. Poderia ser?
Ébano e Entardecer moviam-se juntos como se estivessem em uma dança
equina; eles não mostravam sinais de sua cegueira.
—Como está Atenas? — Pallas sussurrou tão baixinho que me perguntei
se a tinha ouvido. Quando me virei surpresa, ela estava olhando para
mim; rapidamente, ela desviou o olhar. —Atena? — Ela murmurou, e havia
dor na palavra... talvez medo, também.
—Eu a vi no Olimpo. — Eu admiti, lutando com a verdade, esperando
encontrar um meio de escondê-la. Mais uma vez, vi a Atenas de minha
memória, com o rosto vermelho e rebelde, os braços emaranhados nos de outra
mulher, as mãos presas nos cabelos. Mordi meu lábio e Pallas se sentou ao meu
lado.
—Estou com saudades dela —, disse ela, inclinando-se para a frente, os
cotovelos sobre os joelhos. —Eu sonho com ela todas as noites. Toda noite. E
quando eu acordo, às vezes acho que ainda estou lá com ela... e então eu
percebo onde estou, e a perco de novo.
—Sinto muito. — Eu sussurrei.
—Foi há muito tempo. Parece que foi ontem para mim. Mas para ela...
Ficamos em silêncio. Eu assisti a agitação do rio Styx, e meus
pensamentos vagaram junto com as águas escuras. Eu pensei em minha
mãe. Eu esperava que ela não estivesse preocupada comigo. Eu me perguntei
se Zeus sabia que eu estava desaparecida.
Acima de tudo, eu me perguntava... Hades estava pensando em mim
agora?
—Os Campos Elísios - o nome era familiar, mas eu não sabia nada sobre
ele. — Disse isso a Pallas. Ela enrugou o nariz, olhando para a escuridão.
—É uma recompensa para os heróis. Se eles prestaram serviço em honra
aos deuses, eles podem receber uma bênção de Zeus, contornar a aldeia dos
mortos e viver suas eternidades em um lugar de sol e campos dourados. Não
é realmente tão idílico, por mais que os heróis falam sobre isso, por mais que
sonhem em ir para lá. — Ela se inclinou para frente e estudou suas mãos. —
Veja, isso é tudo - um céu claro e campos de grãos, e os heróis ficam sentados
lá por toda a eternidade, sozinhos com seus pensamentos, tentando esquecer
os homens que mataram, as atrocidades que cometeram, os horrores que olhos
viram. É... é pior do que a aldeia dos mortos. É um pesadelo.
—Mas Hades os recebe lá?
—Bem...— Pallas suspirou. —Ela fala com eles. Ela tira o pior de suas
dores. Não dor física - nenhum dos mortos sente dor física no submundo,
apenas o fantasma deles. Mas existem outras dores, da mente... e do coração.
— Suas pálpebras tremeram por um momento e ela lambeu os lábios. —Muitos
dos heróis vieram das guerras - eles assassinaram mulheres, crianças, em nome
de Zeus. — Ela balançou a cabeça, zombou e sua expressão falou muito: Pallas
odiava Zeus, também.
—Então Hades os ajuda. — Eu a incitei, e ela assentiu.
—Ela faz o que pode para facilitar suas transições. Ela não precisa, mas
ela quer. Ela se exaure. Tentei dizer a ela que é um esforço inútil. Não importa
como ela os aconselhe, todos acabam do mesmo jeito, soluçando ou se
lamentando no campo, olhando para o nada, perdidos na escuridão de seus
próprios pensamentos.
—Eu gostaria de vê-los.
—Você não gostaria. É deprimente além das palavras.
—Tenho certeza que sim, mas ainda assim gostaria de visitar, ver por
mim mesma.
—Talvez um dia Hades leve você lá.
Eu olhei através do Styx.
Além de Pallas, tive apenas um punhado de interações com mortais; Eu
sabia tão pouco sobre eles. Mas era isso que eles tinham que esperar, depois de
uma vida longa e difícil? Escuridão sem fim, aglomerada, esperando por... o
quê?
—É por isso que eles estão com raiva, você sabe —, disse Pallas, e se ela
tivesse lido minha mente. Virei-me para ela e ela juntou os dedos, inclinando-
se para perto de mim. —É por isso que passo tanto tempo na aldeia. Os mortos
estão com raiva porque os heróis têm os Campos Elísios e eles têm apenas
aqueles montes ocos. Tentei explicar a eles que os Campos Elísios são uma
piada, um truque cruel - mas eles não acreditam em mim. Eu sou apenas uma
pessoa - e uma das favoritas de Hades, de quem eles desconfiam. As histórias
são muito fortes entre eles. Eles não vão ouvir.
Um arrepio percorreu minha pele e estremeci, esfregando meus
braços. —Eu também ficaria com raiva, Pallas.
—Sim, é terrível. Mas Hades não inventou esse design. É tudo obra de
Zeus. Como pode ser desfeito? Não sabemos quem criou a terra, o submundo,
mas os mortos terminam aqui por decreto de Zeus. Sempre me perguntei -
desde que estou aqui - se todos nós deveríamos acabar nos Campos Elísios,
não apenas os heróis. E se fosse povoado, se houvesse almas suficientes para
formar comunidades, acho que poderia ser um lugar verdadeiramente
lindo. Mas isso não vem ao caso, — ela encolheu os ombros. —Os mortos
culpam Hades por tudo. Eles se apegam obstinadamente à injustiça de tudo
isso e precisam de um alvo para sua raiva.
—Mas o que eles poderiam fazer, além de reclamar? Eles são
insubstanciais... Um deles passou direto por mim.
—Olhe para o meu braço —, disse Pallas. —Veja como parece real. Você
sentiu isso; você sabe que é sólido. Sou assim porque acredito que deveria ser
- porque não aceito a ideia de que os mortos são menos. Menos real, menos
físico, menos importante. É tudo uma questão de crença, Perséfone. Eles
pensam que não são nada, então não parecem nada. Sentindo-se como
nada. Mas se eles reivindicassem seu próprio poder... —Seus olhos eram
duros, inabaláveis. —Se eles se unirem, descobririam uma maneira de
prejudicar Hades... temo por ela.
As palavras de Pallas me perturbaram profundamente. Eu me sentia
desamparada e estava com tanto frio que meus dentes batiam. Eu queria
conforto e não teria nenhum, não aqui.
Peguei a mão estendida de Pallas e ela me ajudou a ficar de pé.
—Hades pensa que vejo tramas onde não há nenhuma. Mas ela é muito
confiante. Ela ama seu povo, embora eles a odeiem. — Começamos a seguir a
margem do rio. A inquietação corroeu meus ossos enquanto eu observava as
ondas, sem ver.
Os cavalos perceberam nosso movimento e galoparam à frente, depois
recuaram, correram novamente à frente, envolvidos em um jogo. Finalmente,
nós nos despedimos; eles bufaram e trotaram para longe, de volta à planície
relvada, imaginei, caudas pretas fluindo atrás deles como estandartes
estalando ao vento. Nós os observamos ir até que a escuridão os engoliu.
E então a escuridão nos engoliu também. Eu estava me sufocando,
sufocando com isso, o preto era tão espesso e pesado.
—Perséfone! — Pallas chamou, e eu estendi minha mão, encontrando
seus dedos frenéticos.
—Hades me contou sobre isso, — eu disse, tentando - e falhando - para
esconder o tremor em minha voz. —Eu sinto que fui vendada.
—Espere só um momento. Lá! Já está levantando... Viu?
A nuvem negra evaporou e me vi olhando para o sorriso contagiante de
Pallas. Ela deu um tapinha no meu braço. —Elas são irritantes, mais do que
qualquer coisa. Como uma tempestade. Você se acostuma com elas.
—Espero que sim. — Murmurei, observando o quão perto tínhamos
vagado para o rio em nossa jornada cega. Poderíamos ter caído e ser arrastadas
para baixo... Mas estávamos seguras. Seguras o suficiente. Eu inalei
profundamente, ansiosa para retornar ao palácio.
Ela puxou a corda de prata da parte rasa e rapidamente puxou o barco
para a costa.
—Como você faz isso? — Eu perguntei a ela. —Como você pode
encontrar a corda?
—Eu não posso explicar isso. De alguma forma, a corda funciona como
uma âncora. E não importa onde eu mergulho minhas mãos, eu encontro, mais
cedo ou mais tarde.
—Caronte sabe sobre isso? — Nós pisamos na madeira molhada e
rangente. O barco partiu com um gemido, balançando sobre as ondas na
direção do dedo estendido de Pallas.
—Isso importa? — Ela sorriu para mim por cima do ombro.
—Eu não gosto dele.
—Está tudo bem. Ele não gosta de ninguém.
Inclinei meu queixo para cima, fechei meus olhos, cantarolei um pouco
para mim mesma para bloquear os sussurros dos mortos subaquáticos.
Quando chegamos ao outro lado da margem, Pallas e eu saltamos do
barco e ele afundou fundo nas águas sem fazer barulho.
—Bem, isso foi uma aventura, não foi?
—Foi. — Eu concordei, mas meus pensamentos estavam em outro
lugar. Escalamos o barranco e, quando a aldeia dos mortos apareceu, comecei
a arrastar os pés.
—Devemos passar por isso? Não existe outra maneira?
—Coragem, deusa Perséfone, — Pallas me provocou. Ainda assim, ela
segurou minha mão, enfiou-a em seu braço. —O Submundo é um lugar
engraçado - se você deseja ir a algum lugar, há certas estradas que você deve
viajar, ou você nunca chegará ao destino desejado. Está vivo, dessa forma. Ele
tem uma mente própria.
—Conte-me sobre os lugares aqui. Quero saber mais, tudo o que há para
saber.
De braços dados, começamos a caminhar em direção às fileiras de
habitações nas cavernas, e agora tínhamos de elevar a voz para falar acima dos
sussurros.
—Bem, — ela inclinou a cabeça. —Existe a vila dos mortos, é claro. O rio
Styx. Os Campos Elísios - que ninguém pode encontrar sem a orientação de
Hades. Ela mesma é a chave. Se ela quiser, os campos simplesmente aparecem.
—Existem túneis que se ramificam das cavernas ao longo daquela parede
oposta, — ela continuou, gesticulando. —Não vá explorar. Elas escondem
abominações - as criações dos deuses, a maioria deles - monstros que iriam
comê-la assim que olhassem para você. E, — Ela suspirou, baixando a voz. —
há também a entrada para o Tártaro.
—Tártaro?
Ela exalou pesadamente. —Eu não gosto de falar a palavra. É o lugar
mais profundo e sujo de toda a terra. Medonho, por completo.
—E nenhuma dessas criaturas nunca saiu? Lá fora?
Ela engoliu em seco e manteve os olhos no caminho. —Não,
normalmente não.
Os mortos nos cercaram, mas tentei não notar ou ouvir. Em vez disso,
olhei para as moradias - do que elas me lembravam? Eu já havia encontrado
algo parecido com elas antes, e enquanto caminhávamos entre elas, lembrei-
me: túmulos. Velhas, velhas criações de povos verdadeiramente antigos,
desenterradas e formadas com rocha, terra e orações. Eles eram sagrados,
aqueles montes, e esses montes se assemelhavam a eles, mas não havia
nenhum senso de santidade, apenas desespero.
Uma criança estava sentada no chão, fazendo círculos com o dedo na
poeira. Ela acenou com a mão suja quando passamos. Eu acenei de volta, sorri
levemente, mas Pallas balançou a cabeça e me empurrou para frente.
Tínhamos quase chegado ao início da aldeia - eu podia ver o caminho
para o palácio de Hades logo à frente - quando uma reunião de fogos-fátuos
nos confrontou, estendeu os braços como se para nos bloquear, e eu olhei para
Pallas, que havia parado em deferência a eles. Achei que poderíamos passar
por eles - eram como vapores, mal existiam - mas esperei ao lado de Pallas,
tremendo.
—Hageus. — Ela se dirigiu ao fantasma mais alto, uma mulher de
ombros largos e olhos ferozes.
—Você passou a noite passada no palácio. Tratamento preferencial,
hein? Qual é o próximo? Você vai conseguir um lugar nos campos?
Pallas e Hageus olharam uma para a outra com expressões educadas,
mas seus olhos brilhavam perigosamente.
—Não seja idiota —, zombou Pallas. —Se eu tivesse escolha - e tive - eu
escolheria a aldeia em vez dos campos. Você não viu os campos, minha
amiga. Eu te disse; eles são insuportáveis: filas intermináveis de grãos, sol
impiedoso e nada mais que silêncio. E me arrependo.
—Mas você os viu.— Hageus avançou, seus olhos amorfos iluminados
com uma luz estranha. Ela tocou os ombros de Pallas, e fiquei impressionada
com o quão transparente Hageus era realmente em comparação com Pallas. Ela
rolava como névoa.
—Ela os viu! Eu disse a você - ela os viu!
As outras almas se juntaram perto, pressionando de todos os
lados. Achei que seria capaz de me mover através delas, mas quando
pressionei de volta, me deparei com uma parede resistente de carne. Elas eram
sólidas ao toque e fortes.
—Acalmem-se. — As palavras de Pallas cortaram o fervor crescente
como uma faca. —Eu vi os campos por um momento, muito tempo atrás. Você
se esquece - Atena queria que eu ficasse lá.
—Porque você sempre foi a favorita dos deuses! — Hageus gritou, e
gritos aumentaram, grunhidos de assentimento. Alguém agarrou meu cabelo
e eu tropecei para trás, colidindo com uma mulher morta que sibilou em meu
ouvido.
—Os deuses dariam a você qualquer coisa se você pedisse! —
—Mas não minha vida.— As palavras de Pallas se perderam em uma
cacofonia de gritos. Hageus rasgou a túnica de Pallas, e eu gritei, esmagado
entre as almas furiosas até que não consegui mais respirar, até que fiquei tão
fraca que comecei a afundar-
—O suficiente.
Elas se dispersaram como fumaça, e envolta na névoa estava Hades. Seus
olhos negros se estreitaram, as sobrancelhas levantadas afiadas.
—Ouçam-me, — ela sussurrou, mortalmente quieta. Os fogos-fátuo a
encararam, todos de uma vez, como se compelidos por uma força além de seu
controle. —Nunca mais —, disse Hades, pronunciando as palavras como um
feitiço, uma maldição. Ela se aproximou de mim e pegou minha mão. —Não
toquem nela nunca mais.
Pallas acenou com a cabeça quase imperceptivelmente para Hades,
trocou um olhar curto e significativo com ela, antes de voltar para a aldeia -
para sua própria casa, talvez. Não houve nenhum som, nem um sussurro,
enquanto Hades me levava para longe da multidão boquiaberta.
Nunca me senti tão cansada e tive que trotar para acompanhar os passos
largos de Hades.
Ela não disse uma palavra, não se dirigiu a mim, não até que passamos
pela porta do palácio, e então ela parou e se virou para mim, me pegou em seus
braços, puxou minha cabeça para seu peito.
Eu me perdi no ritmo de seu batimento cardíaco, desejando que o meu
próprio batesse no ritmo do dela.
—Você está bem? — Ela sussurrou.
—Sim. Obrigada por...
— Não me agradeça. — Ela se afastou e esfregou os olhos. —Perdoe-me.
— Ela suspirou, e, depois de mais um segundo, Hades se virou e caminhou
pelo corredor. Meus olhos a perderam na escuridão.
Eu caí contra a parede, exausta demais para ficar orgulhosa e ereta, como
qualquer deusa bem-criada deveria. O que minha mãe pensaria de mim agora,
empoeirada, humilhada, tosada? Curvei-me sobre o coração, senti seu
tamborilar - imaginei ter ouvido um nome em seu ritmo irregular.
Houve perigo verdadeiro? Eu era imortal, mas Hades estava tão zangada
com o esmagamento de almas e, agora mesmo, tão triste.
Eu não estava ferida, mas me sentia sem energia, cansada demais para
pensar em mais perguntas. Cansada demais, na verdade, para procurar meu
quarto, mas mesmo assim vaguei pelo palácio, tropeçando, perdida, e no
instante em que perdi as esperanças, lá estava ela, minha cama comprida e
baixa. Eu não sabia que horas eram, se o tempo existia aqui, mas eu tinha que
descansar, e quando caí na cama, apenas um pensamento surgiu antes que o
sono tomasse conta de minha mente: Hades havia pensado em mim.
Era impossível dizer se era de manhã ou no zênite da noite. Eu me
revirava na cama, dormia em pedaços, acordei repetidas vezes em pânico -
comprimida pela terra, pela escuridão. Por fim, levantei-me, alisei meu cabelo
curto e despenteado da melhor maneira que pude e fui vagando pelos
corredores do palácio. Não havia mais nada a fazer.
Encontrei a sala do trono de Hades. Eu já havia passado por ela antes,
mas nunca me demorei. Aqui, fileiras de tochas brilhantes alinhavam-se nas
paredes, e uma grande cadeira preta estava no centro, maior do que o
necessário, áspera e quadrada. Eu tracei meus dedos sobre o mármore escuro,
senti os entalhes nos apoios de braços: pessoas envoltas em uma fileira,
levantando seus braços para Hades, que se ajoelhava, abraçando uma criança
chorando.
Uma porta atrás do trono conduzia a uma câmara sombreada. Eu ouvi
uma agitação dentro e me aproximei, parei, hesitante, na porta, piscando na
escuridão.
—Perséfone?
Hades.
Ela me disse, quando nos encontramos na Floresta dos Imortais, que não
acreditava em coincidências. Repetidamente, noite após noite, eu a encontrei
sem procurá-la; Eu me perguntei se era por acaso.
Ela reclinou-se em uma cama baixa semelhante à minha, mas - como tudo
o mais no espaço - estava escuro como a noite. Mais negro, pela ausência de
estrelas. Pergaminhos espalhados pelo chão, e ela segurava um aberto em suas
mãos, mas ela o deixou cair, levantou-se apressadamente e me deu um sorriso
divertido.
—Sinto muito incomodá-la —, murmurei, —de novo.— Mas ela já havia
cruzado o quarto até mim, pegando minha mão. Eu dei a ela, como já fizera
tantas vezes antes, mas agora uma corrente quente passou por mim; brilhou
como um raio. —Sonhos ruins? — Ela perguntou, e pigarreou. Ela me ofereceu
um assento em seu catre, mas eu balancei minha cabeça, afundando no chão,
com cuidado para não rasgar os pergaminhos.
—Não. Apenas inquietação. Não como há dias, agora percebo.
—Oh? — Ela inclinou a cabeça e se sentou na cama. —Eu não sabia que
você precisava de comida.
—Eu não, não realmente. Mas eu sempre comi, de qualquer maneira. É
um hábito mais do que uma exigência. Sinto falta de frutas —, sorri, pensando
na romã que havia escondido em meu quarto. Eu não suportava comer aquilo,
minha única lembrança de casa. —Eu duvido que você tenha muito disso aqui,
no entanto.
Ela deu de ombros, sorrindo agora também.
Ela ficava tão linda quando sorria.
—Não, não no momento. Eu colho maçãs para os cavalos sempre que
vou à superfície em sua floresta, mas eles comeram todas - bestas gananciosas
que são. Agora eles estão subsistindo da grama e dos grãos que cultivo para
eles. Para ser honesta, temos pouca comida de qualquer tipo aqui no
submundo. — Recostei-me nas mãos e olhei para a tapeçaria pendurada na
parede ao lado da porta. Ele representava uma grande árvore com raízes
espalhadas e galhos gloriosos que arranhavam o céu. Eu estudei, paralisada.
Hades observou meu interesse. —Um jovem tecelão fez isso para mim...
muito tempo atrás. É uma das poucas ofertas com que já fui honrada. A
maioria dos mortais não gosta muito de mim, por razões óbvias. — Ela riu,
sorrindo fracamente. —Chama-se árvore da vida. Vê como as raízes e os ramos
espiralam juntos? O ciclo de vida e morte, sem fim. Eternidade.
—É linda. — Consegui dizer, embora visse na trama as linhas do meu
carvalho favorito; Charis e eu passamos inúmeras tardes em seus galhos,
abraçadas, sentindo-nos sem fim. Eu não sabia a dor de sua perda há dias - eu
estava muito preocupada em me esconder, escapar do meu caminho
predestinado. Agora a tristeza me atingiu com força, e arranquei meus olhos
da árvore, encarei minhas mãos.
—Eu te chateei? — Hades perguntou calmamente.
—Não. Eu só estava me lembrando de alguém. — Um pensamento
estranho me ocorreu, e me perguntei por que não havia considerado isso
antes. —Se... se alguém estivesse morto —, comecei. —você saberia? Ela - eles
estariam aqui?
Hades inclinou a cabeça, prendendo-me com seus olhos insondáveis. —
Eu sei o nome e a história de cada pessoa, cada criatura, que viveu e
morreu. Nenhum pardal cai sem o meu conhecimento e reconhecimento disso.
Eu ponderei sobre isso, maravilhada com a mulher sentada diante de
mim, sua força solene. Reunindo minha coragem, inclinei-me para frente e
juntei as palavras em minha mente.
—Você se lembra…— Fiz uma pausa, comecei de novo: —Eu te contei
uma história. Eu te disse como eu amava muito alguém. Como eu a perdi. O
nome dela era Charis.
—Sim. Eu lembro.
—Zeus - ele a transformou. — Minha voz era quase um sussurro, e não
ousei olhar nos olhos de Hades. —Não sei o que isso significa, se ela ainda vive,
na forma de uma planta, se o espírito dela está preso ou se...— Engoli em
seco. —Você poderia me dizer se Charis, a ninfa, está aqui em seu submundo?
Eu olhei para ela agora, e seu rosto estava calmo, plácido - a máscara
novamente. Ela ficou sentada por um momento, imóvel, e então se levantou
para ficar na janela sem propósito; não havia nada além de preto. Ela cruzou
as mãos atrás das costas.
—Ela não está aqui, Perséfone. — Seu tom era neutro e combinava com
meus sentimentos.
Eu não sabia como reagir. Devo ficar aliviada por Charis ainda estar
viva? Devo lamentar que sua alma esteja presa às raízes de uma rosa? Teria
sido melhor se ela simplesmente tivesse morrido? O que ela sentia,
transformada em algo imóvel, insensível, desumano? O que ela pensava, com
quem ela falava, tendo apenas o solo e as estrelas como companheiros?
Passei meus braços em volta dos joelhos, refletido no silêncio. Hades se
virou para mim; seus olhos ônix estavam preocupados, e sua preocupação
desvendou algo dentro do meu peito.
—Obrigada. — Eu sussurrei.
—De nada. — Ela sussurrou de volta.