Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Diretores da Série
Prof. Dr. Niltonci Batista Chaves
Departamento de História, UEPG
Profa Dra. Valeria Floriano Machado
Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação-UFPR
Volume 1
Pedro Brocco
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Lucas Margoni
Linguagem e Colonização, volume 1: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587) [recurso
eletrônico] / Pedro Brocco -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020.
342 p.
ISBN - 978-65-87340-57-9
DOI - 10.22350/9786587340579
CDD: 900
Índices para catálogo sistemático:
1. História 900
O homem é um animal metafísico.
(Alain Supiot, Homo juridicus)
Uma noite adormeci com tabaco na boca. Despertei com medo de despertar.
Parece que sabia: tinha nascido em mim uma asa de morcego. Com repug-
nância, na escuridão, procurei minha maior faca. Cortei-a. Caída, à luz do
dia, era uma mulher morena e eu dizia que a amava. Levaram-me preso.
(Antonio Di Benedetto, Zama)
Apresentação ............................................................................................................ 13
Prefácio..................................................................................................................... 15
Introdução ................................................................................................................ 18
I ................................................................................................................................ 37
Os fundamentos da colonização do novo mundo
1.1 A atuação de Bartolomé de Las Casas............................................................................. 37
1.2 Filosofia moral e antropologia filosófica no centro da questão ....................................77
1.3 A Escola de Salamanca: Francisco de Vitoria e a fundamentação jurídica da
colonização: o nascimento do Direito Internacional moderno ......................................... 86
1.4 Aristóteles contra Alexandre: De potestate civili, 1528 ................................................ 89
1.5 Ainda 1528: o batismo de Catarina Paraguaçu na França e a formação de Mem de Sá
em Salamanca .......................................................................................................................102
1.6 De indis prior e posterior (1538-1539): o percurso teórico de Vitoria em torno do ius
communicationis e do ius missionis .................................................................................. 104
1.7 Civilizar: incursões entre território e consciência ....................................................... 119
II ............................................................................................................................. 123
A inscrição do outro na missão brasileira
2.1 O Brasil nascido de um desejo: o nome antes da terra ............................................... 123
2.2 O Governo Geral do Estado do Brasil e a sua composição administrativa (1548-
1549) .............................................................................................................................. 129
2.3 Da Ordem de Cristo à Companhia de Jesus: um protagonismo – das Navegações ao
Governo Geral do Estado do Brasil ..................................................................................... 135
2.4 As Cartas do Brasil e o Diálogo sobre a conversão do gentio, de Nóbrega: o papel
central da conversão na missionação jesuíta .....................................................................142
2.5 As Cartas do Brasil: o índio como papel branco .........................................................163
2.6 Balanço da primeira década da missão brasileira (1549-1560) ................................. 251
2.7 Da fundação de São Paulo ao Paraguai: o planejamento de Nóbrega ...................... 274
2.8 O Diálogo sobre a conversão do gentio: entre o sentido da ação e a ação do sentido . 279
2.9 O governo de Mem de Sá e a administração temporal dos jesuítas no Brasil (1557-
1572) ...................................................................................................................................... 295
2.10 O Rio de Janeiro ou a vitória da Contrarreforma e de Salamanca no Novo Mundo . 314
Este livro é fruto da minha pesquisa de doutorado, cuja tese foi de-
fendida em 2019 e desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, sob orientação
do Prof. Marcus Fabiano Gonçalves, tendo sido fomentada pela CAPES. A
defesa contou com a participação dos professores Marcus Fabiano Gonçal-
ves (UFF), Gizlene Neder (UFF), Gisálio Cerqueira Filho (UFF), Jorge Leão
(UFF), Sonia Leite (UERJ) e Thiago Krause (UNIRIO). Como membros su-
plentes da banca, contei com o honroso apoio dos professores Luís Ribeiro
(UFF) e Christian Lynch (IESP-UERJ).
Escrita ao longo dos anos 2014-2019, a pesquisa, doravante publicada
neste livro, acompanhou um turbulento período histórico brasileiro. Es-
crevendo esta apresentação em 2020, me dou conta de que o período de
pesquisa da tese foi uma tentativa de elaboração de fundamentos de nossa
civilização ou, em termos mais freudianos, de nossa cultura. Aspectos
como a noção de autoridade, a relação entre o individual e o coletivo e os
nossos contornos culturais e institucionais foram buscados em uma histo-
ricidade da formação linguística e cultural do Brasil a partir da interrelação
entre território e memória que começou, de fato, a ser enodada no século
XVI com a colonização e o projeto de conversão administrado pelos jesuí-
tas. Como Companhia de larga capilaridade nos territórios ultramarinos,
os jesuítas chegaram no mesmo ano de 1549 ao Brasil e ao Japão. Meu
interesse, então, foi o de estudar de forma comparada as dinâmicas e os
principais desdobramentos das missões brasileira e japonesa.
A dinâmica de inscrição de alteridades nas fontes históricas analisa-
das foi um dos principais pontos de interesse do meu estudo. Partindo da
formulação de Carlo Ginzburg a respeito do aparecimento de “vozes alie-
nígenas” nos relatos jesuíticos, do conceito freudiano de Nebenmensch,
14 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Gizlene Neder 1
Gisálio Cerqueira Filho 2
1
Doutora em História (USP), cientista política, Professora titular de História.
2
Doutor em Ciências Humanas (USP). Professor titular de Ciência Política e Sociologia.
Introdução
Os olhos não podem ver sem a ajuda da luz, mas isso não impede que o seu
natural seja a visão.
(Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso)
1
Desde logo faz-se referência a BOXER, Charles R. A Igreja militante e a expansão ibérica: 1440-1770. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. Boxer faz apontamentos relevantes para o encaminhamento deste estudo: a concepção
de continuidade entre a Escola de Salamanca e a expansão ibérica pelo mundo, com a Companhia de Jesus, além de
enxergar a missão como “instituição de fronteira”.
2
As análises das obras de Las Casas e Vitoria funcionarão como uma espécie de introdução ao objetivo central deste
livro, isto é, a análise comparada das obras de Nóbrega e Fróis.
Pedro Brocco | 19
influenciar o agir prático no recorte histórico das missões que serão estu-
dadas. Está-se falando, portanto, de um movimento orgânico cujo sentido
seria mais ou menos o de o pensarmos enquanto uma divisão internacio-
nal do trabalho que não possuiria faceta nem exclusivamente política, nem
exclusivamente jurídica, nem exclusivamente moral, nem exclusivamente
religiosa, mas, antes, sintetizaria todas elas.
Há uma vasta literatura que se debruça sobre as obras dos referidos
teóricos ibéricos, membros da tradição inaugurada pela Escola de Sala-
manca e também da não menos importante Escola de Coimbra, da qual fez
parte Francisco Suárez (1548-1617), o qual teve seu auge de produção no
início do século XVII, século que não será o principal foco deste estudo.
Está-se fazendo referência, também, além do próprio Suárez, a Francisco
de Vitoria, a Luis de Molina, a Juan de Mariana, Domingo de Soto, Martín
Azpilcueta Navarro, Inácio de Loyola, Francisco Xavier, entre outros. Tal
forma de se fazer teologia e filosofia, tendo direta influência de Aristóteles
e Tomás de Aquino, desdobrou-se em relevantes contribuições no campo
do direito, com obras que tratam diretamente de temas morais e jurídicos,
apontando também para o surgimento da etnografia comparada3.
Neste sentido, buscaremos construir o trabalho tendo em vista, inici-
almente, a urdidura das obras desses autores ibéricos de cariz teológico-
ético-jurídico com as obras oriundas de contatos empíricos daqueles que
se dispuseram a ir para o front missionário (principalmente, aqui, os por-
tugueses Nóbrega e Fróis). Os missionários que se lançaram na grande
aventura da colonização foram tão importantes para o empreendimento
colonizador quanto os que ficaram na Europa no campo universitário. Não
se trata de uma questão de graus de importância, mas de cooperação em
um projeto comum, sobretudo porque veremos que esses autores faziam
parte de ordens religiosas que atuavam com organicidade, cujo exemplo
3
Cf. ARAÚJO, Melvina. O antropólogo e sua bíblia: ensaios sobre missionários-etnógrafos. São Paulo: Fap-Unifesp,
2014; PAGDEN, Anthony. The fall of natural man. London: Cambridge University Press, 1982; AGNOLIN, Adone.
Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi (séculos XVI-XVII). São Paulo:
Humanitas Editorial, 2007; AGNOLIN, Adone. O apetite da antropologia – O sabor antropofágico do saber antropo-
lógico: alteridade e identidade no caso tupinambá. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005.
20 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
4
Cf. O’MALLEY, John. The First Jesuits. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1993; LACOUTURE,
Jean. Os jesuítas: 1. Os conquistadores. Porto Alegre: L&PM, 1994; ALDEN, Dauril. The Making of an Enterprise: The
Society of Jesus in Portugal, Its Empire, and Beyond, 1540-1750. Stanford: Stanford University Press, 1996.
Pedro Brocco | 21
5
PROSPERI, Adriano. Il Concilio di Trento: una introduzione storica. Torino: Giulio Einaudi, 2001.
6
Cf. LOYOLA, Inácio de. Exercícios espirituais. São Paulo: Edições Loyola, 2015 e BARTHES, Roland. Sade, Fourier,
Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
7
Cf. AGNOLIN, Adone. Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi (séculos
XVI-XVII). São Paulo: Humanitas Editorial, 2007.
8
A palavra grega ψυχή, psique, na raiz de todo termo que modernamente se relaciona ao psiquismo e ao âmbito
“psi”, seja à psiquiatria ou à psicologia, significa o que se entendia como “alma”, conceito que tem um sinuoso per-
curso na tradição ocidental, apropriado pela Igreja com a perspectiva salvífica e pastoral, antes de deitar raízes na
teoria do conhecimento e nas práticas científicas acerca da mente e do “psiquismo” humano.
22 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
a) O eu é um outro
9
LOYOLA, Inácio de. Exercícios espirituais. São Paulo: Edições Loyola, 2015, p. 25.
10
Idem, p. 13.
Pedro Brocco | 23
11
Idem, p. 37.
12
Cf. BARTHES, Roland, op. cit., pp. 54-55.
24 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Figura 1: A árvore inaciana da primeira semana dos Exercícios, elaborada por Roland Barthes em seu estudo sobre
Loyola13.
Ainda que fazendo parte de uma longa tradição ascética católica me-
dieval, Inácio de Loyola confere grande importância ao corpo na
composição dos Exercícios. Uma atenção especial é dada, neste sentido, ao
corpo próprio, que em verdade jamais saiu de cena das meditações e prá-
ticas ascéticas. Talvez Loyola tenha inovado ao ligar corpo, imagem e
linguagem ao trazer para o cerne dos Exercícios o funcionamento e o fo-
mento dos cinco sentidos ao estimulá-los na meditação. Há uma série de
meditações propostas com o objetivo de construir ambientes imaginários
relativos aos cenários evangélicos ou à tópica cristã. Na meditação sobre o
inferno, por exemplo, Inácio propõe ao exercitante:
1º ponto
Ver, com os olhos da imaginação, as grandes chamas e as almas como corpos
incandescentes.
13
Cf. BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 58.
Pedro Brocco | 25
2º ponto
Aplicar o ouvido aos choros, alaridos, gritos, blasfêmias contra Cristo Nosso
Senhor e contra todos os seus santos.
3º ponto
Com o olfato, sentir o cheiro da fumaça, do enxofre, das cloacas, da podridão.
4º ponto
Com o paladar, provar coisas amargas: lágrimas, tristeza e o verme da consci-
ência.
5º ponto
Tocar com o tato as chamas que atingem e abrasam os condenados.14
Entrar em contemplação, ora de joelhos, ora prostrado por terra, ora deitado
com o rosto voltado para cima. Também sentado ou de pé. Indo sempre em
busca do que quero. Ter presente duas coisas:
14
LOYOLA, Inácio de, op. cit., p. 41.
15
BARTHES, op. cit., p. 63.
16
LOYOLA, op. cit., p. 80.
17
Idem, p. 44.
26 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
18
Idem, p. 44.
19
BARTHES, op. cit., p. 53.
20
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 27
Exercícios, que todo jesuíta deveria praticar, foi grande fator facilitador no
aprendizado de todas as novas línguas com as quais os inacianos se depa-
raram em suas missões. A alienação e a simbolização enquanto processos
feitos sobre si mesmo agiriam mais ou menos no mesmo sentido quando
realizados em terras de missão21.
b) Antropologia da pessoa
21
Tal entendimento pode ser revisitado contemporaneamente no curioso livro escrito em coautoria por dois astrô-
nomos jesuítas: CONSOLMAGNO, Guy, SJ; MUELLER, Paul, SJ. Would You Baptize an Extraterrestrial? ... and Other
Questions from the Astronomers’ In-Box at the Vatican Observatory. New York: Image, 2014.
22
Os Exercícios espirituais aparecem como um grande mecanismo articulador da noção de pessoa, como já exposto
acima: “Ver quem sou eu. Diminuir-me por meio de comparações: 1º que sou eu, comparado com todas as outras
pessoas (...). Logo depois desta operação, deveria o exercitante buscar comparações com atitudes, pensamentos e
ações predicáveis a um eu-ideal a partir de um suposto ponto de vista divino.
23
Fazemos aqui referência à Segunda Escolástica mais ou menos como sinônimo do movimento que tem início com
a Escola de Salamanca e seus desdobramentos.
24
HANSEN, João Adolfo. “O nu e a luz: cartas jesuíticas do Brasil. Nóbrega – 1549-1558”. Revista do Instituto de
Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 38, pp. 87-119, 1995.
25
PÉCORA, Alcir. “Cartas à Segunda Escolástica”, in NOVAES, Adauto (org.). A outra margem do Ocidente. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
28 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
26
GOLDMAN, Marcio. “Uma Categoria do Pensamento Antropológico: A Noção de Pessoa”. Revista de Antropologia,
v. 39, n. 1. São Paulo, USP, 1996, pp. 83-109, p. 86.
27
Idem, ibidem.
28
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, volume I. São Paulo: EPU/EDUSP, 1974. Faz-se referência, aqui, ao
capítulo “Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a noção do ‘eu’”, pp. 207-241: “Algo pode prenunciar
a tendência de minha demonstração: é que eu quero mostrar quanto é recente a palavra filosófica ‘eu’, quanto são
recentes a ‘categoria do eu’, o ‘culto do eu’ (sua aberração) e quanto é recente o respeito do eu, particularmente do
‘eu’ dos outros (sua forma normal)”, p. 211.
29
Mauss inicia o percurso de seu estudo pelos índios pueblo, no México, as tribos do noroeste americano e os kwa-
kiutl. Entre os pueblo já se divisaria uma noção de pessoa, do indivíduo confundido com o clã mas já destacado dele
no cerimonial, pela máscara, pelo título, pela posição e papel, pela propriedade e reaparecimento na terra pelos
descendentes, dotados da mesma situação, mesmos prenomes, títulos direitos e funções. As tribos do noroeste ame-
ricano colocariam, em termos diferentes mas com natureza e função semelhantes o problema do nome, posição social
e nascimento jurídico e religioso de cada homem livre. Cf. MAUSS, op. cit., p. 216.
30
O estudo de Mauss tem grande importância para o Direito. É a partir daí que se pode compreender a pessoa como
uma categoria fundamental do Direito, ao lado das coisas e das ações: “a ‘pessoa’ é algo além de um fato de organi-
zação, mais do que o nome ou o direito reconhecido a um personagem e mais do que uma máscara ritual: é um fato
fundamental do direito. Em direito, dizem os juristas: nada há além das personae, das res e das actiones. Tal princípio
governa ainda as divisões de nossos códigos, mas resulta de uma evolução especial do direito romano”. MAUSS,
Marcel, op. cit., p. 227.
Pedro Brocco | 29
“eu” e de uma consciência, no percurso que vai das cartas jesuíticas a Des-
cartes, quando as funções definidas da alma aparecem articuladas pelo
pensamento discursivo claro e dedutivo, utilizado a partir daí para a com-
preensão da natureza.
A moderna noção de pessoa humana é, segundo Mauss, a noção de
pessoa cristã, quando houve a passagem da noção de persona, isto é, ho-
mem revestido de um estado, à noção de homem simplesmente31, pessoa
humana32, homem não mais puramente adstrito a papéis sociais, nacio-
nais e estamentais, mas homem que é capaz de pensamento, planejamento
e individualidade num mundo aberto. O Direito moderno convive ainda
com a bifurcação deste corte conceitual: ao mesmo tempo conservando a
noção basilar de pessoa do direito civil romano, abarca também como um
de seus fundamentos a noção de pessoa dos direitos humanos.
Neste percurso, os contatos europeus e especificamente jesuíticos
com o Novo Mundo e o Extremo Oriente fornecem relevantes fontes de
pesquisa sobre o tema. O relato sobre a zona de contato põe em cena a
pessoa ou o “eu” daquele que enuncia o discurso e o material descrito, a
alteridade e a “pessoa suposta” do outro. No primeiro momento deste es-
tudo, estas questões serão apresentadas e desenvolvidas já pelas primeiras
formulações da Escola de Salamanca, principalmente com Francisco de Vi-
toria, que procurará incluir os índios americanos na sociedade civil
espanhola reconhecendo neles a capacidade civil para o domínio33 e, logo,
uma importante faculdade exercida pelas personae desde o clássico direito
romano. Ao mesmo tempo, o encontro com o alienígena, principalmente
os silvícolas da parte meridional da América, e especificamente da costa
31
Aqui, a epístola aos Gálatas traz uma importante mudança sobre a noção de pessoa nesta direção. Ao escrever
sobre o advento da fé, Paulo registra: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem
mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus”, Gálatas, 3, 28.
32
MAUSS, op. cit., p. 235.
33
Roberto Hoffmeister Pich, em trabalho sobre o tema, faz interessante observação da qual podemos extrair formu-
lações sobre a noção de pessoa: “Tem domínio quem possui potências racionais e é nessa medida mesma imagem de
Deus, de tal forma que é ou pode, em algum momento, ser dono de si – em última análise, ser sujeito ou pessoa na
relação com Deus. A posse legítima de qualquer outra coisa tem parte nessa posse fundamental”. PICH, “Dominium
e ius: sobre a fundamentação dos direitos humanos segundo Francisco de Vitoria (1483-1546)”. Teocomunicação, v.
42, n. 2. Porto Alegre, 2012, pp. 376-401, p. 399.
30 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
34
Cf. HANSEN, João Adolfo. “O nu e a luz: cartas jesuíticas do Brasil. Nóbrega – 1549-1558”, op. cit. e NÓBREGA,
Manuel da. Cartas do Brasil, 1549-1560. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1988, p. 92.
Pedro Brocco | 31
35
NEVES, Luiz Felipe Baêta. O combate dos soldados de Cristo na Terra dos Papagaios: colonialismo e repressão
cultural. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978, p. 164.
36
HANSEN, João Adolfo, op. cit., p. 119.
37
Idem, p. 115.
38
“Produzindo a carência do índio, o enunciado jesuítico também produz, simultaneamente, a unidade da auctoritas
que lhe valida a enunciação, ou o conceito de um verbo substancial revelado na Escritura, na natureza e na alma,
como luz natural da Graça que proporciona atos e discursos com o Bem. Objeto da hermenêutica do padre, o verbo
da Escritura fornece os modelos analógicos que hierarquizam os sons do mato como um hieróglifo confuso e hermé-
tico”. HANSEN, João Adolfo, “O nu e a luz”, op. cit., p. 114.
39
Idem, p. 115.
32 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
***
Cf. BROCKEY, Liam Matthew. “Authority, Poverty and Vanity: Jesuit missionaries and the use of silk in Early
40
Modern East Asia”, Anais de História de Além-Mar, XVII, Lisboa, 2016, pp. 179-222.
41
Cf. LEÃO, Jorge Henrique Cardoso. A Companhia de Jesus e os pregadores japoneses: missões jesuíticas e mediação
religiosa (1549-1614). Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2017.
42
PÉCORA, Alcir, op. cit., p. 410.
43
Barthes já sugere tal tensão em seu estudo sobre Inácio de Loyola, fazendo menção explícita sobre a diferença entre
a ascece ocidental e a taoísta e zen budista. François Cheng, por sua vez, também contemplado neste trabalho, poeta
e sinólogo chinês radicado na França, vem realizando aportes teóricos relevantes ao longo do século XX sobre o tema.
Cf. BARTHES, Roland, op. cit.; CHENG, François. Vide et plein: Le langage pictural chinois. Paris: Éditions du Seuil,
Pedro Brocco | 33
1991. ; CHENG, François. L’Écriture poétique chinoise – suivi d’une anthologie des poèmes des Tang. Paris : Éditions
du Seuil, 1996.
44
Cf. POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, tupi e “tapuia” no Brasil colonial. Bauru, SP: EDUSC,
2003.
45
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução e notas de Manuel Alexandre Júnior. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2012.
34 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
46
Quando as obras tiverem sido editadas a partir do português e o castelhano contemporâneos, como o caso das
relecciones de Francisco de Vitoria e a obra de Las Casas, citadas na primeira parte da tese, não haverá tal preocupa-
ção.
47
Cf. PUNTONI, Pedro. O Estado do Brasil: poder e política na Bahia colonial – 1548-1700. São Paulo: Alameda, 2013.
Pedro Brocco | 35
48
Cf. MIRANDA, Tércio. A arte da impressão nas terras de além-mar. S/e: Porto, 1962.
36 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
1
Apesar das observações feitas acima, na esteira de Roland Barthes, no sentido de a ascese jesuíta configurar uma
“anti-mística”.
2
Cf. HÖFFNER, Joseph. Colonização e Evangelho: ética da colonização espanhola no Século de Ouro. São Paulo: Pre-
sença, 1977, pp. 300-313.
3
Cf. a análise das metáforas de base tomistas do discurso teológico-político da escolástica.
Pedro Brocco | 39
partir da segunda metade do século XVI, mas que são analisadas por al-
guns historiadores do Concílio de Trento, como Adriano Prosperi4. É o
caso da maior importância dada à confissão e ao acompanhamento de um
diretor espiritual, além de uma maior frequência eucarística, tomando a
comunhão em períodos mais curtos, contrariamente à tradição católica
medieval das obrigações anuais, inclusive a da confissão, como estabele-
cido pelo Quarto Concílio de Latrão, em 1215. Essa mística espanhola
alicerçava-se também na circulação de obras que então atingiam número
crescente de leitores, como a Imitação de Cristo5.
As novas configurações acerca da noção de pessoa a partir das mu-
danças doutrinais contrarreformistas evocam os estudos de Marcel Mauss
sobre o tema. A noção de pessoa humana, segundo Mauss, é essencial-
mente a noção cristã, derivando da passagem da noção de persona, isto é,
homem revestido de um estado, à noção de homem simplesmente, ou pes-
soa humana6. Segundo Mauss, a questão da unidade da pessoa foi colocada
juntamente com a unidade da Igreja por relação com a unidade de Deus
que se resolveu após inúmeros debates7, envolvendo toda história da
Igreja. Quando o Concílio de Niceia, em 325 da Era Cristã, afirma a Unitas
in tres personas, una persona in duas naturas, unidade das três pessoas –
da Trindade – e a unidade das duas naturezas do Cristo, a noção de um
funda a noção de pessoa: tanto a respeito das pessoas divinas quanto da
pessoa humana propriamente dita: substância e forma, corpo e alma,
consciência e ação8.
O eixo principal deste livro segue o percurso de Las Casas, passando
por Vitoria e chega aos missionários jesuítas procurando um fator unitivo
fundamental em torno de uma concepção de pessoa e comunidade e de
4
PROSPERI, Adriano. Il Concilio di Trento: una introduzione storica. Torino: Giulio Einaudi, 2001. Tradução espa-
nhola: El Concilio de Trento: una introducción histórica. s/l: Junta de Castilla y León, 2008.
5
É sabido que a conversão de Inácio de Loyola se dá após a leitura da Imitação de Cristo, em período de convalesci-
mento após ter sido ferido na perna durante a Batalha de Pamplona (1521).
6
MAUSS, Marcel, op. cit., p. 235.
7
Idem.
8
Idem, p. 236.
40 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
9
MAZZOLENI, Gilberto. O Planeta Cultural: Para uma Antropologia Histórica. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 1992.
Pedro Brocco | 41
10
GASBARRO, Nicola. “Missões: a civilização cristã em ação”. In MONTERO, Paula (Org.). Deus na Aldeia: missioná-
rios, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006, pp. 67-110.
11
Idem, p. 69.
12
Idem, p. 70.
42 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
assim fundar o Reino de Deus que “não é deste mundo”. Tal ambiguidade
e tensão se observa no diálogo crístico com Pilatos e na formulação “dar a
César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Neste sentido o cristia-
nismo, colocando-se como religião universal, aperfeiçoa o monoteísmo
político judeu e o universalismo civil romano, ocupado mais com medidas
administrativas e fiscais do Império, formando assim um “Império etéreo”
do significante crístico haurido e sustentado institucionalmente pela Igreja
e pela comunidade de fiéis, desde o princípio transnacional. Como isto foi
possível em uma religião monoteísta? Gasbarro sustenta que a mensagem
cristã é universalizável desde os Atos dos Apóstolos, por isto é que a Igreja
é radicalmente desde sempre missionária. Neste sentido, a missão é uma
prática de evangelização que permite “passar de uma universalidade po-
tencial a uma universalidade atual e histórica”13, o que se relaciona de
modo evidente com o tempo secular.
Ora, as Descobertas e o contato europeu com novos povos colocam
problemas inéditos para a forma de vida ocidental cristã até então vivida
pela Europa. O europeu acostumou-se a pensar as grandes questões exis-
tenciais em “termos religiosos” a partir das categorias da fé e da crença:
as questões envolvendo a vida e a morte. Ocorre que nestes povos que fo-
ram então descobertos, era possível perceber formas de vida que se
organizavam em torno das respostas destas mesmas questões existenciais
sem lançar mão de estruturas religiosas e de conceitos como fé e crença,
seja com uma organização social sem soteriologia enquanto doutrina da
salvação, ou com soteriologia sem divindade. São famosos neste sentido as
cartas dos primeiros missionários descrevendo as sociedades indígenas
sem F, L e R: Fé, Lei e Rei, o que parece aqui traduzir os principais eixos
em torno dos quais se organizava a vida ocidental, na Fé da Religião antes
de tudo; na Lei do Direito e no Rei da Política enquanto organização social
capaz de constituir sua própria polícia.
13
Idem, p. 71.
Pedro Brocco | 43
14
Idem, ibidem.
44 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
aos sujeitos sociais diferentes por natureza e estatuto social e ii) a igual-
dade no plano do direito e de um horizonte social e simbólico que
estabeleça os limites do possível e do pensável15. Estes dois movimentos
são realizados na América, no plano jurídico, através das teorias de Fran-
cisco de Vitoria e sua posterior aceitação na dogmática jurídica da Coroa
espanhola e, no plano teológico, pelo reconhecimento da humanidade dos
índios através da bula papal Sublimis Deus, promulgada por Paulo III em
1537, que reconheceu o estatuto de igualdade entre cristãos e indígenas no
plano de sua humanidade, fechando assim as portas para o debate, em
voga na época, tendente a projetar nos silvícolas o estatuto de não-huma-
nos, mais próximos às bestas e feras. O esforço de missionários como Las
Casas, logo no início da colonização espanhola, é ressaltar a capacidade
dos índios para a organização civil, com religião, propriedade, relações ma-
trimoniais e de parentesco, etc. Logo, estariam aptos para receber o
cristianismo com seu verdadeiro Deus e assim também a salvação. Trata-
se de uma forma de relacionamento com o estatuto da civilidade muito
distinta da encontrada entre os romanos: para estes, a civitas do Império
abarcava os territórios que o constituíam e as populações que ali viviam,
em uma estrutura ao mesmo tempo jurídica, fiscal e militar.
O processo de civilização na modernidade conduzido pela Igreja e pe-
las Coroas ibéricas cobre, como toda missão16, dois aspectos fundamentais:
o simbólico e o social. O simbólico relaciona-se com as relações de hierar-
quias que envolvem a estrutura missionária, sua mensagem e os efeitos de
transformação que operam. As missões católicas no Novo Mundo, ao con-
trário das protestantes, são mais institucionais e hierárquicas no nível
simbólico: neste sentido demandam compreensão, tradução e catequese,
uma exigência de socialização que vai muito além da sola scriptura pro-
testante. De outro lado, no aspecto social (e jurídico), percebe-se uma
tendência mais igualitária no nível do processo de civilização nas missões
católicas, as quais fundamentam-se nos conceitos de “direito natural” e de
15
Idem, p. 72.
16
Esta é a hipótese de Nicola Gasbarro, op. cit.
Pedro Brocco | 45
17
GASBARRO, op. cit., p. 73.
46 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
18
Idem, p. 74.
19
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 47
20
Idem, ibidem.
21
Idem, p. 75.
22
Idem, ibidem.
23
GRUZINSKI, Serge. La colonisation de l’imaginaire. Sociétés indigènes et occidentalisation dans le Mexique
espagnol, XVI-XVIII siècle. Paris, La Découverte, 1988.
48 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
24
GASBARRO, op. cit., p. 75-76.
25
Idem, p. 79.
26
Idem, p. 93.
27
TODOROV, Tzvetan. A vida em comum: ensaio de Antropologia geral. Trad. Maria Angélica Deângeli; Norma Wim-
mer. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
Pedro Brocco | 49
28
GASBARRO, op. cit., p. 96.
29
Idem, p. 97.
52 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
relações sociais com o aspecto religioso dando lugar a uma nova fisiologia
sociocultural. Os ritos compreendidos aqui pelos principais sacramentos
da Igreja correspondem aos efeitos referidos. Há, com efeito, através da
prática destes ritos, a estruturação de toda a experiência de vida do prati-
cante, que além de crente é sobretudo um praticante: o nascimento
(batismo); o crescimento e a formação do corpo e do intelecto (catequese
e educação); o amadurecimento e a procriação (matrimônio); a morte (ba-
tismo in extremis; extrema unção). E sobretudo atravessando
praticamente todas as fases e sacramentos: a confissão, especialmente va-
lorizada pelos jesuítas, pondo o cristão em contato com sua prática social
e individual ao longo de toda sua vida, continuamente reenviado à dou-
trina cristã e à própria imagem crística, articuladas pelo padre confessor:
30
Idem, ibidem.
31
Idem, p. 98.
Pedro Brocco | 53
Figura 2: Antiga Basílica de Guadalupe no dia de sua festa litúrgica. 12 de dezembro de 2014. Arquivo pessoal.
No Brasil parece que o culto à Virgem Maria está associado de maneira tão
estreita ao complexo patriarcal que, em grande número de mansões, ou de
casas-grandes, as respectivas capelas eram batizadas não com o nome de fa-
mília do proprietário, mas sim com o de sua esposa, de sua mãe ou de alguma
filha, disfarçado em uma das muitas denominações dadas, nos países latinos,
à Virgem Maria, respeitosamente precedido pelo tratamento como que matri-
arcal de “Nossa Senhora”: Nossa Senhora da Anunciação, Nossa Senhora da
Boa Viagem, da Boa Esperança, do Bom Parto – denominação particularmente
maternal –, do Perpétuo Socorro, das Dores, da Solidão. Em muitos casos essa
mística Senhora – espécie de deusa que, mais do que o próprio Deus, ou o
Cristo, supunha-se guardar toda a plantação, protegendo-a contra todos os
tipos de inimigos – era a madrinha das crianças, fidalgas, plebeias e escravas
do sexo feminino, nascidas em engenho ou em fazenda e batizadas na capela
pelo capelão desse engenho ou dessas fazendas, que geralmente se sentia mais
subordinado ao patriarca do que ao bispo, recebendo a criança o nome da Vir-
gem Maria particular da fazenda ou do lugar em que nascia [...] O poder
patriarcal no Brasil, durante a escravidão, não foi absoluto. Havia um tão in-
tenso respeito pela mulher, em sua forma romântica e sobretudo mística, que
o mesmo se refletia na vida prática: no cotidiano.33
32
FREYRE, Gilberto. Novo Mundo nos Trópicos. São Paulo: Global, 2011, p. 230.
33
Idem, ibidem.
34
Idem, pp. 230-231.
56 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
para muitos era um poder místico mais forte – é preciso repeti-lo – do que
Deus ou do que Jesus Cristo”35.
E nesse Brasil e nesse México (então Nova Espanha) em que se insta-
lam as primeiras povoações europeias de matizes ibéricos, quem articula
e fala sobre as imagens sacras, com eficácia e reconhecimento, são os fra-
des e os padres jesuítas. É de se lembrar que no importante episódio –
fundamental para a fundação da cidade do Rio de Janeiro – do Armistício
de Iperoig ou Iperuí (Ubatuba), quando Nóbrega e Anchieta foram nego-
ciar e Anchieta ficou refém na aldeia dos tamoios, redigiu ali, na areia da
praia, um copioso poema em homenagem à Virgem Maria. Escreve João
Adolfo Hansen, citando o cronista da Companhia de Jesus nos séculos XVI
e XVII Simão de Vasconcelos:
Vê-se assim como a obra de Gilberto Freyre, não obstante sua acu-
rada pertinência e importância para os estudos sobre o Brasil,
desprivilegia o aspecto fundamental para a colonização, em termos de po-
der e influência, que foi a Companhia de Jesus. Haurindo posição junto à
Coroa na educação e catequese, os padres punham a circular as imagens
sacras e ativavam os circuitos de eficácia simbólica capazes de, inclusive,
nessa circulação, como o reconhece o próprio Freyre, atuar sobre o poder
patriarcal, limitando-o.
35
Idem, p. 231.
36
VASCONCELOS, Simão de. Crônica da Companhia de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1977, 2v., v. II, p. 89.
37
HANSEN, João Adolfo. Manuel da Nóbrega. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010, p. 43.
Pedro Brocco | 57
38
O relato é o de que uma imagem de Virgem Maria teria aparecido a um índio da tribo Nahua, Juan Diego Cuau-
htlatoatzin, na colina de Tepeyac, nas proximidades da Cidade do México, no dia 9 de dezembro de 1531. Segundo o
relato, a Virgem identificou-se como a mãe do verdadeiro Deus e fez crescer flores na colina semidesértica em pleno
inverno. Juan Diego foi instruído pela Virgem a dizer ao bispo que construísse um templo no local. Em seguida,
deixou impressa sua imagem no tilma de Juan Diego. O tilma ou tilmàtli era um manto indígena muito utilizado
pelos povos pré-colombianos, composto por um tecido de baixa qualidade de fibras de cacto agave maguey, e costu-
mava deteriorar-se em no máximo vinte anos. A imagem está intacta, no entanto, até hoje. A roupagem ganha, pois,
contornos imaginários e desloca-se da materialidade da roupa para o invólucro imagético-identitário. O ícone da
Virgem está atualmente depositado no Santuário de Guadalupe, para onde afluem milhões de pessoas anualmente.
A imagem da Virgem, já morena, mestiça, e o nome do índio que a vê, também mestiço, são interessantes detalhes
para a análise. Trata-se de uma espécie de arranjo forjado em um reconhecimento simbólico a partir de significantes
condensadores do significado de vida mestiça: nem índio, nem europeu.
58 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Figura 3: Fantasias pré-colombianas com a antiga Basílica de Guadalupe ao fundo. Dia da festa litúrgica da Virgem
de Guadalupe. 12 de dezembro de 2014. Arquivo pessoal.
Figura 4: Dia da festa litúrgica da Virgem de Guadalupe com as duas Basílicas ao fundo. 12 de dezembro de 2014.
Arquivo pessoal.
39
Italo Calvino toca neste ponto em sua fina análise da culinária mexicana no conto Sob o sol-jaguar. Não nos parece
excessiva a afirmação de que a luta cultural se dá nos rincões mais refinados, como na arte do preparo alimentar,
que ao final irá modificar, mas também conservar, muitos aspectos e sabores da culinária pré-colombiana. Cf.
CALVINO, Italo. Sob o sol-jaguar. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
40
“(...) a Companhia de Jesus foi estabelecida institucionalmente pelo papa Paulo III com a bula Regimini militantis
Ecclesiae, em 27 de setembro de 1540. Define-se como ordem militante orientada pelo projeto missionário de levar a
Verdade do Deus católico para populações que a mesma Verdade constitui como infiéis, que negam o Verdadeiro
Deus, e como gentios, que o ignoram”. Cf. HANSEN, João Adolfo. Manuel da Nóbrega. Recife: Fundação Joaquim
Nabuco, Editora Massangana, 2010, p. 67.
60 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
41
HANSEN, op. cit., pp. 68-69.
Pedro Brocco | 61
42
Omne quod in scripturis non habetur, hoc plane Satanae addimentum est: tudo que não está nas Escrituras é
simplesmente uma adição de Satã, Lutero, 1521. In: BOUTRY, Philippe. “Tradition et écriture. Une construction
théologique”. In: Enquête. Usages de la tradition. Paris: EHESS/CNRS/Ed. Parenthèses, second semestre, 1995, nº 2,
p. 43. In: HANSEN, op. cit., p. 69.
43
HANSEN, op. cit., p. 69.
44
Idem, p. 59.
62 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
45
Idem, ibidem.
46
Idem, ibidem.
47
Idem, ibidem.
48
GREGÓRIO MAGNO. Regra pastoral. São Paulo: Paulus, 2010.
Pedro Brocco | 63
49
HANSEN, op. cit, p. 60.
50
Idem, p. 61.
51
Idem, ibidem.
52
Idem, ibidem.
64 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
53
Cf. JOSAPHAT, Frei Carlos. Las Casas – Todos os direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000, p. 44.
54
Embora não haja referência em JOSAPHAT, Frei Carlos, op. cit., esses doze frades eram, provavelmente, francis-
canos. Os frades dominicanos chegam à América somente em 1510.
55
Carlos Josaphat observa não haver indícios do local exato em que Las Casas ordena-se padre: se em Roma, se em
Sevilha, na volta, ou, mesmo, em Porto Rico.
Pedro Brocco | 65
ao clero secular, algo que poucos anos depois se alterará, quando Las Casas
entrar em contato com a mística e a ética dominicanas.
Nesse breve período de pouco mais de dez anos, Las Casas, chegando
aos trinta anos de idade, apresenta-se na América dividido entre o aspecto
clerical e o econômico: padre e encomendero. Tratava-se de adaptar-se à
própria configuração adotada pela Igreja para justificar as possessões ul-
tramarinas de Castela, sedimentadas pelas bulas pontifícias de Alexandre
VI.
A chegada dos primeiros frades dominicanos à América em 1510 mu-
dará substancialmente a concepção de Las Casas e o fará converter-se,
digamos, novamente, ao cristianismo, dessa vez para fazer parte da ordem
dominicana.
O padre-colonizador Las Casas, em um primeiro momento, admira o
zelo apostólico e a pobreza dos religiosos dominicanos, o que não o faz,
ainda, querer imitá-los ou mudar de vida. O mandato missional dos frades
dominicanos, direcionado aos nativos americanos, no entanto, semeará na
pessoa de Las Casas uma de suas primeiras e mais importantes obras
apostólicas.
A virada de vida de Las Casas em direção à concepção missionária e
apostólica dominicana vai se dando aos poucos, com o contato com o tra-
balho diuturno dos frades, organizados pelo prior Frei Pedro de Córdoba,
que de início orienta os frades para pregações e trabalhos apostólicos em
sua pequena comunidade somente aos colonos espanhóis. Las Casas fun-
cionava então como apoio e ponto de referência, uma vez que já se
dedicava, de alguma forma, à catequização dos índios já domesticados56,
56
É de se notar que Las Casas sempre cultivou um contato franco com os nativos americanos, reconhecendo-lhes
sua humanidade e dignidade. Nas anotações inseridas na Historia de las Indias, o jovem clérigo Las Casas se mostra
impressionado pela acolhida dos habitantes e destaca a sua amabilidade. Sua visão difere desde já daquela sustentada
pelos colonos espanhóis, os quais viam apenas as riquezas da América: riquezas da terra, abundância de ouro, difi-
culdades para extrai-lo sem a exploração de mão-de-obra quase escrava. Em abril de 1493, Las Casas ficou
impressionado ao contemplar o desfile de Colombo pelas ruas de Sevilha, e já naquela época seu pai lhe traz um
jovem escravo índio mais ou menos de sua idade. A Rainha Isabel, no entanto, em 20 de junho de 1500, ordena que
esses escravos sejam libertados, reconhecendo-lhes a condição de súditos. Las Casas irá reencontrar esse amigo de
infância na América, já como missionário, demonstrando-lhe estima e tecendo elogios à família por ele constituída
(Cf. JOSAPHAT, Frei Carlos, op. cit., p. 43)
66 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
57
JOSAPHAT, op. cit., p. 47.
Pedro Brocco | 67
58
Idem, p. 48.
59
Idem, ibidem.
68 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
60
Cf. neste sentido ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Rio de Janeiro: Record, 2012.
61
JOSAPHAT, op cit., p. 51. Josaphat apóia-se aqui na paráfrase do texto que o próprio Las Casas traz no terceiro
volume de Historia de Las Indias, cap. 3.
Pedro Brocco | 69
Esta voz lhes está bradando: vocês estão todos em pecado mortal, nele vivem
e morrem, pela crueldade e tirania que praticam contra este povo inocente.
Digam: com que direito e com que justiça vocês mantêm estes índios em tão
cruel e horrível servidão? Com que autoridade vocês têm feito guerras tão de-
testáveis contra esta gente, que estava tranquila e pacífica em suas terras, onde
62
JOSAPHAT, op. cit., p. 52.
70 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
as multidões incontáveis delas, com mortes e danos nunca ouvidos, vocês ex-
terminaram?
Como vocês os mantêm na opressão e na fadiga, sem dar-lhes de comer e cu-
rar-lhes as enfermidades que contraem em razão dos excessivos trabalhos que
vocês lhes impõem? Eles chegam a morrer, ou, para melhor dizer, vocês os
matam para arrancar e adquirir ouro a cada dia.
Que cuidado vocês têm de que alguém lhes ensine a doutrina e de que conhe-
çam a seu Deus e Criador, sejam batizados, oiçam a missa, guardem as festas
e os domingos?
Estes não são homens? Não têm almas racionais?63
Não estão vocês obrigados a amá-los como a vocês mesmos?
Isto vocês não entendem? Não sentem? Como estão mergulhados em sono tão
letárgico?
Estejam certos: no pecado em que estão, vocês não poderão salvar-se mais do
que os mouros ou turcos que recusam a fé em Jesus Cristo.64
63
Notemos aqui a aproximação retórica em relação ao Padre Antônio Vieira, pregador jesuíta luso-brasileiro no
século XVII: também Vieira utilizará essa tópica em relação aos escravos africanos nos Sermões do Rosário, pregados
na Bahia. O Sermão XXVII do Rosário, pregado aos escravos negros e seus senhores na Bahia em 1633, aproxima-se
sobremaneira da retórica de Montesinos. Diz Vieira: “Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva?
Estas almas não foram resgatadas com o sangue o mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem, como os
nossos? Não respiram o mesmo ar? Não os cobre o mesmo céu? Não os aquenta o mesmo sol? Que estrela é logo
aquela que os domina, tão triste, tão inimiga, tão cruel? ”. Cf. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992, pp. 144-145, em especial o capítulo sobre Vieira: “Vieira ou a cruz da desigualdade”.
Estre trecho do Sermão XXVII do Rosário foi também retratado por Manoel de Oliveira em Palavra e Utopia (2000),
com seu neto Ricardo Trêpa interpretando o jovem Vieira. Cf. VIEIRA, Padre Antônio. Sermões, vol. VI. São Paulo:
Loyola, 2012, pp. 235-255. Vieira, pouco depois do citado trecho, se endereçará aos escravos e aos senhores brancos:
“Dizei-me, brancos e pretos, não condenamos todos a Adão e Eva? [...]”.
64
Cf. JOSAPHAT, op. cit., p. 53. Josaphat recolhe e traduz este trecho diretamente da Historia de las Indias, III, cap.
3, de Las Casas. Las Casas tornar-se-á muito amigo de Antônio de Montesinos e de seu irmão Frei Tomás de Monte-
sinos, que se torna seu assessor. Josaphat observa que Las Casas terá tido em mãos, muito provavelmente, um
rascunho ou um resumo da homilia. O que é certo é que Las Casas diz expressamente que um texto escrito foi
entregue pela comunidade a Montesinos.
65
JOSAPHAT, op. cit., p. 53.
Pedro Brocco | 71
66
Tomo emprestado este termo de Frei Carlos Josaphat. Cf. JOSAPHAT, op. cit., p. 55.
72 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
67
Vieira começa a explicar a teoria das obrigações partindo do Antigo Testamento (Lei Velha): “Era tão rigoroso este
preceito da restituição na Lei Velha, que se o que furtou não tinha com que restituir mandava Deus que fosse vendido,
e restituísse com o preço de si mesmo”. A análise da justiça de tal preceito é feita com base na teologia. Tal preceito
era indiscutivelmente justo pois era Lei de Deus, muito embora o Deus na Lei da Graça (Novo Testamento) tenha
derrogado esta circunstância de rigor, que era de Direito positivo. Cf. VIEIRA, Antônio. Sermões. Tomo 1. Organização
e introdução de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2014, p. 391.
68
Antonio Vieira retoma essa questão no século XVII. No Sermão XXVII do Rosário, pregado na Bahia, dirá: “Para
resgatar do cativeiro do corpo, basta dar outro tanto ouro ou prata, quanto custou o escravo vendido. Mas para
resgatar do cativeiro da alma, quanto ouro ou prata será bastante? Bastará um milhão? Bastarão dois milhões?
Bastará todo o ouro de Sofala, e toda a prata de Potosí? Oh! Vileza e ignorância das apreensões humanas! Se todo o
mar se convertera em prata, e toda a terra em ouro, se Deus criara outro mundo, e mil mundos de mais preciosa
matéria que o ouro e mais subidos quilates que os diamantes, todo este preço não seria bastante para libertar do
cativeiro do demônio e do pecado uma só alma por um só momento”. Cf. VIEIRA, Padre Antônio. Sermões, VI. São
Paulo: Loyola, 2012, p. 245.
Pedro Brocco | 73
69
As Juntas eram grandes concílios que se reuniam, geralmente com representantes da Coroa presidindo-os, para
promover o debate e discussão de determinados tópicos entre indivíduos notáveis, incluindo-se nesta categoria teó-
logos, humanistas e membros das universidades.
70
Saint-Lu, André. Presentación, in Las Casas, 1982.
76 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Saliendo a recibir todos los señores [de Cholula] [...] acordaron los españoles
de hacer allí una matanza o castigo (como ellos dicen) para poner y sembrar
su temor y braveza en todos los rincones de aquellas tierras.71
Y porque toda la gente que huir podía encerraba en los montes y subía a las
sierras huyendo de hombres tan inhumanos, tan sin piedad y tan feroces bes-
tias, extirpadores y capitales enemigos del linaje humano, enseñaron y
amaestraron lebreles, perros bravísimos que en viendo un indio lo hacían pe-
dazos en un credo, y mejor arremetían a él y lo comían que si fuera un puerco.
Estos perros hicieron grandes estragos y carnicerías.72
Hacían unas horcas largas, que juntasen casi los pies a la tierra, y de trece en
trece, a honor y reverencia de Nuestro Redemptor y de los doce apóstoles, po-
niéndoles leña y fuego los quemaban vivos. Otros araban o liaban todo el
cuerpo de paja seca: pegándoles fuego, así los quemaban. Otros, y todos los
71
SAINT-LU in LAS CASAS, Bartolomé. Brevísima relación de la destruición de las Indias. Madrid: Catedra, 2013, p.
42.
72
LAS CASAS, Bartolomé. Brevísima relación de la destruición de las Indias. Madrid: Catedra, 2013, p. 82.
Pedro Brocco | 77
que querían tomar la vida, cortábanles ambas manos y delas llevaban col-
gando, y decíanles: «Andad con cartas», conviene a saber, llevad las nuevas a
las gentes que estaban huidas por los montes. Comúnmente mataban a los
señores y nobles desta manera: que hacían unas parrillas de varas sobre hor-
quetas y atábanlos en ellas y poníanles por debajo fuego manso, para que poco
a poco, dando alaridos, en aquellos tormentos, desesperados, se les salían las
animas.73
Por fim, afirma Las Casas, dando um tom testemunhal à fala: “yo vide
todas las cosas arriba dichas y muchas otras infinitas”74.
A nomenclatura de “bárbaro” tem uma importante história neste de-
bate, e foi utilizada para desqualificar os nativos americanos. Todavia, o
termo barbaroi possui circulação já entre os gregos. A palavra teria relação
com o fato de o bárbaro não falar a língua culta na perspectiva de quem o
define. Entre os helenos, assim, os bárbaros seriam aqueles povos do
Norte, que viviam às margens do Mar Negro, entre eles os trácios e os
citas. A acepção do termo continua entre os romanos na utilização da no-
menclatura em relação àqueles que um dia invadiriam e suplantariam
Roma.
73
Idem, p. 81.
74
Idem, p. 82.
75
Realizo aqui de forma geral uma divisão inspirada em Henrique C. de Lima Vaz em sua Introdução à Ética Filosófica
2 (Escritos de Filosofia V). Cf. LIMA VAZ, Henrique C. de. Introdução à Ética Filosófica 2 (Escritos de Filosofia V).
São Paulo: Loyola, 2004.
78 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
76
PLATÃO. Timeu e Crítias ou A Atlântida. São Paulo: Hemus, 1981.
77
LIMA VAZ, H. C. de. op. cit., pp. 97-99.
78
É interessante como Henrique C. de Lima Vaz aproxima Descartes a Hobbes na fundação da ética moderna. Se
Descartes inaugura uma nova concepção das relações entre a razão e a psicologia em que o modelo prudencial aris-
totélico é substituído por uma técnica do governo das paixões, Hobbes eliminaria a razão da tensão com as paixões,
pondo-as com primazia na conduta das ações: “Na esteira de Hobbes, o empirismo ético consumará o abandono da
Razão prática, cujo conceito em sua acepção clássica acaba por cair em olvido na tradição da ética empirista, não
tendo, de fato, nenhum lugar no universo conceptual do utilitarismo em todas as suas versões”, LIMA VAZ, op. cit.,
p. 41. Neste sentido é que se aproxima aqui a filosofia de Descartes de um desenvolvimento posterior das éticas
utilitaristas.
79
Tipo de registro dialógico desenvolvido por Martin Buber (cf. LIMA VAZ, op. cit., p. 74).
Pedro Brocco | 79
80
Marcelo Neves, OP, afirma em sua tese de doutorado que Las Casas vai mais longe do que Santo Tomás de Aquino em
alguns aspectos, entre eles o de refutar de modo definitivo a tese aristotélica de seres humanos inferiores por natureza,
tendo como base a obra de Frei Carlos Josaphat, Las Casas: todos os direitos para todos, op. cit. Cf. NEVES, Marcelo, OP.
A tolerância nos limites do cristianismo católico de Frei Bartolomé de Las Casas. Tese de Doutorado apresentada ao De-
partamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, 2006.
81
PAGDEN, Anthony. The fall of natural man. London: Cambridge University Press, 1982.
80 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
82
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, 1985.
83
Cf. GUTIÉRREZ, Jorge Luis. Aristóteles em Valladolid. São Paulo: Editora Mackenzie, 2007; HANKE, Lewis. Aris-
tóteles e os índios americanos. São Paulo: Livraria Martins Editora, s/d.
82 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
84
ARISTÓTELES. Política. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Unb, 1997, p. 32, 1260a.
85
PICH, Roberto Hofmeister. “Dominium e ius: sobre a fundamentação dos direitos humanos segundo Francisco de
Vitoria (1483-1546)”. Teocomunicação, v. 42, n. 2. Porto Alegre, 2012, pp. 376-401.
Pedro Brocco | 83
86
O livro de Sepúlveda, em virtude de suas teses polêmicas, foi suprimido após o desfecho do Concílio, embora este
tenha dado razão a Sepúlveda. Cf. KNIGHT, Alice J. Las Casas: The Apostle of the Indies. New York: The Neale Pub-
lishing Company, 1917.
87
PAGDEN, op. cit., p. 119.
84 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
88
Idem, p. 121.
89
Idem, pp. 121-122.
Pedro Brocco | 85
das letras e das artes liberais, bem como do domínio de técnicas e tecno-
logias como a fundição do ferro e a construção de pontes, marcas da
cultura europeia e fatores determinantes para a supremacia militar sobre
as sociedades americanas.
O que parece ser algo novo, com Las Casas, no entanto, é que essa
visão do estado de natureza não implica uma forma social fora da história
e fora da matéria, no sentido de uma ontologia metafísica: a visão lascasi-
ana do “estado de natureza” com sua noção embutida de “homem natural”
ou “primitivo” opera um duplo deslocamento: primeiro, da interpretação
biológica e inatista das disposições humanas para a psicologia de corte
aristotélico, fundamentada na noção de potencialidades racionais e capa-
cidades; segundo, do registro de um certo psicologismo para o de formas
culturais distintas e contingentes no registro comum da história humana.
O surgimento do conceito de história e de uma teleologia aí implícita me-
diada por formas culturais distintas parece ser, assim, algo novo e
fundamental para a moderna etnologia comparada.
Do Requerimiento às teses de Sepúlveda, vemos ressurgir a teoria
aristotélica sobre a servidão natural predicável aos servos, que o seriam
assim por uma disposição natural. No caso dos nativos americanos, a acei-
tação da tese implicaria uma tomada de posição no âmbito das colônias
concebendo-os enquanto mera força de trabalho útil. Com a elaboração
dos discursos de Salamanca e de Las Casas, há um claro esforço de reco-
nhecimento de capacidade para a organização civil por parte dos indígenas
e, assim, um pressuposto de um reconhecimento jurídico de uma alteri-
dade haurida por uma dignidade plenificada. Deste modo também logo se
desdobram as categorias da liberdade e da vontade para compor o poten-
cial anímico dos nativos americanos, conceitos de grande relevo para o
planejamento missionário de conversão dos povos.
No próximo tópico, passa-se ao estudo de um importante pilar da co-
lonização do Novo Mundo, para muitos o fundador do Direito
Internacional moderno: Francisco de Vitoria.
86 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
90
DELGADO, Luis Frayle. Estudio Preliminar. In: VITORIA, Francisco de. Sobre el poder civil, Sobre los índios, Sobre
el derecho de la guerra. Madrid: Tecnos, 1998, p. XIV.
Pedro Brocco | 87
91
BEUCHOT, Mauricio. La polémica de la guerra de Conquista en relación con México, pp. 147-156. In: BATAILLON,
G.; BIENVENU, G.; GOMEZ, A. V. (Org.). Las teorías de la guerra justa en siglo XVI y sus expresiones contemporáneas.
México D. F.: Centro de estudios mexicanos y centroamericanos, 1998.
92
Idem, ibidem.
93
BEUCHOT, Mauricio. El primer planteamiento teológico-jurídico sobre la conquista de América: John Mair. Ciencia
tomista. Salamanca, 1976, núm. 103, pp. 213-230.
94
Os jesuítas serão grandes tributários da casuística e dos chamados “casos de consciência”.
Pedro Brocco | 89
95
DELGADO, Luis Frayle, op. cit., p. X.
90 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
96
Há duas Bulas Inter Coetera, uma de 3 de maio e outra de 4 de maio de 1493.
97
Trata-se de um documento que basicamente repete o conteúdo da Bula Inter Coetera, reiterando, porém, que se
outorgava a Castela os privilégios, graças, liberdades imunidades e faculdades que já se havia outorgado anterior-
mente a Portugal. Essa Bula surge com vistas a amainar os previsíveis protestos portugueses à Inter Coetera.
98
A segunda Inter Coetera ampliava as doações contidas na Inter Coetera do dia anterior: atribuía à Coroa espanhola
o domínio integral e exclusivo sobre as terras e povos revelados por Cristóvão Colombo.
99
Trata-se de Bula que concede amplas faculdades em matéria espiritual ao frade Bernardo Boyl, religioso e diplo-
mata aragonês. Aqui podemos ver que, muito antes de Antonio Vieira, as Coroas ibéricas já se valiam de religiosos
com habilidades diplomáticas enviados em missões secretas. Boyl, com efeito, ao final de 1476, era secretário do
futuro rei aragonês Fernando II (Fernando V de Castela e Leão), o Católico, que o envia para negociar com os fran-
ceses. Boyl acompanha Colombo em sua segunda viagem à América, em 1493, como missionário e Vicário Apostólico
nas Índias Ocidentais, título outorgado pelo papa Alexandre VI. Regressa à Espanha em 1494 ante a dificuldade de
não conseguir se comunicar com os indígenas. Cf. Boyl, Bernardo, na Gran Enciclopedia Aragonesa. Acesso em 26 de
agosto de 2015.
100
Bula que reafirmava a direito castelhano às ilhas e terras firmes achadas e por achar, descobertas e por descobrir,
as quais, navegando ou caminhando para o Ocidente ou Meio-dia, estejam quer nas partes ocidentais, meridionais e
da Índia. Cf. ANDRADE DA SILVA, Dinair. Tensões entre Castela e Portugal a propósito dos descobrimentos atlânti-
cos: um estudo das bulas alexandrinas. Anais Eletrônicos do IV Encontro da ANPHLAC. Salvador, 2000. Acesso em
26 de agosto de 2015.
Pedro Brocco | 91
101
Cf. RUIZ, Rafael. Francisco de Vitoria e os direitos dos índios americanos: a evolução da legislação indígena espa-
nhola no século XVI. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p. 45.
92 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
terrenas. Daí derivará uma extensa história, que não será aqui abordada,
onde se encontrarão, em uma Itália dividida, os guelfos, partidários do
papa, e os gibelinos, partidários do Imperador do Sacro Império, em uma
guerra de sucessão secularíssima, entre os séculos XII e início do XIV, na
qual estará envolvido ninguém menos que Dante Alighieri.
Dante Alighieri traz, aliás, em seus escritos políticos como a Monar-
chia, a formulação da teoria dos dois poderes: o poder temporal-secular é
um desdobramento de uma autoridade universal celeste, que desce sobre
o imperador temporal sem qualquer mediação. Tais teses, aceitas e venti-
ladas no medievo, seguirão dois caminhos mais ou menos simultâneos:
sofrerão uma hipertrofia com a utilização, por parte da Igreja e dos Pon-
tífices, da fundamentação segundo a qual estes seriam, enquanto vicários
de Cristo e herdeiros do trono de Pedro, os representantes máximos do
poder da Cristandade e, neste sentido, estariam acima dos reis e impera-
dores; o outro caminho começa a ser trilhado com a crítica da teoria dos
dois poderes e a limitação do poder soberano do Pontífice por autores
como Marsílio de Pádua e Guilherme de Ockham. Entre os pensadores
medievais que se vincularam à cosmovisão segundo a qual o Pontífice teria
tanto autoridade espiritual quanto secular, sendo quanto a esta a autori-
dade máxima, podemos citar o agostiniano Egídio Romano e Henrique de
Susa, apelidado o Ostiense, autor do século XIII para quem Cristo, ao as-
sumir a natureza humana, fora constituído rei do universo. Assim, os
príncipes então existentes haviam perdido seus direitos e os transferiram
para o próprio Cristo. Constituído São Pedro como chefe da Igreja, ocorre
a intermediação entre o próprio Cristo e os sucessores de Pedro, os pa-
pas102.
A literatura examinada nos autoriza, portanto, a reconhecer que o
episódio das Bulas alexandrinas e a fundamentação jurídica da tomada
das terras americanas por parte de Castela deita raízes muito mais no mo-
vimento medieval da teoria dos dois poderes e em sua leitura
hipertrofiada, ao ponto de o papa realizar uma doação, esse instrumento
102
Cf. DOUGNAC RODRÍGUEZ, Antonio. Manual de Historia del Derecho Indiano. México, D.F.: UNAM, 1994, p. 28.
Pedro Brocco | 93
Todas e cada uma das terras preditas com a autoridade de Deus onipotente,
concedida a Nós por São Pedro, como Vigário de Jesus Cristo, com todos os
domínios das mesmas, com suas cidades, acampamentos militares, lugares e
vilas, com todos os seus direitos e jurisdições, doamos, concedemos e damos a
Vós, e a vossos herdeiros e sucessores dos Reinos de Castela e de Leão, para
sempre, e com a mesma autoridade apostólica investimo-vos a Vós e a vossos
herdeiros e sucessores como senhores das mesmas com plena, livre e absoluta
autoridade.103
Nós, louvando muito ao Senhor por esse vosso santo e louvável propósito, en-
corajamo-vos e requerimo-vos para que esses povos recebam a Religião
Católica Cristã. E, além disso, mandamo-vos em virtude da santa obediência
que (...) procureis enviar às mesmas terras firmes e ilhas homens bons, teme-
rosos de Deus, doutos, sábios e experientes para que instruam os naturais na
103
RUIZ, Rafael, op. cit., p. 74. Rafael Ruiz utiliza, como referência para o estudo das Bulas, a obra de Venancio D.
Carro, OP.
94 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Fé Católica e lhes ensinem bons costumes, pondo nisso toda a diligência que
convier.104
104
Idem, p. 75.
105
Idem, ibidem.
106
Idem, p. 76.
Pedro Brocco | 95
107
Idem, p. 76-77. A obra utilizada por Ruiz para o exame do Requerimiento é o livro clássico de Joseph Hoffner, A
Ética colonial espanhola do Século de Ouro. Cristianismo e dignidade humana. Rio de Janeiro: Presença, 1977, p. 206.
96 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
108
Cf. MARTÍNEZ-CARDÓS RUIZ, José-Leandro, op. cit., p. LI.
109
RUIZ, Rafael, op. cit., p.
Pedro Brocco | 97
Paulo, “não há poder que não venha de Deus”110. Esse trecho que durante
anos, na Idade Média, serviu para fundamentar a primazia pontifícia e a
submissão dos poderes seculares ao papa, será o ponto de partida das re-
lecciones de cariz político de Vitoria.
Vitoria inicia sua aula111, após a introdução, com a investigação das
causas do poder civil ou laico, fazendo referência à Física de Aristóteles,
para o qual pensamos que conhecemos algo quando conhecemos suas cau-
sas. Novamente citando a Física, dirá que há que se considerar as
atividades humanas, ao lado das coisas a serem conhecidas através das
causas, em relação ao fim, que é a primeira e principal das causas.
Após discorrer sobre os filósofos antigos e suas considerações sobre
a matéria e a noção de necessidade e finalidade, passando por Epicuro e
Lucrécio, refutará o aspecto indeterminista e contingencial da teoria do
último, para defender uma verdade suprema: a de que tudo o que existe
no universo foi criado para algum fim e utilidade, e que tudo o que foi feito
é necessário que tenha sido feito. Assim, Vitoria parte para a investigação
do fim pelo qual o poder que se está analisando na relección foi constitu-
ído, elaborando uma narrativa acerca dos aspectos distintivos do ser
humano face aos outros animais. Articulará a razão, a virtude e a palavra
como fatores distintivos de um ser racional e virtuoso, mas, por outro
lado, débil, pobre, desprovido de todo auxílio, indigente, desnudo e im-
plume112.
Para socorrê-lo contra as necessidades e intempéries da existência,
segundo Vitoria, era necessário que os homens não andassem errantes e
vagando pelos desertos como feras, mas que vivessem em sociedade e se
prestassem mútuo auxílio. Nesse momento, Vitoria desloca seu argu-
mento novamente para a obra de Aristóteles, para quem sem doutrina e
experiência não pode o homem perseguir a perfeição de entendimento, e
110
Non est potestas nisi a Deo, segundo a Vulgata citada por Vitoria.
111
É pertinente recordarmos que Vitoria jamais entregou algum material para ser impresso e divulgado. Todo o
material de sua autoria ao qual temos acesso hoje são fruto de anotações de seus alunos e ouvintes em Salamanca.
112
VITORIA, Francisco de. Sobre el poder civil, op. cit., p. 10.
98 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
113
Vitoria cita a Ética a Nicômaco, II, 1, 1103a. Em VITORIA, F. op. cit., p. 11.
114
VITORIA, F., op. cit., p. 11.
115
20, 32: “Sabedoria oculta e tesouro escondido, de que servem uma e outro? ”.
116
Política, I, 2, 1253a.
117
Política, I, 2, 1253a.
Pedro Brocco | 99
Do mesmo modo que o corpo humano não pode conservar-se em sua integri-
dade se não há uma força ordenada que organize todos e cada um dos
membros para a utilidade dos demais, e sobretudo para o proveito de todos os
homens, isso ocorreria [a dissolução do povo], sem dúvidas, também na ci-
dade se cada um se preocupasse só com seu próprio proveito e se
despreocupasse com o bem público.120
118
Não se pode aqui dizer que Vitoria dialoga com Maquiavel, pois a primeira edição de Il Principe é publicada em
1532; porém já podemos vislumbrar uma leitura do poder civil radicalmente imbricada à moral e ao eixo do “bem
comum”, de antemão denegando a separação entre moral e política que seria então promovida por Maquiavel, que
aqui pode aparecer como uma espécie de símbolo de uma tendência mais alinhada aos intelectuais das potências
seculares que então se desenvolviam na Europa.
119
Aqui Vitoria cita Mateus, Mt 12, 25; e Lucas, Lc 11, 17: “Todo reino em si dividido será desolado”.
120
VITORIA, F., op. cit., p. 14.
121
Idem, ibidem.
100 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
pontifícia, pois, aqui, ainda que a causa eficiente do poder civil seja Deus,
como lá, há uma rigorosa separação entre direito divino e direito natural.
Não obstante, Vitoria é muito claro também em relação à sua prefe-
rência pela monarquia enquanto forma ideal de estruturação do poder
público. Para ele, não haveria menos liberdade no principado régio do que
no aristocrático e no democrático, pois, sendo um só o poder, é melhor
estar submetido a um indivíduo do que a muitos, pois quando há muitos
que dominam, muitos também ambicionam o poder. É forçoso reconhe-
cer, portanto, as raízes monárquicas das formulações de Vitoria.
Ao final da primeira parte da relección, cremos que vale mencionar
também um parágrafo da teoria de Vitoria sobre a guerra justa, o que ele
desenvolverá melhor anos depois em sua relección De iure belli, de 1539.
A guerra jamais seria justa se cometida em detrimento do proveito e uti-
lidade para a república, ainda que houvesse títulos e razões para uma
guerra justa. Há uma motivação não exposta à primeira vista que nos leva
e entender nessa formulação o início do que séculos depois se sedimentou
sob a forma dos direitos humanos supraestatais. Pois, com efeito, Vitoria
está sustentando que, sendo uma república parte do orbe terrestre, ainda
que uma guerra seja útil para a mesma, mas nociva para o restante do
orbe “ou para a cristandade”, tal guerra deve ser considerada injusta. O
conceito de cristandade já funciona como um fiador do reconhecimento
de “algo a mais” em cada sujeito para além de seu pertencimento a cida-
des, reinos e províncias específicas. Esse “algo a mais”, supraestatal e
criador de uma identidade que, na época de Vitoria, espalhava-se por todo
o mundo, acaba sendo absorvida pela formulação anterior, mais univer-
salista, ou seja, a de que cada república faz parte do orbe terrestre.
Entendemos aqui que Vitoria se refere não apenas às repúblicas que com-
põem a cristandade, mas refere-se também às outras religiões e povos,
sobretudo os índios americanos.
Podemos notar, nessa formulação de Vitoria, a urdidura de duas li-
nhas que formam sua doutrina: a ética cristã, que enxerga uma
Pedro Brocco | 101
122
CICERO, Marcus Tullius. De Legibus, I, X, 28-30. Cambridge: Harvard University Press, 1928.
123
MARTÍNEZ-CARDÓS RUIZ, José-Leandro, op. cit., p. LXI.
102 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
124
Cf. CALDEIRA, Jorge. História da riqueza no Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2017.
104 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
a. Organicismo
125
Richard Morse denuncia a formação da ideia de América Latina como um mito proveniente da França de Napoleão
III, quatro séculos após a descoberta do Novo Mundo, como parte de um discurso geoideológico com o fito de criar
uma zona de influência e agrupar uma suposta unidade linguística, cultural e racial dos povos latinos, em contrapo-
sição aos eslavos, germânicos e anglo-saxões. Por essa razão, o autor prefere referir-se à América dividindo-a entre
Anglo-América e Ibero-América, em seu intento de demarcar as diferentes heranças culturais e ideológicas que o
Novo Mundo recebe. Cf. MORSE, Richard. O espelho de próspero. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 14 e ss.
126
“Ahora bien, el fin de la postestad civil es la felicidade última; en cambio el fin de la potestad civil es la felicidad
social”. VITORIA, Francisco de. Sobre los índios. Op. cit., p. 101.
106 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
127
Cf. Idem, p. 21. Aqui uma passagem um pouco obscura, que certamente tem a ver com a noção de soberania,
contaminada pela outorga divina, mas que compõe o edifício vitoriano enquanto fundamento de Deus para o poder
civil, cuja ignorância significa um desconhecimento da teoria de Vitoria.
Pedro Brocco | 107
128
Rom 13, 2.
129
Cf. VITORIA, op. cit., p. 16 e ss.
108 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
como que os reis têm poder por direito divino e natural e não recebido da
república, nem de modo algum dos homens130.
Por outro lado, há liberdade e igualdade na condição entre os ho-
mens. Essa aparente contradição está também presente desde pelo menos
a obra de Gregório Magno. Na parte referenciada pelo próprio Vitoria po-
demos ler algumas indicações sobre a conduta moral do pastor: deve ser
humilde e fazer o bem para os “de bem” e zelar pela justiça contra os vici-
osos131. Gregório Magno citará seus Livros Morais (Moralia) para sustentar
seu entendimento, partilhado por Vitoria, de que a natureza fez nascer
iguais todos os homens. No entanto, variando o grau de seus méritos, a
culpa “pospõe alguns aos outros”, e como homem nenhum pode perma-
necer sempre nesse estado de igualdade, uns serão governados por outros.
No entanto, os que governam devem ter sempre presente não a autoridade
que lhes confere a posição, mas a igualdade de sua condição: “não se ale-
grem de comandar as pessoas, e sim de servi-las”132. Essa curiosa
construção parece estar na raiz das noções de bem público e de serviço
público. Em estudo anexo a este trabalho133, discorremos sobre a peculia-
ridade da situação política da Roma de Gregório, na dissolução do Império
romano e do mundo clássico, o que permitiu o alinhamento entre os po-
deres espiritual e temporal: Gregório foi um papa-prefeito, um papa-
administrador público. De extrema erudição e formado na melhor tradição
jurídica romana, soube produzir algo novo a partir da antiquíssima tradi-
ção pastoral judaica, mas também grega, oriental e africana, que desaguou
na concepção cristã do pastor.
Gregório faz o pastor transitar da candura ao temor na mesma me-
dida em que faz transitarem os homens às figuras animais irracionais:
130
Idem, p. 18.
131
GREGORIO MAGNO, op. cit., p. 75 e ss.
132
Idem.
Terceiro estudo do Anexo 2, intitulado “Compreender a tradição ibérica: notas sobre a formação da juridicidade
133
É necessário que os pastores sejam temidos pelos fiéis quando se dão conta de
que eles não temem a Deus, de modo que sintam o temor de pecar, se não por
medo dos julgamentos divinos, ao menos, por medo dos homens. Os pastores
não haverão de se orgulhar, de modo algum, por causa desse temor assim
sentido; eles não buscam a própria glória, mas a santidade de seus fiéis. Ao
exigir esse temor da parte daqueles que vivem na desonestidade, é como se
exercessem o poder sobre animais e não sobre homens, porque, na medida em
que esses fiéis se comportam como animais, devem submeter-se ao império
do temor.134
134
GREGORIO MAGNO, op. cit., p. 76.
135
Idem, p. 79.
136
Idem, ibidem.
110 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
137
Tito Lívio traz em sua narração da história de Roma o momento indissociável da promulgação das leis por Rômulo
e, para que essas fossem respeitadas, pela sua dignificação através das insígnias de autoridade: assim ele assumiu
uma aparência mais majestática ao recrutar doze lictores para acompanhá-lo. Interessante notar-se a simbologia dos
doze hostes ou acompanhantes para a história do cristianismo. Não seria mais correto e interessante situarmos so-
ciologicamente esse predicado de majestade e de poder soberano tendo em atenção mais a reunião e manipulação
eficaz das insígnias de autoridade do que propriamente um discurso relacionando soberania e direito divino? Em
caso positivo, o grande mistério seria exatamente o anverso dessa majestade modelar romana, isto é, o cristianismo
puro e simples. Cf. TITUS LIVIUS. The History of Rome. London: Henry G. Bohn, York Street, Covent Garden, 1853,
p. 13.
Pedro Brocco | 111
138
Luis Frayle Delgado diz que às lições de Vitoria assistiam às vezes até mil alunos, muitos dos quais iam dedicar-se
ao ministério sagrado, à confissão e ao conselho acerca de todas as questões morais. Cf. DELGADO, Luis Frayle.
Estudio Preliminar, In VITORIA, Francisco de. La Justicia. Madrid: Tecnos, 2003.
112 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
139
VITORIA, Francisco de. De indis, op. cit, p. 62 e ss.
140
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 113
141
Cf. RUIZ, Rafael. O sal da consciência: probabilismo e justiça no mundo ibérico. São Paulo: Instituto Brasileiro de
Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull), 2015.
114 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Como, por outro lado, ouvimos falar de tantas matanças e espoliações de ho-
mens inofensivos, de tantos senhores despojados de suas posses e domínios
particulares, se pode duvidar com razão se tudo isso foi feito com direito ou
com injustiça. Assim, pois, essa discussão não parece de todo inútil (...)142
142
VITORIA, Francisco de. De indis, op. cit., p. 65.
143
Idem, p. 66.
Pedro Brocco | 115
144
Idem, p. 82.
116 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
(3) “Se alguns bárbaros se converterem a Cristo e algum de seus príncipes quisesse
restaurá-los à idolatria pela força ou pelo medo”
(4) “Se boa parte dos bárbaros fosse convertida a Cristo”
(5) “A tirania, o sacrifício de inocentes, a antropofagia”
(6) “Por uma verdadeira eleição voluntária”
(7) “A razão de amizade e aliança”
E o criptotítulo:
(8) “Os bárbaros diferem muito pouco dos dementes e não são aptos para constituir
e administrar uma república legítima. Necessidade de tutela”
145
Idem, p. 130.
118 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Vitoria já intuía que a conversão dos índios seria a principal arma dos
espanhóis, tendo em vista que a atual forma de colonização, baseada na
extração de recursos e aniquilação dos povos nativos, era severamente
contestada pelos religiosos atuantes no Novo Mundo, como Las Casas.
Ocorre que não havia ainda uma ordem com estrutura e orientada para
um plano de conversão em larga escala e em nível mundial, como seria a
Companhia de Jesus poucos anos depois.
Assim, podemos perceber que o primeiro título embasa uma circula-
ção irrestrita de pessoas e coisas e, em efeito cascata, os títulos posteriores
baseiam-se na conversão e propagação da fé cristã, não sendo exagero di-
zer que todos eles, de alguma maneira, dependem em maior ou menor
grau dessa conversão.
Por fim, sublinhemos duas contradições de Francisco de Vitoria.
O criptotítulo, isto é, o oitavo e último presente na conferência,
mesmo que não apareça como um título lícito, é introduzido estranha-
mente por Vitoria como “um outro título que poderia não certamente
afirmar-se, mas se colocaria em discussão e pareceria legítimo a alguns.
Eu não me atrevo a tê-lo por bom nem o condenar em absoluto”. É o título
segundo o qual os índios diferenciam-se muito pouco dos dementes e pa-
recem não ser aptos para constituir e administrar uma república legítima,
demandando uma tutela por parte dos espanhóis: “por eso no tienen unos
leyes convenientes, ni magistrados, y ni siquiera son lo bastante capaces
para gobernar la familia. De aquí que carezcan también de letras y artes,
no sólo de artes liberales, sino también mecánicas, y no tengan una agri-
cultura desarrollada; y carezcan de artesanos y otras muchas cosas,
comodidades que son provechosas y hasta necesarias para la vida hu-
mana”146. Aqui Vitoria parece entrar em contradição com um trecho já
citado anteriormente, que se encontra na Quarta Proposição da primeira
parte da conferência, que diz respeito ao fato de os índios possuírem pleno
domínio privado e público. Ali Vitoria diz que “no son dementes sino que
a su manera tienen uso de razón (...) tienen certo orden en sus cosas (...)
146
Idem, p. 148.
Pedro Brocco | 119
147
Os relatos de Hernán Cortés e seus soldados acerca do maravilhamento diante de Tenochtitlán corroboram esse
ponto de vista.
148
Idem, p. 150.
149
Idem, ibidem.
120 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
150
Com isto se pretende também chamar atenção para o fato de que mesmo que o direito um dia possa encontrar
sua autonomia epistemológica, ainda assim depende do intérprete e de sua visão de mundo.
151
AGNOLIN, Adone. Jesuítas e Selvagens, op. cit., p. 426.
Pedro Brocco | 121
152
Idem, p. 427.
122 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
153
TEGLIA, Vanina María. “El nativo americano en Bartolomé de Las Casas: la proto-etnología ‘colegida’ de la polé-
mica”. Latinoamérica. Revista de Estudios Latinoamericanos [on-line], 2012, Acesso em 16 de agosto de 2018.
Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=64023055009.
II
1
SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 38.
124 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
2
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São
Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000, p. 14.
3
SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia. op. cit., p. 21.
Pedro Brocco | 125
todos pardos, todos nus, sem nenhuma cousa que cobrisse suas vergonhas [...]
e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram.
Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar
quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de
linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe deu um
sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas verme-
lhas e pardas, como de papagaio.5
4
Idem, p. 22.
5
Idem, p. 29.
126 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não
terem a sua como ela”6.
A terra fica praticamente desabitada, exceto pela construção de algu-
mas feitorias pelos portugueses, e explorada em regime de monopólio real
(isto é, mediante cobrança de impostos pela Coroa portuguesa) com con-
cessões a burgueses lisboetas, como é o caso de Fernão de Noronha, o qual
realiza incursões no território em busca de pau-brasil, originalmente cha-
mado de ibirapitanga pelos índios tupi da costa. A planta cobria larga faixa
litorânea do território, chegava a quinze metros de altura e a espécie apre-
sentava troncos, galhos e vagens cobertos por espinhos. A madeira era
utilizada para a construção de móveis finos e de seu interior era extraída
uma resina avermelhada, boa para uso como corante de tecidos. Em suma,
a exploração dos recursos da terra nasce para e pelo luxo. Schwarcz e Star-
ling afirmam que se calcula que na época existiam cerca de 70 milhões de
espécimes, logo dizimados e extraídos pelo regime de escambo a partir da
força de trabalho da população nativa.
Interessante é a circulação do nome da planta pelo imaginário euro-
peu, há pelo menos 600 anos falava-se já algo próximo de “Brasil”:
Já nos anos 900 d. C. o produto podia ser encontrado nos registros das Índias
Orientais, em meio a uma série de plantas que possibilitavam a produção de
um corante vermelho. Tanto a madeira como o corante eram conhecidos por
diferentes nomes – “brecilis”, “bersil”, “brasil”, “brazily” –, sendo todos deri-
vados do nome latino “brasilia”, cujo significado é “cor de brasa” ou
“vermelho”. Na Europa, o primeiro registro do desembarque de uma “kerka
de bersil” data de 1085, na França. Já Américo Vespúcio, na expedição de Gas-
par de Lemos de 1501, anota a presença da rica madeira na embarcação.7
6
Cf. CUNHA, Manuela Carneiro da. “Imagens de Índios no Brasil: O Século XVI”. Estudos Avançados, v. 4 n. 10. São
Paulo, USP, 1990, p. 93.
7
SCHWARCZ e STARLING, op. cit., p. 32.
Pedro Brocco | 127
8
Idem, ibidem.
9
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil, op.
cit.
128 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
uma misteriosa ilha, a Ilha dos Amores10. Seria uma ressonância da pre-
sença misteriosa e curiosa daquele território ultramarino português na
América, desconhecido por Camões e, no entanto, poroso às fantasias eu-
ropeias? Uma fantasia de ilha afortunada ou o avesso do europeu, o Brasil
aparece também como a projeção do outro e do estranho ao qual se apro-
xima com um misto de curiosidade, admiração, fascínio e indignação:
deve-se convertê-lo à civilização europeia. O Brasil, um outro tão próximo,
a partir dos ensaios de Montaigne, constitui-se mais como outro do que
uma ilha do amor: “Brasil, Terra de Santa Cruz, Terra dos Papagaios, Amé-
rica portuguesa, ou qualquer que fosse o nome escolhido, designava uma
ambivalência mas também uma certeza: esse local nascera desempe-
nhando o papel de um ‘outro’, fosse na sua natureza ou nos seus
naturais”11.
Uma vez que a França passava cada vez mais a desrespeitar o Tratado
de Tordesilhas e a fazer incursões pelo litoral da América portuguesa (de
onde decorre a famosa frase de Francisco I da França: “Gostaria de ver a
cláusula do testamento de Adão que dividiu o mundo entre Portugal e Es-
panha e me excluiu da partilha”12), Portugal institui o sistema das
capitanias hereditárias em seu território americano em 1534, dividindo o
Brasil em catorze capitanias, quinze lotes e doze donatários, doando imen-
sas porções de terra para os donatários (particulares) colonizarem-nas
10
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto: Porto Editora, 2014, pp. 287-310. Sobretudo o trecho:
Oh! Que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na menhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Milhor é esprimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode esprimentá-lo.
11
SCHWARCZ e STARLING, op. cit., p. 33.
12
Idem, p. 30.
Pedro Brocco | 129
13
Houve donatarias que receberam pouco ou nenhum investimento, encontrando-se em situação de abandono, so-
bretudo as “capitanias de cima”, como a do Maranhão. Cf. SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil: 1500-1627.
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1982.
14
Seu processo pode ser consultado sob o número 8821 do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, na Torre
do Tombo.
Pedro Brocco | 131
15
SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil: 1500-1627. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Univer-
sidade de São Paulo, 1982, p. 113.
16
João Adolfo Hansen observa que tal fato se dá em 1545. Cf. HANSEN, João Adolfo. Manuel da Nóbrega. Recife:
Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010, p. 22.
17
Cf. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, 2012, p.
165.
18
Hansen observa que sob o governo de D. João III (1521-1557) o Império colonial português se desmantela: “A Índia
passou a ser governada por corruptos e os abusos colonialistas causaram inumeráveis guerras com os rajás indianos,
esgotando as finanças do Reino”. HANSEN, op. cit., p. 56.
132 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
mais sistemática no Brasil com o advento do governo geral. Ainda que te-
nha sido criado para desbaratar o caos e a ineficiência administrativa do
território brasileiro, com excessos de poderes, liberdades e privilégios de
seus capitães, a nascente burocracia lusa não foi jamais isenta dos mesmos
ímpetos de voluntarismo, apego aos privilégios e tendências corruptas que
procurava evitar: uma breve análise da composição administrativa do go-
verno geral combinada com a dinâmica colonial confere sentido a esta
afirmação19.
Tal sentido, no entanto, há que ser confrontado com recentes estudos
sobre o tema como o de Jorge Caldeira20. Para Caldeira, em um itinerário
que será reproduzido em tópico separado a seguir, houve um esforço ini-
cial para a construção de um governo centralizado tocado por agentes que
circulavam em torno das ordens militares, pequena fidalguia e dos primei-
ros técnicos do governo: a chamada nobreza togada, uma nobreza oriunda
da mistura de empreendedorismo e nobilitação menor21.
Se o Estado do Brasil se tornou terreno para que vicejassem cepas
consistentes de tal tecnicismo de governo aliado a uma fidalguia togada ou
letrada, é certo também que os primeiros esforços se deram no sentido de
construção de alianças com as lideranças tupi.
Caldeira é cuidadoso ao examinar o Regimento que institui o governo
geral, e podemos aqui neste estudo complementá-lo ao dizer que ali está
um entendimento que vai na direção da doutrina de Salamanca e de Fran-
cisco de Vitoria. D. João III afirma no Regimento: “A principal tentativa
19
Um exemplo foi a nomeação de Pero Borges como primeiro Ouvidor-geral do Brasil, uma espécie de “Ministro da
Justiça”. Borges, ex-corregedor de Justiça em Elvas, no Alentejo, é aí condenado a pagar à custa de sua fazenda verba
extraviada da construção de um aqueduto, desvio no montante de 114.064 reais, equivalentes a um ano de seu salário
como corregedor (“recebia indevidamente quantias de dinheiro que lhe eram levadas à casa, provenientes das obras
do aqueduto, sem que fossem presentes nem o depositário nem o escrivão”). Não obstante, D. João III o nomeia para
o cargo de Ouvidor-geral do Brasil no governo de Tomé de Sousa, tendo acumulado o cargo de provedor-mor no
governo seguinte de Duarte da Costa. Cf. ALMADA, Vitorino de. Elementos para um Dicionário de Geografia e História
Portuguesa, publicado pelo Conselho de Elvas em 1888, reproduzido por AZEVEDO, Pedro de. História da Coloniza-
ção Portuguesa do Brasil, vol. 3. Porto: Litografia Nacional, 1926 in BUENO, Eduardo. A coroa, a cruz e a espada: Lei,
ordem e corrupção no Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2016, pp. 65-66. Não se tratando aqui de uma tese estrita
em História, o trabalho de pesquisa e condensação de fontes realizado por Bueno é bem-vindo.
20
CALDEIRA, Jorge. História da riqueza no Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2017. Idem.
21
Idem, p. 59.
134 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
minha é que se convertam à nossa santa fé, logo que é razão que se tenha
com eles todos os modos que puderem ser para que o façais assim. E o
principal há de ser escusardes fazer-lhes guerra porque com ela se não
pode ter a comunicação que convém que se com eles tenha”22. Ora, consi-
derando a hipótese histórica de que o próprio D. João III tenha enviado
uma carta com selo real e assinada de próprio punho tendo como destina-
tário Diogo Álvares Caramuru, é de se interpretar o trecho colocando-o no
interior de um planejamento de formação de alianças com as elites tupis
que governavam o território. Não é menos reveladora da adoção da dou-
trina de Salamanca, analisada em capítulos iniciais deste trabalho, a
escolha pela tópica da comunicação aliada a uma escolha de estabeleci-
mento pacífico no território, algo que remonta ao ius communicationis que
Vitoria aborda em sua relectio sobre o poder civil.
Neste momento, tanto portugueses quanto franceses buscavam apro-
ximação com os tupis lançando mão da mesma estratégia: a formação de
alianças e pactos que frequentemente, para maior certeza e solidez, pas-
sava pela questão do casamento com filhas dos líderes tupis. Assim foi
como Caramuru e João Ramalho, portugueses, lograram ingressar na es-
trutura de parentesco e poder tupi.
A compreensão da supremacia da pequena fidalguia e dos técnicos de
governo em Portugal, no entanto, deve ser lida no interior de um projeto
anterior, impulsionador das navegações e do desenvolvimento econômico
português, que também foi uma sobreposição de poder religioso e secular,
religioso e econômico, com a suposta transferência dos capitais dos tem-
plários para Portugal e a fundação da Ordem de Cristo. Retomando este
capítulo dos estudos de Caldeira, considerados relevantes para este traba-
lho, será iniciado o próximo tópico.
22
Idem, p. 62.
Pedro Brocco | 135
23
Idem, p. 31.
24
CALDEIRA, Jorge. Nem céu nem inferno: ensaios para uma visão renovada da história do Brasil. São Paulo: Três
Estrelas, 2015, p. 170.
136 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
25
Idem, p. 172.
26
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 137
27
Idem, p. 175.
28
Idem, p. 171.
Pedro Brocco | 139
29
Idem, p. 169.
30
Idem, p. 172.
140 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
31
Idem, pp. 170-171.
Pedro Brocco | 141
Repositório de informações
Informação Repositório de
informações
Informação Repositório de
informações
32
CALDEIRA, Jorge. História da riqueza no Brasil, op. cit., p. 80.
33
Este fluxograma de circulação de informações que representa a produção, processamento e gestão informacional
da Companhia de Jesus é muito próximo da estrutura dos processadores dos computadores modernos, cujos reposi-
tórios de informações são definidos como cache. Neste sentido, o estudo da gestão informacional jesuíta tem grande
relevância para uma história da cibernética.
142 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
34
Remete-se, aqui, à importante pesquisa de ALDEN, Dauril. The Making of an Enterprise: The Society of Jesus in
Portugal, Its Empire, and Beyond, 1540-1750. Stanford: Stanford University Press, 1996.
Pedro Brocco | 143
João Adolfo Hansen toca nestes pontos em seu estudo sobre Manuel
da Nóbrega35, como aspectos fundamentais cuja presença ajuda em grande
medida o estudioso a compreender todos os aspectos envolvidos não só na
formação de um jesuíta no século XVI, mas também na administração co-
lonial que se buscava realizar no Brasil.
Começando pela concepção de tempo, pode-se observar, seguindo o
trabalho de Hansen, outro tipo de relação, metafísica, com a temporali-
dade e a teologia aí implícita: “A sociedade portuguesa do século XVI não
é burguesa, iluminista ou liberal. Sua experiência do tempo é outra, dife-
rente da experiência temporal moderna, pois pressupõe a presença
providencial de Deus como Causa e Fim da sua história”36,37.
A noção de tempo relaciona-se às de poder, pessoa humana, lingua-
gem e realidade, na esteira do registro político teológico-católico:
35
HANSEN, João Adolfo. Manuel da Nóbrega. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010, pp. pp.
11-47, passim.
36
Idem, p. 11.
37
Aqui, é de se mencionar que esta concepção de Deus como causa e fim remete à intrincada formação religiosa e
ideológica do homem europeu católico, que pode ser lida a partir das cinco vias de Tomás de Aquino para a compro-
vação da existência de Deus, na Suma Teológica, q.2, a.3 (Utrum Deus sit), onde Tomás de Aquino elenca cinco
provas da existência divina, quais sejam: i) o movimento, pois todos os corpos se movem em decorrência de outro,
logo existe um “primeiro motor imóvel” (hipótese de Aristóteles); ii) causalidade eficiente, assim como o movimento
necessita de um primeiro motor que movimente os corpos sem ser por nenhum deles movimentado, a causalidade
exige que exista uma causa eficiente primeira, que seria Deus; iii) o ser possível ou contingente e o necessário, se-
gundo a qual é forçoso que exista algo que seja necessário por si mesmo e que não tenha fora de si a causa de sua
necessidade, mas que seja causa das necessidades dos demais; iv) os graus de perfeição que há nos seres, visto que
uns são mais ou menos bons ou mais ou menos verdadeiros ou nobres, e isto se diz levando em conta a proximidade
a um máximo de bondade, nobreza e verdade, e este máximo analogamente seria atribuível a Deus; v) o governo do
mundo, pois existiria um ser inteligente que dirigiria todas as coisas naturais para a sua finalidade, e este ser seria
Deus. Cf. AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica. Madrid: BAC, 1964, reimpressão de 2014, pp. 118-122. Assim
se observa que a história e o tempo seriam localizáveis dentro do esquema ideológico de Deus como causa eficiente
de todas as coisas. Veremos no último capítulo deste livro, sobre Luís Fróis e a presença jesuíta no Japão, como a
visão de mundo do zen budismo irá questionar os próprios alicerces da cosmovisão tomista aristotélica ao colocar o
Vazio, e não Deus, como o fundamento da realidade.
Pedro Brocco | 145
38
Idem, pp. 11-12.
39
Idem, pp. 12-13.
146 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Todo dia, devem tomar uma hora à noite para tornar comum o resultado do
dia e o objetivo do dia seguinte. Para as questões passadas e futuras, devem
pôr-se de acordo por meio de voto ou outra maneira. A cada três dias, cada
um deve pedir aos outros que o corrijam em tudo que lhes parecer útil. O cor-
rigido não deve replicar, a menos que lhe seja pedido que explique o que foi
objeto de correção. No dia seguinte, outro padre pedirá que o corrijam e assim
por diante. Desse modo, todos poderão ajudar-se com toda a caridade e para
maior edificação em toda parte. Manhã, resoluções; duas vezes por dia, exame.
A vocação da Companhia não permite que o padre se abstenha de relaciona-
mentos com outras pessoas.40
40
Idem, pp. 13-14.
Pedro Brocco | 147
3. Sendo lento para falar, terei o costume de escutar e calma, a fim de pene-
trar e de conhecer os pensamentos, sentimentos e vontades dos que falam,
para poder melhor responder ou não dizer nada.
4. Falando de assuntos do Concílio ou outros, sejam dadas as razões dos pon-
tos de vistas opostos, para não tomar ares de se apegar ao próprio parecer,
esforçando-se por não deixar ninguém mal satisfeito.
5. Não citarei a autoridade de nenhuma pessoa, sobretudo se for de alta ca-
tegoria, salvo em questões examinadas maduramente. Vou adaptar-me a
todos sem apegar-me a ninguém.41
41
LOYOLA, Inácio de. Écrits. Paris: Desclée de Brouwer, 1991. Trad. brasileira: Cartas Escolhidas. São Paulo: Edições
Loyola, 2008, p. 82. Grifos meus.
42
Até este ponto, a Igreja aparecia como instituição fundamental e fundante da cultura europeia, ao caucionar o
surgimento das Universidades e da sistematização das ciências produzidas pelo âmbito universitário. Assim, racio-
nalismo e empirismo produzem-se por intermédio da circulação de pessoas e ideias pela Europa. Assim também são
criadas e sistematizadas as metodologias de indagação e de leitura da natureza. As ordens regulares desenvolvidas
em monastérios e cenóbios haviam legado à Europa a conservação e a tradução de inúmeras obras e tratadas do
mundo antigo, helênico e latino, em um momento em que a Europa via-se reduzida a uma colcha de retalhos de
povos rurais e semi-nômades, incapazes de levar adiante tal empreitada de modo organizado. O objetivo de uma
148 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
maior circulação do conhecimento mediante a fundação da Universidade alia-se ao surgimento das novas ordens
regulares, urbanas e abertas à ação apostólica direta na sociedade.
Pedro Brocco | 149
43
De fato, a Companhia possuiu atividades mercantis, quando se decidiu que iria financiar suas próprias atividades.
150 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
A liberdade cristã não consiste em estar isentos das justas leis humanas, nem
em estar imunes da justa coação do castigo dos pecados quando se cometem
contra a paz e a justiça; mas consiste em uma servidão livre, por amor e cari-
dade, que não contradiz o regime humano, mas antes o ajuda, se efetivamente
existe, e se não existe, a supre com coação.44
44
SUÁREZ, Francisco, S.J. Defensa de la Fe Católica y Apostólica contra los Errores del Anglicanismo. Reproducción
anastática de la edición príncipe de Coimbra 1613. Versión Española por José Ramón Eguillor Muniozguren, Madrid,
Instituto de Estudios Políticos, 1970, 4v., v. III, IV. In: HANSEN, op. cit., p. 61.
Pedro Brocco | 151
45
Cf. neste sentido HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2014.
46
HANSEN, op. cit., p. 52.
47
DIAS, Manuel Nunes. O Capitalismo Monárquico Português (1415-1549). Contribuição para o estudo das origens
do capitalismo moderno. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra – Instituto de Estudos Históricos
Dr. António de Vasconcelos, 1964, 2 v.
48
HANSEN, op. cit., p. 52.
152 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
49
Idem, ibidem.
50
Idem, p. 53.
51
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 153
52
Idem, pp. 53-54.
53
Idem, p. 54.
154 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
54
Idem, p. 57.
55
Idem, p. 56.
Pedro Brocco | 155
56
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto: Porto Editora, 2014, pp. 239-241.
57
Idem, Canto Primeiro, p. 67
Pedro Brocco | 157
58
Idem, p. 65.
158 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
59
RAMOS, Emanuel Paulo. Introdução literária a Os Lusíadas, op. cit., p. 44.
60
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 159
Figura 5: Jesuítas enfrentando os turcos na batalha de Lepanto. Museu Nacional da Colômbia, Bogotá.
160 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
61
Trecho presente em HANSEN, op. cit., p. 14 e em LOYOLA, op. cit., p. 82: aqui, percebe-se uma ligeira mudança
no sentido do texto: a tradução optou por verter a última frase do trecho da seguinte forma: “Mas eu me regularei
pela comodidade e a situação do meu interlocutor, a fim de levá-lo a servir a maior glória de Deus”. Grifos meus.
162 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
62
“A própria estrutura da crença legitima o pertencimento ‘de direito’ à comunidade humana: é isso que fazem os
missionários, dando uma função ‘civil’ às ‘crenças’ e, portanto, uma perspectiva civilizadora à evangelização”,
GASBARRO, Nicola. “Missões: a civilização cristã em ação”, p. 86, in MONTERO, Paula (Org.). Deus na aldeia: missi-
onários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006.
63
NÓBREGA, Manoel da. Cartas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1988. Doravante, CB. Trata-se de uma coletânea de cartas impressas do padre Nóbrega, publicada em 1886 pela
Imprensa Nacional, com notas de Valle Cabral e Rodolpho Garcia. Reúne cartas dispersas cujos originais encontram-
se na Biblioteca Nacional, na Torre do Tombo, na Biblioteca Pública de Évora, embora seja possível haver muitas
outras cartas de Nóbrega ainda não conhecidas. Tendo vivido até 1570, haveria um período de dez anos não contem-
plado pelas Cartas do Brasil.
164 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
64
Era comum que jesuítas e colonos nestes primeiros anos se referissem aos índios como negros. Cf. MONTEIRO,
John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
65
NÓBREGA, CB, p. 72. Carta a Simão Rodrigues, Bahia, 1549.
66
A carta é escrita depois de 31 de março e antes de 15 de abril, conforme se depreende da análise da carta subse-
quente, também enviada a Simão Rodrigues, quando a certa altura Nóbrega diz: “ontem foi Domingo de Ramos”,
isto é, 14 de abril. Cf. CB, p. 77. A armada de Tomé de Sousa, onde vieram os primeiros jesuítas, partiu de Lisboa no
dia 1 de fevereiro de 1549, chegando à Bahia no dia 29 de março.
166 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
67
Cf. DE BOER, Wietse. The Conquest of the Soul: Confession, Discipline, and Public Order in Counter-Reformation
Milan. Leiden: Brill, 2001.
68
PROSPERI, Adriano. Il Concilio di Trento: una introduzione storica. Torino: Giulio Einaudi, 2001.
69
CB, pp. 72-73. Carta a Simão Rodrigues, Bahia, 1549.
70
Na página 73 da edição consultada.
Pedro Brocco | 167
Os selvagens acreditam numa coisa que cresce de forma parecida a uma abó-
bora. É grande como uma panela de meia pinta e oca por dentro. Eles enfiam
um bastão através dela, recortam um buraco com a forma de uma boca e co-
locam pequenas pedras em seu interior, de modo a fazer um chocalho. Com
isso fazem barulho quando cantam e dançam. Dão-lhe o nome de maracá.
Cada homem tem o seu próprio maracá. [...] Há algumas pessoas entre eles a
que chamam pajés. Eles são ouvidos como aqui se ouvem os adivinhos. Per-
correm o território uma vez ao ano, vão de cabana em cabana e anunciam que
um espírito vindo de muito longe esteve com eles e lhes delegou poder, que
todos os chocalhos – os maracás – poderiam falar e receber poder; se eles, os
pajés, pedirem, essas coisas lhes serão concedidas. Cada qual então faria o voto
de que seu chocalho recebesse poder. Preparam uma grande festa, bebem,
cantam e fazem adivinhações, e se entregam a diversos usos estranhos.72
71
Idem.
72
STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil: primeiros registros sobre o Brasil. Porto Alegre: L&PM, 2013 [1557], Se-
gunda parte, Capítulo 23, “No que acreditam”.
73
WILDE, Guillermo. “El enigma sonoro de Trinidad: Ensayo de Etnomusicología Histórica”. Revista Resonancias
23: 41-66. (Instituto de Música de la Pontificia Universidad Católica de Chile), 2008.
168 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Figura 6: Sequência de anjos músicos em um dos frisos da missão de Trinidad. Da direita para a esquerda, nota-se
que o primeiro e o quinto anjos portam um chocalho ou maracá. Junho de 2016. Arquivo pessoal.
Figura 7: Anjo músico de Trinidad segurando um maracá. A representação de movimento transmitida pela barra
de sua vestimenta dá a ideia de que o anjo pudesse estar dançando. Arquivo pessoal.
Pedro Brocco | 169
... en mitad de uma plaça teniam hecha una casa grande, y en ella otra, muy
peqña: en la qual tenían una calabaça figurada como cabeça humana muy ata-
viada a su modo, y deziam q ãqe era su scto. y llamavanle Amabozaray que
quiere decir persona que dança y huelga que tenia virtud de hacer que los vie-
jos se tornassem moços, los Indios andávã pintados cõ tintas, aun los rostros,
y emplumados de plumas de diversos colores baylãdo, y haziendo muchos ges-
tos, torciendo las bocas y dãdo aullidos como perros, cada uno traya en la
mano una calabaça pintada diciendo que ãqllos eran sus sanctos, los quales
mãdavã a los Indios no trabajassen porq los mãtenimientos nacerian por si, y
que las flechas yrian al campo a matar la caça. Estas y otras muchas cosas q
eran para llorar muchas lagrimas vi…74
Tal trecho pode ser comparado aos “anjos músicos” de forma inte-
ressante: nos frisos e nos relatos, figuras portam uma cabaça; porém, os
dos frisos aparecem em forma de anjos; os primeiros são índios que apa-
recem comparados a animais (dando aulidos75 como cachorros) e usam a
cabaça de acordo com suas crenças e ritos.
74
Carta de Iuan de Azpilcueta. In: Copia de unas cartas de algunos padres y hermanos dela compañía de Iesus que
escrivieron dela India, Iapon y Brasil a los padres y hermanos de la misma compañía, en Portugal trasladadas de
portugues en castellano. Fuerõ recebidas el año de mil y quinientos y cincuenta y cinco. Optei por manter a redação
original.
75
Aullidos ou aulido: grito de animais, uivo; do castelhano aullido. Cf. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário eti-
mológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010, p. 69.
170 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Este Gentio está mui aparelhado a se nelle fructificar por estar já mais domes-
tico e ter a terra Capitão, que não consentiu fazerem-lhe agravos como nas
outras, partes. O converter todo este Gentio é mui fácil cousa, mas sustental-
o em bons costumes não póde ser sinão com muitos obreiros, porque em cousa
nenhuma crêm e estão papel branco para nelles escrever à vontade, si com
exemplo e continua conversação os sustentarem. Eu quando vejo os poucos
que somos, e que nem para acudir aos Christãos bastamos, e vejo perder meus
proximos e creaturas do Senhor á mingua, tomo como remédio clamar ao Cre-
ador de todos e a Vossa Alteza que mandem obreiros e a meus Padres e Irmãos
que venham.78
76
CB, p. 125. Carta a D. João III, Olinda, 1551.
77
Idem, ibidem.
78
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 171
79
CB, p. 73. Carta a Simão Rodrigues, Bahia, 1549.
80
Idem, pp. 73-74.
172 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
É neste sentido que Nóbrega diz a Simão Rodrigues que o que mais
importava naquele momento para a missão brasileira era o básico e o in-
fraestrutural: tecidos para cobrir os índios e pessoal para percorrer as
aldeias indígenas e levar a eles o paradigma de vida cristã. Diz Nóbrega:
“Cá não são necessarias letras mais que para entre os Christãos nossos,
porém virtude e zelo da honra de Nosso Senhor é cá mui necessário”81.
Ao mesmo tempo em que pede cristãos virtuosos a Simão Rodrigues,
Nóbrega confessa temer o mau exemplo dos cristãos portugueses que já
habitavam a terra. Fica clara a questão já posta por Nóbrega na primeira
carta escrita no Brasil de que um dos principais obstáculos para a conver-
são será a sociedade civil composta por colonos cristãos já instalados no
território. Se por um lado marca a docilidade do gentio e a facilidade de
sua conversão, teme pelo “mau exemplo que o nosso Christianismo lhe
dá”:
81
Idem, p. 74.
82
Idem, p. 75.
Pedro Brocco | 173
83
Cf. neste sentido a pesquisa de ALDEN, Dauril, op. cit.
84
Idem, p. 78.
85
Idem, ibidem.
174 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
86
CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte. « Une Eglise aux dimensions du monde: expansion du catholicisme et
ecclésiologie à l’époque moderne » In: Les Clercs et les princes. Paris: Presses de L’École nationale de Chartes, 2003,
pp. 313-330.
Pedro Brocco | 175
87
GÓMARA, Francisco López de. Hispania victrix, 1552, prefácio endereçado a Carlos V, citado por Joseph Perez em
L’Espagne du XVIe siècle. Paris: 1973, p. 187, In: CASTELNAU-L’ESTOILE, op. cit.
88
No espírito da Propaganda Fide podemos situar ainda o fenômeno do “papa pop” característico do século XX:
figuras de papas cuja circulação e uso das próprias imagens atingem grandes massas populacionais e atuam em um
projeto de conversão em larga escala com a utilização da difusão de imagens pela Televisão e pelo uso recente da
Internet e das redes sociais. Nesta linha estão ao menos dois nomes principais: o de Karol Wojtyła (João Paulo II) e o
de Jorge Mario Bergoglio (Francisco). No caso de João Paulo II cabe ainda citar sua atuação decisiva para o fim do
comunismo na Polônia e na Europa, coroado pela queda do Muro de Berlim, em 1989, isto é, uma atuação política
de grande envergadura para uma mudança de conjuntura e do curso da História. O caso de João Paulo II é crucial
para esta análise do ponto de vista histórico e sociológico: Karol Wojtyła, em um momento decisivo da História e
quando a Polônia era peça-chave na Guerra Fria, foi o primeiro papa polonês e não-italiano desde o holandês Adriano
VI em 1522, ou seja, depois de um período de 456 anos de papas italianos. Sua atuação como um dos papas que mais
viajou pelo mundo, em um momento de rápida difusão e circulação de imagens, situa-se, segundo a perspectiva aqui
levantada, no interior do macrodispositivo psicagógico, de longa duração, afinado pela Igreja Católica desde o século
XVI, ingrediente formador das mentalidades e afetos acerca da noção de globalização.
176 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
89
Embora a criação da Propaganda Fide apareça na linha de interpretação segundo a qual a Igreja tenta retomar
poder e hegemonia no mundo frente às monarquias ligadas ao regime jurídico do patronato, um verdadeiro regime
jurídico-administrativo por meio do qual os príncipes recebiam delegação do papa para financiar a construção de
igrejas, manter a hierarquia eclesiástica, enviar religiosos encarregados de converter os pagãos, e em troca eles re-
cebiam o grande privilégio de propor os próprios bispos nas possessões ultramarinas, receber o dízimo e administrar
os impostos eclesiásticos. Cf. CASTELNAU-L’ESTOILE, op. cit., p. 318.
90
Ou jus missionarium na terminologia proposta em seu trabalho aqui referenciado.
91
CASTELNAU-L’ESTOILE, op. cit., p. 325.
Pedro Brocco | 177
92
Idem, p. 326.
178 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
que mesmo fundada em um direito cujo sentido último seria o direito di-
vino93, o jurídico tomado no século XVI como a criação de um ambiente de
vida social capaz de organizar e regular um horizonte de suposições razo-
áveis de mútua expectatividade94, o papel exercido pelo termo “jurídico”
não foi alterado desde então. O que se observa a partir do século XVIII, de
modo especial, é a tentativa de fundar o direito epistemologicamente em
um campo não religioso, ao mesmo tempo em que também se busca fazer
o mesmo com a moral. Deve-se em grande parte a Kant a configuração de
uma moral alheia à religião e submetida à Razão, bem como as noções de
agir conforme os imperativos categórico e hipotético. Tais conceitos, rela-
cionados também aos de liberdade e autonomia, irão dar origem às noções
de autonomia e heteronomia, fundamentais à epistemologia de uma fu-
tura ciência do direito.
No entanto, há que se observar que a problemática envolvendo o sen-
tido do jurídico nas missões, o jus commune e o jus missionarium, não
deixa de ser importante para o direito laico: estão desde já postas discus-
sões envolvendo aplicação da lei, interpretação e o papel do intérprete. Pois
ainda que a ideia de obediência absoluta ao papa conjugada com a liber-
dade de atuação em terras de missão distantes de Roma soe paradoxal, os
jesuítas buscavam obter reconhecimento de Roma, através de bulas pon-
tifícias, e alcançar legitimidade de suas práticas, o que torna sua atuação
cada vez mais objeto de divergências e debates em Roma entre os mem-
bros mais conservadores da cúria.
Assim, pode-se compreender por que as bulas que desde o século XVI
concediam faculdades aos jesuítas, estabelecidas por Pio IV em 1563, reno-
váveis por vinte anos, duram até o ano de 1766, com Clemente XIII, quando
a Companhia já havia sido expulsa dos domínios portugueses e estava em
93
Fazendo-se aqui menção aos desenvolvimentos teóricos da Escola de Salamanca, com o direito natural e o ius
gentium, a partir dos conceitos de ius communicationis de Francisco de Vitoria. Tratamos dessas questões em capí-
tulo acima.
94
Esta é a definição de Marcus Fabiano Gonçalves para a noção de confiança: a suposição razoável de uma mútua
expectatividade (cf. GONÇALVES, M. F.; ARRUDA, Edmundo Lima. Fundamentação ética e hermenêutica: alternati-
vas para o direito. Florianópolis: CESUSC, 2002). Com efeito, o direito seria um saber capaz de caucionar a confiança
e fundamentar uma vida social e cooperativa possível.
Pedro Brocco | 179
vias de ser extinta pelo sucessor de Clemente XIII, Clemente XIV, pela bula
Dominus ac Redemptor, de 1773, sob grande pressão do embaixador espa-
nhol.
O que estava em jogo, então, na atuação jurídica jesuíta? Trata-se de
uma fina relação entre regulação social e atuação sobre os costumes, den-
tro de um projeto civilizacional. Sigamos a este respeito um trecho do
trabalho de Castelnau-L’Estoile:
Dans les bulles du XVIe siècle apparaît l’idée que les fidèles nouvellement
convertis ne peuvent être soumis au même régime d’exigence que les vieux
chrétiens. Les textes pontificaux sur le mariage se justifient en évoquant les «
faibles Indiens », incapables de supporter la continence. Ainsi, le pape
assouplit les règles du mariage en dispensant des empêchements de mariage
pour parenté et pour affinité ; ces empêchements étant le principal instrument
de pression de l’Église sur la société depuis le milieu du Moyen Âge.95
95
CASTELNAU-L’ESTOILE, op. cit., p. 326.
180 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
96
Idem, p. 327. Tradução livre.
Pedro Brocco | 181
97
Embora o sentido do barroco, sobretudo no campo estético, seja apreensível, inclusive no discurso cotidiano, me-
diante a contemplação das obras ligadas às artes plásticas e literatura, evocando a torção das formas, ímpetos de
fantasia e paixão, contrastes e extravagâncias, João Adolfo Hansen indica em trabalhos e conferências a improprie-
dade do uso do termo para fazer referência a tal período histórico. A classificação deste período ou algo como
“barroco” guarda influências de uma historiografia idealista elaborada no século XVIII, cujas características apontam
para classificações mais ou menos arbitrárias da História. Nada, segundo Hansen, relacionado às fontes da época,
aponta para a terminologia do “barroco”.
Pedro Brocco | 183
98
A carta não traz data, mas os organizadores estimam-na escrita na data provável de 1549.
99
NÓBREGA, CB, p. 97. Informação das terras do Brasil.
100
Há que se considerar nas cartas analisadas o fato de que nem todas foram escritas para a ampla circulação e a
leitura por um público além de membros específicos da Companhia de Jesus ou governadores e reis, como o caso de
Dom João III. Esta carta tem seu auditório formado por uma coletividade, e neste sentido é interessante notar como
ela é construída.
184 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
101
NÓBREGA, CB, p. 97.
102
Idem, pp.97-98.
103
Idem, p. 98. Os organizadores da edição observam em nota de rodapé que para Gabriel Soares, no Tratado des-
critivo do Brasil, de 1587, a mandioca era mais sadia do que o trigo, por ser de melhor digestão. Além disso, registra
que os governadores Tomé de Sousa, Duarte da Costa e Mem de Sá não comiam pão de trigo no Brasil, “por se não
acharem bem com elle, e assim fazem outras muitas pessôas”.
104
Perspectiva que demonstra afinidade com a Escola de Salamanca, a partir do ius communicationis de Francisco
de Vitoria.
105
Idem, pp. 98-99.
Pedro Brocco | 185
que até aquele momento a comunicação era feita com tupiniquins e tupi-
nambás (tamoios), estes últimos serão peça-chave na conquista do
território da futura cidade do Rio de Janeiro.
A importância de conhecer os costumes para a conversão ou cristia-
nização proporciona um mapa da configuração social sobre a qual se irá
atuar. Surgem já aqui as primeiras informações sobre o nome com o qual
os índios descrevem um possível Deus, ou uma potestade que possa se
passar pelo Deus cristão:
Dormem em redes d’algodão junto do fogo, que toda a noite têm aceso, assim
por amor do frio, porque andam nús, como também pelos Demonios que di-
zem fugir do fogo. Pela qual causa trazem tições de noite quando vão fora. Esta
gentilidade nenhuma cousa adora, nem conhece a Deus; sómente aos trovões
chama Tupane, que é como quem diz cousa divina. E assim nós não temos
outro vocabulo mais conveniente para os trazer ao conhecimento de Deus, que
chamar-lhe Pae Tupane106.
106
Idem, p. 99.
186 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
107
Idem, p. 101. Informação das terras do Brasil.
108
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 187
Quando captivam algum, trazem-n’o com grande festa com uma corda pela
garganta e dão-lhe por mulher a filha do Principal ou qual outra que mais o
contente e põem-n’o a cevar como porco, até que o hajam de matar, para o
que se ajuntam todos os da comarca a ver a festa, e um dia antes que o matem
lavam-n’o todo, e o dia seguinte o tiram e põem-n’o em um terreiro atado pela
cinta com uma corda, e vem um delles mui bem ataviado e lhe faz a pratica de
109
Cf. LESTRINGANT, Frank. O canibal: grandeza e decadência. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
188 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
seus antepassados; e, acabada, o que está para morrer responde, dizendo que
dos valentes é não temer a morte, e que elle também matára muitos dos seus
e que cá ficam seus parentes que o vingarão e outras cousas similhantes. E
morto, cortam-lhe logo o dedo pollegar, porque com aquelle tirava as frechas,
e o demais fazem em postas para comer, assado e cozido.110
110
NÓBREGA, CB, p. 100. Informação das terras do Brasil.
111
Cf. Como era gostoso o meu francês, dirigido por Nelson Pereira dos Santos, lançado em 1971, filme que o cinema
brasileiro produziu sobre essa tradição de relatos acerca da antropofagia no século XVI.
112
Cf. ONG, Walter J. Orality and Litteracy: The Technologizing of the Word. London: Methuen & Co. Ltd., 1982.
Pedro Brocco | 189
Quando morre alguns dos seus, põem-lhe sobre a sepultura bacias cheias de
viandas e uma rêde, em que elles dormem, mui bem lavada; e isto porque
crêm, segundo dizem, que depois que morrem tornam a comer e descansar
sobre a sepultura. Deitam-nos em umas covas redondas e, si são Principaes,
fazem-lhe uma choça de palma. Não têm conhecimento de Gloria nem Inferno,
sómente dizem que depois de morrer vão descançar a um bom logar, e em
muitas cousas guardam a lei natural. Nenhuma cousa própria têm que não
seja commum e o que um tem ha de partir com os outros principalmente si
são cousas de comer, das quaes nenhuma cousa guardam para o outro dia,
nem curam de enthesourar riquezas.115
113
Neste sentido, o direito positivo representa uma mudança epistemológica ao promover a sistematização e a de-
mocratização com o amplo acesso à tecnologia do direito, colocando-o orientado pelo plano da validade e do
procedimento e livrando-o do campo do direito consuetudinário, resquício de uma tradição oral.
114
Trata-se aí, também, da problemática acerca da noção de pessoa e de individuação, cujo pano de fundo foi estabe-
lecido pelos estudos de Marcel Mauss, que temos seguido neste livro.
115
NÓBREGA, CB, p. 100. Informação das terras do Brasil.
190 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
116
Idem, p. 101.
117
Trata-se do humanista espanhol Martín de Azpilcueta Navarro (1492-1586), tio de João de Azpilcueta Navarro,
jesuíta que chega com Nóbrega ao Brasil em 1549.
Pedro Brocco | 191
Mas é de grande maravilha haver Deus entregue terra tão boa, tamanho
tempo, a gente tão inculta que tão pouco o conhece, porque nenhum Deus têm
certo, e qualquer que lhes digam ser Deus o acreditam, regendo-se todos por
inclinações e apetites sensuaes, que está sempre inclinado ao mal, sem conse-
lho nem prudência. Têm muitas mulheres e isto pelo tempo em que se
contentam com ellas e com as dos seus, o que não é condenado entre elles.
Fazem guerra, uma tribu a outra, a 10, 15 e 20 leguas, de modo que estão todos
entre si divididos. Si acontece aprisionarem um contrario na guerra, conser-
vam-o por algum tempo, dão-lhe por mulheres suas filhas, para que o sirvam
e guardem, depois do que o matam com grande festa e ajuntamento dos ami-
gos e dos que moram alli por perto, e si delles ficam filhos, os comem, ainda
que sejam seus sobrinhos e irmãos, declarando ás vezes as próprias mães que
só os paes e não a mãe, tem parte nelles. E’ esta a cousa mais abominavel que
existe entre elles. Si matam a um na guerra, o partem em pedaços, e depois de
moqueados os comem, com a mesma solenidade; e tudo isto fazem com um
odio cordial que têm um ao outro, e nestas duas cousas, isto é, terem muitas
mulheres e matarem os inimigos, consiste toda a sua honra. São estes os seus
desejos, é esta a sua felicidade. O que tudo herdaram do primeiro e segundo
homem, e aprenderam daquelle qui homicida erat ab initio. Não se guerreiam
por avareza, porque não possuem de seu mais do que lhes dão a pesca, a caça
e o fructo que a terra dá a todos, mas sómente por ódio e vingança, sendo tão
sujeitos a ira que, si acaso se encontram em o caminho, logo vão ao pau, á
pedra ou á dentada, e assim comem diversos animaes, como pulgas e outros
coo este, tudo para vingarem-se do mal que lhes causam, o que vem deixa ver
que não tomaram ainda aquelle conselho evangelico de pagar o mal com o
bem. (...) Têm grande noção do Demonio e têm dele grande pavor e o encon-
tram de noite, e por esa causa sahem com um tição, e isto é o seu defensivo.118
118
Idem, pp. 90-91. Carta ao Dr. Navarro, Salvador, 1549.
192 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
O extenso trecho citado acima mostra como Nóbrega opta por ser
mais analítico acerca das inclinações e apetites dos índios, além de lançar
mão de questões teológicas, com seu mestre de Coimbra. Fica também
marcado na carta que os principais costumes que se pretendia extirpar
eram o da antropofagia e o da poligamia (“e nestas duas cousas, isto é,
terem muitas mulheres e matarem os inimigos, consiste toda a sua
honra”).
As citações em latim são abundantes e pode-se inferir que Nóbrega
realce aspectos de filosofia, teologia e ética ventilados por Navarro em sua
formação em Coimbra, como, por exemplo, ao falar da notícia que os ín-
dios têm de São Tomé, logo desloque o discurso para um trecho em que
discorre sobre a amizade entre os índios, em paralelo àquele da carta en-
viada aos irmãos e padres jesuítas em que dizia muito sinteticamente que
entre os índios nenhuma coisa própria há que não seja dividida em co-
mum: “Entre elles, os que são amigos vivem em grande concordia e amor,
observando bem aquilo que se diz: Amicorum omnia sunt communia”119.
Trata-se aqui da amizade, um tópico desenvolvido na tradição moral do
Ocidente desde a filosofia grega, de modo especial em Aristóteles120, che-
gando à tradição cristã por intermédio de estudiosos como Tomás de
Aquino. O reconhecimento e o resgate do tópico da amizade entre os índios
indicaria assim uma visão um tanto positiva de Nóbrega sobre a organiza-
ção social dos nativos do Brasil, malgrado as anteriores observações sobre
suas “inclinações e apetites sensuais”, sempre inclinados ao mal. A com-
patibilização desta informação com a outra acerca da amizade entre os
próximos só se torna possível quando se compreende que este grau de
amizade capaz de perfazer uma comunidade se observa entre tribos em
um espaço de grande divisão e inimizade entre as diversas tribos. Nóbrega
119
Idem, p. 91.
120
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009, em
especial os livros VIII e IX, que tratam da amizade. Cf. também neste sentido: BROCCO, Pedro. “Alguns comentários
sobre a ética de Aristóteles e sua relação com o direito”. Revista Quaestio Iuris, vol. 10, n. 2, Rio de Janeiro, 2017, pp.
653-674.
Pedro Brocco | 193
Fallarei agora da porta que Nosso Senhor se dignou de abrir nestes poucos
mezes para escolher dentre elles os que foram predestinados; porém começa-
mos a visitar as suas aldeias, quatro companheiros que somos, a conversar
familiarmente, e a annunciar-lhes o reino do Ceu, si fizerem aquillo que lhes
ensinarmos; e são estes aqui os nossos bandos. Convidamos os meninos a ler
e escrever e conjunctamente lhes ensinamos a doutrina christã e lhes prega-
mos para que com a mesma arte com que o inimigo da natureza venceu o
homem dizendo: Eritis sicut Dii scientes bonum et malum, com arte egual seja
elle vencido, porque muito se admiram de como sabemos ler e escrever e têm
grande inveja e vontade de aprender e desejam ser christãos como nós outros.
Mas sómente o impede o muito que custa tirar-lhe os maus costumes delles, e
nisso está hoje toda a fadiga nossa.122
121
Provavelmente, por isto, a Informação das terras do Brasil tenha sido um material produzido para a formação do
jesuíta, sobretudo aqueles que futuramente viriam em missão para o Brasil.
122
NÓBREGA, CB, pp. 91-92. Carta ao Dr. Navarro, Salvador, 1549.
194 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
diz respeito ao “muito que custa” tirar os “maus costumes” dos índios, e
isso seria o fato impeditivo para que pudessem aprender a ler e escrever e
ser cristãos, como se saber ler e escrever e ser cristão fossem etapas inse-
paráveis de um mesmo processo. Trata-se a nosso ver de uma mudança
de paradigma que os jesuítas buscavam implantar, tirando dos índios um
funcionamento ligado a uma cultura de tradição oral.
Os jesuítas são tributários de uma longa tradição orientada pela tec-
nologia da escrita que vai desde a dimensão religiosa, sob o registro do
hebraico até o grego dos evangelhos sinóticos, e também pela grande tra-
dição greco-romana, em seu aspecto filosófico e jurídico que informou as
principais estruturas de poder e de sociedade, como, por exemplo, todo o
saber que envolveu o direito civil romano, direto influenciador do direito
canônico, do qual se falou um pouco acima. As lutas que envolveram a
evangelização e conversão de tradições orais no Brasil, neste sentido, se-
riam as mesmas em relação àquelas que ocorreram depois do fim do
Império romano do Ocidente, levadas adiante pela Igreja primitiva, em
vias de se tornar um grande poder hegemônico capaz de mobilizar o saber
e a tradição ocidentais. Compreender que a evangelização e a cristianiza-
ção vai de mãos dadas com todo o saber potencial que envolve a tecnologia
da escrita é de grande importância para sustentarmos que a Companhia
de Jesus foi o primeiro grande esforço ocidental, no Brasil, de implantação
efetiva de aparato jurídico, ético e, neste sentido, político. Sem este esforço
de mudança de registro e paradigma que subjaz à evangelização, toda to-
mada de território resvalaria na ineficácia e na violência, como ocorreu
nos primeiros anos de colonização ibérica na América.
Um trabalho que funciona como liame entre essas questões é o do
jesuíta norte-americano Walter J. Ong. Estudioso da linguística, Ong foi
capaz de produzir um interessante estudo sobre os aspectos psicológicos,
jurídicos e sociais que a “tecnologia da palavra” é capaz de produzir123.
Escrevendo sobre o aspecto conservador e tradicionalista das cultu-
ras orais, Ong observa:
123
ONG, Walter J. op. cit.
Pedro Brocco | 195
124
Idem, p. 41.
125
Os “línguas” eram os intérpretes e tradutores. Nóbrega desde o início utiliza línguas, neste primeiro momento
crianças, para se comunicar com os índios, inclusive na confissão, o que gerou um grande atrito com a Igreja.
196 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Em duas das principais aldeias de que tem cargo, fizeram-lhe uma casa onde
esteja e ensine aos cathecumenos; em outra aldeia, tambem próximo a esta
cidade126, fizemos uma casa a modo de ermida, onde um de nós está incum-
bido de ensinar e pregar aos baptisados de pouco, e a outros muitos
cathecumenos, que nella vivem.
Os Principaes da terra baptisaremos em breve (...).127
126
Salvador.
127
NÓBREGA, CB, p. 93. Carta ao Dr. Navarro, Salvador, 1549.
Pedro Brocco | 197
128
Idem, p. 94.
129
Idem, p. 93.
198 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
130
MAUSS, Marcel, op. cit., p. 236.
200 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
131
Cf. sobre isto a tese de doutorado de Felipe de Oliveira Castelo Branco: O espaço, a linguagem e a morte: sobre a
melancolia em psicanálise. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, 2013: “O campo da
filosofia existencialista, por outro lado, já havia trabalhado de modo bastante original o problema fenomenológico da
Pedro Brocco | 201
Trata-se de um olhar que atinge diretamente aquilo que é dissimulado por trás
da própria imagem narcísica. A vergonha emerge quando o Outro desvela fi-
nalmente aquilo que há de mais íntimo e de mais escondido por trás da forma
imaginária de cada um de nós. Portanto, não há possibilidade de haver vergo-
nha sem um investimento libidinal em uma imagem especular própria, sem
uma imagem narcísica que permita ao sujeito habitar seu corpo enquanto
corpo próprio.132
vergonha, notadamente em sua relação com a questão do olhar. Mas o trabalho de Lacan, que se manterá em diálogo
aberto com a filosofia de Sartre, especialmente em seu seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psica-
nálise, empreenderá uma renovação da leitura da questão da vergonha em psicanálise. A vergonha, para Lacan, está
intimamente conectada com o “ser olhado”, p. 138.
132
CASTELO BRANCO, Felipe de Oliveira. op. cit., p. 139.
133
Sobretudo quando analisamos a posição conferida aos índios pela violência colonizadora dos relatos lascasianos.
202 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Las Casas, tentavam evitar, e isto fica muito claro quando observamos as
tensões envolvendo os colonos que buscavam capturar a mão-de-obra es-
crava indígena sem qualquer contrapartida em relação à sua instrução e
aperfeiçoamento, era a colocação de enormes massas populacionais em
condição de dejeto em um mundo que não lhes proporcionasse sentido,
uma vez já iniciada a ruptura com sua antiga forma de vida e de sentido.
Era, no limite e paradoxalmente, evitar o não-sentido e a violência no in-
terior de um projeto violento e colonizador do imaginário e da vida
indígena, criado para conduzir tal vida nas vias cristãs e torná-la súdita da
Coroa. Fornecimento, portanto, de sentido político-religioso para que se
evitasse a emergência do não-sentido. Neste horizonte se pode entender
que ainda hoje a Igreja atue a partir desta produção simbólico-imaginária
de sentido, sobretudo em relação àqueles em contato com situações-limite,
seja de pobreza extrema, drogadição, etc. A conversão é uma produção de
sentido conjugada a um reconhecimento suposto134 por parte do Ou-
tro135,136.
A imagem especular do próprio corpo e o discurso sobre a própria
história unem-se no conceito de eu, agente do discurso: “o eu é uma ima-
gem que meu corpo – enquanto algo que possuo em seu suposto conjunto
unitário – representa”137. A língua francesa possui a divisão entre moi e je
a partir da qual se torna possível compreender tal ponto: o je é o agente
do discurso e o moi a imagem corporal suposta. É comum que se diga:
“moi, je... etc”.
134
É evidente que a conversão visa a produção de tal suposição; o Outro não diz nada.
135
O Direito moderno extrai sua eficácia simbólica também neste mecanismo, tratando-se de um saber capaz de
produzir sentido compartilhável a partir do reconhecimento de um Outro produtor-garantidor de validade do orde-
namento jurídico. No caso da teoria de Kelsen, restam reminiscências teológicas abscônditas que sustentam todo o
ordenamento jurídico pensado por ele. A norma hipotética fundamental, vértice de sua pirâmide normativa e garan-
tidora de sua validade, aproxima-se da posição de Deus como Outro garantidor e produtor de consistência simbólico-
imaginária da realidade.
136
Este trabalho não pretende ignorar a complexa problemática do estatuto dos escravos africanos trazidos para o
Brasil no bojo desta dinâmica de conversão dos índios (“negros da terra”). Sobre este ponto, faz-se referência ao
trabalho de Luiz Felipe de Alencastro, aqui citado, O trato dos viventes. Isto não impede, entretanto, que se construa
o conceito do dispositivo de conversão voltado à produção de um sentido imposto aliado a uma suposição de reco-
nhecimento por parte do Outro.
137
CASTELO BRANCO, Felipe de Oliveira, op. cit., p. 139.
Pedro Brocco | 203
Uma cousa nos acontecia que muito nos maravilhava a principio e foi que
quase todos os que baptisamos, cahiram doentes, quaes do ventre, quaes dos
olhos, quaes de apostema: e tiveram occasião os seus feiticeiros de dizer que
lhes davamos a doença com a agua do baptismo e com a doutrina da morte;
mas se viram em breve desmascarados, porque logo todos os enfermos se cu-
raram. Quiz por ventura o Senhor a estes seus filhos perfilhados em seu
sangue, provar-lhes desde cedo e ensinar-lhes que é preciso soffrer e que esta
é a mesinha com que se purgam os eleitos do Senhor. Procurei encontrar-me
com um feiticeiro, o maior desta terra, ao qual chamavam todos para os curar
em suas enfermidades; e lhe perguntei em virtude de quem fazia elle estas
cousas e se tinha communicação com o Deus que creou o Ceu e a Terra e rei-
nava nos Ceus ou acaso se communicava com o Demonio que estava no
Inferno? Respondeu-me com pouca vergonha que elle era Deus e tinha nascido
Deus e apresentou-me um a quem havia dado a saude, e que aquelle Deus dos
céus era seu amigo e lhe apparecia frequentes vezes nas nuvens, nos trovões
204 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
e raios; e assim dizia muitas outras cousas. Esforcei-me vendo tanta blasphe-
mia em reunir toda a gente, gritando em altas vozes, mostrando-lhe o erro e
contradizendo por grande espaço de tempo aquillo que elle tinha dito: e isto,
com ajuda de um lingua, que eu tinha muito bom, o qual fallava quanto eu
dizia em alta voz e com os signaes do grande sentimento que eu mostrava.
Finalmente ficou elle confuso, e fiz que se desdissesse de quanto havia dito e
emendasse a sua vida, e que eu pediria por elle a Deus que lhe perdoasse: e
depois elle mesmo pediu que o baptisasse, pois queria ser christão, e é agora
um dos cathecumenos. Vi entre os que estavam presentes alguns homens e
mulheres como attonitos daquilo que eu fallava, das grandezas de Deus. Estas
e outras cousas obra o Senhor por nosso ministerio inter gentes.138
138
Idem, pp. 95-96. Carta ao Dr. Navarro, Salvador, 1549.
Pedro Brocco | 205
... y despues de aver el entrado cincuenta o sesenta leguas fue el padre Nobrega
llevando un hermano cõsigo y quatro niños, y en su pegrinaciõ tenia esta ma-
nera que quando entravam en alguna aldea de los Indios uno de los niños
llevava una cruz pequeña levãtada, yvã cantando las letanias, y luego se jutavã
los niños del lugar con ellos, maravillavãse mucho la gete de cosa tan nueva, y
recebianlos muy bien…139
139
Cartas del Hermano Pero Correa que scriuio e un padre del Brasil. In: Copia de unas cartas de algunos padres y
hermanos dela compañía de Iesus que escrivieron dela India, Iapon y Brasil a los padres y hermanos de la misma
compañía, en Portugal trasladadas de portugues en castellano. Fuerõ recebidas el año de mil y quinientos y cincuenta
y cinco.
140
Os daimiôs eram a aristocracia guerreira japonesa dos séculos X a XIX. Eram espécie de senhores feudais e tiveram
muita importância para a conversão e missionação jesuíta durante o período da Sengoku-Jidai, a guerra civil travada
entre os daimiôs pela unificação do Japão (1467-1603), assunto que será tratado em capítulo próprio deste livro.
Sobre o tema, cf. a tese de doutorado de Jorge Henrique Cardoso Leão: A Companhia de Jesus e os pregadores japo-
neses: missões jesuíticas e mediação religiosa (1549-1614). Niterói: Universidade Federal Fluminense, Instituto de
História, 2017.
206 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
O padre Navarro estava (como ainda está) em suas aldeias, pregando aos gran-
des e ensinando a ler e a fazer orações aos pequenos e ajudando a se
afervorarem no amor de Deus e no desejo do baptismo alguns homens e ca-
thecumenos, entre os quaes alguns o pedem com muita instancia. Esperamos
Pedro Brocco | 207
por todas as vias fazer-lhes deixar os muitos maus costumes que têm, e dese-
jamos congregar todos os que se baptisam apartados dos mais, e por isso
ordenamos que Diogo Alvares fique entre elles como pae e governador, es-
tando em bons créditos e muito na graça delles todos.141
141
NÓBREGA, CB, pp. 103-104. Carta a Simão Rodrigues, Porto Seguro, 1550. Grifos meus.
142
Idem, p. 104.
143
Idem, ibidem.
208 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
(...) e não ha muito tempo que mataram em uma aldeia o filho de um Christão
nascido de uma Negra da terra, o que trouxe muito ressentimento ao Gover-
nador, e pensamos que será origem de um bom castigo e de grande exemplo
aos outros Gentios, e talvez por medo se convertam mais depressa do que o
fazem por amor; tanto vivem corrompidos nos costumes e apartados da ver-
dade.144
144
Idem, ibidem.
145
Cf. a tese de EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aven-
turas teóricas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000.
146
Idem, p. 80.
Pedro Brocco | 209
147
Quando a Companhia de Jesus é extinta, pode-se perceber que havia surgido inclusive uma tensão em relação aos
Estados nacionais acerca da soberania política, como no caso paradigmático do Paraguai.
148
ALMEIDA, Maria R. C. de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.
210 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
(...) comquanto não sejam induzidos pelos Christãos que aqui vêm com o
exemplo ou com a palavra ao conhecimento de Deus, mas antes o chamam
cães e fazem-lhes todo mal. E toda intenção que trazem é de os enganar, de os
roubar, e por isso permittem que vivam como Gentios sem a sciencia da lei e
têm praticado muitos desacatos e assassinios (...) e assim é de todo perdido
nesta terra o zêlo e a charidade para com as almas que tanto ama o Senhor.150
149
Idem, p. 107. Carta a Simão Rodrigues, Porto Seguro, 1550.
150
Idem, pp. 107-108.
Pedro Brocco | 211
Quanto serviço faria a Deus Sua Alteza, se mandasse a estas partes da Índia o
Padre Mestre Simão, com muitos da Companhia de Jesus, pois com sua vinda
se faria muito fruto nas almas dos portugueses da Índia e muitos cristãos na
terra japã, que é dos infiéis. Contanto, [porém], que venha muito favorecido
de Sua Alteza com jurisdição no cível sobre todos os cristãos da terra: que nin-
guém tivesse mando sobre eles, senão as pessoas que fossem postas pelo Padre
Mestre Simão, por cima de serem providos homens por Sua Alteza para servi-
rem os tais cargos. É que os capitães que têm essa jurisdição sobre os cristãos
da terra, não se aproveitam dela para mais, que para fazer mal e tomarem o
seu a seu dono, contra sua vontade, escandalizando os cristãos da terra e fa-
zendo que os infiéis não se convertam, pelo mau tratamento que vêem fazer
aos que já são cristãos.151
151
XAVIER, Francisco. Obras completas. Braga: Edições A.O.; São Paulo: Edições Loyola, 2006, pp. 411-412. Realces
meus.
212 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
E dahi vem o pouco credito que gozam os Christãos entre os Gentios, os quaes
não estimam mesmo nada, sinão vituperam aos que de primeiro chamavam
santos e tinham em muita veneração e já tudo o que se lhes diz acreditam ser
manha ou engano e tomam á má parte. Esses e outros males fizeram os Chris-
tãos com o mau exemplo de vida e a pouca verdade nas palavras e novas
crueldades e abominações nas obras. Os Gentios desejam muito o commercio
dos Christãos pela mercancia que fazem entre si do ferro e disto nascem da
parte destes tantas cousas ilícitas e exorbitantes que nunca as poderei escre-
ver, e não pequena dôr sinto n’alma, máxime considerando em quanta
ignorancia vivem aquelles pobres gentios e que pedem o pão de Deus e da
santa Fé, sem haver qui frangat eis152.153
152
“sem haver alguém para quebrá-lo para eles”, tradução livre.
153
Idem, p. 108. Carta a Simão Rodrigues, Porto Seguro, 1550.
Pedro Brocco | 213
Na lingua deste paiz alguns somos muito rudes e mal exercitados, mas o padre
Navarro tem especial graça de Nosso Senhor nesta parte, porque andando pe-
las aldeias dos Negros, em poucos dias que aqui estamos, se entende com elles
e prega na mesma lingua e finalmente em tudo parece que Nosso Senhor lhe
presta favor e graça para mais poder ajudar as almas. (...) á noite ainda faz
cantar aos meninos certas orações que lhes ensinou em sua lingua delles, em
logar de certas canções lascivas e diabolicas que d’antes usavam.154
154
Idem, p. 105.
214 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
(...) aprendendo pouco a pouco a lingua, para que entremos pelo sertão dentro,
onde ainda não chegaram os Christãos, e tenho sabido de um homem Gentio
que está nesta terra, que vivem em obediencia de quem os rege e não comem
carne humana, andam vestidos de pelles, o que tudo é uma disposição para
mais facilmente se converterem e sustentarem.156
A carta aos padres e irmãos de 1551 talvez seja a mais otimista escrita
por Nóbrega após a primeira carta de chegada à Bahia. Como era o cos-
tume em cartas deste tipo, o tom era encomiástico e triunfalista a respeito
das missões. Em geral, Nóbrega se mostrava melancólico e pessimista com
muitos aspectos encontrados nas missões do Brasil, mas aqui, talvez, qui-
sesse transmitir outra imagem do estado das coisas da missão brasileira.
Observe-se o primeiro parágrafo da carta:
155
Idem, p. 115. Carta aos padres e irmãos, Pernambuco, 1551.
156
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 215
157
Idem, p. 114.
158
Idem, ibidem.
159
Idem, p. 115.
216 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Os clerigos desta terra têm mais officio de demonios que de clerigos: porque,
além de seu mau exemplo e costumes, querem contrariar a doutrina de
Christo, e dizem publicamente aos homens que lhes é licito estar em peccado
com suas negras, pois que são suas escravas, e que podem ter os salteados,
pois que são cães, e outras cousas semelhantes, por escusar seus pecados e
abominações, de maneira que nenhum Demonio, temo agora que nos persiga,
sinão estes.161
160
Idem, ibidem.
161
Idem, p. 116.
162
Idem, p. 100. Informação das terras do Brasil.
Pedro Brocco | 217
Querem-nos mal, porque lhes somos contrarios a seus maus costumes e não
podem soffrer que digamos as missas de graça, em detrimento de seus inte-
resses. Cuido que, si não fora pelo favor que temos do Governador e principaes
da terra, e assim porque Deus não o quer permitir, que nos tiveram já tiradas
as vidas. Esperamos que venha o Bispo, que proveja isto com temor, pois nós
outros não podemos com amor.163
Os mais aqui tinham Indias de muito tempo de que tinham filhos e tinham por
grande infâmia casarem com ellas. Agora se vão casando e tomando vida de
bom estado. São feitas muitas amizades porque esta capitania estava em ban-
dos com os principaes da terra, e os fizemos amigos á porta da egreja com que
já todos estão em paz. Havia muitas moças filhas de Christãos dadas á soldada
a solteiros, com que publicamente peccavam e davam-lh’as a Justiça; fil-as
ajuntar em casa de casados virtuosos e agora se vão casando e amparando.165
163
Idem, p. 116. Carta aos padres e irmãos, Pernambuco, 1551.
164
“Para os Irmãos do Collegio de Jesus de Coimbra”.
165
NÓBREGA, M., CB, p. 119.
218 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
166
Idem, ibidem.
167
Idem, ibidem.
168
Idem, pp. 119-120.
169
Os meirinhos eram oficiais de justiça durante a Idade Média portuguesa, tendo funções típicas de oficiais de justiça
como executar prisões, citações, penhoras e mandados judiciais. Este indício da índia meirinha corrobora a hipótese
de que os jesuítas atuaram como funcionários públicos no Brasil: funcionários da Igreja e também da Coroa, cuja
atuação se dava em prol da fundação de uma comunidade orientada pela ética cristã centrada em Roma e pela sujei-
ção à Coroa portuguesa centrada em Lisboa.
Pedro Brocco | 219
170
Idem, p. 120. Grifo meu.
171
Idem, p. 121.
220 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
no Brasil mais por causa deles do que pelos “brancos”, o que, do ponto de
vista da estratégia de conversão, era verdade; o que não se manifesta aí
claramente é a tentativa de apagar o que permanecia de “negro” e trans-
formá-los em “brancos” nos costumes e na prática dos sacramentos
católico-tridentinos. Essas metáforas se ligam ao que João Adolfo Hansen
trabalha a partir das imagens da “luz”: “o tembetá não impede a fala es-
cura dos meninos porque, em sua barbárie material, é análogo e simpático
da sua mudez e cegueira; mas obscurece e impede antipaticamente a fala
da Luz”, significando aí a luz do verbo divino. Hansen analisa um episódio
da narrativa de Nóbrega constante na carta enviada a Martín de Azpilcueta
Navarro:
D’entre muitas cousas referirei uma que bastante me maravilhou, e foi que
ensinando um dia o padre João de Aspilcueta os meninos a ler e a fazer o signal
da cruz, e tendo os ditos meninos certas pedras de varias cores nos lábios, que
é uso trazer furados, e muito estimam, embaraçando as pedras de fazer-se o
signal da cruz, veiu a mãe de um delles e para logo tirou a pedra dos labios de
seu filho e atirou ao telhado; de repente os outros fizeram o mesmo: e isto foi
logo quando começamos a ensinar.172
João Adolfo Hansen viu aí, no gesto da mãe de tirar a pedra (tembetá)
do beiço do filho, uma alegoria exemplar: “não saberia que, ao abrir-lhe a
boca para a audição sublime do verbo católico e a visão humilde do seu
pecado original, fechava-a, boca muda, boca cega, para sempre”173.
Tanto os “índios” quanto os “brancos” deveriam se guiar, na vida co-
lonial, pelo procedimento ético cristão extraído e destilado das noções que
informavam os sacramentos: batismo, casamento, confissão, eucaristia.
Nóbrega, aliás, toca neste ponto: “Mostram grande vontade e desejos de
os conversarmos e ensinarmos. Mui facil cousa é serem todos christãos si
houver muitos obreiros que os conservem em bons costumes, porque
d’outra maneira far-se-á a grande injuria ao Sacramento”174. Ora, como
172
Idem, p. 92. Carta a Martín de Azpilcueta Navarro, Bahia, 1549.
173
HANSEN, João Adolfo. “O nu e a luz: cartas jesuíticas do Brasil. Nóbrega – 1549-1558”, op. cit., p. 119.
174
NÓBREGA, CB, op. cit., p. 121.
Pedro Brocco | 221
interpretar esta passagem sem ter em conta que os jesuítas buscavam con-
servar aspectos normativos ligados a procedimentos informados pelos
sacramentos, sobretudo quando se leva em consideração que a Companhia
de Jesus estava naquele momento engajada no movimento da Contrarre-
forma, que tocou de forma especial na reforma dos sacramentos?
Ademais, Nóbrega escreve a carta também para chamar mais jesuítas
para trabalhar na vinha da Companhia no Brasil175. A mão de Nóbrega que
escreve a carta para que os jesuítas de Coimbra a leiam e desejem percor-
rer os muitos percalços da colônia revela a metáfora organicista do corpo
místico de Cristo, a informar a ideologia política da Coroa e também a or-
ganização da Igreja: “Isto vos quiz escrever assim em breve para que
vejaes, charissimos, quanta necessidade cá temos de vossas orações. Non
solum nobis nati estis: um corpo somos em Jesus Christo; si lá não susten-
tardes, este vosso membro perecerá”176.
Ainda em 1551, Nóbrega escreve de Pernambuco uma carta ao rei
Dom João III. Nela, vemos uma espécie de resumo da atividade da Compa-
nhia de Jesus no Brasil e impressões gerais sobre moral e costumes de
Pernambuco, extensíveis ao restante da costa brasileira. Entretanto, Nó-
brega realiza, após descortinar o panorama da colônia na carta, alguns
pedidos ao rei, como a introdução de escravos africanos da Guiné no Co-
légio da Bahia.
A questão introdutória desta carta ao rei concerne à questão dos sa-
cramentos, maus costumes e maus exemplos dos sacerdotes de
Pernambuco:
175
Cf. a tese de doutorado de CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a
conversão dos índios no Brasil 1580-1620. Bauru: Edusc, 2006.
176
Idem, ibidem.
222 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Duarte Coelho e sua mulher são tão virtuosos quanto é a fama que têm, e certo
creio que por elles não castigou a justiça do Altissimo tantos males até agora
e, porém, é já velho e falta-lhe muito para o bom regimento da Justiça e por
isso a jurisdicção de toda a costa devia de ser de Vossa Alteza.178
177
Idem, pp. 123-124. Carta a D. João III, Olinda, 1551.
178
Idem, p. 124.
179
Idem, ibidem.
180
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 223
O converter todo este Gentio é mui facil cousa, mas o sustental-o em bons
costumes não póde ser sinão com muitos obreiros, porque em cousa nenhuma
crêm e estão papel branco para nelles escrever á vontade, si com exemplo e
continua conversação os sustentarem. Eu quando vejo os poucos que somos,
e que nem para acudir aos Christãos bastamos, e vejo perder meus proximos
e creaturas do Senhor á mingua, tomo como remédio clamar ao Creador de
todos e a Vossa Alteza que mandem obreiros e a meus Padres e Irmãos que
venham.181
181
Idem, pp. 124-125.
182
HANSEN, João Adolfo. “O nu e a luz”, op. cit.
224 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
183
NÓBREGA, CB, p. 125.
184
NEVES, Luiz Felipe Baêta. O combate dos soldados de Cristo na Terra dos Papagaios. Rio de Janeiro: Forense-
Universitária, 1978.
Pedro Brocco | 225
O Governador Thomé de Sousa eu o tenho por tão virtuoso e entende tão bem
o espirito da Companhia, que lhe falta pouco para ser della; não creio que esta
terra fôra avante com tantos contrastes, como teve, si houvera outro Gover-
nador; dizem que se vai este anno que vem, que tememos muito vir outro, que
destrua tudo; de quantos lá vieram nenhum tem amor a esta terra: só elle,
porque todos querem fazer em seu proveito, ainda que seja á custa da terra,
porque esperam de se ir; parecem-me que si El-Rei lhe der lá o que tem á sua
filha, e a casar, e lhe mandar sua mulher, que folgará muito de viver cá (...)187.
185
Idem, p. 129.
186
As casas a que Nóbrega faz referência aqui são os colégios das capitanias, o que se depreende pelo trecho anterior
ao citado: “(...) e tambem os outros collegios das capitanias querem fazer os moradores, e escrevem-me cartas sobre
isso, e querem dar escravos e muita ajuda”. Cf. NÓBREGA, CB, p. 130. Carta ao Provincial de Portugal, Bahia, 1552.
187
NÓBREGA, CB, p. 131. Idem.
226 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Temos por nova que manda Vossa Alteza ir para o anno a Thomé de Sousa;
obriga-me Nosso Senhor a dizer o muito que temo vir outro, que destrua isso
pouco que está feito, e que favoreça mais os peccados, vícios que este, e que
queira ir aproveitando á custa da terra; sei que folgará muito de viver nesta
terra si cá tivesse sua mulher, ainda que não fosse Governador (...) porque o
maior mal que lhe achamos é ser mais amigo da Fazenda um pouco de Vossa
Alteza do que deve; ao menos, lembro a Vossa Alteza que não mande a esta
terra Governador solteiro nem mancebo, si a não quer ver destruída, e grande
bem seria si fosse casado, e viesse com sua mulher por darmos principio e
fundamento a estas casas das capitanias, que começamos a fundar.188
188
Idem, p. 134. Carta a D. João III, Bahia, 1552.
189
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal.
São Paulo: Global, 2004, p. 70.
Pedro Brocco | 227
190
FREYRE, Gilberto. O mundo que o português criou: aspectos das relações sociais e de cultura do Brasil com Por-
tugal e as colônias portuguesas. São Paulo: É Realizações, 2010, p. 27. Cf. também FREYRE, Gilberto. O luso e o
trópico: sugestões em torno dos métodos portugueses de integração de povos autóctones e de culturas diferentes da
europeia num complexo novo de civilização: o lusotropical. São Paulo: É Realizações, 2010.
228 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
A carta de Nóbrega ao rei D. João III de 1552 tem ao menos dois tre-
chos de suma importância, além do que se refere ao governador. O
primeiro deles, que figura logo no início da carta, refere-se à preocupação
de construção da sociedade colonial nos moldes de Portugal; nos moldes,
portanto, de uma cultura europeia, com a vinda de mulheres da Europa,
como forma de afastar os homens do pecado:
Já que escrevi a Vossa Alteza a falta que nesta terra ha de mulheres, com quem
os homens casem e vivam em serviço de Nosso Senhor, apartados dos pecca-
dos, em que agora vivem, mande Vossa Alteza muitas órfãs, e si não houver
muitas, venham de mistura dellas e quaisquer, porque são tão desejadas as
mulheres brancas cá, que quaisquer farão cá muito bem á terra, e ellas se ga-
nharão, e os homens de cá apartar-se-hão do peccado.191
191
NÓBREGA, CB, p. 133. Carta a D. João III, Bahia, 1552.
Pedro Brocco | 229
Já tenho escripto por vezes a Vossa Reverendissima como nestas partes pre-
tendíamos criar meninos de Gentio, por ser elle muito, e nós poucos, e
sabermos-lhe mal falar em sua lingua, e elles de tantos mil annos criados e
habituados em perversos costumes, e por este nos parecer meio tão necessário
á conversão do Gentio: trabalhamos por dar principio a casas, que fiquem para
192
Idem, p. 135.
193
Idem, ibidem.
194
Carta ao Padre Mestre Simão, Bahia, 1552, p. 137 e ss.
230 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
195
Idem, p. 137.
196
Idem, p. 138.
197
Idem, ibidem.
198
Idem, p. 140.
199
Idem, p. 138.
Pedro Brocco | 231
Alguns escravos destes, que fiz mercar para a casa, são fêmeas, as quaes eu
casei com os machos e estão nas roças apartados todos em suas casas, e bus-
quei um homem leigo, que delles todos tem cuidado e os rege e governa, e nós
com elles não temos conta, e com o homem nos entendemos e o homem com
elles. A causa por que se tomaram femeas é porque d’outra maneira não se
póde ter roças nesta terra, porque as femeas fazem a farinha, e todo o principal
serviço e trabalho é dellas; os machos sómente roçam, e pescam e caçam, e
pouco mais (...)200.
200
Idem, p. 139.
201
Neste sentido, a doutrina das guerras justas e injustas remonta às teorias de Francisco de Vitoria. Cf. supra.
202
Cf. CB, p. 139.
232 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
203
Idem, pp. 139-140.
204
Idem, p. 141.
Pedro Brocco | 233
205
Idem, ibidem.
206
Idem, p. 142.
234 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Si nos abraçarmos com alguns costumes deste Gentio, os quaes não são contra
a nossa Fé Catholica, nem são ritos dedicados a ídolos, como é cantar cantigas
de Nosso Senhor em sua lingua pelo seu tom e tanger seus instrumentos de
musica, que elles em suas festas, quando matam contrarios, e quando andam
bebados, e isto para os attrahir a deixarem os outros costumes essenciaes, e,
permitindo-lhes e approvando-lhes estes, trabalhar por lhes tirar os outros, e
assim o prégar-lhes a seu modo em certo tom, andando, passeando e batendo
nos peitos, como elles fazem, quando querem persuadir alguma cousa, e dizel-
a com muita efficacia, e assim tosquiarem-se os meninos da terra, que em casa
temos, a seu modo, porque a similhança é causa de amor, e outros costumes
similhantes a estes?207
207
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 235
para vestir? Somente pelo fato de andarem nus, mesmo que cultivados na
doutrina cristã, se lhes negaria o batismo e a entrada na igreja e à missa?
Trata-se de uma dúvida que relaciona de modo especial religião e etiqueta.
Caso a entrada dos índios às igrejas e à vida cristã fosse negada tendo em
consideração que eles não se vestiam à moda europeia, como convertê-
los?
Nóbrega não nega que vestir-se apropriadamente fosse algo impor-
tante na economia da salvação e da organização social cristã; porém
pondera, pragmaticamente: “eu não sei quando tanto Gentio se poderá
vestir, pois tantos mil annos andou sempre nú, não negando ser bom per-
suadir-lhes, e prégar-lhes, que se vistam e mettel-os nisto quando puder
ser?”208. Há um reconhecimento prático das limitações materiais da colô-
nia naquele momento para vestir todos os índios e levar adiante o
cumprimento da etiqueta católica. Não se deve esquecer que uma das pri-
meiras medidas práticas de Nóbrega ao chegar à Bahia foi a de incentivar
a plantação de algodão para a produção de roupas para os índios; porém,
de fato, havia um contingente muito maior do que a capacidade produtiva
de tecido naquele momento.
Se a chegada do bispo promove a produção desta carta, parece tam-
bém possível afirmar que neste momento Nóbrega submete aos seus
superiores as escolhas e decisões que vinha tomando à frente da missão
brasileira. Todas as dúvidas enviadas envolvem algum ponto de divergên-
cia entre diretrizes estabelecidas por ele e as defendidas pelo bispo
Sardinha ou, ao menos, por uma certa ortodoxia católica.
Por fim, a última dúvida toca no ponto da guerra e preação dos ín-
dios: “si é licito fazer guerra a este Gentio e captival-os, hoc nomine et titulo
que não guarda a lei de natura por todas vias?”209. Pergunta Nóbrega se é
lícito utilizar a guerra como meio para o cativeiro de mão de obra escrava.
Tal questão é talvez a maior fonte de tensão entre os colonos e os jesuítas,
mas Nóbrega neste momento aponta para sua formação em Salamanca,
208
Idem, ibidem.
209
Idem, ibidem.
236 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
(...) para cumprir com a devoção de Vossa Alteza, e com os desejos, que em
Nosso Senhor eu tenho, destas partes serem favorecidas delle, sómente lhe
darei alguma conta desta capitania de S. Vicente, onde a maior parte da Com-
panhia residimos, por ser ella terra mais aparelhada para a conversão do
Gentio que nenhuma das outras, porque nunca tiveram guerra com os Chris-
tãos, e é por aqui a porta e o caminho mais certo e seguro para entrar nas
gerações do sertão, de que temos boas informações; ha muitas gerações que
não comem carne humana, as mulheres andam cobertas, não são crueis em
suas guerras, como estes da costa, porque sómente se defendem; algumas têm
um só Principal, e outras cousas mui amigas da lei natural, pela qual razão nos
obriga Nosso Senhor a mais presto lhes soccorrermos, maiormente que nesta
capitania nos proveu de instrumentos para isso, que são alguns Irmãos línguas
(...)”210.
210
Idem, pp. 144-145. Carta a D. João III, São Vicente, 1554.
Pedro Brocco | 237
Em carta a Inácio de Loyola, dois anos depois, Nóbrega já chama a vila de “S. Paulo de Piratinin”. Cf. NÓBREGA,
211
CB, p. 153.
212
Idem, p. 145.
213
Idem, ibidem.
214
Idem, ibidem.
238 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
215
Idem, p. 146. Carta a D. João III, São Vicente, 1554.
Pedro Brocco | 239
216
Niterói, 1860-1937.
240 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
O Gentio desta terra, como não tem matrimonio verdadeiro, com animo de
perseverarem toda a vida, mas tomam uma mulher e apartam-se quando que-
rem, de maravilha se achará em uma povoação, e nas que estão ao derredor
perto, quem se possa casar, dos que se converterem legitimamente á nossa Fé,
sem que haja impedimento de consaguinidade ou afinidade, ou de publica ho-
nestidade, e este nos é o maior estorvo que temos não os poder pôr em estado
de graça, e por isso não lhe ousamos a dar o Sacramento do Baptismo, pois é
forçado a ficarem ainda servos do peccado. Será necessário haver de Sua San-
tidade nisto largueza destes direitos positivos, e, si parecer muito duro ser de
todo o positivo, ao menos seja de toda affinidade e seja tio com sobrinha, que
é segundo grau de consaguinidade, e é cá o seu verdadeiro casamento, a so-
brinha, digo, da parte da irmã, porque a filha do irmão é entre elles como filha,
e não se casam com as taes; e, posto que tenhamos poder de dispensar no
parentesco de direito positivo com aquelles que, antes de se converterem, já
eram casados, conforme as nossas bulas, e ao direito canônico, isto não póde
cá haver logar; porque não se casam para sempre viverem juntos, como outros
Infieis, e si disto usamos alguma hora é fazendo-os primeiro casar, in lege na-
turae, e depois se baptisam.217
217
NÓBREGA, M. CB, p. 148. Carta a Ignacio de Azevedo, São Vicente, 1556.
Pedro Brocco | 241
218
Provavelmente Inácio de Azevedo. Inácio de Loyola morrera em 31 de julho de 1556.
219
NÓBREGA, CB, p. 156. Quadrimestre de janeiro até abril, Bahia, 1557.
220
Idem, ibidem.
221
Idem, pp. 156-157.
242 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
222
Idem, p. 157.
223
Idem, pp. 157-158.
224
Idem, p. 158.
Pedro Brocco | 243
(...) foram muitos ou todos da aldêa a fazer oferta das raízes de seu manti-
mento a um seu feiticeiro, para que lhes fizesse crescer a que tinham plantada,
dando-lhe chuva e tempo conveniente; outras muitas ofertas destas haviam
feito, quando partiam para a guerra, mas era em secreto, posto que não faltava
quem os descobrisse dos mesmos seus, a quem aquillo parecia mal e haviam
sua reprehensão, mas esta foi em publico perante o Padre seu mestre, e sobre
isso se ajuntou blasfemarem da nossa doutrina e desprezarem-na, o que sa-
bido pelo Governador, mandou prender ao feiticeiro e a outro que contra a
doutrina fallava, estiveram presos sete ou oito dias, até que pelos rogos dos
Padres, os soltaram, de que ficaram todos amedrontados, que dahi por deante
se começaram a encher as egrejas (...) de maneira que subitamente vimos o
notavel proveito que nasceu de se castigar áquelle feiticeiro, porque d’onde
antes nem com rogos nem com importunações queriam vir á egreja, depois
logo, como ouviam a campainha acudiam todos, e logo os meninos, que antes
vinham á eschola com tanto trabalho de os irem buscar, vinham todos (...)226.
O Governador vendo que succedia tão bem á prisão do feiticeiro e que tanto
fructo disso sahiu, apposuit ut aprehenderentur alii malefactores227, os que im-
pediam a palavra do Evangelho do Senhor; do que resultou muito maior bem,
e os Indios se sujeitaram com isso mais, e se fizeram muito nossos obedientes;
assim que por experiencia vemos que por amor é mui difficultosa a sua con-
versão, mas, como é gente servil, por medo fazem tudo, e posto que nos
225
Idem, ibidem. Realce meu.
226
Idem, pp. 158-159.
227
Acrescentou à apreensão outros malfeitores, tradução livre.
244 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
grandes por não concorrer sua livre vontade, presumimos que não terão fé no
coração; os filhos creados nisto ficarão firmes christãos, porque é gente que
por costume e criação com sujeição farão d’ella o que quiserem, o que não será
possivel com razões nem argumentos.228,229
(...) nesta egreja do rio Vermelho se começam já alguns a extremar dos seus e
vieram a fazer casa junto da egreja, com desejos de em tudo se conformarem
com a vida christã; escolheram uma só mulher, são mui continuos, e quanto
parece ao de fóra não pode ser melhor exterior, porque mostram sentir no
coração o que dizem pela boca.230
228
Idem, p. 159.
229
Cf. EISENBERG, José, op. cit.
230
NÓBREGA, CB, p. 160.
231
Idem, ibidem.
232
Idem, p. 161.
Pedro Brocco | 245
(...) o trato bemdito não é de assucar corruptível, mas de graça, mais saborosa
que favo de mel: quão poucos ha que te queiram ter? Quão poucos mercadores
da vida eterna se acham? Si os mercadores de pedras preciosas topassem com-
tigo, venderiam tudo por te mercar, e em ti tratar; trato sem perigo, porque o
piloto, que governa, não póde errar! Trato de tanto ganho, no qual não se ga-
nha um por cento, e sobretudo vida eterna em contrapeso! Trato que neste
mundo enriquece de graça, e no outro de gloria! Trato sem desassocego, antes
quanto mais se trata, quanto mais de quietação se ganha!235
233
Aparece com o título “Aos moradores de S. Vicente” no trabalho consultado.
234
NÓBREGA, CB, p. 167. Carta aos moradores de São Vicente, Bahia, 1557.
235
Idem, p. 167.
236
Conferir a este respeito a tese de doutorado de HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e
a Bahia do século XVII. São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Editora da Unicamp, 2004.
246 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Muito desejo saber a vantagem que achais da confissão continuada, a qual co-
nhecereis da emenda da vida, com o qual rogo a Nosso Senhor me queira
consolar, vindo-me disso boas novas, e folgaria muito que muitos me escre-
vessem mui particularmente (...).239
237
NÓBREGA, CB, p. 166.
238
Idem, ibidem. Realce meu. De fato, buscava-se uma comunicação dos sacramentos, o que se insere na doutrina
de Francisco de Vitoria com a articulação entre ius communicationis e ius missionis.
239
Idem, p. 166.
Pedro Brocco | 247
240
Idem, p. 173.
241
Idem, p. 172. Nóbrega neste momento escreve da Casa de Nossa Senhora do Rio Vermelho (Bahia), 1557.
248 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
E, todavia, com estes poucos [índios], que nos ficaram, trabalhamos, e a mui-
tos baptisariamos e casariamos já, si as cousas se pusessem em seu logar; a
ordem que desejamos era fazerem ajuntar ao Gentio, este que está sujeito em
povoações convenientes, e fazer-lhes favores em favor de sua conversão e cas-
tigar nelles os males que forem para castigar e mantel-os em Justiça e verdade
entre si, como vassallos d’El-Rei, e sujeitos á Egreja, como nesta parte são, e
fazer-lhes tambem justiça nos aggravos, escandalos dos Christãos, o que se
faria bem, si a Justiça secular e ecclesiastica fosse mais zelosa, como convém á
242
Idem, ibidem.
243
Idem, p. 173.
Pedro Brocco | 249
244
Idem, ibidem. Realces meus.
245
Idem, pp. 166-167.
250 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Des que fui entendendo, por experiencia, o pouco que se podia fazer nesta
terra na conversão do Gentio, por falta de não serem sujeitos, e ella ser uma
maneira de gente de condição mais de féras bravas que de gente racional, e
ser gente servil, que se quer por medo, e conjuntamente vêr a pouca esperança
de se a terra senhorear, e vêr a pouca ajuda e os muitos estorvos dos Christãos
d’estas terras, cujo escandalo e mau exemplo bastára para não se convencer,
posto que foi gente de outra qualidade, sempre me disse o coração que devia
mandar aos Carijós, os quaes estão senhoreados e sujeitos aos Castelhanos do
Paraguay e mui dispostos para nelles fructificar com outras gerações (...).248
246
Idem, pp. 173-174.
247
Em Cusco foi criado o Colégio de Caciques San Francisco de Borja, voltado à educação das elites e da nobreza inca:
desde pequenos, os filhos dos caciques e principais lideranças eram doutrinados, convertidos, afastados da “idola-
tria”, dentro da dinâmica educacional jesuíta.
248
Idem, p. 174.
Pedro Brocco | 251
249
Cf. PUNTONI, Pedro. O Estado do Brasil: poder e política na Bahia colonial 1548-1700. São Paulo: Alameda, 2013.
252 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
250
Tal doação aparece como um instrumento de direito privado ainda alinhado às doações pontifícias dos territórios
do Novo Mundo à Coroa espanhola, abordadas no início deste livro em suas repercussões sobre a doutrina da Escola
de Salamanca.
Pedro Brocco | 253
251
Cf. HARTOG, François, op. cit.
252
Este trabalho pretende também apontar para a importância e as formas a partir das quais os Exercícios espirituais,
uma prática discursiva, contribuíram decisivamente para a comunicação entre culturas e para a criação deste “pró-
ximo distante”, na medida em que colocam o exercitante como um “próximo distante” de si mesmo, isto é: um falante
que fala de si mesmo na terceira pessoa, objetivando-se, objetivando sua própria vida e experiências singulares,
articulando-as pelo discurso. Tal é a pré-história da associação livre, que surgirá enquanto técnica somente no século
XIX. A importância da tradição jesuíta para Freud, que encontra em seu tempo uma confluência entre uma tradição
germânica articulada com o catolicismo no Império Austríaco e depois na Áustria-Hungria, configura uma história
que ainda está para ser escrita. Cabe-nos compreender por que a psicanálise não floresce em países com cultura
protestante.
253
NÓBREGA, CB, p. 179. Carta aos padres e irmãos de Portugal, Bahia, 1559.
Pedro Brocco | 255
254
Uma légua terrestre atual (légua imperial) equivale a aproximadamente cinco quilômetros; porém, a légua antiga,
anterior à introdução do sistema métrico, perfazia a antiga unidade de medidas terrestres em Portugal e Brasil e
poderia equivaler a um intervalo que poderia variar de dois a sete quilômetros.
255
Idem, p. 179.
256 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
256
Idem, p. 180.
257
Cf. EISENBERG, José, op. cit.
258
Tal categoria aparece no relato como “uma assimilação grosseira de ritos católicos com tradições e práticas gen-
tílicas”. Cf. NÓBREGA, CB, p. 180.
259
Interessante notarmos como a tal Santidade configura-se como um discurso contestatório jogando no mesmo
terreno e a partir dos mesmos métodos dos jesuítas: contesta o sistema monogâmico, fala em “converter a todos em
pássaros”, etc. Tratava-se de uma tentativa de contra-conversão, muito curiosa por apresentar-se como um sintoma
da conversão e da mudança radical do modo de vida indígena. O poder secular age repressivamente em defesa do
poder espiritual que agia por sua vez sobre os costumes dos índios. Teríamos então o poder repressivo-penal agindo
para proteger o sistema dos costumes (religioso). O poder de polícia exercido pelo governo em prol de um alinha-
mento de costumes e religião mobilizado contra irrupções como a aqui analisada, funcionando como o lugar-tenente
de um novo imaginário em vias de se sustentar e cujo pano de fundo era o de uma sociabilidade que então se diluía
e desintegrava.
Pedro Brocco | 257
e devoção assim verem-no como se açoitava cruamente com a pratica que fez
que moveu a muitos, que se sentiam culpados em suas consciências, a virem
confessar seu peccado secreto e a disciplinarem-se tambem com elle em pu-
blico (...).260
Mais à frente, Nóbrega escreve que “a carne humana que todos co-
miam e mui perto da cidade é agora tirada e muitos tomam já por injuria
lembrar-lhes aquelle tempo, e si em alguma parte se comem, são admoes-
tados e castigados por isso”261. A injúria aparece aí como um sentimento
moral cuja finalidade é aliar-se à culpa na representação mental de um ato
antes aceito e praticado. A admoestação e o castigo, sustentados pelo poder
administrativo político-religioso, era o esteio do sentimento de injúria e o
fomentava: em regiões mais afastadas da Bahia, ainda se comia a carne
humana, e segundo o relato de Nóbrega, “pela Bahia á dentro sete ou oito
léguas desta cidade, um Principal não quiz senão comel-a com festas”, o
que fez com que o governador mandasse prendê-lo durante um ano por
desobediência, “e é agora o melhor Indio que há na terra”262.
Se o tom de Nóbrega vai, ao longo dos dez primeiros anos de presença
jesuíta no Brasil, se tornando mais pessimista e encontrando no medo uma
via para a conversão dos nativos, esta carta consolida tal entendimento em
articulação ao poder secular: em suma, ao poder de polícia do governador.
São relatos sucessivos em que o governador aparece como figura de auto-
ridade que é obedecida, que arbitra penas, castigos, prisões, cujo objetivo
último é o de reprimir e modificar os costumes dos índios e coibir a rivali-
dade dos feiticeiros no campo da eficácia simbólica religiosa católica: “e
desta maneira se vai tirando seu costume e vão tomando obediencia e
aborrecendo os feiticeiros e tomando credito ao baptismo”263 – este trecho
sintetiza todos os pontos trabalhados até aqui: a obediência significa a sub-
missão aos poderes constituídos da metrópole e da hierarquia religiosa da
260
NÓBREGA, CB, pp. 180-181. Carta aos padres e irmãos de Portugal, Bahia, 1559.
261
Idem, p. 182.
262
Idem, p. 183.
263
Idem, p. 189.
258 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Destes dois desejos que digo, me nasciam outros, que era desejar os meios
para que isto tivesse effeito, e d’estes escolhia dous que me pareciam melhores:
um, era desejar Bispo, tal qual Vossa Mercê e eu o pintavamos cá para refor-
mar os Christãos; e outro, vêr o Gentio sujeito e mettido no jugo da obediencia
dos Christãos, para se nelles poder imprimir tudo quanto quisessemos, porque
é elle de qualidade que domado se escrevera em seus entendimentos e vonta-
des muito bem a fé de Christo (...).265
264
Idem, p. 192. Carta a Tomé de Sousa, Bahia, 1559.
265
Idem, p. 193.
Pedro Brocco | 259
Trouxe Nosso Senhor o bispo D. Pedro Fernandes, tal e tão virtuoso qual o
Vossa Mercê conheceu, e mui zeloso da reformação dos costumes dos Chris-
tãos, mas quanto ao Gentio e sua salvação se dava pouco, porque não se tinha
por seu Bispo, e elles lhes pareciam incapazes de toda doutrina por sua bruteza
e bestialidade, nem as tinha por ovelhas de seu curral, nem que Christo Nosso
Senhor se dignaria de as ter por taes; mas nisto me ajude Vossa Mercê a louvar
a Nosso Senhor em sua providencia, que permitiu que fugindo elle dos Gentios
e da terra, tendo poucos desejos de morrer em suas mãos, fosse comido d’elles,
e a mim que sempre o desejei e pedi a Nosso Senhor, e mettendo-me nas oca-
siões mais que elle, me foi negado.267
266
Idem, ibidem.
267
Idem, ibidem.
260 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Em toda a costa se tem geralmente por grandes e pequenos que é grande ser-
viço de Nosso Senhor fazer aos Gentios que se comam e se travem uns com os
outros, e nisto têm mais esperança que em Deus vivo, e nisto dizem consistir
o bem e segurança da terra, e isto aprovam capitães e prelados, ecclesiasticos
e seculares (...), sempre dão carne humana a comer não sómente a outros In-
dios, mas a seus próprios escravos. Louvam e approvam ao Gentio o comerem-
se uns a outros, e já se achou Christão a mastigar carne humana, para darem
com isso bom exemplo ao Gentio. Outros matam em terreiro à maneira dos
Indios, tomando nomes, e não sómente o fazem homens baixos e Mamalucos,
mas o mesmo Capitão, às vezes! O’ cruel costume! O’ deshumana abominação!
O’ Christãos tão cegos!268
268
Idem, p. 196.
Pedro Brocco | 261
das guerras entre tribos indígenas rivais e das guerras entre índios e colo-
nos pode também figurar aqui como hipótese para o aumento do número
de escravos naquele período. Nóbrega estaria aí, neste sentido, denunci-
ando um mecanismo social que funcionava a favor da preação e
escravização de pessoas, tidas pelos jesuítas como almas que se perdiam e
não se poderiam salvar pela via da conversão, catequese e educação, ou no
máximo o poderiam sê-lo enquanto escravos dos colonos.
A tópica lascasiana sobre a colonização espanhola instituída na Bre-
vísima Relación sobre la destrucción de las Indias aparece nesta carta
quando Nóbrega diz: “D’este mesmo odio que se têm ao Gentio, nasce não
lhe chamarem sinão cães, tratarem-nos como cães (...)”269. Daqui podemos
afirmar que esta metáfora do cão como o nativo aparece de forma mais ou
menos homogênea nas Américas espanhola e portuguesa. A imagem ficou
conhecida com os relatos lascasianos, ademais das pesquisas etimológicas
do termo cholo, o qual, segundo Inca Garcilaso de la Vega, quer dizer cão,
termo que os espanhóis usavam por infâmia e vitupério em relação aos
nativos270. Trata-se agora também de perceber o aparecimento deste
mesmo termo e nas mesmas condições na colonização portuguesa, em
uma dinâmica perversa que se voltava ao aniquilamento étnico dos índios
do Brasil, com o fomento de guerras intertribais.
Junto desta maneira de proceder do colono em relação aos povos in-
dígenas, aparece, de forma inseparável, a posição que o índio assumia,
acerca de seu trabalho e dignidade, para o colono. A tópica da exploração
do trabalho é uma revisita aos cronistas espanhóis e mais uma vez se per-
cebe a repetição das dinâmicas colonizadoras sobre a força de trabalho dos
nativos:
Desta mesma raiz nasce darem-se pouco os Christãos pela salvação dos escra-
vos que têm do Gentio, deixando-os viver em sua lei, sem doutrina nem
ensino, em muitos peccados; e si morrem os enterram nos monturos, porque
269
Idem, p. 197.
270
Cf. Nota de rodapé número 45 do primeiro capítulo de PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história
lexical da Ibero-América entre os séculos XVI e XVIII.
262 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
delles não pretendem mais que o serviço e para terem mais quem os sirva,
trazem Gentios á casa para se contenrarem de suas escravas, e assim estão
amancebados Christãos com Gentios.271
271
NÓBREGA, CB, p. 198. Carta a Tomé de Sousa, Bahia, 1559.
272
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 263
poder advinha diretamente de Deus. Ocorre que entre uma posição e ou-
tra, definidas do ponto de vista moral-teológico, há a posição dos colonos
em relação aos índios, presente no funcionamento da economia política,
contaminada pela visão de que os índios seriam servos por natureza, pre-
sente nos debates de Valladolid entre Bartolomé de Las Casas e Juan Ginés
de Sepúlveda. Diz Nóbrega na carta a Tomé de Sousa:
Pois que direi das tyrannias, agravos e sem razões que se fazem aos Indios,
maiormente nesta capitania e outras d’onde os Christãos têm algum domínio
sobre os Indios? Vossa Mercê as poderá julgar, pois já cá esteve: de maneira
que a sujeição do Gentio não é para se salvarem e conhecerem a Christo e
viverem com justiça e razão, sinão para serem roubados de suas roças, de seus
filhos e filhas e mulheres, e dessa pobreza que têm, e quem disso usa mais,
maior serviço lhe parece que faz a Nosso Senhor, ou, por melhor dizer, a seu
senhor, o príncipe das escuridades.273
A luta pela terra, que no Brasil tem início neste período, com a lenta
formação da classe trabalhadora, se dá pela violenta ação dos colonos em
relação aos índios.
Isto, no entanto, não significa que os jesuítas apresentassem uma via
que objetivamente não significasse a colonização e a sujeição dos índios à
Coroa portuguesa. Os jesuítas foram funcionários, talvez os mais bem pre-
parados, da colonização portuguesa. Talvez não estivesse posto claramente
naquele momento que a defesa da liberdade dos índios significasse um au-
mento da demanda de mão-de-obra escrava africana, e sabe-se como a
economia da Coroa portuguesa passou a ficar cada vez mais dependente
do tráfico de escravos africanos após perder suas possessões na Índia e ver
seu comércio de especiarias ruir a partir da segunda metade do século XVI.
Lutadores implacáveis contra os costumes indígenas que considera-
vam maus, os jesuítas buscavam a conversão mediante a ajuda do poder
temporal da colônia. Por este motivo, principalmente, a figura do gover-
nador-geral era decisiva para os rumos da conversão. Após o período
273
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 265
Neste tempo nos levou Nosso Senhor ao nosso companheiro o padre Navarro,
que era um grande operario d’esta obra (...) morrendo disse que por isso só-
mente partia triste d’este mundo, por não ver cumpridos seus desejos; mas eu
creio que Nosso Senhor ouviu lá suas orações mais perto, e concedeu-nos que
d’ahi a pouco tempo viesse Men de Sá com um regimento de Sua Alteza, em
que o mandava mui de preposito ajudar a conversão, por paz ou por guerra,
ou como mais conveniente fosse.274
274
Idem, p. 203.
275
Idem, p. 202.
266 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
paz aos índios? Será que seria a instigação das guerras intertribais e o ex-
termínio a conta-gotas?). Duarte da Costa, conta Nóbrega, todavia
favoreceu os jesuítas em “duas egrejas que fizemos de palha, das quaes se
visitavam quatro aldeias”276, e mandou que os índios não comessem carne
humana, de tal maneira que se comessem não se fazia nada a respeito, e
assim puderam continuar com o costume às escondidas e em outras al-
deias mais distantes “mui livremente”.
Com a chegada de Mem de Sá, a política repressiva do governo geral
a respeito dos costumes indígenas muda radicalmente:
Acabou o engenho, e acabará cedo a Sé, e com exemplo de sua pessoa convida
a todos a bom viver de tal maneira, que sabe Nosso Senhor quanta inveja lhe
eu tenho. Na conversão do Gentio nos ajudou muito, porque fez logo ajuntar
quatro ou cinco aldeias que estavam derredor da cidade, em uma povoação
junto ao rio Vermelho, onde pareceu mais conveniente, para que toda esta
gente pudesse aproveitar-se das roças e mantimentos que tinham feito, e aqui
mandou fazer uma egreja grande, em que coubesse toda esta gente, a que cha-
mam S. Paulo. Mandou apregoar por toda a terra, scilicet: oito e nove leguas
ao derredor, que não comessem carne humana, e por se mostrar ao Gentio foi
ouvir a primeira missa dia de S. Paulo, acompanhado de todos os Principaes
da terra, e naquelle dia baptisaram muitos, onde deu a todos de comer, gran-
des e pequenos.277
276
Idem, p. 203.
277
Idem, p. 204. Realce meu.
Pedro Brocco | 267
Em todas ha eschola de muitos meninos; pequeno nem grande morre sem ser
de nós examinado si deve ser baptisado, e assim Nosso Senhor vai ganhando
gente para povoar sua Gloria, e a terra se vai pondo em sujeição de Deus e do
Governador, o qual os faz viver com justiça e razão, castigando os delinquentes
com muita moderação, com tanta liberdade como aos mesmos Christãos. E
cada povoação d’estas tem seus meirinhos, os Principaes d’ellas, os quaes por
mandado do Governador prendem e lhe trazem os delinquentes, e assim lhes
tira a liberdade de mal viver e os favorece no bem.278
278
Idem, p. 205.
268 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
279
Idem, ibidem.
280
Idem, p. 209.
Pedro Brocco | 269
Geral, pois este entendia que, sem a prova de dois ou três cristãos brancos,
não se poderia aplicar castigo algum: “e nisto não póde haver justiça”281.
Esta concepção de justiça de Nóbrega é muito antiga: deita raízes em
Aristóteles e em sua Ética a Nicômaco, na virtude da justiça subdividida
entre justiça geral ou distributiva e justiça particular ou comutativa. Era
justo buscar a reprimenda e reparação de atos reprováveis dos colonos em
relação aos índios. O que se buscava com isto era construir uma narrativa
de comunidade capaz de abarcar também os índios em condições mínimas
de igualdade: para isto, o fator distributivo de assegurar-lhes suas terras e
seus mantimentos, bem como o comutativo de reparação contra atos ca-
pazes de turvar o equilíbrio distributivo.
Neste sentido, é possível entender que o conceito de comunidade que
se buscava construir, fundamentada no conceito aristotélico (e tomista) de
justiça, ligava-se ao conceito de ordem. O conceito representado pelos co-
lonos, oposto a este, apontava para a preação dos índios e a desordem civil,
fomentando as guerras intertribais.
Os jesuítas e o governador Mem de Sá apostavam na criação de co-
munidades, aldeamentos ou povoamentos, que também diluíam os
vínculos comunais originários entre etnias (o próprio fato da criação da
nomenclatura generalizante de “índio” para se referir a todo e qualquer
nativo é um indício), com a diferença de se acreditar poder construir tais
comunidades em clave católica-tomista-aristotélica, a partir do respeito
aos sacramentos, e uma política católica organicista que se colocasse con-
tra guerras intestinas e promovesse a amizade entre os membros dos
aldeamentos, ainda que proviessem de etnias diferentes: “(...) mandou o
Governador ajuntal-os de uma parte em povoações sobre si, e mandou-
lhes que em mentes se ajuntavam, não guerreassem (...)”282.
Os colonos, por sua vez, apostavam na outra vertente, segundo a qual
era melhor que os índios rivais guerreassem para que aos poucos todos se
enfraquecessem em guerras ininterruptas. A segurança da terra, portanto,
281
Idem, p. 206.
282
Idem, ibidem.
270 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
283
Idem, p. 218.
284
Idem, p. 209.
Pedro Brocco | 271
que faz a Nosso Senhor (...)”285. Ainda que recoberta sob uma treliça reli-
giosa, os trechos realçados em itálico do último excerto representam já
uma tensão crucial, fundadora da sociabilidade brasileira: a disputa entre
as frentes econômico-política pela força de trabalho e religiosa-moral-pe-
dagógica pela conversão, catequese e educação. O saldo da disputa, como
relata Nóbrega, é a pobreza produzida artificialmente por aqueles que dela
se valem para desnudar ainda mais uma vida já nua: a do índio, neste pri-
meiro momento. Retirando-o de suas roças e de perto de familiares, o
poder econômico-político colonial despojava-o do pouco que possuía, iso-
lando-o como mera força de trabalho de um sistema de trabalho escravo
no umbral da fundação da grande empresa agroexportadora de produtos
tropicais que definirá os rumos do Brasil até os dias atuais.
A posição dos jesuítas nesta disputa é aquela da aposta pedagógica e
educativa da mudança de vida e de costumes: uma psicagogia, no hori-
zonte proposto por este trabalho; o ensino das virtudes da justiça,
amizade, prudência, bem como das virtudes supostas nos sacramentos
como o da eucaristia, como método de criação de que definiam como “bem
viver”, a partir dos “bons costumes”. Em ambos os casos, o corpo do índio
era requerido, despojado de sua anterior forma de vida. Sem qualquer
pendor pelo discurso apologético em relação aos jesuítas, de que padecem
grandes obras e grandes autores como o padre Serafim Leite, autor da co-
lossal História da Companhia de Jesus no Brasil, os objetivos tanto dos
colonos quanto dos jesuítas, em um primeiro momento, consistia em pro-
duzir súditos dóceis para a Coroa portuguesa: seja como força de trabalho,
colono civilizado a partir do ethos cristão ou força militar de defesa e con-
quista do território.
Nóbrega, como bom ideólogo jesuíta, escreve a Tomé de Sousa em
defesa do projeto da Companhia de Jesus contra os colonos. Se D. Duarte
da Costa parece ter apoiado mais os colonos, seu sucessor Mem de Sá e
seu antecessor Tomé de Sousa parecem ter trabalhado mais ao lado dos
285
Idem, p. 198. Realce meu.
272 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
padres jesuítas. Neste sentido se entende o seguinte trecho escrito por Nó-
brega:
Outros zelando por parte dos Indios, ou por parte de Satanaz, murmuram por
serem presos e castigados por seus delictos, e por serem apremiados á dou-
trina e a bons costumes, temendo que por isso se levantem, e não murmuram
pelas sem razões que elles fazem aos Indios que é maior occasião de se elles
amotinarem, porque nós, posto que por uma parte os apremiamos a bem viver,
por outra lhes mostramos entranhas de amor, pugnando por elles em tudo e
defendendo-os de tyrannias e servindo-os e curando-os de suas enfermidades
com muito amor, de que elles são bem em conhecimento, e por outra parte
estes Christãos, si algum Indio lhe prejudica em uma palha de sua fazenda,
querem logo que seja crucificado.286
286
Idem, p. 207. Realce meu.
287
Cf. LEGENDRE, Pierre. O Amor do censor: ensaio sobre a ordem dogmática. Rio de Janeiro: Forense Universitá-
ria/Colégio Freudiano, 1983.
Pedro Brocco | 273
parecem ser da mesma casta dos portugueses, Nóbrega fala sobre ataques
de índios a colonos na capitania de Ilhéus, para depois afirmar:
288
Idem, p. 217.
289
Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
290
NÓBREGA, CB, p. 221. Carta ao Infante Cardeal D. Henrique, São Vicente, 1560.
274 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
ser turbadas e retiradas de seu domínio sem justa razão. Em outras pala-
vras, tratava-se de incluir o indígena sob o mesmo sistema jurídico de
organização social, com as garantias e proteções do direito civil.
Tendo por interlocutor o infante cardeal, Nóbrega não economiza a
tinta para sublinhar que os franceses que ameaçavam o território do Bra-
sil, em especial o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, eram protestantes:
291
Idem, p. 226.
Pedro Brocco | 275
292
Conferir, neste sentido, as cartas de Nunes escritas desde São Vicente em 1550 e 1551 em NAVARRO, Azpilcueta e
outros. Cartas avulsas, 1550-1568. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.
293
Conferir a narrativa de Bueno com base nas cartas de Nunes e outros jesuítas que missionaram em São Vicente,
São Paulo de Piratininga e no Guairá em BUENO, Eduardo. A coroa, a cruz e a espada. Rio de Janeiro: Estação Brasil,
2016, p. 172 e ss. A utilização desta obra de Bueno aqui se deve ao fato de o autor ter produzido uma prosa escorreita
a partir da pesquisa de fontes do período colonial como as cartas jesuíticas e de reconhecidos historiadores que as
comentaram, como Jaime Cortesão e Serafim Leite.
276 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Vicente), havia junto dos índios, no campo, “alguma gente cristã derra-
mada” que passara anos sem ouvir missa nem se confessar, andando em
uma vida de selvagens294. Aquelas terras do “campo”, onde seria fundada
a futura cidade de São Paulo, eram controladas já por um nascente melting
pot caboclo: João Ramalho, o patriarca branco que dominava aqueles ter-
ritórios e vivia ali há cerca de quarenta anos, era casado com a índia
Bartira, filha de Tibiriçá, principal de uma aldeia que ficava na confluência
dos rios Tamanduateí e Anhangabaú, cerca de 30 quilômetros de distância
do local onde vivia Ramalho. Os cristãos que viviam perdidos naquela lo-
calidade foram encontrados por Nunes. Quase todos eram, conforme
Jaime Cortesão295, remanescentes da vila de Piratininga, fundada pelo do-
natário Martim Afonso de Sousa em 1532 junto a uma aldeia indígena. Os
remanescentes do povoado, que se desagregara em 1535 e não desceram a
serra de volta para São Vicente, lá ficaram e viveram de acordo com o
modo de vida dos indígenas. Os jesuítas, assim, quando fundaram o Colé-
gio em Piratininga, não apenas fundaram os alicerces da futura cidade de
São Paulo, mas também refundaram um antigo povoamento que não vin-
gara no regime anterior das capitanias hereditárias.
Foram os índios de Piratininga, além dos outros dois intérpretes ex-
perientes (Correia e Chaves) que revelaram a Leonardo Nunes, que tinha
o apelido de Abarebebé ou “padre voador”, em razão de sua rapidez ao
caminhar e deslocar-se, a existência de grandes contingentes de índios ca-
rijó nos campos além de São Paulo, revelando-lhe também a presença de
uma série de trilhas que iriam conduzir até lá e depois ao Paraguai. No
limite, tais trilhas indígenas, conhecidas como peabirus, dizia-se que con-
duziam também ao Peru e a Potosí. O principal destes caminhos ligava
Cusco, no Peru, ao litoral brasileiro, na altura de São Vicente.
Leonardo Nunes, em constante comunicação epistolar com Nóbrega,
que então estava em Salvador, começa a planejar uma viagem ao Paraná e
294
Idem, ibidem.
295
Idem, p. 175.
Pedro Brocco | 277
296
Leonardo Nunes mostrou grande precisão nesta previsão: a distância entre São Paulo e Assunção em linha reta,
em uma viagem de avião, é de cerca de 1.124 quilômetros.
297
Idem, ibidem.
298
Idem, p. 176.
299
Idem, ibidem. A nomenclatura “rio do Maranhão” aparece em carta de Antônio Rodrigues.
278 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
300
Idem, ibidem. A citação é de carta de Leonardo Nunes.
301
Idem, p. 177.
302
Citado por BUENO, E. op. cit., p. 177.
303
Idem, p. 178.
Pedro Brocco | 279
304
Idem, p. 178, citação de carta de Nóbrega.
280 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
305
Este trecho está em HANSEN, op. cit., p. 126.
306
Ou Alves, como vem grafado na edição do Diálogo ao final das Cartas do Brasil, volume 1, de Manuel da Nóbrega,
p. 229 e ss.
307
“Negro” aqui aparece em oposição a “branco”. Era comum os portugueses referirem-se aos índios como negros
no sentido de marcar oposição aos brancos. Assim o faz também Camões, ao se referir a um funcionário hindu nos
Lusíadas: Concertam-se que o Negro mande dar / Embarcações idóneas com que venha (...), Canto VIII, 93).
Pedro Brocco | 281
Gonçalo está “meio desesperado” da conversão deles e dos outros. Ambos pas-
sam a discutir as dificuldades da conversão. Gonçalo caracteriza o índio como
ser bestial que só pensa em matar e comer, afirmando que pregar a ele é “pre-
gar no deserto a pedras”. Nogueira responde, evidenciando a íntima
associação de poder e saber da catequese, ao afirmar que, se tivessem rei ou se
adorassem alguma coisa, poderiam converter-se (...)310
308
HANSEN, Manuel da Nóbrega, op. cit., p. 143.
309
Idem, p. 143. A grafia aqui reproduzida segue a do texto que consta ao final do estudo de Hansen. O termo “negros”
utilizado por Nóbrega refere-se aos índios, como dito acima.
310
Idem, p. 127. Realce meu.
311
Idem, ibidem.
282 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
os feiticeiros neste processo; todavia, é certo supor que havia entre os je-
suítas um certo horror neste modo de vida indígena de nada crer ou
adorar. O existencialismo somente surgirá cerca de quatrocentos anos de-
pois, de modo que o nada evocado por Nogueira em sua fala demandava
um preenchimento, que seria realizado pela catequese e pela conversão
administrados pelos jesuítas. O início do diálogo, entretanto, não poderia
começar de forma mais precisa, com a queixa ansiosa e “meio desespe-
rada” de um jesuíta que constatava a impossibilidade de seu ofício.
A maneira encontrada pelos jesuítas para explicar a forma de vida
indígena em relação à religião foi a de vê-los a partir dos filtros dos con-
ceitos de inconstância e ignorância. No início do diálogo, a inconstância
aparece de modo mais claro, embora a ignorância esteja sempre implí-
cita312.
A analogia estabelecida por Nogueira se dá a partir da passagem do
Evangelho que diz não dar Santo aos cães nem deitar as pedras preciosas
aos porcos, quando dirá: “Se alguma geração há no mundo, por quem
Christo N. S. isto diga, deve ser esta, porque vemos que são cãis em se
comerem e matarem, e são porcos nos vícios e na maneira de se tratarem
(...)”313. Logo depois, Nogueira diz que os padres do Reino estavam “resfri-
ados”, desanimados com a conversão, pois não conseguiam converter
muitos brasis devido à sua rudeza e bestialidade.
A desilusão dos padres com o Brasil aparece de forma bem-humorada
em alguns trechos do diálogo, como quando Nóbrega, através de Gonçalo,
observa que muitos padres que vinham na nau a caminho do Brasil ima-
ginavam-se um São João Batista junto de um rio Jordão a batizar quantos
a eles viessem314.
Alguns anos antes do Sermão do Espírito Santo, de Antonio Vieira,
onde fica marcada a metáfora do mármore e da murta, cá estão os jesuítas
312
Retificando aqui levemente o que afirma Hansen, de que o principal obstáculo à conversão, segundo os persona-
gens do diálogo, seria a inconstância. Parece razoável sustentar que também identificam a ignorância como um
obstáculo preliminar.
313
Idem, p. 144.
314
Idem, p. 145.
Pedro Brocco | 283
315
Trabalho aqui com as diferentes grafias do personagem: Gonçalo Alvarez, Gonçalo Álvares, Gonçalo Alves. São
consultadas tanto a edição que se segue ao final da obra de Hansen quanto a que vai ao final das Cartas do Brasil.
316
Cf. CB, op. cit., p. 233.
317
Idem, ibidem.
318
Idem, ibidem.
284 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
muito mal na Bahia, de onde Nóbrega havia saído para fundar São Paulo
em 1553. O Diálogo é escrito entre 1556 e 1557, no momento em que Nó-
brega retorna à Bahia.
Curiosamente, quem no Diálogo representa a confiança, a esperança
e a força de vontade é o ferreiro, que aliás possui as iniciais do nome de
Nóbrega. O língua, ainda que tivesse como função comunicar-se com os
índios, duvidava que estes pudessem se converter, e até mesmo de que
fossem humanos. Diz a certa altura Gonçalo: “Dizei-me, irmão, por amor
de Nosso Senhor, não ha entre estes meus irmãos e padres quem esteja da
parte destes negros?”319. Nogueira, então, responde: “Todos, porque todos
os desejam converter, e estão determinados de morrer na demanda, como
disse”320.
O “morrer na demanda” era um dos lemas da Companhia de Jesus,
ao lado do perinde ac cadaver, que remetia à obediência hierárquica abso-
luta. Ligam-se os dois lemas ao sugerirem que o padre jesuíta, mesmo que
descrente em sua missão, morreria tentando cumpri-la, pois estaria cum-
prindo o voto de obediência absoluta ao papa e aos superiores que o
designaram para a missão.
O língua Gonçalo, então, no momento de desespero sugerido pelo di-
álogo, retorque:
Gonçalo Alves: Não duvido eu, quer todos têm esses desejos; mas como isso é
cousa de necessidade, quizera eu, que houvera um, que déra razões para nos
accender o fogo, e para nos falar por nossos termos, quiséramos uns foles para
nos assoprar o fogo, que se nos apaga.321
Qual seria, então, a saída? Nogueira afirma que não falta o fogo que
os padres produzem artificialmente no espírito dos que tocam a missão,
“que nos queime a todos os que neste negocio nos occupamos”, diz No-
gueira. Ser inaciano, de Ignacio, ígneo, seria produzir tal fogo.
319
Idem, p. 234.
320
Idem, ibidem.
321
Idem, pp. 234-235.
Pedro Brocco | 285
322
Idem, p. 235.
323
Idem, ibidem.
324
Idem, p. 236.
325
Idem, ibidem.
286 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Estou eu imaginando todas as almas dos homens serem humas e todas de hum
metal, feitas à imagem e semelhança de Deus, e todas capazes da glória e cri-
adas pera ela; e tanto vale diante de Deus por naturaleza a alma do Papa, como
a alma do vosso escravo Papaná.326
326
HANSEN, op. cit., p. 130.
Pedro Brocco | 287
Nogueira: (...) depois que nosso pae Adão peccou, como diz o psalmista, não
conhecendo a honra, que tinha, foi tornado semelhante á besta, de maneira
que todos, assim portuguezes, como castelhanos, como Tamoios, como Aimu-
rés, ficamos semelhantes a bestas, por naturaleza corrupta, e nisto todos
somos iguaes (...).327
Gonçalo Alves: Isso bem entendo eu, porque o vi em mim antes que fôsse ca-
sado, que andava em peccados, e ainda agora praza a Deus, que não tenha
muito disso.
Nogueira: Pois que, direi eu, que envelheci nelles, e, como homem, que foi
ferido, fallo.
Gonçalo Alves: Pois assim é, que todos temos uma alma e uma bestialidade
naturalmente (...).328
327
Valho-me neste trecho da edição do Diálogo ao final das Cartas do Brasil, op. cit., p. 238.
328
Idem, ibidem.
288 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
329
Idem, p. 239.
Pedro Brocco | 289
Gonçalo Alves: Bem, estou com isso; mas como são os outros todos os mais
polidos, sabem lêr e escrever, tratam-se limpamente, souberam a filosofia, in-
ventaram as sciencias, que agora ha, e estes nunca souberam mais que
andarem nús e fazerem uma frécha, o que está claro, que denota haver enten-
dimento em uns e em outros.
Nogueira: Não é essa a razão de homem que anda fazendo brasil no mato,
mas estae attento, e entendereis: terem os romanos e outros gentios mais po-
licia, que estes, não lhes veiu de terem naturalmente melhor entendimento,
mas de terem melhor criação, e criarem-se mais politicamente, e bem creio,
que vós vereis claro pois trataes com elles, e vêdes, que nas cousas de seu mes-
tre, e em tão discretas palavras, como todos, e os padres os experimentam
cada dia com seus filhos, os quaes acham de tão bom entendimento, que mui-
tos fazem vantagem aos filhos dos christãos.330
330
Idem, pp. 239-240.
290 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
central para perfazer uma atuação orientada pelos três movimentos ante-
riormente descritos, que formam um arco que vai da aproximação pela via
do que é natural (alma e bestialidade) para a invenção do artifício do meio
social, administrável, no Brasil, no interior da política missionária dos pa-
dres jesuítas: é este o momento da criação dos aldeamentos e reduções, da
escolha pelo agrupamento de conjuntos de tribos em um só aldeamento,
com igreja e estrutura administrativa de almas cristãs, como escolas de ler
e escrever para a catequese, locais para mulheres solteiras e viúvas, cemi-
térios, etc). Tratava-se, assim, de uma atuação capaz de incidir em todos
os meandros e domínios da pessoa humana: alma e intelecto, pela via da
ideologia e doutrina religiosa, corpo físico e estrutura social, pela via da
modificação espacial, implementação de regimes administrativos e insti-
tucionais criadores de uma forma de vida, de novos costumes e reformas
de estruturas culturais antigas: a conversão, assim, se confundiria com
uma reforma cultural, um dar nova forma ao regime da vida que se pre-
tende apagar.
Figura 10: Maquete de missão jesuíta (missão de San Ignacio Miní). Arquivo pessoal.
331
Cf. NEVES, Luiz Felipe Baêta. O combate dos soldados de Cristo na Terra dos Papagaios, op. cit., p. 162.
292 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
território argentino, retrata uma missão na antiga zona dos Sete Povos das
Missões, que compreendia os territórios do Paraguai, Argentina e sul do
Brasil. Pode-se perceber que o modelo das missões da região compreendia
uma praça central ladeada por casarões divididos em quartos que serviam
de dormitórios para as famílias indígenas. Cada quarto compreendia uma
família, o que representa uma grande mudança no regime de organização
familiar, tendo em vista que o costume anterior dos índios da região era a
construção de grandes estruturas capazes de abrigar até cinquenta famí-
lias. Em seguida, observa-se, de frente para a entrada e a praça, a igreja,
tendo do lado esquerdo um colégio com oficinas para o aprendizado de
trabalhos manuais e artísticos, além do letramento e catequese e, do lado
direito, um cemitério e o cotiguaçu, casas construídas para o recolhimento
das viúvas e dos órfãos. Na parte de trás da igreja costumava-se ter um
pomar e locais de cultivo de hortaliças para o sustento da missão, ou
mesmo, como se desenvolveu no Paraguai por intermédio dos padres je-
suítas, áreas de cultivo de erva-mate para consumo interno e para
exportação. As missões dessa região chegavam a abrigar até três mil pes-
soas.
A partir de determinado momento, as missões jesuítas, com todo o
seu potencial autocrático e mobilizador de centenas de milhares de almas
vivendo em uma espécie de comunismo patriarcal, onde a todos era atri-
buída uma função social, passam a representar um sério incômodo para
as Coroas ibéricas e para as elites locais, que acusavam os padres jesuítas
de se locupletarem de seus incentivos fiscais junto às Coroas para vende-
rem seus produtos de forma mais vantajosa. De fato, neste momento, a
Companhia exerce funções econômicas e se torna uma poderosa ordem
autárquica na América do Sul.
Pedro Brocco | 293
Figura 11: Mapa das missões jesuítas entre o Paraguai, a Argentina e o Brasil.332
332
Fonte: PINTO, Muriel; MAURER, Rodrigo. Quando a geo-história avança sobre os significados de um espaço ur-
bano: as paisagens culturais e as transformações identitárias da fronteira Brasil-Argentina. EURE (Santiago),
Santiago, v. 40, n. 120, p. 135-158, maio de 2014. Acesso em 1 de novembro de 2017.
294 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Nogueira: Porque até agora não têm os índios visto essa diferença entre os
padres e os outros christãos, seja logo esta a conclusão, que quando Santiago
com correr toda a Espanha, e falar mui bem a lingua, e ter grande charidade,
e fazer muitos milagres, não converteu mais que nove discípulos (...) ainda que
alguns não deixem a vida viciosa por exemplo de outros máus christãos, que
vêm, todavia se crê delles terem fé, pois o principal pecado, e que lhes mais
extranham, deixaram, que é matarem em terreiro, e comerem carne humana
(...).334
Vencida esta dúvida, isto é, uma vez que o índio brasileiro tenha plena
capacidade para a fé e para a conversão, e compreendido que o problema
da missão brasileira residia numa falta de estrutura e em dificuldades de
ordem política e econômica frente aos colonos (os outros cristãos), resta a
conclusão de que o índio não seria diferente dos outros humanos do ponto
de vista das dificuldades inerentes da conversão. Nóbrega, através de No-
gueira, dirá, ao final do Diálogo, que é mais simples a conversão de um
índio do que outros gentios, de onde surge a curiosa comparação entre um
índio brasileiro e um filósofo romano:
333
NÓBREGA, CB, p. 242.
334
Idem, pp. 242-243.
Pedro Brocco | 295
e esta é sua gloria; porque mais fazem, a lei natural não guardam, porque se
comem, são luxuriosos, muito mentirosos, nenhuma cousa aborrecem por má,
e nenhuma louvam por bôa; têm credito em seus feiticeiros335, aqui me encer-
rareis tudo; um philosopho é muito sábio, mas muito soberbo, sua bem-
aventurança está na fama ou nos deleites, ou nas victorias de seus inimigos,
muito malicioso, que a verdade que Deus lhe ensinou, escondeu, como diz São
Paulo, não guardam a lei natural, posto que a entendam, muito viciosos no
vicio contra a natura, muito tyrannos e amigos de senhorear, muito cobiçosos,
e mui temerosos de perderem o que têm, adoram ídolos, sacrificam-lhes san-
gue humano, e senhores de todo gênero de maldade, o que não achareis nestes
[índios], porque, segundo dizem os padres, que confessam, em dois ou tres
dos mandamentos, têm que fazer com elles, entre si vivem muito amigavel-
mente, como está claro, pois que nos parece maior punido para desfazer.336
335
Esta curiosa afirmação, dentro do Diálogo, contradiz frontalmente as afirmações das cartas de Nóbrega quando
este diz que os índios em nada crêem. Esta contradição já foi por nós apontada acima, mas o próprio Nóbrega a
apresenta ao final do Diálogo.
336
Idem, p. 244.
296 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
337
LEITE, Serafim S. J. A vida sacramental e os seus reflexos sociais no Brasil do tempo de Nóbrega (1549-1570).
Lisboa: Brotéria, vol. 75, pp. 28-47, 1962.
338
WETZEL, Herbert Ewaldo. Mem de Sá: terceiro Governador Geral (1557-1572). Rio de Janeiro: Conselho Federal
de Cultura, 1972.
298 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Mui mal olham que a intenção do nosso Rei santo, que está em gloria, não foi
povoar tanto por esperar da terra ouro nem prata, que não a tem, nem tanto
pelo interesse de povoar e fazer engenhos, nem por ter onde agasalhar os Por-
tugueses que lá em Portugal sobejam e não cabem, quanto por exaltação da Fé
Catholica e salvação das almas.340
O rei (D. João III) disse-me, quando me despedi dele, que por amor de Nosso
Senhor lhe escrevesse muito por extenso sobre a disposição que lá (nas Índias)
havia para a conversão daquelas pobres almas, doendo-se muito da miséria
em que estão metidas (...) É tanto o zelo que Sua Alteza tem da honra de Cristo
Nosso Senhor e da salvação dos próximos que é coisa para dar infinitos louvo-
res e graças a Deus por ver um rei que tão bem e piamente sente das coisas de
Deus: e assim que, se eu não fosse testemunha de tudo, como sou, não poderia
crer o muito que nele tenho visto. Rogue a Deus nosso Senhor e lhe acrescente
339
Carta de Pêro Vaz de Caminha, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Gaveta 8ª, Maço 2º, nº 8. Disponível em:
http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4185836, acesso em 07 de dezembro de 2017.
340
NÓBREGA, M. CB, pp. 198-199.
Pedro Brocco | 299
os dias de sua vida por muitos anos, pois tão bem os emprega e tão útil e ne-
cessário para seu povo.341
341
Epp. Xav. I 81-82: PP Ignatio de Loyola et Joanni Coduri, Romam ; Ulyssipone 18 martii 1541, In: WETZEL, Herbert
Ewaldo. Mem de Sá: terceiro Governador Geral (1557-1572). Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972, p. 155.
342
Entendimento presente em Herbert Ewaldo Wetzel, op. cit., p. 156.
343
Carta régia de 1565, assinada pelo Cardeal Infante D. Henrique, Regente do Reino. In WETZEL, Herbert E. op. cit.,
p. 158. Há também outra carta citada por Wetzel que fornece mais indícios de como a relação entre o poder régio e
os jesuítas era importante. Em carta enviada pela metrópole de Lisboa a Inácio de Loyola em 20 de outubro de 1555,
300 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
(...) ser Nosso Senhor nelas tão servido e seu nome tão conhecido e louvado
como por tantas razões o deve ser. E porque o meio de se isto conseguir é o
dos ditos Padres, que são tão virtuosos como sabeis, e que com todas suas
forças tanto procuram servir a Nosso Senhor, vos encomendo muito que te-
nhais particular cuidado como sei que tendes d’os favorecer a ajudar no que
vos requererem e virdes ser necessário.345
assinada por D. Anrique Rasteiro, Symão de Mello e Dom Martinho de Sousa, pode-se ler: “sejam em grande obriga-
ção a Vossa Paternidade por serdes o fundador de tão santa obra, parece que os portugueses hão de ter nisto o
primeiro lugar pelo grande benefício espiritual que nisso recebem... Certificamos que sua doutrina (dos padres) é
boa e santa e aprovada de todos os homens em que há razão e entendimento... Todo seu exercício é a caridade e
obrar misericórdia com os próximos, confessando continuamente, pregando, ensinando e consolando a todos...
Nosso Senhor há de permitir que os homens que com tanta bondade vivem e morrem, perseverem sempre em vir-
tude e santidade para seu serviço”, p. 157. Cerca de duzentos anos depois, será outra a “opinião pública” acerca dos
jesuítas.
344
WETZEL, Herbert E. idem, ibidem.
345
Idem, pp. 157-158.
Pedro Brocco | 301
Não estão (os índios) sujeitos a nenhum rei ou chefe e só têm nalguma estima
aqueles que fizeram algum feito digno de homem forte. Por isso, frequente-
mente, quando os julgamos ganhos, recalcitram, porque não há quem os
346
Idem, p. 159.
302 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
obrigue pela força a obedecer; os filhos obedecem aos pais conforme lhes pa-
rece; e finalmente cada um é rei em sua própria casa e vive como quer: por
isso nenhum fruto, ou ao menos pequeníssimo, se pode colher deles, se não se
juntar a força do braço secular, que os dome e sujeite ao jugo da obediência.
Vivendo sem leis nem autoridade, segue-se que não se podem conservar em
paz e concórdia.347
347
Carta de Anchieta a Inácio de Loyola, Monumenta Brasiliae, II, In: WETZEL, Herbert E. op. cit., pp. 159-160.
Pedro Brocco | 303
348
Cf. LAMANA, Gonzalo. Dominación sin dominio: el encuentro inca-español en el Perú colonial temprano. Cusco:
Centro de Estudios Regionales Andinos Bartolomé de Las Casas, 2016.
304 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
349
Carta de Nóbrega a Inácio de Loyola, S. Vicente, 25 de março de 1555, Monumenta Brasiliae II, 171. In: WETZEL,
Herbert E. op. cit., p. 162.
350
Idem, ibidem.
351
Idem, p. 162.
352
Idem, ibidem. Trecho de carta de Nóbrega a Tomé de Sousa, Bahia, 5 de julho de 1559.
Pedro Brocco | 305
concepção teológica. Nóbrega diz em suas cartas que os índios não possu-
íam nem juramentos nem ídolos, mas vimos como esta afirmação não se
sustenta muito bem: seja pelo juramento de vingança do vencido e devo-
rado no ritual antropofágico, seja pelos costumes dos feiticeiros com os
maracás, o fato é que o índio brasileiro possuía um sistema de crenças.
As maiores dificuldades para a conversão situavam-se na ordem so-
ciológico-moral, de acordo com Herbert Wetzel, de modo especial os
costumes alheios ao modo de vida europeu, sobretudo a antropofagia353.
Havia entre os padres a discussão acerca da inocência dos índios, so-
bretudo em matéria sexual. Anchieta parece fazer uma distinção entre a
vida sexual dos chefes (principais) que tinham muitas mulheres e filhos e
os outros índios, de modo que pudesse haver uma corrupção ou concupis-
cência no fato da poligamia. A possibilidade da poligamia estava atrelada
a uma questão de fundo econômico: para possuir maior número de mu-
lheres, era preciso que se lhes garantisse a subsistência. Diz Anchiteta,
citado por Wetzel: “muitos não têm mais que uma só (mulher), mas se é
grande principal e valente, tem dez, doze, vinte”354. A maior parte dos ín-
dios, assim, não possuíam mais que uma mulher, como reconhece
Anchieta na Informação do Brasil. Anchieta observa também a facilidade
com que as índias provocavam o aborto em si mesmas355.
Fernão Cardim encontra inocência nos índios apenas em relação à
nudez, e chega a observar que a inocência não era geral e que os índios na
bebedeira tomavam as mulheres alheias356.
A erradicação da poligamia passou, então, por diversos pontos con-
correntes: a questão econômica, da concentração de bens e prestígio em
um só principal; os ritos e costumes envolvendo entorpecentes, como o
cauim, que turvavam a reta razão na condução da própria vida; a profa-
nação do corpo próprio e alheio. O fato é que na colônia brasileira logrou-
353
Idem, p. 163.
354
Idem, p. 164.
355
Idem, ibidem.
356
Cf. CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Univer-
sidade de São Paulo, 1980, p. 89.
306 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
357
Em recente conferência do Prof. Gil Wa-Nhamymba (José Gil Vicente) intitulada África e Direitos Humanos: o caso
de Moçambique, proferida em dezembro de 2017 na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, se
pôde ter uma dimensão da persistência da poligamia no interior de Moçambique. E os motivos econômicos de fundo
acompanham a poligamia dos índios brasileiros de quinhentos anos atrás: a poligamia é insustentável em cenários
de urbanização, como o das maiores cidades de Moçambique. O trabalho assalariado favorece a constituição de pe-
quenos núcleos familiares, de modo que também aí há desvalorização do trabalho doméstico.
358
Carta de Antônio Blazquez ao Pe. Diogo Laynes, Bahia, 1º de setembro de 1561, In WETZEL, Herbert. E. op. cit., p.
165.
359
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 307
bispo Dom Pedro Leitão, que se encontrava igualmente alinhado aos jesu-
ítas.
Além da prática da poligamia, a erradicação da antropofagia talvez
tenha sido o ponto mais sensível para a fundação de uma sociedade colo-
nial no Brasil. Isto porque a antropofagia fazia parte de uma dinâmica
social de relações intertribais que tornava impossível a formação de vín-
culos sociais mais extensos para além de núcleos tribais. A antropofagia
ocupava uma função que transcendia a mera motivação alimentar. Ob-
serva Wetzel:
Não vem ao caso examinar aqui os motivos da antropofagia das tribos brasi-
leiras. Não a praticavam, é certo, por razões de caráter alimentar. A
antropofagia tinha um significado diferente, quer guerreiro, quer religioso-
social. Nóbrega diz que os índios não se podiam afastar das Aldeias sem licença
dos padres para não irem «comunicar ou comer carne humana». Com isso
sugere o sentido ritual da antropofagia. Os índios «comungavam a carne do
inimigo» para lhe tomar o nome e participar de sua força e valentia.360
360
WETZEL, op. cit., p. 167.
308 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
nomes nas cabeças de seus contrarios, nem entre elles ha festas que che-
guem ás que fazem na morte do que matão com grandes ceremonias
(...)”361.
Desde Cardim, passando por Wetzel, há um esforço de compreensão
dos ritos antropofágicos que apontam para o seu papel no modo de vida
indígena. No caso da construção da memória, esse papel não difere da co-
municação dos mitos e mesmo da função da rede sacramental, ela também
funcionando como rito em que se come, no caso da eucaristia, o corpo de
Cristo representado pelo pão consagrado. A antropologia chega ao século
XX trabalhando a questão da antropofagia do ponto de vista de sua função
nas sociedades indígenas, e também o seu papel na construção da memó-
ria social através da vingança (a antropofagia perfazia sempre uma
vingança). Neste sentido, pode-se citar tanto a tese de Florestan Fernan-
des362 quanto os trabalhos desenvolvidos por Manuela Carneiro da Cunha
e Eduardo Viveiros de Castro363.
Tratando-se de rito incompatível com o modo de vida cristão orien-
tado pelos sete sacramentos, a antropofagia aparece nas páginas mais
dramáticas das correspondências de Nóbrega, quando relata a tolerância
e mesmo o fomento das guerras intertribais pelos colonos, orientados por
interesses econômicos de captura da mão-de-obra escrava dos índios.
Também explicita Wetzel em referência a uma carta de Pero Rodrigues,
escrita na Bahia em 19 de dezembro de 1559: “A antropofagia era praticada
361
CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1980, pp. 95-96.
362
FERNANDES, Florestan. A função social da guerra na sociedade tupinambá. 3. ed. São Paulo: Globo, 2006. Flores-
tan Fernandes estudou a sociedade tupinambá tanto em sua dissertação quanto na tese. Em 1946, tornou-se mestre
em Ciências Sociais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo com dissertação que possuía o título A organi-
zação social dos Tupinambá. Em 1951, tornou-se doutor em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo,
defendendo tese de título A função social da guerra na sociedade tupinambá, publicada em 1952.
363
CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009. O conceito
central da figura da vingança na organização social tupi foi sustentada de forma consistente há pouco mais de trinta
anos no trabalho Vingança e temporalidade: os Tupinambá, de Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de
Castro. O ponto de partida deste ensaio foram as observações de Carneiro da Cunha expostas na defesa da tese de
Viveiros de Castro, em que se fazia a crítica da explicação funcionalista que Florestan Fernandes deu à vingança e à
guerra em sua obra A função social da guerra entre os Tupinambá (1952).
Pedro Brocco | 309
364
WETZEL, op. cit., p. 167.
365
Carta de 5 de julho de 1559, Bahia, citada acima.
310 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
366
Aqui entendida em seu sentido amplo: desde a Igreja até o étimo que lhe dá origem, o qual remonta às assembleias
da democracia ateniense. De modo geral, este termo multissecular e muito caro à tradição ocidental designa espaços
de fala e discurso; retórica e convencimento. De certa maneira, a conversão procedia pela sublimação e conquista
espiritual, de modo que os principais costumes que buscavam ser combatidos incidiam diretamente sobre a carne:
antropofagia, poligamia, bebedeira. A eclesia representa um modo de vida de laço social urdido pela palavra, em
torno da construção de um conceito (imaginário) de soberania.
367
WETZEL, Herbert. Op. cit., p. 168.
368
Idem, p. 169.
Pedro Brocco | 311
Aqui veio a São Roque um frade que diz que V. Rev. fez um libelo contra ele.
Não deixaria de haver alguns bons respeitos que movessem a isso, mas ainda
que os houvesse, é muito contra o modo de proceder da Companhia e causa
algum escândalo. Tenha V. Rev. conta, por amor de Deus, que não use de suas
letras senão no foro interno, pois o foro externo não é nosso.369
369
Carta do padre Miguel de Torres ao padre Manuel da Nóbrega, Lisboa, 12 de maio de 1559. In: WETZEL, Herbert,
op. cit., p. 169.
312 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
de Vitoria: ainda que não possuísse espaço na cátedra, como havia sido seu
desejo de juventude, pôs-se a escrever um tratado jurídico de tal relevância
crítica para o campo político de sua época que acabou, quiçá por isto, su-
primido e perdido.
Wetzel observa que “na luta contra a antropofagia valiam-se os pa-
dres do seu prestígio junto aos naturais. Mas para o triunfo completo
requeria-se a força do poder civil, e nisso nem sempre a colaboração foi
suficiente. Tomé de Sousa deu alguma ajuda, D. Duarte da Costa quase
nenhuma”370.
D. Duarte da Costa, aliás, protagonizou um dos primeiros episódios
de instauração da lei penal em território brasileiro. Instado pelos jesuítas
a proibir a antropofagia nos arredores da Bahia, D. Duarte da Costa proi-
biu-a sob pena de morte, mas nada fazia para a fiscalização e execução da
pena. Nóbrega observa que o governador-geral deu ordem “de tal maneira
que ainda que a comessem, não se fazia por isso nada, e assim a comiam
a furto de nós e pelas outras Aldeias ao derredor, mui livremente”371.
A novidade que traz Mem de Sá, aperfeiçoando a gestão de Tomé de
Sousa, concentra-se na eficácia da lei civil. Wetzel fala em “fase decisiva” e
“colaboração eficiente de Mem de Sá”372. Colaborando com os jesuítas, tem
como uma das primeiras medidas de governo a proibição absoluta da an-
tropofagia.
O governo Mem de Sá acentua a primeira inflexão do Brasil colônia
contra a escravização dos índios, vendo-os sobretudo como súditos da Co-
roa, ao mesmo tempo em que há paradoxalmente a expansão da
escravização para abastecer os engenhos. Na verdade, pelo exame das fon-
tes, não é possível afirmar se o alinhamento de Mem de Sá aos jesuítas,
sob os auspícios da Coroa, de fato significava uma vontade política de tor-
nar os índios brasileiros súditos da Coroa portuguesa, ou se a tendência
sofrera modificação temporária com vistas ao uso da mão-de-obra nativa
370
WETZEL, Herbert, op. cit., p. 169.
371
Carta de Nóbrega a Tomé de Sousa, Bahia, 5 de julho de 1559. In: WETZEL, Herbert, op. cit., p. 170.
372
WETZEL, Herbert, op. cit., p. 170.
Pedro Brocco | 313
373
SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia, op. cit., p. 37.
374
João Calvino torna-se doutor em Direito em Orleans em 1532. Seu primeiro trabalho publicado foi um comentário
sobre o texto De Clementia, do filósofo romano Sêneca. Calvino escolhe justamente um filósofo expoente do estoi-
cismo para escrever um trabalho em que reflete sobre o sentido estoico da predestinação.
Pedro Brocco | 315
375
SCHWARCZ; STARLING, idem, p. 39.
376
Cf. CHEMAMA, Roland. “Singularidades ou universalidade? O índio Tupinambá na obra de Jean de Léry”. Narra-
tivas do Brasil: cultura e psicanálise. Porto Alegre: APPOA, 2005, pp. 18-24.
316 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
377
Cf. toda essa narrativa em HANSEN, João Adolfo. Manuel da Nóbrega, op. cit., pp. 42 e ss.
Pedro Brocco | 317
378
SILVA, Maria Beatriz Nizza da (Coord.). Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil. Lisboa: Verbo,
1994, verbete “Mem de Sá”, pp. 730-731.
Pedro Brocco | 319
379
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000, p. 11.
Pedro Brocco | 321
380
Idem, p. 13.
381
Idem, ibidem.
382
Idem, ibidem.
322 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
383
Cf. SCHWARCZ, Lilia; STARLING, Heloisa. Brasil: uma biografia, op. cit., capítulo 2 (“Tão doce como amarga: a
civilização do açúcar”), pp. 50-78.
384
ALENCASTRO, op. cit., p. 14.
385
Idem, ibidem.
386
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 323
387
Donde se extraem as curiosas raízes do nome Copacabana, transferido ao Rio de Janeiro por peruleiros que incur-
sionavam pela região dos Andes, entre o Peru e a Bolívia. Ali, às margens do Lago Titicaca, está situada a cidade de
Copacabana, a qual possui, por sua vez, raiz na expressão kota kahuana do dialeto aymara, que significa “vista do
lago”.
388
Idem, p. 157.
324 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
1
COSTA, J.P.O; RODRIGUES, V.L.G. Construtores do Império. Lisboa: A esfera dos livros, 2017, p. 228.
2
Carta régia de 06 de abril de 1506 para o vice-rei, retirada de COSTA, J.P.O; RODRIGUES, V.L.G, idem, ibidem.
3
COSTA, J.P.O; RODRIGUES, V.L.G. idem, ibidem.
326 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
4
FRÓIS, Luís. Historia de Japam, volume I (1549-1564). Ed. anotada por José Wicki S. J. Lisboa: Biblioteca Nacional
de Lisboa, 1976.
5
“A expedição de Magalhães permitiu ganhar uma melhor noção do oceano Pacífico e abriu um novo contencioso
luso-castelhano a propósito da posse das Molucas”. COSTA, J.P.O et. al. História da expansão e do Império português.
Lisboa: A esfera dos livros, 2014, p. 133.
6
COSTA, J.P.O et. al. História da expansão e do Império português, ibidem.
Pedro Brocco | 327
7
BOXER, Charles R. O império marítimo português 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 66.
328 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
8
A referência a São Tomé no Oriente Médio e Ásia possuiu fortes raízes no cristianismo primitivo. Com a descoberta
da Biblioteca Nag Hammadi, em 1945, no Alto Egito, constante de treze códices de papiro embrulhados em couro
dentro de um jarro de barro enterrado, formando uma coleção de textos do cristianismo primitivo que vai da funda-
ção até o Primeiro Concílio de Niceia (325 d. C.), havia entre os escritos um Evangelho de Tomé. Cf. GREENBLATT,
Stephen. Ascensão e queda de Adão e Eva. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 67.
9
Esta é a hipótese, em linhas gerais, de Sérgio Buarque de Holanda em Visão do Paraíso.
10
Tal perspectiva possui continuidade com a literatura produzida já no século XX por missionários cristãos, não
necessariamente provenientes da Igreja Católica, como o canadense Don Richardson, que publicou nos anos 1980 O
fator Melquisedeque, também justificando a missionação e a presença do Deus cristão em todas as culturas do mundo.
Sobre Tomé, Richardson escreve: “Tomé, diz a tradição, permitiu que a última linha da Grande Comissão o levasse
à ‘Índia’. Naqueles dias, a palavra ‘Índia’ significava tudo o que estava a leste da Síria; porém a evidência indica que
Tomé pode ter alcançado até a região de Madras, que fica na extremidade sul da Índia propriamente dita. Várias
igrejas muito antigas nessa região se dão o nome de Mar Toma. O nome Toma talvez seja derivado de Tomé”. Cf.
Pedro Brocco | 329
RICHARDSON, Don. O fator Melquisedeque: o testemunho de Deus nas culturas por todo o mundo. São Paulo: Vida
Nova, 2008, p. 228.
11
“(...) o próprio resgate e escravidão dos índios americanos, assim como dos negros africanos, que os portugueses,
mesmo os jesuítas portugueses, foram naturalmente menos solícitos em combater com razões teológicas do que
numerosos autores castelhanos, a começar por Vitória e Las Casas, poderiam ser praticados, nessas condições, sem
excessivo escrúpulo. Pois uma vez admitida a pregação universal do Evangelho, tenderiam por força a alargar-se as
possibilidades de guerra justa contra alguns povos primitivos, equiparados, agora, não a simples gentios, ignorantes
da verdade revelada, mas aos apóstatas”. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no
descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 201.
12
CUNHA, Manuela Carneiro da. “Imagens de Índios no Brasil: O Século XVI”. Estudos Avançados, v. 4 n. 10. São
Paulo, USP, 1990.
330 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Sabem do dilúvio de Noé, bem que não confirme a verdadeira historia; pois
dizem que todos morreram, excepto uma velha que escapou em uma arvore.
Têm noticia egualmente de S. Thomé e de um seu companheiro e mostram
certos vestigios em uma rocha, que dizem ser delles, e outros signaes em S.
Vicente, que é no fim desta costa. Delle contam que lhes dera os alimentos que
ainda hoje usam, que são raizes e hervas e com isso vivem bem.14
Dizem elles que S. Thomé, a quem elles chamam de Zomé, passou por aqui, e
isto lhes ficou por dito de seus passados e que suas pisadas estão signaladas
juncto de um rio; as quaes eu fui ver por mais certeza da verdade e vi com os
proprios olhos, quatro pisadas mui signaladas com seus dedos, as quaes algu-
mas vezes cobre o rio quando enche; dizem também que quando deixou estas
pisadas ia fugindo dos Indios, que o queriam frechar, e chegando ali se lhe
abrira o rio e passara por meio dele a outra parte sem se molhar, e dalli foi
para a India.15
13
NÓBREGA, Manuel da. Cartas do Brasil, op. cit., p. 78. Carta a Simão Rodrigues, Bahia, 1549.
14
Idem, p. 91. Carta ao Dr. Navarro, seu mestre em Coimbra, Salvador, 1549.
15
Idem, p. 101. Informação das terras do Brasil, 1549.
Pedro Brocco | 331
16
A Nova Gazeta da Terra do Brasil (Newen Zeytung auss Presillg Landt), tradução portuguesa e reprodução em fac-
símile. Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, volume XXXIII, 1911.
332 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
17
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 172.
18
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 333
(...) enquanto a Igreja se via impelida a uma ampla revisão de suas antigas
posições, buscando renovar a própria estrutura ideológica de acordo com a
imagem do mundo que se começava, pela primeira vez, a descortinar, a sim-
ples tentativa de identificação de um herói mítico ancestral dos índios do Brasil
com o apóstolo das Índias deveria simplificar as dúvidas, fornecendo uma so-
lução concreta e “histórica” para o problema. Solução coincidente, aliás, com
as teses a que permaneciam fiéis muitos dos mais ilustres teólogos da Con-
trarreforma, como Belarmino, ainda aferrados à ideia da universal pregação
dos apóstolos, que teria chegado às remotíssimas ilhas do Mar Oceano onde,
perdida mais tarde a lembrança delas, ia sendo reavivada agora pelos novos
apóstolos.19
19
HOLANDA, Sérgio Buarque de. op. cit., p. 201.
334 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
20
Idem, p. 191.
21
XAVIER, São Francisco. Obras completas. Braga: Editorial A. O; São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 277. Trata-se
da carta de 10 de maio de 1546 escrita aos companheiros da Europa.
Pedro Brocco | 335
Poucos anos depois, Xavier escreveria, desde o Japão, acerca das con-
fluências culturais e ideológicas das tradições sino-japonesas, seja com
respeito à forma da escrita, seja em relação aos costumes e à religião, afir-
mando claramente que, ao menos quanto ao budismo, tratou-se de
formação cultural transplantada desde a China. Ao morrer às portas da
China fechada então aos portugueses, Francisco Xavier indiciava um pla-
nejamento de, iniciada e consolidada a missão chinesa, conseguir, de
forma mais eficaz e desde a raiz, converter o Japão.
No entanto, chama atenção, na busca dos rastros de São Tomé na
Ásia, a falta de menção à passagem do herói apóstolo pelo Japão, como
ocorrera em relação à Índia, ao Brasil e mesmo à China.
Pode-se arriscar uma talvez precipitada conclusão a partir das epís-
tolas de Xavier: quando se analisa o aparecimento dos “nativos” nas cartas
jesuíticas brasileiras, sobretudo as aqui analisadas de Nóbrega, e japone-
sas, em por exemplo Xavier e nos escritos de Fróis, percebe-se que no
Japão o nativo funciona como um personagem do relato, com nome e iden-
tidade pessoal, atributos e descrições de traços mais ou menos bem
definidos.
Ora, a missão japonesa tem sua inauguração com a comitiva liderada
por Xavier, da qual fazia parte um importante personagem da narrativa
jesuíta acerca do Japão: Anjirô ou Paulo de Santa Fé, um japonês conver-
tido ao cristianismo que dominava os fundamentos da língua portuguesa,
tendo já escrito uma missiva para Inácio de Loyola, enviada a Roma22. Con-
vertido no circuito que vai de Malaca a Goa, Paulo de Santa Fé funciona
como personagem e também como uma espécie de modelo ou paradigma
da capacidade de conversão dos nativos japoneses. Como expressa Xavier
em carta escrita de Malaca, dois dias antes da partida para o Japão, ou seja,
22
ANJIRÔ. Carta de Paulo Iapão (que antes de se converter à nossa santa fé se chamava Angéro) para o padre M.
Inacio de Loyola, fundador da Companhia de IESV em Roma, & mais padres & irmãos da mesma Companhia, escrita
em Goa, a 29 de Novembro de 1548. In Cartas que os padres e Irmãos da Companhia de Iesus escreverão dos Reynos
de Iapão & China aos da mesma Companhia da India & Europa des do anno de 1549 ate o de 1580, Primeiro tomo.
Évora: Manoel de Lyra, 1598, pp. 3-4.
336 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Uma coisa me disse Paulo de Santa Fé, japão, nosso companheiro, de que fico
muito consolado: e é que – me disse – no mosteiro de sua terra, onde há muitos
frades e Estudo, entre eles têm um exercício de meditar, o qual é este: o que
tem cargo da casa, superior deles, que é o mais letrado, chama-os a todos e
faz-lhes uma prática à maneira de pregação; e, então, diz a cada um deles que
medite pelo espaço de uma hora. Sobre este ponto: quando um homem está
expirando e já não pode falar, quando a alma se despede do corpo, se então
em a tal separação e apartamento da alma pudesse falar, que coisas diria a
alma ao corpo? E assim por conseguinte, se os que estão no purgatório ou
inferno a esta vida tornassem, que diriam? Depois, passada a hora, pergunta
o superior de casa a cada um deles o que, na tal hora que meditou, sentiu: se
algumas coisas boas diz, gaba-o; e, pelo contrário, repreende-o quando diz coi-
sas que não são dignas de memória. Dizem que estes Padres pregam ao povo,
de quinze em quinze dias, e acode muita gente às suas pregações, assim ho-
mens como mulheres; e que choram nas pregações, principalmente as
mulheres; e que, o que prega, tem pintado o inferno e seus tormentos e mostra
aquelas figuras ao povo. Isto me contou Paulo de Santa Fé.23
23
XAVIER, São Francisco. op. cit., p. 489. Carta enviada à Companhia de Jesus na Europa, Malaca, 22 de junho de
1549.
Pedro Brocco | 337
24
Idem, p. 511. Carta escrita aos companheiros residentes em Goa, Cangoxima, 5 de novembro de 1549.
25
Idem, p. 513.
26
Idem, p. 522.
27
Idem, p. 538. Cata escrita ao padre Paulo Camerino, Cangoxima, 5 de novembro de 1549.
28
Idem, p. 578 e ss. Carta escrita ao padre Inácio de Loyola (Roma), Cochim, 29 de janeiro de 1552.
338 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
Estava claro também que os inacianos não poderiam contar com in-
cursões militares da Coroa portuguesa para auxiliar os esforços
missionários, como passou a acontecer no Brasil.
Alcir Pécora observa que Nóbrega passou a se aproximar de Sepúl-
veda em relação ao método de ação missionária, adotando o medo à
doutrina para que os índios se apartassem de costumes considerados
maus. Ao fazer observações sobre um escrito do jesuíta José de Acosta, De
procuranda indorum salute, de 1576, Pécora identifica três métodos de
ação missionária: o primeiro deles seria o apostólico ou orientado pelo
amor, aproximando-se dos primeiros apóstolos de Cristo, segundo o qual
a pregação apostólica se faz sem qualquer uso de aparato militar. O se-
gundo método referido por Acosta se restringiria aos povos já sujeitos aos
príncipes cristãos, sendo útil para a “colonização” de territórios já ocupa-
dos e não para a “exploração” de novos territórios e nações. Neste método
seria decisivo não se opor à jurisdição civil dos príncipes. O terceiro mé-
todo de evangelizar, anunciado por Acosta como um “novo método”
adaptado a um “novo gênero de homens” e já praticado por Nóbrega no
Brasil, propõe que a pregação a novas nações seja acompanhada de tropas
de soldados para defesa da vida dos missionários, “dados os costumes bru-
tais dos índios”29. Uma união de soldados e missionários que formaria uma
solução híbrida de evangelização, religiosa e secular, envolvendo a sujeição
política como pressuposto e reforço da evangelização.
A solução híbrida de evangelização aplicada no Brasil teria muitas di-
ficuldades no caso do Japão, em razão da distância do arquipélago e do
investimento que a Coroa portuguesa deveria realizar em tempos de crise
econômica e diminuição de seu poder geopolítico.
Assim, a ausência da menção da passagem de São Tomé pelo arqui-
pélago japonês poderia indicar uma manifesta dificuldade de extensão da
29
PÉCORA, Alcir. “Cartas à Segunda Escolástica”, in NOVAES, Adauto (org.). A outra margem do Ocidente. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999, p. 404.
Pedro Brocco | 339
Uma possível razão, teológica, para este fato, talvez se deva também
à exterioridade dos japoneses em relação ao laço camita, que ligaria os
africanos, os indianos e os nativos brasileiros, todos chamados de forma
mais ou menos homogênea de negros (no caso dos brasileiros, “negros da
terra”). Supôs-se que os índios brasileiros tivessem notícia de São Tomé e
também do dilúvio, e de que pudessem ser descendentes de Cam31, como
observa Manuela Carneiro da Cunha:
30
XAVIER, op. cit., p. 569. Carta escrita aos companheiros da Europa, Cochim, 29 de janeiro de 1552.
31
Cam, um dos filhos de Noé, ao deparar-se com a nudez de seu pai embriagado e contado o ocorrido a seus irmãos,
ao invés de guardar o pudor e cobrir o pai, é por ele amaldiçoado a ser “servo dos servos” a seus irmãos. A imagem
de Cam foi invocada pelos defensores do racismo e da escravidão de negros africanos, sob a alegação de que descen-
diam de Cam. Cam teria se mudado para o sudeste da África e sido o patriarca de importantes nações, entre elas os
povos cananeus, Núbia, no vale do Nilo, envolvendo egípcios, etíopes e sudaneses, Sabá e Nimrod, estando ligado aos
povos de pele escura. No Brasil, Cam foi evocado para justificar a escravidão e aproximar os índios aos africanos
enquanto “descendentes da maldição de Cam”.
32
CUNHA, Manuela Carneiro, op. cit., p. 102.
340 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
33
Cf. GREENBLATT, op. cit. Especula-se que tais escritos pudessem ter pertencido ao mosteiro de São Pacômio,
considerado o fundador do monasticismo cenobita.
34
XAVIER, op. cit., p. 583. Carta escrita a Inácio de Loyola, Cochim, 29 de janeiro de 1552.
35
João Adolfo Hansen observa que a escolha léxica neste sentido não é neutra e implica categorias teológico-políticas
do agente: “Em outras palavras, a seleção léxica e sua combinatória no discurso indicam para o destinatário os cam-
pos semânticos do agente, como paradigmas institucionais interpretantes dos discursos locais. No caso de Nóbrega,
o uso constante de um termo como “negro” para referir índios e africanos, por exemplo, é decorrência do pensamento
analógico operante em sua teologia-política, que constitui em uns e outros a mesma carência de Bem, como “genti-
lidade” herdeira do pecado de Cam e, ainda, de um critério jurídico, que para uns e outros postula o “naturalmente
escravo”, como bárbaros interpretados através da Política aristotélica. In HANSEN, João Adolfo. “O nu e a luz: cartas
Pedro Brocco | 341
aos nativos da Índia, da África e do Brasil, Xavier denotava com sua obser-
vação a aproximação dos provenientes do ambiente sino-japonês aos
europeus, assim como Valignano se esforçará por mostrar, anos depois,
em relação aos japoneses, definindo-os como “um povo nobre e racio-
nal”36. No entanto, diante a impossibilidade de abarcá-los em uma
genealogia comum, os jesuítas se verão diante de uma espessa barreira:
tanto linguística quanto cultural, religiosa e política.
A solução talvez seja fornecida pela obra de Luís Fróis, tanto em sua
Historia de Japam quanto em seu Tratado das contradições e diferenças
entre a Europa e o Japão, isto é, uma aproximação invertida em um espe-
lhamento de semelhança e diferença, tornando os japoneses na mesma
medida avessos e próximos.
Incorporando e tornando inteligíveis os japoneses e seus costumes e
crenças a partir de descrições minuciosas dos mesmos, Fróis operaria a
reflexão sobre o “estatuto do alheio”37 e do dessemelhante; não, porém,
utilizando categorias teológicas como fez Nóbrega ao especular sobre a nu-
dez dos índios como efeito de sua descendência de Cam, mas descrevendo
sua estrutura social e comportamental como que a partir de dentro, bem
jesuíticas do Brasil. Nóbrega – 1549-1558”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 38, pp. 87-119,
1995.
36
MORAN, J. F. The Japanese and the Jesuits: Alessandro Valignano in sixteenth-century Japan. London/New York:
Routledge, 1993, p. 192.
37
Cf. CUNHA, Manuela Carneiro, op. cit., p. 103.
342 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)
38
Citando novamente o estudo seminal de Hansen: “(...) ao mesmo tempo que a maravilha ou a fantasia das descri-
ções efetuam-se como novidade e desconhecimento do destinatário, a técnica retórica de composição de mistos
suplemente a ignorância, pois propõe os monstros e as maravilhas brasileiras como espécies novas de um gênero já
conhecido e partilhado. O que é homólogo da concepção teológico-política dos agentes da correspondência. Não pen-
sam a nova terra e o gentio que a habita antropologicamente, deve ser óbvio, mas os propõem sempre como o Mesmo,
que faz do mundo uma figura do Ditado. Quando atualiza a fala do agente da correspondência, a escrita suplementa
a mesma ausência de conhecimento pela reiteração do código aplicado à sua produção; desta forma, como uma
repetição doutrinária da participação dos agentes da correspondência na unidade divina que fundamenta a política
da Ordem, toda diferença da experiência é traduzida como um análogo distante, por isso mesmo reconhecível e
identificável, quando sua estranheza é interpretada pela Palavra que se espelha na proporção retórica do discurso”,
HANSEN, “O nu e a luz”, op. cit., p. 94. No entanto, no caso dos japoneses, o Mesmo se deslocaria de um registro
puramente teológico para um registro civil, político e relativo aos costumes. Os japoneses e chineses seriam conver-
tidos na medida em que os missionários se adaptassem aos seus costumes e, assim o fazendo, também se
convertessem a eles.
39
Idem, p. 114: “Uma vez, contudo, que o jesuíta defende a tese tridentina de que o gentio tem alma, não a classifica
como ausência da luz do Bem, o que seria herético, mas como falta, explicitada no enunciado como indeterminação
do modo da sua participação na Causa Primeira. Na alma bárbara, Deus se escreve também, mas torto e em linhas
tortas, desde aquele dia em que confundiu o orgulho de Nemrod na Torre de Babel. No índio, como na frase de São
Paulo, vidimus nunc per aenygmatem, cabendo ao padre fazer a ortopedia do sagrado, rasurando o mato, endirei-
tando o traço, grafando o tipo, tatuando a Letra para que se acenda a luz do ‘verbo interior’ na sua alma selvagem”.
Ora, como aplicar semelhante entendimento a culturas que se distinguiam pela arte da caligrafia e domínio do traço
sensível do pincel? O esforço jesuíta, pois, era o de, citando o São Paulo de Hansen, não fazer ver por enigma, através
da cultura dessemelhante, a alma enquanto falta, mas fazer ver pelo espelho a Mesma imagem.
40
Outra chave de leitura a respeito da “mudez” do índio brasileiro é fornecida também por Hansen: “A cegueira da
Luz e a mudez do Verbo escrevem-se visíveis e falantes como nudez do seu corpo, interpretado como um vazio do
sentido, dado a ler/ver na abominação de suas práticas, simulacros de Anhangá-Diabo”, idem, p. 115. No caso dos
japoneses, a incidência do Vazio/vazio do sentido é feita pelo seu próprio discurso, não é exterior a ele e nem mesmo
definida pelo outro. Ao contrário, tal Vazio “interno” que aparece na doutrina budista e no taoísmo e que seria con-
trário à ideia aristotélico-tomista de Causa Primeira se coloca desde o início da missão japonesa como um grande
desafio do ponto de vista teológico-político.
A Editora Fi é especializada na editoração, publicação e divulgação de pesquisa
acadêmica/científica das humanidades, sob acesso aberto, produzida em parce-
ria das mais diversas instituições de ensino superior no Brasil. Conheça nosso
catálogo e siga as páginas oficiais nas principais redes sociais para acompanhar
novos lançamentos e eventos.
www.editorafi.org
contato@editorafi.org