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carlito azevedo
Constança Guimarães
Ana Freitas Reis Monique Deheinzelin
Diego Vinhas
Bruna Corazza Pedro Augusto Lima Oliveira
Lauro Mesquita
Carolina Leta Rafael Silva Lemos
Maria Eduarda Oliveira Castro
Camila Assad Raquel Bernardes
Mariana Filgueiras
Catarina Lins Rosane Preciosa
Marília Valengo
abril 2020
aula 1
17 abr. 2020
e. e. cummings
(eua, 1894-1962)
a lutar,
minha irmã
eu morresse etcetera
corajosamente é claro meu pai costumava
enrouquecer ao falar de como era
um privilégio e se ao menos ele
pudesse enquanto isso eu
cetera
(sonhando,
et
cetera, com
Teu sorriso
olhos joelhos e tua Etcetera)
Amir Baraka
(eua, 1934-2014)
Werner Aspenström
(Suécia 1918-1997)
Domingo
Pela simples razão de que nunca mais voltará
hoje é um dia memorável.
O sol nasceu no leste e se pôs no oeste,
deixou o céu para as estrelas
e uma nave espacial nadando no espaço.
O rádio falava e cantava pela janela aberta
atrás dos pelargônios vermelhos imutáveis.
Uma mulher colhia cachos de groselha com uma tesoura
e os levava para a cozinha.
Lá fora no pátio um rapazinho de joelhos ao lado de sua motoneta
divertia-se com as centelhas da bobina.
A larva
Eu me estico para fora de minha folha de cerejeira
e sondo a eternidade:
a eternidade hoje está grande demais,
por demais azul vastidão calculada em milhares de léguas.
Acho que vou ficar em minha folha de cerejeira
avaliar o tamanho de minha verde folha de cerejeira.
Cheira a queimado
Será provavelmente o talentoso filho do canibal
assando um mosquito na chama de uma vela
enquanto sonha com instalações mais amplas.
Como as pirâmides!
A muralha da China!
O pentágono!
*
Para B. A. no seu aniversário e em fuga
Como são deploráveis aquelas formas vermelhas e verdes
Que só sabem significar: Pare! Atravesse!
E não: “Logo se vão abrir potes do lago azul”.
O cavalo se volta para ver
Quem é o cavaleiro.
Isso interessa, é claro.
A vaca se volta para ver
Quem a ordenha.
A ovelha se volta para ver
Quem a tosquia.
A galinha se volta para ver
Quem rouba o ovo.
Todos querem achar ladrão, é claro.
O homem se volta.
Como gotas de água sobre uma pedra escaldante
Ele vê seus dias aterrorizados pularem para lá e para cá
E rapidamente se evaporarem.
As perguntas fazem pressão, é claro.
Até mesmo no mês de maio se pode ouvir Fröding citado:
“Lembro-me que pensava que era belo”.
A réplica raramente demora:
“Lembro-me que pensava que as palavras tristes de Fröding eram belas”.
O vento sopra sempre, e essa é a única coisa certa.
Move-se o vento na direção da biblioteca estadual,
E não é para ir buscar as obras de Schopenhauer.
Helmut Heissenbuttel
Há os irreeducáveis que sabem que nada será como antes mas que agem como se
Há os irreeducáveis que sabem que nada será como antes agem como se e buscam
propagar essa ideia
Há os irreeducáveis que sabem que nada será como antes e que de resto não agem
como se mas que não entenderam nada
Há os irreeducáveis que entenderam mas que acreditam que tudo voltará a ser
como antes e que eles conseguirão se dar bem mais uma vez
Há os irreeducáveis que sabem que nada será como antes e que entenderam e que
no entanto não podem se furtar a esticar esse epílogo a perder de vista
Irreeducáveis sobrevivem
Louise Erdrich
(escritora ojibua, nascida em 1957)
A gente estranha
Mão, aparador,
chão
um e-mail entre os jovens sãos e salvos,
“ok”,
figuras sem rosto, ou resposta.
sonhos assustadores:
um cão preso,
ser perseguida por uma nazista bondosa /
ou um vampiro não obcecado,
depois deslizar pelas ruas.
*
Era para sair, sim / o Eu envergonhado, recompensado,
seu destino de lebre, fraco / Na noite quase-leve
nos bicicletários / poderia voltar ou não, mas não voltei,
Janus, não cindiu nada / nas escotilhas, nas graminhas
as alianças / a mesma fusão / as traições / as colas para as academias,
ficar ali sob um guarda chuva, como em uma casa / pneus prensados na segunda
guerra, olhar escuro de uma poça, no salto às alturas,
iriam me vender / aquelas forças gravitacionais /
um campo de naves soltas
Três “eus”.
(que foi escrita não por um português ou um espanhol, como seria de se esperar,
mas por um inglês)
2.
tenho um sutiã sobre a cadeira
e, abaixo, um blazer (antes,
pesquisando sobre o dress-code
descubro que Abigail, por exemplo,
não pinta as unhas enquanto Tamara
leva uma mochila mas no geral
isso varia muito. O blazer, entretanto, pareceu a escolha adequada)
sujo, uma jaqueta, suja (demoro a lavar as roupas porque não sei quais cores
mancham quais, a não ser as brancas)
e ainda uso a toalha
como um turbante – torcendo os cabelos
curtos
3.
Acabamos de passar pela casa de um dos seus antigos amores
No outro dia,
antes do trabalho, tentava desenhar frutas num cesto enquanto você
fazia pães, massas, compras,
é como dizem:
nada é tão bom que não possa melhorar
nem mesmo
4.
então você sai do primeiro andar
dos lavabos coloridos e me leva à praia
e recebemos avisos.
5.
comem-se ervas amargas
de qualquer maneira
eu nunca tinha dito a palavra “x” ao me dirigir a alguém
antes, quando precisava,
sempre procurava por alguma outra forma
de chamar sua atenção
Terra
Continuamos a procurar o espanto nas montanhas,
insistimos nos cumes altos para contemplar,
miradouros frívolos ao serviço dos registos.
É noite ainda.
Caem flechas por entre os ramos secos de um sobreiro.
Trincamos os espinhos da navalha.
As cabeças movem-se na direção do centro da fornalha.
Porque sim,
pela indolência da seiva que tem a certeza de uma revolução nocturna.
Encarno o perfume desgraçado desse lírio silvestre quando finalmente
repouso nos seios da natureza.
Fica de dia.
Há uma chuva opulenta que ainda inunda o nosso quarto,
há certos beijos que continuam a subtileza do seu voo,
sem que nenhum mais tema a força-guia da existência.
um falso palco
na mesa da cozinha
“Lá
Já não passa o trem há tempos.”
É tão bonito
O estouro do coiote
o sangue do passarinho,
O garfo e a faca
sem frustração
Uma só vez
Pelo menos
O transporte de cigarros
e eletrônicos do Paraguai
a volta do Paraguai
as lojinhas da rua
de coisas do Paraguai
as piadas sobre o Paraguai
a excitação com um país desconhecido
da janela da sala
sem luz roxa
com cortina pesada
E muito dinheiro
à base de chicletes redondos
vindos do Paraguai
A montanha de terra
da nova avenida
das manilhas acinzentadas
do abraço ao futuro
Hoje, muito tempo
Um acontecimento
que todos esperávamos
A memória guarda
como se tivesse acontecido
Viver a vida
era ver um um pouco de morte
ver a vida
no limite da faca
Logo ali, do lado de casa
Perdíamos tempo
Víamos homens fortes
ou nem tão fortes
abatendo bois no Sindicato Rural
Do cheiro de ferro
doce coagulado
A carne esverdeada de canto
as brincadeiras com chifre
Um mundo que caiu
Tombam rápido,
quietos
a faca rasga o pescoço e
destroça a carótida
Os bois
Do outro lado
o boi fatiado,
é rápido,
sem alarde
Como o pai
do Paulinho que ninguém reconhecia
de roupa branca e cara vermelha
João Forte
Quietos,
mal utilizavam a garganta,
calavam-se como bois
Como hoje
Tanto tempo
Matadouro,
ainda chamam aquele lugar
assim
24 abr. 2020
Georges Perec
(França, 1936-1982)
As roupas
Eis suas roupas, calmas,
como gatas ao sol, de tarde,
suas roupas amarrotadas
sem sonhos, como por acaso.
Elas têm o seu cheiro, fraco,
quase se parecem com você.
Transmitem a sua sujeira,
seus maus hábitos,
os vestígios de seus cotovelos.
Parecem feitas de tempo, não respiram,
sobram, moles, cheias de botões,
de características e manchas.
Nas mãos de um policial,
de uma costureira, de um arqueólogo,
revelariam costuras,
segredos fúteis.
Mas, onde você está, se está sofrendo,
o que sempre quis me dizer
e nunca disse,
se vai voltar, se aquilo
que aconteceu, aconteceu por amor
ou necessidade ou esquecimento,
e por que tudo isto
ocorreu,
como ocorreu,
quando a vida estava em jogo,
se você morreu ou se
está só lavando os cabelos:
isto não dizem.
Yoko Ono
A escada e a formiga
À meia-noite
a formiga desce a escadaria do hotel.
Tenta seguir o alongamento de uma linha reta.
Às vezes para: que labirintos resolverá?
Em cada patamar ela estaciona
de um jeito surpreendente.
Anda pelo degrau como se procurasse
a encosta necessária para suas costas,
e então se precipita como se cantasse.
Está livre de todo compromisso,
mas acha, sem aviso, um pedaço de asa
e corre pra chegar à casa que desconhecemos.
Faz folia em todas as escalas
e depois desce, gabola, até a outra
correndo como se estivesse numa praia.
Está feliz
por dominar a escada.
Sabe que terá sucesso em sua aventura.
O sapato que pode machucá-la
passa raspando, mas lhe deixa
um pedaço de folha de tabaco,
uma pétala machucada,
o sal que faz arder seus olhos dominantes.
É a senhora da escada
e passeou degrau por degrau
com a elegância de uma dama inglesa
que leva o lixo até a esquina,
até o latão verde
com a coroa inglesa
riscada pelos dois leopardos.
Vielimir Khlebnikov
(Rússia, 1885-1922)
2. Na mesa empoeirada
O acaso criou na poeira
Seus estranhos desenhos.
Diz um menino curioso:
Essa poeira talvez é Moscou
E essa talvez é Chicago ou Pequim.
Roland Barthes
(França, 1915 - 1980)
Cerejas
Encontrei cerejas (chegadas da Austrália) no mercado Saint-Germain. Dizem-me que
no mercado de Buci, ainda mais popular, há também, agora, frutas fora de estação.
Mesmo que esses produtos sejam caros, caríssimos, assim mesmo é comum encontrá-
los pela rua. Mas não é o enigma econômico que me atrai; é, antes, o seguinte: que o
progresso técnico (fazer vir, em algumas horas, frutas dos lugares mais distantes) furta
ao homem o tempo justo das estações (seu tempo) e, pouco a pouco, “com a melhor
das intenções”, frustra uma de suas alegrias, a da alternância; pois havia alguma
alegria em se esperar o fim do inverno, ver despontar, desaparecer, lamentar as belas
coisas que passam, mas que voltarão: termina a maior das alegrias, a do retorno. Para
o futuro, no horizonte, os mercados não irão mais nos proporcionar a chegada dos
primeiros frutos da estação: passou o tempo das diferenças.
Susana Thénon
(Argentina, 1935-1991)
deus nos
deus o quê
ou mais ou menos
ou nem
Nicanor Parra
(San Fabián de Alico / 5 de setembro de 1914 – 23 de janeiro de 2018)
Manchas na parede
Antes que caia a noite total
Estudaremos as manchas na parede:
Uma parecem plantas
Outras simulam animais mitológicos.
Hipogrifos,
dragões,
salamandras.
No cinematógrafo da parede
A alma vê o que o corpo não vê:
Homens ajoelhados
Mães com seus filhos nos braços
Monumentos equestres
Sacerdotes que erguem a hóstia:
Um homem
A mãe de um homem está gravemente enferma
Ele sai em busca do médico
Chora
Na rua vê sua mulher acompanhada de outro homem
Andam de mãos dadas
Ele os segue de perto
De árvore em árvore
Chora
De repente encontra um amigo de juventude
Quanto tempo não nos vemos!
Entram num bar
Conversam, riem
O homem sai para urinar no pátio
Vê uma jovem garota
É de noite
Ela lava pratos
O homem se aproxima
Ele a toma pela cintura
E dançam uma valsa
Saem juntos para a rua
Riem
Ocorre um acidente
A garota perdeu os sentidos
O homem precisa de um telefone
Chora
Chega a uma casa iluminada
Pede para fazer uma ligação
Alguém o reconhece
Fica para jantar, homem
Não
Onde está o telefone
Come, homem, come
Depois você vai
Senta-se para comer
Bebe como um condenado
Ri
Pedem que recite um poema
Recita
Adormece embaixo da escrivaninha.
Alexandre O’Neill
(Lisboa, 1924 – Lisboa, 1986)
Velhos / 1
Tem sempre um quadradinho de marmelada para o bisneto pequeno.
Tira-o não se sabe donde.
Guarda os baraços dos embrulhos,
desfaz-lhes os nós (“Os japoneses põem os meninos nas escolas a desfazer nós!”)
e, baraço a baraço, fabrica um novelo multicor
que pode fornecer fio para atar um embrulho,
por exemplo, o da louça chinesa que, peça a peça,
vai pondo no prego.
Não se engana (e já trepou aos oitenta e muitos)
a declinar o rosa-rosae que aprendeu em coro quando pequena.
Gosta de cães, mas tem medo, desde que outro dia,
isto é, há vinte anos,
lhe morreu o Kiss atropelado,
das trelas sentimentais.
Numa gaveta defendida a naftalina,
dentro duma caixa de cânfora,
guarda palminhos de renda, uma gargantilha, véus, vidrilhos,
longos alfinetes ornamentais (aqueles de chapéu).
Arrasta consigo um passado a sépia de fotografias.
Diante de cada uma, recita parentescos, genealogias.
E a fechar o cortejo mostra sempre a do seu casamento.
Era formosa, cheiinha, um verdadeiro quanto-baste de mulher.
Enviuvou; sobreviveu a dois filhos; vive com uma amiga.
Às vezes está amuada, não sai do seu quarto e passa o dia inteiro a tisanas.
Quando visita o bisneto,
insiste em ensinar-lhe o rosa-rosæ:
quer que ele seja um causídico.
Já não escolhe a comida; escolhe os dentes.
É um passarinho.
Mas nos seus olhos doces, azuis e moços,
uma gaiata traquina.
3 extras:
Gonzalo Rojas
(Chile, 1917-2011)
Escrito com L
Muita leitura envelhece a imaginação
do olho, solta todas as abelhas mas mata o zumbido
do invisível, corre, cresce
tentacular, se arrasta, sobe ao vazio
do vazio, em nome
do conhecimento, polvo
de tinta, paralisa a figura do sol
que há em nós, e nos
viciosamente mancha.
Jaroslav Seifert
(Praga, 1901-1986)
Seu destino
é habitar o fosso
onde o capim cresce e esperneiam
os monstros sinuosos (também deles
é o mundo)
Pretexto
o olho da rua é seco, sarcástico
do mesmo gênero das abotoaduras
e toucadores
*
TEXTOS / OFICINA
Marília Valengo
bilhete de despedida
queria que você visse
a minha coleção de frases
queria que você visse
o exato momento que o sol
lança um feixe de luz
sobre a porta da cozinha
de manhã muito cedo
planejei te mostrar
o caminho que leva
para a árvore mais antiga da redondeza
e sonhei com o momento
em que iríamos sentar para assistir
os bichos voltando para o curral
perto do sol se pôr
(arrepio)
(arrepio)
Ou talvez seja
a chama da vela
que acendi
pra poder ver minha fé
Salmo 119:120
O sexto pecado
(arrepio)
(arrepio)
Rafael Lemos
campo
o blackbird
o boi
é só
terá o fósforo
o olho do pássaro
o espaço não
o bo in di so (l ut o)f re
ent re parn terses
(o boi
e so)
fere o capim
seu olho aguado
noo boeacaoo d noite
irnaos descasnguar no pasto azul
azul
navergar de ouvido
o adivinho
ouoouvidente
??
?
???
?
de uivos terri veis
di vinoa
vinho
nave armardov
hervingança
(ao)
vezovaso
dioniso
ê procissão
do ouvido até
1o de maio – 2020
Antonio Cisneros
2
Construí um lar sobre a pedra mais alta de Ayacucho, a mais firme de todas,
um lar protegido pelo puma e o falcão e sob o teto / uma fogueira redonda e amarela.
Mas pouco lucro haveria: foi só o epílogo dessa alegria guardada e desgastadas pelos anos
– sete verões, digamos,
gloriosos e enredados juntos às grandes ondas e longe dos olhos de tua tribo.
Mas qualquer rumor – um pelicano ferido, uma gaivota – podiam te devolver o velho
medo,
e então / tornavas a cruzar os muros da tua tribo pela porta maior
– nos cabelos e nas orelhas / iam toda a areia da praia.
E é porque o medo nunca te deixou, como a roupa íntima e as boas maneiras.
Caramba se casar em uma igreja “barroco colonial do XVII em Magdalena Velha”
– nas a arquitetura não nos salva.
É bem verdade que foi um jeito de ganharmos dois liquidificadores, um papagaio
empalhado, 4 baús, aparelhos para 18 funções, 6 vasos de cristal da Boêmia e 8 jogos de
chá reproduzindo cenas do amor pastoril (que você
trocou por um secador de cabelos e outras coisas que ninguém
tinha dado de presente).
Assim, linda garota, você cruzou o alto umbral (sob o puma de pedra e o falcão de pedra,
A fogueira que lança luz para os dois lados do vale de Huamanga
– bandeiras que no final também viraram dejetos).
Agora nem me lembro das coisas que você falava – se é que falava,
das coisas que te faziam rir – se é que você ria,
e não posso sequer elogiar tua comida.
Você foi um forte construído pelo medo (imagem medieval) que eu não soube escalar ou
que não pude.
E agora nem me lembro se realmente você foi um forte construído pelo medo (imagem
medieval),
nem se soube escalar ou se não pude.
O tempo e os tempos
Não há um tempo único: são muitas as fitas
que deslizam paralelas
muitas vezes em sentido contrário e raramente
se entrecruzam. É quando se revela
a verdade pura que, descoberta,
é rapidamente suprimida por quem vigia
as engrenagens e os desvios. E se recai
depois no tempo único. Mas naquele átimo
os poucos viventes puderam reconhecer-se
para dizerem-se adeus, não até logo.
O banho em espiral
No hemisfério sul de nossa terra
existe um tipo relativamente comum de pássaro migratório
Eles se reproduzem com tanta rapidez
que apenas um truque da natureza nos livra de um pesadelo
A cada ano, em bando
eles escurecem o céu da África Ocidental
onde se reúnem para seu passeio sobre o Atlântico
Apenas um décimo alcança a costa da América do Sul
noventa por cento cai exausto sobre o Atlântico
Suspeita-se que no meio do oceano
exatamente ali, onde segundo os geólogos
há milhões de anos
a África se separou da América do Sul
esses pássaros começam a voar em círculos
Procuram sua terra onde ela não existe mais
Seu instinto – sobrecarregado por milhões de anos – os conduz à morte
Apenas os insensíveis alcançam o continente
Dahlia Ravikovitch
Gente encontrada
Tenho encontrado gente que
se se lhes pergunta pelo nome
respondem com modéstia como se
não se atravessem sequer a reclamar que o têm:
“Cristiano”. E logo dizem
“como o nome próprio”, na intenção de explicarem
que não é um nome raro como Popiol ou Baberdererde,
“como o nome próprio”, ora, não incomode a memória com tal coisa.
Xênia I
1
Querido pequeno inseto
que chamavam de mosca, não sei por quê,
esta tarde quase ao escurecer
enquanto lia o Segundo Livro de Isaías
reapareceste ao meu lado,
mas não tinhas óculos,
não podias me ver
nem podia eu sem aquela centelha
reconhecer-te no escuro.
2
Sem óculos nem antenas
pobre inseto que asas
só tinha na imaginação,
uma Bíblia em frangalhos e ainda por cima tão pouco
confiável, o negro da noite,
um relâmpago, um trovão e depois
nem mesmo a tempestade. Quem sabe,
te foste cedo demais sem mesmo uma
palavra? Mas é ridículo
pensar que ainda tivesses lábios.
3
No Saint-James em Paris terei que pedir
um quarto “de solteiro”. [Não gostam
de hóspedes desacompanhados.] E a mesma coisa também
na falsa Bizâncio de teu hotel
veneziano, para buscar logo depois
a cabine das telefonistas,
tuas amigas de sempre, e repartir,
gasta a corda,
o desejo de reaver-te, fosse
num gesto só ou em algo habitual.
4
Havíamos estudado para o além
um assobio, uma senha de reconhecimento.
Experimento reproduzi-lo na esperança
de já estarmos todos mortos sem saber.
5
Nunca cheguei a saber se eu era
o teu cão fiel e catarrento
ou tu o meu.
Para os outros, não, eras um inseto míope
perdido no blábláblá
da grã-finagem. Eram ingênuos
aqueles espertos e não sabiam serem
eles o teu joguete:
mesmo no escuro vistos e desmascarados
por um teu senso infalível, por teu
radar de morcego.
6
Jamais pensaste em deixar traços
de ti em prosa ou verso. E este
foi o teu encanto – e mais tarde meu desgosto de mim mesmo.
Foi também o meu pavor: de vir a ser
relegado por ti ao limo coaxante
dos neoteroi.
7
Pena de si mesmo, angústia e pena infinita
de quem adora o aqui embaixo e espera e desespera
de um outro... (Quem ousa dizer um outro mundo?).
............................................
8
Tua palavra tão sofrida e desprotegida
resta a única que me sacia.
Mas mudou-se o acento, é outra sua cor.
Me habituarei a ouvir-te ou a decifrar-te
no tique-taque do telex,
na fumaça volúvel dos meus charutos
de Brissago.
9
Ouvir era tua única maneira de ver.
A conta do telefone se reduziu a bem pouco.
10
“Rezava?”. “Sim, pedia a Santo Antônio
que a fizesse encontrar
sombrinhas perdidas e outros objetos
do guarda-roupa de São Hermes.”
“Só por isso?”. “Também pelos seus mortos
e por mim.”
“É o suficiente”, disse o padre.
11
Recordar o teu choro (e o meu dobrado)
não chega a apagar o espocar de tuas risadas.
Eram como a antecipação de um Juízo Universal privado,
Só teu, nunca ocorrido infelizmente.
12
A primavera desemboca com seu passo de toupeira.
Não mais te ouvirei falar de antibióticos
venenosos, da agarra de teu fêmur,
dos bens de fortuna de que um cobiçoso omisso
te depenou.
13
Teu irmão morreu cedo: tu eras
a menina despenteada que me olha
“fazendo pose” no oval de um retrato.
Ele escrevia músicas inéditas, inauditas,
hoje enterradas num baú ou quem sabe
trituradas. Talvez as reinvente
alguém sem se dar conta, se o que está escrito está escrito.
Eu o queria sem havê-lo conhecido.
Além de ti ninguém o recordava.
Não fiz pesquisas: agora é inútil.
Depois de ti tornei-me o único
para quem ele existiu. Mas é possível,
tu o sabes, amar uma sombra, sombras nós mesmos.
14
Dizem que a minha
é uma poesia de impertinência.
Mas se era tua pertencia a alguém:
a ti que não és mais forma e sim essência.
Dizem que no mais alto grau a poesia
exalta o Todo em fuga,
negam que a tartaruga
seja mais rápida que o raio.
Tu, apenas tu, sabias que o movimento
não difere da estase,
que o vazio é o pleno e o céu limpo
a mais difusa das nuvens.
Desta forma compreendo melhor tua longa viagem
prisioneira do gesso e das bandagens.
No entanto não me dá sossego
saber que sós ou juntos somos uma só coisa.
*
Xênia II
1
A morte não te concernia.
Até os teus cães tinham morrido, até
o médico dos doidos a quem chamavam de tio maluco,
até tua mãe e sua “especialidade”
de arroz com rã, triunfo milanês;
e até teu pai que de um mini porta-retratos
noite e dia da parede me vigia.
Apesar disso tudo, a morte não te concernia.
2
Muitas vezes te lembravas (eu poucas) do senhor Cap.
“Vi-o apenas duas vezes, em Ischia, no ônibus de turismo.
É um advogado de Klagenfurt, aquele que manda sempre suas lembranças.
Disse que viria nos ver.”
E enfim veio, conto-lhe tudo, fica com lágrimas nos olhos,
parece que é uma catástrofe para ele também. Fica calado um tempão,
gagueja, levanta-se todo duro e se inclina. Confirma
que mandará suas lembranças.
É estranho que
só hajam logrado entender-te pessoas inverossímeis.
O doutor Cap! Basta o nome. E Celia? O que terá passado com ela?
3
Por muito tempo lamentamos a perda da calçadeira,
o cornicho de metal enferrujado que
sempre nos acompanhava. Parecia uma indecência usar
entre ouropéis e estucos um tal horror.
Deve ter sido no Danieli que eu esqueci
de repô-la na valise ou na bolsa de mão.
Hédia a camareira a jogou com certeza
No Canalazzo. E como poderia eu escrever
que procurassem achar aquele pedaço de lata?
Era um prestígio (o nosso) a preservar
e Hédia, a fiel, o havia feito.
4
Cheia de astúcias,
saindo das goelas de Mongibello
ou das bocarras de gelo
revelava incríveis intuições.
5
Desci, dando-te o braço, um milhão de escadas pelo menos
e agora que aqui não estás é o vazio a cada degrau.
Mesmo assim foi curta nossa longa viagem.
A minha dura ainda, mas já não me ocorre pensar
nas conexões, nas reservas,
nas ciladas, nos vexames dos que creem
que a realidade é aquilo que se vê.
6
O vendedor de vinho te servia um dedo
de Inferno. E tu, horrorizada: “Tenho que bebê-lo? Não basta
ter-se estado dentro, queimando a fogo brando?”
7
“Nunca tive a certeza de estar mesmo no mundo”.
“Bela descoberta, me respondeste, e eu?”
“Oh, o mundo tu o mordiscaste, se bem
que em doses homeopáticas. Mas eu...”
8
“E o Paraíso? Tem um Paraíso?”
“Acho que sim, madame, mas os vinhos doces
ninguém quer.”
9
Às freiras e às viúvas, azarentas
malcheirosas carpideiras,
não ousavas olhar. Aquele mesmo que tem mil olhos,
os desvia delas, disso estavas segura.
O onividente, ele... porque tu, na tua sabedoria,
a deus não mencionavas nem mesmo com minúscula.
10
Depois de longas buscas
te encontrei num bar da Avenida
da Liberdade; não sabias um jota
de português ou melhor sabias uma só
palavra: Madeira. E vem o copinho
com um acompanhamento de lagostinha.
11
Ressurgindo depois de um infinidade de tempo
Célia, a filipina, telefonou
para saber notícias tuas. Creio que está bem, digo,
talvez melhor do que antes. “Como, crê?
Não está mais viva?” Talvez mais do que antes, mas...
Célia, vê se entende...
Do lado de lá do fio,
de Manila ou de outro
qualquer nome do atlas uma voz embargada
impedia também a ela de falar. E desligou de repente.
12
Os falcões
sempre longe demais para teus olhos
raramente os viste de perto.
Um em Étretat que vigiava o voo
desengonçado de seus filhotes.
Dois outros na Grécia, no caminho de Delfos,
um monte de plumas macias, dois bicos jovens
ousados e inofensivos.
13
Pendurei no meu quarto um daguerreotipo
de teu pai quando menino: tem mais de um século.
Na falta do meu, tão confuso,
tento reconstruir, mas em vão, teu pedigree.
Não somos cavalos, as datas de nossos ancestrais
não se encontram nos almanaques. Aqueles que presumiram
sabê-las não eram eles próprios existentes
nem nós para eles. E agora? No entanto o fato é
que alguma coisa aconteceu, talvez um nada
que é tudo.
14
A inundação submergiu a banquisa dos móveis,
das cartas, dos quadros que apinhavam
um porão fechado com dois cadeados.
Sem dúvida lutaram às cegas os marroquins
vermelhos, as intermináveis dedicatórias de Du Bos,
a medalha com a barba de Ezra,
o Valéry de Alain, o original
dos Canti Orfici – e ainda algum pincel
de barba, mil ninharias e todas
as partituras de teu irmão Silvio.
Dez, doze dias sob um atroz bafio
de óleo e de esterco. Seguramente sofreram muito
antes de perderem sua identidade.
Eu mesmo fiquei atolado até o pescoço pois o meu
estado civil foi dúbio desde o início.
A turfa não me incomodou, mas os eventos
de uma realidade inacreditável e inacreditada,
Frente a eles minha coragem foi o primeiro
de teus empréstimos e talvez não o hajas sabido.
TEXTOS / OFICINA
Marília Valengo
c. à pomme
porque dói
porque às vezes, em vez disso, alguém permanece no meio do mastro
como um farol neutralizado
enquanto fala baixo
para não distrair o filósofo mergulhado em Pascal
Não estendo meus braços para alcançar a maçã – estou cansada de nadar
ainda que meus pés
continuem mergulhados n’água
entre nós:
observamos juntas o cesto de frutas colorido, a faca que toca o pão, gemidos,
formas
frágeis
A flor abre
e fecha os olhos
fenda do amor e do tempo
a ousadia de viver
gerando, simultaneamente
mulher, colher e vaso.
Lenta,
a pausa, escura, o silêncio.
De águas somos
outrora rio e poeira.
E chega o instante
em que inclinaremos a cabeça
à beira dos corações
como um jarro de cansaço e festa.
À tua espera
Júlia
Monique Deheinzelin
Feliz
À sombra das amendoeiras em flor todos nos sentimos bem
E não nos perguntamos de onde vêm os nós e os caroços
Vigor de folhas verdes
(que a brisa do Brasil beija e balança –)
farfalhando no vento
Para o meu amigo poeta Marcelo Beso adormecido em seu violão, da sua amiga
Monique
Diego Vinhas
Sonar
isso que você chama de “.............” pode se chamar também de conversa entre os sons de
chuva ao mesmo tempo em janelas de quartos de hotéis em cidades de países distantes
onde alguém tenta se convencer que ainda não acordou e alguém que cresceu sob
o signo da guerra resiste tentando transformar os sintomas de uma gripe (ou um
romance) mal curada(o) em poemas de circunstância.
aliás isso que chamo de “uma conversa entre os sons da chuva etc” pode até se chamar
de menino após resistir à descarga de golpes do corredor polonês no primeiro dia
de aula na escola nova, sentindo que a partir dali estará para sempre vestido com as
roupas e as armas de Jorge para que meus inimigos tenham olhos e não me vejam e nem
mesmo um pensamento eles possam ter para me fazerem mal.
porque (veja) é sempre igual, isso que alguém possa chamar de “menino do corredor
polonês” também pode ter o nome do que talvez pensasse um olho que a 65 milhões
de anos-luz direcionasse seu telescópio agora para cá, e sobre a superfície da Terra
visse algum paz e dinossauros, e você já tem idade para saber que o que eu chamo de
“.............” pode também ser “visão dos grandes répteis ao receber uma luz emitida da
superfície da Terra há 65 milhões de anos-luz”.
como quando você mesmo ciente da iminente derrota pela noite em claro preferiu
recusar a luz para melhor vigiar os pequenos ruídos da cabeça dela oscilante na
poltrona ao lado, e ter assim um bom motivo para ficar acordado até a menina de rosto
compatível com várias idades sorrir quando a tela seu celular brilhou um chamado de
alguém que você não conhecia mas já invejava, e nem um telescópio que enganasse
a velocidade da luz poderia desviar tanta atenção agora, antes que as autoridades
entrassem, e inventassem os nomes dos supostos terroristas (ou plantassem depois,
nos escombros, os passaportes estranhamente intactos dos supostos terroristas),
dentro do ônibus, naquele instante 1 segundo antes da explosão.
Combinava o cinema
a culinária
a cor da parede da sala
o nome do primeiro filho que se avizinhava
Um em frente ao outro
Doc, ted, segurança, envelope
Tudo isso?
Confirmações em aberto
Traga seu salário
p-o-r-t-a-b-i-l-i-d-a-d-e
Só por você?
grrrr
bla bla bla
...
8 de maio – 2020
Gary Snider
Dezembro em Yase
Naquele outubro
em que escolheu ser livre
na grama alta e seca junto ao pomar
você disse “quem sabe um dia, talvez daqui a dez anos”.
Terminada a universidade te vi
só mais uma vez. Você estava estranha.
E eu obcecado com um projeto.
(Berkeley, 1969)
Leslie Kaplan
O amor é redondo
Mas o que é esse sujeito que surge assim correndo, dentro da escuridão, num
estacionamento, cheio de carros, cuidando deles, falando com eles, Desfaz, dona,
ele usa um rabo de cavalo para atar seus longos cabelos louros, usa um bigode
que desaba sobre os lábios, ele pensa que é um viking ou o quê, tem o rosto meio
vermelho, tem traços rudes, cansados, olheiras enormes, mas ele é bem ágil debaixo
de sua jaqueta, ele salta os obstáculos, adora Bogart, a classe, a elegância e o preto
e branco, ele procura um lugar numa lanchonete, pede um cachorro-quente, uma
cerveja e um café, ele ouve o que lhe diz o cara ao seu lado, o cara ao seu lado
se chama Morgan, já ele se chama Seymour, Seymour Moskowitz, o cara ao seu
lado está só, nisso aliás ele não está só, mas ele é só Morgan, Morgan Morgan, sua
mulher morreu e ele é um pouco vesgo, Você quer que eu cante, que eu recite uns
versos?, e ele o faz, o mundo está cheio de gente comum, era preciso matar toda essa
gente comum, ele cospe, a existência humana é de deixar qualquer um maluco, e
durante todo esse tempo em que não desgrudamos os olhos de cima de Morgan se
pode ver Seymour que o está ouvindo e a questão permanece: o que é esse sujeito?,
finalmente, ele se levanta, sai, deixa para trás Morgan que conversa agora com a
garçonete, minha mulher tinha sardas como você, pelo corpo todo, ah cai fora, me
deixa em paz, e Seymour vai arrumar confusão em um bar, não demora consegue ser
chutado de lá, não é nada difícil, difícil mesmo é compreender o que é esse sujeito,
ele poderia ser insuportável, mas aí é que está ele não é, ele vai visitar a mãe, ele leva
flores enormes para ela, ela o recebe correndo, ela corre dentro do apartamento
igualzinho a como ele corre no estacionamento, na rua, na vida, ela grita eu te amo,
eu preparei uma carne, você quer comer um pouco, o que são essas flores, são amor,
só isso, no avião rumo à Califórnia ele se senta ao lado de uma mãe terrível que
quer obrigar sua filhinha a comer, e faz ameaças, e diz que é para o seu bem, Se você
não comer você vai ficar feia, é o amor amor amor que faz o mundo girar, e agora
Seymour some de cena mas até agora não há resposta para a questão, o que é esse
sujeito, será que há palavras suficientes, as palavras certas, para responder, e então
Minnie entra em cena, ela também adora Bogart, ela vai vê-lo com uma amiga um
pouco mais velha, ela adora cinema, mas o cinema engana, são só imagens, a vida
não é assim, a vida é o quê, ninguém sabe, estamos em cheio dentro dela, estamos
todo o tempo e sem trégua em cheio dentro dela, estamos transbordando, como
sair da confusão?, em todo o caso não é necessário se defender, ou fugir, ou evitar,
é mais ou menos isso o que Seymour diz a Minnie quando ele a salva de um tipo
horroroso, que fala o tempo todo, que a afoga em palavras falsas além da conta,
palavras que não são palavras, mentiroso escroto, e Seymour oferece uma carona
para Minnie em seu caminhão, mas ela não quer saber de nada, o que é esse sujeito,
ele a persegue, ele buzina, ela tem medo, compreende-se, mas o que é a vida? é uma
porrada, uma violenta bofetada que a derruba no chão quando ela volta para casa
um pouco bêbada da casa de sua amiga, ah é Jim seu amante ciumento que trai a
mulher com ela, Eu te amo, ela não acredita nisso, a mulher tampouco, a mulher
de Jim tenta se matar, sórdido final da história com Jim, e Seymour salva Minnie
outra vez, ele a leva para tomar sorvete, mais tarde ele a coloca na cama, Dorme,
Minnie, você dorme bem, você dorme incrivelmente bem, quanta ternura, mas a
palavra ternura não serve, a palavra ternura não é suficiente, talvez terna ternura,
dócil doçura, mas aí é muito açucarado, ele é gentil, ele é Seymour Moskowitz, gentil
e obstinado, furioso, mas furioso com o quê, furioso com essa mulher que diz não
o tempo todo, enquanto ele sabe que é sim, sim, sim, sim ao encontro, sim à vida,
primeiro dizer sim, é com o sim que se compreende, depois, é com o sim que se pode
dizer não, sim ao céu estrelado e ao Danúbio azul, sim a dançar num estacionamento,
ela diz: Eu não quero dançar, e ela dança, em geral é a mulher quem diz sim, Yes, I say
yes, mas isso depende, quando se tem uma mãe baixotinha que fica gritando é fogo,
no final a mãe de Seymour previne a namorada, ele é feio, é uma nulidade, ele trabalha
num estacionamento, a mãe quer guardá-lo só para si, ah o amor, que força é preciso,
foi preciso, para Seymour resistir a esse bloco de amor materno, a esse rochedo de
amor materno, ele fica melhor sem o bigode, ele raspa o bigode para Minnie, ele bate
a cabeça na parede, ele faz pé firme, ele lhe diz que quer casar com ela, ele se casa com
ela, o que é esse sujeito, e essa mulher, que ele persegue, caça, empurra para a frente,
carrega, obriga, força, persuade, quer absolutamente, quer mais que tudo, à qual ele
em resumo se sabe condenado, essa mulher que ele ama de cara assim que a vê, essa
mulher que ele decide amar e ama, e essa mulher, o que é essa mulher?
Anne Carson
o estranho é que você também se acha postada do lado de fora de sua porta
a porta não tem um lado de dentro
ou, caso o tenha, é você a única pessoa que não pode adentrá-lo
para a família que reside lá as coisas resultaram irrevogavelmente más
ter um pai que é também seu irmão
significa ter uma mãe que é também sua avó
uma irmã tão sobrinha quanto tia
e um outro irmão que você ama a ponto de querer deitar-se com ele
“na cova coxa contra coxa”
pelo menos é o que diz de relance no início da peça
mas ninguém o menciona depois
de Anouilh Paris 1944: não sei de que cor eram seus olhos
mas posso imaginá-la revirando-os agora
voltemos a Brecht, talvez ele tenha sido o que melhor a compreendeu
carregar a própria porta tornará uma pessoa
desastrada, cansada e estranha
1928
Jorge de Sena
II
O Minotauro compreender-me-á.
Tem cornos, como os sábios e os inimigos da vida.
É metade boi e metade homem, como todos os homens.
Violava e devorava virgens, como todas as bestas.
Filho de Pasifaë, foi irmão de um verso de Racine,
que Valéry, o cretino, achava um dos mais belos da “langue”.
Irmão também de Ariadne, embrulharam-no num novelo de que se lixou.]
Teseu, o herói, e, como todos os gregos heroicos, um filho da puta,
riu-lhe no focinho respeitável.
O Minotauro compreender-me-á, tomará café comigo, enquanto
o sol serenamente desce sobre o mar, e as sombras,
cheias de ninfas e de efebos desempregados,
se cerrarão dulcíssimas nas chávenas,
como o açúcar que mexeremos com o dedo sujo
de investigar as origens da vida.
III
É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado
a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia
aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,
como toda a gente, não sabe português.
Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações.
Conversaremos em volapuque, já
que nenhum de nós o sabe. O Minotauro
não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,
de toda esta merda douta que nos cobre há séculos,
cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos
os escravos de outros. Ao café,
diremos um ao outro as nossas mágoas.
IV
Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta
de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver vergonha]
de não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minotauro,
teremos nenhuma pátria. Apenas o café,
aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,
da Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café
contudo e que eu, com filial ternura,
verei escorrer-lhe do queixo de boi
até aos joelhos de homem que não sabe
de quem herdou, se do pai, se da mãe,
os cornos retorcidos que lhe ornam a
nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,
à Palestina, e outros lugares turísticos,
imensamente patrióticos.
V
Em Creta, com o Minotauro,
sem versos e sem vida,
sem pátrias e sem espírito,
sem nada, nem ninguém,
que não o dedo sujo,
hei-de tomar em paz o meu café.
1 Sextina de Bernardette Mayers
Helena Parsons Sextina
alô, aqui é paris
eu dei aula em Cambridge, sou de pedra-branca
tudo que a gente faz é basicamente arcaico
o mundo adolescente é muito egocêntrico
helena melville morou em lansinburgo
é de 1920 essa casa
pensar que o seu filho é bonito & se parece com você é egocêntrico
a zona mais segura de troia pode ser lansinburgo
a gente nunca pensa nos lugares perigosos de paris
mas tenho certeza de que existem alguns embora essas ideias sejam arcaicas
como ter uma galeria em sua casa
na antiga troia não na atual pedra-branca
Sextina
Falando assim, em geral, eu bem que experimentei todos
Os caminhos felizes que há no mundo.
Falando assim, em geral, achei-os algo muito bom
Para os que não podem, como eu, enfim,
Usar a mesma cama por muito tempo
E giram de um lado para o outro até que um dia a morte.
Camila Assad
o tempo é de pernas
mas poderia ser de legumes
falo comigo
no ponto de ônibus vazio
e decidimos subitamente
voar turquesa por aí
o tempo é de tarrafa
mas poderia ser de guelras
Rosane Preciosa
Panelaço
Alguém uma vez disse que o cantochão não desafina.
Quando o panelaço começa, a algaravia descarrilada,
como atrasada para o canto do cisne,
eu duvido.
te olhei
silêncio e ausência de insetos
pureza e papéis
nem trilho nem trem
aversão ao francês e ao emprego
puro
operário da pureza (bem distante do fazendeiro do ar)
funcionário
fora da folha de pagamento
pior
puro
e dentro da folha de pagamento
agora
aprender a beber vinho
revezar com água
agora
viver de calendário
recibo
reembolso
e-mail
agora
já vi lá agora agora
tá pago eu sei todo mundo sabe
traficava armas?
não. construía e as mantinha para si.
nunca deu tiro
só pedrada
e língua
bruto.
pior.
nem puro.
parasita e advogado da pureza.
quis ser rimbaud
tolo mas quem nunca
não te ouvi
— por aazo do mar?
mas a carta chegou muito antes
e o mar muito depois amanhã
de pés inchados
morder a mancha da noite
morder o tempo onde as frutas apodrecem
morder a chuva?
Diego Vinhas
levantar
são assuntos
muito difíceis
para esta hora da manhã
2,
preciso trocar a escova
as cerdas parecem o cabelo de alguém
que acabou de acordar
preciso
trocar de rosto
3,
(sonhei, acho
com estrelas-do-mar
marchando na praia
e a fuga humana uma cena
de ficção vagabunda)
(e com a namorada
dançando nua
exceto por um colar de cipós
em um teatro-galpão lotado
enquanto eu recolhia meus cacos
e tentava mostrar que estava tudo bem
tudo bem, meu amor)
como
você sabe
aquelas cartas feitas
de letras picotadas de revistas
cores e caligrafias diversas
no mesmo plano
(tosse
espelho
hortelã)
(dos sonhos
mais absurdos dos quais
já me expulsaram, imaginei
se seria assim estar na pele
por exemplo
de um personagem do Cesar Aira)
4,
uma ferrugem no espelho
monta em meu reflexo um sinal
no supercílio
e até eu cuspir a água mentolada
não consegui mover o foco
da câmera-olho
para além do sinal
que o espelho avariado
meu deu de presente
(não é de nascença
mas o que vale
é a intenção)
5,
qualquer interferência
na narrativa da imagem
6,
uma outra manhã há dez anos
o metrô de repente emergiu
em um trecho de superfície
e durante alguns minutos
o fluxo da cidade golpeava
meus olhos
e mesmo não sendo por certo
o único estrangeiro ali
achei que eram pra mim
que se arremessavam
pelos vidros laterais
a paisagem grisalha o cimento
as ruínas do outono berlinense
o döner kebab e cada perna apressada
tudo que tentei reter
mas não
7,
também assim quando li seus poemas
traduzindo apenas parte
do percurso
sem cuidar de entender demais
9,
“e seu silêncio assistindo tudo isso” (Lydia Davis)
10,
enquanto
a água soca meu rosto
11,
veja:
12,
a água é sempre gelada
meu rosto vermelho
(às vezes
elas encolhem)
só que às vezes
tal como existir
nem a roupa dá certo
nem a pronúncia sai correta.
então?
não faz a menor diferença
já que estamos sob o mesmo
sol
damesmaquímica
a m o r
é o mesmo
e saber
Uma mulher de preto rola para o vão do colchão onde eu própria dormiria.
O poeta, professor pergunta:
– E você, onde está?