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Oficina de poesia

carlito azevedo

Constança Guimarães
Ana Freitas Reis Monique Deheinzelin
Diego Vinhas
Bruna Corazza Pedro Augusto Lima Oliveira
Lauro Mesquita
Carolina Leta Rafael Silva Lemos
Maria Eduarda Oliveira Castro
Camila Assad Raquel Bernardes
Mariana Filgueiras
Catarina Lins Rosane Preciosa
Marília Valengo

abril 2020
aula 1

17 abr. 2020
e. e. cummings
(eua, 1894-1962)

a minha velha querida etcetera


tia lúcia durante a última

guerra podia dizer e o que


é mais disse-te precisamente
pelo que toda a gente estava

a lutar,
minha irmã

isabel produziu centenas


(e
centenas) de meias para não
mencionar camisas gorros à prova de pulgas

etcetera meias luvas etcetera, minha


mãe esperava que

eu morresse etcetera
corajosamente é claro meu pai costumava
enrouquecer ao falar de como era
um privilégio e se ao menos ele
pudesse enquanto isso eu

mesmo etcetera jazia tranquilamente


na lama funda et

cetera
(sonhando,
et
cetera, com
Teu sorriso
olhos joelhos e tua Etcetera)
Amir Baraka
(eua, 1934-2014)

Prefácio para um Bilhete Suicida de Vinte Volumes


Ultimamente, tenho me acostumado ao jeito
Com que o chão se abre e me engole
Cada vez que saio para passear com o cão.
Ou a singela música cortante que o vento faz
quando corro para alcançar o ônibus...

As coisas chegaram a esse ponto.

E agora, a cada noite conto as estrelas.


E a cada noite obtenho o mesmo número.
E quando elas não se mostram para serem contadas,
Conto os buracos que deixam.

Ninguém canta mais.

Então, na noite passada subi na ponta dos pés


Rumo ao quarto da minha filha e a escutei
Conversando com alguém, e quando abri
A porta, não havia ninguém ali...
Apenas ela, ajoelhada, espiando dentro

De suas próprias mãos fechadas.


Denise Levertov
(1923-1997, nascida na Inglaterra, naturalizada americana)

Uma árvore fala sobre Orfeu


Madrugada branca. Quietude. Quando o murmúrio começou
pensei que era uma rajada de vento, que chegava do mar até nosso vale
com rumores de sal, de horizontes sem árvores. Mas a névoa clara
estava quieta; as folhas das outras árvores permaneciam estendidas,
imóveis.
No entanto o murmúrio se aproximava – e senti
um formigamento atravessar meus galhos, quase como se
tivessem posto fogo embaixo deles, demasiado perto,
e até os galhos menores
secaram e foram se retorcendo.
Eu não estava assustada,
apenas completamente alerta.

Fui quem o viu primeiro,


porque me erguia na vertente, atrás das outras.
Parecia ser um homem: dois
caules em movimento, o tronco tão breve, dois galhos
como braços, flexíveis, cada um com cinco
raminhos desfolhados na ponta,
e a cabeça coroada por um pasto marrom ou talvez dourado,
com uma cara sem o bico dos pássaros,
como a cara de uma flor.
Carregava algo
feito com um galho, retirado ainda verde,
com ramos muito finos trançados e esticados ao longo. Desses ramos,
quando os tocava, e de sua voz,
que diferentemente da voz do vento não necessitava de
nossas folhas e ramagens para produzir um som,
provinha o murmúrio.
Mas não era mais um murmúrio (ele tinha se aproximado
e se detido em minha primeira sombra): era uma onda que me encharcou
como se um rápido temporal
surgisse do chão e de trás
em vez de do céu.
E o que eu sentia já não era um formigamento seco:
Pareceu-me que eu cantava junto com ele, e senti que sabia
o que sabem os pássaros; toda a minha seiva
buscava o sol que já tinha se levantado, a névoa estava se dissipando,
o pasto secava, e no entanto minhas raízes sentiam que a música
as nutria debaixo da terra.
com a delicadeza do orvalho
e não havia palavras em seu canto, mas eu o entendia.
Cantava sobre viagens,
para onde vão o sol e a lua enquanto nós ficamos no escuro,
de uma viagem para debaixo da terra que ele pretendia fazer,
mais fundo que as raízes.
Cantava os sonhos dos homens, as guerras, as paixões e dores,
e eu, que sou uma árvore, entendi suas palavras.
Ai! Parecia que minha áspera casca
se partiria como a do rebento que cresce demais na primavera
e uma geada tardia o surpreende.

Cantava sobre o fogo,


que as árvores temem, e eu que sou uma árvore, ao calor dessas chamas me
alegrei.
Novos brotos nasceram de mim, e ainda era verão.
Sua lira (agora sei como se chama)
parecia ser feita ao mesmo tempo de fogo e de gelo, suas cordas flamejaram
até minha copa.
Eu voltava a ser uma semente.
Um feto num pântano.
Carvão.

E ali no coração de minha madeira


(tão próximo estava de me tornar homem ou deus)
havia algo assim como um silêncio, como uma doença,
algo que se parece com isso que os homens chamam melancolia,
algo
(o canto baixou um tom, como baixa um riacho revelando as pedras)
que esfriaria a chama de uma vela, mesmo quando arde.
E foi quando
mais claramente sua força me alcançou,
mudando-me, e pensei que me desfolharia,
que o cantor começou
a me abandonar. Lentamente
se afastou de minha estreita sombra de meio-dia, e saiu para a luz,
as palavras bailavam e saltavam sobre seus ombros e até mim,
e os tons fluviais de sua lira lentamente se faziam
novamente murmúrio.
E eu, aterrorizada,
mas sem dúvida alguma sobre o que devia fazer
angustiada, pressionada,
arranquei da terra raiz por raiz,
o chão retumbava e se partia, o musgo se despedaçava,
e atrás de mim, outras: minhas irmãs,
a quem desde a madrugada eu tinha esquecido. Elas também o tinham
ouvido lá do bosque,
e dolorosamente arrancavam suas raízes
do solo feito de camadas e camadas de folhas mortas,
removendo as pedras, liberando-se
de suas profundidades.
Qualquer um imaginaria que aquela lira e aquela voz
deixariam de ser ouvidas
sob o fragor da tormenta, mas não havia tormenta
nem vento, apenas
o ar que que nossas ramagens e troncos agitavam ao se mover.
Mas a música!
A música chegou até nós.
Com dificuldade,
tropeçando em nossas próprias raízes,
com rangido
de folhas em resposta,
começamos a andar para segui-lo.

Todo o dia o estivemos seguindo, subimos e descemos colinas.

Ele se aproximou ainda mais, se recostou em meu tronco:


a cortiça tremeu como uma folha a ponto de se abrir.

Música! Cada um de meus galhos


estremeceu de júbilo e temor.
Quando começou a cantar
a música deixou de ser apenas um som:
falava, e eu ouvi, como jamais ouviu antes uma árvore,
e a linguagem chegou até minhas raízes,
meteu-se por minha cortiça a dentro
vinda do ar,
e pelos poros de meus brotos mais tenros
E aprendemos
a dançar.
Porque ele se detinha onde o chão era liso
e com seu canto nos fazia saltar e dar voltas
umas ao redor das outras, desenhando figuras ao sabor de sua lira.
E ele ria até as lágrimas ao nos ver, tão feliz estava.
Quando caiu a tarde
chegamos a este lugar onde estamos agora, este bosque antigo
que então era só pasto.
E com a última luz, entoou uma canção de despedida.
Aquietou nosso desejo.
Com seu canto fez nossas raízes secas descerem chão a dentro
e lhes deu água: uma chuva de música tão suave
que quase não a podíamos ouvir
em meio àquela noite sem lua.
Quando veio a madrugada, já não estava mais entre nós.
Aqui estamos desde então,
em nossa nova vida.
Ainda por ele esperamos.
Mas até hoje não voltou.
Dizem que enfim realizou sua viagem ao fundo da terra,
dizem que perdeu o que buscava.
Derrubaram-no, dizem,
e cortaram seus membros para fazer lenha.
E dizem, além disso,
que sua cabeça, mesmo cortada, seguia cantando, e que cantando
foi arrastada ao mar pela corrente.
Talvez não regresse.
Mas sempre
recordaremos o que então vivemos.
Vemos mais.
E sentimos,
enquanto vamos acumulando mais anéis,
algo que alarga nossos galhos e alastra nossa copa mais além.
Os pássaros e o vento
não soam pior que antes, soam até mais claramente:
nos fazem recordar nossa agonia, e como dançamos.
E a música.


Werner Aspenström
(Suécia 1918-1997)

Domingo
Pela simples razão de que nunca mais voltará
hoje é um dia memorável.
O sol nasceu no leste e se pôs no oeste,
deixou o céu para as estrelas
e uma nave espacial nadando no espaço.
O rádio falava e cantava pela janela aberta
atrás dos pelargônios vermelhos imutáveis.
Uma mulher colhia cachos de groselha com uma tesoura
e os levava para a cozinha.
Lá fora no pátio um rapazinho de joelhos ao lado de sua motoneta
divertia-se com as centelhas da bobina.

A larva
Eu me estico para fora de minha folha de cerejeira
e sondo a eternidade:
a eternidade hoje está grande demais,
por demais azul vastidão calculada em milhares de léguas.
Acho que vou ficar em minha folha de cerejeira
avaliar o tamanho de minha verde folha de cerejeira.

Cheira a queimado
Será provavelmente o talentoso filho do canibal
assando um mosquito na chama de uma vela
enquanto sonha com instalações mais amplas.
Como as pirâmides!
A muralha da China!
O pentágono!

E nunca mais uma folha verde sobre o chão.

*
Para B. A. no seu aniversário e em fuga
Como são deploráveis aquelas formas vermelhas e verdes
Que só sabem significar: Pare! Atravesse!
E não: “Logo se vão abrir potes do lago azul”.
O cavalo se volta para ver
Quem é o cavaleiro.
Isso interessa, é claro.
A vaca se volta para ver
Quem a ordenha.
A ovelha se volta para ver
Quem a tosquia.
A galinha se volta para ver
Quem rouba o ovo.
Todos querem achar ladrão, é claro.
O homem se volta.
Como gotas de água sobre uma pedra escaldante
Ele vê seus dias aterrorizados pularem para lá e para cá
E rapidamente se evaporarem.
As perguntas fazem pressão, é claro.
Até mesmo no mês de maio se pode ouvir Fröding citado:
“Lembro-me que pensava que era belo”.
A réplica raramente demora:
“Lembro-me que pensava que as palavras tristes de Fröding eram belas”.
O vento sopra sempre, e essa é a única coisa certa.
Move-se o vento na direção da biblioteca estadual,
E não é para ir buscar as obras de Schopenhauer.
Helmut Heissenbuttel

Inventário dos irreeducáveis


Há os irreeducáveis que acreditam que tudo voltará a ser como antes

Há os irreeducáveis que sabem que nada será como antes mas que agem como se

Há os irreeducáveis que sabem que nada será como antes agem como se e buscam
propagar essa ideia

Há os irreeducáveis que sabem que nada será como antes e que de resto não agem
como se mas que não entenderam nada

Há os irreeducáveis que entenderam mas que acreditam que tudo voltará a ser
como antes e que eles conseguirão se dar bem mais uma vez

Há os irreeducáveis que entenderam mas que não acreditam naquilo que


entenderam e crêem que tudo vai mudar

Há os irreeducáveis que sabem que nada será como antes e que entenderam e que
no entanto não podem se furtar a esticar esse epílogo a perder de vista

Há os irreeducáveis que agem como se nada tivesse acontecido e aproveitam para


curtir e ficar numa boa

Há os irreeducáveis que entenderam e agem como se nada tivesse acontecido e


voltam a fazer o que bem querem

Há os irreeducáveis que agem como se nada tivesse acontecido e que entenderam


e que sabem que nada será como antes e que voltam a fazer o que bem querem

Irreeducáveis sobrevivem
Louise Erdrich
(escritora ojibua, nascida em 1957)

A gente estranha

“Os antílopes são uma gente estranha...


são belos de se olhar, mas são traiçoeiros. Não confiamos neles. Eles aparecem e desaparecem;
são como sombras nas planícies. Por causa de sua grande beleza, rapazes às vezes seguem
os antílopes e se perdem para sempre. E mesmo que esses insensatos se achem
e retornem, eles nunca mais ficam bons da cabeça.”
Pretty Shield, curandeira dos Crows, em transcrição de Frank Linderman.

A noite toda eu sou a corça, farejando


o seu nome num campo congelado,
a pequena névoa da palavra
sendo sempre arrastada diante de mim.

E mais uma vez ele ouviu


e eu fui ardendo
encontrá-lo, o candeeiro
me enche os olhos de um fogo azul;
o coração em meu peito
explode como pedra quente.

Então, jogada feito uma trouxa


na traseira de sua caminhonete,
limpo de minha boca
a gosma de morte e sento-me rindo,
às gargalhadas, na minha tumba ultraveloz.

Segura, fechada em sua garagem,


quando ele afia a faca
e pensa me possuir, assim,
eu me aproximo dele,
uma bruxa magra e cinza,
em meio às suas balas que me penetram e se dissolvem.

Sento-me em sua casa,


Tomo café até o amanhecer,
E parto quando o gelo já se avermelha nas calotas,
Rastejo de volta a meu corpo de sombras.
E o dia todo, dormindo na grama limpa,
Fico sonhando com aquele que poderia de verdade me ferir.
TEXTOS / OFICINA

Maria Eduarda Oliveira Castro

Mão, aparador,
chão
um e-mail entre os jovens sãos e salvos,
“ok”,
figuras sem rosto, ou resposta.

sem querer ficar presa


como um “ator numa redoma”
ou uma experiência em um
bequer de um físico.
presa em intensificados círculos familiares
e somente neles.

sonhos assustadores:
um cão preso,
ser perseguida por uma nazista bondosa /
ou um vampiro não obcecado,
depois deslizar pelas ruas.

aquele animal que no caminho do cinema,


ia se encolhendo nas atmosferas familiares.
a pele cresceu.
não é ceticismo.
chegou em seu estágio final e infeccioso,
ela não via.
irmãos
que se derrubam com cordas.
cruza as pernas,
as árvores jogam sombras,
dimensões de quadrados
nos cantos das salas
o que seria um respiro enfim.
*

o tempo vai para o mesmo lugar?


Era impressionante a descrição de C.
da família naquele livro,
ela seguiu a família até o fim.

Já ele se tornou um astronauta amarelo,


se relacionando com
diferentes movimentos
de nuvens,
e me contou sobre as cadeias filogenéticas
as memórias que
se intensificam.

e, por outro lado, a arquitetura que deixa /


torna possível utilizá-la,
mudar de lugar
seguir funções,
trocar os objetos,
pensar nos barulhos da janela.

Sob minha mesa há figuras,


onde o cigarro faz ondas,
e os pés vão virar iscas.
dobradiças sob panos
sob os pés
Então ok, tinha dito,
– tinha até me acostumado com objetos virando iscas -
Animais pequenos, que correm
meio curvos,
estão fugindo da tempestade
estão fugindo da tempestade.

*
Era para sair, sim / o Eu envergonhado, recompensado,
seu destino de lebre, fraco / Na noite quase-leve
nos bicicletários / poderia voltar ou não, mas não voltei,
Janus, não cindiu nada / nas escotilhas, nas graminhas
as alianças / a mesma fusão / as traições / as colas para as academias,
ficar ali sob um guarda chuva, como em uma casa / pneus prensados na segunda
guerra, olhar escuro de uma poça, no salto às alturas,
iriam me vender / aquelas forças gravitacionais /
um campo de naves soltas

Três “eus”.

no resto de manhã sob a porta, e o que aquele primeiro


eu que parecia entre o segundo e o terceiro eus, atônito,
falava, não era audível
e o segundo eu mais para o limiar dos sonhos
e o terceiro também
e nem adiantava dizer nada como não os tenho,
não me olham
ou são uma coisa só

diálogos entre universidades:

– você é sempre soturna


– se acalma, disse o jovem estudante marxista, você está perto de
humilhar uma pessoa por nada.
– mas a literatura é só “eu”, “eu”. por que afinal fotos de banheiras?
– não adianta nada não falar do “eu”, é o mesmo Capital que circula.
Catarina Lins

A lebre não dá entrevistas


1.
sabíamos da natureza e podíamos
contra-atacar

eu tenho os meus momentos ruins e você


pode ligar para a farmácia e pedir
os medicamentos para aplacar
os efeitos colaterais

(eu estou tentando escrever


meus primeiros poemas
depois de anos)

e a toda hora me interrompem


com alguma coisa doce ou
informações sobre a história filosófica da América

(que foi escrita não por um português ou um espanhol, como seria de se esperar,
mas por um inglês)

por isso, coloco os meus limões de lado


e o própolis e mel que eu vertia
em uma colher
para equilibrar
e tenho de ouvir sobre os teus pensamentos
“profundos” (parando de pensar nos meus, “supérfluos”)
uma mulher
precisa de um teto só seu para escrever, é o que pensamos
por isso
fico feliz (em parte) porque XXXXXXXXX
XXXXXXXX.

2.
tenho um sutiã sobre a cadeira
e, abaixo, um blazer (antes,
pesquisando sobre o dress-code
descubro que Abigail, por exemplo,
não pinta as unhas enquanto Tamara
leva uma mochila mas no geral
isso varia muito. O blazer, entretanto, pareceu a escolha adequada)
sujo, uma jaqueta, suja (demoro a lavar as roupas porque não sei quais cores
mancham quais, a não ser as brancas)
e ainda uso a toalha
como um turbante – torcendo os cabelos
curtos

3.
Acabamos de passar pela casa de um dos seus antigos amores

(para quem você comprou bananas a dois reais e flores a sete


conforme anotações em um caderno antigo)

Mas a lebre não dá entrevistas.

No outro dia,
antes do trabalho, tentava desenhar frutas num cesto enquanto você
fazia pães, massas, compras,

(Já fui eu quem escrevia todas as manhãs, de manhã


até a noite e sabemos
como isso acaba)

Mas se ainda deitam juntos


mesmo depois de 30 dias
iguais a este –

(depois dos seus livros


de sucesso
e dos meus
anteriores
e quase 20 anos depois
do primeiro filme da saga Harry Potter

quando a sua antiga namorada ainda criava cães d’água portugueses)

é como dizem:
nada é tão bom que não possa melhorar

nem mesmo

“a pessoa mais forte do mundo”

ou uma casa de Alvar Aalto

4.
então você sai do primeiro andar
dos lavabos coloridos e me leva à praia

(à noite, de novo, como é possível?)


para me mostrar os pescadores noturnos
ou melhor: O pescador noturno

e porque nada passava debaixo da terra


pudemos
“apreciar a vista e o incrível desenvolvimento urbanístico dos arredores”

mas aviões escreviam algo com fumaça

e recebemos avisos.

5.
comem-se ervas amargas

& não era só isso


era algum tipo de inveja, também, como aquela que sente agora

de qualquer maneira
eu nunca tinha dito a palavra “x” ao me dirigir a alguém
antes, quando precisava,
sempre procurava por alguma outra forma
de chamar sua atenção

e agora já são vinte e cinco anos

e alguém traduziu seus poemas


e estão errados mas não importa

(há semelhanças, também)

eu preferiria dizer, entretanto,


outras coisas que não envolvessem
exatamente aquilo –

(mas há diferenças, também)

e se algo bem melhor foi construído


foi porque não havia razão
para escrever sobre isso:

mas os dentes dos crocodilos são realmente mais letais


do que lâminas de metal?

(para data, hora, e local: RSVP)


Ana Freitas Reis

Terra
Continuamos a procurar o espanto nas montanhas,
insistimos nos cumes altos para contemplar,
miradouros frívolos ao serviço dos registos.

Saio para sentir o odor lunar,


procuro os sinais de nascença pelo solo.
Não temo o chão da terra.

É noite ainda.
Caem flechas por entre os ramos secos de um sobreiro.
Trincamos os espinhos da navalha.
As cabeças movem-se na direção do centro da fornalha.

Porque sim,
pela indolência da seiva que tem a certeza de uma revolução nocturna.
Encarno o perfume desgraçado desse lírio silvestre quando finalmente
repouso nos seios da natureza.

Fica de dia.
Há uma chuva opulenta que ainda inunda o nosso quarto,
há certos beijos que continuam a subtileza do seu voo,
sem que nenhum mais tema a força-guia da existência.

Hoje só conheço a terra


a única que não esquece a persistência
e a possibilidade na alegria.
Lauro Mesquita

Antes da escavadeira – os perigos da Rua Mauro Brandão


Sentados lado a lado
na casa alugada
imaginamos uma linha de trem

um falso palco
na mesa da cozinha

“Lá
Já não passa o trem há tempos.”

E por que me lembro disso agora?

O cheiro de mijo da carroça do leite


Não há mais
Mas era assim

Hoje olham a janela do lado


Não encontram nada igual
Mas o plástico colado no vidro
É roxo

É tão bonito

Falta o cheiro de sangue


Dos dedos
Dos bichos

Volto para antes


Para hoje
A cena sem diálogo
copiando
outra inexistente
copiando
até ser outra coisa

O estouro do coiote
o sangue do passarinho,
O garfo e a faca
sem frustração
Uma só vez
Pelo menos

O transporte de cigarros
e eletrônicos do Paraguai
a volta do Paraguai
as lojinhas da rua
de coisas do Paraguai
as piadas sobre o Paraguai
a excitação com um país desconhecido
da janela da sala
sem luz roxa
com cortina pesada
E muito dinheiro
à base de chicletes redondos
vindos do Paraguai

A montanha de terra
da nova avenida
das manilhas acinzentadas
do abraço ao futuro
Hoje, muito tempo

Um acontecimento
que todos esperávamos
A memória guarda
como se tivesse acontecido

De concreto, somente o som


das batidas na mesa
E a areia quebrando
Na minha cabeça
Como era
antes do betume

A excitação da chegada do asfalto


o cheiro do piche
do betume
a promessa de uma bola mais rápida
de um ar mais respirável

Mas enquanto isso


ainda na canela empoeirada
nos dedos desgastados pelo
paralelepípedo

Viver a vida
era ver um um pouco de morte
ver a vida
no limite da faca
Logo ali, do lado de casa
Perdíamos tempo
Víamos homens fortes
ou nem tão fortes
abatendo bois no Sindicato Rural

Eram 22 calibres de estrondo


direto a um buraco na testa
o xis imaginário que os bois carregam sob os olhos
a perna que ainda se mexe
depois do tiro

Por que me lembro agora?

Do cheiro de ferro
doce coagulado
A carne esverdeada de canto
as brincadeiras com chifre
Um mundo que caiu

Tombam rápido,
quietos
a faca rasga o pescoço e
destroça a carótida

Os bois

É fundamental que o animal perca completamente os sentidos e sangre, antes de


dar continuidade ao processo

O vermelho se torna marrom


vira amarelo e então
sombra

Do outro lado
o boi fatiado,
é rápido,
sem alarde

O zum do homem com a enxada


prepara a comida de quem vai morrer

A rotina dos animais em suas coxias


Nenhum deles está mais lá
Mas o sol
ainda deixa as canelas secas e empoeiradas

Homens velhos como nossos pais


carregavam pedaços de carne
pelas costas
Homens de botinas manchadas
vestidos com sacos de lixo,
cobertos de sangue

Hoje passam desconfiados


de camisa
Não sei bem fazendo o quê?
Desconfiados,
como eu

Até abater algum boi

Como o pai
do Paulinho que ninguém reconhecia
de roupa branca e cara vermelha
João Forte

Grãos de areia quebrados


uma constelação
Na trilha enferrujada do caminho

Quietos,
mal utilizavam a garganta,
calavam-se como bois
Como hoje
Tanto tempo

Das corridas à quadra de bocha


o cheiro de lavagem dos porcos
a disputa dos meninos pelos arreios gastos

As chibatadas nas galinhas


nos vira-latas
e na cara dos amigos

Matadouro,
ainda chamam aquele lugar
assim

Hoje, um terreno coberto de cimento e areia


sem finalidade
cercado por clínicas médicas e veterinárias
aula 2

24 abr. 2020
Georges Perec
(França, 1936-1982)

O que nos fala, ao que me parece, é sempre o acontecimento, o insólito, o extraordiná-


rio: cinco colunas na primeira página, largas manchetes. Os trens só começam a existir
quando descarrilam, e quanto maior é o número de viajantes mortos, mais eles existem;
os aviões só ganham existência quando se perdem; os carros têm por único destino cho-
car-se contra os plátanos: cinquenta e dois finais de semana por ano, cinquenta e duas
estatísticas: muitos mortos, e tanto melhor para a informação se os números não param
de crescer! É preciso que haja por detrás do acontecimento um escândalo, uma fissura,
um perigo, como se a vida só devesse se revelar através do espetacular, como se o eloquen-
te, o significativo fosse sempre anormal: cataclismos naturais ou reviravoltas históricas,
conflitos sociais, escândalos políticos...
Na nossa precipitação em medir o histórico, o significativo, o revelador, não deixemos
de lado o essencial: o verdadeiramente intolerável, o verdadeiramente inadmissível: o
escândalo não é a explosão, é o trabalho nas minas. As “perturbações sociais” não são
preocupantes em períodos de greve, elas são intoleráveis vinte e quatro horas por dia,
trezentos e sessenta e cinco dias por ano.
Os maremotos, as erupções vulcânicas, as torres que desabam, os incêndios das florestas,
os túneis que desmoronam! Horrível! Terrível! Monstruoso! Escandaloso! Mas onde está
o escândalo? O verdadeiro escândalo? Os jornais não nos dizem outra coisa a não ser:
fiquem tranquilos, vocês bem sabem que a vida existe, com os seus altos e baixos, vocês
bem sabem que coisas acontecem.
Os jornais falam de tudo, exceto do corriqueiro. Os jornais são um tédio, não me ensinam
nada; o que contam não me diz respeito, não me questiona e tampouco responde às per-
guntas que faço ou que gostaria de fazer.
O que acontece realmente, o que vivemos, o resto, todo o resto, onde ele está? O que
acontece a cada dia e que sempre retorna, o banal, o cotidiano, o evidente, o comum, o
ordinário, o infraordinário, o ruído de fundo, o habitual, como dar conta disso, como
interrogá-lo, como descrevê-lo?
Interrogar o habitual. Mas justamente, estamos acostumados a ele. Nós não o interroga-
mos, ele não nos interroga, ele parece não causar problemas, nós o vivemos sem pensar
nisso, como se ele não veiculasse nem perguntas nem respostas, como se não fosse por-
tador de qualquer informação. Não é nem mais condicionamento, mas anestesia. Dor-
mimos nossa vida em um sono sem sonhos. Mas onde está nossa vida? Onde está nosso
corpo? Onde está nosso espaço?
Como falar dessas “coisas comuns”, ou melhor, como cercá-las, trazê-las para fora, arran-
cá-las da casca onde estão presas, como dar-lhes um sentido, uma língua: que elas falem
enfim do que é, do que somos.
Talvez, trate-se de fundar finalmente nossa própria antropologia: aquela que falará de
nós, que irá procurar em nós aquilo que durante tanto tempo pilhamos dos outros. Não
mais o exótico, mas o endótico.
Interrogar o que parece tão natural que esquecemos sua origem. Reencontrar alguma
coisa do espanto que podia sentir Jules Verne ou seus leitores diante de um aparelho capaz
de reproduzir e transportar os sons. Pois esse espanto existiu, assim como tantos outros,
e são eles que nos modelaram.
O que é preciso interrogar é o tijolo, o concreto, o copo, nosso comportamento à mesa,
nossas ferramentas, a organização de nossas ocupações, nossos ritmos. Interrogar o que
parece ter cessado para sempre de nos espantar. É claro que vivemos, que respiramos; nós
andamos, abrimos portas, descemos escadas, sentamo-nos à mesa para comer, deitamos
em uma cama para dormir. Como? Quando? Por quê?
Descreva a sua rua. Descreva uma outra. Compare.
Faça o inventário de seu bolso, de sua bolsa. Interrogue-se sobre a procedência, o uso e o
devir de cada um dos objetos que você retirar daí.
Questione suas colheres.
O que há debaixo do seu papel de parede?
Quantos gestos são necessários para discar um número de telefone? Por quê?
Por que não encontramos cigarros nas mercearias? Por que não?
Pouco me importa que estas perguntas sejam fragmentadas, apenas indicativas de um
método, quando muito de um projeto. O que me importa é que elas pareçam triviais e
fúteis: é precisamente o que as torna do mesmo modo essenciais, senão mais, que tantas
outras perguntas através das quais tentamos inutilmente captar nossa verdade.
Hans Magnus Enzensberger (1929)

As roupas
Eis suas roupas, calmas, 
como gatas ao sol, de tarde,
suas roupas amarrotadas
sem sonhos, como por acaso.
Elas têm o seu cheiro, fraco,
quase se parecem com você.
Transmitem a sua sujeira,
seus maus hábitos,
os vestígios de seus cotovelos.
Parecem feitas de tempo, não respiram,
sobram, moles, cheias de botões,
de características e manchas.
Nas mãos de um policial,
de uma costureira, de um arqueólogo,
revelariam costuras,
segredos fúteis.
Mas, onde você está, se está sofrendo,
o que sempre quis me dizer
e nunca disse,
se vai voltar, se aquilo
que aconteceu, aconteceu por amor
ou necessidade ou esquecimento,
e por que tudo isto
ocorreu,
como ocorreu,
quando a vida estava em jogo,
se você morreu ou se
está só lavando os cabelos:
isto não dizem.

Yoko Ono

Rol de roupas (Yoko Ono)


Para divertir suas visitas, traga seu
rol de roupas sujas do dia e explique a elas sobre
cada uma. Como e quando ficaram sujas e
por quê, etc.
José Lezama Lima

A escada e a formiga
À meia-noite
a formiga desce a escadaria do hotel.
Tenta seguir o alongamento de uma linha reta.
Às vezes para: que labirintos resolverá?
Em cada patamar ela estaciona
de um jeito surpreendente.
Anda pelo degrau como se procurasse
a encosta necessária para suas costas,
e então se precipita como se cantasse.
Está livre de todo compromisso,
mas acha, sem aviso, um pedaço de asa
e corre pra chegar à casa que desconhecemos.
Faz folia em todas as escalas
e depois desce, gabola, até a outra
correndo como se estivesse numa praia.
Está feliz
por dominar a escada.
Sabe que terá sucesso em sua aventura.
O sapato que pode machucá-la
passa raspando, mas lhe deixa
um pedaço de folha de tabaco,
uma pétala machucada,
o sal que faz arder seus olhos dominantes.
É a senhora da escada
e passeou degrau por degrau
com a elegância de uma dama inglesa
que leva o lixo até a esquina,
até o latão verde
com a coroa inglesa
riscada pelos dois leopardos.
Vielimir Khlebnikov
(Rússia, 1885-1922)

O lavrador, abandonando a enxada


1, O lavrador, abandonando a enxada,
Contempla o voo de um corvo
E diz: na voz do corvo ressoa
A Guerra de Troia,
A ira de Aquiles,
O pranto de Hécuba,
Enquanto voa
Sobre nossas cabeças.

2. Na mesa empoeirada
O acaso criou na poeira
Seus estranhos desenhos.
Diz um menino curioso:
Essa poeira talvez é Moscou
E essa talvez é Chicago ou Pequim.

Roland Barthes
(França, 1915 - 1980)

Cerejas
Encontrei cerejas (chegadas da Austrália) no mercado Saint-Germain. ­Dizem-me que
no mercado de Buci, ainda mais popular, há também, agora, frutas fora de estação.
Mesmo que esses produtos sejam caros, caríssimos, assim mesmo é comum encontrá-
los pela rua. Mas não é o enigma econômico que me atrai; é, antes, o seguinte: que o
progresso técnico (fazer vir, em algumas horas, frutas dos lugares mais distantes) furta
ao homem o tempo justo das estações (seu tempo) e, pouco a pouco, “com a melhor
das intenções”, frustra uma de suas alegrias, a da alternância; pois havia alguma
alegria em se esperar o fim do inverno, ver despontar, desaparecer, lamentar as belas
coisas que passam, mas que voltarão: termina a maior das alegrias, a do retorno. Para
o futuro, no horizonte, os mercados não irão mais nos proporcionar a chegada dos
primeiros frutos da estação: passou o tempo das diferenças.
Susana Thénon
(Argentina, 1935-1991)

deus nos ajude ou deus não nos ajude


ou nos ajude mais ou menos
ou nos faça acreditar que nos ajuda
e depois mande dizer que está ocupado
ou nos ajude obliquamente
com um piedoso “ajuda-te a ti mesmo”
ou nos embale nos braços cantarolando que vamos ver uma coisa
se não dormirmos imediatamente
ou nos sussurre que hoje estamos aqui e amanhã também
ou nos conte a história da outra face
e a do próximo e a do leproso
e a do garoto lunático e a do mudo que fala
ou coloque os fones de ouvido
ou nos sacuda com força rugindo que vamos ver uma coisa
se acordarmos imediatamente
ou nos faça o teste da árvore
ou nos leve ao zoológico para ver
como nos olhamos
ou nos aponte um trem velho sobre uma ponte fantasma
sustentada por cartazes de fraldas descartáveis

deus nos ajude ou não ou mais ou menos


ou esquivando

deus nos
deus o quê
ou mais ou menos
ou nem
Nicanor Parra
(San Fabián de Alico / 5 de setembro de 1914 – 23 de janeiro de 2018)

Manchas na parede
Antes que caia a noite total
Estudaremos as manchas na parede:
Uma parecem plantas
Outras simulam animais mitológicos.

Hipogrifos,
dragões,
salamandras.

Mas as mais misteriosas de todas


São as que parecem explosões atômicas.

No cinematógrafo da parede
A alma vê o que o corpo não vê:
Homens ajoelhados
Mães com seus filhos nos braços
Monumentos equestres
Sacerdotes que erguem a hóstia:

Órgãos genitais que se reúnem.

Mas as mais extraordinárias de todas


São
sem sombra de dúvida
As que parecem explosões atômicas.

Um homem
A mãe de um homem está gravemente enferma
Ele sai em busca do médico
Chora
Na rua vê sua mulher acompanhada de outro homem
Andam de mãos dadas
Ele os segue de perto
De árvore em árvore
Chora
De repente encontra um amigo de juventude
Quanto tempo não nos vemos!
Entram num bar
Conversam, riem
O homem sai para urinar no pátio
Vê uma jovem garota
É de noite
Ela lava pratos
O homem se aproxima
Ele a toma pela cintura
E dançam uma valsa
Saem juntos para a rua
Riem
Ocorre um acidente
A garota perdeu os sentidos
O homem precisa de um telefone
Chora
Chega a uma casa iluminada
Pede para fazer uma ligação
Alguém o reconhece
Fica para jantar, homem
Não
Onde está o telefone
Come, homem, come
Depois você vai
Senta-se para comer
Bebe como um condenado
Ri
Pedem que recite um poema
Recita
Adormece embaixo da escrivaninha.
Alexandre O’Neill
(Lisboa, 1924 – Lisboa, 1986)

Velhos / 1
Tem sempre um quadradinho de marmelada para o bisneto pequeno.
Tira-o não se sabe donde.
Guarda os baraços dos embrulhos,
desfaz-lhes os nós (“Os japoneses põem os meninos nas escolas a desfazer nós!”)
e, baraço a baraço, fabrica um novelo multicor
que pode fornecer fio para atar um embrulho,
por exemplo, o da louça chinesa que, peça a peça,
vai pondo no prego.
Não se engana (e já trepou aos oitenta e muitos)
a declinar o rosa-rosae que aprendeu em coro quando pequena.
Gosta de cães, mas tem medo, desde que outro dia,
isto é, há vinte anos,
lhe morreu o Kiss atropelado,
das trelas sentimentais.
Numa gaveta defendida a naftalina,
dentro duma caixa de cânfora,
guarda palminhos de renda, uma gargantilha, véus, vidrilhos,
longos alfinetes ornamentais (aqueles de chapéu).
Arrasta consigo um passado a sépia de fotografias.
Diante de cada uma, recita parentescos, genealogias.
E a fechar o cortejo mostra sempre a do seu casamento.
Era formosa, cheiinha, um verdadeiro quanto-baste de mulher.
Enviuvou; sobreviveu a dois filhos; vive com uma amiga.
Às vezes está amuada, não sai do seu quarto e passa o dia inteiro a tisanas.
Quando visita o bisneto,
insiste em ensinar-lhe o rosa-rosæ:
quer que ele seja um causídico.
Já não escolhe a comida; escolhe os dentes.
É um passarinho.
Mas nos seus olhos doces, azuis e moços,
uma gaiata traquina.
3 extras:

Gonzalo Rojas
(Chile, 1917-2011)

Escrito com L
Muita leitura envelhece a imaginação
do olho, solta todas as abelhas mas mata o zumbido
do invisível, corre, cresce
tentacular, se arrasta, sobe ao vazio
do vazio, em nome
do conhecimento, polvo
de tinta, paralisa a figura do sol
que há em nós, e nos
viciosamente mancha.

Muita leitura entristece, muita envilece


cheiramos
a velhos, os gregos
eram os jovens, somos nós os turvos,
como se os papiros dissessem algo diverso do anjo de ar:
somos nós os soberbos, eles eram inocentes
nós somos os cheios de moscas, eles eram os sábios.

Muita leitura envelhece a imaginação


do olho, solta todas as abelhas mas mata o zumbido
do invisível, acaba
não tanto com o L da famosa lucidez
mas com esse outro L
da liberdade,
da loucura
que ilumina o fundo
do lúgubre
do labirinto,
lambda
louca
luciérnaga
antes do fósforo, muito antes
do latejar
do Logos.
Epígrafe:

Jaroslav Seifert
(Praga, 1901-1986)

Vi apenas uma vez


Vi apenas uma vez
um sol tão ensanguentado.
E nunca mais
Descia funesto sobre o horizonte
e parecia
que alguém havia escancarado as portas do inferno.
Perguntei pelo observatório astronômico
e hoje sei o porquê.

O inferno, conhecemos: está em toda parte


e caminha sobre duas pernas.
E o paraíso?
Talvez o paraíso nada mais seja
além de um sorriso
por muito tempo esperado
e lábios
que murmuram o nosso nome.
E aquele frágil instante fabuloso
quando depressa podemos esquecer-nos
do inferno.
Juliana Krapp
(Rio de Janeiro, 1980)

Uma voz interior


que dissesse: as amuradas, as inundações
Não sei se a quero ou se ela apenas desliza
rumo às placas tectônicas
não em off, mas
desmesurada

Seu destino
é habitar o fosso
onde o capim cresce e esperneiam
os monstros sinuosos (também deles
é o mundo)

Uma voz interior


e seu coração de lata: última bala
na agulha

Pretexto
o olho da rua é seco, sarcástico
do mesmo gênero das abotoaduras
e toucadores

de tudo resta sempre o seu mistério virgem


a beleza de íris os ares encardidos a córnea
tal qual um diadema espavorido
sobre nossas cabeças

então ele cruzou a pista sem qualquer melancolia


e travou o zíper sobre a pele

*
TEXTOS / OFICINA

Marília Valengo

bilhete de despedida
queria que você visse
a minha coleção de frases
queria que você visse
o exato momento que o sol
lança um feixe de luz
sobre a porta da cozinha
de manhã muito cedo

que você parasse


alguns minutos
para ver o brinco de moça
florido no quintal
a força do amarelo
os pequenos animais
que aparecem por causa dele

planejei te mostrar
o caminho que leva
para a árvore mais antiga da redondeza
e sonhei com o momento
em que iríamos sentar para assistir
os bichos voltando para o curral
perto do sol se pôr

quis te levar na casa abandonada


quis dividir com você todos os barulhos
por trás do maior silêncio da terra

queria que você entendesse


que não precisa mergulhar mil léguas submarinas
basta perceber que flutuar é mais fácil
do que se imagina.
Bruna Corazza
Formas de se obter luz
O amor talvez seja
esse spot no meio do peito
uma chama
uma lâmpada velha
daquelas que precisam virar o soquete

(arrepio)

O amor talvez seja


um bom negócio
Eu cozinho, você passa
O tempo não

(arrepio)

O amor talvez seja


aquele disjuntor
que protege você de possíveis danos:
curto-circuito
sobrecargas elétricas
de qualquer deformação

Ou talvez seja
a chama da vela
que acendi
pra poder ver minha fé
Salmo 119:120
O sexto pecado

(arrepio)

O amor talvez seja


uma lamparina indiana
com um jinn dissimulado
desdenhando três desejos.

E eu que prefiro dar cigarros para o saci.


.
.
.
Mas, ao fim e ao cabo
meu amor:
o amor é meu.

(arrepio)
Rafael Lemos

campo
o blackbird
o boi
é só

o espaço não luz não move


move só o olho do blackbird
no espaço de vinte montanhas

terá o fósforo
o olho do pássaro
o espaço não

o bo in di so (l ut o)f re
ent re parn terses
(o boi
e so)
fere o capim
seu olho aguado
noo boeacaoo d noite
irnaos descasnguar no pasto azul
azul
navergar de ouvido
o adivinho
ouoouvidente

??
?
???
?
de uivos terri veis

di vinoa
vinho

nave armardov

entre de yemanjá entreosd


entesdapassag
em
vazante cheia pre(nh)
amar
anteosrestoseos
()rg()smt()s

hervingança

(ao)
vezovaso
dioniso
ê procissão

anaversar o trovão da concha aos pés

do ouvido até

morta a tripulação e finda a algaravia


aula 3

1o de maio – 2020
Antonio Cisneros

Dois sobre meu casamento um


1
“Uma vez a fragata amarrada ao cais,
Úrsula desembarcou e a seguiram
mais de 1.100 jovens mulheres que tampouco conheciam varão”.
E topei com você, recém-desembarcada.

2
Construí um lar sobre a pedra mais alta de Ayacucho, a mais firme de todas,
um lar protegido pelo puma e o falcão e sob o teto / uma fogueira redonda e amarela.
Mas pouco lucro haveria: foi só o epílogo dessa alegria guardada e desgastadas pelos anos
– sete verões, digamos,
gloriosos e enredados juntos às grandes ondas e longe dos olhos de tua tribo.
Mas qualquer rumor – um pelicano ferido, uma gaivota – podiam te devolver o velho
medo,
e então / tornavas a cruzar os muros da tua tribo pela porta maior
– nos cabelos e nas orelhas / iam toda a areia da praia.
E é porque o medo nunca te deixou, como a roupa íntima e as boas maneiras.
Caramba se casar em uma igreja “barroco colonial do XVII em Magdalena Velha”
– nas a arquitetura não nos salva.
É bem verdade que foi um jeito de ganharmos dois liquidificadores, um papagaio
empalhado, 4 baús, aparelhos para 18 funções, 6 vasos de cristal da Boêmia e 8 jogos de
chá reproduzindo cenas do amor pastoril (que você
trocou por um secador de cabelos e outras coisas que ninguém
tinha dado de presente).
Assim, linda garota, você cruzou o alto umbral (sob o puma de pedra e o falcão de pedra,
A fogueira que lança luz para os dois lados do vale de Huamanga
– bandeiras que no final também viraram dejetos).
Agora nem me lembro das coisas que você falava – se é que falava,
das coisas que te faziam rir – se é que você ria,
e não posso sequer elogiar tua comida.
Você foi um forte construído pelo medo (imagem medieval) que eu não soube escalar ou
que não pude.
E agora nem me lembro se realmente você foi um forte construído pelo medo (imagem
medieval),
nem se soube escalar ou se não pude.

Escrever este poema me concede o direito à versão.


O Rei Lear
‘Quero que meu filho tenha o que não tive’
 
Deixe de bobagens: você arranja uma mulher e põe um par de filhos no mundo e passa
a vida em seu trabalho nem limpo nem muito sujo até empilhar 100 colunas de moedas
de cobre debaixo da cama
e depois com o tempo – afinal você é um tipo honrado salvo que a honra etc. –
acumula mais 2.000 colunas no guarda-roupa e 60 no teto do banheiro e então
torna-se o velho monarca que vai construir um castelo em terras da fronteira
antes da sua morte e antes da morte do maior de seus filhos, “com banheiro completo
no andar de cima e um banheirinho na entrada”
e entre as areias e o torreão oeste semearás maçãs e o bosque de carvalhos
que serão uma corda de cabo de guerra entre seus filhos e os filhos de seus filhos e os
outros que hão de levar adiante seu nome,
mas você sabe que com ela pode se pendurar num galho desses e Absalão – seu filho “o
maiorzinho, o que vai ser engenheiro” –
lhe partirá a cabeça em duas metades como um abacate.
Então você passa a evitar os galhos e troca os bosques pelas escarpas:
sobre a areia molhada seu cavalo corre alegre e veloz, os barcos inimigos não encrespam
o mar,
apenas o ar que sopra traz o frio dos capacetes normandos – “lá estava o gerente geral
com seu carrão, eu fiz que não vi” –,
mas a nenhum de seus filhos lhe interessa sua guerra com os normandos nem
aprenderam a usar a balestra,
e você só do trabalho para casa, evitando os galhos, e toca a seguir novamente para o
torreão oeste
– entre a cozinha e o quarto de fumar: o banheiro está sempre ocupado e nos quartos
que sobram nem uma aranha / dentro da noite
quando o ar está limpo: a luz das outras janelas, os grandes anúncios luminosos,
e você aproveita a baixa da maré, amarra as sandálias de cervo, veste o manto: cavalga à
beira-mar,
e Absalão – o menor – “será um grande advogado este menino” – estende a esteira
sobre a areia fofa e ergue seu arpão de osso
– não lhe apraz –, já sei, torne a fazer as contas, deixe de bobagens:
você arranja uma mulher e põe um par de filhos no mundo e trabalha e etc. até
empilhar 100 colunas de etc. debaixo da cama
até que sobe o dólar 50% e os normandos desembarcam depois de sobrevoar esses
torreões nunca construídos
e suas moedas de cobre viram cascas de ovo que o ar esmaga.
De acordo, seus filhos não saíram melhor do que você,
mas mesmo assim o esperam no bosque de carvalhos e à beira das águas
e agora por favor dê-se o trabalho de ir lá buscá-los: já não sobra outro inverno e esta
roda empaca.
Eugenio Montale

O tempo e os tempos
Não há um tempo único: são muitas as fitas
que deslizam paralelas
muitas vezes em sentido contrário e raramente
se entrecruzam. É quando se revela
a verdade pura que, descoberta,
é rapidamente suprimida por quem vigia
as engrenagens e os desvios. E se recai
depois no tempo único. Mas naquele átimo
os poucos viventes puderam reconhecer-se
para dizerem-se adeus, não até logo.

Talvez uma manhã andando num ar de vidro,


voltando-me, verei cumprir-se o milagre:
o nada às minhas costas, detrás de mim
o vazio, com um terror de bêbado.

Depois como numa tela, acamparão de um jato


árvores casas colinas para a ilusão costumeira.
Mas será tarde já, e eu partirei calado
Entre os homens que não se voltam, com meu segredo.
Rebecca Horn

O banho em espiral
No hemisfério sul de nossa terra
existe um tipo relativamente comum de pássaro migratório
Eles se reproduzem com tanta rapidez
que apenas um truque da natureza nos livra de um pesadelo
A cada ano, em bando
eles escurecem o céu da África Ocidental
onde se reúnem para seu passeio sobre o Atlântico
Apenas um décimo alcança a costa da América do Sul
noventa por cento cai exausto sobre o Atlântico
Suspeita-se que no meio do oceano
exatamente ali, onde segundo os geólogos
há milhões de anos
a África se separou da América do Sul
esses pássaros começam a voar em círculos
Procuram sua terra onde ela não existe mais
Seu instinto – sobrecarregado por milhões de anos – os conduz à morte
Apenas os insensíveis alcançam o continente

Dahlia Ravikovitch

Uma História Privada


Nove palavras eu lhe disse.
Você disse isso e aquilo.
Você disse: Você tem um filho,
Tem tempo, tem poesia.
As barras nas janelas ficaram gravadas em minha pele;
não dá para acreditar que aguentei tudo isso.
Eu não precisava, mesmo,
humanamente falando.
No dia Dez de Tevet o cerco começou;
no dia Dezessete de Tamuz a cidade caiu;
no Nono de Ab o templo foi destruído.
Eu suportei tudo isso sozinha.
Gottfried Benn

Gente encontrada
Tenho encontrado gente que 
se se lhes pergunta pelo nome 
respondem com modéstia como se 
não se atravessem sequer a reclamar que o têm:
“Cristiano”. E logo dizem 
“como o nome próprio”, na intenção de explicarem 
que não é um nome raro como Popiol ou Baberdererde,
“como o nome próprio”, ora, não incomode a memória com tal coisa. 

Tenho encontrado gente que 


cresceu com os pais e quatro irmãos num quarto 
e que, de noite, os dedos nos ouvidos, 
estudou só com o fogão da cozinha, 
e no mundo se ergue - por fora ladylike e bela como uma duquesa, 
por dentro doce e delicada como Nausícaa, 
a fronte pura de anjo. 

E tenho-me perguntado muitas vezes sem resposta alguma 


de onde é que a gentileza e a bondade vêm; 
ainda hoje não sei, e é tempo de ir-me embora. 
Eugenio Montale
(extra)

Xênia I
1
Querido pequeno inseto
que chamavam de mosca, não sei por quê,
esta tarde quase ao escurecer
enquanto lia o Segundo Livro de Isaías
reapareceste ao meu lado,
mas não tinhas óculos,
não podias me ver
nem podia eu sem aquela centelha
reconhecer-te no escuro.

2
Sem óculos nem antenas
pobre inseto que asas
só tinha na imaginação,
uma Bíblia em frangalhos e ainda por cima tão pouco
confiável, o negro da noite,
um relâmpago, um trovão e depois
nem mesmo a tempestade. Quem sabe,
te foste cedo demais sem mesmo uma
palavra? Mas é ridículo
pensar que ainda tivesses lábios.

3
No Saint-James em Paris terei que pedir
um quarto “de solteiro”. [Não gostam
de hóspedes desacompanhados.] E a mesma coisa também
na falsa Bizâncio de teu hotel
veneziano, para buscar logo depois
a cabine das telefonistas,
tuas amigas de sempre, e repartir,
gasta a corda,
o desejo de reaver-te, fosse
num gesto só ou em algo habitual.

4
Havíamos estudado para o além
um assobio, uma senha de reconhecimento.
Experimento reproduzi-lo na esperança
de já estarmos todos mortos sem saber.
5
Nunca cheguei a saber se eu era
o teu cão fiel e catarrento
ou tu o meu.
Para os outros, não, eras um inseto míope
perdido no blábláblá
da grã-finagem. Eram ingênuos
aqueles espertos e não sabiam serem
eles o teu joguete:
mesmo no escuro vistos e desmascarados
por um teu senso infalível, por teu
radar de morcego.

6
Jamais pensaste em deixar traços
de ti em prosa ou verso. E este
foi o teu encanto – e mais tarde meu desgosto de mim mesmo.
Foi também o meu pavor: de vir a ser
relegado por ti ao limo coaxante
dos neoteroi.

7
Pena de si mesmo, angústia e pena infinita
de quem adora o aqui embaixo e espera e desespera
de um outro... (Quem ousa dizer um outro mundo?).

............................................

“Estranha pena...” (Azucena, Segundo ato.)

8
Tua palavra tão sofrida e desprotegida
resta a única que me sacia.
Mas mudou-se o acento, é outra sua cor.
Me habituarei a ouvir-te ou a decifrar-te
no tique-taque do telex,
na fumaça volúvel dos meus charutos
de Brissago.

9
Ouvir era tua única maneira de ver.
A conta do telefone se reduziu a bem pouco.

10
“Rezava?”. “Sim, pedia a Santo Antônio
que a fizesse encontrar
sombrinhas perdidas e outros objetos
do guarda-roupa de São Hermes.”
“Só por isso?”. “Também pelos seus mortos
e por mim.”
“É o suficiente”, disse o padre.

11
Recordar o teu choro (e o meu dobrado)
não chega a apagar o espocar de tuas risadas.
Eram como a antecipação de um Juízo Universal privado,
Só teu, nunca ocorrido infelizmente.

12
A primavera desemboca com seu passo de toupeira.
Não mais te ouvirei falar de antibióticos
venenosos, da agarra de teu fêmur,
dos bens de fortuna de que um cobiçoso omisso
te depenou.

A primavera avança com suas névoas untuosas,


com suas longas luzes, suas horas insuportáveis.
Não mais te ouvirei lutar contra o regurgitar
do tempo, dos fantasmas, dos problemas logísticos
do Verão.

13
Teu irmão morreu cedo: tu eras
a menina despenteada que me olha
“fazendo pose” no oval de um retrato.
Ele escrevia músicas inéditas, inauditas,
hoje enterradas num baú ou quem sabe
trituradas. Talvez as reinvente
alguém sem se dar conta, se o que está escrito está escrito.
Eu o queria sem havê-lo conhecido.
Além de ti ninguém o recordava.
Não fiz pesquisas: agora é inútil.
Depois de ti tornei-me o único
para quem ele existiu. Mas é possível,
tu o sabes, amar uma sombra, sombras nós mesmos.

14
Dizem que a minha
é uma poesia de impertinência.
Mas se era tua pertencia a alguém:
a ti que não és mais forma e sim essência.
Dizem que no mais alto grau a poesia
exalta o Todo em fuga,
negam que a tartaruga
seja mais rápida que o raio.
Tu, apenas tu, sabias que o movimento
não difere da estase,
que o vazio é o pleno e o céu limpo
a mais difusa das nuvens.
Desta forma compreendo melhor tua longa viagem
prisioneira do gesso e das bandagens.
No entanto não me dá sossego
saber que sós ou juntos somos uma só coisa.

*
Xênia II
1
A morte não te concernia.
Até os teus cães tinham morrido, até
o médico dos doidos a quem chamavam de tio maluco,
até tua mãe e sua “especialidade”
de arroz com rã, triunfo milanês;
e até teu pai que de um mini porta-retratos
noite e dia da parede me vigia.
Apesar disso tudo, a morte não te concernia.

Aos enterros quem tinha que ir era eu,


escondido num táxi, guardando distância
para evitar lágrimas e chateações. E nem mesmo
a vida te importava, com seus feiras
de vaidades e de cobiças e muito menos a
gangrena universal que transforma
os homens em lobos.

Uma tábula rasa; se não fosse existir


um ponto, para mim incompreensível,
e esse ponto te concernia.

2
Muitas vezes te lembravas (eu poucas) do senhor Cap.
“Vi-o apenas duas vezes, em Ischia, no ônibus de turismo.
É um advogado de Klagenfurt, aquele que manda sempre suas lembranças.
Disse que viria nos ver.”
E enfim veio, conto-lhe tudo, fica com lágrimas nos olhos,
parece que é uma catástrofe para ele também. Fica calado um tempão,
gagueja, levanta-se todo duro e se inclina. Confirma
que mandará suas lembranças.
É estranho que
só hajam logrado entender-te pessoas inverossímeis.
O doutor Cap! Basta o nome. E Celia? O que terá passado com ela?
3
Por muito tempo lamentamos a perda da calçadeira,
o cornicho de metal enferrujado que
sempre nos acompanhava. Parecia uma indecência usar
entre ouropéis e estucos um tal horror.
Deve ter sido no Danieli que eu esqueci
de repô-la na valise ou na bolsa de mão.
Hédia a camareira a jogou com certeza
No Canalazzo. E como poderia eu escrever
que procurassem achar aquele pedaço de lata?
Era um prestígio (o nosso) a preservar
e Hédia, a fiel, o havia feito.

4
Cheia de astúcias,
saindo das goelas de Mongibello
ou das bocarras de gelo
revelava incríveis intuições.

Disso se apercebeu Mangano, o bom cirurgião,


e sorriu, quando, desmascarado, tornou-se o esbirro
dos camisas negras.

Assim eras tu: mesmo à beira do abismo


doçura e horror numa mesma música.

5
Desci, dando-te o braço, um milhão de escadas pelo menos
e agora que aqui não estás é o vazio a cada degrau.
Mesmo assim foi curta nossa longa viagem.
A minha dura ainda, mas já não me ocorre pensar
nas conexões, nas reservas,
nas ciladas, nos vexames dos que creem
que a realidade é aquilo que se vê.

Desci milhões de escadas dando-te o braço


e não porque com quatro olhos se vê mais.
Contigo as desci porque sabia que de nós dois
as únicas pupilas verdadeiras, ainda que um tanto baças,
eram as tuas.

6
O vendedor de vinho te servia um dedo
de Inferno. E tu, horrorizada: “Tenho que bebê-lo? Não basta
ter-se estado dentro, queimando a fogo brando?”
7
“Nunca tive a certeza de estar mesmo no mundo”.
“Bela descoberta, me respondeste, e eu?”
“Oh, o mundo tu o mordiscaste, se bem
que em doses homeopáticas. Mas eu...”

8
“E o Paraíso? Tem um Paraíso?”
“Acho que sim, madame, mas os vinhos doces
ninguém quer.”

9
Às freiras e às viúvas, azarentas
malcheirosas carpideiras,
não ousavas olhar. Aquele mesmo que tem mil olhos,
os desvia delas, disso estavas segura.
O onividente, ele... porque tu, na tua sabedoria,
a deus não mencionavas nem mesmo com minúscula.

10
Depois de longas buscas
te encontrei num bar da Avenida
da Liberdade; não sabias um jota
de português ou melhor sabias uma só
palavra: Madeira. E vem o copinho
com um acompanhamento de lagostinha.

À noite fui equiparado aos lusitanos


máximos, de nomes impronunciáveis
e de sobra a Carducci.
Nada impressionada eu te via chorar
de rir por detrás do bando de gente,
entediada talvez mas cheia de ternura.

11
Ressurgindo depois de um infinidade de tempo
Célia, a filipina, telefonou
para saber notícias tuas. Creio que está bem, digo,
talvez melhor do que antes. “Como, crê?
Não está mais viva?” Talvez mais do que antes, mas...
Célia, vê se entende...
Do lado de lá do fio,
de Manila ou de outro
qualquer nome do atlas uma voz embargada
impedia também a ela de falar. E desligou de repente.
12
Os falcões
sempre longe demais para teus olhos
raramente os viste de perto.
Um em Étretat que vigiava o voo
desengonçado de seus filhotes.
Dois outros na Grécia, no caminho de Delfos,
um monte de plumas macias, dois bicos jovens
ousados e inofensivos.

Amavas a vida feita em pedaços,


a que irrompe da insuportável
trama.

13
Pendurei no meu quarto um daguerreotipo
de teu pai quando menino: tem mais de um século.
Na falta do meu, tão confuso,
tento reconstruir, mas em vão, teu pedigree.
Não somos cavalos, as datas de nossos ancestrais
não se encontram nos almanaques. Aqueles que presumiram
sabê-las não eram eles próprios existentes
nem nós para eles. E agora? No entanto o fato é
que alguma coisa aconteceu, talvez um nada
que é tudo.

14
A inundação submergiu a banquisa dos móveis,
das cartas, dos quadros que apinhavam
um porão fechado com dois cadeados.
Sem dúvida lutaram às cegas os marroquins
vermelhos, as intermináveis dedicatórias de Du Bos,
a medalha com a barba de Ezra,
o Valéry de Alain, o original
dos Canti Orfici – e ainda algum pincel
de barba, mil ninharias e todas
as partituras de teu irmão Silvio.
Dez, doze dias sob um atroz bafio
de óleo e de esterco. Seguramente sofreram muito
antes de perderem sua identidade.
Eu mesmo fiquei atolado até o pescoço pois o meu
estado civil foi dúbio desde o início.
A turfa não me incomodou, mas os eventos
de uma realidade inacreditável e inacreditada,
Frente a eles minha coragem foi o primeiro
de teus empréstimos e talvez não o hajas sabido.
TEXTOS / OFICINA

Marília Valengo

o amor está no intervalo


o comercial dura
trinta segundos
o semáforo demora
um século para abrir
o pagamento atrasa
o freela enrola mais uma semana
a roupa da amiga
está largada há dias
no porta malas
a atleta machucada não cruza
a linha de chegada
o medium indica
a duração do texto a ser lido
uma criança espera
nove meses para nascer
já a mãe tem
a vida inteira para recuperar
sua individualidade
um orgasmo pode chegar
em onze minutos
um pau sobe
sem que a gente perceba
não dá pra saber o tempo que leva
pra encontrar a felicidade
mas, desconfio
ela pode aparecer
enquanto você distraidamente
come seu açaí.
Catarina Lins

c. à pomme
porque dói
porque às vezes, em vez disso, alguém permanece no meio do mastro
como um farol neutralizado
enquanto fala baixo
para não distrair o filósofo mergulhado em Pascal

porque sonhei com ela e no sonho


estávamos ambas no meu quarto antigo, na casa da infância,
mas era eu quem me inclinava
sobre a.

porque o azeite e a água são in-misturáveis


como você disse e viu, é claro,
como acontecia todas as vezes nas quais
tentava chegar perto

para todas aquelas pessoas, entretanto,


era “como um pai”

(Para mim, era antes como se precisasse


fugir – de outra maneira, queimaria ou então fugiria
para um lugar ainda mais longe)

Não estendo meus braços para alcançar a maçã – estou cansada de nadar
ainda que meus pés
continuem mergulhados n’água

– eu a jogo para cima e meus próprios dedos a recebem de volta –

No cômodo ao lado, alguém briga com seus filhos

e, naquela época, ninguém conseguiria entender


todos aqueles sonhos

Mas agora sim, e aí é que está – ou: é precisamente esta a diferença

entre nós:

observamos juntas o cesto de frutas colorido, a faca que toca o pão, gemidos,
formas
frágeis

As maçãs do inverno colhidas no final do outono


O primeiro pomar de maçãs, plantado em Boston

As maçãs enviadas para o que de repente

parece uma farsa:

“Imagine um deserto na Terra.”


Tem cheiro de quê?
Nada. Até que chova,
quando ar é preenchido subitamente com odores doces, pastosos.

Ana Freitas Reis

A flor abre
e fecha os olhos
fenda do amor e do tempo
a ousadia de viver
gerando, simultaneamente
mulher, colher e vaso.

Lenta,
a pausa, escura, o silêncio.

Até que explode


expele
guarda
e recolhe.
Solta
as águas.

– Ajoelhemos-nos – no colo de Abril para Maio


rebento milagre.

De águas somos
outrora rio e poeira.
E chega o instante
em que inclinaremos a cabeça
à beira dos corações
como um jarro de cansaço e festa.

À tua espera
Júlia
Monique Deheinzelin

Feliz
À sombra das amendoeiras em flor todos nos sentimos bem
E não nos perguntamos de onde vêm os nós e os caroços
Vigor de folhas verdes
(que a brisa do Brasil beija e balança –)
farfalhando no vento

No pé do chão, burburinho de formigas, todos nos sentimos bem


E não nos perguntamos de onde vem a relva fresca
Amor da lama terra
(por mais distante, um errante navegante –)
lambuzando o dedão

Agora é uma chuva com vento que vem vindo do litoral


Peixe frito, canoa, bananeira e um golinho de pinga
E a gente se sente bem com isso
(fonte de mel, luz das acácias –)
lembrando o verão

Agorinha foi um pôr de sol de fogo e sangue


Breve
Besouro casaca azul brilhante
Chegou de par à borboleta cor de laranja
Nas florzinhas purpurinas, delicadas, mimosas, o amor.

Muito além do jardim


Moita, meu bem, jasmim
Foi numa roda de samba
Foi numa roda de samba que
Foi numa roda de samba que eu
Já já jájá já já já já já já já já
(O vapor de Cachoeira não navega mais no mar --)

Lá fora corre um córrego


Aqui dentro as eclusas estão abertas
Cabem muitos bens em meu coração, meu bem, já já já

17 de março de 2007, o aniversário do Fernando, (when I’am sixty four --)

Para o meu amigo poeta Marcelo Beso adormecido em seu violão, da sua amiga
Monique
Diego Vinhas

Sonar
isso que você chama de “.............” pode se chamar também de conversa entre os sons de
chuva ao mesmo tempo em janelas de quartos de hotéis em cidades de países distantes
onde alguém tenta se convencer que ainda não acordou e alguém que cresceu sob
o signo da guerra resiste tentando transformar os sintomas de uma gripe (ou um
romance) mal curada(o) em poemas de circunstância.
aliás isso que chamo de “uma conversa entre os sons da chuva etc” pode até se chamar
de menino após resistir à descarga de golpes do corredor polonês no primeiro dia
de aula na escola nova, sentindo que a partir dali estará para sempre vestido com as
roupas e as armas de Jorge para que meus inimigos tenham olhos e não me vejam e nem
mesmo um pensamento eles possam ter para me fazerem mal.
porque (veja) é sempre igual, isso que alguém possa chamar de “menino do corredor
polonês” também pode ter o nome do que talvez pensasse um olho que a 65 milhões
de anos-luz direcionasse seu telescópio agora para cá, e sobre a superfície da Terra
visse algum paz e dinossauros, e você já tem idade para saber que o que eu chamo de
“.............” pode também ser “visão dos grandes répteis ao receber uma luz emitida da
superfície da Terra há 65 milhões de anos-luz”.
como quando você mesmo ciente da iminente derrota pela noite em claro preferiu
recusar a luz para melhor vigiar os pequenos ruídos da cabeça dela oscilante na
poltrona ao lado, e ter assim um bom motivo para ficar acordado até a menina de rosto
compatível com várias idades sorrir quando a tela seu celular brilhou um chamado de
alguém que você não conhecia mas já invejava, e nem um telescópio que enganasse
a velocidade da luz poderia desviar tanta atenção agora, antes que as autoridades
entrassem, e inventassem os nomes dos supostos terroristas (ou plantassem depois,
nos escombros, os passaportes estranhamente intactos dos supostos terroristas),
dentro do ônibus, naquele instante 1 segundo antes da explosão.

Por que precisamos de monstros?


por quê?
para que haja sempre
saudades da luz
alguma luz em galope
na aventura
do vasto território inimigo
embaixo da cama?
para que destes dias
e dos passados (feitos
de falta e colagens
respectivamente)
qualquer retalho tenha
(sempre) este
agouro
brincando em volta
como um satélite?
pense em ouvir
o som da própria voz
em noites assim
pense que você não possui
um gato multicinza
a quem gosta de apelidar
depois de alguns tragos
de pale blue eyes
e pense
em todas as subespécies
de solidão
desta estranha fauna
por exemplo a do
homem-sanduíche
e o mercado informal de ouro
ofertado aos vultos que
o ultrapassam
ou a do homem-rã
consertando cabos dentro
da água
ferruginosa
(placenta imensa
sob a ponte)
e pense que com você
não existe qualquer
gato em cujo dorso
por a mão para
drenar o cansaço
mas somente noite
após um dia comum
e o som
da própria voz.
daí o imperativo
por monstros?
o medo como forma de
companhia? ou por
serem fonte de pavor e bênção
(já falamos disso:
muitos começos brotam
dos pesadelos),
uma fronteira sugerindo
algo além do
nosso tumulto?
não responda agora
sua casa espera
em desordem
mas a conversa se
espalha nas paredes
e nem dormir
seria mudar de assunto
(Goya sabia que el
sueño de la razón
produce monstros).
no próximo intervalo
de silêncio que
irromper aí
pense em tudo isso
em nossas mitologias
pessoais e gírias internas
e se
para você também
o que chamamos
medo (ou
coisa que o
valha) chega às
vezes vestido
de espelho
e como se por
efeito
bumerangue
talvez eles
também esperem
pela lanterna
que empunhamos
a investigar
embaixo da cama
talvez
por saudades da luz
os monstros
nos queiram
por perto.
Bruna Corazza
Sinastria
De fato eram complementares
compatíveis
amáveis
combinava sol
lua
mercúrio & marte

Combinava o cinema
a culinária
a cor da parede da sala
o nome do primeiro filho que se avizinhava

Mas na hora de acertar as contas


de segurar as pontas
as instituições não eram as mesmas
os tributos não eram os mesmos

Um em frente ao outro
Doc, ted, segurança, envelope
Tudo isso?
Confirmações em aberto
Traga seu salário
p-o-r-t-a-b-i-l-i-d-a-d-e

Só por você?
grrrr
bla bla bla

...

Antes de tudo, meus caros, a sinastria dos bancos


aula 4

8 de maio – 2020
Gary Snider

Dezembro em Yase
Naquele outubro
em que escolheu ser livre
na grama alta e seca junto ao pomar
você disse “quem sabe um dia, talvez daqui a dez anos”.

Terminada a universidade te vi
só mais uma vez. Você estava estranha.
E eu obcecado com um projeto.

Agora se passaram os tais dez anos


e até mais um pouco: eu sempre soube
onde você estava –

Devia ter ido te ver


movido pela esperança de recuperar seu amor.
Você continua solteira.
Mas não fiz nada disso.

Só em sonhos, como esta madrugada,


a intensidade terrível
de nosso amor de garotos
me ocupa de novo a mente, a carne.

Tivemos aquilo que todos


se esforçam tanto para ter;
e abandonamos tudo para trás aos dezenove anos.

Me sinto com mil anos, como se tivesse


vivido muitas vidas.

E talvez nunca descubra


se sou um idiota
ou fiz o que exigia
o meu karma.
Czeslaw Milosz

Para Raja Rao


Raja, seria bom se eu soubesse
a causa dessa enfermidade.
 
Por anos não pude aceitar
o lugar em que estava.
Sentia que devia estar alhures.
 
À cidade, às árvores, às vozes humanas
faltava o que chamamos de presença.
Vivia da esperança de ir embora.

Havia alhures uma cidade de real presença,


de árvores reais e vozes e amizade e amor.
 

Associa, se quiseres, esse meu caso


no limite da esquizofrenia
ao sonho messiânico
de minha civilização.

Pouco à vontade na tirania, pouco à vontade na república,


numa eu ansiava por liberdade, noutra pelo fim da corrupção.

Construindo em minha mente uma “polis” permanente


despojada para sempre de alvoroço despropositado.

Aprendi afinal a dizer: aqui é minha casa,


aqui, frente ao carvão em brasa dos crepúsculos no oceano,
nessa margem que se inclina para as margens da tua Ásia,
numa grande república, comedidamente corrupta.

Raja, isso não me curou


da culpa e da vergonha.
Vergonha, porque não me tornei
quem deveria ter sido.

A imagem de mim mesmo


se agiganta na parede
e diante dela
que mísera minha sombra.
Eis então que acreditei
no Pecado Original,
que não é nada mais
do que a primeira vitória do ego.

Atormentado por meu ego, iludido por ele


eu lhe dou , como você vê, um argumento pronto.
 
Ouço você dizer que a liberação é possível
e que a sabedoria socrática
é idêntica à do seu guru.
 

Não, Raja, preciso começar do que sou.


Sou esses monstros que me visitam em sonhos
e revelam
minha encoberta essência.

Se estou doente, falta no entanto uma prova


de que o homem pode se considerar são.
A Grécia tinha de sucumbir, sua límpida consciência
acabaria apenas aguçando nossa angústia.

Era-nos necessário um Deus que nos amasse em nossa fraqueza,


Não na glória da perfeita unidade.

Não há remédio, Raja, meu quinhão é agonia,


peleja, abjeção, amor e ódio a mim mesmo,
preces pelo Reino do Céu
e a leitura de Pascal.
 
.

(Berkeley, 1969)
Leslie Kaplan

O amor é redondo
Mas o que é esse sujeito que surge assim correndo, dentro da escuridão, num
estacionamento, cheio de carros, cuidando deles, falando com eles, Desfaz, dona,
ele usa um rabo de cavalo para atar seus longos cabelos louros, usa um bigode
que desaba sobre os lábios, ele pensa que é um viking ou o quê, tem o rosto meio
vermelho, tem traços rudes, cansados, olheiras enormes, mas ele é bem ágil debaixo
de sua jaqueta, ele salta os obstáculos, adora Bogart, a classe, a elegância e o preto
e branco, ele procura um lugar numa lanchonete, pede um cachorro-quente, uma
cerveja e um café, ele ouve o que lhe diz o cara ao seu lado, o cara ao seu lado
se chama Morgan, já ele se chama Seymour, Seymour Moskowitz, o cara ao seu
lado está só, nisso aliás ele não está só, mas ele é só Morgan, Morgan Morgan, sua
mulher morreu e ele é um pouco vesgo, Você quer que eu cante, que eu recite uns
versos?, e ele o faz, o mundo está cheio de gente comum, era preciso matar toda essa
gente comum, ele cospe, a existência humana é de deixar qualquer um maluco, e
durante todo esse tempo em que não desgrudamos os olhos de cima de Morgan se
pode ver Seymour que o está ouvindo e a questão permanece: o que é esse sujeito?,
finalmente, ele se levanta, sai, deixa para trás Morgan que conversa agora com a
garçonete, minha mulher tinha sardas como você, pelo corpo todo, ah cai fora, me
deixa em paz, e Seymour vai arrumar confusão em um bar, não demora consegue ser
chutado de lá, não é nada difícil, difícil mesmo é compreender o que é esse sujeito,
ele poderia ser insuportável, mas aí é que está ele não é, ele vai visitar a mãe, ele leva
flores enormes para ela, ela o recebe correndo, ela corre dentro do apartamento
igualzinho a como ele corre no estacionamento, na rua, na vida, ela grita eu te amo,
eu preparei uma carne, você quer comer um pouco, o que são essas flores, são amor,
só isso, no avião rumo à Califórnia ele se senta ao lado de uma mãe terrível que
quer obrigar sua filhinha a comer, e faz ameaças, e diz que é para o seu bem, Se você
não comer você vai ficar feia, é o amor amor amor que faz o mundo girar, e agora
Seymour some de cena mas até agora não há resposta para a questão, o que é esse
sujeito, será que há palavras suficientes, as palavras certas, para responder, e então
Minnie entra em cena, ela também adora Bogart, ela vai vê-lo com uma amiga um
pouco mais velha, ela adora cinema, mas o cinema engana, são só imagens, a vida
não é assim, a vida é o quê, ninguém sabe, estamos em cheio dentro dela, estamos
todo o tempo e sem trégua em cheio dentro dela, estamos transbordando, como
sair da confusão?, em todo o caso não é necessário se defender, ou fugir, ou evitar,
é mais ou menos isso o que Seymour diz a Minnie quando ele a salva de um tipo
horroroso, que fala o tempo todo, que a afoga em palavras falsas além da conta,
palavras que não são palavras, mentiroso escroto, e Seymour oferece uma carona
para Minnie em seu caminhão, mas ela não quer saber de nada, o que é esse sujeito,
ele a persegue, ele buzina, ela tem medo, compreende-se, mas o que é a vida? é uma
porrada, uma violenta bofetada que a derruba no chão quando ela volta para casa
um pouco bêbada da casa de sua amiga, ah é Jim seu amante ciumento que trai a
mulher com ela, Eu te amo, ela não acredita nisso, a mulher tampouco, a mulher
de Jim tenta se matar, sórdido final da história com Jim, e Seymour salva Minnie
outra vez, ele a leva para tomar sorvete, mais tarde ele a coloca na cama, Dorme,
Minnie, você dorme bem, você dorme incrivelmente bem, quanta ternura, mas a
palavra ternura não serve, a palavra ternura não é suficiente, talvez terna ternura,
dócil doçura, mas aí é muito açucarado, ele é gentil, ele é Seymour Moskowitz, gentil
e obstinado, furioso, mas furioso com o quê, furioso com essa mulher que diz não
o tempo todo, enquanto ele sabe que é sim, sim, sim, sim ao encontro, sim à vida,
primeiro dizer sim, é com o sim que se compreende, depois, é com o sim que se pode
dizer não, sim ao céu estrelado e ao Danúbio azul, sim a dançar num estacionamento,
ela diz: Eu não quero dançar, e ela dança, em geral é a mulher quem diz sim, Yes, I say
yes, mas isso depende, quando se tem uma mãe baixotinha que fica gritando é fogo,
no final a mãe de Seymour previne a namorada, ele é feio, é uma nulidade, ele trabalha
num estacionamento, a mãe quer guardá-lo só para si, ah o amor, que força é preciso,
foi preciso, para Seymour resistir a esse bloco de amor materno, a esse rochedo de
amor materno, ele fica melhor sem o bigode, ele raspa o bigode para Minnie, ele bate
a cabeça na parede, ele faz pé firme, ele lhe diz que quer casar com ela, ele se casa com
ela, o que é esse sujeito, e essa mulher, que ele persegue, caça, empurra para a frente,
carrega, obriga, força, persuade, quer absolutamente, quer mais que tudo, à qual ele
em resumo se sabe condenado, essa mulher que ele ama de cara assim que a vê, essa
mulher que ele decide amar e ama, e essa mulher, o que é essa mulher?

Anne Carson

A tarefa de quem traduz Antígona


Cara Antígona:
seu nome em grego significa algo como “contra o nascimento” ou “em vez de nascer”
que existirá em vez de nascer?
não que desejemos compreender tudo
ou mesmo compreender alguma coisa
desejamos compreender algo mais

volto sempre ao Brecht


que fez você atravessar a peça inteira com uma porta amarrada às costas
uma porta pode comportar diversos significados
posto-me do lado de fora de sua porta

o estranho é que você também se acha postada do lado de fora de sua porta
a porta não tem um lado de dentro
ou, caso o tenha, é você a única pessoa que não pode adentrá-lo
para a família que reside lá as coisas resultaram irrevogavelmente más
ter um pai que é também seu irmão
significa ter uma mãe que é também sua avó
uma irmã tão sobrinha quanto tia
e um outro irmão que você ama a ponto de querer deitar-se com ele
“na cova coxa contra coxa”
pelo menos é o que diz de relance no início da peça
mas ninguém o menciona depois

ora você sempre exagerando! costumava dizer o meu pai


e aqui convocamos Hegel em nota de rodapé chamando a Mulher de “eterna ironia da
comunidade”
até que ponto devemos levá-la a sério?
será você “Antígona entre duas mortes” tal como o quis Lacan
ou uma paródia da lei de Kreonte e da linguagem de Kreonte – conforme Judith Butler

que também lhe descobre “ocasião para um novo campo do humano”?


no entretanto, “um exemplo de intelecto masculino e senso moral”
é o juízo de George Eliot, ao passo que para diversos acadêmicos contemporâneos você
(previsivelmente, talvez)
soa como uma terrorista

e Zizek a compara triunfantemente a Tito


líder da Iugoslávia dizendo NÃO! a Stalin em 1942
falando dos anos 1940, que boa impressão causou você junto ao alto comando nazi
e simultaneamente aos líderes da Resistência Francesa
quando sentaram-se todos na plateia
quando da estreia da Antígona

de Anouilh Paris 1944: não sei de que cor eram seus olhos
mas posso imaginá-la revirando-os agora
voltemos a Brecht, talvez ele tenha sido o que melhor a compreendeu
carregar a própria porta tornará uma pessoa
desastrada, cansada e estranha

por outro lado, pode resultar útil


se se vai a lugares que não têm entrada óbvia, como a normalidade
ou uma saída óbvia, como o clássico impasse
bom eis aí o seu problema
o meu problema é transportar a você e a seu problema
até o Inglês desde o Grego Antigo
tudo o que jaz oculto nestas pessoas, os seus
crimes horror anos conjuntos, uma família, aquilo a que nomeamos família
“uma das minhas primeiras memórias”, escreveu John Asbhery 1980 na revista New York
“é de tentar arrancar o papel de parede do meu quarto
não por animosidade
mas porque me parecia que devia haver algo fascinante
atrás de seus galeões e globos e telescópios”
isto me lembra o Samuel Beckett que descreveu em uma carta
sua própria aspiração no que concerne a linguagem
“abrir nela sucessivos buracos até que aquilo que se acovardava por detrás escorra para fora”
cara Antígona: você é também alguém que mantém a fé
com uma organização profundamente outra que subjaz ao que vemos ou dizemos, bem no
limite
citando Kreonte você é autônoma
palavra composta de autos “eu” e nomos “lei”
autonomia soa como uma espécie de liberdade
mas não é a liberdade que a interessa
seu plano

é costurar a si em sua própria mortalha usando o menor dos pontos


como traduzi-lo?
extraio inspiração de John Cage, o qual, quando lhe perguntaram
como havia composto o 4’33”, respondeu
“Eu o construí gradualmente usando muitos pequenos pedaços de silêncio”
Antígona, você não,

não mais que John Cage, aspira a uma condição de silêncio


você quer que escutemos o som do que se passa
quando tudo que é normal/musical/cuidadoso/convencional ou piedoso é eliminado
ó irmã e filha de Édipo
quem poderá ser inocente no trato consigo
nunca houve tábula rasa

sempre estivemos ansiosos de antemão a seu respeito


talvez conheça aquele poema de Ingeborg Bachmann
de seus últimos anos de vida que começa com
“Estou perdendo meus gritos”
cara Antígona
tomo como a tarefa do tradutor
impedir que jamais você perca os seus gritos
Vladimir Maiakóvski

Carta a Tatiana Iácovleva


No beijo das mãos,
na boca que me beija,
no corpo dos meus próximos,
que freme,
a cor
das minhas repúblicas
– vermelha –
deve estar
sempre
acesa.
Eu não amo
o amor de Paris:
cadelinhas de seda
– que se enfeitem! –
em vão.
Espreguiço-me,
e vou dormir,
como quem diz:
“Quietos!”
aos cães raivosos
da paixão.
Na estatura
só você me ombreia,
fique pois,
sobrancelha a sobrancelha,
ao meu lado.
Deixa
que eu faça alarde
como homem
da grandeza da tarde.
Cinco horas,
e a partir de agora
o pinheiral humano
espesso
amaina:
esmorece
a cidade e sua faina.
Ouço apenas
a discussão dos apitos
dos trens para Barcelona,
ríspidos.
No céu negro
raios piscam passos,
um trovão
de impropérios
no drama dos espaços.
Nuvens de tempestade?
Não.
A simples sanha
do ciúme,
que remove montanhas.
Não creia nessa estulta
argila bruta dos vocábulos,
que esse tumulto
não te cause susto,
hei de frear,
hei de domar o impulso
de um sentimento
de rebentos fidalgos.
A sarna da paixão
pode cair em crostas,
mas a alegria,
esta não se esgota,
quero cantá-la
como quem conversa
longamente,
singelamente em versos.
Ciúmes,
esposas,
lágrimas...
Se danem!
Como Vii
com suas vistas congestas.
Não é por mim
que tenho ciúmes,
antes
me enciúmo pela Rússia Soviética.
Eu vi
os remendos sobre as costas
que a tísica
lambia
suspirando.
E então?
A culpa não é nossa –
cem milhões
andavam definhando.
Hoje
para esses
nossa afeição mais terna –
nem todos
se corrigem
com esporte,
mas em Moscou
serão úteis
criaturas com teu porte:
falta-nos também
gente de longas pernas.
Para isso
em meio à neve
e em meio ao tifo
você andou
com essas pernas altivas?
Para entregá-las
numa ceia furtiva
às carícias
de empresários petrolíferos?
Pare de cismar,
olhos sem rumo
pestanejando
sob os arcos a prumo.
Venha cá
para o abraço cruzado
dos meus grandes
braços desajeitados.
Você não quer?
Hiberne então, à parte.
(No rol dos vilipêndios
marquemos:
mais um X).
De qualquer modo
um dia
vou tomar-te –
sozinha
ou com a cidade de Paris.

1928
Jorge de Sena

Em Creta, com o Minotauro


I
Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,
se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações
nasci. E a do que faço e de que vivo é esta
raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo
quando não acredito em outro, e só outro quereria que
este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo,
espero envelhecer
tomando café em Creta
com o Minotauro,
sob o olhar de deuses sem vergonha.

II
O Minotauro compreender-me-á.
Tem cornos, como os sábios e os inimigos da vida.
É metade boi e metade homem, como todos os homens.
Violava e devorava virgens, como todas as bestas.
Filho de Pasifaë, foi irmão de um verso de Racine,
que Valéry, o cretino, achava um dos mais belos da “langue”.
Irmão também de Ariadne, embrulharam-no num novelo de que se lixou.]
Teseu, o herói, e, como todos os gregos heroicos, um filho da puta,
riu-lhe no focinho respeitável.
O Minotauro compreender-me-á, tomará café comigo, enquanto
o sol serenamente desce sobre o mar, e as sombras,
cheias de ninfas e de efebos desempregados,
se cerrarão dulcíssimas nas chávenas,
como o açúcar que mexeremos com o dedo sujo
de investigar as origens da vida.

III
É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado
a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia
aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,
como toda a gente, não sabe português.
Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações.
Conversaremos em volapuque, já
que nenhum de nós o sabe. O Minotauro
não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,
de toda esta merda douta que nos cobre há séculos,
cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos
os escravos de outros. Ao café,
diremos um ao outro as nossas mágoas.

IV
Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta
de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver vergonha]
de não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minotauro,
teremos nenhuma pátria. Apenas o café,
aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,
da Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café
contudo e que eu, com filial ternura,
verei escorrer-lhe do queixo de boi
até aos joelhos de homem que não sabe
de quem herdou, se do pai, se da mãe,
os cornos retorcidos que lhe ornam a
nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,
à Palestina, e outros lugares turísticos,
imensamente patrióticos.

V
Em Creta, com o Minotauro,
sem versos e sem vida,
sem pátrias e sem espírito,
sem nada, nem ninguém,
que não o dedo sujo,
hei-de tomar em paz o meu café.
1 Sextina de Bernardette Mayers
Helena Parsons Sextina
alô, aqui é paris
eu dei aula em Cambridge, sou de pedra-branca
tudo que a gente faz é basicamente arcaico
o mundo adolescente é muito egocêntrico
helena melville morou em lansinburgo
é de 1920 essa casa

há uma biblioteca nesta casa


o amante da antiga helena de troia era paris
o history channel fez um documentário sobre lansinburgo
não era o caminho das pedras mas era o de pedra-branca
sentir que você ou a terra são o centro do mundo é egocêntrico
sentir que isso é verdadeiro é incorreto & arcaico

nadar em um lago sem poluição pode ser arcaico


especialmente se o lago ficar perto da sua casa
um narcisista é como um adolescente egocêntrico
uma vez eu ouvi uma mulher dizer “mon dieu” no museu d’orsay em paris
as mulheres fazem amor em pedra-branca?
elas com certeza fazem muito em lansinburgo

a região mais burguesa de troia é lansinburgo


ter filhos é ao mesmo tempo arcaico & não arcaico
conheci um homem que produzia sua própria luz em pedra-branca
se o sol não brilhava, ele não podia assistir tv em sua casa
talvez em devesse ter chamado meu filho de NYC como paris era paris
pensar que NY é o centro do mundo é egocêntrico

pensar que o seu filho é bonito & se parece com você é egocêntrico
a zona mais segura de troia pode ser lansinburgo
a gente nunca pensa nos lugares perigosos de paris
mas tenho certeza de que existem alguns embora essas ideias sejam arcaicas
como ter uma galeria em sua casa
na antiga troia não na atual pedra-branca

vamos dar um pulo em pedra-branca


neste século 21 cheio de copernicanos egocêntricos
construir, cheia de sol, uma casa
& fingir que estamos seguras em lansinburgo
onde até os videogames ficaram arcaicos
& faremos amor melhor que paris em paris

me pergunto se tem algum paris em pedra-branca


é tão arcaico ser egocêntrico
qual um balão solto em lansinburgo, grande como uma casa
Rudyard Kipling
(1865 – 1936)

Sextina
Falando assim, em geral, eu bem que experimentei todos
Os caminhos felizes que há no mundo.
Falando assim, em geral, achei-os algo muito bom
Para os que não podem, como eu, enfim,
Usar a mesma cama por muito tempo
E giram de um lado para o outro até que um dia a morte.

Que importa de onde ou como venha a morte,


Enquanto houver saúde para ver de tudo o todo,
As diferentes coisas, como são feitas, enfim,
Os homens e as mulheres que há no mundo...
Enfim, gozar o dia, aproveitar o tempo,
Encarando o que vier, seja ou não seja bom.

À vista ou a prazo... na vida o que há de bom


É fazer com que a alegria caiba, senão só resta a morte,
E a não ser que sua vida dure muito pouco tempo
E não faças previsões, e não te inquietes o tempo todo,
Vai dar na mesma, enquanto houver o que comer no mundo,
Não cabe lamentar o que se deixou por fazer, enfim.

E o que é que me resta por fazer, enfim?


Já fiz tanta coisa e em tanta me saí até bem;
Em tantos empregos ao redor do mundo;
Porque a quem não trabalha resta a morte
Embora não seja razão para estar todo
O tempo num mesmo ofício: é curto o tempo.

E pensando bem, em nenhum lugar pousei por muito tempo;


Nenhum salário compensava, enfim,
Para me segurar se aquilo me cansava o tempo todo
E então sair por aí é que era bom
E ver como as luzes do porto vão morrendo
E acompanhar o vento ao redor do mundo.

É como um livro, penso, este maldito mundo,


Que você lê e que te ocupa por um tempo,
Até que descobre que o que há é a morte
Se não termina de ler a página atual, enfim,
E passa para a próxima, que talvez não seja tão boa;
Pois quem não quer cruzar o livro todo?

Bendito seja o mundo, que é surpreendente enfim;


Tudo é tão bom, a não ser que se queira mais que o próprio tempo.
Quando chegar a minha morte, escrevam: “Ele gostou de tudo.”
TEXTOS / OFICINA

Camila Assad

O labirinto atenderá à sua função social


o sinal verde triplica sua insuficiência
depois da última chuva

o tempo é de pernas
mas poderia ser de legumes

falo comigo
no ponto de ônibus vazio
e decidimos subitamente
voar turquesa por aí

não nos param as leis


muito menos os seus homens

o tempo é de tarrafa
mas poderia ser de guelras

a ideia de combustível ainda é o que nos move

o ponto morto determina


que pessoas com capa de chuva
gratuitamente nos empurrem
para o cenozoico

em algum lugar no chiado


esquina da rua dos estudantes, número 742

a minha febre é de musgo


de unhas crescendo
num silêncio absoluto
nas beiras de uma galinha
prestes a ser degolada:

ela se rende, fica imóvel


olhando para o vazio
de nossos joelhos nus:

a cada qual o teco que lhe cabe


o ensopado coagulando
o molho pardo de fora pra dentro:
a água dos dilúvios de Gabo
no timbre da Cássia
é sequela do cheiro de vinho estagnado no seu esôfago,
seus labirintos partidos:

vem pôr de molho


os meus tantos buracos

vem lamber meus cílios


espremer meus bernes

vem anular o seu corpo


com os rodopios centrípetos
dos triângulos

Rosane Preciosa

antes de caírem as lágrimas fazem poças nos olhos


e lá caberiam dúzias de pequenos peixes coloridos
nadando como se estivessem num aquário
nadariam para lá e para cá
dariam talvez um sentido àquele aguaceiro sem fim
nesse aquário olho aparece deslocado à esquerda um escafandrista
incumbido de inspecionar um barco de amor naufragado
alguém sobreviveu?
dizem que naquele aquário olho viram
um homem e uma mulher se debatendo
a água os empurrava para baixo
parece que a mulher de maior fôlego
ainda tentou incansável alcançá-lo
lançou-lhe uma boia de amor
mas ele não reparou
ou não quis
Mariana Filgueiras

Panelaço
Alguém uma vez disse que o cantochão não desafina.
Quando o panelaço começa, a algaravia descarrilada,
como atrasada para o canto do cisne,
eu duvido.

Os gritos se atropelam, a ira ou é pouca ou excessiva,


como se os estímulos mordessem cada um
um tornozelo diferente.
Quando me apoio no parapeito a socavar uma frigideira,
uma paisagem se projeta dos toc-toc metálicos:
todos os livros daquele apartamento têm vista para o mar.
Há um outro edifício que está muito longe,
talvez a quatro quadras caminhadas do meu,
com um trompetista na janela do oitavo andar
E as notas dele me alcançam pelo ar de um jeito que jamais chegariam pelo chão.
Eu sei que há um preguiçoso na esquina que põe uma gravação a burlar sua força,
E que a vizinha de frente só aparece quando todos já estão.
Se o panelaço é muito tarde, há mais palavrões;
se é mais cedo, as crianças se esguelam conosco
Franciscaaaaa! Franciscaaaaa!
(imagino que queiram dizer “fascistaaaaa, fascistaaaaaa”)
o desprezo do vizinho professor de boxe
que ignora a camarilha com música alta;
a aflição dos cachorros que levam seus donos a passear,
latindo, perdidos;
a animação da mulher que conclama a rua como se fosse muito pessoal:
“Vamos, Teresa!”
As panelas respondem por novos quinze minutos.

Alguém também disse que o barulho, quando vibra, vira luz


já nisto eu acredito
Três-por-dez
Escrever “meu coração tem mania de amor” nos dois lados de um cartaz
pendurá-lo em balões de gás hélio
e soltar no meio da multidão
Encontrar um carro-pipa
no meio do caminho
Cerveja, três-por-dez
Errar a rua
Pegar carona no carro pipa
Errar o bloco
Pegar carona do caminhão de lixo
Errar o sentido
Beijar o gari
Errar a boca
Quanto é?
É três-por-dez
Beijar o Homem-Aranha
Fazer bolhas de sabão
com uma máquina de bolha de sabão
pendurada na janela, enquanto passa a multidão
Jogar água da janela,
enquanto passa a multidão
Beijar uma Pantera Cor de Rosa
Dançar de pijama e remela na janela
enquanto passa a multidão
Encher um colchão inflável no pulmão
Deixá-lo correr sobre as gentes
Deixar as gentes correr sobre os colchões
Deixá-los para trás, colchão e gentes
Ver uma Mônica amamentando um Cascão
Três-por-dez, agora é três-por dez!
Um King Kong caber em um banheiro químico
Um soldado romano apaixonado por uma Hello Kitty
Ver o cartaz “meu coração tem mania de amor” voando sobre outra rua,
agora amarrado a um pandeiro
Enfiar a mão no isopor de gelo
Furtar uma pedra de gelo
Enfiá-la nos peitos
Tatuar os peitos
Por pra fora os peitos
Deitar no chão da Avenida Rio Branco, ali
onde célebres protestam e anônimos vivem
No chão da Avenida Atlântica, ali
Onde turistas atravessam e anônimos se arrastam
Se arrastar anonimamente, pés de fogo, calça balão, peitos
Desviar a cabeça de um drone,
Outro dia era três-por-cinco
desviar a cabeça de um perna-de-pau
Ver um drone de perna-de-pau
Beijar outra Pantera Cor de Rosa, mas de uma espécie sem rabo
Fugir do chefe como quem foge da espuma
Fugir da espuma como quem foge de um trovão
(e ver que o chefe não conseguiu fugir da espuma)
Ter um novo melhor amigo de Poços de Caldas
jurar que vai visitá-lo em Poços de Caldas
dizer que adoraria conhecer Poços de Caldas
Achar o rabo da segunda Pantera Cor de Rosa
O rabo preso
Dentro de outro isopor de gelo,
a água derretida,
empoeirada à purpurina
onde uma família inteira vende cerveja três-por-dez
Pai, mãe e filho, três-por-dez
dividem um naco de sombra, três-por-dez
o dinheiro pouco, três-por-dez
as horas que não passam, três-por-dez
o carnaval que sobra
Rafael Lemos

morigeração ou bons costumes


te olhei
estirado nas placas de plaster
no seu
azulejo
ladrilho
indefensável
o rosto inchado
parado
o coração venturoso fértil
não batia só o vento batia

o desespero dos afogados


passado
a abdicação militante
passado
a pirâmide de sexto empírico
passado
o copo na mesa
o punho na mesa
o pau na mesa
as cartas
nunca estiveram na mesa
e que mesa?
se mesa é só um conceito

te olhei
silêncio e ausência de insetos
pureza e papéis
nem trilho nem trem
aversão ao francês e ao emprego
puro
operário da pureza (bem distante do fazendeiro do ar)
funcionário
fora da folha de pagamento
pior
puro
e dentro da folha de pagamento

agora
aprender a beber vinho
revezar com água
agora
viver de calendário
recibo
reembolso
e-mail
agora
já vi lá agora agora
tá pago eu sei todo mundo sabe

traficava armas?
não. construía e as mantinha para si.
nunca deu tiro
só pedrada
e língua
bruto.
pior.
nem puro.
parasita e advogado da pureza.
quis ser rimbaud
tolo mas quem nunca
não te ouvi
— por aazo do mar?
mas a carta chegou muito antes
e o mar muito depois amanhã
de pés inchados
morder a mancha da noite
morder o tempo onde as frutas apodrecem
morder a chuva?
Diego Vinhas

Cold water sessions


1,
cair na própria pele
fora da cloaca do sono

levantar

a vida inteira que poderia ter sido, espelho,


tosse, a alma voltando
ao posto, eu, robô, abrir porta torneira
escova, pasta de hortelã e juá, tosse
espelho

são assuntos
muito difíceis
para esta hora da manhã

2,
preciso trocar a escova
as cerdas parecem o cabelo de alguém
que acabou de acordar

preciso

trocar de rosto

3,
(sonhei, acho

com estrelas-do-mar
marchando na praia
e a fuga humana uma cena
de ficção vagabunda)

(e com a namorada
dançando nua
exceto por um colar de cipós
em um teatro-galpão lotado
enquanto eu recolhia meus cacos
e tentava mostrar que estava tudo bem
tudo bem, meu amor)

(e com outras aventuras


da mesma voltagem
interrompidas pelo alarme

como
você sabe
aquelas cartas feitas
de letras picotadas de revistas
cores e caligrafias diversas
no mesmo plano

só que em um dialeto que não consegui


entender nem ignorar
completamente)

(tosse

espelho

hortelã)

(dos sonhos
mais absurdos dos quais
já me expulsaram, imaginei
se seria assim estar na pele
por exemplo
de um personagem do Cesar Aira)

4,
uma ferrugem no espelho
monta em meu reflexo um sinal
no supercílio
e até eu cuspir a água mentolada
não consegui mover o foco
da câmera-olho
para além do sinal
que o espelho avariado
meu deu de presente
(não é de nascença
mas o que vale
é a intenção)

5,

aprendi em uma oficina


de media training

que quando um entrevistado tem a atenção


do espectador desviada por
qualquer elemento intruso

(um vento mais forte


um farelo no canto da boca)

qualquer interferência
na narrativa da imagem

a isso chamamos ruído

isto significa que


pelo menos nesse contexto
é possível ver o ruído

6,
uma outra manhã há dez anos
o metrô de repente emergiu
em um trecho de superfície
e durante alguns minutos
o fluxo da cidade golpeava
meus olhos
e mesmo não sendo por certo
o único estrangeiro ali
achei que eram pra mim
que se arremessavam
pelos vidros laterais
a paisagem grisalha o cimento
as ruínas do outono berlinense
o döner kebab e cada perna apressada
tudo que tentei reter

mas não

tudo isso entre duas estações


cujos nomes terminavam em platz ou strasse

7,
também assim quando li seus poemas
traduzindo apenas parte
do percurso
sem cuidar de entender demais

parece que ali


tudo era ruído

não seria mau


morar no ruído
8,
você que matou dois livros em 30 horas caçando a centelha de um
[único verso
que acabou vindo
mas você só saberá disso daqui a três anos

9,
“e seu silêncio assistindo tudo isso” (Lydia Davis)

10,
enquanto
a água soca meu rosto

sem motivo lembro


da história
de Irma Grese
uma dos cinco filhos de um leiteiro filiado
ao Partido dos Trabalhadores Alemães Nacional-Socialistas. 
que teria abajures feitos com pele de prisioneiros
(suposta amante de Mengele)
e depois da guerra
a instantes de se tornar
a pessoa mais jovem a ser enforcada pela lei britânica
durante o século 20
apenas disse a seu carrasco: “seja rápido”

parece um bom comando


para as 07 de uma
segunda-feira

11,
veja:

12,
a água é sempre gelada
meu rosto vermelho

e o mundo não existe é claro

mas algo me diz


que preciso terminar
de acordar
Marília Valengo

não consta no alfabeto


de todos os problemas da minha lista banal
o desmembramento de uma nova língua
parece ser o enigma que mais se destaca

vejam só as sutilezas entre dryer e drawer

eis que no primeiro, o A nem aparece


e mesmo assim

abrimos a boca, mostramos os dentes


e secamos a roupa

(às vezes
elas encolhem)

no segundo, o A existe para que


o esqueçamos
e nossa fala reflete
o que não deve ser dito

a boca que mal abre tal qual gaveta emperrada


abarrotada de coisas esquecidas

(camisinha remédios diários planos de fuga)

entre a gaveta e uma secadora pairam as roupas


que vestimos, que escolhemos
para sermos pessoas
que não erram o tipo de palavra que irão usar

só que às vezes
tal como existir
nem a roupa dá certo
nem a pronúncia sai correta.
então?
não faz a menor diferença
já que estamos sob o mesmo

sol

não pode haver distinção


porque nossos suores são compostos

damesmaquímica

também não existe distância maior,

a m o r

quando o que está


entre
os nossos corpos

é o mesmo

independente do ponto de vista

é o mar quem está agitado, não eu.

como as mulheres que conheço


quero descanso

e saber

com quem deixaremos os nossos filhos?


Rita Clementina / Monique Deheinzelin
Ifá
Penso o septo do dente
que sobe aos seios da face
faz lacrimejar os olhos
e no topo da cabeça
balança os estatutos da
minha gafieira, a cabeleira
já grisalha, ninho de maragatos
abrigando os pensamentos não sei mais

Ali, no topo, pessoas compostas de robôs,


Radiografias, carne e osso, uma coisa híbrida
Duas pessoas híbridas que transam.

Atravesso séculos da minha própria existência em um cenário de fotografias na


parede Keith Richards autografado, com guitarras, com sorrisos, homens em preto
e branco, sem Instagram a casa antiga.

Uma mulher de preto rola para o vão do colchão onde eu própria dormiria.
O poeta, professor pergunta:
– E você, onde está?

Ah! Ainda estou aqui,


Mas que bom que se foi
Aquele carrossel de hormônios
A montanha russa de emoções à flor da pele
Você como banana descascada no meio da rua
A buscar abrigo numa casa dada que não é a sua

Atravesso séculos de minha existência, de um toc, um proc, um já


Na corrente do pescoço da qual pende um búzio
Um búzio talvez falso que não veio da Costa
Mas que estava lá longe na vitrine
Na travessa da Paciência
Rio Vermelho, Salvador
Bahia

Você já foi à Bahia, nega?


Eu saia da praia do Buracão
Onde o mar em som e fúria
Impede a nossa passagem
Um mar onde eu não entrei
Um mar que joga as pessoas no chão, e ali vi Moreno entrar, o filho dele menino
entrar, a filha dele menina entrar, a mulher dele não entrou, eu aqui não entrei.
Mas andei até chegar ao búzio de plástico que no meu pescoço se partiu esta noite.

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