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Linguagem e Colonização

Diretores da Série
Prof. Dr. Niltonci Batista Chaves
Departamento de História, UEPG
Profa Dra. Valeria Floriano Machado
Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação-UFPR

Comitê Editorial Científico


Prof. Dr. Cezar Karpinski
Departamento de Ciência da Informação/UFSC
Prof. Dr. Charles Monteiro
Departamento de História, PUC-RS
Prof. Dr. Cláudio DeNipoti
Departamento de História, UEL
Prof. Dr. Cláudio de Sá Machado Júnior
Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação, UFPR
Profa. Dra. Daniela Casoni Moscato
SEED PR
Prof. Dr. Erivan Cassiano Karvat
Departamento de História, UEPG
Prof. Dr. Fabio Nigra
Departamento de História, Universidad de Buenos Aires
Profa. Dra. Georgiane Garabely Heil Vázquez
Departamento de História, UEPG
Prof. Dr. José Damião Rodrigues
Centro de História, Universidade de Lisboa
Profa. Dra. Méri Frotscher Kramer
Departamento de História, UNIOESTE
Profa. Dra. Patrícia Camera Varella
Departamentos de Artes, UEPG.
Prof. Dr. Robson Laverdi
Departamento de História, UEPG
Profa. Dra. Rosângela Wosiack Zulian
Departamento de História, UEPG
Linguagem e Colonização

Análise comparada das missões jesuítas


no Brasil e no Japão (1549-1587)

Volume 1

Pedro Brocco
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Lucas Margoni

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de


cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva responsabili-
dade de seu respectivo autor.

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estão sob os direitos da Creative Commons 4.0
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Série História, Cultura e Identidades – 14

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


BROCCO, Pedro

Linguagem e Colonização, volume 1: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587) [recurso
eletrônico] / Pedro Brocco -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020.

342 p.

ISBN - 978-65-87340-57-9
DOI - 10.22350/9786587340579

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Linguagem; 2. Colonização; 3. Brasil; 4. Japão; 5. Jesuítas; I. Título.

CDD: 900
Índices para catálogo sistemático:
1. História 900
O homem é um animal metafísico.
(Alain Supiot, Homo juridicus)

Uma noite adormeci com tabaco na boca. Despertei com medo de despertar.
Parece que sabia: tinha nascido em mim uma asa de morcego. Com repug-
nância, na escuridão, procurei minha maior faca. Cortei-a. Caída, à luz do
dia, era uma mulher morena e eu dizia que a amava. Levaram-me preso.
(Antonio Di Benedetto, Zama)

A argila é trabalhada na forma de vasos


Através da não-existência
Existe a utilidade do objeto
(Lao Tse, Tao Te Ching, Capítulo 11: A utilidade do Nada)

A forma é o vazio, o vazio é a forma.


(Sutra do Coração)
Agradecimentos

Agradeço a todos aqueles que tornaram este trabalho mais fecundo:


Inicialmente, meus agradecimentos vão a três intelectuais brasileiros
cujas obras funcionaram como ponto de partida para a elaboração deste
livro: Alfredo Bosi e João Adolfo Hansen, da USP, e Alcir Pécora, da Uni-
camp. A eles estendo meus agradecimentos iniciais com o desejo de que
suas obras possam servir para a formação de um conjunto de pesquisas
mais amplo e denso sobre o período colonial brasileiro.
Agradeço muitíssimo à Viveca, por ter estado ao meu lado durante os
anos de pesquisa e escrita da tese.
Ao meu pai e à minha mãe, Marcos Célio e Luzianny, e ao meu irmão
Paulo, pelo amor e apoio incondicionais. Às minhas avós Ana e Itália, pelo
carinho; aos meus avôs (in memoriam): Alcides e Luiz, pelas lembranças,
histórias e caminhos traçados.
Ao orientador da tese que deu origem a este livro, Prof. Dr. Marcus
Fabiano Gonçalves, por ter acolhido as pretensões desta pesquisa desde o
primeiro momento na banca de seleção do doutorado.
Agradeço também aos professores e colegas que de alguma forma in-
fluenciaram os desdobramentos e a formação da tese: ao Prof. Antonio
Amaral Serra, pela valiosa ajuda com textos sobre a Segunda Escolástica
ibérica ou Escolástica Barroca e o pensamento português nos séculos XVI
e XVII. Ao amigo Jeferson Valadares, pelas conversas e pelas ideias que
puderam circular entre nós. Ao Prof. Jorge Leão, a quem agradeço pela
indicação de fontes sobre a missão jesuíta no Japão e sobre a atuação do
padre Luís Fróis. Agradeço também ao Prof. Samuel Delgado pelas valiosas
indicações sobre a Escola de Kyoto e o pensamento búdico-filosófico japo-
nês.
Devo um agradecimento especial às bibliotecas que abriram seu es-
paço e me acolheram ao longo dos anos de pesquisa e escrita da tese,
sobretudo o Real Gabinete Português de Leitura, a Biblioteca Brasiliana da
USP e a Biblioteca Rodolfo Garcia da Academia Brasileira de Letras, às
quais sou muitíssimo grato pela gentileza de toda a equipe e pelo inesti-
mável auxílio para a elaboração deste trabalho.
Aos colegas e professores do PPGSD-UFF, meu mais sincero agrade-
cimento. Do PPGSD, depois de sete anos de formação, incluídos o
mestrado e o doutorado, gostaria de agradecer sobretudo à professora Gi-
zlene Neder e ao professor Gisálio Cerqueira Filho, pelas aulas sobre
cultura jurídica e pensamento político luso-brasileiro, de fundamental im-
portância para este trabalho, além do fato de terem sido sempre
interlocutores instigantes e gentis.
Agradeço também aos meus alunos da UFF, para os quais desenvolvi,
nas disciplinas que conduzi, alguns tópicos deste livro.
Aos colegas e amigos do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise, onde
pude elaborar algumas intuições que atravessaram este trabalho.
À CAPES, cujo apoio institucional e financeiro foi fundamental para
a dedicação integral à pesquisa.
Por fim, agradeço aos professores que aceitaram fazer parte da banca
de avaliação da tese que deu origem a este livro.
Sumário

Apresentação ............................................................................................................ 13

Prefácio..................................................................................................................... 15

Introdução ................................................................................................................ 18

I ................................................................................................................................ 37
Os fundamentos da colonização do novo mundo
1.1 A atuação de Bartolomé de Las Casas............................................................................. 37
1.2 Filosofia moral e antropologia filosófica no centro da questão ....................................77
1.3 A Escola de Salamanca: Francisco de Vitoria e a fundamentação jurídica da
colonização: o nascimento do Direito Internacional moderno ......................................... 86
1.4 Aristóteles contra Alexandre: De potestate civili, 1528 ................................................ 89
1.5 Ainda 1528: o batismo de Catarina Paraguaçu na França e a formação de Mem de Sá
em Salamanca .......................................................................................................................102
1.6 De indis prior e posterior (1538-1539): o percurso teórico de Vitoria em torno do ius
communicationis e do ius missionis .................................................................................. 104
1.7 Civilizar: incursões entre território e consciência ....................................................... 119

II ............................................................................................................................. 123
A inscrição do outro na missão brasileira
2.1 O Brasil nascido de um desejo: o nome antes da terra ............................................... 123
2.2 O Governo Geral do Estado do Brasil e a sua composição administrativa (1548-
1549) .............................................................................................................................. 129
2.3 Da Ordem de Cristo à Companhia de Jesus: um protagonismo – das Navegações ao
Governo Geral do Estado do Brasil ..................................................................................... 135
2.4 As Cartas do Brasil e o Diálogo sobre a conversão do gentio, de Nóbrega: o papel
central da conversão na missionação jesuíta .....................................................................142
2.5 As Cartas do Brasil: o índio como papel branco .........................................................163
2.6 Balanço da primeira década da missão brasileira (1549-1560) ................................. 251
2.7 Da fundação de São Paulo ao Paraguai: o planejamento de Nóbrega ...................... 274
2.8 O Diálogo sobre a conversão do gentio: entre o sentido da ação e a ação do sentido . 279
2.9 O governo de Mem de Sá e a administração temporal dos jesuítas no Brasil (1557-
1572) ...................................................................................................................................... 295
2.10 O Rio de Janeiro ou a vitória da Contrarreforma e de Salamanca no Novo Mundo . 314

Interlúdio ............................................................................................................... 325


O mito de São Tomé ou Sumé: o nexo teológico-político entre o oriente e o ocidente
Apresentação

Este livro é fruto da minha pesquisa de doutorado, cuja tese foi de-
fendida em 2019 e desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, sob orientação
do Prof. Marcus Fabiano Gonçalves, tendo sido fomentada pela CAPES. A
defesa contou com a participação dos professores Marcus Fabiano Gonçal-
ves (UFF), Gizlene Neder (UFF), Gisálio Cerqueira Filho (UFF), Jorge Leão
(UFF), Sonia Leite (UERJ) e Thiago Krause (UNIRIO). Como membros su-
plentes da banca, contei com o honroso apoio dos professores Luís Ribeiro
(UFF) e Christian Lynch (IESP-UERJ).
Escrita ao longo dos anos 2014-2019, a pesquisa, doravante publicada
neste livro, acompanhou um turbulento período histórico brasileiro. Es-
crevendo esta apresentação em 2020, me dou conta de que o período de
pesquisa da tese foi uma tentativa de elaboração de fundamentos de nossa
civilização ou, em termos mais freudianos, de nossa cultura. Aspectos
como a noção de autoridade, a relação entre o individual e o coletivo e os
nossos contornos culturais e institucionais foram buscados em uma histo-
ricidade da formação linguística e cultural do Brasil a partir da interrelação
entre território e memória que começou, de fato, a ser enodada no século
XVI com a colonização e o projeto de conversão administrado pelos jesuí-
tas. Como Companhia de larga capilaridade nos territórios ultramarinos,
os jesuítas chegaram no mesmo ano de 1549 ao Brasil e ao Japão. Meu
interesse, então, foi o de estudar de forma comparada as dinâmicas e os
principais desdobramentos das missões brasileira e japonesa.
A dinâmica de inscrição de alteridades nas fontes históricas analisa-
das foi um dos principais pontos de interesse do meu estudo. Partindo da
formulação de Carlo Ginzburg a respeito do aparecimento de “vozes alie-
nígenas” nos relatos jesuíticos, do conceito freudiano de Nebenmensch,
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formador do “complexo do próximo” e da constituição da subjetividade,


além do estádio do espelho de Jacques Lacan, procurei analisar como o
outro-estrangeiro aparece inscrito no discurso que o escreve, guiado pela
questão: seria possível conceber a constituição da subjetividade como uma
metáfora do processo colonizador? Ao final do livro, apresento ao leitor
minha edição do Tratado das contradições e diferenças de costumes entre
a Europa e o Japão, de Luís Fróis.

Rio de Janeiro, 07 de julho de 2020.


Prefácio

Antes de tudo, o título Linguagem e Colonização: análise comparada


das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587) é fiel e, talvez, mais
compreensivo para o leitor não especializado. Originalmente foi a tese dou-
toral de Pedro D. B. Brocco então com o título “Psicagogia e espiritualidade
em Manuel da Nóbrega e Luís Fróis: Análise comparada das missões jesuítas
no Brasil e no Japão (1549-1587)”. Contudo, a expressão psicagogia fornece
o passe para a entrada no texto, pois na Grécia antiga, era um cerimonial
carregado de magia e espiritualidade que tinha por objetivo invocar as almas
dos mortos, chamando três vezes por seu nome.
Isto nos leva a um ousado trabalho acadêmico de análise comparada,
mas também de erudição nada desprezível e sem academicismo. Há, de fato,
um exercício teórico-prático sobre as ideias de Santo Tomás de Aquino (to-
mismo) espelhadas pela Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola.
O que seria isto? Uma reflexão robusta de caráter interdisciplinar que
não teme nem a psicanálise nem a teologia moral para abraçar o direito, a
filosofia, a teoria política - as ciências humanas, enfim - na larga compreen-
são da prática efetiva do colonialismo, sem nada excluir, nem sequer a
psicanálise e a teologia...
Uma (a)ventura.
A abertura com algumas citações “O homem é um animal metafísico.
(Alain Supiot, Homo juridicus) vem com um relato impressionante: “Uma
noite adormeci com tabaco na boca. Despertei com medo de despertar. Parece
que sabia: tinha nascido em mim uma asa de morcego. Com repugnância, na
escuridão, procurei minha maior faca. Cortei-a. Caída, à luz do dia, era uma
mulher morena e eu dizia que a amava. Levaram-me preso (Antonio di Be-
nedetto, Zama - romance). E logo um pensamento de Lao Tse, Tao Te Ching:
“A argila é trabalhada na forma de vasos. Através da não-existência existe a
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utilidade do objeto. Para concluir com o ditado budista “A forma é o vazio, o


vazio é a forma”. (Sutra do Coração).
Tudo levado em conta recordamo-nos de Claude Lévi-Strauss quando
diz em A oleira ciumenta (1ª edição, 1985): “Há milênios, sob todas as suas
formas – barro esmaltado ou não, faiança, porcelana – a cerâmica está pre-
sente em todos os lares, humildes ou aristocráticos. Tanto que os antigos
egípcios diziam ‘meu pote’ para dizer ‘meu bem’, e nós mesmos, quando fa-
lamos em reparar danos de qualquer espécie, ainda dizemos ‘pagar os vasos
quebrados’ (payer les pots cusses); pagar las maldiciones e pagare por le
maledizone”.
E também não pudemos deixar de recordar a visita ao Museo Erótico
y Antropológico de Lima quando tantos utensílios para beber e comer ou
simplesmente enfeites de casa, ostentam com delicadeza formas eróticas,
tanto de animais quanto de humanos, em posições (im)possíveis ... de rela-
cionamento sexual e amoroso em circunstância de gozo. Parece não haver
limite para o imaginário...
Pedro D. B. Brocco não recua de sua intenção. Compulsa documenta-
ção pertinente, escreve de forma clara sobre um tema tão precioso -
linguagem e colonização – em se tratando de brazucas (brasileiros) e japas
(japoneses) tão distantes e tão pertos...
O plano de capítulos é consistente e cativa o leitor.
A tese foi defendida no Programa de Pós-graduação em Sociologia e
Direito (PPGSD) da “Escola de Niterói” (Universidade Federal Fluminense -
UFF). Aqui o jurídico é ultrapassado por uma compreensão alargada no
marco de um paradigma estético-expressivo que orgulha estudantes e pro-
fessores. Está de parabéns o autor e a Editora Fi.
Em tempo, vai uma informação importante. As sugestivas fotos e ima-
gens presentes na tese vão publicadas coloridas na versão digital (e-book),
porém na versão impressa (on demand), elas serão em preto e branco. Uma
dica para o leitor adquirir ambas as modalidades.

Niterói, julho de 2020.


Pedro Brocco | 17

Gizlene Neder 1
Gisálio Cerqueira Filho 2

Ambos são pesquisadores avançados e Editores de Passagens. Revista In-


ternacional de História Política e Cultura Jurídica.

1
Doutora em História (USP), cientista política, Professora titular de História.
2
Doutor em Ciências Humanas (USP). Professor titular de Ciência Política e Sociologia.
Introdução

Os olhos não podem ver sem a ajuda da luz, mas isso não impede que o seu
natural seja a visão.
(Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso)

Este trabalho tem como objetivo estudar alguns aspectos da configu-


ração material e espiritual da colonização empreendida pelas monarquias
ibéricas e pela Igreja Católica1 a partir das obras de Bartolomé de Las Ca-
sas, Francisco de Vitoria e, principalmente, dos missionários jesuítas
portugueses Manuel da Nóbrega no Brasil e Luís Fróis no Japão, em uma
análise comparada das missões japonesa e brasileira2. Para tanto, busca-
remos analisar fontes sobre as experiências missionárias efetuadas pelos
jesuítas, com atenção ao contexto de surgimento, produção e formação
desses agentes, em uma confluência entre obras de outros autores do con-
texto ibérico e europeu, seculares e religiosos, assim como da
movimentação da Igreja Católica no contexto do início da colonização do
Novo Mundo e, posteriormente, com a Contrarreforma e o surgimento da
Companhia de Jesus. Neste sentido, será possível colocar em perspectiva,
também, em relação às obras dos autores dominicanos e jesuítas, outras
obras coevas cuja importância para este estudo será decisiva, como o caso
do ensaio de Michel de Montaigne sobre os canibais do Brasil.
De modo geral, os autores aqui analisados, em sua maioria domini-
canos e jesuítas, serão encarados como fundamentais para parametrizar e

1
Desde logo faz-se referência a BOXER, Charles R. A Igreja militante e a expansão ibérica: 1440-1770. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. Boxer faz apontamentos relevantes para o encaminhamento deste estudo: a concepção
de continuidade entre a Escola de Salamanca e a expansão ibérica pelo mundo, com a Companhia de Jesus, além de
enxergar a missão como “instituição de fronteira”.
2
As análises das obras de Las Casas e Vitoria funcionarão como uma espécie de introdução ao objetivo central deste
livro, isto é, a análise comparada das obras de Nóbrega e Fróis.
Pedro Brocco | 19

influenciar o agir prático no recorte histórico das missões que serão estu-
dadas. Está-se falando, portanto, de um movimento orgânico cujo sentido
seria mais ou menos o de o pensarmos enquanto uma divisão internacio-
nal do trabalho que não possuiria faceta nem exclusivamente política, nem
exclusivamente jurídica, nem exclusivamente moral, nem exclusivamente
religiosa, mas, antes, sintetizaria todas elas.
Há uma vasta literatura que se debruça sobre as obras dos referidos
teóricos ibéricos, membros da tradição inaugurada pela Escola de Sala-
manca e também da não menos importante Escola de Coimbra, da qual fez
parte Francisco Suárez (1548-1617), o qual teve seu auge de produção no
início do século XVII, século que não será o principal foco deste estudo.
Está-se fazendo referência, também, além do próprio Suárez, a Francisco
de Vitoria, a Luis de Molina, a Juan de Mariana, Domingo de Soto, Martín
Azpilcueta Navarro, Inácio de Loyola, Francisco Xavier, entre outros. Tal
forma de se fazer teologia e filosofia, tendo direta influência de Aristóteles
e Tomás de Aquino, desdobrou-se em relevantes contribuições no campo
do direito, com obras que tratam diretamente de temas morais e jurídicos,
apontando também para o surgimento da etnografia comparada3.
Neste sentido, buscaremos construir o trabalho tendo em vista, inici-
almente, a urdidura das obras desses autores ibéricos de cariz teológico-
ético-jurídico com as obras oriundas de contatos empíricos daqueles que
se dispuseram a ir para o front missionário (principalmente, aqui, os por-
tugueses Nóbrega e Fróis). Os missionários que se lançaram na grande
aventura da colonização foram tão importantes para o empreendimento
colonizador quanto os que ficaram na Europa no campo universitário. Não
se trata de uma questão de graus de importância, mas de cooperação em
um projeto comum, sobretudo porque veremos que esses autores faziam
parte de ordens religiosas que atuavam com organicidade, cujo exemplo

3
Cf. ARAÚJO, Melvina. O antropólogo e sua bíblia: ensaios sobre missionários-etnógrafos. São Paulo: Fap-Unifesp,
2014; PAGDEN, Anthony. The fall of natural man. London: Cambridge University Press, 1982; AGNOLIN, Adone.
Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi (séculos XVI-XVII). São Paulo:
Humanitas Editorial, 2007; AGNOLIN, Adone. O apetite da antropologia – O sabor antropofágico do saber antropo-
lógico: alteridade e identidade no caso tupinambá. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005.
20 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

mais bem-sucedido é o da Companhia de Jesus4, quando se examina, entre


outras coisas, a prática fundamental e sistemática da produção e circulação
de missivas sobre o andamento das missões e outras informações sobre os
povos e as terras em que atuavam, entre graus hierárquicos, colégios e
residências jesuítas ao redor do mundo.
O ponto de vista da compreensão de uma tradição será buscada na
afinidade entre as obras. É reveladora a sintonia digna de uma mútua in-
fluência entre Bartolomé de Las Casas e Francisco de Vitoria, ambos
pertencentes à ordem dominicana, da qual fora membro Tomás de
Aquino. Pode-se mesmo arriscar a afirmação de que Las Casas pôde de-
sempenhar o papel de olhos e os ouvidos de Vitoria: os relatos lascasianos
aparecem em trechos das obras de Vitoria e foram importantes para sua
concepção de direito e filosofia política e moral.
Ao contrário de inúmeros trabalhos oriundos dos campos da História
e das Letras, que muitas vezes enquadram somente um dos pontos da cir-
culação de ideias e teorias das políticas ibéricas coloniais, busca-se com
este trabalho uma leitura comparada entre: i) o esforço missionário, a par-
tir da análise de obras e cartas dos religiosos jesuítas portugueses que
atuaram fora da Europa (Brasil e Japão) e ii) na primeira parte deste tra-
balho, de obras de teóricos fundamentais para a chamada Escola de
Salamanca, buscando entender as mútuas influências entre ambos os en-
troncamentos. Entendemos que as maiores inovações trazidas pela análise
recairão sobre a leitura comparada das missões brasileira e japonesa, am-
bas iniciadas no ano de 1549, ano em que a Igreja Católica consegue cobrir
praticamente todo o globo terrestre, e por este motivo deu-se total relevo,
no título do livro, para este esforço de análise comparada.
A grande problemática de fundo da atuação dos missionários, jesuítas
sobretudo, é a questão da linguagem, entendida aí uma problemática de
fundo retórico-teológico ligada à conversão, que supõe a tradução e a ação

4
Cf. O’MALLEY, John. The First Jesuits. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1993; LACOUTURE,
Jean. Os jesuítas: 1. Os conquistadores. Porto Alegre: L&PM, 1994; ALDEN, Dauril. The Making of an Enterprise: The
Society of Jesus in Portugal, Its Empire, and Beyond, 1540-1750. Stanford: Stanford University Press, 1996.
Pedro Brocco | 21

sobre a língua e o modo de vida alienígena. A Contrarreforma definiu no-


vos contornos para algumas práticas sacramentais como a da confissão5,
que passaria a não mais ser anual ou periódica, podendo ser realizada de
modo contínuo; os jesuítas, por sua vez, possuem na raiz de sua formação
e de sua identidade a realização de uma complexa e sofisticada prática as-
cética totalmente mergulhada em uma relação com a linguagem: os
Exercícios espirituais6. Tais desdobramentos foram importantes para o
papel da linguagem no contato com os povos alienígenas nas zonas de mis-
são. Somente a partir da linguagem, entendida como a leitura,
processamento e ação sobre corpus culturais nativos, foi possível fabricar
línguas de contato (pidgins) com os povos aos quais se pretendia colonizar
e converter. O “contrato social colonial”7, assim, antes que pudesse surgir
como conceito numa futura filosofia política, apareceu como problema
prático das missões na forma de um pacto linguístico entre colonizador e
colonizado, algo que parece ter sempre sido fundamental para todo tipo
de “contrato social”.
Por outro lado, a prática jesuíta dos Exercícios espirituais coloca tam-
bém o praticante, antes de se lançar ao contato com o corpus cultural
alienígena, em contato com o próprio corpo mediado pela linguagem. A
noção imaginária de corpo próprio e a produção de discursos acerca do
mesmo na prática ascética jesuíta configura um elemento de não pouca
relevância na análise de uma prática teológico-política-social de conversão
e condução das almas à salvação, que aqui neste livro, para efeitos de pre-
cisão conceitual, passará a ser chamada de uma psicagogia, em atenção à
literalidade do termo8, que deverá doravante remeter conceitualmente a
um conjunto de práticas e discursos voltados à condução das almas. Este

5
PROSPERI, Adriano. Il Concilio di Trento: una introduzione storica. Torino: Giulio Einaudi, 2001.
6
Cf. LOYOLA, Inácio de. Exercícios espirituais. São Paulo: Edições Loyola, 2015 e BARTHES, Roland. Sade, Fourier,
Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
7
Cf. AGNOLIN, Adone. Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi (séculos
XVI-XVII). São Paulo: Humanitas Editorial, 2007.
8
A palavra grega ψυχή, psique, na raiz de todo termo que modernamente se relaciona ao psiquismo e ao âmbito
“psi”, seja à psiquiatria ou à psicologia, significa o que se entendia como “alma”, conceito que tem um sinuoso per-
curso na tradição ocidental, apropriado pela Igreja com a perspectiva salvífica e pastoral, antes de deitar raízes na
teoria do conhecimento e nas práticas científicas acerca da mente e do “psiquismo” humano.
22 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

conjunto de práticas será fundamental para a construção de uma visão de


mundo em que o outro alienígena possa ser reduzido a um eu, e em que o
“outro-eu” deva ser encaminhado para a salvação e a comunicação trans-
ferencial interminável com Deus, um “não-eu”, um Outro. Estes dois
mecanismos discursivos estão já claramente presentes nos Exercícios es-
pirituais de Inácio de Loyola:

a) O eu é um outro

Os Exercícios espirituais possuem uma meticulosa composição. Ro-


teiro para uma prática ascética e meditativa, foram escritos por Inácio de
Loyola para serem praticados durante quatro semanas, tendo cada uma
delas uma função e uma série de exercícios. Assim, na primeira semana, o
exercitante deve realizar exames cotidianos a respeito de si mesmo procu-
rando por “pecado ou defeito paticular do qual quer corrigir-se e emendar-
se”9 durante a manhã, a tarde e a noite, e tomar notas. Tais práticas visam
colocar o exercitante em contato com pensamentos e palavras, funcio-
nando como uma espécie de antecâmara da prática confessional. Antes que
a confissão ocorra, o exercitante passa pelos exercícios do exame e da me-
ditação sobre os próprios pecados. Inácio escreve nas anotações que
precedem os exercícios que o orientador espiritual (quem dá os Exercícios)
deve observar e sentir naquele que se exercita sob sua orientação o surgi-
mento de “moções espirituais” como consolações e desolações. Caso não
ocorram, bem como quando o exercitante não é “agitado por vários espí-
ritos”, o orientador deve interrogá-lo se segue os Exercícios nos tempos
marcados e como10. Trata-se, assim, de meticulosa prática orientada por
um roteiro de ascese a partir do qual se cria a sensibilidade do jesuíta,
pondo-o em contato com uma série de sentimentos morais vividos e re-
memorados através das práticas dos Exercícios, que contemplam a
confissão.

9
LOYOLA, Inácio de. Exercícios espirituais. São Paulo: Edições Loyola, 2015, p. 25.
10
Idem, p. 13.
Pedro Brocco | 23

Na primeira semana, o roteiro dos Exercícios propõe ao exercitante o


contato com o próprio eu: “Ver quem sou eu. Diminuir-me por meio de
comparações: 1º que sou eu, comparado com todas as outras pessoas (...)
5º olhar-me como uma chaga e um tumor, donde saíram tantos pecados
e tantas maldades e tão medonho veneno”11. Logo depois, Inácio propõe
que o exercitante considere quem é Deus contra quem se pecou, compa-
rando-o com os contrários em si mesmo: sabedoria com ignorância,
onipotência com fraqueza, justiça com iniquidade, bondade com malícia.
Trata-se, assim, da construção de um eu e uma narrativa de vida contabi-
lizadora dos pecados, enxergando-se como um outro sob exame, para
depois uma aproximação com os atributos predicáveis a Deus, oposto ao
eu. Tais atributos predicáveis a Deus estariam de acordo com a tradição
tomista das cinco vias, que será abordada ao longo deste trabalho.
O exercitante, portanto, para seguir as etapas propostas por Loyola,
deverá fazê-lo com não pouca disciplina. Os aspectos imaginários dos pen-
samentos e fatos vividos convivem com uma narrativa envolvendo os cinco
sentidos e a noção de um corpo próprio mediado pela linguagem. É a lin-
guagem, com efeito, o fator unitivo de uma imagem corporal com uma
narrativa de vida, exteriorizados meticulosamente a partir do trilhamento
proposto por Loyola nos Exercícios. A máquina psicagógica inaciana seria
a produção de um código e de uma língua específica, ensinável ao jesuíta
que se propusesse a trilhar o caminho proposto por Inácio através das ca-
tegorias retóricas e psicológicas de sua época: um enquadramento do
material pensável e articulável linguisticamente formado pelos cinco sen-
tidos, as três potências da alma, os sete pecados capitais, os personagens e
lugares evangélicos, etc. Seria então o aprendizado de um código e de uma
ética que teriam pouco a ver com o êxtase místico de uma consciência alu-
cinada12.

11
Idem, p. 37.
12
Cf. BARTHES, Roland, op. cit., pp. 54-55.
24 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Figura 1: A árvore inaciana da primeira semana dos Exercícios, elaborada por Roland Barthes em seu estudo sobre
Loyola13.

a.1) Corpo e linguagem

Ainda que fazendo parte de uma longa tradição ascética católica me-
dieval, Inácio de Loyola confere grande importância ao corpo na
composição dos Exercícios. Uma atenção especial é dada, neste sentido, ao
corpo próprio, que em verdade jamais saiu de cena das meditações e prá-
ticas ascéticas. Talvez Loyola tenha inovado ao ligar corpo, imagem e
linguagem ao trazer para o cerne dos Exercícios o funcionamento e o fo-
mento dos cinco sentidos ao estimulá-los na meditação. Há uma série de
meditações propostas com o objetivo de construir ambientes imaginários
relativos aos cenários evangélicos ou à tópica cristã. Na meditação sobre o
inferno, por exemplo, Inácio propõe ao exercitante:

1º ponto
Ver, com os olhos da imaginação, as grandes chamas e as almas como corpos
incandescentes.

13
Cf. BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 58.
Pedro Brocco | 25

2º ponto
Aplicar o ouvido aos choros, alaridos, gritos, blasfêmias contra Cristo Nosso
Senhor e contra todos os seus santos.
3º ponto
Com o olfato, sentir o cheiro da fumaça, do enxofre, das cloacas, da podridão.
4º ponto
Com o paladar, provar coisas amargas: lágrimas, tristeza e o verme da consci-
ência.
5º ponto
Tocar com o tato as chamas que atingem e abrasam os condenados.14

Há, portanto, um ponto por sentido na proposta de vivência fantasís-


tica do inferno por parte do exercitante. Conforme as semanas avançam,
novas cenas são propostas à vivência imaginária do exercitante à maneira
de psicodramas15. As propostas de articulação dos sentidos às fantasias
propostas mudam de cenário: no caso da última ceia, por exemplo, “ver as
pessoas da ceia e, refletindo sobre mim mesmo, procurar tirar algum pro-
veito”16.
A análise de um dispositivo discursivo tão peculiar como os Exercícios
coloca alguns desafios ao intérprete. Apesar de contemplar a prática indi-
vidual de um sujeito, trata-se de um roteiro de ascese criado para fomentar
uma sensibilidade nos exercitantes, passando pela criação discursiva de
um corpo próprio e de um eu em contato com Deus: “o pensamento para
o alto, considerarei como Deus Nosso Senhor me olha (...)”17.
Assim, perante Deus, deve o exercitante colocar-se na posição que
supõe ser a melhor para a contemplação:

Entrar em contemplação, ora de joelhos, ora prostrado por terra, ora deitado
com o rosto voltado para cima. Também sentado ou de pé. Indo sempre em
busca do que quero. Ter presente duas coisas:

14
LOYOLA, Inácio de, op. cit., p. 41.
15
BARTHES, op. cit., p. 63.
16
LOYOLA, op. cit., p. 80.
17
Idem, p. 44.
26 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

1ª se de joelhos acho o que quero, não mudarei de posição. Se estiver pros-


trado, do mesmo modo etc.;
2ª no ponto em que achar o que quero, vou deter-me, sem pressa de passar
adiante, até que me sinta satisfeito.18

Com efeito, o que quer e busca o exercitante? Trata-se de uma com-


plexa operação psíquica e teológica segundo a qual, pela contemplação,
chega-se à comunicação com Deus. Daí Barthes afirmar que os Exercícios
constroem uma semiofania, um sujeito agente na enucianção em perpétua
busca do signo de Deus, mais do que o seu conhecimento ou presença19.

a.2) Deus é um Outro: a questão simbólica de Deus

A função de Deus como aquela instância que atua no nível do imagi-


nário do exercitante, aquele que olha o seu corpo e conhece os seus
pecados, etc., é também um artifício simbólico que sustenta a prática ina-
ciana: posta no horizonte da linguagem, toda contemplação e toda ação
no mundo será em busca do signo que Deus é capaz de enviar ao jesuíta-
exercitante. A linguagem, jamais ultrapassável, não se concentrará no co-
nhecimento místico de um Deus inefável: Deus é sempre articulável
simbolicamente. O jesuíta é treinado para buscar o signo de Deus, mais do
que o seu conhecimento ou presença, como o faz a tradição mística com
Teresa d’Ávila e João da Cruz20.
O horizonte de atuação do jesuíta será, portanto, mover-se pelo
mundo, em colégios e missões, em busca do signo divino, buscando Deus
em todas as coisas. Imerso na linguagem, utilizando as técnicas de repro-
dução tipográfica, será capaz de produzir milhares de missivas e relatórios
sobre seu horizonte de atuação e sobre a variedade dos povos que habitam
a Terra, alienígenas até então a todo esforço de apropriação simbólica. O
treinamento na construção de uma nova língua, mediado pela prática dos

18
Idem, p. 44.
19
BARTHES, op. cit., p. 53.
20
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 27

Exercícios, que todo jesuíta deveria praticar, foi grande fator facilitador no
aprendizado de todas as novas línguas com as quais os inacianos se depa-
raram em suas missões. A alienação e a simbolização enquanto processos
feitos sobre si mesmo agiriam mais ou menos no mesmo sentido quando
realizados em terras de missão21.

b) Antropologia da pessoa

Neste sentido, a questão de fundo deste trabalho relaciona-se ao


campo que pode ser definido como o de uma “antropologia da pessoa”. Tal
questão possui desdobramentos relevantes seja do ponto de vista episte-
mológico, seja do ponto de vista jurídico. Trata-se de analisar práticas e
mecanismos discursivos de individuação, de noções relativas à personali-
dade e ao “eu”22. Antes que o “eu do pensamento” e do saber pudesse
surgir como fundamento da epistemologia cartesiana, a Segunda Escolás-
tica23, com todos os desdobramentos que aqui serão analisados em um
pequeno recorte, pavimentou um caminho de práticas discursivas e ascé-
ticas que encontram ecos nas dinâmicas de conversão, nos Exercícios
espirituais e também nas práticas e normas da escrita epistolar, analisadas
em estudos seminais de João Adolfo Hansen24 e Alcir Pécora25. Todos estes
mecanismos e exemplos encontram fundamento em uma psicagogia e na
ligação da noção de alma com a de salvação, referida à Causa Primeira.

21
Tal entendimento pode ser revisitado contemporaneamente no curioso livro escrito em coautoria por dois astrô-
nomos jesuítas: CONSOLMAGNO, Guy, SJ; MUELLER, Paul, SJ. Would You Baptize an Extraterrestrial? ... and Other
Questions from the Astronomers’ In-Box at the Vatican Observatory. New York: Image, 2014.
22
Os Exercícios espirituais aparecem como um grande mecanismo articulador da noção de pessoa, como já exposto
acima: “Ver quem sou eu. Diminuir-me por meio de comparações: 1º que sou eu, comparado com todas as outras
pessoas (...). Logo depois desta operação, deveria o exercitante buscar comparações com atitudes, pensamentos e
ações predicáveis a um eu-ideal a partir de um suposto ponto de vista divino.
23
Fazemos aqui referência à Segunda Escolástica mais ou menos como sinônimo do movimento que tem início com
a Escola de Salamanca e seus desdobramentos.
24
HANSEN, João Adolfo. “O nu e a luz: cartas jesuíticas do Brasil. Nóbrega – 1549-1558”. Revista do Instituto de
Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 38, pp. 87-119, 1995.
25
PÉCORA, Alcir. “Cartas à Segunda Escolástica”, in NOVAES, Adauto (org.). A outra margem do Ocidente. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
28 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

O texto pioneiro de Marcel Mauss sobre a noção de pessoa, escrito em


1938, será aqui tomado como referência privilegiada. Mauss realiza sua
pesquisa histórica e antropológica sobre a noção de pessoa do percurso
que vai destacá-la “lentamente de seu enraizamento social para se consti-
tuir em uma categoria jurídica, moral e mesmo lógica”26 até o
aparecimento da pessoa moderna, “supostamente existente em si
mesma”27. Indo das mascaradas às máscaras, da persona latina à pessoa
cristã, dos predicados de uma pessoa, como um nome e uma individuali-
dade, ao indivíduo como um ser de valor moral, de uma consciência moral
a uma forma fundamental de pensamento e de ação28, a temática proposta
por Mauss servirá como pano de fundo do desenrolar das dinâmicas estu-
dadas neste trabalho.
Das mascaradas dos povos pueblo e kwakiutl29 ao termo πρόσωπον
(prósopon, máscara) entre os gregos e posteriormente entre os etruscos e
os romanos com a noção de persona, da persona civil do direito romano
ao moderno direito civil30, a noção de pessoa figura como um elemento
mais ou menos constante na tradição ocidental e mesmo em perspectivas
comparadas, antes de sofrer depurações no sentido da formação de um

26
GOLDMAN, Marcio. “Uma Categoria do Pensamento Antropológico: A Noção de Pessoa”. Revista de Antropologia,
v. 39, n. 1. São Paulo, USP, 1996, pp. 83-109, p. 86.
27
Idem, ibidem.
28
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, volume I. São Paulo: EPU/EDUSP, 1974. Faz-se referência, aqui, ao
capítulo “Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a noção do ‘eu’”, pp. 207-241: “Algo pode prenunciar
a tendência de minha demonstração: é que eu quero mostrar quanto é recente a palavra filosófica ‘eu’, quanto são
recentes a ‘categoria do eu’, o ‘culto do eu’ (sua aberração) e quanto é recente o respeito do eu, particularmente do
‘eu’ dos outros (sua forma normal)”, p. 211.
29
Mauss inicia o percurso de seu estudo pelos índios pueblo, no México, as tribos do noroeste americano e os kwa-
kiutl. Entre os pueblo já se divisaria uma noção de pessoa, do indivíduo confundido com o clã mas já destacado dele
no cerimonial, pela máscara, pelo título, pela posição e papel, pela propriedade e reaparecimento na terra pelos
descendentes, dotados da mesma situação, mesmos prenomes, títulos direitos e funções. As tribos do noroeste ame-
ricano colocariam, em termos diferentes mas com natureza e função semelhantes o problema do nome, posição social
e nascimento jurídico e religioso de cada homem livre. Cf. MAUSS, op. cit., p. 216.
30
O estudo de Mauss tem grande importância para o Direito. É a partir daí que se pode compreender a pessoa como
uma categoria fundamental do Direito, ao lado das coisas e das ações: “a ‘pessoa’ é algo além de um fato de organi-
zação, mais do que o nome ou o direito reconhecido a um personagem e mais do que uma máscara ritual: é um fato
fundamental do direito. Em direito, dizem os juristas: nada há além das personae, das res e das actiones. Tal princípio
governa ainda as divisões de nossos códigos, mas resulta de uma evolução especial do direito romano”. MAUSS,
Marcel, op. cit., p. 227.
Pedro Brocco | 29

“eu” e de uma consciência, no percurso que vai das cartas jesuíticas a Des-
cartes, quando as funções definidas da alma aparecem articuladas pelo
pensamento discursivo claro e dedutivo, utilizado a partir daí para a com-
preensão da natureza.
A moderna noção de pessoa humana é, segundo Mauss, a noção de
pessoa cristã, quando houve a passagem da noção de persona, isto é, ho-
mem revestido de um estado, à noção de homem simplesmente31, pessoa
humana32, homem não mais puramente adstrito a papéis sociais, nacio-
nais e estamentais, mas homem que é capaz de pensamento, planejamento
e individualidade num mundo aberto. O Direito moderno convive ainda
com a bifurcação deste corte conceitual: ao mesmo tempo conservando a
noção basilar de pessoa do direito civil romano, abarca também como um
de seus fundamentos a noção de pessoa dos direitos humanos.
Neste percurso, os contatos europeus e especificamente jesuíticos
com o Novo Mundo e o Extremo Oriente fornecem relevantes fontes de
pesquisa sobre o tema. O relato sobre a zona de contato põe em cena a
pessoa ou o “eu” daquele que enuncia o discurso e o material descrito, a
alteridade e a “pessoa suposta” do outro. No primeiro momento deste es-
tudo, estas questões serão apresentadas e desenvolvidas já pelas primeiras
formulações da Escola de Salamanca, principalmente com Francisco de Vi-
toria, que procurará incluir os índios americanos na sociedade civil
espanhola reconhecendo neles a capacidade civil para o domínio33 e, logo,
uma importante faculdade exercida pelas personae desde o clássico direito
romano. Ao mesmo tempo, o encontro com o alienígena, principalmente
os silvícolas da parte meridional da América, e especificamente da costa

31
Aqui, a epístola aos Gálatas traz uma importante mudança sobre a noção de pessoa nesta direção. Ao escrever
sobre o advento da fé, Paulo registra: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem
mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus”, Gálatas, 3, 28.
32
MAUSS, op. cit., p. 235.
33
Roberto Hoffmeister Pich, em trabalho sobre o tema, faz interessante observação da qual podemos extrair formu-
lações sobre a noção de pessoa: “Tem domínio quem possui potências racionais e é nessa medida mesma imagem de
Deus, de tal forma que é ou pode, em algum momento, ser dono de si – em última análise, ser sujeito ou pessoa na
relação com Deus. A posse legítima de qualquer outra coisa tem parte nessa posse fundamental”. PICH, “Dominium
e ius: sobre a fundamentação dos direitos humanos segundo Francisco de Vitoria (1483-1546)”. Teocomunicação, v.
42, n. 2. Porto Alegre, 2012, pp. 376-401, p. 399.
30 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

brasileira, colocará para o cronista e o missionário uma alteridade radical


com respeito às categorias sociais e de pensamento construídas e vividas
até aquele momento: haverá dificuldades para inserir os índios brasileiros,
muitos nômades, nos conceitos latinos de persona enquanto homem reves-
tido de um estado, para usar uma fórmula de Mauss, com suas
propriedades e sua personalidade civil. Esta problemática será desenvol-
vida no decorrer deste trabalho sobretudo a partir da análise dos escritos
de Manuel da Nóbrega.
A partir da análise da obra de Nóbrega, será possível observar que
raramente ou nunca os índios brasileiros aparecem descritos do ponto de
vista de sua pessoa ou de sua individualidade: sequer nomes são mencio-
nados. Quando há menção de algum índio em específico, opta-se pela sua
função, seja no interior das sociedades indígenas, como os “Principais” e
os pajés, seja do ponto de vista de sua função político-administrativa na
sociedade colonial mestiça que então se formava, como é o caso da figura
dos índios meirinhos, ou então em cenas que funcionam como espécies de
“alegorias da conversão”, como aquela descrita por Nóbrega e resgatada
por João Adolfo Hansen em seu estudo sobre as cartas jesuíticas, tida por
ele como uma alegoria exemplar, quando a mãe tira do beiço do filho pe-
dras coloridas que impediam que fosse feito o sinal da cruz, e as atira no
telhado, sendo imitada pelos outros índios que também traziam as pedras
nos lábios furados34. É somente aí, quando o aspecto narrativo captura a
formação de hábitos corporais à luz da doutrina escolástica católico-sacra-
mental europeia, emudecendo para sempre, tornando as bocas furadas
com pedras coloridas mudas e cegas para sua própria voz, que se pode
enfim falar de “colonialismo”, não como um mero discurso a ser comba-
tido dentro dos mesmos marcos teológicos-epistemológicos europeus, mas

34
Cf. HANSEN, João Adolfo. “O nu e a luz: cartas jesuíticas do Brasil. Nóbrega – 1549-1558”, op. cit. e NÓBREGA,
Manuel da. Cartas do Brasil, 1549-1560. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1988, p. 92.
Pedro Brocco | 31

como olhar sobre as formas pelas quais a conquista católico-ocidental eri-


giu saber, poder e instituições35 sobre a cultura alienígena brasileira,
fechando para sempre sua “boca muda, boca cega”36.
Diferentemente das narrativas da missão japonesa, em que o apare-
cimento de personagens e nomes nativos e conversos é de notável
profusão, as narrativas brasileiras pouco trarão de informações neste sen-
tido. Uma hipótese, já desenvolvida por João Adolfo Hansen, desde logo se
coloca e será desenvolvida neste trabalho: a forma de vida do índio brasi-
leiro, identificada pelas narrativas jesuítas com a noção de falta e vazio de
sentido37, mas também com o bárbaro e o bestial, representados pela nu-
dez e pela “mudez da língua”38, seria pouco adaptável à noção de pessoa,
traduzida aí pela noção de pessoa cristã, o que se depreende pela leitura
de Hansen: “A cegueira da Luz e a mudez do Verbo escrevem-se visíveis e
falantes como nudez do seu corpo, interpretado como um vazio do sentido,
dado a ler/ver na abominação de suas práticas, simulacros de Anhangá-
Diabo”39.
Outra forma de narrar é a de Luís Fróis na missão japonesa. Enxer-
gando nos japoneses formas análogas de linguagem, religião e organização
civil, os jesuítas promoverão antes uma acomodação à forma de vida japo-
nesa como estratégia de conversão. Analisando os desdobramentos das
relações entre discurso e hábitos corporais, em comparação com a “alego-
ria de conversão” da mãe indígena brasileira que atua diretamente sobre
o corpo do filho, os jesuítas no Extremo Oriente suscitarão um debate dou-
trinal acerca da tensão entre o voto de pobreza e a adaptação às culturas
alienígenas quando começam a se vestir com seda, tecido ligado ao luxo

35
NEVES, Luiz Felipe Baêta. O combate dos soldados de Cristo na Terra dos Papagaios: colonialismo e repressão
cultural. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978, p. 164.
36
HANSEN, João Adolfo, op. cit., p. 119.
37
Idem, p. 115.
38
“Produzindo a carência do índio, o enunciado jesuítico também produz, simultaneamente, a unidade da auctoritas
que lhe valida a enunciação, ou o conceito de um verbo substancial revelado na Escritura, na natureza e na alma,
como luz natural da Graça que proporciona atos e discursos com o Bem. Objeto da hermenêutica do padre, o verbo
da Escritura fornece os modelos analógicos que hierarquizam os sons do mato como um hieróglifo confuso e hermé-
tico”. HANSEN, João Adolfo, “O nu e a luz”, op. cit., p. 114.
39
Idem, p. 115.
32 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

na Europa. Ao mesmo tempo em que os padres utilizavam a seda no Japão


e na China como forma de alcançar autoridade, os superiores das missões
insistiam na proibição de seu uso40.
Além disso, desde o início da missão japonesa, diferentemente do
Brasil, é possível ver a utilização de nativos japoneses na própria estrutura
missionária41, como irmãos e ajudantes, casos de Paulo de Santa Fé e Ir-
mão Lourenço, que figurarão na narrativa como personagens.
Tais aspectos estruturais não deverão ser descartados, pois da forma
da descrição já se extraem elementos para a analítica da narrativa ou,
como define Alcir Pécora: “A preceptiva epistolar inaciana, amparada na
longa e profícua reflexão medieval e renascentista do gênero, de alguma
forma previa ou esboçava retoricamente os contornos básicos de persona-
gens, ações e caracteres que jamais haviam visto antes”, ou “(...) a
construção da forma já faz parte da narrativa da história”42.

***

A análise comparada entre as missões brasileira e japonesa em um


mesmo recorte histórico permitirá colocar em primeiro plano o contraste
da atuação de uma mesma organização, com suas práticas e discursos, em
dois ambientes com desafios distintos. A resposta dos missionários a esses
desafios pode sugerir continuidades históricas, no caso brasileiro, ou rup-
turas, no caso japonês. Tais rupturas, somente conhecidas em sua
totalidade no século XX com a edição das obras de Luís Fróis, são decisivas
para futuros estudos acerca da interação e possíveis relações entre os pen-
samentos e as tradições filosóficas oriental e a ocidental43.

Cf. BROCKEY, Liam Matthew. “Authority, Poverty and Vanity: Jesuit missionaries and the use of silk in Early
40

Modern East Asia”, Anais de História de Além-Mar, XVII, Lisboa, 2016, pp. 179-222.
41
Cf. LEÃO, Jorge Henrique Cardoso. A Companhia de Jesus e os pregadores japoneses: missões jesuíticas e mediação
religiosa (1549-1614). Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2017.
42
PÉCORA, Alcir, op. cit., p. 410.
43
Barthes já sugere tal tensão em seu estudo sobre Inácio de Loyola, fazendo menção explícita sobre a diferença entre
a ascece ocidental e a taoísta e zen budista. François Cheng, por sua vez, também contemplado neste trabalho, poeta
e sinólogo chinês radicado na França, vem realizando aportes teóricos relevantes ao longo do século XX sobre o tema.
Cf. BARTHES, Roland, op. cit.; CHENG, François. Vide et plein: Le langage pictural chinois. Paris: Éditions du Seuil,
Pedro Brocco | 33

O século XVI foi, assim, um palco privilegiado para o encontro de ato-


res representantes de complexas tradições e modos de vida,
compreendendo arcabouço filosófico, religioso44 e comportamental. Tais
encontros colocarão também em primeiro plano modos de estar e agir so-
bre a natureza.
Os missionários estiveram em disputa com diferentes estratos cultu-
rais no tocante ao modo de estar e agir sobre a natureza, compreendido aí
o corpo próprio com seus desejos. O macrodispositivo da conversão com-
preende, assim, atuar sobre um sistema de crenças e visão de mundo de
um outro, remodelando-o para a matriz católica-ocidental.
Partindo desta problemática, derivada daquela relativa à linguagem
enquanto instrumento privilegiado de comunicação, chega-se àquela rela-
tiva à linguagem como dispositivo de convencimento, referido à retórica,
depurada na tradição ocidental desde os gregos e a sistematização aristo-
télica45 de sua arte e de seus mecanismos. Com motivações apostólicas e
salvíficas, os missionários buscaram anunciar o verdadeiro Deus e Criador
para os diversos povos com os quais travaram contato, buscando com isto
salvar as almas dos conversos ao catolicismo contrarreformista. Apenas aí,
ao longo das últimas duas frases, desprendem-se antiquíssimas formações
ocidentais relativas ao conceito de alma, ao poder pastoral orientado para
um objetivo salvífico; à noção de Deus como “primeiro motor imóvel” em
Aristóteles, apropriado por Tomás de Aquino, bem como a já citada mobi-
lização da arte retórica lida a partir de uma chave católica-sacramental.
O primeiro desafio do trabalho será o de compreender a presença
colonizadora ibérica e os desafios da colonização, com Bartolomé de Las
Casas e com Francisco de Vitoria na Escola de Salamanca, antes da funda-
ção da Companhia de Jesus.

1991. ; CHENG, François. L’Écriture poétique chinoise – suivi d’une anthologie des poèmes des Tang. Paris : Éditions
du Seuil, 1996.
44
Cf. POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, tupi e “tapuia” no Brasil colonial. Bauru, SP: EDUSC,
2003.
45
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução e notas de Manuel Alexandre Júnior. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2012.
34 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Em um segundo momento, será empreendida uma análise estrutural


a respeito das afinidades entre as obras de Las Casas (América espanhola),
Nóbrega (Brasil) e Fróis (Japão), enfocando os aspectos morais, políticos e
jurídicos que aparecem em seus mais importantes relatos de cariz teoló-
gico-etnográfico, com enfoque especial para as Cartas do Brasil e o Diálogo
sobre a conversão do gentio, de Nóbrega; a Historia de Japam e o Tratado
das diferenças e contradições entre a Europa e o Japão, de Fróis. Em relação
ao Tratado das diferenças e contradições, será proposta uma edição, em
anexo ao final do trabalho, atualizando, na medida do possível, a lingua-
gem de Fróis para um português contemporâneo, com notas explicativas
que se fizeram necessárias, com a finalidade de publicar e divulgar esta
importante obra ao leitor contemporâneo. Com relação às outras fontes, a
opção foi a de manter a linguagem tal como grafada no material analisado.
Esta opção se dá em uma tentativa de fazer ressoar, no interior do traba-
lho, a prosódia e a dinâmica das línguas portuguesa e castelhana
quinhentistas, na medida do possível46.
A justificativa de agrupar os autores escolhidos se dá em uma con-
vergência de estilo e de projeto. Las Casas tomado como o iniciador ou, ao
menos, o símbolo de um grande movimento que começa a ganhar forma
a partir de 1511, em La Hispaniola com o sermão de Frei Antônio de Mon-
tesinos, quando se formularam as primeiras grandes críticas aos colonos
espanhóis na América; Nóbrega aparecendo como um dos fundadores do
governo geral do Brasil, em 154947, em uma aliança com a Coroa portu-
guesa; e Fróis, que somente no século XX pôde obter consistência histórica
para figurar como o autor do mais completo relato sobre o Japão do século
XVI composto por um europeu.
Os autores analisados estarão situados sob uma treliça teórico-con-
ceitual que será aqui resumida pelos conceitos que figuram ao longo do
livro: psicagogia e espiritualidade. Em relação a esta, faz-se referência

46
Quando as obras tiverem sido editadas a partir do português e o castelhano contemporâneos, como o caso das
relecciones de Francisco de Vitoria e a obra de Las Casas, citadas na primeira parte da tese, não haverá tal preocupa-
ção.
47
Cf. PUNTONI, Pedro. O Estado do Brasil: poder e política na Bahia colonial – 1548-1700. São Paulo: Alameda, 2013.
Pedro Brocco | 35

tanto ao âmbito mais aberto do domínio “espiritual”, entendendo-se aí a


religião, quanto a insinuação dos rudimentos do que, alguns séculos mais
tarde, aparecerá sob a nomenclatura de “ciências humanas” ou, de acordo
com a tradição germânica, “ciências do espírito” ou Geistwissenschaften.
Trata-se então de encontrar nestes autores um aspecto de continuidade a
respeito da posição do outro em suas narrativas: a inscrição da alteridade
dos nativos das missões em conjunto com a relevância assumida pelo sa-
ber acerca da linguagem como instrumento de descrição do mundo e de
comunicação.
A linguagem enquanto descrição do mundo e comunicação não pode
ser examinada fora da cada vez mais decisiva importância dos recursos de
impressão e divulgação de ideias e escritos com a máquina tipográfica de
Gutenberg. Neste sentido, o século XVI apresenta a interessante caracte-
rística para o pesquisador da dinâmica da colonização de ter utilizado
largamente o expediente da circulação de material impresso, bem como a
instalação de centros de impressão nas colônias ultramarinas48.
A produção de informação e sua reprodutibilidade intensificada, em-
bora acessível somente a muito poucos, geralmente religiosos ou letrados,
foi fundamental para um deslocamento da configuração institucional dos
governos e organismos, retratados de modo especial através da figura da
Companhia de Jesus. Se nos séculos anteriores a força de uma organização
concentrava-se sobretudo na economia da obtenção de informações privi-
legiadas, caso da famosa Ordem de Cristo em Portugal, herdeira dos
Templários, com a imprensa e a atuação da Companhia de Jesus percebe-
se que o regime de produção e circulação de informações passa pela gestão
de fluxos e redes capazes de direcionar o maior número possível de rela-
tórios e dados para Roma, onde seriam depurados, analisados e
funcionariam para a montagem de diretrizes para atuações futuras, bem
como filtrados para funcionarem como propaganda em uma Europa divi-
dida pela Reforma protestante. Cumpria-se, assim, a dupla função ao

48
Cf. MIRANDA, Tércio. A arte da impressão nas terras de além-mar. S/e: Porto, 1962.
36 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

mesmo tempo informativa e panegírica acerca dos feitos da Companhia de


Jesus pelo mundo.
Se é certo que os jesuítas surgem como um sintoma da Reforma, ex-
traindo sua força e razão de ser das disputas intestinas da Igreja, sua
própria função dentro da Europa aparece em continuidade com aquela das
terras ultramarinas, qual seja, a da adaptação e condução das almas ao fim
contrarreformista, que será lido a partir do conceito de psicagogia. Enten-
demos que a função de condução das almas abarque aquela da conversão
e lhe dê sentido pois, com efeito, a conversão, epifenômeno de uma psica-
gogia, aparece contemporaneamente de forma difusa entre outras frentes
do cristianismo, sobretudo os de corte neopentecostal, bem como na faceta
da comunicação mercadológica de massas, há algumas décadas incrustada
na dinâmica política do capitalismo tardio.
O dispositivo da conversão visa a um fim pastoral, isto é, de condução
de uma coletividade a um fim teológico-político visado e predeterminado,
suposto no agir do pastor, porém a condução pastoral de uma comunidade
é apenas o produto ou efeito secundário da produção e condução de almas.
A finalidade essencialmente pastoral, entendida aqui como uma política de
longa duração e grande envergadura capaz de dar forma e contorno às
representações, pensamentos, linguagem e visão de mundo dos sujeitos,
encontra sua expressão privilegiada com o início da “conversão global” no
século XVI, movimento de expansão da Igreja militante conduzido sobre-
tudo pela Companhia de Jesus e que aparece em continuidade a uma
conversão interna da Europa; continuidade que pode ser apreendida con-
ceitualmente como uma psicagogia relacionada à colonização do Novo
Mundo a partir, sobretudo, dos relatos e da narrativa da experiência las-
casiana.
I

Os fundamentos da colonização do novo mundo

1.1 A atuação de Bartolomé de Las Casas

Compreender a missionação católica no Novo Mundo e no Oriente


implica a análise dos fundamentos e de relevantes experiências anteriores
realizadas antes da criação da Companhia de Jesus, isto é, uma análise co-
tejada que seja capaz de apreender o arco do movimento que surge com a
Escola de Salamanca e passa pelos primeiros anos da colonização espa-
nhola no Novo Mundo, até chegar à segunda metade do século XVI com os
jesuítas. Este trabalho irá então, no primeiro capítulo, abordar figuras con-
sideradas essenciais neste processo de missionação e conversão, que passa
por uma fundamentação de teologia moral com importantes efeitos jurí-
dicos.
O presente tópico aparece no conjunto do trabalho como uma espécie
de eixo fundamental, operando uma ligação entre o arcabouço teológico-
jurídico-filosófico medieval e o posterior surgimento da Escola de Sala-
manca. Essa síntese realiza-se na pessoa de Bartolomé de Las Casas (c.
1484-1566), frade dominicano espanhol que atua na América com grande
proeminência na defesa dos direitos indígenas. A importância de Las Ca-
sas, como se verá, articula-se também em relação à sua concepção
antropológica (poderíamos dizer que Las Casas porta uma antropologia
filosófica frente aos defensores da tese da servidão natural dos índios ame-
ricanos e, consequentemente, a Juan Ginés de Sepúlveda).
A presença deste capítulo remete-se tanto às análises dos missioná-
rios jesuítas quanto ao que trata da Escola de Salamanca propriamente
38 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

dita e ao seu membro mais proeminente, o também dominicano Francisco


de Vitoria, e justifica-se pelo entendimento de que Las Casas em muitos
âmbitos antecipa as teses de Vitoria e aparece na importante posição do
contato empírico com o Novo Mundo, ao passo que Vitoria atua nos limites
universitários e de sua tradição. Será com o cotejo entre Las Casas e Vito-
ria, no entanto, que se poderá vislumbrar a atuação católica
contrarreformista avant la lettre em uma potente articulação entre o âm-
bito missionário e o âmbito doutrinário em suas variantes unindo a
teologia e as humanidades. Com efeito, é possível examinar a atuação de
Las Casas e as suas principais formulações e observar a maior parte delas
elaboradas na doutrina de Francisco de Vitoria. Embora Las Casas não
possa ser considerado membro da Escola de Salamanca, sua atuação na
América e na Espanha pode ter influído nos rumos e nos contornos da
teologia moral salmanticense. Ainda assim, é possível também suscitar um
solo místico comum a animar a Espanha do Siglo de Oro, o século XVI,
indo desde Las Casas, que em 1502 chega à América, até Vitoria, passando
por Inácio de Loyola1, São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila. É possível
que essa mística espanhola, que vinha se desenvolvendo desde São Domin-
gos de Gusmão, fundador da Ordem dos Pregadores, tenha funcionado
como depósito de um ideário comum, conformado pela ética cristã, lan-
çando mão de imagens e conceitos fundamentais, como as virtudes
cardeais e teologais (sobretudo a caridade), a metáfora multissecular do
Corpo Místico de Cristo e o aspecto crístico da noção de pessoa, capaz de
adornar todos os seres humanos em uma comunidade mística comum, ca-
tólica2,3. É também relevante tomá-la como antecipadora de algumas
linhas contrarreformistas que incidirão na moldura das missões jesuítas a

1
Apesar das observações feitas acima, na esteira de Roland Barthes, no sentido de a ascese jesuíta configurar uma
“anti-mística”.
2
Cf. HÖFFNER, Joseph. Colonização e Evangelho: ética da colonização espanhola no Século de Ouro. São Paulo: Pre-
sença, 1977, pp. 300-313.
3
Cf. a análise das metáforas de base tomistas do discurso teológico-político da escolástica.
Pedro Brocco | 39

partir da segunda metade do século XVI, mas que são analisadas por al-
guns historiadores do Concílio de Trento, como Adriano Prosperi4. É o
caso da maior importância dada à confissão e ao acompanhamento de um
diretor espiritual, além de uma maior frequência eucarística, tomando a
comunhão em períodos mais curtos, contrariamente à tradição católica
medieval das obrigações anuais, inclusive a da confissão, como estabele-
cido pelo Quarto Concílio de Latrão, em 1215. Essa mística espanhola
alicerçava-se também na circulação de obras que então atingiam número
crescente de leitores, como a Imitação de Cristo5.
As novas configurações acerca da noção de pessoa a partir das mu-
danças doutrinais contrarreformistas evocam os estudos de Marcel Mauss
sobre o tema. A noção de pessoa humana, segundo Mauss, é essencial-
mente a noção cristã, derivando da passagem da noção de persona, isto é,
homem revestido de um estado, à noção de homem simplesmente, ou pes-
soa humana6. Segundo Mauss, a questão da unidade da pessoa foi colocada
juntamente com a unidade da Igreja por relação com a unidade de Deus
que se resolveu após inúmeros debates7, envolvendo toda história da
Igreja. Quando o Concílio de Niceia, em 325 da Era Cristã, afirma a Unitas
in tres personas, una persona in duas naturas, unidade das três pessoas –
da Trindade – e a unidade das duas naturezas do Cristo, a noção de um
funda a noção de pessoa: tanto a respeito das pessoas divinas quanto da
pessoa humana propriamente dita: substância e forma, corpo e alma,
consciência e ação8.
O eixo principal deste livro segue o percurso de Las Casas, passando
por Vitoria e chega aos missionários jesuítas procurando um fator unitivo
fundamental em torno de uma concepção de pessoa e comunidade e de

4
PROSPERI, Adriano. Il Concilio di Trento: una introduzione storica. Torino: Giulio Einaudi, 2001. Tradução espa-
nhola: El Concilio de Trento: una introducción histórica. s/l: Junta de Castilla y León, 2008.
5
É sabido que a conversão de Inácio de Loyola se dá após a leitura da Imitação de Cristo, em período de convalesci-
mento após ter sido ferido na perna durante a Batalha de Pamplona (1521).
6
MAUSS, Marcel, op. cit., p. 235.
7
Idem.
8
Idem, p. 236.
40 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

uma ética capaz de sustentá-la para, assim, dar contornos a um horizonte


normativo que depois se desdobrá em uma teoria do Direito, pois as mis-
sões pretenderam transportar e implantar a noção cristã-europeia de
pessoa humana para contextos onde tal conceito inexistia ou possuía dis-
tintos desdobramentos e configurações.
Pretendemos apresentar o contexto das Descobertas e do contato do
Ocidente com o Novo Mundo como absolutamente crucial e fundamental
para o surgimento das ciências humanas: de forma especial, neste traba-
lho, iremos nos deparar com o uso transversal, por parte dos missionários,
de antecipações epistemológicas de disciplinas como a História e a Antro-
pologia, no contexto dos relatos e análise de fontes destes missionários em
relação aos nativos. Há uma tentativa de compreendê-los seja em uma re-
lação diacrônica em comparação com os antigos (gregos e romanos
pagãos, por exemplo) seja em uma relação sincrônica com os contempo-
râneos ocidentais.
As fontes utilizadas para análise neste livro são em sua maioria pro-
venientes de missionários ibéricos que atuaram no Novo Mundo e no
Japão, motivo que nos coloca em posição privilegiada em relação a estas
análises, pois as fontes são produzidas em língua vernácula.
Na esteira de estudos levados aqui em consideração como os de Ni-
cola Gasbarro, Gilberto Mazzoleni9, Cristina Pompa, Adone Agnolin, Paula
Montero e outros, pretende-se sustentar que a experiência missionária
funda uma narrativa intercultural em uma tentativa de compreensão his-
tórico-social das “religiões” no século XVI. O termo “religiões” aparece
assim entre aspas pois é categoria relançada pelo saber ocidental em dire-
ção à compreensão de culturas estrangeiras no contexto do contato. Com
efeito, a narrativa de religião foi utilizada como principal veículo de leitura
e compreensão do outro neste período, como informa Gasbarro em estudo
seminal para este trabalho:

9
MAZZOLENI, Gilberto. O Planeta Cultural: Para uma Antropologia Histórica. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 1992.
Pedro Brocco | 41

A História das Religiões, como a Antropologia, nasceu e desenvolveu-se no in-


terior da consciência europeia como exigência de compreensão histórico-social
da religião e das religiões, sem apelar para as certezas teoréticas da metafísica
ou as pretensões de ortodoxia da “revelação”. Mas encontrou um “objeto inte-
lectual” historicamente já constituído e socialmente funcional, culturalmente
consolidado e simbolicamente eficaz, comparativamente já explorado e uni-
versalmente reconhecido.10

Inicialmente posta em tensão com uma alteridade radical, a civiliza-


ção ocidental acionou recursos simbólicos capazes de tradução e
compreensão das estruturas sociais antes desconhecidas, criando assim
mecanismos de generalização capazes de atuar como referenciais em um
processo mais amplo de socialização de fato e de direito. Utilizando para
isso como registro privilegiado uma religião e uma civilização postas como
universais, a civilização europeia não faz mais do que lançar as bases para
processos de comparação entre civilizações: não se pode universalizar sem
antes se comparar, e não se pode comparar fora de relações de fato e de
direito, nem se pode haver sentido do direito sem uma história do fato11:

A comparação de fato nasce das relações entre civilizações: quando estas se


multiplicam e se tornam mais complexas, a prática social precisa cada vez mais
de sistemas de generalização, capazes de incluir socialmente e compatibilizar
simbolicamente as diferenças, se não quer excluí-las como “alteridades” radi-
cais.12

A força do cristianismo apresenta-se em sua capacidade de colocar


no interior de um discurso religioso sobre o “verdadeiro Deus” a virtuali-
dade inteira dos povos e nações. Faz isso pelo deslocamento de um
monoteísmo político-étnico (Iaweh, Deus verdadeiro de Israel e somente
de Israel – reino terrenal) para um monoteísmo cujo Deus envia o próprio
filho para ser assassinado em nome de toda a comunidade que nele crê e

10
GASBARRO, Nicola. “Missões: a civilização cristã em ação”. In MONTERO, Paula (Org.). Deus na Aldeia: missioná-
rios, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006, pp. 67-110.
11
Idem, p. 69.
12
Idem, p. 70.
42 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

assim fundar o Reino de Deus que “não é deste mundo”. Tal ambiguidade
e tensão se observa no diálogo crístico com Pilatos e na formulação “dar a
César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Neste sentido o cristia-
nismo, colocando-se como religião universal, aperfeiçoa o monoteísmo
político judeu e o universalismo civil romano, ocupado mais com medidas
administrativas e fiscais do Império, formando assim um “Império etéreo”
do significante crístico haurido e sustentado institucionalmente pela Igreja
e pela comunidade de fiéis, desde o princípio transnacional. Como isto foi
possível em uma religião monoteísta? Gasbarro sustenta que a mensagem
cristã é universalizável desde os Atos dos Apóstolos, por isto é que a Igreja
é radicalmente desde sempre missionária. Neste sentido, a missão é uma
prática de evangelização que permite “passar de uma universalidade po-
tencial a uma universalidade atual e histórica”13, o que se relaciona de
modo evidente com o tempo secular.
Ora, as Descobertas e o contato europeu com novos povos colocam
problemas inéditos para a forma de vida ocidental cristã até então vivida
pela Europa. O europeu acostumou-se a pensar as grandes questões exis-
tenciais em “termos religiosos” a partir das categorias da fé e da crença:
as questões envolvendo a vida e a morte. Ocorre que nestes povos que fo-
ram então descobertos, era possível perceber formas de vida que se
organizavam em torno das respostas destas mesmas questões existenciais
sem lançar mão de estruturas religiosas e de conceitos como fé e crença,
seja com uma organização social sem soteriologia enquanto doutrina da
salvação, ou com soteriologia sem divindade. São famosos neste sentido as
cartas dos primeiros missionários descrevendo as sociedades indígenas
sem F, L e R: Fé, Lei e Rei, o que parece aqui traduzir os principais eixos
em torno dos quais se organizava a vida ocidental, na Fé da Religião antes
de tudo; na Lei do Direito e no Rei da Política enquanto organização social
capaz de constituir sua própria polícia.

13
Idem, p. 71.
Pedro Brocco | 43

Entretanto, Gasbarro observa que o cristianismo se firma como


“culto do verdadeiro Deus” para depois construir, graças a isto, uma teo-
logia e uma cristologia que refletem as exigências sociais e simbólicas dos
cristãos em seus contextos de vida e de ação. A construção histórica da
ritualidade sacramental e da educação cristã mostra, segundo ele, que a
religião é compreensível historicamente antes pela análise prática e do
exercício do culto do que pela teologia conformada pela estrutura do
dogma e pelo sistema de crenças. Propõe, assim, a adoção do conceito de
ortoprática para se antepor e contrapor ao de ortodoxia no estudo das re-
ligiões:

Ao privilegiar as regras rituais e as ações inclusivas e performativas da vida


social, ela pode dar conta também da construção histórica do sistema de cren-
ças como lugar das compatibilidades simbólicas das diferenças culturais. Por
outro lado, como mostra a história das origens cristãs, não existe construção
de uma religião “universal” sem a relação entre civilizações diferentes e, por-
tanto, sem inclusões sociais da e na prática comum de culto. A perspectiva
histórica precisa partir da hipótese de que até o que chamamos de “sentido da
vida e da morte” bem como todas as noções que projetamos no plano universal
sejam na verdade o produto histórico das relações entre as civilizações na
Idade Moderna, que, não por um acaso, se abre com a descoberta do Novo
Mundo e a conseguinte necessidade social e cultural de repensar o mundo.14

O lugar do Direito enquanto esfera autônoma seria assim indissociá-


vel do lugar do “sistema de crenças como lugar das compatibilidades
simbólicas das diferenças culturais” e das “compatibilidades simbólicas
das diferenças”, porém separado da esfera religiosa e do plano da prática
comum do culto, embora ainda assim se constitua dentro do plano da prá-
tica comum.
A universalidade potencial do cristianismo com suas estruturas jurí-
dicas jungidas à religião passou então por dois movimentos mais ou menos
simultâneos: i) a igualdade estrutural em nível teológico, que diz respeito

14
Idem, ibidem.
44 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

aos sujeitos sociais diferentes por natureza e estatuto social e ii) a igual-
dade no plano do direito e de um horizonte social e simbólico que
estabeleça os limites do possível e do pensável15. Estes dois movimentos
são realizados na América, no plano jurídico, através das teorias de Fran-
cisco de Vitoria e sua posterior aceitação na dogmática jurídica da Coroa
espanhola e, no plano teológico, pelo reconhecimento da humanidade dos
índios através da bula papal Sublimis Deus, promulgada por Paulo III em
1537, que reconheceu o estatuto de igualdade entre cristãos e indígenas no
plano de sua humanidade, fechando assim as portas para o debate, em
voga na época, tendente a projetar nos silvícolas o estatuto de não-huma-
nos, mais próximos às bestas e feras. O esforço de missionários como Las
Casas, logo no início da colonização espanhola, é ressaltar a capacidade
dos índios para a organização civil, com religião, propriedade, relações ma-
trimoniais e de parentesco, etc. Logo, estariam aptos para receber o
cristianismo com seu verdadeiro Deus e assim também a salvação. Trata-
se de uma forma de relacionamento com o estatuto da civilidade muito
distinta da encontrada entre os romanos: para estes, a civitas do Império
abarcava os territórios que o constituíam e as populações que ali viviam,
em uma estrutura ao mesmo tempo jurídica, fiscal e militar.
O processo de civilização na modernidade conduzido pela Igreja e pe-
las Coroas ibéricas cobre, como toda missão16, dois aspectos fundamentais:
o simbólico e o social. O simbólico relaciona-se com as relações de hierar-
quias que envolvem a estrutura missionária, sua mensagem e os efeitos de
transformação que operam. As missões católicas no Novo Mundo, ao con-
trário das protestantes, são mais institucionais e hierárquicas no nível
simbólico: neste sentido demandam compreensão, tradução e catequese,
uma exigência de socialização que vai muito além da sola scriptura pro-
testante. De outro lado, no aspecto social (e jurídico), percebe-se uma
tendência mais igualitária no nível do processo de civilização nas missões
católicas, as quais fundamentam-se nos conceitos de “direito natural” e de

15
Idem, p. 72.
16
Esta é a hipótese de Nicola Gasbarro, op. cit.
Pedro Brocco | 45

“livre arbítrio”, este último no sentido de que a mensagem religiosa não


deve ser imposta e atuando como princípio geral de legitimação entre as
nações17, presente já na obra de Francisco de Vitoria.
O Direito como esfera autônoma aparecerá cerca de dois séculos mais
tarde no interior de dois movimentos: de um lado, seria produto de uma
estrutura cooperativa e, de outro lado e ao mesmo tempo, teria o papel de
resguardar o funcionamento ótimo dessa estrutura. Cabe então notar que
do objetivo de resguardar uma estrutura comunitária em cujo seio se pro-
duzam sentimentos de igualdade, justiça e cooperação a uma plutocracia
produtora de consensos artificiais conformadores de uma pseudodemo-
cracia, o Direito desempenharia igualmente a função de produto da
estrutura e fiador da mesma. Porém, quando se procede à análise das me-
táforas de base e dos conceitos fundamentais informadores das estruturas
comunitárias e do Direito que as junge, pode-se perceber o lugar de proe-
minência conferido a esses conceitos, como o do bem comum, enquanto
veiculadoras de uma ética e de uma antropologia filosófica formativa de
eixos principais tanto em relação ao conceito de comunidade quanto ao
conceito de Direito que se produz a partir delas. Para esta compreensão, o
aspecto social e simbólico das missões enxertava o sentido do jurídico no
contexto do processo de civilização, que ainda não operava em uma chave
de leitura culturalista ou étnica, mas religiosa.
A história das missões com sua análise de fontes apareceria assim em
situação privilegiada para a constituição da História das Religiões, pois são
nas missões que se formam as condições de comparação histórica entre
civilizações a partir do código da “religião”.
Mas as missões cristãs, ao contrário da civitas romana, fundariam
um horizonte civil que não passaria tanto pela dominação militar. Em ou-
tras palavras, não caberia buscar o sentido do poder por trás das missões,
mas antes, o que é aplicável ao cristianismo como um todo, o poder do
sentido. Nicola Gasbarro faz esse contraste para criticar as perspectivas de
análise que esgotam a força do sentido no sentido da força e da opressão

17
GASBARRO, op. cit., p. 73.
46 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

do imaginário, com o faz a literatura histórica pós-moderna, incapaz de


reconhecer as potencialidades civilizatórias e igualitárias do cristianismo:

[...] reconhecer as potencialidades “civilizatórias” e “igualitárias” do cristia-


nismo não significa uma adesão “religiosa” mas antes uma responsabilidade
histórico-cultural que redesenha a história das relações entre civilizações em
termos mais gerais que os da história estocástica à la Foucault, em que tudo
se resolve na casualidade do sentido do poder, sem se questionar criticamente
sobre a gênese e o desenvolvimento do poder do sentido.18

O poder do sentido do cristianismo de fato deita raízes em sua pró-


pria fundação, em um encontro com o paganismo antigo e com o
monoteísmo judaico, em parte absorvendo-os, em parte recusando-os e
relançando-os em uma compatibilidade sistemática mais ampla e pode-
rosa: “a teologia da história substitui a história antiga só porque o
horizonte salvífico consegue compatibilizar o fim da vida individual com o
fim da história coletiva. Não é à toa que o peso do Apocalipse é essencial
para as missões: sem estas últimas não há reino de Deus porque é preciso
alcançar a compatibilidade máxima”19.
O projeto civilizatório cristão seria capaz então de incluir em uma
mesma narrativa salvífica capaz de compatibilizar o sentido da vida e da
morte com uma história comum e coletiva:

O poder do sentido do monoteísmo não é teologicamente maior do que o do


politeísmo (Hume diria que não se compreende como o Uno pode resolver
mais problemas do que o Múltiplo), mas é, antropologicamente, mais inclu-
sivo, graças à certeza da salvação, tornando compatíveis o sentido da vida e da
morte e as estruturas da história coletiva e das sociedades complexas. Uma
crítica de antemão não é mais “laica”, mas apenas mais “desconstrucionista”,
enquanto a tarefa do historiador é “construtiva”: é preciso reconstituir porque
as coisas se deram dessa forma, mesmo se não necessariamente deviam se dar
dessa forma. As missões não são apenas o cristianismo em ação, mas a “civili-
zação cristã” em ação, com suas estruturas de poder e seus limites de sentido.

18
Idem, p. 74.
19
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 47

Isso é tão mais válido na modernidade, depois da descoberta do Novo


Mundo.20

O cristianismo dos modernos, no entanto, não é o mesmo que o cris-


tianismo primitivo. As missões aparecem no limiar da modernidade
construindo sua principal e mais importante globalização social e simbó-
lica que ainda hoje produz efeitos. No afã de incluir socialmente e
compreender simbolicamente diversidades novas e imprevistas, as mis-
sões mudam e adaptam sua mensagem.
Os novos estudos sobre história das missões, sobre os quais este tra-
balho se debruça de forma especial, devem grande parte de seu material
ao Novo Mundo. Assim como o cristianismo ocidental se construiu a partir
do choque cultural com o paganismo antigo, que em parte absorveu e em
parte recusou, o cristianismo moderno só pôde se afirmar nas áreas de
missões devido à sua capacidade de adaptação e vocação a firmar compro-
missos simbólicos. A perspectiva de Nicola Gasbarro é a de que os
resultados “civis” ou “religiosos” da função civilizadora das missões e da
preocupação missionária da modernidade, antes de implantações de uma
ortodoxia religiosa, são produtos simbólicos de relações, “quase fruto de
uma busca contínua de possíveis compatibilidades, exigência e consequên-
cia de processos de desestruturação e reestruturação de relações sociais”21.
Gasbarro propõe reanalisar as redes de compromissos sociológicos e de
códigos comunicativos, de inclusões generalizadas e de compatibilidades:
assim, sustenta que as missões mostram que a religião, ainda que funcione
como código prioritário de comunicação intercultural, não pode ser anali-
sada sem a civilização22:

As missões constroem a primeira globalização social e simbólica da moderni-


dade: é inútil negar as consequências colonizadoras do imaginário23, mas, para

20
Idem, ibidem.
21
Idem, p. 75.
22
Idem, ibidem.
23
GRUZINSKI, Serge. La colonisation de l’imaginaire. Sociétés indigènes et occidentalisation dans le Mexique
espagnol, XVI-XVIII siècle. Paris, La Découverte, 1988.
48 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

incluir socialmente e compreender simbolicamente diversidades novas e im-


previstas, elas são obrigadas a mudar sua mensagem e perder alguns dos
pressupostos iniciais: o cristianismo dos modernos não é mais o dos antigos e
os missionários são os primeiros protagonistas dessa revolução cultural. A
perspectiva antropológica da modernidade se abre com a missão cristianiza-
dora, porque a civilização do Ocidente europeu é cristã, não apenas a Espanha
católica ou o poder temporal da Igreja, mas todo o Ocidente, em sentido ex-
tensivo e ostensivo. A expulsão dos muçulmanos e as missões no Novo Mundo
fazem parte de uma “reconquista espiritual” que tende a ampliar os confins da
“cidade de Deus”, até coincidirem com os da humanidade.24

É crucial o fato de os missionários, ainda que atuando num registro


religioso, terem antecipado alguns aspectos fundamentais da antropolo-
gia. Nicola Gasbarro observa que a antropologia clássica, sobretudo a mais
próxima da problemática religiosa, herdou categorias e técnicas de obser-
vação etnográficas dos missionários porque foram estes que pela primeira
vez tentaram compreender a complexidade das diferenças culturais no in-
terior de uma perspectiva de igualdade estrutural da humanidade25.
Atuam assim, para além de uma perspectiva meramente teológica, que é
óbvia, numa perspectiva moralmente normativa, que ao mesmo tempo em
que tenta compreender as diferenças no interior da igualdade estrutural,
intenta remover as mais contraditórias com a gramática de vida cristã,
através da conversão. E a conversão revela um aspecto central para a an-
tropologia, a eficácia simbólica. O problema antropológico seria o da
eficácia simbólica: “o poder do sentido que perpassa o social e o individual
e por isso tem efeitos sobre o corpo”26.
Tzvetan Todorov inicia o seu ensaio de antropologia geral27 buscando
enfrentar uma problemática muito semelhante: parte da pesquisa a res-
peito do lugar que a sociedade ocupa no homem, e não do lugar que o
homem ocupa na sociedade, como se tem feito habitualmente no domínio

24
GASBARRO, op. cit., p. 75-76.
25
Idem, p. 79.
26
Idem, p. 93.
27
TODOROV, Tzvetan. A vida em comum: ensaio de Antropologia geral. Trad. Maria Angélica Deângeli; Norma Wim-
mer. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
Pedro Brocco | 49

da reflexão sobre a teoria política e a teoria do Direito. Assim, Todorov


apresenta, por exemplo, na tradição literária, política e humanística euro-
peia de inícios do século XVII, um olhar sobre a história do pensamento
que cobre o que ele chama de tradições associais ou individualistas, repre-
sentadas pelas obras de Maquiavel, Hobbes, Montaigne, La Rochefoucauld,
Pascal (sobretudo sua concepção de homem) e mesmo Kant, em contra-
posição a obras que se debruçam sobre a centralidade da vida comunitária
sobre a formação e o sentido de existência dos indivíduos, como Aristóte-
les, Cícero, Rousseau e Smith.
O objetivo deste trabalho é, seguindo na mesma senda, apontar uma
tradição essencial para o reforço da concepção social de existência humana
na modernidade: a tradição ibérica que depende do debate acerca da colo-
nização do Novo Mundo para produzir uma nova teoria e novas formas de
adaptação e configuração sociais. Assim, o estudo de Todorov deixou de
contemplar uma viga-mestra sem a qual não seria possível sustentar a es-
trutura do telhado rousseauniano, pois, muito antes de Rousseau,
Bartolomé de Las Casas sustentou uma posição semelhante em relação ao
nativo americano, desde já rechaçando qualquer tipo de “estado de natu-
reza”. A riqueza da argumentação de Las Casas é que não há nela senão os
mitos da doutrina cristã; no que diz respeito aos homens do Novo Mundo,
houve uma clara noção de que se tratava, talvez, de homens que habitavam
as selvas, mas que de modo algum eram selvagens: possuíam uma cultura,
ou uma forma de organização social, que demandava compreensão, tra-
dução e processamento para que se realizasse sua conversão e
consequente modificação. Esse modo de proceder e de pensar não foi unâ-
nime e nasceu no interior de um longo e sinuoso debate que atravessou os
séculos iniciais da colonização, passando pelos domínios do direito, da po-
lítica e da economia.
Tendo como eixo principal a pesquisa em torno dos mecanismos de
conversão e de uma psicagogia, este trabalho buscará de início localizar a
força e o peso da conversão dos nativos americanos para a consecução do
50 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

projeto de tomada do território e colonização por parte das Coroas ibéri-


cas. O início do percurso se concentrará no apontamento das maiores
linhas de força acerca do planejamento da colonização, realçando-se os no-
mes de Bartolomé de Las Casas e de Francisco de Vitoria. Este último tem
grande importância no âmbito doutrinário e universitário, e será abordado
a partir destes campos, no interior do surgimento da Escola de Salamanca.
Mas o estudo continuará, nos capítulos subsequentes, buscando dilatar os
limites da problemática, considerada central, do papel da conversão no es-
tabelecimento das colônias ibéricas no Novo Mundo e no Extremo Oriente.
Para além de um estabelecimento doutrinário e conceitual das possessões
ultramarinas, pode-se supor que a metodologia da conversão, depurando-
se ao longo dos anos, teve um peso não dimensionado, certamente maior,
do que os debates acadêmicos em torno das terras e gentes americanas.
Este estudo traz a hipótese, desde já sustentada, de que é a Companhia de
Jesus a grande articuladora do modo de se proceder à conversão. Trata-se
então de observar e analisar, a partir das fontes, como se deu a atuação em
diferentes localidades, em um período histórico comum, isto é, a segunda
metade do século XVI.
A conversão redimensiona o peso da atuação metropolitana, deslo-
cada das armas para as sutilezas do uso das palavras e das imagens, da
escuta e da fala, e até mesmo dos cheiros e dos sabores. Tudo é aproveitado
na conversão: todas as coordenadas simbólicas, os costumes, os modos à
mesa, a forma de dormir, a forma de trabalhar, as relações sexuais, enfim,
a forma de viver. Trata-se, no limite, da conversão de uma forma de vida
em outra, não necessariamente a mesma vivida na Europa: do contato de
uma e outra nasce uma terceira, mestiça, que se coloca então em um re-
gistro próprio. A utilização da força imaginativa (imagens, mas também a
construção imagética na retórica e na dramaturgia, se pensarmos em An-
chieta e em Vieira, que puseram em suas práticas os fundamentos dos
Exercícios espirituais de Inácio de Loyola) leva o contato entre europeus e
nativos americanos a patamares não alcançáveis pelas formas violentas
Pedro Brocco | 51

praticadas pelos colonos nos primeiros anos de colonização do Novo


Mundo, denunciadas por Las Casas.
Inseparáveis num mesmo movimento, religião e civilização conju-
gam-se no processo de conversão enquanto ativação da eficácia simbólica
do discurso religioso cristão capaz de atravessar tanto o plano social
quanto o individual, incidindo sobre o corpo. Neste contexto surgem e ope-
ram termos derivados da idolatria e da selvageria, como no Brasil a
antropofagia, que parece unir os dois termos. Há então de um lado uma
exigência de generalização dos sentidos culturais acerca das diferenças
num plano de igualdade estrutural: idólatras e selvagens são postos no
mesmo registro com valor diferencial negativo em relação ao cristão co-
nhecedor da doutrina ortodoxa e inserido no contexto civilizacional,
emissor de um valor positivo na mesma escala valorativa: “a hierarquia de
sentido da religião cristã torna-se paradigma: a religio é a verdade da ação
e do pensamento e, portanto, da ordem moral do mundo e da história;
todo o resto é desvio, excesso de fé, crença e prática supersticiosa, ‘a causa
e o fim de todo o mal’”28.
O mecanismo de conversão trabalha com dois planos essenciais: um
ligado ao sentido e ao simbólico, outro mais ligado à prática e ao campo
social. Com efeito, essa história não pode ser escrita sem a análise da im-
portância da missionação jesuíta no Brasil ao longo do século XVI e o
aperfeiçoamento dos aldeamentos ou “reduções” jesuítas. É nas reduções
que o aspecto religioso e o civilizacional operam sua eficácia de forma pri-
vilegiada, pois colocarão em movimento uma eficaz máquina de inclusão
social: o rito. Seja no aspecto da forma de vida, seja principalmente no
âmbito religioso, com a liturgia, “o rito é uma grande máquina de inclusão
social e de compatibilidade simbólica, incluindo as diferenças e transfor-
mando-as em possibilidades de exercício prático”29.
Com efeito, nesta ritologia do sistema sociocultural que nasce na e a
partir das reduções, pode-se compreender de forma clara a interface das

28
GASBARRO, op. cit., p. 96.
29
Idem, p. 97.
52 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

relações sociais com o aspecto religioso dando lugar a uma nova fisiologia
sociocultural. Os ritos compreendidos aqui pelos principais sacramentos
da Igreja correspondem aos efeitos referidos. Há, com efeito, através da
prática destes ritos, a estruturação de toda a experiência de vida do prati-
cante, que além de crente é sobretudo um praticante: o nascimento
(batismo); o crescimento e a formação do corpo e do intelecto (catequese
e educação); o amadurecimento e a procriação (matrimônio); a morte (ba-
tismo in extremis; extrema unção). E sobretudo atravessando
praticamente todas as fases e sacramentos: a confissão, especialmente va-
lorizada pelos jesuítas, pondo o cristão em contato com sua prática social
e individual ao longo de toda sua vida, continuamente reenviado à dou-
trina cristã e à própria imagem crística, articuladas pelo padre confessor:

[...] é impossível distinguir os diferentes níveis de comunicação no interior da


“ortoprática” ritual: o social do simbólico, o civil do religioso, a ação dramática
da representação simbólica, a força institucionalizante do pensamento da
energia imaginativa da ação eficaz: tudo acontece, se cumpre e se transforma
a um só tempo. O ritual é por sua natureza estrutural e estruturante, trans-
significação do sentido e transformação radical da vida, compatibilidade sin-
tética das dificuldades materiais e das produções simbólicas inventadas para
superá-las.30

É no ritual que os missionários reconduzem a superstição pagã para


a religião, e buscam as “práticas supersticiosas” na vida cotidiana. É neste
sentido que foi estratégico para todo território em missão a competição
entre os missionários e os xamãs, curandeiros e outros agentes que atua-
vam no campo da cura e da saúde: “ser mais eficaz do que os operadores
rituais indígenas não significava apenas denunciar o embuste superstici-
oso destes mas, antes, incluir um sistema de sentido em outro, mais eficaz
e ‘verdadeiro’”31.
Com efeito, pode-se observar que a guerra em torno da produção e
circulação das imagens sacras obteve uma maior eficácia do que a opção

30
Idem, ibidem.
31
Idem, p. 98.
Pedro Brocco | 53

pelo uso da violência e do aparato militar no período aqui analisado. A


utilização de imagens e da tradição composta pela vida dos santos foi tam-
bém opção contrarreformista para combater a Reforma luterana, a qual,
com inclinação iconoclasta, rechaçou a tradição e as figuras da Virgem e
dos santos. A Contrarreforma, ao reconhecer a importância das imagens
dos santos e das relíquias a partir do ponto de vista de sua representação,
abarca dois sentidos possíveis deste ponto: a possibilidade do uso das ima-
gens para fazer os fiéis engajarem-se na imitação dos modelos morais
representados nelas e, mais especificamente no Novo Mundo, educar mo-
ralmente aqueles que ainda não sabiam ler e escrever. As imagens
puderam servir, assim, para transmitir um conteúdo mínimo acerca do
magistério da Igreja do ponto de vista moral e normativo, eficaz nas mis-
sões e na estratégia de conversão.
Pode-se ilustrar a afirmação quando se verifica em uma rápida aná-
lise sociológica no México contemporâneo a importância vital da imagem
da Virgem de Guadalupe para a construção da identidade mexicana:
54 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Figura 2: Antiga Basílica de Guadalupe no dia de sua festa litúrgica. 12 de dezembro de 2014. Arquivo pessoal.

Gilberto Freyre faz observações convergentes em relação ao apareci-


mento da imagem da Virgem no Brasil colonial. A devoção intensa pela
Virgem Maria, característica da área de engenhos e de fazendas patriarcais
do Brasil, revela a sublimação ou a idealização da mulher (melhor seria
dizer: da mãe) através de um culto cuja comparação, feita por Freyre, em
relação aos Estados Unidos apresenta grande interesse para esta pesquisa:
entre os anglo-americanos, há a identificação do culto da pureza da mulher
com o da pureza da raça. Esta identificação não se encontra nem no Brasil
Pedro Brocco | 55

e nem no México, onde a Virgem de Guadalupe aparece já mestiça e retira


daí sua eficácia simbólica: justamente por mesclar aspectos autóctones
com a imagética cristã europeia. Gilberto Freyre observa que não encon-
tramos essa identificação no Brasil pois o culto da mulher sempre esteve
mais associado ao orgulho de família do que ao orgulho de raça32:

No Brasil parece que o culto à Virgem Maria está associado de maneira tão
estreita ao complexo patriarcal que, em grande número de mansões, ou de
casas-grandes, as respectivas capelas eram batizadas não com o nome de fa-
mília do proprietário, mas sim com o de sua esposa, de sua mãe ou de alguma
filha, disfarçado em uma das muitas denominações dadas, nos países latinos,
à Virgem Maria, respeitosamente precedido pelo tratamento como que matri-
arcal de “Nossa Senhora”: Nossa Senhora da Anunciação, Nossa Senhora da
Boa Viagem, da Boa Esperança, do Bom Parto – denominação particularmente
maternal –, do Perpétuo Socorro, das Dores, da Solidão. Em muitos casos essa
mística Senhora – espécie de deusa que, mais do que o próprio Deus, ou o
Cristo, supunha-se guardar toda a plantação, protegendo-a contra todos os
tipos de inimigos – era a madrinha das crianças, fidalgas, plebeias e escravas
do sexo feminino, nascidas em engenho ou em fazenda e batizadas na capela
pelo capelão desse engenho ou dessas fazendas, que geralmente se sentia mais
subordinado ao patriarca do que ao bispo, recebendo a criança o nome da Vir-
gem Maria particular da fazenda ou do lugar em que nascia [...] O poder
patriarcal no Brasil, durante a escravidão, não foi absoluto. Havia um tão in-
tenso respeito pela mulher, em sua forma romântica e sobretudo mística, que
o mesmo se refletia na vida prática: no cotidiano.33

Se o patriarcado aparece privilegiadamente na obra de Freyre como


núcleo a partir do qual se espraia a vida privada e os arranjos políticos no
Brasil, governado por “senhores absolutos das mulheres brancas, dos en-
genhos ou das fazendas e dos escravos”34, há que se fazer um adendo, feito
aliás pelo próprio Freyre: o poder patriarcal limitava-se psicologicamente
pelo respeito romântico ou místico às mulheres: “não somente às suas
mães, às suas esposas e às suas filhas, mas também à Virgem Maria, que

32
FREYRE, Gilberto. Novo Mundo nos Trópicos. São Paulo: Global, 2011, p. 230.
33
Idem, ibidem.
34
Idem, pp. 230-231.
56 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

para muitos era um poder místico mais forte – é preciso repeti-lo – do que
Deus ou do que Jesus Cristo”35.
E nesse Brasil e nesse México (então Nova Espanha) em que se insta-
lam as primeiras povoações europeias de matizes ibéricos, quem articula
e fala sobre as imagens sacras, com eficácia e reconhecimento, são os fra-
des e os padres jesuítas. É de se lembrar que no importante episódio –
fundamental para a fundação da cidade do Rio de Janeiro – do Armistício
de Iperoig ou Iperuí (Ubatuba), quando Nóbrega e Anchieta foram nego-
ciar e Anchieta ficou refém na aldeia dos tamoios, redigiu ali, na areia da
praia, um copioso poema em homenagem à Virgem Maria. Escreve João
Adolfo Hansen, citando o cronista da Companhia de Jesus nos séculos XVI
e XVII Simão de Vasconcelos:

Depois de idas e vindas nas negociações, os tamoios permitiram que Nóbrega


retornasse a São Vicente, em 21 de junho. Anchieta permaneceu refém. Como
diz Simão de Vasconcelos, “na flor da idade de trinta anos, ainda não cabais,
no mor vigor da natureza, e quando a carne e o sangue mais senhoreiam, me-
tido em terra bárbara, entre homens feras, entre mulheres nuas, ele consigo
só”36. Na ocasião, deu-se ao amor da Virgem e escreveu nas areias da praia,
conta-se, seu longo poema em homenagem a ela, De Beata Virgine Dei Matre
Maria.37

Vê-se assim como a obra de Gilberto Freyre, não obstante sua acu-
rada pertinência e importância para os estudos sobre o Brasil,
desprivilegia o aspecto fundamental para a colonização, em termos de po-
der e influência, que foi a Companhia de Jesus. Haurindo posição junto à
Coroa na educação e catequese, os padres punham a circular as imagens
sacras e ativavam os circuitos de eficácia simbólica capazes de, inclusive,
nessa circulação, como o reconhece o próprio Freyre, atuar sobre o poder
patriarcal, limitando-o.

35
Idem, p. 231.
36
VASCONCELOS, Simão de. Crônica da Companhia de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1977, 2v., v. II, p. 89.
37
HANSEN, João Adolfo. Manuel da Nóbrega. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010, p. 43.
Pedro Brocco | 57

E foi justamente através de uma imagem mariana enquanto signifi-


cante de compromisso entre o modo de vida ocidental e o autóctone que
se procedeu à mediação cultural no México do século XVI. Talvez a imagem
tenha surgido como saldo dessa mediação, como imagem-valor, no sentido
saussuriano de valor linguístico, dessa relação de compromisso fundadora
de uma forma de vida mestiça.
Assim como o soft power é designado como aquele poder político ca-
paz de afetar milhões de pessoas, o desenvolvimento das metodologias de
conversão orquestrou-se para fomentar a produção de imagens e afetos
capazes de incidir sobre populações inteiras: milhões de pessoas, portanto.
Se as denúncias de Las Casas a respeito do genocídio nas Índias de Castela
chegaram a ser tomadas como grande exagero, tendo algumas cifras che-
gado a trinta milhões de dizimados, não é exagero algum supor tal
montante de convertidos: trata-se de um deslocamento fundamental da
orientação das monarquias ibéricas em relação à colonização do Novo
Mundo. A circulação da imagem da Virgem de Guadalupe38 é uma fecunda
porta de entrada para o estudo do fenômeno tanto das técnicas de conver-
são quanto da vida mestiça que passa a se produzir na América, chegando
hoje a levar cerca de vinte milhões de pessoas anualmente ao Santuário da
Virgem de Guadalupe na Cidade do México. No dia de sua festa litúrgica,
em 12 de dezembro de 2014, quando a pesquisa de campo foi realizada,
estimou-se a presença de oito milhões de pessoas.

38
O relato é o de que uma imagem de Virgem Maria teria aparecido a um índio da tribo Nahua, Juan Diego Cuau-
htlatoatzin, na colina de Tepeyac, nas proximidades da Cidade do México, no dia 9 de dezembro de 1531. Segundo o
relato, a Virgem identificou-se como a mãe do verdadeiro Deus e fez crescer flores na colina semidesértica em pleno
inverno. Juan Diego foi instruído pela Virgem a dizer ao bispo que construísse um templo no local. Em seguida,
deixou impressa sua imagem no tilma de Juan Diego. O tilma ou tilmàtli era um manto indígena muito utilizado
pelos povos pré-colombianos, composto por um tecido de baixa qualidade de fibras de cacto agave maguey, e costu-
mava deteriorar-se em no máximo vinte anos. A imagem está intacta, no entanto, até hoje. A roupagem ganha, pois,
contornos imaginários e desloca-se da materialidade da roupa para o invólucro imagético-identitário. O ícone da
Virgem está atualmente depositado no Santuário de Guadalupe, para onde afluem milhões de pessoas anualmente.
A imagem da Virgem, já morena, mestiça, e o nome do índio que a vê, também mestiço, são interessantes detalhes
para a análise. Trata-se de uma espécie de arranjo forjado em um reconhecimento simbólico a partir de significantes
condensadores do significado de vida mestiça: nem índio, nem europeu.
58 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Figura 3: Fantasias pré-colombianas com a antiga Basílica de Guadalupe ao fundo. Dia da festa litúrgica da Virgem
de Guadalupe. 12 de dezembro de 2014. Arquivo pessoal.

Figura 4: Dia da festa litúrgica da Virgem de Guadalupe com as duas Basílicas ao fundo. 12 de dezembro de 2014.
Arquivo pessoal.

Seja do ponto de vista de uma análise sociológica da importância ico-


nográfica da Virgem de Guadalupe para a formação da identidade
mexicana, seja do ponto de vista de uma análise histórica acerca das fontes
e o início da circulação da imagem, pretende-se aqui sustentar a hipótese
de que nessa longa curva que vai do início da colonização até os dias de
hoje, a eficácia da iconografia logrou materialidade devido à centralidade
da conversão no planejamento colonial. A conversão faz parte de um con-
junto de saberes e de técnicas capaz de compreender e traduzir uma
miríade de valores simbólicos formadores de uma forma de vida e assim
atuar sobre ela, visando sua modificação em outra forma de vida. Trata-se
Pedro Brocco | 59

da sutil atuação sobre o crer, o pensar e o agir. A partir do momento em


que um sujeito se reconhece ajoelhado diante da imagem da Virgem, está
neste mesmo momento despojando-se de sua antiga forma de vida. Modi-
ficando suas crenças, seus costumes e seus usos, participa da fundação de
uma nova forma de vida, na medida em que resquícios anteriores perma-
necem, conscientes e inconscientes, no linguajar, na alimentação39, nos
cheiros, nas adaptações religiosas. Aí incide, no plano adaptativo, a impor-
tância da leitura feita pelos jesuítas neste processo de conversão. Os padres
da Companhia de Jesus, como se verá adiante, foram grandes defensores
da adaptação e da acomodação. Estes dois conceitos serão estudados em
seu devido tempo.
Do ponto de vista sociológico, portanto, objetiva-se observar os im-
pactos dos dispositivos de conversão na formação de uma sociabilidade
colonial que impacta ainda hoje nas sociedades americanas. Caso se lance
mão da categoria da ideologia, é oportuno observar que o discurso da hu-
manidade dos índios, que teve como grande porta-voz a Igreja, apresenta-
se também como gatilho retórico a partir do qual se estabelece: a) que os
índios devem ser reconhecidos como seres humanos e, portanto, membros
da mesma comunidade cristã; b) que ainda que reconhecidamente huma-
nos, são pagãos, isto é, precisam ser apresentados à verdadeira religião e
ao verdadeiro Deus40; c) assim também, na ordem dessa apresentação ao
verdadeiro Deus, devem ser educados e catequizados para poderem assim
fazer parte do Corpo Místico da Igreja e, secularmente, do Corpo Místico
das monarquias católicas. Imposição da Verdade e estabelecimento da paz
e da harmonia mediante a metáfora do Corpo político, sem dúvidas. Porém
de modo doce, dúctil, evitando possíveis revoltas. Seria então no interior

39
Italo Calvino toca neste ponto em sua fina análise da culinária mexicana no conto Sob o sol-jaguar. Não nos parece
excessiva a afirmação de que a luta cultural se dá nos rincões mais refinados, como na arte do preparo alimentar,
que ao final irá modificar, mas também conservar, muitos aspectos e sabores da culinária pré-colombiana. Cf.
CALVINO, Italo. Sob o sol-jaguar. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
40
“(...) a Companhia de Jesus foi estabelecida institucionalmente pelo papa Paulo III com a bula Regimini militantis
Ecclesiae, em 27 de setembro de 1540. Define-se como ordem militante orientada pelo projeto missionário de levar a
Verdade do Deus católico para populações que a mesma Verdade constitui como infiéis, que negam o Verdadeiro
Deus, e como gentios, que o ignoram”. Cf. HANSEN, João Adolfo. Manuel da Nóbrega. Recife: Fundação Joaquim
Nabuco, Editora Massangana, 2010, p. 67.
60 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

do movimento de dilatação da Fé e do Império que a conversão possuiria


o seu sentido, que nos chega hoje com o discurso dos direitos humanos
capazes de fundamentar intervenções militares cuja justificativa é a de
apresentar a verdadeira doutrina política, aliada ao arcabouço imagético
do capitalismo.
Neste movimento da Igreja católica em direção à conversão, por ób-
vio não se deve realizar uma leitura ingênua da mera dominação. As
principais linhas teológicas e políticas do sentido da conversão são elabo-
radas durante o Concílio de Trento (1545-1563) e são arquitetadas para
conformarem uma teologia política católica capaz de a um só tempo re-
chaçar as teorias humanistas, desligadas da Igreja, de Maquiavel e
Guicciardini e a teologia protestante.
Em relação à teologia protestante, pode-se afirmar que o sentido de
toda a missão jesuítica e de sua atuação em direção à conversão no Estado
do Brasil e em outros lugares do mundo se deve ao movimento da Con-
trarreforma. Quando se analisa, por exemplo, a declaração de heresia da
tese luterana da sola fide et sola scriptura (“só com a fé e só com a escri-
tura”) vislumbra-se a resposta dada pela Igreja com a Companhia de Jesus.
Segundo a tese luterana, determina-se que o fiel deve fazer contato com
Deus lendo a Bíblia solitariamente, isto é, dispensando a mediação do clero
e dos ritos e cerimônias visíveis da Igreja Católica41. Isto é, toda a presença
dos padres da Companhia de Jesus mediando o contato dos fiéis com a
escritura estava dispensada. E justamente o objetivo da conversão é levar
ao fiel todo um aparato doutrinário-teológico capaz de ser ministrado em
clave imaginária através dos sentidos em uma manipulação das emoções
e dos afetos, com vistas à conservação e repetição dos sacramentos (ritos
e cerimônias visíveis da Igreja Católica), formando uma psicagogia. Ou-
trossim, Lutero condenava o que chamava de “tradições humanas”,

41
HANSEN, op. cit., pp. 68-69.
Pedro Brocco | 61

afirmando que desvirtuavam a palavra de Deus nas Escrituras42. O Concí-


lio tratou também de declarar e confirmar a importância da tradição
(traditio) como fonte autorizada da Igreja, decretando que provinha da
boca mesma de Cristo, de modo que havia passado adiante em sucessão
contínua e sido conservada pela própria Igreja como uma das duas fontes
autorizadas:

(...) dos ritos, as palavras e as orações; das cerimônias, os gestos e as ações; do


magistério, o poder de instruir as almas; do ministério, o poder de santificá-
las; e do governo, o poder de dirigi-las. Contra a tese, durante o Concílio e
depois dele, a Igreja Católica defendeu a transmissão oral das duas fontes da
Revelação, a traditio e as Escrituras.43

É neste sentido que os gêneros literários gregos, latinos e escolásticos


– o diálogo, o debate, a controvérsia, o sermão, etc., são retomados no en-
sino dos colégios jesuítas para treinar os padres e pregadores.
A outra linha de força eleita por Trento como inimigo a ser combatido
é a vertente ateia da razão de Estado que começava a circular pela Europa
tendo à frente Maquiavel e Guicciardini. Em relação a este ponto, cabe uma
exposição mais cuidadosa acerca da arquitetura que envolve metafísica,
ética e política na formação da “política católica”. Nas representações da
política católica deste tempo, pode-se encontrar termos ou fórmulas como
corpo místico, corpo do reino, lei eterna, lei natural, bem comum, etc44.
João Adolfo Hansen situa este conjunto de representações em Santo Tomás
de Aquino, no seu comentário ao Livro V da Metafísica de Aristóteles,
quando trata do terceiro modo da unidade dos corpos. Tomás de Aquino
define tal unidade como unidade de integração, propondo que é o mesmo
modo que atua no corpo humano, de tal forma que a perfeição decorre da
integração e subordinação dos diversos membros como instrumentos de

42
Omne quod in scripturis non habetur, hoc plane Satanae addimentum est: tudo que não está nas Escrituras é
simplesmente uma adição de Satã, Lutero, 1521. In: BOUTRY, Philippe. “Tradition et écriture. Une construction
théologique”. In: Enquête. Usages de la tradition. Paris: EHESS/CNRS/Ed. Parenthèses, second semestre, 1995, nº 2,
p. 43. In: HANSEN, op. cit., p. 69.
43
HANSEN, op. cit., p. 69.
44
Idem, p. 59.
62 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

um princípio que os governa, como a alma e, no corpo humano como tal,


a cabeça.
Sendo o corpo humano uma unidade de membros diversos subordi-
nados à cabeça, ter-se-á aí ao mesmo tempo diversidade e integração e,
consequentemente, uma naturalização da desigualdade: um pé é diferente
de um olho e todos estão submetidos à cabeça. Tal adequação da unidade
à diversidade das funções dos diferentes membros aparece como harmo-
nia ordenada ou, simplesmente, como ordem45. Por analogia, a metáfora
do corpo natural do homem é usada como representação e termo compa-
rativo para outras realidades imaginadas como corpos, como a Igreja e a
sociedade secular46. Tem-se o cenário então de que quando se fala em
Corpo Místico da Igreja pressupõe-se sua cabeça como sendo o papa, como
vigário ou vice-rei de Cristo, de acordo com a traditio católica. O papa é a
cabeça e tem como membros subordinados o clero e o seu rebanho47. Apli-
cando a metáfora ao corpo político, Tomás de Aquino vê no rei a cabeça
política do corpo político e o restante da sociedade formaria os membros
de um corpo subordinado à cabeça tal qual no corpo humano, porém co-
ordenado e em harmonia com a Igreja e Deus no mundo: o rei é princípio
a reger o corpo político da sociedade como sua cabeça ou razão, assegu-
rando a manutenção da ordem social como paz, concórdia e observância
ao bem comum. Os súditos submetem-se ao rei e este ao papa, que reco-
nhece em Deus a razão suprema e unificadora do Corpus Mysticum
Eclesiae. Tal “política católica” apresenta-se já nos primeiros anos da tra-
dição católica com o surgimento da pastoral, observável na obra de
Gregório Magno48.
O conceito de política católica do reino como um corpo místico em
analogia com a Igreja pressupõe uma divisão social de membros coorde-
nados corporativamente cuja desigualdade seria natural, como os

45
Idem, ibidem.
46
Idem, ibidem.
47
Idem, ibidem.
48
GREGÓRIO MAGNO. Regra pastoral. São Paulo: Paulus, 2010.
Pedro Brocco | 63

membros do corpo humano. A desigualdade natural seria hierarquizável


por intermédio de privilégios e de representações das posições sociais. O
bom funcionamento do todo não devia se dissociar do bom governo do rei
e da ética cristã em sua íntima relação entre política e religião49.
Os esforços de educação e catequese realizados pelos jesuítas no Es-
tado do Brasil, por exemplo, cumprem a função de integrar os
catecúmenos nativos no corpo místico da Igreja e do reino formados por
ordens e membros cuja vontade se aliena do poder e declara submissão à
pessoa mística do rei e do papa. A educação deveria levar os sujeitos a uma
harmoniosa integração, desempenhando funções especificadas por sua po-
sição no corpo político do Estado: “a liberdade do súdito é definida como
‘servidão livre’ à cabeça real”50.
Para obter a livre subordinação que interessa à manutenção da or-
dem e do “bem comum”, a Companhia de Jesus propõe a educação para
“tornar mais homem”, lema da Ratio Studiorum usado a partir de 159951.
A educação deve então dar conta de três faculdades que segundo a Esco-
lástica comporiam a pessoa humana: memória, vontade e inteligência. São
essas três faculdades que os primeiros missionários etnógrafos como Las
Casas buscam e reconhecem nos índios. Ensinaria a educação jesuíta, as-
sim, a ser mais humano, a agir segundo a reta razão das coisas, a agir com
prudência, orientando as escolhas para finalidades consideradas retas e
justas ou o modo eficaz de fazer as coisas tecnicamente52, em uma clara
influência da ética aristotélica. Propõe-se então a política católica caucio-
nada pela educação e a catequese como uma política de conquista
espiritual dos territórios infiéis e gentios pela Companhia de Jesus, con-
quista esta que difere em seus modos, meios e finalidades da razão de
Estado ateia sustentada por Maquiavel.

49
HANSEN, op. cit, p. 60.
50
Idem, p. 61.
51
Idem, ibidem.
52
Idem, ibidem.
64 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Na raiz da compreensão do surgimento da Companhia de Jesus no


âmbito do clero regular, está a importância de uma tradição de dentro da
Igreja, de padres, frades e missionários ibéricos engajados na reforma da
colonização hispânica em seus primeiros anos. Parte-se aqui ao estudo de
alguns elementos da obra de Bartolomé de Las Casas, e posteriormente
também serão analisadas algumas passagens da obra de Francisco de Vi-
toria.
Antes de passar ao estudo da centralidade da antropologia filosófica
partilhada por Las Casas neste processo, faremos um breve sumário sobre
a atuação (e conversão) de Las Casas para a Ordem dos Pregadores, única
ordem do clero regular a atuar na América espanhola até então, junta-
mente com a franciscana, e portadora de uma diferente intensidade da
ética cristã em relação ao clero secular do qual já fazia parte Las Casas na
época, cumprindo assim o papel de questionar, mover, influir e buscar a
reforma moral da colonização espanhola na América. Esse esforço não
pôde ser feito sem a ajuda da arte retórica manejada pelos frades domini-
canos, tendo como principal porta-voz, no início de sua atuação
americana, frei Antonio de Montesinos.
Bartolomé de Las Casas parte para a América em 13 de fevereiro de
1502, aos 18 anos incompletos53. Vai com seu pai, Pedro de Las Casas, co-
merciante em Sevilha, em companhia do novo governador da ilha de La
Hispaniola (atuais República Dominicana e Haiti), Nicolau de Ovando, em
uma expedição de aproximadamente dois mil colonos. Nas dezenas de na-
vios que a compuseram, vão também doze frades missionários54. Las
Casas, jovem pretendente ao clericato e encomendero, ainda não havendo
tido contato com a concepção missionária dos frades da ordem de São Do-
mingos, ordena-se padre entre 1506-1507, após uma viagem a Roma55,
torna-se o primeiro padre da América: padre, aqui, no sentido de filiação

53
Cf. JOSAPHAT, Frei Carlos. Las Casas – Todos os direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000, p. 44.
54
Embora não haja referência em JOSAPHAT, Frei Carlos, op. cit., esses doze frades eram, provavelmente, francis-
canos. Os frades dominicanos chegam à América somente em 1510.
55
Carlos Josaphat observa não haver indícios do local exato em que Las Casas ordena-se padre: se em Roma, se em
Sevilha, na volta, ou, mesmo, em Porto Rico.
Pedro Brocco | 65

ao clero secular, algo que poucos anos depois se alterará, quando Las Casas
entrar em contato com a mística e a ética dominicanas.
Nesse breve período de pouco mais de dez anos, Las Casas, chegando
aos trinta anos de idade, apresenta-se na América dividido entre o aspecto
clerical e o econômico: padre e encomendero. Tratava-se de adaptar-se à
própria configuração adotada pela Igreja para justificar as possessões ul-
tramarinas de Castela, sedimentadas pelas bulas pontifícias de Alexandre
VI.
A chegada dos primeiros frades dominicanos à América em 1510 mu-
dará substancialmente a concepção de Las Casas e o fará converter-se,
digamos, novamente, ao cristianismo, dessa vez para fazer parte da ordem
dominicana.
O padre-colonizador Las Casas, em um primeiro momento, admira o
zelo apostólico e a pobreza dos religiosos dominicanos, o que não o faz,
ainda, querer imitá-los ou mudar de vida. O mandato missional dos frades
dominicanos, direcionado aos nativos americanos, no entanto, semeará na
pessoa de Las Casas uma de suas primeiras e mais importantes obras
apostólicas.
A virada de vida de Las Casas em direção à concepção missionária e
apostólica dominicana vai se dando aos poucos, com o contato com o tra-
balho diuturno dos frades, organizados pelo prior Frei Pedro de Córdoba,
que de início orienta os frades para pregações e trabalhos apostólicos em
sua pequena comunidade somente aos colonos espanhóis. Las Casas fun-
cionava então como apoio e ponto de referência, uma vez que já se
dedicava, de alguma forma, à catequização dos índios já domesticados56,

56
É de se notar que Las Casas sempre cultivou um contato franco com os nativos americanos, reconhecendo-lhes
sua humanidade e dignidade. Nas anotações inseridas na Historia de las Indias, o jovem clérigo Las Casas se mostra
impressionado pela acolhida dos habitantes e destaca a sua amabilidade. Sua visão difere desde já daquela sustentada
pelos colonos espanhóis, os quais viam apenas as riquezas da América: riquezas da terra, abundância de ouro, difi-
culdades para extrai-lo sem a exploração de mão-de-obra quase escrava. Em abril de 1493, Las Casas ficou
impressionado ao contemplar o desfile de Colombo pelas ruas de Sevilha, e já naquela época seu pai lhe traz um
jovem escravo índio mais ou menos de sua idade. A Rainha Isabel, no entanto, em 20 de junho de 1500, ordena que
esses escravos sejam libertados, reconhecendo-lhes a condição de súditos. Las Casas irá reencontrar esse amigo de
infância na América, já como missionário, demonstrando-lhe estima e tecendo elogios à família por ele constituída
(Cf. JOSAPHAT, Frei Carlos, op. cit., p. 43)
66 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

sem ainda se ocupar de questões relativas à sua liberdade e alusão de di-


reitos (Las Casas ainda era, também, um encomendero, uma espécie de
microempresário explorador de mão-de-obra barata, não obstante sua
condição de padre).
A questão decisiva que se passa na pequena aldeia de São Domingos,
e decisiva tanto para a questão da administração da colônia, para o direito,
para a política e para Igreja, quanto para a própria formação de Bartolomé
de Las Casas, começa, nas palavras de Josaphat, como uma questão de ho-
milia em missa de domingo:

Na pequena aldeia de São Domingos, o que vai se passar entre os dominicanos,


o padre Bartolomeu Las Casas e a pequena comunidade de fiéis começa por
ser uma questão de homilia em missa de domingo. Mas é de fato a grande
questão do cristianismo de então e para o cristianismo de todos os tempos.
Por um pequeno episódio, entramos na grande história da Igreja, do direito,
da política, da cultura, do mundo. É um filme que merece ser rodado em câ-
mera lenta, com todos os olhos atentos às mínimas atitudes das pessoas,
especialmente dos líderes responsáveis.57

Algo novo acontece então na América no que tange à forma de atua-


ção da Igreja. Essa nova experiência apostólica liga-se a um universalismo
ético de longa data, que remonta às formações clássicas e humanistas da
melhor qualidade, haurindo sua força em uma tradição que remonta a
Aristóteles, passando pelo estoicismo, chegando, finalmente, ao cristia-
nismo primitivo. O que essa experiência tem a dizer-nos ainda nos dias de
hoje é o ponto fulcral da presente tese. Essa experiência humana radica-se
em uma antropologia que equilibra a noção de pessoa com a de comuni-
dade. Se há indivíduo, essa noção remete-se à comunidade, koinonia para
os gregos, cenóbio para as comunidades cristãs primitivas; formadora, por
sua vez, das virtudes cívicas necessárias às virtudes individuais. Ao arre-
meterem contra a forma de administração colonial da América naquele
momento, os frades dominicanos evidenciavam uma comunidade que não

57
JOSAPHAT, op. cit., p. 47.
Pedro Brocco | 67

primava as virtudes necessárias a um funcionamento social capaz de for-


mar indivíduos virtuosos e aptos para um bom caráter. A ética visada,
aqui, jungida ao aspecto político, era extraída da doutrina cristã, que na-
quele momento despontava com vocação universalizante. Vejamos como
se desenrola esse momento-chave.
Inicialmente, a própria ordem de São Domingos encontrava já na Eu-
ropa algum desgaste. Após cerca de trezentos anos de existência, tendo
recebido em seus quadros pessoas de gênio como Tomás de Aquino, a or-
dem dominicana aparecia à frente da Inquisição espanhola. Do meio das
gerações de dominicanos acomodados ao zelo inquisitorial e à defesa da
ortodoxia, um sopro de evangelismo lança-se ao mar e, tal um forte desejo,
cruza-o até às virgens e cálidas praias do Caribe.
Os primeiros frades dominicanos que desembarcam na América
eram jovens, segundo Josaphat tanto na idade quanto no espírito evangé-
lico que os animava58. À frente deles estava o prior, frei Pedro de Córdoba,
com apenas 28 anos, trazendo uma configuração de qualidades instalada
para o zelo apostólico e missional, além de uma liderança pronta para os
grandes embates: o estudo aprofundado e metódico, a oração constante, a
confiança na graça e o empenho de um coração livre e generoso. De um
lado, o enraizamento sólido em uma tradição espiritual, intelectual, for-
mativa; de outro e não menos importante, a abertura à novidade histórica
e ao rosto do outro59.
O primeiro núcleo de dominicanos convocados para a missão na
América e para promover a renovação espiritual da Ordem de São Domin-
gos e da Igreja é formado por Frei Pedro de Córdoba, Frei Antônio de
Montesinos e Frei Bernardo de Santo Domingo. Partem os três de Ávila
para Sevilha em peregrinação, a pé, praticando o jejum e a abstinência,
cantando salmos pelas estradas e sendo sustentados pelas esmolas do

58
Idem, p. 48.
59
Idem, ibidem.
68 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

povo. Partem para a América em julho de 1510, desembarcando em no-


vembro do mesmo ano. Logo chega um segundo grupo de seis frades,
entre fins daquele ano e início de 1511.
Instalados precariamente, a jovem comunidade dominicana prepara,
no fim do ano de 1511, o decisivo sermão de Montesinos sobre a injustiça
da colonização da América, que traz embutidas noções decisivas sobre a
igualdade entre os homens e os direitos humanos.
A construção da comunicação pública, que foi o sermão pregado na
manhã do dia de Natal de 1511, revela um esmerado trabalho cooperativo
dos frades. Durante um ano, dedicam-se à oração, análise e reflexão da
configuração social colonial. Conforme a minuciosa descrição do Frei Jo-
saphat, percebemos que o sermão de Montesinos, longe de haurir uma
noção de autoria moderna, tendo um indivíduo Montesinos que o elabora
e o profere publicamente, foi antes um trabalho coletivo profundamente
marcado pela tradição e pela mística60. Cada um foi convidado a contribuir
com a construção do documento e finalmente todos o assinaram, com todo
o empenho de se chegar ao máximo da precisão, do rigor e da eloquência,
buscando o máximo da exploração dos efeitos retóricos do discurso efici-
ente. A pregação é feita em nome da comunidade, não pelo prior, mas por
um frade escolhido em razão de seus dotes singulares de orador, de acordo
com a clareza e a força de sua voz.
A cena da escolha de Montesinos teve, pois, algo de quase teatral, em-
bora fosse apenas um simples ritual da Ordem dominicana: no interior da
capela, o superior Frei Pedro de Córdoba chama pelo nome Montesinos,
que se coloca de pé no centro da comunidade. O superior entrega-lhe então
o texto redigido por todos e em nome de todos, e lhe declara: “Frei Antônio
de Montesinos, em nome do Espírito Santo e da santa obediência, eu te
dou o preceito formal de pregar este sermão no próximo domingo ao povo
desta Ilha”61.

60
Cf. neste sentido ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Rio de Janeiro: Record, 2012.
61
JOSAPHAT, op cit., p. 51. Josaphat apóia-se aqui na paráfrase do texto que o próprio Las Casas traz no terceiro
volume de Historia de Las Indias, cap. 3.
Pedro Brocco | 69

Naquele dia de Natal de 1511, todos os habitantes mais ilustres da Ilha


são convidados para o sermão na Igreja principal, que era pequena e pre-
cária, mal podendo conter toda a população, igualmente pequena. A
catedral estava cheia e, após a leitura do Evangelho (João, 1, 19-28), que
fala de João Batista pregando no deserto, adianta-se o orador escolhido
pelos dominicanos, Frei Antônio de Montesinos, que lançaria ali sua ful-
minante homilia sobre os responsáveis pelo governo e pela administração
da colônia.
Para compreendermos a eficácia do sermão, é preciso entender a psi-
cologia que dava forma àquela estrutura social. A cristandade espanhola
do começo do século XVI possuía um medo terrível do inferno e do pecado,
esperava sempre tirar bons proveitos na terra e, ao menos na última hora,
conquistar também o céu, em uma composição anímica carregada de ape-
los espirituais egocêntricos ao lado das exigências religiosas e dos
mandamentos evangélicos, sobretudo o do amor ao próximo, tensão que
se tornava difícil de resolver. Segundo Carlos Josaphat, os homens e mu-
lheres daqueles tempos, “apostando nas devoções e indulgências –
sobretudo as ‘plenárias’ – acabam achando jeito de esquecer o essencial:
‘A justiça, a fé e a misericórdia’ (Mt, 23, 23) ”62.
O que ocorreu naquele dia de 1511 é transmitido pelo próprio Las Ca-
sas, que ouviu o sermão, em Historia de Las Indias, III, cap. 3. Após
exordiar de forma mais ou menos didática, anunciando e explicando seu
tema presente no Evangelho daquele dia (Eu sou a voz que clama no de-
serto), Montesinos lança sua munição retórica em forma de interpelações
aos ouvidos atentos e temerosos, pondo o dedo em riste e chamando de
pecado mortal a configuração social injusta e opressora da colônia:

Esta voz lhes está bradando: vocês estão todos em pecado mortal, nele vivem
e morrem, pela crueldade e tirania que praticam contra este povo inocente.
Digam: com que direito e com que justiça vocês mantêm estes índios em tão
cruel e horrível servidão? Com que autoridade vocês têm feito guerras tão de-
testáveis contra esta gente, que estava tranquila e pacífica em suas terras, onde

62
JOSAPHAT, op. cit., p. 52.
70 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

as multidões incontáveis delas, com mortes e danos nunca ouvidos, vocês ex-
terminaram?
Como vocês os mantêm na opressão e na fadiga, sem dar-lhes de comer e cu-
rar-lhes as enfermidades que contraem em razão dos excessivos trabalhos que
vocês lhes impõem? Eles chegam a morrer, ou, para melhor dizer, vocês os
matam para arrancar e adquirir ouro a cada dia.
Que cuidado vocês têm de que alguém lhes ensine a doutrina e de que conhe-
çam a seu Deus e Criador, sejam batizados, oiçam a missa, guardem as festas
e os domingos?
Estes não são homens? Não têm almas racionais?63
Não estão vocês obrigados a amá-los como a vocês mesmos?
Isto vocês não entendem? Não sentem? Como estão mergulhados em sono tão
letárgico?
Estejam certos: no pecado em que estão, vocês não poderão salvar-se mais do
que os mouros ou turcos que recusam a fé em Jesus Cristo.64

Las Casas observa depois que o sermão causou consternação e até


mesmo compunção entre os ouvintes, mas não houve nenhuma mudança
significativa de vida65. A reação geral e oficial da população, tendo o Almi-
rante governador à frente, foi dirigir-se ao pequeno convento dos
dominicanos para exigir a retratação e a punição do pregador que ousara
articular tamanho disparate. Frei Pedro de Córdoba então, após acolher as
razões dos colonos, mostrou-se solidário com Montesinos, sinalizando que

63
Notemos aqui a aproximação retórica em relação ao Padre Antônio Vieira, pregador jesuíta luso-brasileiro no
século XVII: também Vieira utilizará essa tópica em relação aos escravos africanos nos Sermões do Rosário, pregados
na Bahia. O Sermão XXVII do Rosário, pregado aos escravos negros e seus senhores na Bahia em 1633, aproxima-se
sobremaneira da retórica de Montesinos. Diz Vieira: “Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva?
Estas almas não foram resgatadas com o sangue o mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem, como os
nossos? Não respiram o mesmo ar? Não os cobre o mesmo céu? Não os aquenta o mesmo sol? Que estrela é logo
aquela que os domina, tão triste, tão inimiga, tão cruel? ”. Cf. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992, pp. 144-145, em especial o capítulo sobre Vieira: “Vieira ou a cruz da desigualdade”.
Estre trecho do Sermão XXVII do Rosário foi também retratado por Manoel de Oliveira em Palavra e Utopia (2000),
com seu neto Ricardo Trêpa interpretando o jovem Vieira. Cf. VIEIRA, Padre Antônio. Sermões, vol. VI. São Paulo:
Loyola, 2012, pp. 235-255. Vieira, pouco depois do citado trecho, se endereçará aos escravos e aos senhores brancos:
“Dizei-me, brancos e pretos, não condenamos todos a Adão e Eva? [...]”.
64
Cf. JOSAPHAT, op. cit., p. 53. Josaphat recolhe e traduz este trecho diretamente da Historia de las Indias, III, cap.
3, de Las Casas. Las Casas tornar-se-á muito amigo de Antônio de Montesinos e de seu irmão Frei Tomás de Monte-
sinos, que se torna seu assessor. Josaphat observa que Las Casas terá tido em mãos, muito provavelmente, um
rascunho ou um resumo da homilia. O que é certo é que Las Casas diz expressamente que um texto escrito foi
entregue pela comunidade a Montesinos.
65
JOSAPHAT, op. cit., p. 53.
Pedro Brocco | 71

o sermão surgiu de uma decisão comum dos frades. Diante da incontor-


nável ameaça de expulsão, Montesinos embarca para a Metrópole para dar
informações, enviado por Frei Pedro de Córdoba com a versão dos fatos e
as razões das posições dos missionários da Ilha de La Hispaniola.
Naquele tempo, a Ordem dominicana não possuía configuração emi-
nentemente missional e apostólica, como será então a Companhia de
Jesus, criada algumas décadas depois, mas compartilhará as metáforas co-
munitárias de base oriundas da ética cristã, sobretudo em relação à
igualdade e justiça.
Essa tópica insinua-se já no sermão proferido por Montesinos. Se o
analisarmos em busca de sedimentos conformadores de continuidades em
relação a outras manifestações posteriores do que poderíamos chamar de
pré-história dos direitos humanos66, encontraremos a questão do funda-
mento jurídico a respeito de i) a legalidade da empresa colonizadora; ii) a
justiça legitimadora da empresa colonizadora. Aqui, ainda não será possí-
vel uma crítica sofisticada ao aspecto da legalidade da empresa
colonizadora, o que somente será alcançado com Francisco de Vitoria; no
entanto, o aspecto ligado aos sentimentos de justiça da colonização se co-
loca de forma aguda, ganhando peso com a atuação posterior de Las Casas.
Outra fonte relevante do sermão de Montesinos encontra-se na ética
da reciprocidade, ou regra de ouro, presente no Sermão da Montanha:
“não estão vocês obrigados a amá-los como a vocês mesmos?”. A caracte-
rística de obrigação, aqui, liga-se a uma noção de direito divino, princípio
conformador do direito natural no mundo sensível. Ainda não havia uma
noção clara de Direito enquanto esfera autônoma, e os teólogos que se de-
dicavam à reflexão sobre o sentido do jurídico inevitavelmente acabavam
remetendo-o ao âmbito da teologia. Pessoas como o padre Antônio Vieira,
em um sermão do século XVII, mais precisamente no Sermão de Santo
Antônio de 1642, pregado em Lisboa, não hesita em dizer que o Novo Tes-
tamento derrogou a Lei Velha (Antigo Testamento), razão pela qual se
observa a obrigação do amor ao próximo, em uma concepção que mistura

66
Tomo emprestado este termo de Frei Carlos Josaphat. Cf. JOSAPHAT, op. cit., p. 55.
72 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

a Sagrada Escritura com o Direito, tomando-os como um mesmo âmbito


de normatividade67.
O que interessa aqui observar, inicialmente, é que a pregação domi-
nicana de 1511, que acende a centelha de uma mensagem que aponta para
uma reforma moral da sociedade a respeito da ética e da estrutura admi-
nistrativa colonial, não logra seus objetivos, não obstante a conversão e a
reforma do próprio Las Casas, e isto por dois motivos principais: i) o pri-
meiro e mais importante deles diz respeito à própria estrutura política da
colônia, com intensas disputas internas sobre a forma de colonização e ex-
ploração da mão-de-obra nativa: explorar ou converter? Almas ou ouro?68
Até que a Europa aprendesse, com o bulionismo, que excesso de metais
preciosos não equivaleria, necessariamente, ao montante da riqueza, que
se encontrava nas trocas e nos superávits das balanças comerciais, num
primeiro momento, e depois na máxima exploração da força de trabalho
livre, algum tempo depois, o peso do ouro inclinava o seu lado da balança
ao passo que milhões de almas se tornavam incrivelmente leves. Neste
sentido, o esforço de uma colonização que levasse em consideração a igual-
dade, a liberdade e a dignidade humanas inerentes aos povos autóctones
da América foi uma arrojada perspectiva de fortalecimento de um dina-
mismo social e econômico vindouro; ii) o segundo motivo deve-se à
organização da Ordem dominicana: cindida entre um mandato apostólico
oriundo de suas origens enquanto Ordem mendicante, sempre presente

67
Vieira começa a explicar a teoria das obrigações partindo do Antigo Testamento (Lei Velha): “Era tão rigoroso este
preceito da restituição na Lei Velha, que se o que furtou não tinha com que restituir mandava Deus que fosse vendido,
e restituísse com o preço de si mesmo”. A análise da justiça de tal preceito é feita com base na teologia. Tal preceito
era indiscutivelmente justo pois era Lei de Deus, muito embora o Deus na Lei da Graça (Novo Testamento) tenha
derrogado esta circunstância de rigor, que era de Direito positivo. Cf. VIEIRA, Antônio. Sermões. Tomo 1. Organização
e introdução de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2014, p. 391.
68
Antonio Vieira retoma essa questão no século XVII. No Sermão XXVII do Rosário, pregado na Bahia, dirá: “Para
resgatar do cativeiro do corpo, basta dar outro tanto ouro ou prata, quanto custou o escravo vendido. Mas para
resgatar do cativeiro da alma, quanto ouro ou prata será bastante? Bastará um milhão? Bastarão dois milhões?
Bastará todo o ouro de Sofala, e toda a prata de Potosí? Oh! Vileza e ignorância das apreensões humanas! Se todo o
mar se convertera em prata, e toda a terra em ouro, se Deus criara outro mundo, e mil mundos de mais preciosa
matéria que o ouro e mais subidos quilates que os diamantes, todo este preço não seria bastante para libertar do
cativeiro do demônio e do pecado uma só alma por um só momento”. Cf. VIEIRA, Padre Antônio. Sermões, VI. São
Paulo: Loyola, 2012, p. 245.
Pedro Brocco | 73

no horizonte citadino e, neste sentido, burguesa; uma vocação universitá-


ria, da qual surgem nomes da envergadura de Santo Tomás de Aquino; e,
por fim, a atuação inquisitorial, que na Península Ibérica teve grande força.
Devido a estes dois principais motivos, o movimento inicial, ademais de
fazer parte de uma tradição, algo que pretendemos sustentar neste traba-
lho, não serviu para a formação de uma estrutura eficaz e organizada, algo
que somente surgirá com a Companhia de Jesus, da América ao Oriente,
fenômeno que será explorado à frente.
A “antropologia teológico-política” que forma a base do discurso de
Montesinos, no entanto, estará presente em Las Casas e na atuação da
Companhia de Jesus, e irá compor os embates que se travarão, daquele
momento em diante, entre os partidários da reforma colonial, entre eles
os religiosos dominicanos, e os partidários das razões de governo coloni-
ais, mais ao lado do braço secular da monarquia castelhana. Esse embate
trará também informações sobre a concepção teológico-política de base
veiculada pelas duas frentes em disputa.
As Índias de Castela tiveram como início colonizador, após a chegada
da armada de Colombo, a fundamentação do domínio real consubstanci-
ada nas bulas alexandrinas e com a posterior utilização destas como
instrumento legal de domínio com as leituras dos Requerimientos.
Há no embasamento de tal forma de colonizar uma visão específica
sobre a alteridade nativa. Seja pela via do bárbaro, seja pela via do escravo
por natureza, a visão espanhola sobre aqueles que já ocupavam o solo
americano apresenta contornos condizentes com o projeto colonizador
que se escolhe implementar. Essa será a preocupação deste trabalho, isto
é: mostrar que a visão que dá embasamento ao início da colonização é cri-
ticada e sofre tentativas de reforma. Os reformadores serão,
principalmente, alguns frades dominicanos que atuaram nas Américas e
que ficaram na Espanha ligados às Universidades: acadêmicos, itinerantes,
professores, bispos, cuja figura mais proeminente será a de Francisco de
Vitoria. Estariam, no entanto, Las Casas, Montesinos, Vitoria e os outros
74 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

dominicanos de sua época engajados em um movimento de questiona-


mento da legitimidade do domínio da Coroa espanhola das terras do Novo
Mundo ou, antes, atuavam como reformadores da moral colonizadora?
Neste sentido, caberia situarmos esses debates a partir de um pano de
fundo concernente às ideias acerca da ética colonizadora situadas no con-
texto dos debates.
De acordo com o testemunho presente em sua Historia de las Indias,
foi em 1514, aos trinta anos, que começou Las Casas a ter uma postura de
reação contra os abusos cometidos pelos espanhóis em relação aos índios.
Havia já no Novo Mundo um movimento de crítica da colonização espa-
nhola tal qual vinha se desenrolando, e é provável que Las Casas tenha
assistido ou tomado conhecimento das então recentes pregações de Mon-
tesinos em La Hispaniola, em sua luta por justiça em face da situação de
exploração dos nativos indígenas.
Essas primeiras experiências darão a Las Casas embasamento para
toda a sua atuação posterior como missionário e bispo, além de escritor de
uma série de relatos e de sua monumental História das Índias. Seus escri-
tos perfaziam-se dentro de uma concepção moral e teológica, não podendo
ser lidos como peças de denúncia nos moldes da militância política mo-
derna.
Las Casas fez parte de um extenso debate acerca do estatuto dos na-
tivos americanos que envolveu a teologia moral, a psicologia e a
antropologia a partir da obra de Aristóteles. Com base nas discussões nas
quais Las Casas teve engajamento, podemos ler uma posição teológica e
moral a respeito das teses aristotélicas. Assim podemos compreender as
disputas de Valladolid de 1550. Antes de falarmos sobre elas, no entanto,
cabe uma pequena digressão sobre um dos escritos lascasianos mais fa-
mosos e, seguramente, o que teve maior circulação.
Engajando-se no movimento de discussão da “questão indígena” es-
panhola, a partir das denúncias do Frei Antônio de Montesinos e, de forma
geral, da atuação de toda a Ordem dos dominicanos, Bartolomé de Las Ca-
sas inicia seu percurso já após o ano de 1511. Participa de algumas
Pedro Brocco | 75

discussões e juntas e, após voltar para a Espanha em 1540 com o objetivo


de melhor atuar junto à corte sobre assuntos relativos à colonização espa-
nhola, participa da Junta de 154269, quando pedem-lhe que escreva sua
prolixa exposição. Las Casas termina então de redigir a Brevísima relación
de la destruición de las Indias em 8 de dezembro de 154270, e dedica a obra
aos círculos políticos, em primeiro lugar ao príncipe, a quem foi apresen-
tada. Somente dez anos depois a obra passa a circular e a se difundir entre
um público mais extenso.
O corpo da obra se constitui basicamente em uma série de descrições
e relatos ininterruptos sobre matanças, destruições e outras barbaridades
cometidas pelos espanhóis durante cinquenta anos de colonização no Novo
Mundo. Las Casas aparece como testemunha ocular da maior parte dos
fatos relatados, de modo que a esse respeito quase não cita fontes e outras
obras.
Assim, Las Casas pretende informar e denunciar matanças sistemá-
ticas da população nativa do Novo Mundo pelos espanhóis, buscando com
isso promover uma crítica dos costumes até então adotados pelos coloni-
zadores e uma reforma política acerca das estruturas fundamentais da
colonização e da relação da Coroa com os índios, que neste sentido esta-
riam submetidos a ela na condição de vassalos e, por isso, assim deveriam
ser respeitados.
Podemos ler, entre os inúmeros relatos de Las Casas, este em que se
coloca como testemunha ocular de um fato:

Saliéndonos a recibir [en un Pueblo de Cuba] con mantimientos y regalos [...]


subitamente se le revistió el diablo a los cristianos y meten a cuchillo en mi
presencia (sin motivo ni causa que tuviesen) más de tres mil animas...

69
As Juntas eram grandes concílios que se reuniam, geralmente com representantes da Coroa presidindo-os, para
promover o debate e discussão de determinados tópicos entre indivíduos notáveis, incluindo-se nesta categoria teó-
logos, humanistas e membros das universidades.
70
Saint-Lu, André. Presentación, in Las Casas, 1982.
76 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Saliendo a recibir todos los señores [de Cholula] [...] acordaron los españoles
de hacer allí una matanza o castigo (como ellos dicen) para poner y sembrar
su temor y braveza en todos los rincones de aquellas tierras.71

Uma questão central da obra lascasiana é o seu valor testemunhal.


Las Casas coloca-se como uma fonte confiável acerca dos fatos narrados e,
a partir desses relatos, sua obra teve intensa circulação na Europa entre os
séculos XVI e XVIII, sobretudo entre os países inimigos da Espanha, o que
ajudou a criar a famosa “lenda negra” sobre o império espanhol, violento
e adepto de bárbaras práticas, tão “bárbaras” quanto os indivíduos contra
os quais se destinavam.
Entretanto, há que se ter em conta que Las Casas talvez pretendesse
deslocar a noção de bárbaro do ponto de vista do estrangeiro para o pró-
prio interior da colonização, isto é, para o próprio espanhol. Um trecho do
relato lascasiano torna esta afirmação evidente:

Y porque toda la gente que huir podía encerraba en los montes y subía a las
sierras huyendo de hombres tan inhumanos, tan sin piedad y tan feroces bes-
tias, extirpadores y capitales enemigos del linaje humano, enseñaron y
amaestraron lebreles, perros bravísimos que en viendo un indio lo hacían pe-
dazos en un credo, y mejor arremetían a él y lo comían que si fuera un puerco.
Estos perros hicieron grandes estragos y carnicerías.72

Falando das bestas treinadas pelos espanhóis, mas aproximando-os


sobremaneira no quesito crueldade, Las Casas irá descrever em inúmeros
relatos tratando de vários lugares submetidos à colonização espanhola,
uma reedição de uma mesma crueldade e barbaridade:

Hacían unas horcas largas, que juntasen casi los pies a la tierra, y de trece en
trece, a honor y reverencia de Nuestro Redemptor y de los doce apóstoles, po-
niéndoles leña y fuego los quemaban vivos. Otros araban o liaban todo el
cuerpo de paja seca: pegándoles fuego, así los quemaban. Otros, y todos los

71
SAINT-LU in LAS CASAS, Bartolomé. Brevísima relación de la destruición de las Indias. Madrid: Catedra, 2013, p.
42.
72
LAS CASAS, Bartolomé. Brevísima relación de la destruición de las Indias. Madrid: Catedra, 2013, p. 82.
Pedro Brocco | 77

que querían tomar la vida, cortábanles ambas manos y delas llevaban col-
gando, y decíanles: «Andad con cartas», conviene a saber, llevad las nuevas a
las gentes que estaban huidas por los montes. Comúnmente mataban a los
señores y nobles desta manera: que hacían unas parrillas de varas sobre hor-
quetas y atábanlos en ellas y poníanles por debajo fuego manso, para que poco
a poco, dando alaridos, en aquellos tormentos, desesperados, se les salían las
animas.73

Por fim, afirma Las Casas, dando um tom testemunhal à fala: “yo vide
todas las cosas arriba dichas y muchas otras infinitas”74.
A nomenclatura de “bárbaro” tem uma importante história neste de-
bate, e foi utilizada para desqualificar os nativos americanos. Todavia, o
termo barbaroi possui circulação já entre os gregos. A palavra teria relação
com o fato de o bárbaro não falar a língua culta na perspectiva de quem o
define. Entre os helenos, assim, os bárbaros seriam aqueles povos do
Norte, que viviam às margens do Mar Negro, entre eles os trácios e os
citas. A acepção do termo continua entre os romanos na utilização da no-
menclatura em relação àqueles que um dia invadiriam e suplantariam
Roma.

1.2 Filosofia moral e antropologia filosófica no centro da questão

Dentro de uma divisão mais ou menos generalista sobre a história da


ética, teríamos: i) uma ética objetiva; ii) uma ética subjetiva; iii) uma ética
intersubjetiva75.
No contexto da ética objetiva, poderíamos situar de modo geral a ética
greco-romana, a partir da qual o homem está no mundo ou cosmos e pos-
sui uma finalidade, um telos, em virtude da qual se orienta o seu agir
prático. Em Platão temos, no Timeu, a imagem do demiurgo que trabalha
os contornos do cosmos e desdobra suas ações afetando assim os rumos

73
Idem, p. 81.
74
Idem, p. 82.
75
Realizo aqui de forma geral uma divisão inspirada em Henrique C. de Lima Vaz em sua Introdução à Ética Filosófica
2 (Escritos de Filosofia V). Cf. LIMA VAZ, Henrique C. de. Introdução à Ética Filosófica 2 (Escritos de Filosofia V).
São Paulo: Loyola, 2004.
78 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

humanos dentro de um registro Providencial76. Aristóteles já deita as raí-


zes de sua metafísica no Primeiro Motor imóvel, a partir do qual se
desdobra a sua física, isto é, as múltiplas relações entre os corpos do Uni-
verso, incluindo aí os corpos terrestres e humanos. No entanto, Aristóteles
partilha da concepção de ética “objetiva”, na medida em que sua ética seria
voltada para o bem e a virtude, finalidade em direção à qual se voltam os
fins dos homens no plano da ética, dando forma ao conceito de bem. Platão
ainda se encontrava vinculado a um outro registro antropológico e ético
com respeito ao horizonte do bem humano como estrutura do agir ético:
a teoria das ideias e o modelo ideonômico, que será posteriormente refor-
mulado por Aristóteles77.
A ética subjetivista alojar-se-ia, na modernidade, em seu desdobra-
mento racionalista, cartesiano, a dar contornos para um sujeito, uma
consciência dentro do discurso filosófico, em grande parte desenvolvendo
plenamente o projeto socrático. Seu desdobramento derradeiro, porém, se
dará com as éticas utilitaristas, em virtude das quais cada sujeito seria apto
a formular as regras de seu bem viver, dentro de um relativismo absoluto
a respeito das diferentes configurações do que seria a “vida boa”78. Tal ética
seria articulável com o liberalismo individualista, a partir do qual as polí-
ticas públicas seriam pensadas de modo a atingir a maior felicidade
possível para o maior número de indivíduos em sociedade.
No âmbito da ética intersubjetiva, teríamos uma crítica às éticas ob-
jetiva e subjetivista, de modo que o sujeito seria visto em um registro
dialogal e intersubjetivo, no registro de um Eu-Tu79, sem que possuísse

76
PLATÃO. Timeu e Crítias ou A Atlântida. São Paulo: Hemus, 1981.
77
LIMA VAZ, H. C. de. op. cit., pp. 97-99.
78
É interessante como Henrique C. de Lima Vaz aproxima Descartes a Hobbes na fundação da ética moderna. Se
Descartes inaugura uma nova concepção das relações entre a razão e a psicologia em que o modelo prudencial aris-
totélico é substituído por uma técnica do governo das paixões, Hobbes eliminaria a razão da tensão com as paixões,
pondo-as com primazia na conduta das ações: “Na esteira de Hobbes, o empirismo ético consumará o abandono da
Razão prática, cujo conceito em sua acepção clássica acaba por cair em olvido na tradição da ética empirista, não
tendo, de fato, nenhum lugar no universo conceptual do utilitarismo em todas as suas versões”, LIMA VAZ, op. cit.,
p. 41. Neste sentido é que se aproxima aqui a filosofia de Descartes de um desenvolvimento posterior das éticas
utilitaristas.
79
Tipo de registro dialógico desenvolvido por Martin Buber (cf. LIMA VAZ, op. cit., p. 74).
Pedro Brocco | 79

liberdade absoluta com relação às definições possíveis da vida boa e sem


que devesse aderir a priori a uma concepção finalística e objetiva. As con-
cepções de vida boa seriam assim postas num plano comunicativo dentro
do qual cada pessoa humana possuiria a correlata dignidade para ser par-
ticipante do discurso em virtude do qual se formulariam as concepções
éticas, por definição coletivas ou comunais.
Ocorre que, no que tange ao objeto deste estudo, parece-nos que
quando se coloca em jogo a aceitação de um universo de sociedades antes
vistas como estranhas à própria humanidade, estaríamos num plano dis-
tinto do plano da ética objetiva clássico aristotélico (é dizer, do ponto de
vista de uma polis grega). Apesar de utilizar como base argumentativa a
obra de Aristóteles e de Tomás de Aquino80, os estudiosos espanhóis do
século XVI argumentarão num sentido que se aproxima muito do da ética
intersubjetiva, pois buscarão justamente o reconhecimento da dignidade
dos índios de serem partícipes, primeiro, de sua própria condição como
membros de uma sociedade legítima, isto é, cuja legitimidade perpassa to-
das as suas instituições, da religião ao governo; e, em segundo lugar, seria
uma visão voltada para a configuração social indígena enquanto parte de
uma comunidade humana mais ampla, situável historicamente em um
mesmo registro. Seria, assim, ao menos, uma visão encorpada da que te-
mos quando evocamos a ética aristotélica teleológica tendo em vista
apenas a sociedade grega do século IV a.C.
Para autores como Anthony Pagden81, a concepção de ética que per-
passa as discussões dos escolásticos espanhóis é fundamental. Na base dos
debates sobre a questão indígena estavam em jogo conceitos como liber-
dade e capacidade. Partindo da tradição aristotélica e tomista, os
escolásticos espanhóis, tendo início com Francisco de Vitoria, contrapuse-
ram sua leitura acerca das faculdades mentais dos índios, realocando a

80
Marcelo Neves, OP, afirma em sua tese de doutorado que Las Casas vai mais longe do que Santo Tomás de Aquino em
alguns aspectos, entre eles o de refutar de modo definitivo a tese aristotélica de seres humanos inferiores por natureza,
tendo como base a obra de Frei Carlos Josaphat, Las Casas: todos os direitos para todos, op. cit. Cf. NEVES, Marcelo, OP.
A tolerância nos limites do cristianismo católico de Frei Bartolomé de Las Casas. Tese de Doutorado apresentada ao De-
partamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, 2006.
81
PAGDEN, Anthony. The fall of natural man. London: Cambridge University Press, 1982.
80 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

problemática do registro de uma escravidão natural, para aquela do direito


natural e do direito divino a partir do qual o homem possui uma finalidade
que passa pelo intelecto e pela razão. O indígena, sob esse ponto de vista,
teria capacidade racional e intelectual, ainda que essa capacidade existisse
apenas em potência.
Para atualizar a potência intelectual dos nativos do Novo Mundo, co-
locou-se como central o papel da educação moral dos índios, fato que
mobilizou grande parte dos teóricos dominicanos e jesuítas. Pondo-se o
indígena numa posição em que lhe seria possível, uma vez que possuiria a
capacidade, de ser educado moralmente e intelectualmente, promoveriam
assim esses esforços a mudança qualitativa dos nativos da figura dos “es-
cravos por natureza”, lidos a partir de uma chave determinista, para a
figura do indivíduo a ser tutelado, possuidor de capacidades inerentes sob
a forma de potencialidades aptas a serem desenvolvidas por um meio que
pudesse condicioná-lo para a virtude.
O meio, então, apareceria como concepção-chave dentro de uma ética
das virtudes que se preocuparia também com o hábito (ethismos) bem
como o condicionamento e o treinamento em direção a essas virtudes e ao
desenvolvimento das capacidades.
A virtude moral diz respeito à ação, ao conhecimento prático. Quando
Aristóteles fala sobre a virtude moral de um homem, não se refere à sua
sabedoria teórica, mas à sua índole e ao seu caráter. Assim, para Aristóte-
les, a virtude moral resulta do hábito e não é natural, como a categoria do
“escravo por natureza”. O método de aprendizado da virtude moral, o
“aprender fazendo” em um condicionamento sustentado por práticas co-
munais seria, neste sentido, político. E essa virtude estaria, portanto,
estreitamente ligada e condicionada pelo contexto político e regida pela
comunidade: também é preciso uma comunidade virtuosa para que se
constituam indivíduos virtuosos. A prudência (phrónesis), seria também
traduzida por sabedoria prática (practical wisdom, em tradução canônica
de W. D. Ross). O hábito seria a realização contínua; a habitualidade de
Pedro Brocco | 81

exercício da virtude é que define na prática se o indivíduo é virtuoso ou


não82.
A Segunda Escolástica ibérica, que tem lugar histórico a partir da Es-
cola de Salamanca, preocupa-se com questões voltadas para o campo da
práxis, da filosofia moral, das questões que tocavam o cotidiano e, por-
tanto, ao registro da ética e, de forma especial, da discussão da
legitimidade das atuações coloniais nas Índias.
Movidos em grande parte por uma influência de Aristóteles e Tomás
de Aquino, os escolásticos espanhóis estavam assim plenamente situados
na problemática da fundamentação da conquista e colonização da América
com base nas doações das bulas alexandrinas; na discussão sobre um de-
terminismo inato do indígena como “escravo natural”, seguindo um
trecho de Aristóteles na Política e, assim, fadado a ser uma espécie de se-
movente apto ao domínio útil dos espanhóis; e, por fim, acerca dos títulos
legítimos a partir dos quais poderia construir a administração colonial da
América.
Talvez o auge desses debates seja a chamada Disputa ou Controvér-
sia de Valladolid, de 1550, quando se deu uma Junta na cidade de Valladolid
para a discussão da questão indígena, mas, mais do que isso, nesta ocasião
houve o embate direto entre duas versões ou duas posições acerca do es-
tatuto psicológico dos índios americanos83. Deu-se então um debate, longo,
entre Juan Ginés de Sepúlveda, humanista e cronista do Império, e Barto-
lomé de Las Casas.
Juan Ginés de Sepúlveda, erudito e humanista espanhol, havia hau-
rido grande parte de sua formação na Itália, empenhando-se no estudo das
Letras e do humanismo clássico. Versado em grego, traduziu algumas
obras de Aristóteles, o que lhe conferia certa autoridade no trato da obra
do Filósofo. Com base nesses estudos e traduções, Sepúlveda adota a posi-
ção aristotélica do primeiro livro da Política para sustentar que o índio

82
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, 1985.
83
Cf. GUTIÉRREZ, Jorge Luis. Aristóteles em Valladolid. São Paulo: Editora Mackenzie, 2007; HANKE, Lewis. Aris-
tóteles e os índios americanos. São Paulo: Livraria Martins Editora, s/d.
82 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

americano era um servo por natureza e, assim, possuía vocação unica-


mente para trabalhar e viver a serviço dos espanhóis, que teriam
capacidade intelectiva e volitiva para o domínio dos primeiros, meros ins-
trumentos voltados para o trabalho manual. Aristóteles assim se
pronuncia no primeiro livro da Política84. No entanto, há alguns comentá-
rios e interpretações deste trecho que não fazem dele uma formulação
aplicável de forma constante e atemporal a todos os povos e todos os tem-
pos. Aristóteles vivia de fato em uma sociedade cuja base produtiva se
encontrava nas mãos de trabalhadores escravos, um tempo em que houve
a expansão imperial da civilização helênica sem precedentes (uma expan-
são além da mera influência cultural, embora englobando-a), embasada
na contraposição radical entre os helenos civilizados e os bárbaros estran-
geiros.
De modo geral, os escolásticos espanhóis de Salamanca argumentam
no sentido de uma capacidade do índio para serem donos ou, em outras
palavras, ter domínio civil, noção que se depreende como correlata de uma
vocação para a capacidade civil85. Assim, Francisco de Vitoria argumenta
que os índios são capazes de contrair matrimônio, possuir governantes,
cultivar o instituto da propriedade, ter sua própria religião: fatos que de-
monstrariam que os índios possuiriam capacidade para autogovernar-se,
mesmo que com algumas “falhas morais” do ponto de vista dos missioná-
rios, como a antropofagia e a idolatria.
De qualquer forma, o que os escolásticos espanhóis tentam mostrar
é que o conceito de capacidade seria inerente ao gênero humano, e que
assim se depreenderia que os índios dotados de capacidade seriam passí-
veis de serem conduzidos ou instados à adoção de hábitos virtuosos dentro
de um processo educacional e moral. O que Las Casas faz em seus escritos
é confirmar o ponto de vista lógico e argumentativo dos escolásticos, mas
a partir de um ponto de vista empírico.

84
ARISTÓTELES. Política. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Unb, 1997, p. 32, 1260a.
85
PICH, Roberto Hofmeister. “Dominium e ius: sobre a fundamentação dos direitos humanos segundo Francisco de
Vitoria (1483-1546)”. Teocomunicação, v. 42, n. 2. Porto Alegre, 2012, pp. 376-401.
Pedro Brocco | 83

Sepúlveda afirma em um escrito que compôs as discussões na Junta


de Valladolid de 1550, Democrates secundus86, três proposições básicas:
que os índios são culturalmente inferiores que os espanhóis e requerem
tutoria; que os seus crimes nefandos e não-naturais os privam de seus di-
reitos de dominium; que o que dizem as bulas de doação é válido para
embasar as conquistas espanholas87.
Las Casas e Vitoria refutam as duas últimas proposições básicas, cada
qual a seu modo. Ambos sustentam que a afirmativa de que os pecados ou
crimes não-naturais dos índios não são aptos a privá-los de direitos de
propriedade, pois esse entendimento pressuporia uma antropologia na
qual as formas culturais são aceitas e apresentadas como indicativo de dis-
posições inatas. Neste sentido, esses pensadores ibéricos acabam deitando
as bases do que futuramente seria reconhecido como o campo disciplina
da antropologia ou etnologia, ambas assumindo o pressuposto de que as
disposições culturais não são inatas e envolvem uma atuação humana so-
bre sua própria história e conformação psicofisiológica, além de
geográfica. Isto é dizer que não haveria um ethos ontológico, mas o ethos
seria, em si, o resultado de relações variáveis e contingentes e, por isso,
passíveis de sofrer interferências e influências também variáveis e contin-
gentes. Com isso se estaria afirmando que os índios, embora possuíssem
uma configuração cultural determinada, possuiriam também capacidade
racional para um aprendizado reflexivo de sua própria configuração his-
tórica e uma disposição para adotar outras formas de vida.
Las Casas, no entanto, lança mão de um grande número de dados
históricos e empíricos, fazendo “pesquisas de campo” como testemunha
ocular dos acontecimentos que se desenrolam e levantando uma opulenta
bibliografia para sustentar que as comunidades indígenas preenchem os
requisitos de Aristóteles para a formação de uma verdadeira sociedade ci-
vil. Por isso, Pagden afirma que a Apologética historia de Las Casas foi a

86
O livro de Sepúlveda, em virtude de suas teses polêmicas, foi suprimido após o desfecho do Concílio, embora este
tenha dado razão a Sepúlveda. Cf. KNIGHT, Alice J. Las Casas: The Apostle of the Indies. New York: The Neale Pub-
lishing Company, 1917.
87
PAGDEN, op. cit., p. 119.
84 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

primeira tentativa de demonstrar, com base em evidências empíricas e le-


vantamento bibliográfico, que os índios seriam capazes de formar
sociedades civis em bases aristotélicas88.
Las Casas é capaz de mobilizar com erudição uma série de obras ca-
nônicas do humanismo europeu, contemplando historiadores antigos
como Heródoto, Xenofonte, Apolônio de Rodes e Diodoro Sículo; porém
nenhum deles, certamente, afirma-o Pagden, teve qualquer desejo de pro-
var que por baixo das diferenças culturais entre as raças existia o mesmo
conjunto de imperativos sociais e morais, o que faz da Apologética historia
a primeira obra de etnologia comparada escrita em uma língua europeia89.
Las Casas movimenta um arcabouço retórico para defender que ha-
veria no humano uma capacidade para a civilidade. No entanto, procura
formular uma interpretação acerca do conceito aristotélico de servo por
natureza no sentido de criar uma clivagem entre duas passagens da Polí-
tica: a primeira delas seria a do primeiro livro e diria respeito ao bárbaro
que vive fora de qualquer tipo de vínculo social, o que seria raro; a segunda
interpretação do servo por natureza estaria no terceiro livro da Política e
diria respeito a “bárbaros” possuidores de governos legítimos e naturais
(principatus), ainda que formulados em termos de tirania, e carecedores
de artes e exercícios nas letras. Essa parece ser também a interpretação de
Vitoria.
O tipo de barbarismo visto na interpretação de Las Casas seria rela-
tivo, visto que poria em termos de relatividade duas ou mais formas
culturais. O que se depreende daí é que Las Casas colocaria todas as for-
mações humanas com um lugar legítimo no interior de um registro
histórico comum. A possibilidade de avaliar uma forma cultural por outra
admitiria também uma capacidade humana partilhada para a liberdade e
a escolha de formas sociais contingentes. Os critérios evolutivos pressu-
postos por Las Casas no interior desse registro diriam respeito ao cultivo

88
Idem, p. 121.
89
Idem, pp. 121-122.
Pedro Brocco | 85

das letras e das artes liberais, bem como do domínio de técnicas e tecno-
logias como a fundição do ferro e a construção de pontes, marcas da
cultura europeia e fatores determinantes para a supremacia militar sobre
as sociedades americanas.
O que parece ser algo novo, com Las Casas, no entanto, é que essa
visão do estado de natureza não implica uma forma social fora da história
e fora da matéria, no sentido de uma ontologia metafísica: a visão lascasi-
ana do “estado de natureza” com sua noção embutida de “homem natural”
ou “primitivo” opera um duplo deslocamento: primeiro, da interpretação
biológica e inatista das disposições humanas para a psicologia de corte
aristotélico, fundamentada na noção de potencialidades racionais e capa-
cidades; segundo, do registro de um certo psicologismo para o de formas
culturais distintas e contingentes no registro comum da história humana.
O surgimento do conceito de história e de uma teleologia aí implícita me-
diada por formas culturais distintas parece ser, assim, algo novo e
fundamental para a moderna etnologia comparada.
Do Requerimiento às teses de Sepúlveda, vemos ressurgir a teoria
aristotélica sobre a servidão natural predicável aos servos, que o seriam
assim por uma disposição natural. No caso dos nativos americanos, a acei-
tação da tese implicaria uma tomada de posição no âmbito das colônias
concebendo-os enquanto mera força de trabalho útil. Com a elaboração
dos discursos de Salamanca e de Las Casas, há um claro esforço de reco-
nhecimento de capacidade para a organização civil por parte dos indígenas
e, assim, um pressuposto de um reconhecimento jurídico de uma alteri-
dade haurida por uma dignidade plenificada. Deste modo também logo se
desdobram as categorias da liberdade e da vontade para compor o poten-
cial anímico dos nativos americanos, conceitos de grande relevo para o
planejamento missionário de conversão dos povos.
No próximo tópico, passa-se ao estudo de um importante pilar da co-
lonização do Novo Mundo, para muitos o fundador do Direito
Internacional moderno: Francisco de Vitoria.
86 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

1.3 A Escola de Salamanca: Francisco de Vitoria e a fundamentação


jurídica da colonização: o nascimento do Direito Internacional
moderno

O dominicano espanhol Francisco de Vitoria (ca. 1486-1546), teólogo


que atua na França e na Espanha no século XVI, é uma das figuras mais
importantes não apenas da Escola de Salamanca, mas do Renascimento e
do humanismo. Renovador da teologia e promotor da nova escolástica vi-
gente durante os séculos XVI e XVII, influencia inúmeros estudiosos e os
desdobramentos institucionais de suas ações, na Europa e no Novo
Mundo. Sua obra contém os princípios de direito natural que formarão a
base do que lhe é creditado como a fundação do Direito Internacional:
muito antes do jusnaturalismo racionalista atribuído a Hugo Grócio (1583-
1645) com sua obra De iure belli ac pacis, de 1625, e de Samuel Pufendorf,
autores muito citados em estudos de Direito Internacional e Filosofia do
Direito que ignoram o contributo decisivo da escolástica ibérica. Não obs-
tante tenham Grócio e Pufendorf articulado conceitos fundamentais do
Direito natural, do Direito público e do Direito internacional, que então se
gestava, após um breve exame podemos encontrar quase a totalidade dos
tópicos levantados anteriormente por Francisco de Vitoria. Há no obscu-
recimento da obra Vitoria na Europa do século XVII uma tentativa de
secularizar a maioria dos conceitos com os quais o dominicano construiu
sua teoria, de corte rigorosamente tomista.
Há que se reconhecer também que Vitoria estava preocupado com
questões práticas envolvendo a Coroa espanhola na primeira metade do
século XVI: preocupou-se com, sobretudo, elaborar um sistema justo de
colonização das terras recém-descobertas no Novo Mundo90.
Ainda assim, e, quiçá, por ter se preocupado com um sistema univer-
sal que comportasse uma antropologia de cariz universalista, Vitoria

90
DELGADO, Luis Frayle. Estudio Preliminar. In: VITORIA, Francisco de. Sobre el poder civil, Sobre los índios, Sobre
el derecho de la guerra. Madrid: Tecnos, 1998, p. XIV.
Pedro Brocco | 87

contribui com diversos e importantes aportes para o Direito público in-


terno e para o Direito eclesiástico. Mestre respeitado, foi seguido por vários
discípulos e por inúmeras gerações de teólogos e juristas que formaram o
movimento que conhecemos por Escola de Salamanca.
Vitoria nasceu em Burgos e ingressou no Convento de São Paulo, que
a Ordem dominicana possuía na cidade, e ali passou seus primeiros anos
de formação. Foi enviado por seus superiores para o convento de Santiago
de Paris, provavelmente em 1508, para completar seus estudos em Huma-
nidades e Artes e continuar seus estudos em Teologia. Na Universidade de
Paris faz amizade com os grandes humanistas da época, como Luis Vives
e Erasmo, do qual se conservam algumas cartas que demonstram grande
apreço por Vitoria. Além do humanismo, Vitoria conhece em Paris as cor-
rentes dominantes do tomismo e do nominalismo, das quais recolhe os
melhores ensinamentos para a sua formação e seu espírito. Provenientes
das duas correntes são os mestres de Vitoria na época: do lado tomista,
podemos citar Pedro de Bruxelas ou Peter Crockaert, filósofo flamengo que
inicialmente fora pupilo de John Mair e seguidor de Guilherme de Ockham,
tendo se juntado depois à Ordem dominicana e aos estudos tomistas.
Crockaert ensinou na Universidade de Paris e é conhecido por alguns co-
mentários a Aristóteles e Santo Tomás de Aquino. Dele parece ter vindo
uma das influências mestras de Vitoria. Além de Crockaert, houve alguns
filósofos nominalistas, como Juan Celaya, Jacob Almain e John Mair ou
John Major.
Sobre o peculiar filósofo escocês John Major (1469-1550), julgamos
caber um breve comentário sobre sua influência sobre Vitoria e a Escola
de Salamanca. Crê-se que foi John Major o primeiro filósofo a se manifes-
tar sobre a licitude da conquista das terras do Novo Mundo, e isto
unicamente devido às exigências de sua condição de docente da Universi-
dade de Paris. Major seguirá um plano de estudos presentes em seus
Comentários ao Livro das sentenças de Pedro Lombardo. Neste momento,
provavelmente mirando as Bulas alexandrinas, exprimirá que nem o papa
e nem o imperador são senhores do universo nem possuem direitos sobre
88 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

as terras do Novo Mundo, por isso não podem concedê-las a ninguém91.


Mas John Major previa duas exceções a essa afirmação: i) no caso de uma
oposição à pregação e ocorrendo uma perseguição dos que se tenham con-
vertido, e ii) por incapacidade dos índios de governarem a si mesmos, por
causa de sua barbárie, da qual resultaria necessitarem da tutela dos euro-
peus por serem servos por natureza, seguindo Aristóteles. Nestes dois
casos Major segue, por sua vez, Duns Escoto ao aceitar que o papa poderia
conceder a algum rei cristão a missão de conquistar por armas o território
de povos infiéis92. Mauricio Beuchot localizará na obra de John Major o
primeiro plano teológico-jurídico da conquista da América93. Em 1510, Ma-
jor discutiu questões legais e morais oriundas da conquista espanhola da
América. Argumentou que os nativos possuíam direitos políticos e de pro-
priedade que não poderiam ser invadidos e ignorados, ao menos não sem
compensações, pelos espanhóis.
Notemos que Major se manifesta publicamente sobre tais questões
em seu ensino, na Universidade de Paris, antes mesmo do primeiro ser-
mão conhecido a favor da dignidade dos índios e admoestatório com
respeito aos colonizadores espanhóis, proferido pelo Frei Antonio Monte-
sinos, em La Hispaniola, em 1511.
Além disso, John Major foi um grande estudioso de lógica e das es-
truturas da linguagem falada, escrita e mental. Abarcou uma série de
questões desde a perspectiva nominalista, e que certamente influenciou o
empirismo insular e europeu de modo geral. Em sua filosofia moral, des-
taca-se o foco na casuística, isto é, uma abordagem a respeito da
complexidade de determinados casos individuais94, também segundo o in-
fluxo do nominalismo.

91
BEUCHOT, Mauricio. La polémica de la guerra de Conquista en relación con México, pp. 147-156. In: BATAILLON,
G.; BIENVENU, G.; GOMEZ, A. V. (Org.). Las teorías de la guerra justa en siglo XVI y sus expresiones contemporáneas.
México D. F.: Centro de estudios mexicanos y centroamericanos, 1998.
92
Idem, ibidem.
93
BEUCHOT, Mauricio. El primer planteamiento teológico-jurídico sobre la conquista de América: John Mair. Ciencia
tomista. Salamanca, 1976, núm. 103, pp. 213-230.
94
Os jesuítas serão grandes tributários da casuística e dos chamados “casos de consciência”.
Pedro Brocco | 89

Daí talvez possamos entrever o riquíssimo caldo cultural vivificador


do humanismo renascentista e o aporte teórico de dois grandes influenci-
adores de Francisco de Vitoria, que se ligarão a Tomás de Aquino, sua
grande influência: Peter Crockaert e John Major, na Universidade de Paris.
Assim, Vitoria forma sua teoria tendo em vista a orientação prática da te-
ologia e o interesse por problemas humanos e temas morais e jurídicos95.
Ainda que debruçado sobre temas morais e jurídicos, entretanto, Vi-
toria não deixou de ser teólogo. Suas atividades estavam ligadas, além da
Universidade de Salamanca, à sua ordem religiosa e à hierarquia da Igreja.
Ainda não houvera a separação, que se produziria ao longo dos séculos
seguintes, entre a teologia e a ciência jurídica. No entanto, devemos ver
nele também um grande influenciador e articulador das democracias mo-
dernas, ao lançar as bases jurídicas e morais da Contrarreforma e do
arranjo das colônias. Nesse momento, inevitavelmente, Vitoria reformula
doutrinas cuja eficácia havia assegurado a ocupação das terras americanas
sob a alegação de “justos títulos”, arrimadas na crença de que o papa seria
o mais alto soberano do mundo, competente para assegurar a validade da
ocupação europeia das terras americanas recém-descobertas e por desco-
brir. Examinaremos algumas das teses atacadas por Vitoria, bem como
seus argumentos, em uma análise de suas Relecciones.

1.4 Aristóteles contra Alexandre: De potestate civili, 1528

A primeira grande exposição de Vitoria na Universidade de Sala-


manca foi a aula sobre o poder civil, em 1528. Ainda levará onze anos até
a aula sobre os índios, pavimentadora da ética colonial espanhola e talvez
sua mais famosa exposição, em 1539; porém, esse primeiro esforço será
importante para a correta compreensão das sociedades autóctones ame-
ricanas pela teoria vitoriana. Ainda não há aqui uma preocupação por
parte de Vitoria de interpolar os argumentos sobre o poder civil com con-
siderações a respeito das colonizações. Arriscaremos uma hipótese sobre

95
DELGADO, Luis Frayle, op. cit., p. X.
90 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

o De potestate civili: além de configurar um autêntico tratado sobre as leis,


é também uma obra que aponta sua artilharia para as Bulas alexandrinas
e para o Requerimiento, até então os dois documentos evocados para em-
basar a colonização espanhola enquanto “justos títulos”.
As Bulas alexandrinas, cujo nome deriva do papa que as concedeu,
Alexandre VI, foram os primeiros documentos jurídicos aplicados na Amé-
rica. A Bula Inter Coetera, de 4 de maio de 149396, assegurou a posse das
terras descobertas e por descobrir à Coroa de Castela e Leão. No entanto,
houve no total cinco documentos relativos às Índias expedidos e assinados
pelo papa Alexandre VI, todos favoráveis à Coroa castelhana.
Entre o retorno de Cristóvão Colombo de sua primeira navegação à
América (15 de março de 1493) e sua segunda viagem (25 de setembro de
1493) o corpo diplomático espanhol agiu rapidamente junto à Santa Sé
para que fosse assegurada, juridicamente, a posse das terras recém-des-
cobertas. No breve período, portanto, que antecedeu a segunda ida de
Colombo às terras americanas, Alexandre VI assina os seguintes docu-
mentos: a) primeira Bula Inter Coetera, 03 de maio de 1493; b) a Eximiae
devotionis97, 03 de maio de 1493; c) a segunda Inter Coetera98, 04 de maio
de 1493; d) a Piis fidelium99, 25 de junho de 1493; e) a Dudum siquidem100,
25 de junho de 1493.

96
Há duas Bulas Inter Coetera, uma de 3 de maio e outra de 4 de maio de 1493.
97
Trata-se de um documento que basicamente repete o conteúdo da Bula Inter Coetera, reiterando, porém, que se
outorgava a Castela os privilégios, graças, liberdades imunidades e faculdades que já se havia outorgado anterior-
mente a Portugal. Essa Bula surge com vistas a amainar os previsíveis protestos portugueses à Inter Coetera.
98
A segunda Inter Coetera ampliava as doações contidas na Inter Coetera do dia anterior: atribuía à Coroa espanhola
o domínio integral e exclusivo sobre as terras e povos revelados por Cristóvão Colombo.
99
Trata-se de Bula que concede amplas faculdades em matéria espiritual ao frade Bernardo Boyl, religioso e diplo-
mata aragonês. Aqui podemos ver que, muito antes de Antonio Vieira, as Coroas ibéricas já se valiam de religiosos
com habilidades diplomáticas enviados em missões secretas. Boyl, com efeito, ao final de 1476, era secretário do
futuro rei aragonês Fernando II (Fernando V de Castela e Leão), o Católico, que o envia para negociar com os fran-
ceses. Boyl acompanha Colombo em sua segunda viagem à América, em 1493, como missionário e Vicário Apostólico
nas Índias Ocidentais, título outorgado pelo papa Alexandre VI. Regressa à Espanha em 1494 ante a dificuldade de
não conseguir se comunicar com os indígenas. Cf. Boyl, Bernardo, na Gran Enciclopedia Aragonesa. Acesso em 26 de
agosto de 2015.
100
Bula que reafirmava a direito castelhano às ilhas e terras firmes achadas e por achar, descobertas e por descobrir,
as quais, navegando ou caminhando para o Ocidente ou Meio-dia, estejam quer nas partes ocidentais, meridionais e
da Índia. Cf. ANDRADE DA SILVA, Dinair. Tensões entre Castela e Portugal a propósito dos descobrimentos atlânti-
cos: um estudo das bulas alexandrinas. Anais Eletrônicos do IV Encontro da ANPHLAC. Salvador, 2000. Acesso em
26 de agosto de 2015.
Pedro Brocco | 91

Diante da empresa orquestrada que aliou um corpo diplomático cé-


lere e a expedição de cinco documentos eclesiásticos, cuja eficácia
temporal é incontestável, em um período de pouco mais de um mês, não
há que se negar o valor jurídico-político de tais documentos ainda que ori-
undos de uma autoridade eclesiástica. Antes de se retirar a característica
eminentemente jurídica de tais documentos, é preciso examinar os funda-
mentos sobre os quais se construíram o sentimento de validade e eficácia
dos mesmos, e em que medida a teoria de Vitoria aponta para uma fun-
damentação distinta, pois o jurista da Corte de Castela, no limiar do século
XVI, diante da situação inusitada e desconhecida da descoberta do Novo
Mundo tinha duas alternativas para responder às questões levantadas pela
descoberta: utilizar os modelos e instrumentos que o mundo jurídico me-
dieval oferecia ou trilhar um novo caminho101.
O modelo jurídico medieval ao qual nos referimos tem como funda-
mento a teoria dos dois poderes ou das duas espadas, cuja raiz remonta a
Santo Agostinho. Em De Civitate Dei, Agostinho cria a distinção entre os
dois amores e as duas cidades, de acordo com a qual a cidade terrena é um
tirocínio para a cidade celeste. A comunidade dos fiéis, assim, seria a re-
presentante da cidade de Deus que está nos céus. Até o período das
Cruzadas, o conceito de Cristandade possuía carga majoritariamente es-
piritual, designando o conjunto daqueles que se consideravam cristãos e
professavam a fé cristã. A partir de determinado momento, quando a Eu-
ropa se vê ameaçada pelos sarracenos, o papa João VIII pede ajuda a
Bizâncio para a defesa da Cristandade, dando-lhe uma característica mais
mundana e secular, ao invés da carga exclusivamente espiritual. Neste
sentido, e já dando continuidade à sobreposição entre o poder temporal e
o poder espiritual que acontece durante o reinado de Carlos Magno, a Ec-
clesia acaba por se confundir, paulatinamente, com a Cristandade e com
os poderes seculares, fazendo-se um autêntico Estado, com todos os po-
deres civis daí derivados, inclusive enfrentando militarmente potências

101
Cf. RUIZ, Rafael. Francisco de Vitoria e os direitos dos índios americanos: a evolução da legislação indígena espa-
nhola no século XVI. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p. 45.
92 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

terrenas. Daí derivará uma extensa história, que não será aqui abordada,
onde se encontrarão, em uma Itália dividida, os guelfos, partidários do
papa, e os gibelinos, partidários do Imperador do Sacro Império, em uma
guerra de sucessão secularíssima, entre os séculos XII e início do XIV, na
qual estará envolvido ninguém menos que Dante Alighieri.
Dante Alighieri traz, aliás, em seus escritos políticos como a Monar-
chia, a formulação da teoria dos dois poderes: o poder temporal-secular é
um desdobramento de uma autoridade universal celeste, que desce sobre
o imperador temporal sem qualquer mediação. Tais teses, aceitas e venti-
ladas no medievo, seguirão dois caminhos mais ou menos simultâneos:
sofrerão uma hipertrofia com a utilização, por parte da Igreja e dos Pon-
tífices, da fundamentação segundo a qual estes seriam, enquanto vicários
de Cristo e herdeiros do trono de Pedro, os representantes máximos do
poder da Cristandade e, neste sentido, estariam acima dos reis e impera-
dores; o outro caminho começa a ser trilhado com a crítica da teoria dos
dois poderes e a limitação do poder soberano do Pontífice por autores
como Marsílio de Pádua e Guilherme de Ockham. Entre os pensadores
medievais que se vincularam à cosmovisão segundo a qual o Pontífice teria
tanto autoridade espiritual quanto secular, sendo quanto a esta a autori-
dade máxima, podemos citar o agostiniano Egídio Romano e Henrique de
Susa, apelidado o Ostiense, autor do século XIII para quem Cristo, ao as-
sumir a natureza humana, fora constituído rei do universo. Assim, os
príncipes então existentes haviam perdido seus direitos e os transferiram
para o próprio Cristo. Constituído São Pedro como chefe da Igreja, ocorre
a intermediação entre o próprio Cristo e os sucessores de Pedro, os pa-
pas102.
A literatura examinada nos autoriza, portanto, a reconhecer que o
episódio das Bulas alexandrinas e a fundamentação jurídica da tomada
das terras americanas por parte de Castela deita raízes muito mais no mo-
vimento medieval da teoria dos dois poderes e em sua leitura
hipertrofiada, ao ponto de o papa realizar uma doação, esse instrumento

102
Cf. DOUGNAC RODRÍGUEZ, Antonio. Manual de Historia del Derecho Indiano. México, D.F.: UNAM, 1994, p. 28.
Pedro Brocco | 93

jurídico por excelência, de partes do globo terrestre para os reis de Castela,


mediante documentos utilizados durante décadas como “justos títulos” da
posse das terras americanas por parte dos castelhanos. Daí podemos tra-
çar uma genealogia da cosmovisão que forma a eficácia desses justos
títulos perante os próprios espanhóis e terceiros: é muito mais familiar à
teoria política agostiniana do que ao tomismo-aristotélico e à teoria de
Marsílio de Pádua e dos nominalistas.
A Bula Inter Coetera utiliza ao menos dois institutos jurídicos, além
de um mandato missional com exclusividade para Castela. Valendo-nos
do trabalho de Rafael Ruiz, analisaremos em separado o aparecimento
desses três tópicos no texto da Bula.
No que diz respeito à doação, podemos ler:

Todas e cada uma das terras preditas com a autoridade de Deus onipotente,
concedida a Nós por São Pedro, como Vigário de Jesus Cristo, com todos os
domínios das mesmas, com suas cidades, acampamentos militares, lugares e
vilas, com todos os seus direitos e jurisdições, doamos, concedemos e damos a
Vós, e a vossos herdeiros e sucessores dos Reinos de Castela e de Leão, para
sempre, e com a mesma autoridade apostólica investimo-vos a Vós e a vossos
herdeiros e sucessores como senhores das mesmas com plena, livre e absoluta
autoridade.103

Além do instituto da doação, há também, animando a Bula, o do en-


cargo, isto é, o papa, como condição da doação, estabelece para a Coroa
espanhola o encargo da missão espiritual:

Nós, louvando muito ao Senhor por esse vosso santo e louvável propósito, en-
corajamo-vos e requerimo-vos para que esses povos recebam a Religião
Católica Cristã. E, além disso, mandamo-vos em virtude da santa obediência
que (...) procureis enviar às mesmas terras firmes e ilhas homens bons, teme-
rosos de Deus, doutos, sábios e experientes para que instruam os naturais na

103
RUIZ, Rafael, op. cit., p. 74. Rafael Ruiz utiliza, como referência para o estudo das Bulas, a obra de Venancio D.
Carro, OP.
94 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Fé Católica e lhes ensinem bons costumes, pondo nisso toda a diligência que
convier.104

Ainda há que ser citada a exclusividade da missão: o papa confere


exclusividade aos Reis de Castela e Leão para o recebimento do encargo da
empresa de evangelização, proibindo quaisquer outros reinos de se aven-
turarem na empresa sem a autorização dos reis castelhanos, inclusive para
a prática de atividades econômicas:

E absolutamente proibimos quaisquer pessoas de qualquer dignidade, mesmo


que seja Real ou Imperial, estado, grau, ordem ou condição, sob pena de exco-
munhão latae sententiae, de irem por causa das mercadorias ou por outra
qualquer causa sem especial licença vossa ou de vossos herdeiros ou sucesso-
res às ilhas e terras firmes descobertas ou por descobrir.105

Há nesses trechos selecionados três pontos principais que formarão


a base dos questionamentos e problematizações da doutrina vitoriana a
respeito da validade, da legitimidade e da ética da colonização espanhola.
Tomando a Bula Inter Coetera como pano de fundo, podemos destacar en-
tão os três pontos basilares para toda a teoria de Vitoria: i) o fundamento
de autoridade apto a sustentar a doação perpétua feita pelo papa aos Reis
de Castela e Leão; ii) se a evangelização pode ser feita com quaisquer
meios, mesmo contra a vontade dos índios; iii) se o papa tem autoridade
para proibir os outros reis até mesmo de comerciarem nas novas terras
descobertas106.
Há também outro documento de fundamental importância para a
ética colonial espanhola antes de Francisco de Vitoria: O Requerimiento,
redigido pelo jurista Juan López de Palacios Rubios, em 1513, vinte anos
após as Bulas alexandrinas, que deveria ser lido para os índios antes de
terem suas terras tomadas pelos conquistadores espanhóis.

104
Idem, p. 75.
105
Idem, ibidem.
106
Idem, p. 76.
Pedro Brocco | 95

O teor do documento, apesar de longo, merece ser transcrito, pois


veremos novamente o fundamento medieval da teoria dos dois poderes,
com um agravante adendo: este documento passa a ser lido para sujeitos
que nada compreendiam da língua e cultura castelhanas:

Deus, o Senhor, entregou a um homem chamado São Pedro o poder sobre


todos os povos da terra, a fim de que ele fosse senhor e dominador sobre todos
os homens do mundo (...) Todos lhe devem obediência, pois ele devia ser a
cabeça do gênero humano inteiro, onde quer que vivessem ou morassem os
homens, sob qualquer espécie de lei, em qualquer sorte de seita ou fé. Ele en-
tregou-lhe o mundo como reino e domínio seu (...) [devendo] julgar e
governar todas as nações cristãs, aos mouros, judeus, pagãos, e aos demais
povos de qualquer seita ou fé. Chamaram-no de Papa, i.e., admirável e grande
pai e dominador de todos os homens. A esse São Pedro obedeciam e honravam
como senhor e rei e dominador do universo aqueles que viveram em seu
tempo e, do mesmo modo, procedeu-se para com todos os que foram eleitos
para o Pontificado depois dele. Ora, acontece (...) que um desses Papas doou
aos reis espanhóis as ilhas e terras recém-descobertas, de modo que Suas Ma-
jestades, por força daquela doação, são reis e senhores das ditas ilhas e terras.
Até agora, quase todos os aborígenes a quem foi explicada essa situação reco-
nheceram a autoridade dos reis espanhóis e aceitaram a verdadeira fé. Suas
Majestades acolheram-nos com paz e mansidão e ordenaram que fossem tra-
tados como súditos e vassalos seus. Agora também vós sois convidados a
reconhecer a Santa Igreja como senhora e dominadora do mundo inteiro e a
prestar a vossa homenagem ao Rei espanhol, como a Senhor vosso. Se assim
não acontecer, agiremos violentamente contra vós e obrigar-vos-emos a do-
brar a cerviz sob o jugo da Igreja e do Rei, como convém a vassalos rebeldes,
com a ajuda de Deus. Privar-vos-emos das posses e reduzir-vos-emos a vós,
vossas mulheres e filhos à escravidão. E, desde já, queremos declarar que só
vós sereis culpados pelo sangue derramado e pela desgraça que cair sobre vós,
não porém Suas Majestades nem estes cavaleiros que conosco vieram.107

Percebe-se, assim, as profundas raízes medievais da teoria dos dois


poderes a animarem a tessitura do Requerimiento, aplicado e lido na Amé-
rica durante os primeiros anos da colonização espanhola.

107
Idem, p. 76-77. A obra utilizada por Ruiz para o exame do Requerimiento é o livro clássico de Joseph Hoffner, A
Ética colonial espanhola do Século de Ouro. Cristianismo e dignidade humana. Rio de Janeiro: Presença, 1977, p. 206.
96 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

A inovação que representou a Escola de Salamanca e a doutrina de


Vitoria pode ser entendida partindo desses dois documentos expostos, a
Bula Inter Coetera e o Requerimiento. Com efeito, o que opera Vitoria e
seus seguidores será o questionamento do fundamento dos dois documen-
tos, qual seja, a premissa principal de que Cristo e, consequentemente, o
papa, não eram senhores do universo. Assim, os documentos jurídicos
construídos a partir desse fundamento seriam eivados de vícios de vali-
dade e legitimidade. Ao longo do século XVI, em decorrência da ampla
aceitação das teses de Vitoria, ver-se-á que os até então justos títulos per-
derão sua eficácia. Os marcadores eficaciais das teses de Vitoria e de seus
discípulos da Escola de Salamanca vão sendo aferidos com base no teor
das legislações que a Coroa promulga em meados do século XVI, sobre-
tudo com as Leyes Nuevas. Os relatórios dos frades, sobretudo os que Las
Casas elabora então para o imperador Carlos V, foram tão vivos que o
fizeram decidir retirar seu governo das Índias e devolver o domínio aos
indígenas, mas a pedido de alguns teólogos, entre eles Vitoria, o monarca
não colocou em prática a ideia da restituição e o abandono das províncias
indianas, pois isto prejudicaria a cristianização dos nativos108. Carlos V não
se retirou e decidiu elaborar uma nova legislação para as Índias denomi-
nada de Leyes Nuevas, promulgadas em 1542, contendo a aplicação das
teses vitorianas transformadas em doutrina legal109.
Nesse momento podemos voltar à análise da relección de Vitoria de
1528, De potestate civili. É possível remontar os argumentos vitorianos à
doutrina de Aristóteles, para quem o ser humano é um zoôn politikón e,
neste sentido, se Vitoria se desvincula da tradição jurídica medieval, se
coloca, por outro lado, sob a influência do humanismo renascentista.
Logo na introdução, Vitoria fará a famosa observação acerca do ofício
do teólogo, para o qual nenhum tema ou discussão lhe são alheios ou ir-
relevantes. Ademais, demarcará a sua relección sobre os poderes público
e privado e de sua origem, tendo como base o conhecido trecho de São

108
Cf. MARTÍNEZ-CARDÓS RUIZ, José-Leandro, op. cit., p. LI.
109
RUIZ, Rafael, op. cit., p.
Pedro Brocco | 97

Paulo, “não há poder que não venha de Deus”110. Esse trecho que durante
anos, na Idade Média, serviu para fundamentar a primazia pontifícia e a
submissão dos poderes seculares ao papa, será o ponto de partida das re-
lecciones de cariz político de Vitoria.
Vitoria inicia sua aula111, após a introdução, com a investigação das
causas do poder civil ou laico, fazendo referência à Física de Aristóteles,
para o qual pensamos que conhecemos algo quando conhecemos suas cau-
sas. Novamente citando a Física, dirá que há que se considerar as
atividades humanas, ao lado das coisas a serem conhecidas através das
causas, em relação ao fim, que é a primeira e principal das causas.
Após discorrer sobre os filósofos antigos e suas considerações sobre
a matéria e a noção de necessidade e finalidade, passando por Epicuro e
Lucrécio, refutará o aspecto indeterminista e contingencial da teoria do
último, para defender uma verdade suprema: a de que tudo o que existe
no universo foi criado para algum fim e utilidade, e que tudo o que foi feito
é necessário que tenha sido feito. Assim, Vitoria parte para a investigação
do fim pelo qual o poder que se está analisando na relección foi constitu-
ído, elaborando uma narrativa acerca dos aspectos distintivos do ser
humano face aos outros animais. Articulará a razão, a virtude e a palavra
como fatores distintivos de um ser racional e virtuoso, mas, por outro
lado, débil, pobre, desprovido de todo auxílio, indigente, desnudo e im-
plume112.
Para socorrê-lo contra as necessidades e intempéries da existência,
segundo Vitoria, era necessário que os homens não andassem errantes e
vagando pelos desertos como feras, mas que vivessem em sociedade e se
prestassem mútuo auxílio. Nesse momento, Vitoria desloca seu argu-
mento novamente para a obra de Aristóteles, para quem sem doutrina e
experiência não pode o homem perseguir a perfeição de entendimento, e

110
Non est potestas nisi a Deo, segundo a Vulgata citada por Vitoria.
111
É pertinente recordarmos que Vitoria jamais entregou algum material para ser impresso e divulgado. Todo o
material de sua autoria ao qual temos acesso hoje são fruto de anotações de seus alunos e ouvintes em Salamanca.
112
VITORIA, Francisco de. Sobre el poder civil, op. cit., p. 10.
98 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

que isto não se consegue de maneira alguma na solidão113. Em seguida


Vitoria traz um interessante argumento que se soma ao trecho aristoté-
lico: mais ainda, neste aspecto parece que somos inferiores aos brutos
animais, porque eles podem conhecer por si mesmos as coisas que lhes
são necessárias, mas os homens não podem em absoluto conhecê-las. Pa-
rece dizer Vitoria que somente um esforço coletivo pode trazer à vida o
homem tal qual o concebemos. Para isso, aliás, foi o homem dotado de
palavra: Aristóteles aparece novamente para fundamentar o argumento
de que a palavra é a “mensageira do entendimento”, e que só para esse
uso nos foi dada e só por isso o homem é superior aos animais; contudo
“a palavra seria inútil se o homem não vivesse em sociedade” e, se fosse
possível que a sabedoria pudesse existir sem a palavra, ela seria desagra-
dável e insociável114. Em um movimento do qual participam a citação ao
Eclesiastes115 e à Política116 de Aristóteles, Vitoria reconhecerá que o ho-
mem é por natureza civil e social.
A vontade, cujos ornamentos são a justiça e a amizade, seria “defor-
mada e manca” fora das sociedades humanas. Assim também a justiça só
pode exercer-se em uma comunidade humana. Novamente citando a Po-
lítica, dirá Vitoria que na natureza nenhuma coisa ama a solidão e que
somos todos levados pela natureza à comunicação117. Esse será um aspecto
importante para o restante da teoria vitoriana, pois veremos que um dos
fundamentos de sua revolução copernicana do direito será o chamado di-
reito de comunicação ou ius communicationis, que será sustentado em sua
relección De indis.
O tema da aula de Vitoria é bastante ambicioso e, quiçá, só poderia
mesmo ser empreendido por um teólogo. A origem das cidades e das re-
públicas não seria, para ele, uma invenção dos homens e,

113
Vitoria cita a Ética a Nicômaco, II, 1, 1103a. Em VITORIA, F. op. cit., p. 11.
114
VITORIA, F., op. cit., p. 11.
115
20, 32: “Sabedoria oculta e tesouro escondido, de que servem uma e outro? ”.
116
Política, I, 2, 1253a.
117
Política, I, 2, 1253a.
Pedro Brocco | 99

consequentemente, não é algo a ser considerado artificial118, mas brota da


própria natureza, que sugeriu aos mortais humanos tal modo de vida para
sua defesa e conservação. Neste sentido, se não houvesse alguém para mi-
rar e se preocupar com o bem comum, as comunidades seriam aniquiladas
e desapareceriam119.
Podemos depreender logo em seguida o paradigma organicista da
doutrina de Vitoria: se não há quem governe e, por conseguinte, quem
obedeça, se dissolverá o povo. A utilização da metáfora do corpo humano
é neste sentido reveladora:

Do mesmo modo que o corpo humano não pode conservar-se em sua integri-
dade se não há uma força ordenada que organize todos e cada um dos
membros para a utilidade dos demais, e sobretudo para o proveito de todos os
homens, isso ocorreria [a dissolução do povo], sem dúvidas, também na ci-
dade se cada um se preocupasse só com seu próprio proveito e se
despreocupasse com o bem público.120

Vitoria conclui, após este trecho, que a causa final e principalíssima


do poder civil e secular é a utilidade, ou uma grande necessidade à qual
ninguém pode se opor, “a não ser os deuses”121.
A concepção de Vitoria acerca da causa eficiente da potestade civil –
e aqui percebemos a influência de Tomás de Aquino – é a de que essa causa
seria o próprio Deus, uma vez que o poder público se constitui pelo direito
natural e o autor do direito natural, por sua vez, não é outro senão Deus.
Isso o permite fazer uma urdidura entre o âmbito civil e o divino ou reli-
gioso muito diferente do que até então era feito pelas correntes
agostinianas e pelos partidários da teoria dos dois poderes e da soberania

118
Não se pode aqui dizer que Vitoria dialoga com Maquiavel, pois a primeira edição de Il Principe é publicada em
1532; porém já podemos vislumbrar uma leitura do poder civil radicalmente imbricada à moral e ao eixo do “bem
comum”, de antemão denegando a separação entre moral e política que seria então promovida por Maquiavel, que
aqui pode aparecer como uma espécie de símbolo de uma tendência mais alinhada aos intelectuais das potências
seculares que então se desenvolviam na Europa.
119
Aqui Vitoria cita Mateus, Mt 12, 25; e Lucas, Lc 11, 17: “Todo reino em si dividido será desolado”.
120
VITORIA, F., op. cit., p. 14.
121
Idem, ibidem.
100 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

pontifícia, pois, aqui, ainda que a causa eficiente do poder civil seja Deus,
como lá, há uma rigorosa separação entre direito divino e direito natural.
Não obstante, Vitoria é muito claro também em relação à sua prefe-
rência pela monarquia enquanto forma ideal de estruturação do poder
público. Para ele, não haveria menos liberdade no principado régio do que
no aristocrático e no democrático, pois, sendo um só o poder, é melhor
estar submetido a um indivíduo do que a muitos, pois quando há muitos
que dominam, muitos também ambicionam o poder. É forçoso reconhe-
cer, portanto, as raízes monárquicas das formulações de Vitoria.
Ao final da primeira parte da relección, cremos que vale mencionar
também um parágrafo da teoria de Vitoria sobre a guerra justa, o que ele
desenvolverá melhor anos depois em sua relección De iure belli, de 1539.
A guerra jamais seria justa se cometida em detrimento do proveito e uti-
lidade para a república, ainda que houvesse títulos e razões para uma
guerra justa. Há uma motivação não exposta à primeira vista que nos leva
e entender nessa formulação o início do que séculos depois se sedimentou
sob a forma dos direitos humanos supraestatais. Pois, com efeito, Vitoria
está sustentando que, sendo uma república parte do orbe terrestre, ainda
que uma guerra seja útil para a mesma, mas nociva para o restante do
orbe “ou para a cristandade”, tal guerra deve ser considerada injusta. O
conceito de cristandade já funciona como um fiador do reconhecimento
de “algo a mais” em cada sujeito para além de seu pertencimento a cida-
des, reinos e províncias específicas. Esse “algo a mais”, supraestatal e
criador de uma identidade que, na época de Vitoria, espalhava-se por todo
o mundo, acaba sendo absorvida pela formulação anterior, mais univer-
salista, ou seja, a de que cada república faz parte do orbe terrestre.
Entendemos aqui que Vitoria se refere não apenas às repúblicas que com-
põem a cristandade, mas refere-se também às outras religiões e povos,
sobretudo os índios americanos.
Podemos notar, nessa formulação de Vitoria, a urdidura de duas li-
nhas que formam sua doutrina: a ética cristã, que enxerga uma
Pedro Brocco | 101

comunidade para além dos Estados e províncias, a Cristandade ou Respu-


blica Christiana; a causa eficiente do poder civil residindo em Deus,
continuando a tradição tomista; e, também, a profunda influência do hu-
manismo que aflorava no Renascimento, num resgate de pensamentos e
obras de importantes autores clássicos greco-romanos, como Aristóteles e
Cícero, só para citar duas das suas principais influências. Aristóteles e Cí-
cero que, em suas obras, sustentam uma teoria sobre o ser social
universal, pois ambos compartilham da mesma cosmovisão de Vitoria,
isto é, a de que a razão advém da natureza e, daí, também a inclinação
humana a viver em comunidade. Vejamos um extrato de Cícero, quando
afirma, no De legibus, que a justiça advém da natureza:

Mas de todo o material das discussões filosóficas, certamente nada há de mais


valioso do que a plena realização de que nós nascemos para a Justiça, e esse
direito está baseado, não sobre as opiniões humanas, mas sobre a Natureza.
Este fato ficará imediatamente compreensível se houver uma clara concepção
da amizade humana e união entre os homens. Nada é tão comum, tão exata-
mente assemelhado, como todos nós somos uns com os outros (...). Assim,
qualquer que seja a definição do que seja o homem, uma só vale para todos.122

Com isso, Vitoria procura marcar que o Estado é uma comunidade


derivada da sociabilidade natural humana, cujo fundamento é a natureza.
Essa formulação, apesar de simples e ter sido já exposta por Aristóteles há
muito tempo, foi uma revolução copernicana para a teologia política e para
o direito no limiar da Modernidade pois, assim, Vitoria rompeu com as
teses do Império pontifício da Igreja de então, além de delimitar o poder
indireto da potestade eclesiástica. Em seu comentário crítico às relecciones
vitorianas, Martínez-Cardós Ruiz afirma ter Vitoria chamado a tese do do-
mínio temporal do papa sobre o mundo e os príncipes de “mera invenção
para adular e lisonjear aos pontífices”123.
Sustentou Vitoria que o Estado, enquanto derivado de uma sociabili-
dade humana natural e somente enquanto tal, seria o centro irradiador do

122
CICERO, Marcus Tullius. De Legibus, I, X, 28-30. Cambridge: Harvard University Press, 1928.
123
MARTÍNEZ-CARDÓS RUIZ, José-Leandro, op. cit., p. LXI.
102 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

poder, e não diretamente em Deus ou nas vontades individuais (tese do


contratualismo). Há na teoria de Vitoria sutis contornos que a diferenciam
tanto de uma teoria teocrática quanto do futuro contratualismo ilumi-
nista. Assim, a intepretação da origem do poder defendida por Vitoria
orientou eticamente os processos políticos, além de prevenir riscos de des-
potismo e ainda conferia uma participação do povo no governo.
Interessante notarmos que essa teoria surge quase simultaneamente com
o Estado moderno de feições absolutistas – pouco depois Jean Bodin sus-
tentaria novamente a tese da fundamentação divina no poder. Mas
atentemos para o fato de que a teoria de Vitoria possuiu o condão de pa-
vimentar o caminho para, partindo de uma base teórico-ontológica segura
sobre o ser humano, facilitar o desenvolvimento da ciência jurídica e dos
ordenamentos jurídicos modernos. Neste sentido, podemos ver nos de-
senvolvimentos doutrinários posteriores da relectio uma série de proto-
questões de suma relevância para o direito moderno, como, por exemplo,
se as leis civis obrigam os legisladores, ao que Vitoria responde positiva-
mente, e questões envolvendo direito e moral ou autonomia e
heteronomia, quando se perguntará se as leis e constituições obrigam so-
mente no foro contencioso ou no da consciência. Em resumo: há uma série
de desdobramentos que põem em jogo sutilezas a respeito das filigranas
dessa comunidade de animais políticos, cujos efeitos, por sua vez, se des-
dobrarão sobre a modernidade. E assim, ao iniciar um movimento
intelectual rumo a uma teologia moral e política em prol de Aristóteles e
contra Alexandre VI, podemos passar ao exame das relecciones posterio-
res.

1.5 Ainda 1528: o batismo de Catarina Paraguaçu na França e a


formação de Mem de Sá em Salamanca

Além de ter marcado a aula magna de Vitoria sobre o poder civil, o


ano de 1528 seria fundamental também e diretamente para o futuro das
terras do Brasil: neste ano, Mem de Sá obtém a licenciatura em Leis pela
Pedro Brocco | 103

Universidade de Salamanca, onde também recebe o título de bacharel em


Direito Canônico em 1526. Mem de Sá, como se verá mais à frente, será o
principal governador-geral do Estado do Brasil no período colonial, pro-
movendo o projeto de conversão dos jesuítas, atuando fortemente nos
costumes locais dos índios ao reprimir a antropofagia, sob pena de morte,
e a poligamia, além de conquistar o Rio de Janeiro em meio a dramáticas
batalhas travadas com os franceses e os tamoios na Baía de Guanabara.
Consta que o jovem Mem de Sá, enquanto estudante em Salamanca, teria
incorrido em áspera discussão acadêmica com Martin de Azpilcueta Na-
varro, que seria mestre de Manuel da Nóbrega, primeiro provincial jesuíta
do Brasil, e tio de João de Azpilcueta Navarro, jesuíta que chega com Nó-
brega na armada de Tomé de Sousa, primeiro governador-geral do Brasil.
De forma mais imediata, no ano de 1528 se testemunha o batismo da
esposa de Diogo Álvares, o Caramuru, na França, com o nome de Catarina
Paraguaçu. Caramuru é naquela altura o homem mais rico do Brasil124,
tendo obtido sua fortuna a partir do agenciamento do monopólio do co-
mércio de pau-brasil na região de Salvador, que ainda não existia
enquanto cidade.
Caramuru realizava muitos negócios com os franceses que frequen-
tavam a região, e por isto parte rumo a Rouen com sua esposa, em
embarcação de Jacques Cartier, que depois descobrirá o Canadá, mar-
cando, assim, uma importante aliança com os franceses em terras
brasileiras. Não por outro motivo, Caramuru será destinatário de uma
carta assinada pelo rei Dom João III em 19 de novembro de 1548, pouco
antes da chegada de Tomé de Sousa em 1549: o rei desejou trazer Cara-
muru novamente para o lado dos portugueses para assim assegurar uma
pacífica ocupação da região. É possível dizer aqui “novamente” se se pres-
supõe que Diogo Álvares fora um português “lançado” nas terras do Brasil
muito precocemente para se infiltrar nas sociedades autóctones e obter
alguma ajuda para a Coroa se misturando aos nativos, aprendendo a lín-
gua e estabelecendo alianças políticas. Outra linha hipotética conduz à

124
Cf. CALDEIRA, Jorge. História da riqueza no Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2017.
104 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

suposição de que Diogo Álvares Caramuru seria um náufrago português


que fora acolhido pelos tupinambás e vivia na Bahia desde 1510.
Caramuru conseguiu grande prestígio com os tupinambás da Bahia
e foi-lhe oferecida como esposa a filha do chefe tribal Taparica, chamada
Paraguaçu, mais tarde batizada Catarina Paraguaçu em Saint-Malo, na
França. Caramuru cercou-se de cerca de duzentos nativos da região que se
tornaram seus aliados. Assim, Caramuru pôde construir uma poderosa
rede de comércio envolvendo a extração de pau-brasil e foi bastante pro-
curado por comerciantes franceses que aportavam na região.
Ainda assim, causa certa estranheza que um náufrago português vi-
vendo nos confins do mundo conhecido possa ter sido destinatário da carta
de um monarca europeu. É possível supor que tal expediente não teria se
dado se Caramuru não tivesse alguma importância estratégica na região:
mediador entre índios e europeus, ganharia muito a potência europeia que
conseguisse mobilizar suas alianças. O fato de Diogo Álvares ser português
configurou uma espécie de recaptura de sua fidelidade e sua força em prol
da expansão lusitana no Brasil.

1.6 De indis prior e posterior (1538-1539): o percurso teórico de


Vitoria em torno do ius communicationis e do ius missionis

Ao tratarmos da exposição De potestate civili, de 1528, procuramos


mostrar a influência de Aristóteles e Tomás de Aquino para a conformação
da teoria vitoriana sobre os fundamentos do poder civil. A concepção de
que “somos todos levados por natureza à comunicação”, presente já nesta
primeira exposição, aparecerá dez anos depois, durante suas relecciones
mais célebres, a De indis prior e a De indis posterior seu iure belli, como
ponto central de argumentação. Teremos então o edifício de Francisco de
Vitoria embasado sobre essa concepção de comunicação natural que dá
forma ao ius communicationis de maneira consistente, de modo que é pos-
sível refazer e examinar a coerência dos argumentos vitorianos nessas três
Pedro Brocco | 105

relecciones, como tentaremos brevemente expor. Quando examinamos es-


sas relecciones de Vitoria como momentos de um continuum coerente,
podemos estabelecer as bases de seu ensino, bem como as finalidades, ca-
racterísticas e contornos da comunidade política que daí surge e que em
maior ou menor grau tomará forma no que se convencionou chamar de
América Latina a partir do século XIX125.
Antes de avançar, no entanto, será oportuno o percurso por alguns
tópicos da De potestate civili que terão importância para as exposições da
De indis, desta vez marcando suas influências sobre a teoria do direito mo-
derna e para o contorno institucional organicista das comunidades ibero-
americanas.

a. Organicismo

O mote organicista aparecerá pouco depois da referência à Aristóteles


e a tendência natural à comunicação, mais especificamente ao discorrer
sobre o bem comum e a finalidade do poder público. Para Vitoria, a origem
das cidades e repúblicas não sendo artificial ou advento de invencionices,
mas algo que brota da natureza, demandará um poder apto a conservar e
defender esse modo de vida natural-comunitário. Por isso a utilidade e fi-
nalidade do poder público e da sociedade ou comunidade são a mesma
coisa. Se todos, com efeito, se deixassem levar por seu próprio arbítrio e
não estivessem submetidos a uma potestade de outro, deixando-se levar
por sua própria opinião, se desintegraria a república e se aniquilaria a ci-
dade, caso não houvesse quem mirasse o bem comum126. Pouco à frente,

125
Richard Morse denuncia a formação da ideia de América Latina como um mito proveniente da França de Napoleão
III, quatro séculos após a descoberta do Novo Mundo, como parte de um discurso geoideológico com o fito de criar
uma zona de influência e agrupar uma suposta unidade linguística, cultural e racial dos povos latinos, em contrapo-
sição aos eslavos, germânicos e anglo-saxões. Por essa razão, o autor prefere referir-se à América dividindo-a entre
Anglo-América e Ibero-América, em seu intento de demarcar as diferentes heranças culturais e ideológicas que o
Novo Mundo recebe. Cf. MORSE, Richard. O espelho de próspero. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 14 e ss.
126
“Ahora bien, el fin de la postestad civil es la felicidade última; en cambio el fin de la potestad civil es la felicidad
social”. VITORIA, Francisco de. Sobre los índios. Op. cit., p. 101.
106 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

no entanto, Vitoria vai reconhecer que a potestade da república é consti-


tuída por Deus e pelo direito natural e citará, entre outros argumentos de
autoridade bíblica, o famoso diálogo entre Cristo e Pilatos relatado no
Evangelho de João, segundo o qual o Senhor diz a Pilatos que este não lhe
teria nenhum poder que não fosse sido dado do alto. Dirá também que se
os homens não recebessem de Deus o poder, mas ao invés se pusessem de
acordo por um pacto e quisessem constituir um poder sobre eles mesmos,
pelo bem público, como o fazem os religiosos com seu abade, resultaria daí
que tal poder viria certamente dos homens, mas que na república não é
assim, pois inclusive contra a potestade de todos os cidadãos se constitui
uma potestade para administrar-se a si mesma e para desempenhar esse
cargo são constituídos os soberanos civis127.
A metáfora por excelência desse organicismo, ademais daquela tirada
de são Paulo segundo a qual Cristo é a cabeça e a Igreja o corpo, deriva
também da metáfora do corpo humano.

b. Bem público ou comum

A noção de bem comum é crucial em Vitoria, e aqui pretendemos su-


gerir que tal importância se deve a um entroncamento entre as fontes da
filosofia aristotélica e da patrística, sobretudo de Gregório Magno e sua
Regra Pastoral. Há pelo menos dois trechos na primeira parte do De po-
testate civili que podem ser remetidos a Gregório Magno: a passagem que
Vitoria de fato refere-se a Gregório, ao dizer que é um grande abuso contra
a natureza querer submeter um homem, posto que por natureza todos os
homens são iguais; e uma segunda, cujo fundamento também parece re-
montar à Regra Pastoral, que trata de uma situação virtualmente oposta:
aquela em que há homens que possuem uma potestade sobre outros, ori-
unda do direito divino, que para Vitoria seriam os reis. Gregório Magno,

127
Cf. Idem, p. 21. Aqui uma passagem um pouco obscura, que certamente tem a ver com a noção de soberania,
contaminada pela outorga divina, mas que compõe o edifício vitoriano enquanto fundamento de Deus para o poder
civil, cuja ignorância significa um desconhecimento da teoria de Vitoria.
Pedro Brocco | 107

no capítulo 6 da segunda parte da Regra, ao tratar da vida do pastor, colo-


cará a questão da conduta do pastor em uma perpétua dialética entre a
humildade e companheirismo para as pessoas de bem, e um zelo enérgico
pela justiça contra os vícios dos delinquentes. O pastor seria uma figura
móvel e cambiante contrastando as duas posturas. Em certo sentido, é
como se tivéssemos relações igualitárias intrarrebanho e um poder espe-
cial do pastor e só dele de se colocar como agente da justiça e, neste
sentido, numa posição extrarrebanho privilegiada, para corrigir os vicio-
sos. Ocorre que o bem comum estaria nessa alternância, ou seja, na
observância dessa igualdade radical oriunda do direito natural, e na facul-
dade ou poder de se colocar em posição superior ou de privilégio em
relação aos demais, em nome da noção de bem público ou comum. Nesse
sentido, teríamos também uma alternância entre uma igualdade radical e
uma individuação tanto do pastor quanto dos eventuais delinquentes pu-
nidos.
A argumentação de Vitoria é intrincada e une o organicismo ao bem
comum. Vejamos um primeiro desdobramento: citando o célebre trecho
de Paulo, Vitoria aduz que “quem resiste à autoridade, resiste à disposição
de Deus”128, para dizer que a república tem este poder por disposição di-
vina. Se antes da formação das cidades humanas não havia ninguém
superior, após o surgimento da república seus membros cidadãos farão
parte de uma certa economia política orientada pela comunidade e pelo
bem público. Ora, mas, diz Vitoria, se matar um homem é algo proibido
pelo direito divino do Decálogo, a autoridade apta a dar a morte tem que
ser de direito divino129. Para Vitoria, tal poder reside principalmente nos
reis. Seria um erro, portanto, considerar que para Vitoria o poder dos reis
seria derivado dos homens ou apenas do direito natural, pois ele diz clara-
mente que a monarquia ou a potestade régia não apenas é justa e legítima

128
Rom 13, 2.
129
Cf. VITORIA, op. cit., p. 16 e ss.
108 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

como que os reis têm poder por direito divino e natural e não recebido da
república, nem de modo algum dos homens130.
Por outro lado, há liberdade e igualdade na condição entre os ho-
mens. Essa aparente contradição está também presente desde pelo menos
a obra de Gregório Magno. Na parte referenciada pelo próprio Vitoria po-
demos ler algumas indicações sobre a conduta moral do pastor: deve ser
humilde e fazer o bem para os “de bem” e zelar pela justiça contra os vici-
osos131. Gregório Magno citará seus Livros Morais (Moralia) para sustentar
seu entendimento, partilhado por Vitoria, de que a natureza fez nascer
iguais todos os homens. No entanto, variando o grau de seus méritos, a
culpa “pospõe alguns aos outros”, e como homem nenhum pode perma-
necer sempre nesse estado de igualdade, uns serão governados por outros.
No entanto, os que governam devem ter sempre presente não a autoridade
que lhes confere a posição, mas a igualdade de sua condição: “não se ale-
grem de comandar as pessoas, e sim de servi-las”132. Essa curiosa
construção parece estar na raiz das noções de bem público e de serviço
público. Em estudo anexo a este trabalho133, discorremos sobre a peculia-
ridade da situação política da Roma de Gregório, na dissolução do Império
romano e do mundo clássico, o que permitiu o alinhamento entre os po-
deres espiritual e temporal: Gregório foi um papa-prefeito, um papa-
administrador público. De extrema erudição e formado na melhor tradição
jurídica romana, soube produzir algo novo a partir da antiquíssima tradi-
ção pastoral judaica, mas também grega, oriental e africana, que desaguou
na concepção cristã do pastor.
Gregório faz o pastor transitar da candura ao temor na mesma me-
dida em que faz transitarem os homens às figuras animais irracionais:

130
Idem, p. 18.
131
GREGORIO MAGNO, op. cit., p. 75 e ss.
132
Idem.
Terceiro estudo do Anexo 2, intitulado “Compreender a tradição ibérica: notas sobre a formação da juridicidade
133

medieval e o nascimento da segunda escolástica”.


Pedro Brocco | 109

É necessário que os pastores sejam temidos pelos fiéis quando se dão conta de
que eles não temem a Deus, de modo que sintam o temor de pecar, se não por
medo dos julgamentos divinos, ao menos, por medo dos homens. Os pastores
não haverão de se orgulhar, de modo algum, por causa desse temor assim
sentido; eles não buscam a própria glória, mas a santidade de seus fiéis. Ao
exigir esse temor da parte daqueles que vivem na desonestidade, é como se
exercessem o poder sobre animais e não sobre homens, porque, na medida em
que esses fiéis se comportam como animais, devem submeter-se ao império
do temor.134

Da mesma maneira, há uma incessante retórica do equilíbrio e tran-


sitoriedade de posições: ora ser um entre os outros, para evitar a vaidade,
ora ocupar a posição de mestre, para corrigir as culpas: “Paulo não sabia
que era preposto aos seus irmãos, quando dizia: Tornamo-nos como cri-
anças entre vós. E ainda: Nós somos vossos servos por causa de Cristo.
Quando, porém, ele soube de culpas que deveriam ser corrigidas, logo re-
tomou o seu papel de mestre, dizendo: O que vós quereis? Que eu vos visite
com o bastão? ”135.
O lugar que deve ser ocupado pelo pastor é na verdade quando o que
tem preeminência domina sobre os vícios, antes que sobre seus irmãos136.
Isto coloca o pastor simultaneamente em posição de afastamento e de
igualdade em relação aos demais, pois ele mesmo estará submetido à refi-
nada treliça hermenêutica das culpas e dos pecados, por isso deve
conservar a humildade, reconhecendo-se igual aos irmãos, e também uma
maior responsabilidade, pois peca impunemente, é irrepreensível devido
à sua posição.
Na tradição ibérica podemos notar a figura do pastor confundindo-se
com a do rei, em Vitoria, mas também em Bartolomé de Las Casas. Por
ora gostaríamos de marcar a subterrânea ligação entre a noção de bem
comum com aquela que pode ser chamada de tradição pastoral. O comum
só se pode entender em um ambiente de relativa e ampla igualdade, o que

134
GREGORIO MAGNO, op. cit., p. 76.
135
Idem, p. 79.
136
Idem, ibidem.
110 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

o tornaria de difícil consecução em ambientes onde haveria uma divisão


estrita entre cidadãos e escravos, frequentes na tradição greco-romana.
Assim também o comando binário que funda o pastor, candura-rigor, hu-
mildade-mestria, não poderia ter aparecido em configurações sociais que
traziam em posição proeminente os magistrados com seus lictores, no pe-
ríodo imperial romano, mas com origem provavelmente muito mais
antiga137.
Passados os tópicos fundamentais dos contornos organicistas do po-
der civil aventado pela tradição salmanticense e da importância da noção
de bem comum nesta configuração, poderemos passar para o exame das
relecciones De indis.
A tradução dessas exposições em espanhol, traduzidas, por sua vez,
ao português, ficou Sobre os índios recentemente descobertos e Sobre o
direito da guerra. São, podemos dizer, proferidas no auge intelectual do
magistério de Vitoria, e tratam dos fundamentos teológico-jurídicos do do-
mínio sobre os índios americanos, ditos bárbaros, e de se lhes declarar e
exercer a guerra. São, portanto, verdadeiros tratados jurídicos falados
(pois essas relecciones são aulas expositivas ou conferências anuais anota-
das pelos ouvintes, visto que Vitoria não deixou nenhum material
publicado). Em um nível jurídico dito moderno, a importância dessas con-
ferências passa naturalmente pelo direito internacional, mas de maneira
aguda também pelo civil, pelo direito penal, pelo direito público e pela
ética.
A época de escrita e proferimento das conferências é de intensa ebu-
lição na cristandade europeia: início da Contrarreforma, momento em que
a Igreja militante se espraia para todo o mundo, assim como as nações e

137
Tito Lívio traz em sua narração da história de Roma o momento indissociável da promulgação das leis por Rômulo
e, para que essas fossem respeitadas, pela sua dignificação através das insígnias de autoridade: assim ele assumiu
uma aparência mais majestática ao recrutar doze lictores para acompanhá-lo. Interessante notar-se a simbologia dos
doze hostes ou acompanhantes para a história do cristianismo. Não seria mais correto e interessante situarmos so-
ciologicamente esse predicado de majestade e de poder soberano tendo em atenção mais a reunião e manipulação
eficaz das insígnias de autoridade do que propriamente um discurso relacionando soberania e direito divino? Em
caso positivo, o grande mistério seria exatamente o anverso dessa majestade modelar romana, isto é, o cristianismo
puro e simples. Cf. TITUS LIVIUS. The History of Rome. London: Henry G. Bohn, York Street, Covent Garden, 1853,
p. 13.
Pedro Brocco | 111

suas naves comerciais: literalmente, um Novo Mundo descortina-se. Re-


nova até mesmo a Europa de então, pois as teses de Vitoria serão
assimiladas e retraduzidas por inúmeros teóricos europeus como Puffen-
dorf e Grotius, já sob um influxo majoritariamente jurídico. São teses,
portanto, que, pensadas para o desenho colonial espanhol, terão aplicação
em diversos momentos históricos, a começar pela Paz de Vestfália, com a
consequente importância de reconhecimento de um sistema internacional
prenhe de transitividade e mútuo reconhecimento de soberania muito for-
mada por uma visão de mundo afetada pelo direito natural.
Vitoria era catedrático de prima em Salamanca e, nesta condição,
dava cursos regulares, também registrados por seus alunos. As chamadas
relecciones, como as que analisamos aqui, são conferências públicas que os
professores tinham a obrigação de proferir uma vez ao ano e em que Vi-
toria, que sempre ministrava suas aulas recitando-as de memória,
preparava-se com mais esmero138.
A conferência De indis prior está dividida em três partes: a primeira
tratará sobre a capacidade de os índios terem domínio sobre seus bens e
terras, bem como sobre a autoridade adequada para tratar questões que
causem dúvidas; a segunda parte irá tratar dos títulos ilícitos evocados
pelos espanhóis para o domínio dos índios e de suas terras; a terceira parte
irá tratar de títulos lícitos, no entender de Vitoria, para que esse domínio
pudesse ocorrer com lisura e justiça.
Partindo do ius communicationis como fundamento do poder civil,
de acordo com a conferência dada dez anos antes, De potestate civili, de-
senvolveremos o percurso que Vitoria procura fazer nessas três partes do
De indis prior da seguinte maneira: i) ius communicationis; ii) capacidade
dos bárbaros para ter o domínio sobre seus bens e terras por direito na-
tural e de gentes; iii) ius missionis, ou o fundamento de circulação dos
espanhóis pelos domínios dos bárbaros, ligando assim a ponta do final à

138
Luis Frayle Delgado diz que às lições de Vitoria assistiam às vezes até mil alunos, muitos dos quais iam dedicar-se
ao ministério sagrado, à confissão e ao conselho acerca de todas as questões morais. Cf. DELGADO, Luis Frayle.
Estudio Preliminar, In VITORIA, Francisco de. La Justicia. Madrid: Tecnos, 2003.
112 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

do início, formando uma circularidade, algo que denota a engenhosidade


de Francisco de Vitoria.
A primeira parte do De indis prior tem dois eixos principais: a ques-
tão das matérias duvidosas e quem estaria apto a examiná-las e respondê-
las, e a questão da capacidade dos bárbaros para ter domínio público e
privado.
Abrindo a conferência com a problemática das matérias duvidosas,
Vitoria buscará dar embasamento para o ulterior deslinde de sua exposi-
ção. A atenção de Vitoria aqui é defender a importância da opinião dos
expertos e doutos teólogos sobre as leis divinas e humanas e, assim fa-
zendo, construir uma espécie de microssistema voltado para a segurança
jurídica. Talvez devido aos ventos do protestantismo, Vitoria é severa-
mente contrário ao livre exame individual de questões ditas duvidosas
atinentes a licitude ou ilicitude de assuntos ligados à religião e ao direito
sem passar pelo crivo da autoridade de um especialista, neste caso, um
teólogo. Por exemplo: se alguém, sem aconselhar-se com um entendido,
fizesse um contrato de cuja licitude normalmente gera dúvidas, pecaria
sem dúvidas, inclusive se o contrato fosse lícito, mas não fundado na au-
toridade de um especialista, mas apenas em sua própria inclinação ou
critério139. Em outro exemplo, se alguém, duvidando de que uma mulher
fosse sua esposa, consulta aos doutores se está obrigado ou está permitido
dar ou exigir o débito conjugal, e respondessem que de nenhuma maneira
é lícito, e ele, não obstante, levado pelo carinho ou paixão, não lhes dá
crédito e pensa que é lícito, certamente pecaria tendo relações com ela,
ainda quando para ele fosse lícito, porque obraria contra a consciência a
que deveria atentar-se140.
Assim Vitoria faz uma divisão entre o foro contencioso, em que está
obrigado o juiz de acordo com o alegado e o provado, e o foro da consci-
ência, no qual há obrigação de julgar não segundo o próprio parecer, mas
de acordo com motivos de probabilidade ou de autoridade dos entendidos,

139
VITORIA, Francisco de. De indis, op. cit, p. 62 e ss.
140
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 113

do contrário o juízo é temerário e se expõe ao perigo de equivocar-se. Aqui


vemos a raiz do que será chamado de communis opinio doctorum, a opi-
nião comum dos doutores. É em verdade uma área que aqui começa a se
formar em torno de questões ligadas à consciência141, culpa, confissões,
etc., que será aos poucos sendo ocupada pelo direito, pela moral e, poste-
riormente, também pela psicologia, ao passo que a teologia vai sendo
desalojada. Mas na época de Vitoria a teologia era omnidisciplinar e a ori-
entação das consciências uma de suas principais funções, oriunda de
processos de reformulações e constante disciplinamento, indo desde en-
tendimentos acerca das questões duvidosas, passando pela importância
do monopólio da confissão para a regulação e influência sobre as massas
de camponeses analfabetos.
Ademais, o poder sobre a consciência acaba fundando uma instância
importante do psiquismo humano, numa evolução perceptível ao menos
de maneira sistematizada desde a psicologia aristotélica, que dará origem
à entrada da noção de consciência no direito, sobretudo no direito civil e
penal (noções como culpabilidade, dolo, etc.), até a fundação da moderna
disciplina da psicologia. Vitoria aqui já trabalha com esquemas hermenêu-
ticos característicos da teologia, mas claramente observáveis
posteriormente no direito, como as noções de ignorância vencível e inven-
cível e pecado mortal e venial. Haveria, portanto, uma gradação das ações
com base em esquemas hermenêuticos segundo os quais, aqui, pecar mor-
talmente seria mais grave do que venialmente, e cuja eficácia e
funcionamento ficaria a cargo dos ditos expertos.
Aqui ainda não se fala em segurança jurídica, mas em segurança de
consciência. Assim, pois, para Vitoria, em matéria duvidosa há obrigação
de consulta àqueles aos quais corresponde o exame do caso. Se, uma vez
consultada a dúvida, houvesse parecer de ilicitude por parte dos doutos,
era obrigatório seguir o parecer, mesmo que na realidade a matéria posta

141
Cf. RUIZ, Rafael. O sal da consciência: probabilismo e justiça no mundo ibérico. São Paulo: Instituto Brasileiro de
Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull), 2015.
114 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

em exame fosse lícita. Em contrário, uma vez consultada a dúvida hou-


vesse sentença de que fosse lícito, quem segue a opinião dos sábios obraria
com segurança, inclusive no caso de ilicitude real da matéria. A importân-
cia e o peso dos pareceres dos doutores teólogos era, portanto, total. Após
fazer essas colocações, Vitoria volta ao exame da problemática dos índios.
Se aquele assunto era tratado em grande parte por homens doutos e ho-
nestos, era crível que o exame se fizesse com retidão e justiça. Há um
trecho que não pode deixar de lembrar da obra de Las Casas:

Como, por outro lado, ouvimos falar de tantas matanças e espoliações de ho-
mens inofensivos, de tantos senhores despojados de suas posses e domínios
particulares, se pode duvidar com razão se tudo isso foi feito com direito ou
com injustiça. Assim, pois, essa discussão não parece de todo inútil (...)142

Vitoria, a seguir, procura construir um entendimento de uma espécie


de monopólio da teologia para o exame e julgamento das questões envol-
vendo os índios, visto que eles não seriam um assunto para os juristas
pois, não estando submetidos ao direito humano, seus assuntos não po-
dem ser analisados pelas leis humanas, mas pelas divinas. Por isso os
juristas não seriam suficientemente competentes para examinar essas
questões, em detrimento dos teólogos. Além disso, como a maioria dos
assuntos trata do foro da consciência, corresponde dar a palavra aos sa-
cerdotes, isto é, à Igreja. Por isso, diz Vitoria, “se manda no Deuteronômio
que o rei receba das mãos do sacerdote um exemplar da lei”143.
Vitoria se pergunta se os bárbaros, antes da chegada dos espanhóis,
eram verdadeiros donos, tanto privada quanto publicamente, das coisas e
das posses privadas, e se havia entre eles príncipes e senhores. Entrará,
pois, numa discussão entre duas opiniões muito em voga na época: a de
que ou os índios eram servos por natureza, com base em Aristóteles e,
posteriormente, defendida por Gines de Sepúlveda em Valladolid, em
1550, em disputa contra Las Casas, o qual defendeu a posição oposta, a

142
VITORIA, Francisco de. De indis, op. cit., p. 65.
143
Idem, p. 66.
Pedro Brocco | 115

mesma de Vitoria. Com efeito, Vitoria sustentará que os índios estavam


sob o domínio pacífico de seus bens e possuíam certa ordem pública. Irá
construir o argumento segundo o qual deve-se distinguir questões de fé
(o caso de os índios, assim como os sarracenos e os judeus, serem infiéis)
com questões jurídicas, como o domínio. Dessa maneira, seria ilícito des-
pojar os sarracenos e os judeus de seus bens assim como aos índios.
Vitoria chega mesmo, e aqui evidentemente essa hipótese há de ser lida
com um grão de sal, a lançar as bases para a futura antropologia e etno-
logia, quando, ao discorrer sobre a capacidade de os bárbaros serem
verdadeiros donos, irá dizer: “no son dementes sino que a su manera tie-
nen uso de razón. Está claro, porque tienen cierto orden en sus cosas, una
vez que poseen ciudades establecidas ordenadamente, y tienen matrimo-
nios claramente constituidos, magistrados, señores, leyes, artesanos,
mercaderes, cosas todas ellas que requieren el uso de razón; asimismo
tienen una especie de religión, no yerran en cosas que son evidentes para
los demás, lo cual es indicio de uso de razón”144.
Assim os índios eram senhores verdadeiros, pública e privadamente,
antes da chegada dos espanhóis, o que os coloca no sistema-mundo em
condições de igualdade com os muçulmanos e os judeus, enquanto povo
infiel, mas portador de razão e apto para a troca comercial. Para fechar
essa primeira parte da conferência, Vitoria enfrenta uma das questões
mais espinhosas da época, sobre serem os índios servos por natureza. Em
uma argumentação cristalina, o frade dominicano irá estabelecer uma in-
terpretação de Aristóteles no sentido de que o Estagirita não estaria se
referindo neste trecho da Política ao fato de que os faltos de engenho se-
riam servos por natureza e não teriam domínio nem de si nem de suas
coisas, mas estaria se referindo à necessidade que uns, com menos enge-
nho, têm de ser dirigido por outros, mais inteligentes, que se sobressaem
em virtude dessa inteligência, algo que poderia denotar que por natureza
haveria uma faculdade de mandar e dirigir, mas não um mando sobre

144
Idem, p. 82.
116 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

outros através de títulos que eliminassem a capacidade geral para o domí-


nio, voltada para o âmbito civil.
A segunda parte do De indis prior tratará dos títulos ilegítimos pelos
quais os bárbaros do Novo Mundo estiveram sob o poder dos espanhóis.
Vitoria elencará sete títulos e em muitos aspectos de sua argumentação
retomará motivos da conferência anterior, De potestate civili. Os títulos
elencados como ilegítimos são:

(1) “O imperador é o senhor do mundo”


(2) “A autoridade do Sumo Pontífice”
(3) “Direito de descobrimento”
(4) “Que se negam a receber a fé de Cristo, não obstante ter-se lhes rogado insisten-
temente que a aceitem”
(5) “Os pecados dos bárbaros”
(6) “Por eleição voluntária”
(7) “Uma especial doação de Deus”

Vitoria refutará um a um os referidos títulos, todos com suposto po-


tencial de embasamento do domínio espanhol sobre os índios. Estes
títulos, de modo geral, não seriam idôneos e a estratégia de Vitoria é a de
esvaziar o poder soberano do Sumo Pontífice e, em questões de costumes,
aproximar os índios dos espanhóis e europeus, ao dizer, por exemplo, que
não seria lícito ao papa fazer a guerra contra os cristãos por motivo de
serem fornicadores ou ladrões, nem sequer por serem sodomitas, nem
tampouco por esses motivos se lhes poderiam confiscar as terras e bens e
transferi-los a outro príncipe, como costumava ocorrer com os índios.
Na terceira parte do De indis prior, por fim, Vitoria irá propor títulos
legítimos para o domínio justo sobre os índios ou bárbaros. Para tanto, irá
elencar sete títulos, sendo o último ou oitavo apenas uma espécie de “dis-
cussão” ou falso título em tese aceitável (a opinião de Vitoria não fica muito
clara), de modo que poderíamos sustentar um elenco de sete títulos mais
um criptotítulo. São eles:

(1) “Sociedade e comunicação natural”


(2) “Para propagar a religião cristã”
Pedro Brocco | 117

(3) “Se alguns bárbaros se converterem a Cristo e algum de seus príncipes quisesse
restaurá-los à idolatria pela força ou pelo medo”
(4) “Se boa parte dos bárbaros fosse convertida a Cristo”
(5) “A tirania, o sacrifício de inocentes, a antropofagia”
(6) “Por uma verdadeira eleição voluntária”
(7) “A razão de amizade e aliança”

E o criptotítulo:

(8) “Os bárbaros diferem muito pouco dos dementes e não são aptos para constituir
e administrar uma república legítima. Necessidade de tutela”

Esse elenco de Francisco de Vitoria é importantíssimo para o poste-


rior desenvolvimento da atuação da Igreja militante, com o surgimento da
Companhia de Jesus, uma ordem voltada majoritariamente para a conver-
são e propagação da religião cristã, o que denota um total alinhamento
com a doutrina vitoriana, por intermédio da reforma tridentina.
Gostaríamos de marcar então o primeiro e mais importante título, de
cariz aristotélico, bebendo na fonte do ius communicationis e apto para
fundamentar a circulação de ideias e coisas, de religiosos e comerciantes
para as terras do Novo Mundo. Vitoria argumentará aqui pela via seja do
direito de gentes, evocando as Institutas de Gaio, o célebre trecho “o que
a razão natural estabeleceu entre todas as gentes se chama direito de gen-
tes”. Ou seja, sendo todas as coisas comuns, é lícito que se percorra
livremente a superfície mundial, permitindo-se percorrer e dirigir-se às
regiões que se queira (e isso também seria válido para a Europa, pois não
seria lícito que os franceses impedissem os espanhóis de percorrer a
França e vice-versa145).
Haverá também a argumentação pela via da poesia de Virgílio,
quando na Eneida aparecerá o tema da hospitalidade. Seria, portanto, um
direito de radical alojamento e hospitalidade, fundado na amizade entre os
homens, essa também oriunda do direito natural.

145
Idem, p. 130.
118 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Vitoria já intuía que a conversão dos índios seria a principal arma dos
espanhóis, tendo em vista que a atual forma de colonização, baseada na
extração de recursos e aniquilação dos povos nativos, era severamente
contestada pelos religiosos atuantes no Novo Mundo, como Las Casas.
Ocorre que não havia ainda uma ordem com estrutura e orientada para
um plano de conversão em larga escala e em nível mundial, como seria a
Companhia de Jesus poucos anos depois.
Assim, podemos perceber que o primeiro título embasa uma circula-
ção irrestrita de pessoas e coisas e, em efeito cascata, os títulos posteriores
baseiam-se na conversão e propagação da fé cristã, não sendo exagero di-
zer que todos eles, de alguma maneira, dependem em maior ou menor
grau dessa conversão.
Por fim, sublinhemos duas contradições de Francisco de Vitoria.
O criptotítulo, isto é, o oitavo e último presente na conferência,
mesmo que não apareça como um título lícito, é introduzido estranha-
mente por Vitoria como “um outro título que poderia não certamente
afirmar-se, mas se colocaria em discussão e pareceria legítimo a alguns.
Eu não me atrevo a tê-lo por bom nem o condenar em absoluto”. É o título
segundo o qual os índios diferenciam-se muito pouco dos dementes e pa-
recem não ser aptos para constituir e administrar uma república legítima,
demandando uma tutela por parte dos espanhóis: “por eso no tienen unos
leyes convenientes, ni magistrados, y ni siquiera son lo bastante capaces
para gobernar la familia. De aquí que carezcan también de letras y artes,
no sólo de artes liberales, sino también mecánicas, y no tengan una agri-
cultura desarrollada; y carezcan de artesanos y otras muchas cosas,
comodidades que son provechosas y hasta necesarias para la vida hu-
mana”146. Aqui Vitoria parece entrar em contradição com um trecho já
citado anteriormente, que se encontra na Quarta Proposição da primeira
parte da conferência, que diz respeito ao fato de os índios possuírem pleno
domínio privado e público. Ali Vitoria diz que “no son dementes sino que
a su manera tienen uso de razón (...) tienen certo orden en sus cosas (...)

146
Idem, p. 148.
Pedro Brocco | 119

poseen ciudades establecidas ordenadamente147, y tienen matrimonios cla-


ramente constituidos, magistrados, señores, leyes, artesanos, mercaderes,
etc., cosas que requieren lo uso de la razón”. Por se tratar da mesma con-
ferência e ocorrer tão clara contradição caberia questionarmos se a última
parte do De indis prior é mesmo de autoria de Vitoria, porém isso deman-
daria um exame mais minucioso, com uma edição crítica da obra. A outra
contradição diz respeito à recomendação, também no final da conferência,
da criação de tributos para a importação de ouro e prata das terras dos
bárbaros, de quinta parte ou mais, para aumentar as rendas do rei, “puesto
que los reyes abrieron esa vía de navegación y por su autoridad los mer-
caderes gozan de seguridad”148. Parece haver aqui certa contradição com
o princípio de circulação irrestrita de pessoas e coisas, que Vitoria faz re-
ferência poucas linhas antes ao se referir aos portugueses e “seu intenso
comércio com nações semelhantes que eles não conquistaram”. Talvez co-
mece a aparecer aí a rivalidade ibérica no interior da formação dos Estados
mercantilistas.
Em conclusão, Vitoria observará que “es evidente ahora ya, después
de que allí se han convertido muchos bárbaros, no sería conveniente ni
lícito al príncipe abandonar el gobierno de aquellos territorios”149. A per-
manência espanhola e cristã se dá sólida e segura.

1.7 Civilizar: incursões entre território e consciência

Com o exame de fontes acerca do período histórico estudado, este


trabalho pretende alinhavar algumas questões que o acompanham, entre
as quais: i) qual a importância do direito para a colonização?; ii) qual a
importância da reforma da colonização, sob o influxo de Salamanca, para
o direito?; iii) em que medida o ethos humanista renascentista aparece

147
Os relatos de Hernán Cortés e seus soldados acerca do maravilhamento diante de Tenochtitlán corroboram esse
ponto de vista.
148
Idem, p. 150.
149
Idem, ibidem.
120 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

tanto no aspecto tridentino quanto no projeto colonizador? Aqui, é onde


se pretende realçar a interface entre moral (reforma das tradições morais)
e juridicidade, criação de um âmbito que futuramente ficará circunscrito
ao direito (epistemologicamente autônomo). Mas no período analisado,
tanto as tradições morais quanto o registro utilizado para compreender o
outro passa pela religião. Afirma-se com isto que a religião informa os sen-
tidos morais e normativos a partir dos quais o Ocidente se relaciona com
o restante do mundo150.
O “mundo”, aliás, só ganha sua forma com a consumação das Nave-
gações e as descobertas de novos territórios e contatos com novos povos,
em um período povoado por superstições acerca da possível navegabili-
dade em um globo terrestre. O sentido do mundo “global”, assim, só se faz
e se completa na travessia deste período do Renascimento, quando o oci-
dental promove uma imersão nos fundamentos gregos e romanos que
deram os contornos à sua civilização (memória) e desvela a existência de
outros povos submetidos a diferentes dinâmicas sociais, onde logo se en-
xergará uma dinâmica religiosa, ou sua ausência (alteridade).
Com o descortinar dessa globalidade, o conhecimento histórico co-
meça a ser trabalhado em cotejo com o geográfico. Como observa Adone
Agnolin, um grande humanista e futuro pontífice como Enea Silvio Picco-
lomini, ao escrever sua Historia rerum ubique gestarum, trabalha o espaço
e o tempo como dimensões indissociáveis, pois “o tempo flui, também,
para as coisas”151. Um desenvolvimento posterior desta tradição de escri-
tores do final do século XV fomentará as descrições espaciais e
climatológicas das novas terras descobertas, além de descrições relativas à
fauna e flora de ambientes novos e exóticos, como o Brasil descrito por
Fernão Cardim.
A História de Piccolomini e a Imago Mundi, escrita por outro huma-
nista ligado à Igreja, Pierre d’Ailly, constituem a relação entre geografia e

150
Com isto se pretende também chamar atenção para o fato de que mesmo que o direito um dia possa encontrar
sua autonomia epistemológica, ainda assim depende do intérprete e de sua visão de mundo.
151
AGNOLIN, Adone. Jesuítas e Selvagens, op. cit., p. 426.
Pedro Brocco | 121

história que se começa a estabelecer a partir do século XV e que será fun-


damental para a chegada de Cristóvão Colombo ao Novo Mundo,
navegando em direção ao Ocidente. Isto porque a hipótese de Colombo
instaurava um conflito com os textos sagrados (Antigo Testamento), iden-
tificadas por Agnolin em dois pontos principais: 1º: de acordo com a
atribuição bíblica, a Terra era caracterizada por dimensões cujas partes
habitadas constituíam uma ilha plana, perdida no Oceano; 2º: partindo do
Gênesis e do Salmo 104, deduzia-se que as águas foram sendo concentra-
das, por Deus, em um único lugar. Consequentemente poderiam existir
mares internos, mas o Oceano cercava toda a terra habitada, com uma
única e extensa massa de água152.
O contraponto encontrado por Colombo para evitar a blasfêmia foi
valer-se da autoridade dos escritos de humanistas vinculados à Igreja, que
por sua vez ventilavam, por exemplo, Aristóteles, no caso da Imago Mundi,
segundo os quais as áreas continentais seriam muito mais extensas do que
afirmadas pela Bíblia, e por autores como Ptolomeu. Isto indica que a pró-
pria cultura europeia renascentista criou possibilidades de fundamentação
das navegações executadas por Colombo, e além disso alicerçadas em es-
critores oriundos da própria Igreja católica, sendo um deles o pontífice Pio
II.
Mas uma região mais complexa do que a exploração territorial logo
se coloca para o saber europeu: a radical alteridade humana que se apre-
senta aos explorados do outro lado do Oceano.
Desde Colombo no Caribe, inúmeros encontros, conformações, refle-
xões e experiências dão forma à vida e à sociedade americana tal qual se
apresenta nos dias de hoje.
As incursões da civilização ocidental pelas consciências dos nativos,
assim, é o principal pivô de uma política psicagógica de conversão. Essa
história ganha relevos mais consistentes com os frades dominicanos que
militaram em prol dessa via, que possui, como vimos acima, afinidades

152
Idem, p. 427.
122 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

teóricas e conceituais com o saber produzido em Salamanca por Francisco


de Vitoria.
O nativo americano, ainda não objeto de um estudo antropológico,
mas lançado nos registros missionários como um ser examinado, compa-
rado e estudado, começa a aparecer, de fato, nos registros europeus,
inscrito como objeto de uma disputa retórica: afinal, seriam seres huma-
nos? Teriam razão?
É correta, assim, a abordagem segundo a qual a proto-etnologia de
Las Casas é na verdade um conjunto de expedientes retóricos destinados
a uma tomada de posição estratégica no debate acerca da natureza do índio
americano153.

153
TEGLIA, Vanina María. “El nativo americano en Bartolomé de Las Casas: la proto-etnología ‘colegida’ de la polé-
mica”. Latinoamérica. Revista de Estudios Latinoamericanos [on-line], 2012, Acesso em 16 de agosto de 2018.
Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=64023055009.
II

A inscrição do outro na missão brasileira

2.1 O Brasil nascido de um desejo: o nome antes da terra

Poucos cronistas fizeram tanto sucesso na Europa do século XVI


quanto os que escreveram sobre o Brasil. As páginas escritas desde o no-
víssimo território do mundo ou desde a Europa, quando o viajante havia
já retornado de uma viagem feita para ser contada, eram devoradas avi-
damente por uma curiosidade insaciável. Afinal, quem eram aqueles que
viviam naquelas terras? Seria verdade que comiam gente e eram incestu-
osos, indômitos e lascivos? A abundância da terra os eximia do árduo
trabalho? E essa terra seria mesmo o próprio Éden?
O momento crucial de descoberta de novas terras no mundo a partir
de 1492 (ainda que se supusesse chegar a terras já conhecidas, as Índias)
abriu na Europa as vias da imaginação e de fantasias que de alguma ma-
neira já existiam e circulavam, esperando apenas um momento propício
para serem articuladas. Lilia Moritz Schwartz e Heloisa Starling afirmam
que o Brasil fazia sucesso como o “outro lado” do mundo1. Talvez o avesso
ardentemente desejado. A Europa demandava, além da tinta vermelha
para os tecidos de luxo, um conhecimento sobre as gentes e terras que
habitavam aquele outro lugar.
O imaginário sobre o canibal está presente nas crônicas europeias
desde o nascimento do novo continente. Foi o navegador genovês Cristó-
vão Colombo quem cunhou o termo durante sua primeira viagem ao

1
SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 38.
124 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

continente americano. O termo tem origem no idioma arawan, língua fa-


lada pelos povos caraíbas antilhanos, cuja derivação espanhola “caribal”
ou “do Caribe” logo deriva para canibal, que também pode se relacionar
com os termos can (cão) e Cam, personagem bíblico mencionado no livro
de Gênesis e a partir do qual surgem as linhagens negras africanas. Sabe-
se que os europeus chamavam os índios inicialmente de negros e não fa-
ziam diferença entre os negros africanos e os negros da terra, como eram
chamados os nativos americanos. A proximidade com Cam, que, de acordo
com o livro de Gênesis, após ter visto seu pai Noé embriagado e nu, fora
amaldiçoado e condenado a ser “servo dos servos”, se coloca como modo
de justificar ideologicamente a afinidade entre povos considerados subal-
ternos e destinados ao trabalho braçal e escravo. Sérgio Buarque de
Holanda observa que o termo “canibal” pode também fazer alusão a um
dos mais temidos inimigos imaginários da Europa: o Grão-Cão da Tartá-
ria2.
No diário de sua primeira viagem, entre 1492 e 1493, Colombo men-
ciona, com um misto de curiosidade e indignação, que os nativos das ilhas
tinham o costume de comer carne humana, e chama-os caribes ou cani-
bes3.
Américo Vespúcio, em suposta carta enviada a Lorenzo di Perfran-
cesco de Medici e publicada como livro sob o título de Mundus Novus em
1504, reafirma a existência dos canibais e notabiliza-se pelo relato, que re-
cebe inúmeras edições pela Europa, e talvez tenha feito mais sucesso que
os relatos de Colombo. Afirmam Schwarcz e Starling:

As observações de Vespúcio causaram ainda maior impacto que as de Co-


lombo, uma vez que descreviam cenas de canibalismo a partir de testemunho
pessoal do autor, e além disso eram ilustradas por gravuras. A argumentação
convincente de Vespúcio, acompanhada de uma narrativa visual igualmente
sedutora, contribuiu decisivamente para a difusão de uma representação ne-
gativa dos nativos americanos, como homens sem ordem e sem fé, sem noções

2
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São
Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000, p. 14.
3
SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia. op. cit., p. 21.
Pedro Brocco | 125

de propriedade, território e dinheiro, ignorantes de instituições como a família


e o casamento. Ademais, vinculou-se a imagem da nova terra à de uma gente
decadente. Aí estava outra humanidade, que parecia adormecida diante dos
valores do Velho Mundo.4

As notícias que chegavam acerca da parte portuguesa das Américas,


no entanto, diziam sobre uma natureza paradisíaca, edênica, a contrastar
com práticas consideradas diabólicas. Até que o Brasil possuísse seus pró-
prios cronistas, vigorou uma sobreposição imaginária sobre as terras
portuguesas na América. O mito fundador do encontro entre portugueses
e nativos, a Carta de achamento redigida por Pero Vaz de Caminha, dá
conta de um encontro pacífico:

todos pardos, todos nus, sem nenhuma cousa que cobrisse suas vergonhas [...]
e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram.
Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar
quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de
linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe deu um
sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas verme-
lhas e pardas, como de papagaio.5

A carta de Caminha, na verdade um diário escrito entre 22 de abril


de 10 de maio de 1500, registra os costumes e as gentes da região de Porto
Seguro. O arrojo estético de Caminha, produzindo um relato incrivelmente
vivo e poético, flerta também com um arrojo teológico, ao dialogar direta-
mente com o mito edênico e ao ultrapassá-lo, como que pondo o índio
brasileiro fora de todo registro religioso nos termos do Gênesis e da queda
do homem. Ao descrever as moças brasileiras, escreve: “suas vergonhas
tão altas, tão serradinhas e tão limpas de cabeleiras que, de as nós muito
bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha”, e mais adiante, sobre
outra índia: “sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas

4
Idem, p. 22.
5
Idem, p. 29.
126 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não
terem a sua como ela”6.
A terra fica praticamente desabitada, exceto pela construção de algu-
mas feitorias pelos portugueses, e explorada em regime de monopólio real
(isto é, mediante cobrança de impostos pela Coroa portuguesa) com con-
cessões a burgueses lisboetas, como é o caso de Fernão de Noronha, o qual
realiza incursões no território em busca de pau-brasil, originalmente cha-
mado de ibirapitanga pelos índios tupi da costa. A planta cobria larga faixa
litorânea do território, chegava a quinze metros de altura e a espécie apre-
sentava troncos, galhos e vagens cobertos por espinhos. A madeira era
utilizada para a construção de móveis finos e de seu interior era extraída
uma resina avermelhada, boa para uso como corante de tecidos. Em suma,
a exploração dos recursos da terra nasce para e pelo luxo. Schwarcz e Star-
ling afirmam que se calcula que na época existiam cerca de 70 milhões de
espécimes, logo dizimados e extraídos pelo regime de escambo a partir da
força de trabalho da população nativa.
Interessante é a circulação do nome da planta pelo imaginário euro-
peu, há pelo menos 600 anos falava-se já algo próximo de “Brasil”:

Já nos anos 900 d. C. o produto podia ser encontrado nos registros das Índias
Orientais, em meio a uma série de plantas que possibilitavam a produção de
um corante vermelho. Tanto a madeira como o corante eram conhecidos por
diferentes nomes – “brecilis”, “bersil”, “brasil”, “brazily” –, sendo todos deri-
vados do nome latino “brasilia”, cujo significado é “cor de brasa” ou
“vermelho”. Na Europa, o primeiro registro do desembarque de uma “kerka
de bersil” data de 1085, na França. Já Américo Vespúcio, na expedição de Gas-
par de Lemos de 1501, anota a presença da rica madeira na embarcação.7

A palavra “Brasil” só passa a designar oficialmente a terra como


“América portuguesa” em 1512, quando o produto que a nomeia passa a

6
Cf. CUNHA, Manuela Carneiro da. “Imagens de Índios no Brasil: O Século XVI”. Estudos Avançados, v. 4 n. 10. São
Paulo, USP, 1990, p. 93.
7
SCHWARCZ e STARLING, op. cit., p. 32.
Pedro Brocco | 127

ser introduzido mais sistematicamente no mercado internacional. Lem-


bre-se que antes disso, tanto Pero Vaz de Caminha quanto Mestre João,
nas cartas que escreveram, nomearam a terra de “Vera Cruz”. Segundo
relato de João de Barros, o próprio Cabral teria chamado a possessão de
“Santa Cruz” por causa do Lenho Sagrado e associado o ato da primeira
missa ao sacrifício de Cristo. O Brasil nasce, portanto, em meio a disputas
terminológicas: a madeira explorada e exportada para o mercado de luxo
internacional disputava com a madeira sagrada da cruz de Cristo: “Alguma
flutuação na nomenclatura continuou a existir, muitas vezes combinando-
se os nomes: Terra Sante Crusis de lo Brasil e del Portugal. Detrás do im-
passe terminológico residia, entretanto, uma disputa mais complexa, entre
o poder secular e o espiritual”8. O vermelho do sangue de Cristo é contra-
posto ao vermelho da tintura, associado frequentemente ao diabo, de
modo especial a partir da obra de Pero de Magalhães Gândavo, História da
província de Santa Cruz, na qual defendia a volta do primeiro nome, afir-
mando ter sido obra do demônio a extinção da memória de Santa Cruz. A
colonização, no entanto, ia enfrentando cada vez mais desafios que em-
purravam o esforço colonizador para uma síntese entre o sentido
mercantil e a tarefa religiosa, missionária e catequética.
Há ainda outra linha interpretativa para o nome do Brasil. Sérgio Bu-
arque de Holanda, em Visão do Paraíso9, resgata uma antiga tradição celta
que explicaria a origem do nome do país a partir da interpretação paradi-
síaca. Segundo tal versão, haveria ilhas perdidas no Atlântico, cobertas por
plantas como a urzela e de substâncias tintoriais conhecidas como “sangue
de dragão”, sendo que de ambas se retirava uma cor púrpura. Buarque de
Holanda defende ainda que o topônimo Brasil seria derivado das expres-
sões irlandesas Hy Bressail e O’Brazil, cujo significado seria “ilha
afortunada”. Luís de Camões, em Os Lusíadas, ventila o mito da ilha afor-
tunada no Canto IX, que trata da chegada da armada de Vasco da Gama a

8
Idem, ibidem.
9
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil, op.
cit.
128 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

uma misteriosa ilha, a Ilha dos Amores10. Seria uma ressonância da pre-
sença misteriosa e curiosa daquele território ultramarino português na
América, desconhecido por Camões e, no entanto, poroso às fantasias eu-
ropeias? Uma fantasia de ilha afortunada ou o avesso do europeu, o Brasil
aparece também como a projeção do outro e do estranho ao qual se apro-
xima com um misto de curiosidade, admiração, fascínio e indignação:
deve-se convertê-lo à civilização europeia. O Brasil, um outro tão próximo,
a partir dos ensaios de Montaigne, constitui-se mais como outro do que
uma ilha do amor: “Brasil, Terra de Santa Cruz, Terra dos Papagaios, Amé-
rica portuguesa, ou qualquer que fosse o nome escolhido, designava uma
ambivalência mas também uma certeza: esse local nascera desempe-
nhando o papel de um ‘outro’, fosse na sua natureza ou nos seus
naturais”11.
Uma vez que a França passava cada vez mais a desrespeitar o Tratado
de Tordesilhas e a fazer incursões pelo litoral da América portuguesa (de
onde decorre a famosa frase de Francisco I da França: “Gostaria de ver a
cláusula do testamento de Adão que dividiu o mundo entre Portugal e Es-
panha e me excluiu da partilha”12), Portugal institui o sistema das
capitanias hereditárias em seu território americano em 1534, dividindo o
Brasil em catorze capitanias, quinze lotes e doze donatários, doando imen-
sas porções de terra para os donatários (particulares) colonizarem-nas

10
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto: Porto Editora, 2014, pp. 287-310. Sobretudo o trecho:
Oh! Que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na menhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Milhor é esprimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode esprimentá-lo.
11
SCHWARCZ e STARLING, op. cit., p. 33.
12
Idem, p. 30.
Pedro Brocco | 129

com seus próprios recursos, em regime de concessão. Com exceção de Per-


nambuco e São Vicente, as tentativas de colonização das outras capitanias
foram um fracasso.
A reforma deste sistema e a revogação das capitanias hereditárias em
1548 por D. João III apresenta um novo horizonte de colonização para o
Brasil. Institui-se, em 1549, o governo geral com a nomeação de um go-
vernador depositário das ordens régias para a tentativa de reordenar o
território e centralizar sua administração em Salvador. É também o mo-
mento em que chegam os jesuítas ao Brasil, onde atuarão na prática como
funcionários da Coroa portuguesa e braços-direitos do governador a partir
da conversão dos povos nativos, buscando alargar o número de súditos da
Coroa portuguesa. Esse é o cenário de interesse desta pesquisa, isto é, o
papel da conversão (aqui renomeada de psicagogia) jesuíta no campo em
disputa da colonização, a partir de 1549. Este é também o momento em
que os padres da Companhia passarão a produzir material narrativo sobre
a colônia, seu território e seus habitantes. Trataremos de examinar, nos
tópicos seguintes, principalmente as cartas e outros escritos produzidos
pelo padre Manuel da Nóbrega, primeiro superior dos jesuítas no Brasil.
Mas antes de examinar o contexto de produção e o conteúdo das cartas,
faz-se necessário uma breve análise do contexto de implementação do go-
verno geral do Estado do Brasil, bem como da composição da armada que
levou o primeiro governador, incumbido pelo rei D. João III de fundar a
cidade de Salvador, primeira capital da colônia.

2.2 O Governo Geral do Estado do Brasil e a sua composição


administrativa (1548-1549)

O Brasil como unidade administrativa inexistiu até a implementação


do governo geral, em 1548-1549. Antes da confecção do Regimento Régio
que disciplinava os poderes e deveres do governador-geral, o Brasil era um
largo território distribuído entre particulares que se dispuseram a colo-
nizá-lo com seus próprios recursos. Mas o planejamento das donatarias
130 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

concedidas em caráter vitalício e hereditário a esses poucos particulares se


mostraria um fracasso em pouco mais de uma década após sua implemen-
tação, em 1534, durante o reinado de D. João III. Das capitanias com algum
sucesso destacaram-se, em primeiro lugar, a de Pernambuco, adminis-
trada por Duarte Coelho, que já possuía experiência administrativa no Sião
(atual Tailândia) e a de São Vicente, no extremo Sul da colônia, pelos obs-
curos caminhos que levavam às terras castelhanas e pelo já iniciante
tráfico de escravos indígenas. Pernambuco, por sua vez, pela localização
geográfica que tornava mais rápida a viagem até a Metrópole, destacava-
se na exportação de pau-brasil e na preparação do cultivo da cana-de-açú-
car.
Pouco mais de doze anos da instauração do regime das donatarias,
entretanto, a situação de todas as outras terras concedidas a particulares
e que haviam recebido investimentos e esforços para a colonização13, era
de caos e penúria. As capitanias do Sul, de Martim Afonso de Sousa e Pero
Lopes de Sousa, estavam isoladas; a de São Tomé seria devastada pelos
índios goitacás; a do Espírito Santo estava sitiada e perigava ser destruída
a qualquer momento pelos índios; a de Porto Seguro sofreria um levante
popular que levaria o capitão Pero do Campo Tourinho preso para a In-
quisição de Lisboa. Acusado de heresia e blasfêmia, Pero do Campo
Tourinho supostamente não respeitava a guarda dos dias santos em sua
capitania, além de fazer declarações anticlericais. Foi notificado para com-
parecer perante a Inquisição14. Já em Portugal, foi absolvido, mas impedido
de voltar para Porto Seguro.
A situação mais dramática, entretanto, ocorreu na capitania da Bahia.
Tendo como capitão Francisco Pereira Coutinho, a capitania da Bahia pos-
suía uma modesta vila ou arraial, chamada por Frei Vicente do Salvador

13
Houve donatarias que receberam pouco ou nenhum investimento, encontrando-se em situação de abandono, so-
bretudo as “capitanias de cima”, como a do Maranhão. Cf. SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil: 1500-1627.
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1982.
14
Seu processo pode ser consultado sob o número 8821 do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, na Torre
do Tombo.
Pedro Brocco | 131

de “vila velha”15. Desde os primeiros dias, apesar de um início alvissareiro,


o povoado português conviveu com constantes perigos de invasão dos tu-
pinambás. Pereira Coutinho não soube administrar o crescente conflito
com os tupinambás e viu-se envolvido em uma espécie de movimento se-
dicioso. Diante do abandono do Arraial e de sua invasão e devastação por
parte dos tupinambás, Pereira Coutinho decide retornar para a Bahia, mas
sua embarcação naufraga no sul da ilha de Itaparica. O donatário, que não
morrera no naufrágio, foi capturado, morto e devorado pelos tupinambás
de Itaparica16
A notícia da morte do donatário da Bahia provavelmente caiu como
uma bomba na Metrópole e, somada às notícias de assédio da costa do
Brasil por parte dos franceses, define a estratégia de criação do governo
geral no Brasil.
A explicação da instauração do governo geral teve durante muito
tempo embasamento em uma carta de Pero de Góis, donatário da capita-
nia de São Tomé, destruída pelos goitacás, suplicando ao rei D. João III o
socorro das capitanias frente às ameaças dos índios e dos franceses17.
No entanto, a notícia da morte de Francisco Pereira Coutinho na Ba-
hia teria tido também um peso considerável na decisão de mudar as regras
do jogo do regime das capitanias hereditárias com a criação do governo
geral em pouco mais de dois anos, além do fato geopolítico que envolve o
enfraquecimento das possessões lusas no Oriente, sobretudo na Índia18.
Saliente-se que a criação do governo geral não implicou a extinção
das capitanias hereditárias, mas limitou os amplos poderes e a autonomia
dos capitães donatários. Tanto é assim que a relação da capitania de Per-
nambuco, a mais próspera do Brasil naquela altura, com a Coroa

15
SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil: 1500-1627. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Univer-
sidade de São Paulo, 1982, p. 113.
16
João Adolfo Hansen observa que tal fato se dá em 1545. Cf. HANSEN, João Adolfo. Manuel da Nóbrega. Recife:
Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010, p. 22.
17
Cf. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, 2012, p.
165.
18
Hansen observa que sob o governo de D. João III (1521-1557) o Império colonial português se desmantela: “A Índia
passou a ser governada por corruptos e os abusos colonialistas causaram inumeráveis guerras com os rajás indianos,
esgotando as finanças do Reino”. HANSEN, op. cit., p. 56.
132 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

portuguesa após a criação do governo geral ficou tensa, a ponto de o do-


natário Duarte Coelho ter impedido que os enviados do rei e do
governador-geral Tomé de Sousa vistoriassem os assuntos da Fazenda e
do Judiciário de Pernambuco em agosto de 1549, não cedendo de todo a
autonomia de sua capitania. O padre Manuel da Nóbrega afirmará, pouco
depois, em uma de suas cartas, a serem expostas e analisadas mais à
frente, que Duarte Coelho e sua mulher seriam tão virtuosos quanto a
fama que tinham, porém, era Duarte Coelho já velho e faltava-lhe muito
para o bom regimento da Justiça e por isso a jurisdição de toda a costa
deveria ser da Coroa.
Todavia, a implantação do governo geral visava corrigir a excessiva
descentralização que impedia um esforço mais pujante para a colonização
das vastas terras da colônia. A de Duarte Coelho foi uma exceção de capi-
tania bem-sucedida, até porque teve talvez o único capitão que vendeu
todos os bens no reino para investir na colônia e planejou habitá-la com
seus descendentes.
A implementação do governo geral fez parte de um processo histórico
relacionado à construção do Estado moderno. Governos mais centraliza-
dos, racionais no sentido de produção de procedimentos de controle e
gestão ligados a instrumentos legais, maior controle sobre os súditos e no-
vas formas de exercício de poder que se traduziriam em maior eficácia
político-administrativa: tal regime se tornaria incompatível com as exces-
sivas liberdades dos donatários das capitanias do Brasil. A colonização
ibérica recorreu, desde o início, às atividades de particulares para sua im-
plementação. Ao longo do século XVI, logo ocorrem as primeiras tensões
e confrontos em relação ao poder central das Coroas. Tais tensões povoam
ainda a dinâmica política histórica do Brasil e o imaginário dos homens
que fazem sua história: coronelismo, compadrio, redes de relações, elites
locais, etc.
A figura do “funcionário público” da Coroa que deveria administrar
o território e prestar contas à Metrópole é assim introduzida de forma
Pedro Brocco | 133

mais sistemática no Brasil com o advento do governo geral. Ainda que te-
nha sido criado para desbaratar o caos e a ineficiência administrativa do
território brasileiro, com excessos de poderes, liberdades e privilégios de
seus capitães, a nascente burocracia lusa não foi jamais isenta dos mesmos
ímpetos de voluntarismo, apego aos privilégios e tendências corruptas que
procurava evitar: uma breve análise da composição administrativa do go-
verno geral combinada com a dinâmica colonial confere sentido a esta
afirmação19.
Tal sentido, no entanto, há que ser confrontado com recentes estudos
sobre o tema como o de Jorge Caldeira20. Para Caldeira, em um itinerário
que será reproduzido em tópico separado a seguir, houve um esforço ini-
cial para a construção de um governo centralizado tocado por agentes que
circulavam em torno das ordens militares, pequena fidalguia e dos primei-
ros técnicos do governo: a chamada nobreza togada, uma nobreza oriunda
da mistura de empreendedorismo e nobilitação menor21.
Se o Estado do Brasil se tornou terreno para que vicejassem cepas
consistentes de tal tecnicismo de governo aliado a uma fidalguia togada ou
letrada, é certo também que os primeiros esforços se deram no sentido de
construção de alianças com as lideranças tupi.
Caldeira é cuidadoso ao examinar o Regimento que institui o governo
geral, e podemos aqui neste estudo complementá-lo ao dizer que ali está
um entendimento que vai na direção da doutrina de Salamanca e de Fran-
cisco de Vitoria. D. João III afirma no Regimento: “A principal tentativa

19
Um exemplo foi a nomeação de Pero Borges como primeiro Ouvidor-geral do Brasil, uma espécie de “Ministro da
Justiça”. Borges, ex-corregedor de Justiça em Elvas, no Alentejo, é aí condenado a pagar à custa de sua fazenda verba
extraviada da construção de um aqueduto, desvio no montante de 114.064 reais, equivalentes a um ano de seu salário
como corregedor (“recebia indevidamente quantias de dinheiro que lhe eram levadas à casa, provenientes das obras
do aqueduto, sem que fossem presentes nem o depositário nem o escrivão”). Não obstante, D. João III o nomeia para
o cargo de Ouvidor-geral do Brasil no governo de Tomé de Sousa, tendo acumulado o cargo de provedor-mor no
governo seguinte de Duarte da Costa. Cf. ALMADA, Vitorino de. Elementos para um Dicionário de Geografia e História
Portuguesa, publicado pelo Conselho de Elvas em 1888, reproduzido por AZEVEDO, Pedro de. História da Coloniza-
ção Portuguesa do Brasil, vol. 3. Porto: Litografia Nacional, 1926 in BUENO, Eduardo. A coroa, a cruz e a espada: Lei,
ordem e corrupção no Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2016, pp. 65-66. Não se tratando aqui de uma tese estrita
em História, o trabalho de pesquisa e condensação de fontes realizado por Bueno é bem-vindo.
20
CALDEIRA, Jorge. História da riqueza no Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2017. Idem.
21
Idem, p. 59.
134 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

minha é que se convertam à nossa santa fé, logo que é razão que se tenha
com eles todos os modos que puderem ser para que o façais assim. E o
principal há de ser escusardes fazer-lhes guerra porque com ela se não
pode ter a comunicação que convém que se com eles tenha”22. Ora, consi-
derando a hipótese histórica de que o próprio D. João III tenha enviado
uma carta com selo real e assinada de próprio punho tendo como destina-
tário Diogo Álvares Caramuru, é de se interpretar o trecho colocando-o no
interior de um planejamento de formação de alianças com as elites tupis
que governavam o território. Não é menos reveladora da adoção da dou-
trina de Salamanca, analisada em capítulos iniciais deste trabalho, a
escolha pela tópica da comunicação aliada a uma escolha de estabeleci-
mento pacífico no território, algo que remonta ao ius communicationis que
Vitoria aborda em sua relectio sobre o poder civil.
Neste momento, tanto portugueses quanto franceses buscavam apro-
ximação com os tupis lançando mão da mesma estratégia: a formação de
alianças e pactos que frequentemente, para maior certeza e solidez, pas-
sava pela questão do casamento com filhas dos líderes tupis. Assim foi
como Caramuru e João Ramalho, portugueses, lograram ingressar na es-
trutura de parentesco e poder tupi.
A compreensão da supremacia da pequena fidalguia e dos técnicos de
governo em Portugal, no entanto, deve ser lida no interior de um projeto
anterior, impulsionador das navegações e do desenvolvimento econômico
português, que também foi uma sobreposição de poder religioso e secular,
religioso e econômico, com a suposta transferência dos capitais dos tem-
plários para Portugal e a fundação da Ordem de Cristo. Retomando este
capítulo dos estudos de Caldeira, considerados relevantes para este traba-
lho, será iniciado o próximo tópico.

22
Idem, p. 62.
Pedro Brocco | 135

2.3 Da Ordem de Cristo à Companhia de Jesus: um protagonismo –


das Navegações ao Governo Geral do Estado do Brasil

Em capítulo intitulado “Governos com genros europeus” de sua His-


tória da riqueza no Brasil, Jorge Caldeira afirma que a partir de 1500 os
habitantes do litoral atlântico da América do Sul passaram a contemplar
uma cena que se repetiria com frequência cada vez maior: grandes barcos
chegando às suas baías, se abastecendo de água e mantimentos e, em troca
das cargas que levavam, deixando objetos e pessoas23. Muitas destas pes-
soas passariam a conviver com a novíssima forma de vida descoberta,
penetrando em suas estruturas culturais e familiares – os chamados lan-
çados que ficavam em terra para aprender os costumes e as línguas nativas
com o fim de relatar seus conhecimentos e ajudar as próximas incursões
da Coroa. Era o início de um novo ciclo do desenvolvimento social e histó-
rico humano, mas também a continuidade de um projeto português
iniciado alguns séculos antes.
Muito se fala do protagonismo de uma burguesia adiantada no início
do projeto de navegação de Portugal, mas pouco se examinam as outras
forças que o tornaram de fato possível. Uma dessas importantes forças
originou-se do que restou da Ordem dos Templários, que se mudou para
Portugal ao fugir de perseguições na Europa, sobretudo na França, mu-
dando também de nome para o que se passou a conhecer como Ordem de
Cristo.
Para Jorge Caldeira, a Ordem de Cristo é o principal fator explicativo
para que os lusitanos tenham encabeçado a expansão marítima europeia24,
uma vez que no começo do século XV Portugal era um reino pobre quando
comparado com as riquezas que se concentravam na Itália, Alemanha ou
Flandres.

23
Idem, p. 31.
24
CALDEIRA, Jorge. Nem céu nem inferno: ensaios para uma visão renovada da história do Brasil. São Paulo: Três
Estrelas, 2015, p. 170.
136 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

A rica Ordem de Cristo transferiu-se para Portugal em 1307 como


herdeira da misteriosa Ordem dos Templários, fundada por franceses em
Jerusalém em 1119.
Em uma Jerusalém conquistada pelos cristãos na Primeira Cruzada
em 1098 e cercada por árabes em 1116, os nobres franceses Hugues de
Payns e Geoffroi de Saint-Omer juraram, na igreja do Santo Sepulcro, vi-
ver em perpétua pobreza e defender os peregrinos que fossem à Terra
Santa – assim fundando a Ordem dos Cavaleiros Pobres de Cristo, reno-
meada em 1119 Ordem dos Cavaleiros do Templo, a Ordem dos
Templários25.
A Ordem dos Templários logo se transformou em uma poderosa or-
ganização religiosa e militar. Seus membros eram monges-guerreiros e
suas normas eram secretas, informadas progressivamente apenas aos ini-
ciados que provavam fidelidade geralmente em campo de batalha. Apenas
conheciam a totalidade das normas da Ordem o seu comandante em chefe
ou grão-mestre e o papa. Os templários não possuíam a obrigação de obe-
decer aos reis e podiam, neste sentido, ter interesses próprios. A rígida
organização, marcada pelas etapas progressivas de ritos de iniciação e ges-
tão do conhecimento permitiu que, séculos depois, a Ordem de Cristo
mantivesse em segredo conhecimentos de navegação na costa africana e
no Atlântico Sul.
Durante o período das Cruzadas, os templários receberam diversas
propriedades por doação ou herança e desenvolveram intensa atividade
econômica. Em seus feudos, introduziram métodos racionais de produção,
sendo os primeiros a criar linhagens de cavalos em estábulos limpos, além
de também implementar uma rede de postos bancários que logo se espa-
lhou por diversos países26. Segundo este método, peregrinos a caminho da
Terra Santa depositavam seus bens no ponto de partida e recebiam um
título de crédito com o direito de retirar o equivalente em moeda local em
qualquer estabelecimento templário.

25
Idem, p. 172.
26
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 137

Com a queda de Jerusalém, em 1244, e a expulsão das tropas cristãs


da Palestina, em 1291, a Ordem dos Templários se dissipou pela Europa e
logo começou a gerar oposições monárquicas a seu poder: nas décadas se-
guintes, a Ordem seria extinta por toda a Europa, exceto em Portugal, que
estimulou que os templários se instalassem em seu território.
Em 1307, o rei de França Filipe IV, o Belo, devendo dinheiro aos tem-
plários franceses, os mais poderosos da Europa, e alimentado por uma
série de boatos que então corriam contra a Ordem dos Templários no sen-
tido de esta ter acordos com os muçulmanos e ter fugido dos campos de
batalha e traído os cristãos, invade as sedes da Ordem em toda a França e
prende quinhentos cavaleiros, muitos dos quais foram degolados. Neste
momento, abrem-se dois processos contra a Ordem: o do rei contra os
presos e o do papa Clemente V contra a Ordem. Quando a Ordem foi ex-
tinta e seus bens confiscados, pouco se achou do que então se supunha
compor os cabedais dos templários. Surgiu então a lenda de que os bens e
tesouros da Ordem haviam sido transferidos para outro país, e muito se
especulou que tal país seria Portugal.
O rei D. Dinis, de fato, garantiu a permanência da Ordem em terras
portuguesas e propôs uma doação formal dos bens da Ordem à Coroa, com
a nomeação de um administrador templário. Em 1317, reiterando que os
templários não haviam cometido crimes em Portugal, D. Dinis transfere
todo o patrimônio dos cruzados para uma nova organização: a Ordem de
Cristo. A partir daí, o manto branco com a cruz vermelha que os templá-
rios ostentavam nas Cruzadas migrará para as bandeiras içadas nas
caravelas lusitanas.
O castelo de Tomar tornou-se o centro de operações da Ordem de
Cristo e o cofre de todos os seus segredos. Dois anos depois, em 1319, o
papa João XXII reconheceu a Ordem de Cristo, dando início, assim, em
terras portuguesas, a uma nova era de missões dos antigos templários,
uma era inseparável das navegações. Nas décadas seguintes, ex-templários
que afluíram a Portugal de toda a Europa fugindo das perseguições passa-
ram a estabelecer estaleiros em Lisboa, fazendo contratos de manutenção
138 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

de embarcações e dedicando-se à tecnologia náutica. A Ordem já possuía


conhecimento náutico adquirido no transporte marítimo de peregrinos
entre a Europa e o Oriente Médio durante as Cruzadas.
Em 1416, cerca de cem anos depois do estabelecimento da Ordem de
Cristo em Portugal, o infante D. Henrique torna-se seu grão-mestre. A par-
tir daí, já com os pés em Ceuta e o início das navegações pela costa africana,
D. Henrique lança-se à diplomacia e consegue o aval do papa para seu pro-
jeto expansionista. Em um século, os papas emitiram onze bulas
privilegiando a Ordem com monopólios da navegação na África, posse de
terras, isenção de impostos eclesiásticos e autonomia para organizar a
ação da Igreja nos locais descobertos27 – em outras palavras, poderes de
missão, os mesmos que viriam a exercer os jesuítas pouco mais de cem
anos depois, no século XVI: “As terras tomadas aos infiéis passariam à Or-
dem de Cristo, que teria sobre elas tanto o poder temporal, de
administração civil, quanto o espiritual, isto é, o controle religioso e a co-
brança de impostos eclesiásticos”28.
Assim como na época da Ordem dos Templários, o poderio da Ordem
de Cristo foi considerável durante os primeiros anos das navegações: no
Marrocos, os cruzados atacaram Tânger em 1437 e Alcácer-Ceguer em
1458; em 1461, o cavaleiro Pedro Sintra encontra ouro na Guiné. Neste
ponto, a pressão comercial da monarquia portuguesa começa a crescer, e
o poder da Ordem de Cristo a diminuir, até o ano de 1550, durante o rei-
nado de D. João III e com Portugal já dando apoio total aos jesuítas, quando
o papa Júlio III funde a Ordem de Cristo e a Coroa portuguesa, fazendo do
rei de Portugal sempre o grão-mestre da Ordem, e seu filho tendo direito
de sucedê-lo no comando dos cruzados. Até o desaparecimento do rei D.
Sebastião em Alcácer-Quibir, portanto, a Ordem de Cristo, a Ordem dos
Templários e as Cruzadas seguiram sendo uma presença constante,
quando não um fantasma, nos caminhos de Portugal, e também do Brasil:

27
Idem, p. 175.
28
Idem, p. 171.
Pedro Brocco | 139

Domingo, 8 de março de 1500, Lisboa. Terminada a missa campal, o rei, d.


Manuel I, sobe ao altar, montado no cais da Torre de Belém, toma a bandeira
da Ordem de Cristo e a entrega a Pedro Álvares Cabral. O capitão vai içá-la na
principal nave da frota que partirá dali a pouco para a Índia. Era uma esquadra
respeitável, a maior já montada em Portugal, com treze navios e 1.500 ho-
mens. Além do tamanho, tinha outro detalhe incomum. O comandante não
possuía a menor experiência como navegador. Cabral só estava no comando
da esquadra porque era cavaleiro da Ordem de Cristo e, como tal, tinha duas
missões: criar uma feitoria na Índia e, no caminho, tomar posse de uma terra
já conhecida, que mais tarde receberia o nome de Brasil.29

Cabral, naquele momento, representante da Ordem de Cristo, reve-


lava o que ficara assegurado juridicamente a Portugal e à Ordem de Cristo
em bulas papais anteriores: que a Ordem tinha autorização papal para
ocupar e, assim como nas Cruzadas, tomar os territórios aos infiéis.
Sem a transferência dos templários para seu território e a transfor-
mação do castelo de Tomar em seu quartel general e caixa-forte de todos
os seus segredos, muitos deles relativos a mapas e tecnologias náuticas,
Portugal teria pouca chance de se tornar a nação líder na exploração ma-
rítima durante algum tempo entre os adversários europeus. Um detalhe
nesta composição é revelador: em razão da importância do castelo de To-
mar, criou-se na vila de Lagos, no Algarve, onde D. Henrique passava seu
tempo quando não estava no referido castelo, um centro de efervescência
cultural e intelectual: para lá afluíam pessoas do mundo inteiro: gentes das
ilhas Canárias, caravaneiros do Saara, monges de Jerusalém, navegadores
venezianos, flamengos, alemães, cartógrafos e astrônomos. Observa Jorge
Caldeira que entre os mapas, plantas e tabelas que o príncipe possuía havia
um exemplar manuscrito das Viagens de Marco Polo, cuja primeira edição
impressa não foi feita em latim ou italiano, mas em português, em 153430.
O projeto de achar um caminho alternativo para o Oriente, aliás, é
tarefa digna dos herdeiros de Marco Polo:

29
Idem, p. 169.
30
Idem, p. 172.
140 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

No momento em que D. Henrique, à frente da Ordem de Cristo, decidiu dar a


volta no continente africano, a ideia parecia um disparate. Havia pouca tecno-
logia para navegar em oceano aberto (o Mediterrâneo é um mar fechado) e
nenhum conhecimento sobre como se orientar no Hemisfério Sul, porque só
o céu do Hemisfério Norte estava mapeado. Mais ainda: acreditava-se que, ao
sul, os mares estavam cheios de monstros terríveis. De onde teria vindo então
a informação de que seria possível encontrar um novo caminho para o Ori-
ente? Possivelmente dos templários, que, durante as Cruzadas, além de se
especializarem no transporte marítimo de peregrinos para a Terra Santa,
mantiveram intenso contato com viajantes de toda a Ásia.31

Se se considerar ainda a hipótese, ventilada por Jorge Caldeira, rever-


berando historiadores portugueses modernos como Jorge Couto e Luciano
Pereira da Silva, de que muito provavelmente a Ordem de Cristo já havia
feito incursões pelo litoral brasileiro antes de 1500 com o navegador que
negociou Tordesilhas, Duarte Pacheco Pereira, o qual teria ainda visitado
o Maranhão e a foz do Amazonas em 1498, é possível ter a dimensão da
importância da Ordem e do volume de informações que circulou pelos ar-
quivos secretos do castelo de Tomar.
A Ordem religiosa que sucedeu a Ordem de Cristo na formulação de
diretrizes para a estratégia colonial portuguesa foi a Companhia de Jesus.
Unindo também os aspectos religioso ao militar, a Companhia de Jesus foi
decisiva para que o território brasileiro adquirisse um fator unitivo. O fun-
cionamento dos jesuítas operava uma inversão em relação à Ordem de
Cristo: no tocante à produção e circulação de informações e dados, houve
um imenso volume de escritos de jesuítas de todas as partes do globo que
afluíam aos colégios, depois aos provinciais e deles ao Geral da Ordem, em
Roma: “Sendo uma ordem centralizada e geradora de um fluxo regular de
informações (todos os inacianos eram obrigados a redigir relatórios tri-
mestrais de suas atividades; todos os colégios reuniam a informação de
sua área e produziam relatórios consolidados; todas as províncias faziam
o mesmo em relação a Roma) – algo raro na época –, tinha nesse sentido

31
Idem, pp. 170-171.
Pedro Brocco | 141

uma atuação fortemente coordenada”32. Assim como também o era coor-


denada a atuação da Ordem de Cristo, porém esta se calcava numa
dinâmica de sociedade secreta, com ritos de iniciação e informações res-
tritas, conhecidas em sua totalidade apenas pelo grão-mestre. Poucos
olhos e ouvidos privilegiados dão lugar a muitos olhos e ouvidos especia-
lizados treinados para fazer fluir constantemente dados e informações das
regiões sob sua competência.
Fluxograma da circulação de informações na Ordem de Cristo

Informação Processamento Resposta

Repositório de informações

Fluxograma da circulação de informações na Companhia de Jesus33

Informação Repositório de
informações

Informação Processamento Repositório de


Resposta
informações

Informação Repositório de
informações

Essas informações servirão para o planejamento de políticas estraté-


gicas levadas a cabo pela própria Companhia ou em coordenação com os

32
CALDEIRA, Jorge. História da riqueza no Brasil, op. cit., p. 80.
33
Este fluxograma de circulação de informações que representa a produção, processamento e gestão informacional
da Companhia de Jesus é muito próximo da estrutura dos processadores dos computadores modernos, cujos reposi-
tórios de informações são definidos como cache. Neste sentido, o estudo da gestão informacional jesuíta tem grande
relevância para uma história da cibernética.
142 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

poderes seculares e para a formação de novos funcionários treinados (je-


suítas) que da Europa seguirão para diferentes pontos do mundo34.
A Companhia de Jesus, em poucos anos, logo terá sua própria Cons-
tituição e, com a ajuda das técnicas de impressão que fluem da Europa
para o Novo Mundo já no século XVI, criará um monumental centro de
processamento de dados sobre o planeta e a humanidade que o habita,
sobre suas terras e variedade de gentes. O saber e conhecimento estraté-
gicos sobre mapas, rotas, populações e recursos continua sendo
estratégico e valioso; porém a tecnologia da informação e colheita de dados
se desloca: sua produção, circulação e processamento se modifica decisi-
vamente ao longo do século XVI, gerando impactos na estrutura
administrativa da Coroa portuguesa.

2.4 As Cartas do Brasil e o Diálogo sobre a conversão do gentio, de


Nóbrega: o papel central da conversão na missionação jesuíta

A atuação da Companhia de Jesus no Brasil tem início no ano de 1549,


quando chegam de Lisboa cinco jesuítas (Padres João de Azpilcueta Na-
varro, Leonardo Nunes, Antônio Pires e os Irmãos Diogo Jácome e Vicente
Rodrigues) chefiados por Manuel da Nóbrega (1517-1570) entre as três
naus, duas caravelas e um bergantim que chegam à Bahia levando mais de
mil pessoas, entre elas o governador-geral Tomé de Sousa. Pode-se mesmo
afirmar que aí começa-se a construção do Brasil com sede administrativa,
em Salvador, do lado do braço secular, e com os rudimentos de uma pro-
víncia jesuíta, que mais à frente é criada por Inácio de Loyola, em 1553,
nomeando Nóbrega como primeiro provincial.
Estes primeiros anos, no entanto, também chamados de período he-
roico da Companhia de Jesus no Brasil, são de extrema dificuldade
sobretudo na fixação das bases coloniais e demandarão grandes esforços
adaptativos e administrativos.

34
Remete-se, aqui, à importante pesquisa de ALDEN, Dauril. The Making of an Enterprise: The Society of Jesus in
Portugal, Its Empire, and Beyond, 1540-1750. Stanford: Stanford University Press, 1996.
Pedro Brocco | 143

Tais demandas trazem especial interesse a este estudo, pois implica-


rão o fundamento de bases mais sólidas a respeito do direito, da
administração pública e do conjunto de normas que formarão a estrutura
colonial, na medida em que o direito apresenta-se também como uma téc-
nica e uma tecnologia de controle social (concepção gerada somente com
sua independência epistemológica em relação à teologia e à moral), e,
neste sentido, importa realizar aqui uma leitura sobre o início da implan-
tação da colônia brasileira e os respectivos comportamentos impostos aos
súditos da fatura tropical do Império português. O que se chama aqui de
“conjunto de normas” será informado, nestes primeiros anos e de maneira
muito especial, pela Companhia de Jesus, não obstante a constante tensão
entre jesuítas e colonos sobre a administração dos índios, que perdurará
até a expulsão dos jesuítas dos domínios portugueses pelo Marquês de
Pombal.
O objetivo deste capítulo é o de contextualizar as primeiras medidas
administrativas e jurídicas tomadas pelo governo geral em consonância
com as diretivas dos jesuítas, concentrando-nos nestes primeiros vinte e
cinco ou trinta anos de presença jesuíta no Brasil, e marcando de forma
especial a centralidade da figura da conversão para os objetivos propostos
do assentamento português em território brasileiro. A conversão apare-
cerá de forma especial no Diálogo sobre a conversão do gentio, obra
produzida pelo padre Nóbrega nestes primeiros anos de presença jesuíta
no Brasil, e servirá a este capítulo como fonte importante para análise.
Antes de iniciar a análise do Diálogo sobre a conversão do gentio, bus-
caremos demarcar uma linha compreensiva acerca de alguns conceitos
presentes no mundo português católico do século XVI como os de tempo,
poder, pessoa, linguagem e realidade. O objetivo com isto será o de não se
tomar os jesuítas como liberais e democratas. São fundamentalmente mo-
narquistas e animados por uma profunda e característica reverência às
noções de autoridade e obediência.
144 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

João Adolfo Hansen toca nestes pontos em seu estudo sobre Manuel
da Nóbrega35, como aspectos fundamentais cuja presença ajuda em grande
medida o estudioso a compreender todos os aspectos envolvidos não só na
formação de um jesuíta no século XVI, mas também na administração co-
lonial que se buscava realizar no Brasil.
Começando pela concepção de tempo, pode-se observar, seguindo o
trabalho de Hansen, outro tipo de relação, metafísica, com a temporali-
dade e a teologia aí implícita: “A sociedade portuguesa do século XVI não
é burguesa, iluminista ou liberal. Sua experiência do tempo é outra, dife-
rente da experiência temporal moderna, pois pressupõe a presença
providencial de Deus como Causa e Fim da sua história”36,37.
A noção de tempo relaciona-se às de poder, pessoa humana, lingua-
gem e realidade, na esteira do registro político teológico-católico:

Também é outra sua doutrina de poder, que não é democrática; de “pessoa


humana”, que é escolástica; de linguagem e realidade, que é motivada como
participação das coisas, homens, eventos e palavras na substância metafísica
de Deus. Fundamentadas metafisicamente e ordenadas pela teologia-política
católica, as doutrinas de tempo, história, poder, pessoa, linguagem e realidade

35
HANSEN, João Adolfo. Manuel da Nóbrega. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010, pp. pp.
11-47, passim.
36
Idem, p. 11.
37
Aqui, é de se mencionar que esta concepção de Deus como causa e fim remete à intrincada formação religiosa e
ideológica do homem europeu católico, que pode ser lida a partir das cinco vias de Tomás de Aquino para a compro-
vação da existência de Deus, na Suma Teológica, q.2, a.3 (Utrum Deus sit), onde Tomás de Aquino elenca cinco
provas da existência divina, quais sejam: i) o movimento, pois todos os corpos se movem em decorrência de outro,
logo existe um “primeiro motor imóvel” (hipótese de Aristóteles); ii) causalidade eficiente, assim como o movimento
necessita de um primeiro motor que movimente os corpos sem ser por nenhum deles movimentado, a causalidade
exige que exista uma causa eficiente primeira, que seria Deus; iii) o ser possível ou contingente e o necessário, se-
gundo a qual é forçoso que exista algo que seja necessário por si mesmo e que não tenha fora de si a causa de sua
necessidade, mas que seja causa das necessidades dos demais; iv) os graus de perfeição que há nos seres, visto que
uns são mais ou menos bons ou mais ou menos verdadeiros ou nobres, e isto se diz levando em conta a proximidade
a um máximo de bondade, nobreza e verdade, e este máximo analogamente seria atribuível a Deus; v) o governo do
mundo, pois existiria um ser inteligente que dirigiria todas as coisas naturais para a sua finalidade, e este ser seria
Deus. Cf. AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica. Madrid: BAC, 1964, reimpressão de 2014, pp. 118-122. Assim
se observa que a história e o tempo seriam localizáveis dentro do esquema ideológico de Deus como causa eficiente
de todas as coisas. Veremos no último capítulo deste livro, sobre Luís Fróis e a presença jesuíta no Japão, como a
visão de mundo do zen budismo irá questionar os próprios alicerces da cosmovisão tomista aristotélica ao colocar o
Vazio, e não Deus, como o fundamento da realidade.
Pedro Brocco | 145

mobilizadas nas práticas do programa catequese e escola são corporativas, in-


tegrando-se nas malhas das relações pessoais que constituem a hierarquia do
Estado monárquico português.38

Além dos mais óbvios contrastes no plano da organização política da-


quela sociedade, acompanhamos Hansen no relevo de algumas sutilezas
interessantes acerca do modo de vida jesuíta. Inácio de Loyola e os demais
padres da Companhia se referiam ao conjunto de diretrizes e normas vol-
tadas à etiqueta jesuíta como noster modus procedendi ou “nosso modo de
proceder”:

Membros de um mesmo corpo, devem conduzir-se de modo adequado à sua


representação de monopanto, “um por todos ou todos por um”, na missão para
a qual forem mandados. Nesse caso, Loyola afirma que o objetivo principal da
viagem dos três é, depois de terem-se arranjado para viver juntos num lugar
decente, pregar, confessar, dar lições públicas, ensinar as crianças, dar exem-
plo, visitar os pobres e exortar o próximo. Conforme seu talento, cada um
deles deverá animar os que puder para a devoção e a prece. Nas pregações,
não tocará em nenhum dos pontos que separam os protestantes dos católicos,
mas tratará dos bons costumes e devoções em uso na Igreja. [...] Nas confis-
sões, deverão falar aos penitentes como se a fala fosse pública. Dando os
Exercícios Espirituais, deverão começar com os da primeira semana para um
grupo de poucas pessoas capazes de ordenar a vida seguindo a escolha deles.
Durante esse tempo, não devem permitir que façam promessas; também não
obrigarão ninguém a permanecer e agirão sempre com medida. As crianças
serão ensinadas quando for oportuno; segundo os recursos e a disposição dos
lugares, devem-se ensinar os primeiros rudimentos, explicando as coisas com
maior ou menor profundidade conforme a capacidade delas. [...] Para deter-
minar algumas questões, é útil falar pouco e com reflexão; ao contrário, para
estimular as almas ao progresso espiritual, é útil lhes falar longamente, com
ordem e com afetuosa caridade.39

Na relação dos padres da Companhia entre seus pares, também há


um conjunto de diretrizes que conformava a vida jesuíta:

38
Idem, pp. 11-12.
39
Idem, pp. 12-13.
146 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Todo dia, devem tomar uma hora à noite para tornar comum o resultado do
dia e o objetivo do dia seguinte. Para as questões passadas e futuras, devem
pôr-se de acordo por meio de voto ou outra maneira. A cada três dias, cada
um deve pedir aos outros que o corrijam em tudo que lhes parecer útil. O cor-
rigido não deve replicar, a menos que lhe seja pedido que explique o que foi
objeto de correção. No dia seguinte, outro padre pedirá que o corrijam e assim
por diante. Desse modo, todos poderão ajudar-se com toda a caridade e para
maior edificação em toda parte. Manhã, resoluções; duas vezes por dia, exame.
A vocação da Companhia não permite que o padre se abstenha de relaciona-
mentos com outras pessoas.40

Tais diretrizes e recomendações podem ser encontradas no exame de


algumas cartas escritas por Inácio de Loyola, como a “carta aos compa-
nheiros enviados ao Concílio de Trento”, de 1546, escrita por Inácio em
Roma. Tendo em vista que a Ordem era ainda muito nova e não possuía
as Constituições aprovadas, Inácio procura fazer recomendações éticas ge-
rais aos leitores da carta, em um esforço que buscava a todo momento unir
o aspecto retórico do ministério da palavra ao ético das tarefas apostólicas.
Cabe aqui uma citação dos primeiros cinco pontos elencados na carta:

Quanto aos relacionamentos com os demais:


1. Se os relacionamentos e as conversas com muitas pessoas, em vista de sua
salvação e proveito espiritual, permitem, Deus ajudando, um fruto subs-
tancial, este tipo de relações pode, pelo contrário, se não estivermos
vigilantes e nos faltar ajuda de Nosso Senhor, causar sério prejuízo a nós
e a todos.
Como nossa vocação não nos permite nos abster dessas relações com os outros,
quanto mais estivermos atentos e guiados por alguma direção, tanto mais
avançaremos tranquilamente em nosso Senhor.
Os seguintes pontos poderão, mesmo se tirarmos alguma coisa ou substituir-
mos por outra, nos ajudar em nosso Senhor.
2. Quando eu tiver de falar, serei lento, refletido, cheio de amor, sobretudo
quando for o caso de decidir questões das quais trata ou possa vir a tratar
o Concílio.

40
Idem, pp. 13-14.
Pedro Brocco | 147

3. Sendo lento para falar, terei o costume de escutar e calma, a fim de pene-
trar e de conhecer os pensamentos, sentimentos e vontades dos que falam,
para poder melhor responder ou não dizer nada.
4. Falando de assuntos do Concílio ou outros, sejam dadas as razões dos pon-
tos de vistas opostos, para não tomar ares de se apegar ao próprio parecer,
esforçando-se por não deixar ninguém mal satisfeito.
5. Não citarei a autoridade de nenhuma pessoa, sobretudo se for de alta ca-
tegoria, salvo em questões examinadas maduramente. Vou adaptar-me a
todos sem apegar-me a ninguém.41

Pode-se localizar nesta carta, fundamental para a leitura da estrutura


comportamental jesuíta, ao menos dois pontos realçados em itálico: o pri-
meiro deles (“Como nossa vocação não nos permite nos abster dessas
relações com os outros”) é o traço que liga a Ordem jesuíta a outras ordens
regulares com vocação apostólica, é dizer, mais voltada à sociedade, à atu-
ação junto ao âmbito social e urbano. Tais ordens, como a franciscana e a
dominicana, nascem no período de expansão do comércio burguês e no
florescimento dos primeiros grandes centros urbanos. As ordens mendi-
cantes possuíram assim uma ligação umbilical com o desenvolvimento
material das sociedades medievais: não é uma mera coincidência ter a or-
dem franciscana florescido na Itália do século XIII. É na Itália do umbral
da Baixa Idade Média, pré-renascentista e renascentista, que ocorrem os
primeiros ciclos de acumulação sistêmica do capitalismo. Já a ordem do-
minicana, tendo seu fundador na pessoa de Domingos de Gusmão,
espanhol, encontra na circulação entre a França e a Itália condições para a
fundação da Ordem dos Pregadores. Tais ordens regulares fizeram parte,
assim, de uma estratégia da Igreja para rearranjar os mecanismos de pre-
gação e aproximação aos fiéis, visando sua conversão e conservação42. São

41
LOYOLA, Inácio de. Écrits. Paris: Desclée de Brouwer, 1991. Trad. brasileira: Cartas Escolhidas. São Paulo: Edições
Loyola, 2008, p. 82. Grifos meus.
42
Até este ponto, a Igreja aparecia como instituição fundamental e fundante da cultura europeia, ao caucionar o
surgimento das Universidades e da sistematização das ciências produzidas pelo âmbito universitário. Assim, racio-
nalismo e empirismo produzem-se por intermédio da circulação de pessoas e ideias pela Europa. Assim também são
criadas e sistematizadas as metodologias de indagação e de leitura da natureza. As ordens regulares desenvolvidas
em monastérios e cenóbios haviam legado à Europa a conservação e a tradução de inúmeras obras e tratadas do
mundo antigo, helênico e latino, em um momento em que a Europa via-se reduzida a uma colcha de retalhos de
povos rurais e semi-nômades, incapazes de levar adiante tal empreitada de modo organizado. O objetivo de uma
148 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

motivações que ainda animam a Companhia de Jesus, também animada


pelas novas condições materiais de século XVI, já diferentes das que fran-
ciscanos e dominicanos encontraram: abertura de novas rotas comerciais
com o Oriente, descoberta de novas terras e povos e deslocamento do cen-
tro hegemônico de acumulação do capital para as monarquias ibéricas, que
atingiam então o seu ápice econômico e militar.
O segundo ponto realçado (“Vou adaptar-me a todos sem apegar-me
a ninguém”) apresenta a sutileza ética fundamental dos jesuítas em sua
relação com a alteridade e com os povos e culturas estrangeiros. Do Mara-
nhão e Grão-Pará ao Japão, passando pelo Peru e pela Nova Espanha, os
padres da Companhia buscarão, em primeiro lugar, adaptar-se às culturas
nativas, compreendendo-as e lendo-as a partir de sua racionalidade in-
terna, para somente depois agir sobre elas. Tal ação sobre as culturas
estrangeiras visava o objetivo da conversão desses povos à cristandade e
sua inclusão no orbis Christianus, em um mundo totalmente convertido
ao cristianismo católico. As estratégias e metodologias, no entanto, sofre-
rão variações de acordo com cada sociedade. O Brasil de Nóbrega de modo
algum pode ser comparado ao Japão de Fróis. Todavia, ambos os padres,
fazendo parte da mesma Ordem e de acordo com os mesmos objetivos,
fazem parte de um mesmo projeto de civilização. O conceito de civilização
aponta aqui para seu sentido no Império romano: o de civilitas, de poder
político organizado apto a fundar um horizonte de sociabilidade coorde-
nada.
Este último ponto referente à adaptação a todos sem o apego a nin-
guém, ainda que aparecendo aqui na análise de uma carta de Inácio aos
jesuítas que se encaminhavam ao Concílio de Trento e possua uma relação
mais próxima com o comportamento na dinâmica conciliar, revela carac-
terísticas, como se pretende sustentar, relativas ao modo de proceder dos
jesuítas em relação ao próximo. Essa observação torna-se fundamental
quando se analisa a forma de procedimento da Companhia de Jesus acerca

maior circulação do conhecimento mediante a fundação da Universidade alia-se ao surgimento das novas ordens
regulares, urbanas e abertas à ação apostólica direta na sociedade.
Pedro Brocco | 149

das estratégias de conversão: catequese, educação e aldeamentos onde tal


estratégia pode ser implementada; acomodação e tentativa de cooptação
das elites onde a penetração da Ordem se faz mais difícil. Pode-se correta-
mente também supor que o sintagma “não apegar-se a ninguém” revela
um desapego dos jesuítas pelas identidades nacionais: a Companhia com
efeito é internacionalizada, com atuações coordenadas e planejadas ao re-
dor do mundo. Hierarquicamente rígida, sem dúvidas; mas muito móvel
e dúctil em seus limites territoriais, o que também revela sua ambição ci-
vilizacional (e política). Um motivo não pouco relevante quando se
analisam sua expulsão dos territórios ibéricos e o contexto de sua extinção
no século XVIII. As motivações declaradas foram variadas e muitas ligando
os jesuítas a comerciantes ávidos que não pagavam seus impostos devido
à imunidade tributária de que gozava a Ordem43.
Não obstante se falar aqui de modo geral em “acumulação capita-
lista”, “comércio”, “capitalismo”, “burguesia”, etc., termos que remetem às
teorias de economia política que sistematizaram o uso destes termos, não
é razoável projetar sobre os membros da Companhia de Jesus e sobre os
aparatos administrativos das monarquias ibéricas a pecha de capitalistas
no sentido moderno: sentido que faz acompanhar a figura do capitalista
moderno um conjunto de estruturas comportamentais ligadas à tomadas
de decisão e a atitudes voltadas ao utilitarismo e ao hedonismo.
A Companhia de Jesus faz parte de um projeto de expansão comercial
ultramarina. Faz parte também de uma tradição filosófica e teológica, a
Escolástica, com sua doutrina do poder católico corporativo regido por me-
táforas de base como a de corpo místico. Sendo corporativo, formava-se
por relações pessoais e divisões sociais organizadas por privilégios orien-
tadas para a livre submissão ao princípio ordenador do poder político, o
rei. Os padres da Companhia jamais atuaram em direção a uma configu-
ração política que não esta. Em sua forma mais bem-acabada, a doutrina
do poder político católico jesuíta, em Francisco Suárez, aponta para este

43
De fato, a Companhia possuiu atividades mercantis, quando se decidiu que iria financiar suas próprias atividades.
150 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

caminho da servidão livre a partir do amor e caridade e, caso não os haja,


pela coação:

A liberdade cristã não consiste em estar isentos das justas leis humanas, nem
em estar imunes da justa coação do castigo dos pecados quando se cometem
contra a paz e a justiça; mas consiste em uma servidão livre, por amor e cari-
dade, que não contradiz o regime humano, mas antes o ajuda, se efetivamente
existe, e se não existe, a supre com coação.44

Tal é também a orientação que Nóbrega antecipa quando de seu


planejamento da colonização e conversão dos nativos no Brasil.
Talvez o principal pesquisador e comentador de Nóbrega em língua
portuguesa seja o padre jesuíta Serafim Leite, autor da monumental His-
tória da Companhia de Jesus no Brasil, em dez volumes. Para a construção
deste trabalho, a opção será a de reconhecer o grande mérito do exame e
análise das fontes feitas por Serafim Leite, consistentes em cartas e ma-
nuscritos produzidos pelos jesuítas no Brasil entre 1549 e 1760 e, ao
mesmo tempo, operar uma separação em relação ao pano de fundo religi-
oso e ideológico revelado pela análise crítica da obra de Leite por parte de
comentadores e estudiosos da Companhia de Jesus no campo laico e uni-
versitário, como Luiz Felipe de Alencastro e João Adolfo Hansen. O objetivo
será aqui nesta seção cotejar a visão de Serafim Leite com a de João Adolfo
Hansen, retomando um caminho já realizado por este em seu livro sobre
Nóbrega. O esforço se justifica dentro do pano de fundo de análise da fun-
ção política das estratégias de conversão, por nós chamada de uma
psicagogia: governar, administrar uma nova forma de vida e produzir sú-
ditos de Roma e de Lisboa.
Esta característica mais ideológica da atuação dos jesuítas não inva-
lida aquela outra relativa à implantação do humanismo ocidental na
América, bem como a da antecipação e mesmo de um rudimentar surgi-
mento da etnografia comparada na Europa, desenvolvendo a tradição

44
SUÁREZ, Francisco, S.J. Defensa de la Fe Católica y Apostólica contra los Errores del Anglicanismo. Reproducción
anastática de la edición príncipe de Coimbra 1613. Versión Española por José Ramón Eguillor Muniozguren, Madrid,
Instituto de Estudios Políticos, 1970, 4v., v. III, IV. In: HANSEN, op. cit., p. 61.
Pedro Brocco | 151

representada por historiadores clássicos como Heródoto, e aqueles que,


como Aristóteles, evocam a figura do bárbaro ou estrangeiro45. A Compa-
nhia de Jesus representa, neste sentido, o primeiro grande projeto de
atuação concertada sobre formas de vida estrangeiras, uma tentativa
(sempre incompleta) de compreendê-las por dentro e retranscrevê-las em
linguagem europeia, com todos os desdobramentos daí decorrentes.
João Adolfo Hansen, em sua análise histórica do contexto da chegada
da Companhia de Jesus ao Brasil, trabalha com o conceito de “condiciona-
mentos históricos da ação missionária do Pe. Manuel da Nóbrega no
Estado do Brasil”46. Reconhecerá que, quando a Companhia chega do Bra-
sil em 1549 para fazer parte da implantação do governo geral, projetado
para centralizar as bases administrativas, fazendárias e militares da explo-
ração sistemática do plantio de açúcar no Estado do Brasil, o “capitalismo
monárquico português” encontrava-se em declínio do ponto de vista de
sua hegemonia global. Arrimado no importante trabalho de Manuel Nunes
Dias sobre o tema47, Hansen evoca a bela imagem do que foi a expansão
ultramarina de Portugal no século XV: a alegoria do historiador português
Manuel Nunes Dias, “a luta do mar e da caravela contra o deserto e a ca-
ravana”48.
Manuel Nunes Dias, retomado por Hansen, mostrará o circuito co-
mercial e econômico que impulsionou as expedições ultramarinas
portuguesas: de Lisboa à Baviera, passando pela Antuérpia.
Em 1415, tendo em vista o ouro africano transportado pelas carava-
nas transsaarianas dos nômades cameleiros, a Coroa portuguesa consegue
obter financiamento de banqueiros e mercadores portugueses, italianos e
alemães para incursionar militarmente contra Ceuta, cidade do Marrocos.

45
Cf. neste sentido HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2014.
46
HANSEN, op. cit., p. 52.
47
DIAS, Manuel Nunes. O Capitalismo Monárquico Português (1415-1549). Contribuição para o estudo das origens
do capitalismo moderno. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra – Instituto de Estudos Históricos
Dr. António de Vasconcelos, 1964, 2 v.
48
HANSEN, op. cit., p. 52.
152 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Exitosa a campanha militar, Portugal passa a controlar o Estreito de Gi-


braltar, além de ter posto fim às invasões muçulmanas na Península
Ibérica, garantindo o início do ciclo de expansão ultramarina primeira-
mente pela África, pelas caravelas do Infante D. Henrique49.
As navegações que vão dilatando a Fé e o Império e que inspiram Os
Lusíadas de Camões, em 1572, perseguiam um objetivo econômico e polí-
tico de controle das regiões africanas produtoras de ouro e especiarias,
como a pimenta malagueta. Além da pimenta, os portugueses começam a
adquirir também escravos, madeiras de lei, marfim, goma, peles, plumas
e ouro50. Tem início aí o lucrativo circuito de comercialização de escravos
africanos encetado por Portugal nos séculos seguintes. O circuito de com-
pra e financiamento português então se dava via Antuérpia:

Por volta de 1500, compram escravos negros ou sobas ou régulos do Benim,


que capturam enormes quantidades deles nas contínuas guerras intertribais.
Os portugueses pagam por peça cerca de 12 ou 15 manilhas, argolas de latão
ou cobre. Os corretores de Lisboa então adquirem esses metais em Antuérpia
e em cidades do sul da Alemanha, como Augsburg e Nuremberg. Na Costa da
Mina, os portugueses revendem os escravos pagos com as manilhas para ou-
tros africanos, recebendo em ouro. Na Mina, os negros eram revendidos pelo
dobro do valor que tinham em Lisboa, o que era negócio bastante lucrativo
para a Coroa portuguesa, os comerciantes e os banqueiros de Flandres e da
Alemanha. A maior parte do ouro das trocas provinha principalmente da
Guiné, sendo transferida para o Norte da Europa em pagamento das compras
portuguesas de latão, cobre e prata. A prata vinha principalmente das cidades
alemãs e era moeda usada pelos feitores portugueses para pagar as especia-
rias, como a pimenta-do-reino, na Ásia.51

Segundo Hansen, Manuel Nunes Dias demonstra que o ouro africano


e as especiarias asiáticas intensificam a circulação dos metais – prata, latão
e cobre alemães – e dos tecidos flamengos, usados para o luxo da corte

49
Idem, ibidem.
50
Idem, p. 53.
51
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 153

portuguesa, produzindo grande demanda de capitais mobiliários caracte-


rizada pelo uso progressivo do crédito no estrangeiro, de modo que no
final do século XV, uma nova cidade surge em Lisboa, cuja população passa
a se dedicar quase exclusivamente ao comércio exterior52.
O período heroico das navegações ultramarinas portuguesas se dá na
segunda metade do século XV, quando Portugal passa a dominar o ouro
da Guiné e a se lançar na conquista dos mercados da África oriental, dos
entrepostos da Malásia e dos mercados do Pacífico asiático. Entre 1482 e
1521, ano da morte de D. Manuel, Portugal domina os mares53.
Neste momento, a Coroa portuguesa tem o monopólio do ouro afri-
cano e da pimenta asiática. Funda-se a Casa da Índia, órgão de controle do
tráfico ultramarino, e organiza-se na Antuérpia sua principal agência de
captação e de financiamentos para a empresa colonial.
A partir de 1521, começa a ocorrer um declínio na supremacia militar
e econômica portuguesa. As causas articuladas por Manuel Nunes Dias
apontam para o rígido monopólio da Coroa que prejudicava a livre inicia-
tiva popular, ao mesmo tempo em que o capitalismo monárquico
subordinava o interesse econômico ao interesse religioso, o que se ilustra
pela expulsão dos mouros e judeus, ainda em 1496, durante o reinado de
D. Manuel, fazendo-os levar para os Países Baixos, França e norte da África
capitais que seriam preciosos para a continuidade da expansão da empresa
colonial, além da posterior implantação do Santo Ofício da Inquisição no
Reino, por D. João III, em 1535.
É neste contexto de declínio que surgem as medidas religiosas de D.
João III ao implantar o Santo Ofício e ao dar seu fundamental patrocínio
aos oito fundadores da Companhia de Jesus (Inácio de Loyola, Francisco
Xavier, Simão Rodrigues, Alonso Salmerón, Diego Lainez, Pierre Favre,
Claude Jay e Nicolas Bobadilla), os quais haviam tentado sem sucesso obter
o patrocínio dos reis da Inglaterra, da França e da Espanha.

52
Idem, pp. 53-54.
53
Idem, p. 54.
154 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

A concorrência internacional aumenta, os gastos suntuários da corte


continuam, além das pesadas dívidas relativas ao empreendimento colo-
nial, que passam a ter dificuldades de pagamento, e aos poucos a Coroa
portuguesa vai perdendo militarmente o monopólio comercial sobre a Ín-
dia. O afluxo de metais preciosos do México e do Peru passam a retrair o
mercado de metais alemães. Enfim, com D. João III, a Coroa torna-se im-
potente na manutenção do monopólio do tráfico e decreta a falência da
feitoria oficial da Antuérpia em 1548 e o fechamento da Casa da Índia em
154954, mesmo ano da chegada da armada que dá início à implantação do
governo geral do Estado do Brasil, com apoio da Companhia de Jesus.

Como braço direito da Coroa, a Companhia de Jesus passou a controlar todo o


ensino elementar, colegial e universitário português, no Reino e nas colônias
ultramarinas, restabelecendo a Escolástica em chave contrarreformista em to-
dos os programas de estudo. A Índia passou a ser governada por corruptos e
os abusos colonialistas causaram inumeráveis guerras com os rajás indianos,
esgotando as finanças do Reino.55

Não condiz com a realidade objetiva, portanto, a leitura romântica de


que a Companhia de Jesus chega ao Brasil no auge do poderio português
no século XVI, trazendo para a América enfim a boa civilização cristã. Na
verdade, o Estado do Brasil ocupava papel secundário nos planos comer-
ciais e políticos de Lisboa. A maior atenção dada ao Brasil pela Coroa
coincide com o endividamento da empresa mercantil ultramarina e a sub-
sequente derrocada de sua hegemonia nos mares mundiais. Voltada a
partir de 1549 para o Brasil, visará fundar nas possessões americanas uma
empresa colonial agroexportadora de produtos tropicais, principalmente
o açúcar, além de utilizar a colônia no lucrativo tráfico de escravos africa-
nos, a partir do sistema do Atlântico Sul, que ligava Luanda a Salvador e
ao Rio de Janeiro, que por sua vez ligava-se a Buenos Aires.

54
Idem, p. 57.
55
Idem, p. 56.
Pedro Brocco | 155

Entretanto, é preciso que se ressalte o seguinte ponto: no que tange


à compreensão histórica da estrutura comportamental (e aqui embute-se
o sentido de ética) da Companhia de Jesus a animar o espírito do século
XVI, há que se ter um distanciamento cauteloso em relação a interpreta-
ções de fatos e eventos cuja definição de seu significado histórico nos
pareça hoje muito clara, como é o caso da análise histórica da expansão
comercial das potências ibéricas. Do ponto de vista comercial e material,
tais expansões foram animadas pela descoberta de novas rotas comerciais
que levassem às Índias e implicassem uma supremacia militar, econômica
e política para o Estado que as executasse. Havia, no entanto, outras mo-
tivações, talvez mais determinantes do que esta: aquela que diz respeito à
expansão da forma de vida cristã e o subjugar das culturas infiéis, além da
conversão dos estrangeiros (gentios): fruto de uma outra forma de com-
preender o tempo, a pessoa humana, as relações sociais, o poder, etc.
Em Os Lusíadas, poema épico fundante da cultura lusófona, há um
excelente material de análise das motivações da expansão ibérica para o
Oriente. Em não poucas passagens, fica clara a tensão envolvendo Oci-
dente cristão e Oriente ora infiel, mouro, ora estranho, exótico. Porém do
ponto de vista da justificativa expansionista portuguesa, Luís de Camões
parece ser muito claro ao colocar na frente de todos os motivos o da dila-
tação do cristianismo, como se observa em dois trechos do Canto Sétimo:

Vós, Portugueses, poucos quanto fortes,


Que o fraco poder vosso não pesais;
Vós, que, à custa de vossas várias mortes,
A Lei da Vida eterna dilatais:
Assi do Céu deitadas são as sortes
Que vós, por muito poucos que sejais,
Muito façais na santa Cristandade,
Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!

E, também, mais à frente:

Ó míseros Cristãos, pola ventura


Sois os dentes, de Cadmo desparzidos,
156 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Que uns aos outros se dão à morte dura,


Sendo todos de um ventre produzidos?
Não vedes a divina Sepultura
Possuída de Cães, que, sempre unidos,
Vos vem tomar a vossa antiga terra,
Fazendo-se famosos pela guerra?56

Nestes dois trechos pode-se vislumbrar duas linhas de força centrais


na construção da epopeia de Camões: a que coloca Portugal na dianteira
da cristandade europeia a lançar-se ao mar para dilatar a vida cristã, a Lei
da Vida eterna e, de outro lado, uma feroz rivalidade frente às outras reli-
giões monoteístas e aos gentios: “Vós, que esperamos jugo e vitupério /
Do torpe ismaelita cavaleiro / Do Turco Oriental e do Gentio / Que inda
bebe o licor do santo Rio”57.
Camões coloca Portugal liderado por Vasco da Gama, e ele próprio,
Camões, sobre dois eixos principais: do lado cultural, nas disputas milita-
res pela vitória da melhor e mais verdadeira religião, e do lado temporal,
também cultural, de supremacia de uma forma de vida cristã, produtora
dos mais sublimes feitos capazes de serem cantados e escritos. Ilustram
essas afirmações as famosas três primeiras estrofes do Canto Primeiro:

As armas e os barões assinalados


Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas


Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,

56
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto: Porto Editora, 2014, pp. 239-241.
57
Idem, Canto Primeiro, p. 67
Pedro Brocco | 157

E aqueles que por obras valerosas


Se vão da lei da Morte libertando:
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano


As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.58

As três estrofes ou estâncias acima citadas representam três grandes


linhas de força dos Lusíadas: a de colocar Portugal na dianteira da dilata-
ção da cristandade no mundo, edificando “Novo Reino”, a de, assim
fazendo, conservar as gloriosas memórias de reis cristãos construtores no
campo secular da fé e do império cristão frente a outras religiões e cultu-
ras; e, finalmente, a pretensão de escrever um poema épico capaz de fazer
frente a grandes cânones da cultura clássica, como os gregos (Homero) e
troianos (referência à Eneida de Virgílio) e as respectivas navegações que
narram, Homero com Ulysses ou Odisseu; Virgílio com Eneias. Camões
visa narrar o heroico percurso de Vasco da Gama e sua esquadra até a
Índia, em um esforço ao mesmo tempo militar e literário: Alexandre e Tra-
jano dividem a estrofe com Homero e Virgílio. Tal é, de fato, a posição de
Portugal até o início de seu declínio geopolítico: a de estar na vanguarda
econômica e militar, lançando-se ao arrojo da nova rota comercial na Índia
via périplo africano, o que não custou pouco investimento em tecnologias
náuticas e em planejamento. Camões aparece, assim, como um poeta fun-
damentalmente patriota, sublinhando os feitos portugueses nas letras de
sua épica.

58
Idem, p. 65.
158 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Pode-se dar razão a comentadores de Camões como Emanuel Paulo


Ramos, organizador da edição aqui consultada, quando diz que “o real
grandioso” de que se ocupa Camões diz respeito a dois mundos: o mundo
material, abrangendo os grandes fenômenos observáveis pelos sentidos:
batalhas, cercos, tempestades, etc.; e o mundo moral, reunindo estados
psicológicos das pessoas que participam da ação “ou durante ela são re-
cortadas ou pressentidas em profecia”59: tal é o caso de lançar mão de
certos personagens capazes de transmitir ideias e conceitos: D. Afonso
Henriques é evocado para transmitir ímpeto épico; já Inês de Castro, no
Canto Terceiro, aparece como personagem histórico transmitindo passivi-
dade e dominância por sentimentos elevados60. Não obstante essa divisão
no interior da obra, pode-se sustentá-la também em relação ao que foi
afirmado logo acima: Camões enquanto sujeito histórico produz sua épica
em um Portugal dividido entre o mundo material, do comércio e da supre-
macia geopolítica ante seus rivais e, ao mesmo tempo, o mundo moral ou
aquele que forma a estrutura psicológica de seus agentes, movidos por
uma ingente e ígnea vontade de dilatar os limites do catolicismo pelo
mundo, subjugando militarmente os resilientes e trazendo para si os con-
vertidos. Também faz parte desta dinâmica, e de forma muito peculiar, a
Companhia de Jesus. Fundada por um ex-militar, é certo afirmar que a
Companhia de Jesus manteve uma estrutura muito próxima da militar:
rígida hierarquia, rigorosa formação, incursões em locais distantes e hostis
em operações nomeadas de “missões”.
Um jesuíta devia ser um exemplo de preparo teológico e humanista,
capaz de dominar as mais refinadas capacidades voltadas às letras, à teo-
logia, às ciências e à tradução. Envolvida em operações de alto nível de
dificuldade de consecução, a Companhia produziu ao mesmo tempo pa-
dres tradutores capazes de descrever não apenas o mundo físico que se
descortinava às potências europeias, mas as sociedades e os costumes ali
desenvolvidos. Tradutores completos, humanistas e teólogos, vivendo em

59
RAMOS, Emanuel Paulo. Introdução literária a Os Lusíadas, op. cit., p. 44.
60
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 159

uma (quase) estrutura militar: talvez aí se possa buscar o vigor e o sucesso


da Ordem nos dois séculos em que atuou mais diretamente no campo da
tradução e conversão das culturas estrangeiras.
Um interessante exemplo da inclinação da Companhia de Jesus de
produzir jesuítas capazes de transitar desde a mais longínqua tribo no Ma-
ranhão e Grão-Pará até as Cortes mais importantes está na pessoa do
padre Antonio Vieira. Nascido em Portugal e educado pelos jesuítas na Ba-
hia, Vieira realiza várias travessias do Atlântico entre Brasil e Portugal,
torna-se conselheiro do rei D. João IV e confessor de sua esposa, rainha e
futura regente, D. Luísa de Gusmão; é enviado para várias missões diplo-
máticas pela Europa, notadamente Inglaterra, Holanda e França, além de
passar um período em Roma, quando consegue anular suas penas e con-
denações exaradas pela Inquisição Portuguesa. Vieira, ao passar por Roma,
é capaz de deslumbrar a Cúria com seus sermões e discursos, os quais
também o fazem se aproximar da ex-rainha da Suécia Cristina Vasa, fa-
mosa por sua proximidade com os mais altos círculos intelectuais e
científicos europeus de sua época, tendo mantido contato com pessoas
como Blaise Pascal, Pierre Gassendi, Gabriel Naudé, Gottfried Leibniz e
René Descartes.

Figura 5: Jesuítas enfrentando os turcos na batalha de Lepanto. Museu Nacional da Colômbia, Bogotá.
160 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

A Companhia de Jesus, fundada no mesmo período histórico em que


Camões participa das incursões às Índias como soldado e escreve sua po-
esia épica, compartilha com Camões dos mesmos pressupostos de sua
ação: tanto cultural quanto militar. Anima a Companhia de Jesus o desejo
de igualmente dilatar a fé cristã pelo mundo quanto o da supremacia de
uma civilização sobre outras. O método a ser utilizado, no entanto, não
será o de subjugar pelas armas, mas pela conversão.
O subjugar pela conversão tema central deste trabalho, envolve uma
rede de posturas e saberes que vai sendo formada e atilada ao longo dos
primeiros séculos de contato ibérico com o Novo Mundo e com o Oriente.
Por esse motivo foi realizada a análise comparada de dois jesuítas ibéricos
contemporâneos, os portugueses Manuel da Nóbrega e Luís Fróis, para
uma análise estrutural a respeito de elementos em suas obras que apon-
tem para os métodos e técnicas de conversão em dois contextos bastante
distintos.
A conversão não implica somente na criação de qualquer espécie de
docilidade na alma dos convertidos, mas em refazer suas coordenadas
imaginárias e simbólicas, primeiro mediante uma aproximada compreen-
são de seu mundo, seus usos e costumes, além de seu ambiente físico, para
depois realizar um processamento e conversão do registro estrangeiro em
clave europeia-católica. Pode-se supor de início a supremacia cultural eu-
ropeia, em relação à qual seriam os padres os representantes e porta-
vozes. É verdade que em relação às culturas americanas e em alguns luga-
res da Ásia, conseguiu-se com sucesso implantar as principais
coordenadas simbólicas europeias, como o vernáculo, porém não é ver-
dade que o intuito fosse o de apenas subjugar aqueles povos em nome de
uma cultura “europeia” ou de um país específico: o interesse era antes
mais sofisticado e religioso. Dentro dos limites da Europa, havia a guerra
intestina entre católicos e protestantes: tratava-se então de recolocar a
conversão dos gentios no interior do planejamento e dos objetivos triden-
tinos contrarreformistas da Igreja Católica, utilizadora da Companhia de
Jesus como um mecanismo de reação à Reforma.
Pedro Brocco | 161

Para uma melhor compreensão destes pontos, é fecunda a compara-


ção de, novamente, um trecho da carta supracitada de Inácio de Loyola e,
em seguida, dos comentários de João Adolfo Hansen. Escreve Inácio:

Enfim, se se trata de relações e conversações sobre matérias de doutrina ad-


quirida ou infusa e eu queira falar delas, será muito precioso não considerar
meu lazer ou a falta de tempo que me apressa, em outros termos, minha co-
modidade. Mas eu me regrarei de acordo com a comodidade e a situação de
meu interlocutor a fim de envolvê-lo para a maior glória de Deus.61

E logo depois segue-se a interpretação de Hansen do referido trecho:

Como se pode inferir do exemplo, os pressupostos, meios e fins das normas e


práticas jesuíticas desse tempo não são os pressupostos, meios e fins liberais
das sociedades de classes estabelecidas no Ocidente a partir do século XVIII.
Na prática catequética e educacional de Nóbrega, não se encontram as noções
que hoje integram as conceituações correntes de educação, ensino, instrução,
aprendizagem, como psicologia, individualidade, formação, democracia, cida-
dania, igualdade de direitos, livre-concorrência, liberdade de expressão,
autonomia, reflexão crítica, direitos humanos, público, opinião pública, etc. No
Estado do Brasil, a catequese e o ensino são práticas socioculturais do chamado
“capitalismo monárquico português” na nova situação política mundial deter-
minada pelos Descobrimentos, pela Reforma protestante, pela
Contrarreforma e pela disputa comercial e política das potências da Europa
pelas possessões coloniais. Iniciado no Estado do Brasil em um momento de
aguda crise econômica de Portugal, o programa concilia os interesses da Com-
panhia de Jesus, da Coroa portuguesa e dos coloniais luso-brasileiros.

Importa ressaltar aqui, inicialmente, do trecho de Hansen, de funda-


mental importância metodológica para este e outros trabalhos que
transitam pelo período colonial, o fato de que o ensino e a catequese são
práticas socioculturais levadas adiante por interesses convergentes e im-
bricados das Coroas ibéricas e da Companhia de Jesus, e são, ensino e
catequese, além de práticas, um programa. O interesse deste trabalho pelo

61
Trecho presente em HANSEN, op. cit., p. 14 e em LOYOLA, op. cit., p. 82: aqui, percebe-se uma ligeira mudança
no sentido do texto: a tradução optou por verter a última frase do trecho da seguinte forma: “Mas eu me regularei
pela comodidade e a situação do meu interlocutor, a fim de levá-lo a servir a maior glória de Deus”. Grifos meus.
162 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

estudo, aqui neste capítulo, pelo início da implementação de tal programa,


diz respeito à sua importância para a conformação de uma estrutura de
comportamento caucionada por uma estrutura institucional. Tal estrutura
institucional que cauciona e fomenta a estrutura comportamental diz res-
peito às instâncias jurídicas, educacionais e outras de importância na
administração colonial. O próprio direito, assim, faz parte deste programa.
Igualmente importante é o fato de que no rol dos objetivos da expan-
são territorial das Coroas ibéricas figurava o da propagação do
cristianismo aos povos infiéis, objetivo em relação ao qual a Companhia
de Jesus incide de forma privilegiada. O ethos jesuíta buscava um de seus
sustentáculos na disciplina militar, tendo o próprio Inácio sido militar an-
tes de se converter e fundar a Ordem.
Buscando aliar a disciplina militar a uma robusta preparação e trei-
namento nas letras e na teologia, a Companhia enviava os padres mais
eruditos para serem superiores das missões. É o caso do primeiro Provin-
cial jesuíta do Brasil, padre Manuel da Nóbrega. Nóbrega estudou em
Salamanca e em Coimbra, tendo obtido o grau de bacharel em cânones.
Forte em direito canônico e filosofia, possuindo como mestre Martín de
Azpilcueta Navarro, Nóbrega tentou tornar-se Lente (professor) da Uni-
versidade, mas não obteve sucesso nas provas de leitura devido ao fato de
ser gago. Talvez para enfrentar tal defeito na fala, Nóbrega é ordenado
pela Companhia de Jesus aos vinte e sete anos, em 1544, tornando-se pre-
gador. Após viajar por Portugal e Espanha pregando o Evangelho, recebe
um convite do rei D. João III para juntar-se à armada de Tomé de Sousa
que partia para o Brasil em 1549. Chegam com ele os padres jesuítas Leo-
nardo Nunes, João de Azpilcueta Navarro (sobrinho de Martín de
Azpilcueta Navarro), Antônio Pires e os irmãos Vicente Rodrigues e Diogo
Jacome. Nóbrega desde o início possui atuação muito próxima ao poder
secular de Tomé de Sousa, o que continua com seus sucessores, sobretudo
Mem de Sá, do qual se torna amigo e conselheiro. Nessa atuação conjunta
dos poderes secular e espiritual se depreende a importância do direito po-
sitivo (secular) para a consecução dos fins da conversão da Companhia de
Pedro Brocco | 163

Jesus, e vice-versa. Como afirma Nicola Gasbarro62, é impossível separar a


faceta religiosa das missões da faceta política e civilizacional, o religioso e
o civil. Ao longo da gestão conjunta de Nóbrega e Mem de Sá, percebe-se
um esforço de extinção da prática da antropofagia através de leis penais
mais rígidas contra a prática, com a instalação de um pelourinho em Sal-
vador. Nóbrega também pede que o governador-geral baixe leis para a
proteção dos índios, visando coibir sua escravização sem limites legais (os
da guerra justa). Com isso, o padre abre espaço para o início do uso de
mão-de-obra escrava africana, tendo inclusive apoiado tal expediente.
O exame de suas cartas e de seu diálogo composto para retratar as
agruras da conversão no Brasil da segunda metade do século XVI – período
de análise deste trabalho – será fundamental para os capítulos subsequen-
tes. Antes de analisar propriamente o Diálogo sobre a conversão do gentio,
o caminho será o de uma contextualização feita a partir das Cartas do Bra-
sil, conjunto de cartas escritas por Nóbrega entre 1549 e 156063.

2.5 As Cartas do Brasil: o índio como papel branco

a. Primeiros anos: 1549-1551

As cartas de Nóbrega dividem-se, além do período aqui marcado, pe-


los seus destinatários. Nóbrega envia muitas cartas para o Provincial
jesuíta de Portugal e fundador da Companhia padre Simão Rodrigues de
Azevedo, mas encaminha também epístolas aos padres e irmãos da Com-
panhia; ao seu mestre em Coimbra, Martín de Azpilcueta Navarro; ao rei

62
“A própria estrutura da crença legitima o pertencimento ‘de direito’ à comunidade humana: é isso que fazem os
missionários, dando uma função ‘civil’ às ‘crenças’ e, portanto, uma perspectiva civilizadora à evangelização”,
GASBARRO, Nicola. “Missões: a civilização cristã em ação”, p. 86, in MONTERO, Paula (Org.). Deus na aldeia: missi-
onários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006.
63
NÓBREGA, Manoel da. Cartas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1988. Doravante, CB. Trata-se de uma coletânea de cartas impressas do padre Nóbrega, publicada em 1886 pela
Imprensa Nacional, com notas de Valle Cabral e Rodolpho Garcia. Reúne cartas dispersas cujos originais encontram-
se na Biblioteca Nacional, na Torre do Tombo, na Biblioteca Pública de Évora, embora seja possível haver muitas
outras cartas de Nóbrega ainda não conhecidas. Tendo vivido até 1570, haveria um período de dez anos não contem-
plado pelas Cartas do Brasil.
164 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

D. João III; a Inácio de Loyola; a Tomé de Sousa e ao infante Cardeal D.


Henrique.
As descrições e os tratados da terra do Brasil tiveram duas notáveis
importâncias: a primeira delas foi a da realização de um inventário da ge-
ografia, clima, vegetação, animais, drogas e gentes, do ponto de vista do
saber científico que se gestava na Europa; a segunda relaciona-se à produ-
ção de um imaginário sobre essas terras, de igual maneira alimentando os
círculos letrados e universitários europeus. Esta segunda importância des-
critiva liga-se a um registro mais literário, o que futuramente ficaria
adstrito aos relatos de viajantes.
Os membros da Companhia de Jesus, no entanto, não eram meros
viajantes e não possuíam a meta de relatar o que viam em terras estran-
geiras para o deleite de uma audiência ávida; eram artífices de uma forma
de vida que ia aos poucos sendo transportada para o Novo Mundo, em
sucessivas camadas que afluíam sobretudo do registro da religião.
O registro religioso se sobrepunha e moldava os registros que hoje
aparecem como sendo o da antropologia, o do direito e o da política. Na
conformação de uma comunidade política orientada por um horizonte
normativo, o registro religioso fornecia as principais coordenadas.
O tom das primeiras cartas de Nóbrega é o de otimismo. Transmite
aos destinatários boas informações sobre as condições da terra, sobre o
clima e sobre a cidade nova que se construía, chamada de Salvador. De
maneira geral, as cartas de Nóbrega apresentam características interes-
santes quando comparadas ao estilo epistolar que caracterizava as
missivas dos membros da Companhia de Jesus, os quais costumavam com-
por cartas edificantes sobre as missões. Nóbrega de fato escreve cartas
mais otimistas e edificantes quando as envia aos colégios ou endereçadas
aos padres e irmãos, provavelmente a serem lidas em voz alta para uma
coletividade. As cartas enviadas a autoridades, porém, como provinciais,
ao rei D. João III bem como a carta enviada a Tomé de Sousa, demonstram
os reais problemas que a Companhia enfrentava na missão do Brasil.
Quando organizadas em seu aspecto retórico-estratégico e analisadas em
Pedro Brocco | 165

conjunto, as cartas de Nóbrega mostram as principais linhas de força que


atuaram a favor e contra a Companhia de Jesus no Brasil: se por um lado
havia um constante apoio declarado da Coroa, por outro surgia uma reni-
tente resistência por parte dos colonos, envolvidos nas atividades
econômicas que logo demandariam uma necessidade cada vez maior de
força de trabalho escrava.
Em relação à conversão dos nativos também se percebe ainda oti-
mismo, embora sejam claros os juízos negativos de Nóbrega sobre os
costumes dos índios, mas também de igual maneira em relação aos costu-
mes dos colonos portugueses.
Logo na primeira carta, enviada ao padre Simão Rodrigues, após a
chegada da armada à Bahia, Nóbrega observa:

Eu prégo ao Governador e á sua gente na nova cidade que se começa, e o padre


Navarro á gente da terra. Espero em Nosso Senhor fazer-se fructo, posto que
a gente da terra vive em peccado mortal, e não ha nenhum que deixe de ter
muitas negras64 das quaes estão cheios de filhos e é grande mal. Nenhum del-
les se vem confessar.65

A queixa de Nóbrega de que nenhum colono, naqueles primeiros


66
dias de presença jesuíta, se confessava, denota que nenhum deles ainda
se sentia constrangido com sua forma de vida e, assim, não havia interna-
lizado qualquer tipo de censura ou sentimento de culpa. Os jesuítas
atuavam nestas filigranas da psicologia humana ao buscar transmitir ao
colono e ao nativo, ao mesmo tempo, a noção de pessoa humana e a de
juízos implicados nas ações, o que levaria à má ação geradora de culpa e

64
Era comum que jesuítas e colonos nestes primeiros anos se referissem aos índios como negros. Cf. MONTEIRO,
John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
65
NÓBREGA, CB, p. 72. Carta a Simão Rodrigues, Bahia, 1549.
66
A carta é escrita depois de 31 de março e antes de 15 de abril, conforme se depreende da análise da carta subse-
quente, também enviada a Simão Rodrigues, quando a certa altura Nóbrega diz: “ontem foi Domingo de Ramos”,
isto é, 14 de abril. Cf. CB, p. 77. A armada de Tomé de Sousa, onde vieram os primeiros jesuítas, partiu de Lisboa no
dia 1 de fevereiro de 1549, chegando à Bahia no dia 29 de março.
166 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

penitência67. O procedimento da penitência era feito através da confissão,


sacramento que havia ganhado nova importância na Contrarreforma tri-
dentina68.
A estratégia de Nóbrega para o planejamento da conversão se dá no
Brasil, nesta segunda metade do século XVI, de modo geral a partir de duas
estratégias: pela força dissuasória dos poderes religioso e secular (compelle
intrare), apostando mais no medo do que na caridade entre os adultos, e
pelo ensino da doutrina cristã às crianças. Neste ensino compreende-se
também o aprendizado da leitura e da escrita, que se fazia nas escholas de
ler e escrever. Fazendo com que as crianças nativas aprendessem a ler e a
escrever, Nóbrega buscava doutriná-las para o batismo:

Desta maneira ir-lhes-ei ensinando as orações e doutrinando-os na Fé até se-


rem habeis para o baptismo. Todos estes que tratam comnosco, dizem que
querem ser como nós, sinão que não tem com que se cubram como nós, e este
só inconveniente têm. Si ouvem tanger á missa, já acodem e quanto nos vêm
fazer, tudo fazem, assentam-se de giolhos, batem nos peitos, levantam as mãos
ao Ceu e já um dos Principaes delles aprende a ler e toma lição cada dia com
grande cuidado e em dous dias soube o A, B, C todo, e o ensinamos a benzer,
tomando tudo com grandes desejos. Diz que quer ser christão e não comer
carne humana, nem ter mais de uma mulher e outras cousas; somente que há
de ir á guerra, e os que captivar, vendel-os e servir-se delles, porque estes desta
terra sempre têm guerra com outros e assim andam todos em discórdia, co-
mem-se uns a outros, digo os contrarios. E’ gente que nenhum conhecimento
tem de Deus. Têm idolos, fazem tudo quanto lhes dizem.69

Em relação à última frase do trecho supracitado, sobre os ídolos, a


edição consultada das Cartas do Brasil apresenta uma observação a res-
peito dos ídolos mencionados por Nóbrega em sua primeira carta70: “É o
que se lê no cód. msc. da Bibl. Nac.; mas os Indios da costa não tinham

67
Cf. DE BOER, Wietse. The Conquest of the Soul: Confession, Discipline, and Public Order in Counter-Reformation
Milan. Leiden: Brill, 2001.
68
PROSPERI, Adriano. Il Concilio di Trento: una introduzione storica. Torino: Giulio Einaudi, 2001.
69
CB, pp. 72-73. Carta a Simão Rodrigues, Bahia, 1549.
70
Na página 73 da edição consultada.
Pedro Brocco | 167

ídolos, como se vê da 9ª carta e de muitos outros documentos contempo-


râneos. Houve, pois, erro de cópia”71. Tal observação não se sustenta por
dois motivos. O primeiro deles é a consulta de fontes coetâneas à carta de
Nóbrega. Hans Staden, em seus escritos, reconhece entre os índios da costa
brasileira a presença de rituais envolvendo ídolos, chamados de maracás:

Os selvagens acreditam numa coisa que cresce de forma parecida a uma abó-
bora. É grande como uma panela de meia pinta e oca por dentro. Eles enfiam
um bastão através dela, recortam um buraco com a forma de uma boca e co-
locam pequenas pedras em seu interior, de modo a fazer um chocalho. Com
isso fazem barulho quando cantam e dançam. Dão-lhe o nome de maracá.
Cada homem tem o seu próprio maracá. [...] Há algumas pessoas entre eles a
que chamam pajés. Eles são ouvidos como aqui se ouvem os adivinhos. Per-
correm o território uma vez ao ano, vão de cabana em cabana e anunciam que
um espírito vindo de muito longe esteve com eles e lhes delegou poder, que
todos os chocalhos – os maracás – poderiam falar e receber poder; se eles, os
pajés, pedirem, essas coisas lhes serão concedidas. Cada qual então faria o voto
de que seu chocalho recebesse poder. Preparam uma grande festa, bebem,
cantam e fazem adivinhações, e se entregam a diversos usos estranhos.72

Os selvagens a quem Staden faz referência eram tupinambás. Há só-


lidas evidências do uso de maracás também entre os tupi-guaranis. Com
apoio no importante trabalho de Guillermo Wilde73, ao analisar a icono-
grafia da missão de Trinidad, no Paraguai, especificamente os frisos
retratando anjos músicos tocando maracás, e também em minha pesquisa
realizada na mesma missão de Trinidad em junho de 2016, torna-se pos-
sível perceber a presença dos maracás na cultura nativa, provavelmente
tendo exercido o mesmo papel daquele observado por Staden entre os tu-
pinambás, mediados pela eficácia simbólica conferida pelos pajés. A
missão de Trinidad possuiu uma construção mais tardia, no início do sé-
culo XVIII e, portanto, fora do recorte histórico desta pesquisa. Porém, a

71
Idem.
72
STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil: primeiros registros sobre o Brasil. Porto Alegre: L&PM, 2013 [1557], Se-
gunda parte, Capítulo 23, “No que acreditam”.
73
WILDE, Guillermo. “El enigma sonoro de Trinidad: Ensayo de Etnomusicología Histórica”. Revista Resonancias
23: 41-66. (Instituto de Música de la Pontificia Universidad Católica de Chile), 2008.
168 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

análise iconográfica apoiada no trabalho de etnomusicologia histórica de


Wilde nos ajuda a compreender a presença e a ressignificação de tal objeto
idolátrico operada pelos jesuítas. O trabalho de Wilde nomeia os frisos dos
anjos músicos de Trinidad como um “enigma sonoro”. Com efeito, algu-
mas figuras angélicas aparecem segurando chocalhos (os maracás) ao lado
de outros instrumentos utilizados para a composição musical das missões,
importantes também para a educação moral dos índios aldeados.

Figura 6: Sequência de anjos músicos em um dos frisos da missão de Trinidad. Da direita para a esquerda, nota-se
que o primeiro e o quinto anjos portam um chocalho ou maracá. Junho de 2016. Arquivo pessoal.

Figura 7: Anjo músico de Trinidad segurando um maracá. A representação de movimento transmitida pela barra
de sua vestimenta dá a ideia de que o anjo pudesse estar dançando. Arquivo pessoal.
Pedro Brocco | 169

A análise iconográfica dos anjos músicos das missões segurando cho-


calhos denotam a importância do objeto para os índios aldeados e a
mudança de perspectiva que a ressignificação jesuíta apresenta: de instru-
mento mobilizado pelos pajés, adversários dos jesuítas na construção da
eficácia simbólica religiosa, para instrumentos musicais tocados por anjos.
Os chocalhos, maracás ou cabaças tinham grande importância no
sentido a elas atribuídos pelos índios. Parece ter figurado de modo mais
ou menos geral e difuso entre os índios da costa e os carijós ou guaranis,
na região sul e no Paraguai (como mostram as fotos da missão de Trini-
dad). Na região do Brasil, os pajés utilizavam as cabaças como espécies de
santos, emulando-lhes voz, geralmente de criança, que falava com os ín-
dios. O padre João de Azpilcueta Navarro, em uma carta, descreve o ritual:

... en mitad de uma plaça teniam hecha una casa grande, y en ella otra, muy
peqña: en la qual tenían una calabaça figurada como cabeça humana muy ata-
viada a su modo, y deziam q ãqe era su scto. y llamavanle Amabozaray que
quiere decir persona que dança y huelga que tenia virtud de hacer que los vie-
jos se tornassem moços, los Indios andávã pintados cõ tintas, aun los rostros,
y emplumados de plumas de diversos colores baylãdo, y haziendo muchos ges-
tos, torciendo las bocas y dãdo aullidos como perros, cada uno traya en la
mano una calabaça pintada diciendo que ãqllos eran sus sanctos, los quales
mãdavã a los Indios no trabajassen porq los mãtenimientos nacerian por si, y
que las flechas yrian al campo a matar la caça. Estas y otras muchas cosas q
eran para llorar muchas lagrimas vi…74

Tal trecho pode ser comparado aos “anjos músicos” de forma inte-
ressante: nos frisos e nos relatos, figuras portam uma cabaça; porém, os
dos frisos aparecem em forma de anjos; os primeiros são índios que apa-
recem comparados a animais (dando aulidos75 como cachorros) e usam a
cabaça de acordo com suas crenças e ritos.

74
Carta de Iuan de Azpilcueta. In: Copia de unas cartas de algunos padres y hermanos dela compañía de Iesus que
escrivieron dela India, Iapon y Brasil a los padres y hermanos de la misma compañía, en Portugal trasladadas de
portugues en castellano. Fuerõ recebidas el año de mil y quinientos y cincuenta y cinco. Optei por manter a redação
original.
75
Aullidos ou aulido: grito de animais, uivo; do castelhano aullido. Cf. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário eti-
mológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010, p. 69.
170 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Outrossim, a nona carta a que faz referência a nota de rodapé, escrita


de Pernambuco para o rei D. João III, ao referir-se à conversão do gentio,
de fato menciona que “em cousa nenhuma crêm e estão papel branco para
nelles escrever à vontade, si com exemplo e continua conversação os sus-
tentarem”76. Nóbrega, nesta parte da carta, mostra ao rei a necessidade de
envio de mais padres da Companhia de Jesus para a conversão do gentio
no Brasil, para isso dizendo que a conversão deste gentio é “mui fácil
cousa, mas sustental-o em bons costumes não póde ser sinão com muitos
obreiros”77. Não parece, assim, que Nóbrega esteja dizendo que os nativos
não possuíam ídolos ou qualquer aparato de crença, apenas que simplifi-
cava a descrição para marcar o verdadeiro objetivo, o do envio de mais
padres da Companhia ao Brasil:

Este Gentio está mui aparelhado a se nelle fructificar por estar já mais domes-
tico e ter a terra Capitão, que não consentiu fazerem-lhe agravos como nas
outras, partes. O converter todo este Gentio é mui fácil cousa, mas sustental-
o em bons costumes não póde ser sinão com muitos obreiros, porque em cousa
nenhuma crêm e estão papel branco para nelles escrever à vontade, si com
exemplo e continua conversação os sustentarem. Eu quando vejo os poucos
que somos, e que nem para acudir aos Christãos bastamos, e vejo perder meus
proximos e creaturas do Senhor á mingua, tomo como remédio clamar ao Cre-
ador de todos e a Vossa Alteza que mandem obreiros e a meus Padres e Irmãos
que venham.78

A imagem do papel branco para escrever à vontade marca a diferença


do gentio do Brasil em relação a outros lugares onde a Companhia de Jesus
instalou missões. Como o nativo brasileiro não possuía escrita e se for-
mava por uma cultural oral, os padres encontravam um quase grau zero
da educação e catequese, presente nas crianças. Embora se aproxime da
doutrina aristotélica do ato-potência e vise imprimir à vontade no nativo
do Brasil as principais formações civilizacionais e religiosas europeias, tal

76
CB, p. 125. Carta a D. João III, Olinda, 1551.
77
Idem, ibidem.
78
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 171

imagem, retoricamente muito forte, não era verdadeira. Os jesuítas neces-


sitaram operar uma leitura protoetnológica da organização social, crenças
e costumes do gentio brasileiro para poder atuar sobre ele de forma eficaz
na conversão.
O método utilizado para a conversão, além do aprendizado da leitura
e escrita, passava também pelo aprendizado, por parte dos jesuítas, da lín-
gua dos nativos. É possível que antes da política de construção dos
aldeamentos, as missões volantes dos jesuítas se concentrassem em uma
imersão nas aldeias nativas para o aprendizado de sua língua. É o que se
depreende do seguinte trecho: “Trabalhamos de saber a lingua delles e
nisto o padre Navarro nos leva vantagem a todos. Temos determinado ir
viver com as aldeias, como estivermos mais assentados e seguros, e apren-
der com elles a lingua e il-os doutrinando pouco a pouco”79.
Nóbrega não deixa de observar também o expediente muito usado
pelos jesuítas de aproximação e conversão das elites, que já pode ser no-
tado nesta primeira carta:

Tambem achamos um Principal delles já christão baptisado, o qual me disse-


ram que muitas vezes o pedira, e por isso está mal com todos os seus parentes.
Um dia, achando-me eu perto dele, deu uma bofetada grande a um dos seus
por lhe dizer mal de nós ou cousa similhante. Anda muito fervente e grande
nosso amigo; demos-lhe um barrete vermelho que nos ficou do mar e umas
calças. Traz-nos peixe e outras cousas da terra com grande amor; não tem
ainda noticia de nossa Fé, ensinamo-lh’a; madruga muito cedo a tomar lição e
depois vai aos moços a ajudal-os ás obras. Este diz que fará christãos a seus
irmãos e mulheres e quantos puder. Espero em o Senhor que este ha de ser
um grande meio e exemplo para todos os outros, os quaes lhe vão já tendo
grande inveja por verem os mimos e favores que lhe fazemos. Um dia comeu
comnosco á mesa perante dez ou doze ou mais dos seus, os quaes se espanta-
ram do favor que lhe dávamos.80

79
CB, p. 73. Carta a Simão Rodrigues, Bahia, 1549.
80
Idem, pp. 73-74.
172 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

É neste sentido que Nóbrega diz a Simão Rodrigues que o que mais
importava naquele momento para a missão brasileira era o básico e o in-
fraestrutural: tecidos para cobrir os índios e pessoal para percorrer as
aldeias indígenas e levar a eles o paradigma de vida cristã. Diz Nóbrega:
“Cá não são necessarias letras mais que para entre os Christãos nossos,
porém virtude e zelo da honra de Nosso Senhor é cá mui necessário”81.
Ao mesmo tempo em que pede cristãos virtuosos a Simão Rodrigues,
Nóbrega confessa temer o mau exemplo dos cristãos portugueses que já
habitavam a terra. Fica clara a questão já posta por Nóbrega na primeira
carta escrita no Brasil de que um dos principais obstáculos para a conver-
são será a sociedade civil composta por colonos cristãos já instalados no
território. Se por um lado marca a docilidade do gentio e a facilidade de
sua conversão, teme pelo “mau exemplo que o nosso Christianismo lhe
dá”:

O padre Leonardo Nunes mando aos Ilheos e a Porto Seguro, a confessar


aquella gente que tem nome de Christãos, porque me disseram de lá muitas
misérias, e assim a saber o fructo que na terra se póde fazer. (...) Leva por
companheiro a Diogo Jacome, para ensinar a doutrina aos meninos, o que elle
sabe bem fazer; eu o fiz já ensaiar na nau, é um bom filho. Nós todos os tres
confessaremos esta gente; e depois espero que irá um de nós a uma povoação
grande, das maiores e melhores desta terra, que se chama Pernambuco e as-
sim em muitas partes apresentaremos e convidaremos com o Crucificado. Esta
me parece agora a maior empresa de todas, segundo vejo a gente docil. Só-
mente temo o mau exemplo que o nosso Christianismo lhe dá, porque ha
homens que ha sete e dez annos que se não confessam e parece-me que põem
a felicidade em ter muitas mulheres. Dos sacerdotes ouço cousas feias. Parece-
me que devia Vossa Reverendissima de lembrar a Sua Alteza um Vigario Geral,
porque sei que mais moverá o temor da Justiça que o amor do Senhor. E não
ha oleos para ungir, nem para baptisar; faça-os Vossa Reverendissima vir no
primeiro navio (...).82

81
Idem, p. 74.
82
Idem, p. 75.
Pedro Brocco | 173

Não obstante perceber-se aqui já uma inclinação a adotar o medo (o


temor da Justiça) em contraste ao amor da caridade cristã, Nóbrega mos-
tra-se confiante na empresa em sua primeira carta. As primeiras
preocupações de Nóbrega são, assim, em grande parte materiais: roupa,
óleo para a liturgia, bons funcionários jesuítas sob seu comando. Tratava-
se, com efeito, de administrar uma empresa, cujos lucros mediam-se em
número de almas convertidas à civilização cristã83.
A segunda carta que compõe as Cartas do Brasil, escrita cerca de um
mês depois (15 de abril) para o mesmo Simão Rodrigues, mais curta, re-
gistra a busca por uma presença oculta de um continuum do Evangelho no
Novo Mundo: trata-se de encontrar sinais de São Tomé entre os nativos:
“me contou uma pessoa fidedigna que as raízes de que cá se faz o pão, que
S. Thomé as deu, porque cá não tinham pão nenhum. E isto se sabe da
fama que anda entre elles (...). Estão d’aqui perto umas pisadas figuradas
em uma rocha, que todos dizem serem suas”84.
Quando fala sobre o assentamento dos padres da Companhia e o que
seria o futuro Colégio, Nóbrega novamente fala da necessidade de um Vi-
gário Geral, aqui fazendo uma divisão clara das funções de um Vigário
Geral e dos padres jesuítas: “Ha cá muita necessidade de Vigario Geral
para que elle com temor e nós com amor procedendo, se busque a gloria
do Senhor”.85
A figura do vigário-geral, sacerdote constituído pelo bispo para ajudá-
lo no governo da diocese, aparece aqui como um pedido voltado aos colo-
nos cristãos, para o aspecto dissuasório de costumes que não estavam
conformes à ética cristã subjacente à observância dos sacramentos católi-
cos. O vigário-geral administraria, portanto, as almas já cristãs e
convertidas, deixando para os jesuítas a tarefa das missões e da conversão
do gentio.

83
Cf. neste sentido a pesquisa de ALDEN, Dauril, op. cit.
84
Idem, p. 78.
85
Idem, ibidem.
174 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

As missões seriam então uma zona de transição entre a conversão ao


catolicismo e um território administrado pelo clero secular e sujeito ao di-
reito canônico, ordenado por bispos e vigários. Sobre este ponto,
fundamental para esta pesquisa, cabe uma breve digressão.
Conduzidas pela principal aposta da Igreja Católica Contrarrefor-
mista, a Companhia de Jesus, tais missões lançavam-se aos limites do
Mundo que então se formava em sua dimensão geográfica definitiva. Li-
mites geográficos e também limites da semelhança, em regiões em que o
outro, a alteridade, apresentava-se com formas de vida e de organização
social distintas da europeia. Por isso as missões demandavam um alto pre-
paro intelectual e físico, e também um alto investimento por parte da
Igreja e dos padres que as conduziam: toda missão era uma missão
(im)possível. Isto porque, se por um lado toda área de missão apresentava
perigos iminentes, ligados à distância em relação à Europa e à dificuldade
encontrada para a conversão dos povos ao “verdadeiro Deus” e à “verda-
deira doutrina do catolicismo”, toda missão era criada para um dia acabar,
dando lugar à administração do clero secular e à fundação de dioceses ad-
ministradas pela Igreja. A forma de organização social global forjada pelos
jesuítas sob as missões, todavia, aparece como algo inaudito até então na
História da Igreja.
O conjunto de transformações experimentado pelas missões foi aos
poucos modificando a forma de missionação. As primeiras experiências no
Brasil, onde os inacianos inicialmente optam pelas missões volantes entre
as tribos indígenas e posteriormente adotam o modelo dos aldeamentos e
reduções, será fundamental para as famosas missões do Paraguai.
A Idade Moderna, marcada de forma especial pelos Descobrimentos
e pelo que trouxe de inovação o século XVI, viu a Igreja Católica alargar-se
pelo mundo de forma inédita. Neste sentido pode-se ler o fundamental
artigo de Charlotte de Castelnau-L’Estoile86, que trata da reestruturação

86
CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte. « Une Eglise aux dimensions du monde: expansion du catholicisme et
ecclésiologie à l’époque moderne » In: Les Clercs et les princes. Paris: Presses de L’École nationale de Chartes, 2003,
pp. 313-330.
Pedro Brocco | 175

da Igreja contrarreformista em escala mundial, utilizando para isso a


Companhia de Jesus e uma nova forma de trabalhar com o direito canô-
nico e com novos instrumentos como fundamento desta expansão.
Castelnau-L’Estoile realça a questão decisiva dos Descobrimentos para a
expansão mundial da Igreja como algo inédito na eclesiologia. A noção de
que algo profundamente revolucionário pudesse estar em curso já está
presente nas manifestações de cronistas da época. O cronista castelhano
Francisco López de Gómara em 1552 reconhece na descoberta das Índias
ocidentais o maior evento que se produziu no mundo depois de sua cria-
ção, “se excetuarmos a encarnação e a morte daquele que o criou”87.
Em 1622, com a criação da congregação da Propaganda Fide pela bula
Inescrutabili Divinae do papa Gregório XV, a Igreja trabalha com diversas
realidades de uma religião que se torna mundial. Hoje, a congregação é
conhecida como Congregação para a Evangelização dos Povos, e tem fun-
ção de cumprir objetivos especificamente missionários: estabelecer
diretrizes, formar missionários, dar apoio aos que estão em terra de mis-
são88. A terra de missão, embora seja uma figura mais ou menos constante
na história da Igreja, passa a ser trabalhada com mais intensidade no sé-
culo XVI e a fazer parte de programas estratégicos de conversão em larga
escala. A terra de missão seria aquele território não administrável pelo
clero secular e pelo direito canônico, todavia possível de ser evangelizado

87
GÓMARA, Francisco López de. Hispania victrix, 1552, prefácio endereçado a Carlos V, citado por Joseph Perez em
L’Espagne du XVIe siècle. Paris: 1973, p. 187, In: CASTELNAU-L’ESTOILE, op. cit.
88
No espírito da Propaganda Fide podemos situar ainda o fenômeno do “papa pop” característico do século XX:
figuras de papas cuja circulação e uso das próprias imagens atingem grandes massas populacionais e atuam em um
projeto de conversão em larga escala com a utilização da difusão de imagens pela Televisão e pelo uso recente da
Internet e das redes sociais. Nesta linha estão ao menos dois nomes principais: o de Karol Wojtyła (João Paulo II) e o
de Jorge Mario Bergoglio (Francisco). No caso de João Paulo II cabe ainda citar sua atuação decisiva para o fim do
comunismo na Polônia e na Europa, coroado pela queda do Muro de Berlim, em 1989, isto é, uma atuação política
de grande envergadura para uma mudança de conjuntura e do curso da História. O caso de João Paulo II é crucial
para esta análise do ponto de vista histórico e sociológico: Karol Wojtyła, em um momento decisivo da História e
quando a Polônia era peça-chave na Guerra Fria, foi o primeiro papa polonês e não-italiano desde o holandês Adriano
VI em 1522, ou seja, depois de um período de 456 anos de papas italianos. Sua atuação como um dos papas que mais
viajou pelo mundo, em um momento de rápida difusão e circulação de imagens, situa-se, segundo a perspectiva aqui
levantada, no interior do macrodispositivo psicagógico, de longa duração, afinado pela Igreja Católica desde o século
XVI, ingrediente formador das mentalidades e afetos acerca da noção de globalização.
176 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

e convertido89. As inovações trazidas por esse período missionário do sé-


culo XVI reverberam de modo especial no plano teológico e no plano
jurídico, pois ainda que não se arrime de início no direito canônico como
base de um governo das almas (psicagogia), possui fundamentação teoló-
gica e jurídica, que se desenha de forma consistente ao menos desde a obra
de Francisco de Vitoria, com o ius communicationis e o ius missionis. O
trabalho de Castelnau-L’Estoile tangencia o aspecto inovador do ius mis-
sionis90 em um mundo que testemunha uma Igreja em rápida expansão,
além de todo limite territorial.
Para a Igreja Católica, segundo Castelnau-L’Estoile, o processo de
alargamento da catolicidade é percebido como um processo temporal.
Trata-se de fazer com que as novas terras se tornem plenamente cristãs e
que o direito canônico se exerça. Antes, porém, de chegar-se a tal objetivo,
“um regime jurídico excepcional, o direito missionário, conjugação de fa-
culdades para o clero e privilégios para os fiéis, se aplica”91. Tal regime
jurídico de exceção era visto como provisório e funcionaria até o momento
em que o regime ordinário da Igreja pudesse se estabelecer e operar.
A figura do missionário desde o fim da Idade Média aparece ligada a
faculdades que se traduzem em poderes excepcionais capazes de colmatar
lacunas das regras de direito canônico ou de acordar benefícios espirituais
para determinadas demandas de fiéis. O caso da dispensa de impedimen-
tos ordinários para o casamento figura entre os benefícios espirituais
concedidos aos fiéis. É este o caso do Brasil, quando a Companhia de Jesus
assume o monopólio da evangelização. Com efeito, o importante sacra-
mento do casamento pôde ser administrado entre os índios pelos padres

89
Embora a criação da Propaganda Fide apareça na linha de interpretação segundo a qual a Igreja tenta retomar
poder e hegemonia no mundo frente às monarquias ligadas ao regime jurídico do patronato, um verdadeiro regime
jurídico-administrativo por meio do qual os príncipes recebiam delegação do papa para financiar a construção de
igrejas, manter a hierarquia eclesiástica, enviar religiosos encarregados de converter os pagãos, e em troca eles re-
cebiam o grande privilégio de propor os próprios bispos nas possessões ultramarinas, receber o dízimo e administrar
os impostos eclesiásticos. Cf. CASTELNAU-L’ESTOILE, op. cit., p. 318.
90
Ou jus missionarium na terminologia proposta em seu trabalho aqui referenciado.
91
CASTELNAU-L’ESTOILE, op. cit., p. 325.
Pedro Brocco | 177

da Companhia, que concediam tais benefícios como a dispensa de impedi-


mentos de casamento por parentesco e afinidade, com base no
conhecimento da organização das sociedades indígenas. Esta é também
uma faceta da accomodatio jesuíta, o acomodar-se aos costumes locais
para buscar a conversão desde o lado de dentro das sociedades com as
quais se relacionavam. E se vinham desde o lado de fora e funcionavam ou
buscavam funcionar como os que estavam do lado de dentro, buscando a
compreensão de seus mecanismos, os jesuítas mostram a ductibilidade da
natureza humana, ao transitarem entre diferentes consistências sociais e
culturas e fazerem o “dentro” e o “fora” deixarem de apresentar fronteiras
rígidas.
A liberdade de obter privilégios e conceder benefícios, em lugares ge-
ograficamente muito distantes das estruturas do clero secular e de
superiores hierárquicos como os bispos pode trazer um questionamento a
respeito da obediência que o jesuíta devia ter ao papa, constante do quarto
voto. Ao menos, o funcionamento do jesuíta em terras longínquas marca
o caráter curioso de um voto e juramento de obediência e, ao mesmo
tempo, a grande liberdade para administrar as almas e suprir o direito
canônico então inoperante em sua integralidade nessas localidades, fa-
zendo espécies de arranjos e adaptações adequadas ao modo de
funcionamento das sociedades locais. Castelnau-L’Estoile chega a uma
afirmação curiosa que toca no cerne deste trabalho: “a missão é definida
não mais como um espaço geográfico mas como um espaço jurídico onde
o clero tem a necessidade de faculdades. Às faculdades do clero correspon-
dem os privilégios dos fiéis, outro instrumento jurídico em terra de
missão”92.
Torna-se interessante o pensamento das missões como zonas jurídi-
cas por dois motivos: o primeiro deles é o deslocamento do ponto de vista
da colonização da conquista militar e tomada territorial para o de um ho-
rizonte jurídico capaz de fundar uma sociabilidade. O segundo motivo toca
na raiz do que se entenderia neste contexto como “jurídico”. Pois parece

92
Idem, p. 326.
178 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

que mesmo fundada em um direito cujo sentido último seria o direito di-
vino93, o jurídico tomado no século XVI como a criação de um ambiente de
vida social capaz de organizar e regular um horizonte de suposições razo-
áveis de mútua expectatividade94, o papel exercido pelo termo “jurídico”
não foi alterado desde então. O que se observa a partir do século XVIII, de
modo especial, é a tentativa de fundar o direito epistemologicamente em
um campo não religioso, ao mesmo tempo em que também se busca fazer
o mesmo com a moral. Deve-se em grande parte a Kant a configuração de
uma moral alheia à religião e submetida à Razão, bem como as noções de
agir conforme os imperativos categórico e hipotético. Tais conceitos, rela-
cionados também aos de liberdade e autonomia, irão dar origem às noções
de autonomia e heteronomia, fundamentais à epistemologia de uma fu-
tura ciência do direito.
No entanto, há que se observar que a problemática envolvendo o sen-
tido do jurídico nas missões, o jus commune e o jus missionarium, não
deixa de ser importante para o direito laico: estão desde já postas discus-
sões envolvendo aplicação da lei, interpretação e o papel do intérprete. Pois
ainda que a ideia de obediência absoluta ao papa conjugada com a liber-
dade de atuação em terras de missão distantes de Roma soe paradoxal, os
jesuítas buscavam obter reconhecimento de Roma, através de bulas pon-
tifícias, e alcançar legitimidade de suas práticas, o que torna sua atuação
cada vez mais objeto de divergências e debates em Roma entre os mem-
bros mais conservadores da cúria.
Assim, pode-se compreender por que as bulas que desde o século XVI
concediam faculdades aos jesuítas, estabelecidas por Pio IV em 1563, reno-
váveis por vinte anos, duram até o ano de 1766, com Clemente XIII, quando
a Companhia já havia sido expulsa dos domínios portugueses e estava em

93
Fazendo-se aqui menção aos desenvolvimentos teóricos da Escola de Salamanca, com o direito natural e o ius
gentium, a partir dos conceitos de ius communicationis de Francisco de Vitoria. Tratamos dessas questões em capí-
tulo acima.
94
Esta é a definição de Marcus Fabiano Gonçalves para a noção de confiança: a suposição razoável de uma mútua
expectatividade (cf. GONÇALVES, M. F.; ARRUDA, Edmundo Lima. Fundamentação ética e hermenêutica: alternati-
vas para o direito. Florianópolis: CESUSC, 2002). Com efeito, o direito seria um saber capaz de caucionar a confiança
e fundamentar uma vida social e cooperativa possível.
Pedro Brocco | 179

vias de ser extinta pelo sucessor de Clemente XIII, Clemente XIV, pela bula
Dominus ac Redemptor, de 1773, sob grande pressão do embaixador espa-
nhol.
O que estava em jogo, então, na atuação jurídica jesuíta? Trata-se de
uma fina relação entre regulação social e atuação sobre os costumes, den-
tro de um projeto civilizacional. Sigamos a este respeito um trecho do
trabalho de Castelnau-L’Estoile:

Dans les bulles du XVIe siècle apparaît l’idée que les fidèles nouvellement
convertis ne peuvent être soumis au même régime d’exigence que les vieux
chrétiens. Les textes pontificaux sur le mariage se justifient en évoquant les «
faibles Indiens », incapables de supporter la continence. Ainsi, le pape
assouplit les règles du mariage en dispensant des empêchements de mariage
pour parenté et pour affinité ; ces empêchements étant le principal instrument
de pression de l’Église sur la société depuis le milieu du Moyen Âge.95

As bulas pontifícias são fundamentais, ao longo do século XVI, para a


mudança de paradigma na colonização da América. Desde a bula Sublimis
Deus, de Paulo III em 1537, que reconhece a humanidade dos índios, até as
bulas referendando os benefícios dos novos fiéis sob regência dos jesuítas.
O que parece ser a questão de fundo, porém, toca na relação entre moral
e direito: o instrumento de pressão exercido pela Igreja ao longo da Idade
Média sobre os fiéis, especialmente as regras a respeito dos impedimentos
de casamento, passa a ser afrouxado para os índios do Novo Mundo, novos
na cristandade. Ainda que vistos como “faibles Indiens”, fracos do ponto
de vista do controle das pulsões, o plano evangelizador da Igreja sob a di-
reção da Companhia de Jesus apostava na acomodação aos costumes dos
povos que se pretendia converter. Foi assim notado desde muito cedo pe-
los jesuítas que atuar diretamente em tema tão delicado como o casamento
e a forma de organização da família nessas sociedades seria correr o risco
de não conseguir convertê-las para o cristianismo.

95
CASTELNAU-L’ESTOILE, op. cit., p. 326.
180 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Uma questão, portanto, de observação empírica e interpretação jurí-


dica. Estavam no horizonte de formação intelectual de um jesuíta os
estudos das letras clássicas e do direito canônico, além da teologia; porém,
o quesito fundamental da capacidade de observar, compreender e inter-
pretar as culturas nativas que se descortinam no século XVI torna possível
que os cronistas jesuítas consigam produzir material etnográfico presente
em cartas, relações e informações. Esse material etnográfico aliado à ca-
pacidade de traduzir a observação empírica para o direito canônico faz
com que os jesuítas possam utilizar a tecnologia de conversão tendo em
vista antes uma adaptação do que uma imposição.
Castelnau-L’Estoile traz, neste sentido, importante contribuição para
a discussão deste tópico com suas pesquisas sobre o funcionamento do sa-
cramento do casamento entre os índios sob os jesuítas, mas também
analisou as dúvidas enviadas pelos capuchinhos bretões que foram missi-
onários na região do Rio São Francisco, no interior do Nordeste. Os
capuchinhos enviam a Roma diversas mensagens demandando autoriza-
ção para adaptar as regras de casamento de acordo com a estrutura social
e modo de vida dos índios convertidos. Neste caso, o interlocutor é o con-
sultor do Santo Ofício, cardeal franciscano Lorenzo Brancati, cuja réplica,
após longa dissertação, refuta a demanda dos capuchinhos segundo o ar-
gumento de que “o risco é que a lei toda inteira seja progressivamente
dispensada em benefício daqueles que queiram se converter”, “a lei cristã
não deve se acomodar à vontade dos recebedores desta lei, mas isto deve
ser o contrário”, concluindo o parecer pela manutenção das regras que
haviam funcionado então durante dezesseis séculos96. Trata-se, assim, de
uma questão central envolvendo moral e costumes, formadores do ethos
cristão e, neste sentido, o modo jesuíta de proceder e de converter trazia
questões cruciais para a moral subjacente ao modo de vida cristão e à apli-
cação das regras formadoras do direito canônico.
Além disso e paradoxalmente, como se tem percebido o que nem
sempre é notado pelos historiadores das missões, a descoberta das Índias

96
Idem, p. 327. Tradução livre.
Pedro Brocco | 181

e a expansão da Igreja geram impactos dentro da Europa, não apenas em


relação ao outro estrangeiro. Seria correto afirmar que a descoberta do
outro distante proporciona também a descoberta do outro familiar, ín-
timo. Os estudos de historiadores italianos das missões pensadas desde
Roma, neste sentido, são fundamentais. Adriano Prosperi mostra em seu
estudo “Otras Indias”: missionari della Controriforma tra contadini e sel-
vaggi o aparecimento, na linguagem dos missionários que se dedicam à
missionação na Europa, do termo Outras Índias ou Nossas Índias, para
qualificar as áreas de missão internas, os povos que se desejava converter.
Tal desdobramento é fundamental para se pensarem as missões dentro da
história da ideia de civilização moderna, além das noções de semelhante e
diferente, familiar e estrangeiro: o outro dentro da Europa, que deve ser
convertido e civilizado.
Tal busca da outridade, da alteridade radical que se coloca a partir
dos Descobrimentos – que são, na verdade, um desvelamento do outro ra-
dical – aparece projetada sobre práticas que vinham já sendo fomentadas
pela Contrarreforma mas, principalmente, desenvolvidas de modo autô-
nomo dentro da Companhia de Jesus através dos Exercícios espirituais.
Cumpre afirmar aqui, neste sentido, que a busca do outro exterior se liga
à busca pelo outro íntimo: o outro de que se escreve e se conta não é exa-
tamente, mas pode ocupar a mesma função, do outro de que se fala. Os
Exercícios espirituais implicam em um mergulho do exercitante sobre a
sua própria história de vida, de modo a poder produzir um discurso sobre
ela, discurso este mediado pelas categorias retóricas renascentistas e cató-
licas contrarreformistas. Trata-se de um movimento duplo que se
constitui por um mergulhar em si mesmo para, com isso, poder sair em
direção ao mundo. As técnicas postas em operação pelos Exercícios con-
sistem em fazer o exercitante reconhecer a pessoa de Cristo em sua vida,
e para isto o diretor dos Exercícios, também jesuíta, coloca-se a ouvir o
exercitante e a apontar caminhos e fazer comentários que pudessem
ajudá-lo no percurso. Cabia ao exercitante também imaginar-se fazendo
parte das cenas que compõem os Evangelhos sinóticos, aproximando-se
182 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

das pessoas, dos apóstolos e da própria figura de Cristo, recriando as cenas


imaginariamente através da fala, imaginando-se presente em ato. Influên-
cia decisiva do teatro, sem dúvidas, forma artística muito cara a este
período que se denomina barroco97, mas resta incontroversa a importân-
cia, aqui, do estímulo dos sentidos visual (imaginação, teatro, leitura) e
auditivo (escuta da fala do exercitante, bem como escuta constante dos
discursos do mundo). No limite, para um jesuíta, a visão e a audição fun-
dem-se em uma constante leitura-escuta dos sinais do mundo em busca
de sinais divinos e da concorrência de sua ação para a maior glória de Deus
(ad maiorem Dei gloriam).
A expansão territorial da Igreja implica diversos desafios e a conver-
são dos povos nativos, embora frequentemente apareça como justificativa
para a tomada de territórios, em momento algum se mostra como uma
solução fácil: o espaço para negociações entre periferia e centro (Roma) é
constante e produz efeitos bilaterais, daí a necessidade de se cotejar estu-
dos feitos sobre as missões desde Roma com aqueles feitos no Novo
Mundo, África e Ásia.
Outro tipo de negociação se dá antes pela via do contraste do que pela
da complementaridade: em relação às monarquias seculares, a tensão que
se coloca desde o início trata da conquista violenta pelas armas versus a
conquista espiritual representada pelos missionários e pela mundialização
da Igreja. Neste momento começa a surgir de forma mais clara a noção de
globalização antes em seu aspecto imaginário do que naquele da circulação
da mercadoria, embora, na prática, padres e mercadores dividissem as
mesmas embarcações. A expansão da Igreja, porém, não se confunde com
aquela das monarquias ibéricas e, talvez, encontre seu fundamento na res-
posta que se precisou dar às falhas das conquistas e ocupações territoriais

97
Embora o sentido do barroco, sobretudo no campo estético, seja apreensível, inclusive no discurso cotidiano, me-
diante a contemplação das obras ligadas às artes plásticas e literatura, evocando a torção das formas, ímpetos de
fantasia e paixão, contrastes e extravagâncias, João Adolfo Hansen indica em trabalhos e conferências a improprie-
dade do uso do termo para fazer referência a tal período histórico. A classificação deste período ou algo como
“barroco” guarda influências de uma historiografia idealista elaborada no século XVIII, cujas características apontam
para classificações mais ou menos arbitrárias da História. Nada, segundo Hansen, relacionado às fontes da época,
aponta para a terminologia do “barroco”.
Pedro Brocco | 183

pelos impérios espanhol e português: antes pela conquista espiritual do


que pelas armas.
O papado utiliza antigos mecanismos para promover a expansão da
Igreja, como as bulas pontifícias Romanus Pontifex e Inter Coetera, além
das cruzadas e da guerra justa.
A Companhia de Jesus apresenta novos mecanismos de expansão da
Igreja Católica centrados na conversão e na propaganda da fé, apoiada na
mobilização do imaginário com o uso do teatro, de imagens sacras capazes
de veicular a vida de santos e os principais pontos da educação cristã e da
catequese, bem como da música e da imprensa, com a escrita sistemática
de cartas, relações e informações das missões, gentes e territórios ao redor
do mundo, que eram copiadas e circulavam entre os diferentes Colégios
da Companhia.
Exemplo de registro feito para circular entre os Colégios da Compa-
nhia é a carta escrita por Nóbrega provavelmente em 154998 que tem como
objetivo funcionar como um conjunto de informações sobre o Brasil aos
“Padres e Irmãos charissimos”99. O título da carta na coletânea é Informa-
ção das terras do Brasil. Trata-se de escrito formulado para levar aos
jesuítas na Europa e no resto do mundo informações sobre a missão bra-
sileira que toca em temas desde o clima, a flora e o tipo de alimentação,
até à organização social dos índios. Esta é a carta mais completa escrita
por um jesuíta contendo informações sistematizadas do Brasil até o ad-
vento dos Tratados de Fernão Cardim100.
As primeiras informações escritas por Nóbrega são de que a terra tem
mil léguas de costa e é toda povoada por gente que anda nua, tanto mu-
lheres quanto homens, “tirando algumas partes mui longe donde estamos,

98
A carta não traz data, mas os organizadores estimam-na escrita na data provável de 1549.
99
NÓBREGA, CB, p. 97. Informação das terras do Brasil.
100
Há que se considerar nas cartas analisadas o fato de que nem todas foram escritas para a ampla circulação e a
leitura por um público além de membros específicos da Companhia de Jesus ou governadores e reis, como o caso de
Dom João III. Esta carta tem seu auditório formado por uma coletividade, e neste sentido é interessante notar como
ela é construída.
184 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

onde as mulheres andam vestidas à moda de ciganas, com panos de algo-


dão, pela terra ser mais fria que esta, a qual é aqui mui temperada”101.
Noticia também Nóbrega a capacidade adaptativa da terra para algu-
mas frutas europeias: “vejo que se dão uvas, e ainda duas vezes no anno,
porém são poucas por causa das formigas (...)”; “cidras, laranjas, limões,
dão-se em muita quantidade, e figos tão bons como os de lá”102, bem como
a possibilidade de adaptação da dieta europeia utilizando alguns ingredi-
entes do Novo Mundo, como o caso da substituição do trigo pela mandioca:
“o mantimento commum da terra é uma raiz de pau, que chamam man-
dioqua, da qual fazem uma farinha de que comem todos, e dá também
vinho, o qual misturado com a farinha, faz um pão que escusa o de
trigo”103.
Em seguida, Nóbrega inicia o importante trabalho descritivo e analí-
tico das diferenças entre as diferentes sociedades indígenas que habitavam
a costa e o interior do Brasil: “os Gentios são de diversas castas, uns de
chamam Goyanazes, outros Carijós (...) há outra casta de Gentios que cha-
mam Gaimares (...) os que comunicam104 com nós outros até agora são de
duas castas, uns se chamam Topinaquins e os outros Topinambás”105.
Cabe observarmos que estas são praticamente os primeiros escritos, pro-
vavelmente no ano de 1549, com uma tentativa sistemática de interpretar
e organizar as informações da terra. Nóbrega desde já consegue mapear
as principais tribos e diferenças culturais com as quais os jesuítas irão tra-
balhar. Reconhece que no sul há índios que andam vestidos e mulheres “à
moda de ciganas”, provavelmente os carijós ou guaranis; e depois observa

101
NÓBREGA, CB, p. 97.
102
Idem, pp.97-98.
103
Idem, p. 98. Os organizadores da edição observam em nota de rodapé que para Gabriel Soares, no Tratado des-
critivo do Brasil, de 1587, a mandioca era mais sadia do que o trigo, por ser de melhor digestão. Além disso, registra
que os governadores Tomé de Sousa, Duarte da Costa e Mem de Sá não comiam pão de trigo no Brasil, “por se não
acharem bem com elle, e assim fazem outras muitas pessôas”.
104
Perspectiva que demonstra afinidade com a Escola de Salamanca, a partir do ius communicationis de Francisco
de Vitoria.
105
Idem, pp. 98-99.
Pedro Brocco | 185

que até aquele momento a comunicação era feita com tupiniquins e tupi-
nambás (tamoios), estes últimos serão peça-chave na conquista do
território da futura cidade do Rio de Janeiro.
A importância de conhecer os costumes para a conversão ou cristia-
nização proporciona um mapa da configuração social sobre a qual se irá
atuar. Surgem já aqui as primeiras informações sobre o nome com o qual
os índios descrevem um possível Deus, ou uma potestade que possa se
passar pelo Deus cristão:

Dormem em redes d’algodão junto do fogo, que toda a noite têm aceso, assim
por amor do frio, porque andam nús, como também pelos Demonios que di-
zem fugir do fogo. Pela qual causa trazem tições de noite quando vão fora. Esta
gentilidade nenhuma cousa adora, nem conhece a Deus; sómente aos trovões
chama Tupane, que é como quem diz cousa divina. E assim nós não temos
outro vocabulo mais conveniente para os trazer ao conhecimento de Deus, que
chamar-lhe Pae Tupane106.

Aparece aí a questão de fundo que envolve a conversão jesuíta: a


inaudita importância dada à linguagem como instrumento de compreen-
são e de ação. Os limites da ação do jesuíta eram dados pela capacidade de
sua linguagem no jogo de interação com o indígena: “não temos outro vo-
cábulo mais conveniente para os trazer ao conhecimento de Deus”. Isto
implicará no peso dado desde o início ao aprendizado da “língua da terra”
e na elaboração de dicionários e vocabulários capazes de sistematizar um
idioma possível de ser ensinado e aprendido. O tupi dos jesuítas se confi-
gurará como uma espécie de língua de contato ou pidgin, a partir do qual
se compreenderão as outras línguas mais distantes, e se procederá à co-
municação com os índios da costa e do interior do Brasil.
A questão da compreensão das culturas nativas pelo jesuíta toca na
questão de seus ritos, onde se lhes imputará uma religião ou uma crença.
O fato curioso ou paradoxal aqui é que, pouco depois de Nóbrega afirmar
que “esta gentilidade nenhuma cousa adora, nem conhece a Deus”, opte

106
Idem, p. 99.
186 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

por logo encontrar um vocábulo que possa designar um Deus e a descre-


ver, no parágrafo seguinte, um rito envolvendo feiticeiros e os maracás,
dos quais se falou acima:

Sómente entre elles se fazem uma ceremonias da maneira seguinte: De certos


em certos annos vêm uns feiticeiros de mui longes terras, fingindo trazer san-
tidade e ao tempo de sua vinda lhes mandam limpar os caminhos e vão
recebel-os com dansas e festas, segundo seu costume; e antes que cheguem ao
logar andam as mulheres de duas em duas pelas casas, dizendo publicamente
as faltas que fizeram a seus maridos umas ás outras, e pedindo perdão dellas.
Em chegando o feiticeiro com muita festa ao logar, entra em uma casa escura
e põe uma cabaça, que traz em figura humana, em parte mais conveniente
para seus enganos e mudando sua própria voz em a de menino junto da ca-
baça, lhes diz que não curem de trabalhar, nem vão á roça, que o mantimento
por si crescerá, e que nunca lhes faltará que comer, e que por si virá á casa, e
que as enxadas irão a cavar e as frechas irão ao matto por caça para seu senhor
e que hão de matar muitos dos seus contrarios, e captivarão muitos para seus
comeres e promette-lhes larga vida, e que as velhas se hão de tornar moças, e
as filhas que as dêm a quem quiserem e outras cousas similhantes lhes diz e
promete, com que os engana, de maneira que crêm haver dentro da cabaça
alguma cousa santa e divina, que lhes diz aquellas cousas, as quais crêem. Aca-
bando de falar o feiticeiro, começam a tremer, principalmente as mulheres,
com grandes tremores em seu corpo, que parecem demoninhadas (como de
certo o são), deitando-se em terra, e escumando pelas bocas, e nisto lhes per-
suade o feiticeiro que então lhes entra a santidade; e a quem isto não faz tem-
lh’o a mal”107.

Nóbrega reconhece assim que tais feiticeiros são os “móres contrarios


que cá temos e fazem crer algumas vezes aos doentes que nós outros lhes
mettemos em corpo facas, tesouras, e cousas similhantes e que com isto
os matamos. Em suas guerras aconselham-se com elles, além dos agouros
que têm de certas aves”108.
Ora, o trecho acima citado mostra que os índios descritos por Nó-
brega possuíam, além de um sistema social, um sistema de crenças a partir

107
Idem, p. 101. Informação das terras do Brasil.
108
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 187

dos ritos administrados pelos feiticeiros, capazes de influir nas guerras,


nos corpos e sustentar sua estrutura social, adquirindo aquilo que Lévi-
Strauss chama de eficácia simbólica. Não é por acaso que logo depois Nó-
brega defina os feiticeiros como os maiores inimigos dos jesuítas, neste
primeiro momento da presença da Companhia de Jesus no Brasil.
A descrição do ritual antropofágico, aparecendo logo depois na carta,
não é menos importante. São ainda rudimentos do que seriam as grandes
descrições de Hans Staden e Fernão Cardim, mas pode-se perceber em
uma análise conjunta dessas descrições o funcionamento semelhante dos
ritos.
O impacto destes relatos acerca dos rituais de antropofagia pratica-
dos pelos índios produz um imaginário do canibal do Novo Mundo na
Europa capaz de causar ao mesmo tempo fascínio e repulsa. Trata-se da
descoberta de um estranho radical no estrangeiro e no vislumbre do fas-
cínio que este outro causa em si mesmo109. O mito do canibal antropófago
e incestuoso circula intensamente pelos círculos europeus, e seu funda-
mento parece ter sido em grande parte construído pelos relatos dos
jesuítas e de cronistas como Hans Staden, produtores de um imaginário
sobre o Brasil como uma terra habitada por canibais.
De fato, a antropofagia, ao lado da poligamia, era o principal costume
que os jesuítas buscavam reprimir nos índios. Antes, porém, de atuar di-
retamente sobre os sustentáculos simbólicos destas práticas, era
necessário compreender o que os índios faziam mediante seus ritos. Nó-
brega inicia, assim, em 1549, as descrições sistemáticas da ritualística
canibal:

Quando captivam algum, trazem-n’o com grande festa com uma corda pela
garganta e dão-lhe por mulher a filha do Principal ou qual outra que mais o
contente e põem-n’o a cevar como porco, até que o hajam de matar, para o
que se ajuntam todos os da comarca a ver a festa, e um dia antes que o matem
lavam-n’o todo, e o dia seguinte o tiram e põem-n’o em um terreiro atado pela
cinta com uma corda, e vem um delles mui bem ataviado e lhe faz a pratica de

109
Cf. LESTRINGANT, Frank. O canibal: grandeza e decadência. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
188 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

seus antepassados; e, acabada, o que está para morrer responde, dizendo que
dos valentes é não temer a morte, e que elle também matára muitos dos seus
e que cá ficam seus parentes que o vingarão e outras cousas similhantes. E
morto, cortam-lhe logo o dedo pollegar, porque com aquelle tirava as frechas,
e o demais fazem em postas para comer, assado e cozido.110

Trata-se da descrição de uma prática punitiva e de vingança entre


tribos, mas também de prática fundamental para construção da memória
social e trocas simbólicas entre as tribos que incessantemente se comba-
tem: os captores realizam com o capturado a prática de seus antepassados;
os capturados antes de morrer engajam-se performativamente na pro-
messa de que seus parentes que aqui ficam o vingarão. Percebe-se que tal
ritual é repetido, inclusive as falas, quando se analisam os relatos de Sta-
den e de Cardim111. Isto denota também o aspecto da cultura oral das tribos
indígenas do Brasil, que não conheciam a escrita como forma de conser-
vação da memória e da tradição: o corpo com suas repetições, práticas,
falas, o corpo como suporte principal da memória social e das trocas soci-
ais. A escrita se dá no corpo do falante. A captura e registro desses rituais
por Nóbrega põe em jogo a diferença entre um modo de organização social
calcado na tradição oral e o da tradição da escrita. Estaria aí também um
dos desafios da conversão jesuíta no Brasil: uma mudança radical da forma
de relacionar-se com o tempo, com a memória e com a tradição represen-
tada pela mudança de uma cultura orientada pela oralidade por aquela
mediada pela escritura112. Os jesuítas, representantes dessa cultura orien-
tada pela escritura que mais contato tiveram com os índios brasileiros,
denotam uma forma de coesão social mediada pela religião cuja base são
as Escrituras, base esta compartilhada com a tradição monoteísta de ori-
gem abraâmica. Essa forma de viver e de se relacionar com o outro,
administrando a memória social através da escritura, é de vital importân-
cia para a sociedade que se buscava fundar no Brasil, e deve-se a esta

110
NÓBREGA, CB, p. 100. Informação das terras do Brasil.
111
Cf. Como era gostoso o meu francês, dirigido por Nelson Pereira dos Santos, lançado em 1971, filme que o cinema
brasileiro produziu sobre essa tradição de relatos acerca da antropofagia no século XVI.
112
Cf. ONG, Walter J. Orality and Litteracy: The Technologizing of the Word. London: Methuen & Co. Ltd., 1982.
Pedro Brocco | 189

mudança o funcionamento do direito tal qual o conhecemos. Naquele pe-


ríodo histórico, no entanto, não havia diferença se o conjunto de costumes
que se procurava implantar com a conversão era caucionado pelo direito
ou pela religião: fundamental é o fato de tanto direito quanto religião es-
tarem submetidos à mesma tecnologia da escrita113.
A construção de uma identidade própria com um nome próprio e o
nome de família, seja patrilinear, seja matrilinear, passava, entre os índios,
também pela questão do que aqui é chamado de administração da memó-
ria social pelos ritos orientados por uma cultura oral. Os nomes dos
inimigos capturados eram incorporados àquele que o vencia e matava.
Este é outro aspecto que se altera com a mudança da conversão para uma
vida mediada pela tecnologia escrita114. Não apenas a questão da identidade
e da nomeação, mas também a relação com a já citada memória social e
com a morte, resultado direto daquela. Vejamos o que Nóbrega escreve
sobre os ritos funerários dos índios:

Quando morre alguns dos seus, põem-lhe sobre a sepultura bacias cheias de
viandas e uma rêde, em que elles dormem, mui bem lavada; e isto porque
crêm, segundo dizem, que depois que morrem tornam a comer e descansar
sobre a sepultura. Deitam-nos em umas covas redondas e, si são Principaes,
fazem-lhe uma choça de palma. Não têm conhecimento de Gloria nem Inferno,
sómente dizem que depois de morrer vão descançar a um bom logar, e em
muitas cousas guardam a lei natural. Nenhuma cousa própria têm que não
seja commum e o que um tem ha de partir com os outros principalmente si
são cousas de comer, das quaes nenhuma cousa guardam para o outro dia,
nem curam de enthesourar riquezas.115

Não apresentados à doutrina cristã e à tradição da Igreja, os índios


não remetiam o evento morte aos dogmas e às Escrituras; não conheciam
a noção de inferno e glória e mantinham a memória social acerca do morto

113
Neste sentido, o direito positivo representa uma mudança epistemológica ao promover a sistematização e a de-
mocratização com o amplo acesso à tecnologia do direito, colocando-o orientado pelo plano da validade e do
procedimento e livrando-o do campo do direito consuetudinário, resquício de uma tradição oral.
114
Trata-se aí, também, da problemática acerca da noção de pessoa e de individuação, cujo pano de fundo foi estabe-
lecido pelos estudos de Marcel Mauss, que temos seguido neste livro.
115
NÓBREGA, CB, p. 100. Informação das terras do Brasil.
190 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

vinculada ao corpo: esperava-se que o morto retornasse para comer e des-


cansar sobre a sepultura, isto é, logo também não conheciam o conceito de
alma, pois atribuíam ao morto um retorno em exercício de faculdades li-
gadas ao corpo (além do que a informação subjacente ao “guardam a lei
natural” aponta também para as funções do corpo). Ademais, a glória a
que Nóbrega se refere desempenha um papel crucial dentro da configura-
ção anímica jesuíta. Atuam para a “maior glória de Deus” e encontram no
martírio uma das formas possíveis de morrer “em glória”. A noção de gló-
ria para os jesuítas parece ser inseparável da tecnologia da escrita e da
possibilidade de circulação da narratividade do martírio.
Ao mesmo tempo em que Nóbrega sustenta que os índios não têm
conhecimento da “Gloria nem Inferno”, busca supor nos índios do Brasil
uma memória acerca do dilúvio e de São Tomé: “têm memoria do diluvio
(...)”; “dizem eles que S. Thomé, a quem elles chamam de Zomé, passou
por aqui, e isto ficou dito de seus passados e que suas pisadas estão signa-
ladas juncto de um rio (...)”116.
Outro tom imprime Nóbrega na carta enviada para o seu mestre em
Coimbra, Doutor Navarro117, no mesmo ano de 1549. A carta enviada a Na-
varro segue a mesma estrutura da carta enviada aos irmãos e padres,
prestando-se a exercer a mesma função de produzir uma relação ou infor-
mação da terra. Há, porém, a presença de trechos não expostos nas cartas
endereçadas a um círculo maior de leitores.
Seguindo o mesmo esquema da carta de informações, Nóbrega fala
do clima da terra, dos gêneros de alimentos que se dispõe, fala brevemente
sobre os animais, em uma primeira parte mais sintética do que a enviada
aos irmãos e padres. Tampouco descreve os rituais antropofágicos, con-
tentando em descrever os índios em um registro psicológico aristotélico-
tomista, além de repetir as informações sobre a memória sobre o dilúvio

116
Idem, p. 101.
117
Trata-se do humanista espanhol Martín de Azpilcueta Navarro (1492-1586), tio de João de Azpilcueta Navarro,
jesuíta que chega com Nóbrega ao Brasil em 1549.
Pedro Brocco | 191

e o conhecimento de São Tomé. A análise cotejada destas duas cartas es-


critas no mesmo ano de 1549 ajuda-nos a compreender a técnica epistolar
jesuíta. Trata-se aqui de modular a mensagem de acordo com o interlocu-
tor. Se na carta enviada aos padres e irmãos, produzida para circular entre
os Colégios da Companhia pelo mundo, Nóbrega descreve o ritual antro-
pofágico e as diferentes tribos indígenas que então se conheciam, aqui
Nóbrega sintetiza em um parágrafo um relato capaz de jungir teologia,
moral, psicologia e etnografia:

Mas é de grande maravilha haver Deus entregue terra tão boa, tamanho
tempo, a gente tão inculta que tão pouco o conhece, porque nenhum Deus têm
certo, e qualquer que lhes digam ser Deus o acreditam, regendo-se todos por
inclinações e apetites sensuaes, que está sempre inclinado ao mal, sem conse-
lho nem prudência. Têm muitas mulheres e isto pelo tempo em que se
contentam com ellas e com as dos seus, o que não é condenado entre elles.
Fazem guerra, uma tribu a outra, a 10, 15 e 20 leguas, de modo que estão todos
entre si divididos. Si acontece aprisionarem um contrario na guerra, conser-
vam-o por algum tempo, dão-lhe por mulheres suas filhas, para que o sirvam
e guardem, depois do que o matam com grande festa e ajuntamento dos ami-
gos e dos que moram alli por perto, e si delles ficam filhos, os comem, ainda
que sejam seus sobrinhos e irmãos, declarando ás vezes as próprias mães que
só os paes e não a mãe, tem parte nelles. E’ esta a cousa mais abominavel que
existe entre elles. Si matam a um na guerra, o partem em pedaços, e depois de
moqueados os comem, com a mesma solenidade; e tudo isto fazem com um
odio cordial que têm um ao outro, e nestas duas cousas, isto é, terem muitas
mulheres e matarem os inimigos, consiste toda a sua honra. São estes os seus
desejos, é esta a sua felicidade. O que tudo herdaram do primeiro e segundo
homem, e aprenderam daquelle qui homicida erat ab initio. Não se guerreiam
por avareza, porque não possuem de seu mais do que lhes dão a pesca, a caça
e o fructo que a terra dá a todos, mas sómente por ódio e vingança, sendo tão
sujeitos a ira que, si acaso se encontram em o caminho, logo vão ao pau, á
pedra ou á dentada, e assim comem diversos animaes, como pulgas e outros
coo este, tudo para vingarem-se do mal que lhes causam, o que vem deixa ver
que não tomaram ainda aquelle conselho evangelico de pagar o mal com o
bem. (...) Têm grande noção do Demonio e têm dele grande pavor e o encon-
tram de noite, e por esa causa sahem com um tição, e isto é o seu defensivo.118

118
Idem, pp. 90-91. Carta ao Dr. Navarro, Salvador, 1549.
192 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

O extenso trecho citado acima mostra como Nóbrega opta por ser
mais analítico acerca das inclinações e apetites dos índios, além de lançar
mão de questões teológicas, com seu mestre de Coimbra. Fica também
marcado na carta que os principais costumes que se pretendia extirpar
eram o da antropofagia e o da poligamia (“e nestas duas cousas, isto é,
terem muitas mulheres e matarem os inimigos, consiste toda a sua
honra”).
As citações em latim são abundantes e pode-se inferir que Nóbrega
realce aspectos de filosofia, teologia e ética ventilados por Navarro em sua
formação em Coimbra, como, por exemplo, ao falar da notícia que os ín-
dios têm de São Tomé, logo desloque o discurso para um trecho em que
discorre sobre a amizade entre os índios, em paralelo àquele da carta en-
viada aos irmãos e padres jesuítas em que dizia muito sinteticamente que
entre os índios nenhuma coisa própria há que não seja dividida em co-
mum: “Entre elles, os que são amigos vivem em grande concordia e amor,
observando bem aquilo que se diz: Amicorum omnia sunt communia”119.
Trata-se aqui da amizade, um tópico desenvolvido na tradição moral do
Ocidente desde a filosofia grega, de modo especial em Aristóteles120, che-
gando à tradição cristã por intermédio de estudiosos como Tomás de
Aquino. O reconhecimento e o resgate do tópico da amizade entre os índios
indicaria assim uma visão um tanto positiva de Nóbrega sobre a organiza-
ção social dos nativos do Brasil, malgrado as anteriores observações sobre
suas “inclinações e apetites sensuais”, sempre inclinados ao mal. A com-
patibilização desta informação com a outra acerca da amizade entre os
próximos só se torna possível quando se compreende que este grau de
amizade capaz de perfazer uma comunidade se observa entre tribos em
um espaço de grande divisão e inimizade entre as diversas tribos. Nóbrega

119
Idem, p. 91.
120
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009, em
especial os livros VIII e IX, que tratam da amizade. Cf. também neste sentido: BROCCO, Pedro. “Alguns comentários
sobre a ética de Aristóteles e sua relação com o direito”. Revista Quaestio Iuris, vol. 10, n. 2, Rio de Janeiro, 2017, pp.
653-674.
Pedro Brocco | 193

aqui faz uma espécie de reconhecimento de um potencial ou capacidade à


amizade passível de desenvolvimento e estímulo.
Nóbrega também relata a Martín de Azpilcueta Navarro alguns pro-
gressos e percalços da conversão, o que não é feito aos irmãos e padres da
Companhia na carta seguinte, analisada acima121. Percebe-se aqui a preca-
riedade dos primeiros anos de evangelização, a partir das chamadas
missões volantes, quando ainda não havia a formação de aldeamentos e
reduções. Contavam os jesuítas com apenas quatro padres que faziam in-
cursões às aldeias na tentativa de converter os índios. Logo se percebeu
que tal método não traria resultados ou, como costumavam chamar os pa-
dres, frutos. Percebe-se também, na análise do trecho abaixo, como os
jesuítas relacionavam a conversão à educação, sobretudo à capacidade de
ler e escrever, um ponto que nos remete às observações feitas anterior-
mente no sentido de a evangelização de povos de cultura oral fosse uma
mudança de registro cultural para aquele relacionado à tecnologia da es-
crita:

Fallarei agora da porta que Nosso Senhor se dignou de abrir nestes poucos
mezes para escolher dentre elles os que foram predestinados; porém começa-
mos a visitar as suas aldeias, quatro companheiros que somos, a conversar
familiarmente, e a annunciar-lhes o reino do Ceu, si fizerem aquillo que lhes
ensinarmos; e são estes aqui os nossos bandos. Convidamos os meninos a ler
e escrever e conjunctamente lhes ensinamos a doutrina christã e lhes prega-
mos para que com a mesma arte com que o inimigo da natureza venceu o
homem dizendo: Eritis sicut Dii scientes bonum et malum, com arte egual seja
elle vencido, porque muito se admiram de como sabemos ler e escrever e têm
grande inveja e vontade de aprender e desejam ser christãos como nós outros.
Mas sómente o impede o muito que custa tirar-lhe os maus costumes delles, e
nisso está hoje toda a fadiga nossa.122

A fadiga relatada por Nóbrega, relacionada ao baixíssimo número de


jesuítas voltados à conversão de um grande contingente de índios, também

121
Provavelmente, por isto, a Informação das terras do Brasil tenha sido um material produzido para a formação do
jesuíta, sobretudo aqueles que futuramente viriam em missão para o Brasil.
122
NÓBREGA, CB, pp. 91-92. Carta ao Dr. Navarro, Salvador, 1549.
194 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

diz respeito ao “muito que custa” tirar os “maus costumes” dos índios, e
isso seria o fato impeditivo para que pudessem aprender a ler e escrever e
ser cristãos, como se saber ler e escrever e ser cristão fossem etapas inse-
paráveis de um mesmo processo. Trata-se a nosso ver de uma mudança
de paradigma que os jesuítas buscavam implantar, tirando dos índios um
funcionamento ligado a uma cultura de tradição oral.
Os jesuítas são tributários de uma longa tradição orientada pela tec-
nologia da escrita que vai desde a dimensão religiosa, sob o registro do
hebraico até o grego dos evangelhos sinóticos, e também pela grande tra-
dição greco-romana, em seu aspecto filosófico e jurídico que informou as
principais estruturas de poder e de sociedade, como, por exemplo, todo o
saber que envolveu o direito civil romano, direto influenciador do direito
canônico, do qual se falou um pouco acima. As lutas que envolveram a
evangelização e conversão de tradições orais no Brasil, neste sentido, se-
riam as mesmas em relação àquelas que ocorreram depois do fim do
Império romano do Ocidente, levadas adiante pela Igreja primitiva, em
vias de se tornar um grande poder hegemônico capaz de mobilizar o saber
e a tradição ocidentais. Compreender que a evangelização e a cristianiza-
ção vai de mãos dadas com todo o saber potencial que envolve a tecnologia
da escrita é de grande importância para sustentarmos que a Companhia
de Jesus foi o primeiro grande esforço ocidental, no Brasil, de implantação
efetiva de aparato jurídico, ético e, neste sentido, político. Sem este esforço
de mudança de registro e paradigma que subjaz à evangelização, toda to-
mada de território resvalaria na ineficácia e na violência, como ocorreu
nos primeiros anos de colonização ibérica na América.
Um trabalho que funciona como liame entre essas questões é o do
jesuíta norte-americano Walter J. Ong. Estudioso da linguística, Ong foi
capaz de produzir um interessante estudo sobre os aspectos psicológicos,
jurídicos e sociais que a “tecnologia da palavra” é capaz de produzir123.
Escrevendo sobre o aspecto conservador e tradicionalista das cultu-
ras orais, Ong observa:

123
ONG, Walter J. op. cit.
Pedro Brocco | 195

Since in a primary oral culture conceptualized knowledge that is not repeated


aloud soon vanishes, oral societies must invest great energy in saying over and
over again what has been learned arduously over the ages. This need estab-
lishes a highly traditionalist or conservative set of mind that with good reason
inhibits intellectual experimentation.124

A partir deste trecho de Ong podemos compreender o motivo pelo


qual os índios tornavam-se refratários ao modo de vida cristão, apesar de
aparentemente estarem correspondendo aos estímulos dos padres. Uma
crítica comum era a de que os índios esqueciam muito rápido o que apren-
diam, assim como também pareciam aprender muito rápido e repetir em
voz alta o que lhes era dito. Estavam assim muito sensíveis aos estímulos
visuais e auditivos, embora não dominassem a tecnologia da escrita.
Um exemplo podemos encontrar nesta mesma carta de Nóbrega,
quando relata uma pregação por intermédio de um “menino língua”125:

Quando viajamos nós outros da Companhia, nunca nos abandonam, e antes


nos acompanham para onde se queira, maravilhados com o que pregamos e
escutando com grande silencio.
Dentre outras coisas, recordo-me que por meio de um menino lingua eu lhes
dizia, uma noite em que eu pregava ao luar (não lhes podendo ensinar mais),
que tivessem fé em Jesus Christo, e que ao deitar e ao levantar o invocassem
dizendo: Jesus, eu te encommendo a minh’alma, e depois que delles me parti,
andando pelos caminhos, notei a alguns que diziam em voz alta o nome de
Jesus, como lhes havia ensinado, o que me dava não pequena consolação.

A rivalidade dos jesuítas com os feiticeiros travava-se neste contexto


de uma cultura oral que dava grande importância aos anciãos que conse-
guiam conservar e repetir oralmente os saberes e as fórmulas aprendidas
entre as gerações. Os padres buscavam então vencer a eficácia simbólica
dos feiticeiros (lembremos dos ritos envolvendo os maracás) através das

124
Idem, p. 41.
125
Os “línguas” eram os intérpretes e tradutores. Nóbrega desde o início utiliza línguas, neste primeiro momento
crianças, para se comunicar com os índios, inclusive na confissão, o que gerou um grande atrito com a Igreja.
196 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

pregações e dos sacramentos, como a confissão e o batismo. O batismo,


assim, neste primeiro momento, apresentava este aspecto performativo e
dotado de eficácia simbólica a partir da qual se entrava na comunidade
cristã depois de um rito e um conjunto de palavras proferidas.
Percebe-se neste momento um esforço já de início dos aldeamentos
que pudessem funcionar como isolamento em relação aos feiticeiros e as-
sim também ao saber oral que portavam e, ao mesmo tempo, como
centros de instrução-alfabetização e educação nas questões morais e reli-
giosas.
Neste sentido, a criação de “centros de educação” estava colocada de
forma inseparável do sacramento do batismo. Tornar-se catecúmeno era
um status relacionado ao batismo:

Em duas das principais aldeias de que tem cargo, fizeram-lhe uma casa onde
esteja e ensine aos cathecumenos; em outra aldeia, tambem próximo a esta
cidade126, fizemos uma casa a modo de ermida, onde um de nós está incum-
bido de ensinar e pregar aos baptisados de pouco, e a outros muitos
cathecumenos, que nella vivem.
Os Principaes da terra baptisaremos em breve (...).127

Ensinar, pregar, converter: a conversão extrai sua eficácia do ensino


da doutrina católica mobilizado em sua plenitude somente com o domínio
da leitura e escrita. Porém, neste primeiro momento da atuação jesuíta,
Nóbrega parece querer dizer que o esforço principal estava em catequizar
e criar os primeiros rudimentos de uma sociedade cristã, o que toca na
questão desenvolvida por Castelnau-L’Estoile: tratava-se de encaminhar
um projeto de missionação em regime de exceção em relação ao direito
canônico (daí a utilização de meninos índios como línguas neste momento)
e buscar o maior número de almas para o cristianismo. Estas só poderiam
ser administradas pelo clero secular quando tivessem adquirido toda a es-
trutura psicológica e comportamental de uma comunidade capaz de

126
Salvador.
127
NÓBREGA, CB, p. 93. Carta ao Dr. Navarro, Salvador, 1549.
Pedro Brocco | 197

mobilizar as técnicas da escrita. Nestas almas, portanto, haveria muito o


que escrever. Novamente, Nóbrega adota a metáfora do papel branco ao
falar sobre a necessidade de incremento de novos missionários no Brasil,
“que tão poucos operarios possue”: “Poucas lettras bastariam aqui, porque
tudo é papel branco, e não ha que fazer outra cousa, sinão escrever á von-
tade as virtudes mais necessarias e ter zelo em que seja conhecido o
Creador destas suas creaturas”128.
Essas virtudes mencionadas por Nóbrega tocam em pontos impor-
tantes da moral e do funcionamento social dos índios. Além da já citada
antropofagia, em que se encerra o mandamento de amar o próximo como
a si mesmo do célebre Sermão da Montanha, tem-se também a delicada
questão da poligamia e de como os índios organizavam-se acerca das rela-
ções sexuais e amorosas:

Os Principaes da terra baptisaremos em breve, que outra cousa não se espera


sinão que tornem á suas mulheres, que têm esperança em que conservem a
fidelidade: porque é costume até agora entre elles não fazerem caso do adul-
terio, tomarem uma mulher e deixarem outra, como bem lhes parece e nunca
tomando alguma firme. O que não praticam os outros infieis de Africa e de
outras bandas, que tomam mulher para sempre e si a abandona é mal visto: o
que não se usa aqui, mas ter as mulheres simplesmente como concubinas.129

Tal questão, aparentemente de pouca importância, naquele momento


era crucial e toca de alguma maneira em todos os seguintes pontos: reli-
gião, moral, subjetividade, direito, política, família e sociedade. A Igreja era
a responsável por ministrar os sacramentos que organizavam a vida seja
do indivíduo, seja da família cristã: está-se aqui falando de batismo e ca-
samento. Ao mesmo tempo, a noção de indivíduo que possui um nome e
uma história de vida toca no ponto da tradição e da transferência geracio-
nal e simbólica do nome de família: aspectos que se incorporam na história
social e individual daqueles que se assujeitam a tal ordem simbólica.

128
Idem, p. 94.
129
Idem, p. 93.
198 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Estava, portanto, em jogo na conversão a mudança de paradigma se-


gundo o qual os índios organizavam sua vida social: a maneira como se
nomeavam, como se entendiam como sujeitos e partícipes da sociedade.
Consta que no rito antropofágico o nome do executado era incorporado
pelo que o matava. Com a interdição à poligamia e concubinato, estava-se
em busca de um horizonte social e moral em que se pudesse fundar um
sistema de parentesco, com suas possibilidades e proibições, à moda euro-
peia: famílias fundadas por e centradas no leito matrimonial monogâmico;
um sistema social e moral que produzisse vergonha e culpa àqueles que
transgredissem suas normas: aí comparece o sacramento da confissão,
para que as culpas possam ser ouvidas e examinadas antes que o ato se
possa produzir, ou após sua execução: mais uma vez, trata-se de examinar
os atos individuais em uma história de vida; uma implicação narrativa de
um indivíduo em relação aos atos cometidos na história narrada; enfim, a
produção de um sujeito que se pensa enquanto tal.
Esta produção de um sujeito que se pensa talvez tenha sido a princi-
pal contribuição da Igreja, a partir do trabalho dos missionários, na
América. É fundamental que esta mudança radical para as sociedades na-
tivas e imprescindível para a fundação do cristianismo americano seja
pensada como o eixo central da missionação. Pois só a partir deste deslo-
camento, representado pelo surgimento do indivíduo e sujeito capaz de se
pensar enquanto indivíduo dotado de um corpo, uma alma e uma história,
se poderá cogitar tomá-lo como verdadeiro cristão capaz de se inserir na
forma de vida cristã-europeia.
Por essa via, pode-se também novamente evocar os estudos de Mar-
cel Mauss sobre a noção de pessoa: tratava-se de moldar e formar entre os
nativos o conceito de pessoa cristã já estabelecido desde o Concílio de Ni-
ceia: unidade das três pessoas (Trindade) e unidade das duas naturezas do
Cristo, com o início da formação do conceito de pessoa humana. Com Cas-
siodoro, citado por Mauss, se afirma a noção precisa de pessoa: persona –
Pedro Brocco | 199

substantia rationalis individua: a pessoa é uma substância racional indivi-


sível, individual130. Da substância racional e individual, passar-se-ia, na
tradição ocidental, para a noção de pessoa enquanto uma consciência e
uma categoria. A produção do “eu” agente do discurso e ser pensante-fa-
lante, encontrando em Descartes sua marca no discurso filosófico, estava
já em gestação nesta dinâmica colonial aqui analisada, fortemente perpas-
sada pela prática da confissão.
É possível então falar da produção de um sujeito do discurso, que
figurará na prática da confissão, por exemplo; mas, antes e mais funda-
mentalmente, é preciso que se forme uma noção precisa da imagem
corporal. Aqui, toma-se o auxílio de pesquisa de campo conjugada a traba-
lhos sobre a imagem corporal na psicanálise.
A Catedral de Cusco possui curiosos espelhos ao lado do altar princi-
pal. Sabe-se que não é prática comum da Igreja a colocação de espelhos
nos templos, fato que poderia incitar no fiel inclinações narcísicas e vaido-
sas. Porém, na América, nesta igreja do Peru, observa-se a colocação de
espelhos ao longo da igreja e especialmente nas duas colunas que ladeiam
o altar principal:

130
MAUSS, Marcel, op. cit., p. 236.
200 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Figura 8: Espelhos na Catedral de Cusco, Peru. 2017. Arquivo pessoal.

O que os espelhos denotam, neste sentido, no interior do grande pro-


jeto de conversão, é o de estimular a criação da individualidade, mostrando
ao cristão sua imagem corporal. Isto quer dizer: o sujeito se vê e se sente
como sendo visto. É no jogo do ver e do ser visto que se poderá formar tal
imagem, operação imprescindível para a produção dos sentimentos de
vergonha e pudor. Vergonha e pudor, dois sentimentos morais centrais na
teoria freudiana, relacionam-se, no limite, com o esconder da sexualidade
e, neste sentido, com o recalque. Mas a questão da vergonha surgindo a
partir do “ser olhado” só poderá aparecer depois de ser trabalhada por
Jean-Paul Sartre e Jacques Lacan131. Entretanto, a questão do “ser olhado”

131
Cf. sobre isto a tese de doutorado de Felipe de Oliveira Castelo Branco: O espaço, a linguagem e a morte: sobre a
melancolia em psicanálise. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, 2013: “O campo da
filosofia existencialista, por outro lado, já havia trabalhado de modo bastante original o problema fenomenológico da
Pedro Brocco | 201

aqui vai além da de se tornar mero objeto do olhar. Ligando-se de forma


curiosa com a faceta teológica, a reflexão de Lacan sobre a vergonha dirá
que esta é derivada do olhar do Outro (aqui, representado por Deus) sobre
o sujeito:

Trata-se de um olhar que atinge diretamente aquilo que é dissimulado por trás
da própria imagem narcísica. A vergonha emerge quando o Outro desvela fi-
nalmente aquilo que há de mais íntimo e de mais escondido por trás da forma
imaginária de cada um de nós. Portanto, não há possibilidade de haver vergo-
nha sem um investimento libidinal em uma imagem especular própria, sem
uma imagem narcísica que permita ao sujeito habitar seu corpo enquanto
corpo próprio.132

A questão do reconhecimento do Outro em relação ao gentio é central


na missionação jesuíta: pode-se dizer que toda a mudança no planeja-
mento colonial, desde o sermão de Montesinos em 1511, passando por Las
Casas, até a Companhia de Jesus, visa possibilitar que o enorme contin-
gente autóctone indígena construísse um posicionamento subjetivo de
reconhecimento em relação ao ponto de vista de um Outro, saindo assim
de uma posição de dejeto civilizacional133. Em outras palavras, o dispositivo
colonizador trataria também de expandir a civilização de modo que pu-
desse abarcar os índios em sua estrutura, e esta estrutura pressupõe um
reconhecimento do Outro. O discurso de relacionar-se com Deus, um Deus
que vela, benigno, mas também que pode enxergar além da imagem cor-
poral, que pode saber dos pecados, pensamentos e intenções, é um
dispositivo de civilização, para além da questão religiosa. Porém, é um
Deus que de igual maneira representa um empuxo para a ação, o agir no
mundo, sem o qual os jesuítas não sustentariam sua atividade, em busca
de sinais de Deus por todo o globo terrestre. O que os jesuítas, junto com

vergonha, notadamente em sua relação com a questão do olhar. Mas o trabalho de Lacan, que se manterá em diálogo
aberto com a filosofia de Sartre, especialmente em seu seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psica-
nálise, empreenderá uma renovação da leitura da questão da vergonha em psicanálise. A vergonha, para Lacan, está
intimamente conectada com o “ser olhado”, p. 138.
132
CASTELO BRANCO, Felipe de Oliveira. op. cit., p. 139.
133
Sobretudo quando analisamos a posição conferida aos índios pela violência colonizadora dos relatos lascasianos.
202 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Las Casas, tentavam evitar, e isto fica muito claro quando observamos as
tensões envolvendo os colonos que buscavam capturar a mão-de-obra es-
crava indígena sem qualquer contrapartida em relação à sua instrução e
aperfeiçoamento, era a colocação de enormes massas populacionais em
condição de dejeto em um mundo que não lhes proporcionasse sentido,
uma vez já iniciada a ruptura com sua antiga forma de vida e de sentido.
Era, no limite e paradoxalmente, evitar o não-sentido e a violência no in-
terior de um projeto violento e colonizador do imaginário e da vida
indígena, criado para conduzir tal vida nas vias cristãs e torná-la súdita da
Coroa. Fornecimento, portanto, de sentido político-religioso para que se
evitasse a emergência do não-sentido. Neste horizonte se pode entender
que ainda hoje a Igreja atue a partir desta produção simbólico-imaginária
de sentido, sobretudo em relação àqueles em contato com situações-limite,
seja de pobreza extrema, drogadição, etc. A conversão é uma produção de
sentido conjugada a um reconhecimento suposto134 por parte do Ou-
tro135,136.
A imagem especular do próprio corpo e o discurso sobre a própria
história unem-se no conceito de eu, agente do discurso: “o eu é uma ima-
gem que meu corpo – enquanto algo que possuo em seu suposto conjunto
unitário – representa”137. A língua francesa possui a divisão entre moi e je
a partir da qual se torna possível compreender tal ponto: o je é o agente
do discurso e o moi a imagem corporal suposta. É comum que se diga:
“moi, je... etc”.

134
É evidente que a conversão visa a produção de tal suposição; o Outro não diz nada.
135
O Direito moderno extrai sua eficácia simbólica também neste mecanismo, tratando-se de um saber capaz de
produzir sentido compartilhável a partir do reconhecimento de um Outro produtor-garantidor de validade do orde-
namento jurídico. No caso da teoria de Kelsen, restam reminiscências teológicas abscônditas que sustentam todo o
ordenamento jurídico pensado por ele. A norma hipotética fundamental, vértice de sua pirâmide normativa e garan-
tidora de sua validade, aproxima-se da posição de Deus como Outro garantidor e produtor de consistência simbólico-
imaginária da realidade.
136
Este trabalho não pretende ignorar a complexa problemática do estatuto dos escravos africanos trazidos para o
Brasil no bojo desta dinâmica de conversão dos índios (“negros da terra”). Sobre este ponto, faz-se referência ao
trabalho de Luiz Felipe de Alencastro, aqui citado, O trato dos viventes. Isto não impede, entretanto, que se construa
o conceito do dispositivo de conversão voltado à produção de um sentido imposto aliado a uma suposição de reco-
nhecimento por parte do Outro.
137
CASTELO BRANCO, Felipe de Oliveira, op. cit., p. 139.
Pedro Brocco | 203

Tais mecanismos só foram possíveis com a afinação de uma herme-


nêutica dos atos humanos dentro de um horizonte sustentado por uma
tradição da escritura, além de sofrer as influências renascentistas e con-
trarreformistas de uma maior importância dada aos sacramentos,
sobretudo o da confissão, conduzida por aqueles que se tornaram especi-
alistas na arte da fala e da escuta das histórias individuais em uma
trajetória de vida: os jesuítas, inventores e praticantes dos Exercícios espi-
rituais.
A noção de corpo próprio aparece já nas cartas de Nóbrega quando
este fala sobre a saúde, aqui entendida em sua conexão com o aspecto te-
ológico da fé. Manuel da Nóbrega relata, no fim de sua carta a Martín de
Azpilcueta Navarro, seu mestre, um raro episódio de disputa retórica com
um feiticeiro, que depois de derrotado torna-se catecúmeno e é batizado.
Não se sabe se é verdadeiro o relato; porém, interessa aqui analisá-lo e
compreendê-lo dentro da perspectiva de rivalidade entre jesuítas e feiti-
ceiros em disputa pela eficácia simbólica de seus saberes. Nóbrega
reconhece, assim, para além de ser um bom discípulo, também estar fa-
zendo progressos na conversão da gente do Brasil:

Uma cousa nos acontecia que muito nos maravilhava a principio e foi que
quase todos os que baptisamos, cahiram doentes, quaes do ventre, quaes dos
olhos, quaes de apostema: e tiveram occasião os seus feiticeiros de dizer que
lhes davamos a doença com a agua do baptismo e com a doutrina da morte;
mas se viram em breve desmascarados, porque logo todos os enfermos se cu-
raram. Quiz por ventura o Senhor a estes seus filhos perfilhados em seu
sangue, provar-lhes desde cedo e ensinar-lhes que é preciso soffrer e que esta
é a mesinha com que se purgam os eleitos do Senhor. Procurei encontrar-me
com um feiticeiro, o maior desta terra, ao qual chamavam todos para os curar
em suas enfermidades; e lhe perguntei em virtude de quem fazia elle estas
cousas e se tinha communicação com o Deus que creou o Ceu e a Terra e rei-
nava nos Ceus ou acaso se communicava com o Demonio que estava no
Inferno? Respondeu-me com pouca vergonha que elle era Deus e tinha nascido
Deus e apresentou-me um a quem havia dado a saude, e que aquelle Deus dos
céus era seu amigo e lhe apparecia frequentes vezes nas nuvens, nos trovões
204 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

e raios; e assim dizia muitas outras cousas. Esforcei-me vendo tanta blasphe-
mia em reunir toda a gente, gritando em altas vozes, mostrando-lhe o erro e
contradizendo por grande espaço de tempo aquillo que elle tinha dito: e isto,
com ajuda de um lingua, que eu tinha muito bom, o qual fallava quanto eu
dizia em alta voz e com os signaes do grande sentimento que eu mostrava.
Finalmente ficou elle confuso, e fiz que se desdissesse de quanto havia dito e
emendasse a sua vida, e que eu pediria por elle a Deus que lhe perdoasse: e
depois elle mesmo pediu que o baptisasse, pois queria ser christão, e é agora
um dos cathecumenos. Vi entre os que estavam presentes alguns homens e
mulheres como attonitos daquilo que eu fallava, das grandezas de Deus. Estas
e outras cousas obra o Senhor por nosso ministerio inter gentes.138

O trecho revela que os europeus traziam aos índios desafios do ponto


de vista do contato com agentes patogênicos inexistentes até então; mas
revela também a estratégica relação entre a eficácia simbólica da religião
e a saúde, ou as práticas que incidem sobre o corpo buscando torná-lo são.
Se a religião aqui não se diferencia da moral, o corpo mal pode se diferen-
ciar da alma, e a saúde de um e outro comunicam-se intensamente: “(...)
que elle era Deus e tinha nascido Deus e apresentou-me um a quem havia
dado a saude”.
Outrossim, o trecho revela a importância da figura dos “línguas”
neste momento histórico: sem eles, a comunicação, que já era precária,
tornar-se-ia impossível, e de como neles é depositada a confiança de uma
comunicação eficaz, emulando-se até os sinais, gestos e entonação da voz
nas pregações.
Quando Nóbrega fala da atuação do língua e dos “signaes do grande
sentimento que eu mostrava” está também falando do aspecto retórico e
performático de sua atuação: tratava-se de explorar os sentidos dos índios,
sobretudo audição e visão, explorando-se também as técnicas do teatro e
dos autos, fazendo do púlpito um palco onde se encenavam as emoções,
sentimentos, ações, pensamentos, admoestações. Não se pode esquecer
que neste primeiro momento o jesuíta atua como um ato que rompe a
harmonia da antiga organização social, moral e anímica dos índios: é um

138
Idem, pp. 95-96. Carta ao Dr. Navarro, Salvador, 1549.
Pedro Brocco | 205

ator performático, um showman. Irá buscar prender a atenção dos índios,


com emulações de seus “principais”, quando andam batendo no peito e
falando em voz alta como eles; ou quando apostam no uso da música e do
canto para despertar sua atenção.
Em uma carta de Pero Correa pode-se vislumbrar a metodologia de
Nóbrega:

... y despues de aver el entrado cincuenta o sesenta leguas fue el padre Nobrega
llevando un hermano cõsigo y quatro niños, y en su pegrinaciõ tenia esta ma-
nera que quando entravam en alguna aldea de los Indios uno de los niños
llevava una cruz pequeña levãtada, yvã cantando las letanias, y luego se jutavã
los niños del lugar con ellos, maravillavãse mucho la gete de cosa tan nueva, y
recebianlos muy bien…139

A “invasão” jesuíta das aldeias indígenas começava pela incursão de


uma criança com uma cruz, geralmente cantando, acompanhada de outras
tocando instrumentos musicais. A visão de algo tão novo movia positiva-
mente os índios, além de trazer as crianças índias para o lado dos jesuítas.
O cenário da disputa relatado por Nóbrega parece ter tido, assim,
grande aspecto teatral, com o índio saindo vencido após a longa argumen-
tação e gestual repetido pelo língua. O desfecho foi o batismo e a entrada
do feiticeiro na comunidade cristã como catecúmeno, o que sem dúvidas
gerou, ou foi escrito pensando mostrar, um grande impacto na comuni-
dade dos índios próxima das famosas “conversões de cúpula”, também
praticadas pelos jesuítas, ao se converterem os líderes ou principais famí-
lias da sociedade, como os daimiôs140 japoneses no século XVI.

139
Cartas del Hermano Pero Correa que scriuio e un padre del Brasil. In: Copia de unas cartas de algunos padres y
hermanos dela compañía de Iesus que escrivieron dela India, Iapon y Brasil a los padres y hermanos de la misma
compañía, en Portugal trasladadas de portugues en castellano. Fuerõ recebidas el año de mil y quinientos y cincuenta
y cinco.
140
Os daimiôs eram a aristocracia guerreira japonesa dos séculos X a XIX. Eram espécie de senhores feudais e tiveram
muita importância para a conversão e missionação jesuíta durante o período da Sengoku-Jidai, a guerra civil travada
entre os daimiôs pela unificação do Japão (1467-1603), assunto que será tratado em capítulo próprio deste livro.
Sobre o tema, cf. a tese de doutorado de Jorge Henrique Cardoso Leão: A Companhia de Jesus e os pregadores japo-
neses: missões jesuíticas e mediação religiosa (1549-1614). Niterói: Universidade Federal Fluminense, Instituto de
História, 2017.
206 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

O período que constitui este primeiro ano de presença jesuíta no Bra-


sil (1549) apresenta na análise das fontes aqui empreendida os primeiros
tópicos de relevância para a conversão, quais sejam: a figura do índio, que
se deve ler e compreender, em sua língua e cultura; a natureza e moral de
índio, que se deve compreender tendo em vista a religião cristã (os traços
de São Tomé, a partir dos quais os índios tiveram contato com a verdadeira
religião, a esqueceram ou entenderam-na erroneamente); a luta com os
feiticeiros indígenas pela eficácia simbólica dos ritos e crenças. Compreen-
der a cultura e a língua, a topologia e a geografia do território, com suas
plantas, alimentos e animais, lutar pela apropriação da eficácia simbólica
dos feiticeiros para, assim, poder agir sobre a natureza e a moral indígena
em um processo pedagógico-catequético/religioso, o que no fundo consti-
tui uma questão de conversão também em chave de leitura de civilização.
Ocorre que já em 1550, no segundo ano de presença jesuíta, observa-
se o surgimento de novos tópicos que entrarão no jogo de xadrez colonial
envolvendo jesuítas, colonos, Coroa e Igreja (clero secular), trazendo no-
vas questões.
O principal interlocutor de Nóbrega nestes primeiros anos era o pa-
dre Simão Rodrigues, fundador da Companhia e primeiro provincial de
Portugal, o qual funcionava como supervisor da missionação do Brasil, que
ainda não possuía um provincial.
Na carta escrita por Nóbrega a Simão Rodrigues em 1550 observa-se
já de início a narrativa dos progressos do padre João de Azpilcueta Navarro
na Bahia, e a necessidade de conservar tal progresso congregando os ín-
dios batizados afastados dos demais, no que já parece ser um esboço de
redução ou aldeamentos nos moldes do Paraguai nos séculos seguintes
(XVII-XVIII):

O padre Navarro estava (como ainda está) em suas aldeias, pregando aos gran-
des e ensinando a ler e a fazer orações aos pequenos e ajudando a se
afervorarem no amor de Deus e no desejo do baptismo alguns homens e ca-
thecumenos, entre os quaes alguns o pedem com muita instancia. Esperamos
Pedro Brocco | 207

por todas as vias fazer-lhes deixar os muitos maus costumes que têm, e dese-
jamos congregar todos os que se baptisam apartados dos mais, e por isso
ordenamos que Diogo Alvares fique entre elles como pae e governador, es-
tando em bons créditos e muito na graça delles todos.141

Ao nomear e ordenar um pai e governador para administrar os índios


mantendo-os apartados dos demais, não batizados nem educados con-
forme as diretrizes católicas do império português, Nóbrega opera uma
mudança de paradigma missional, das chamadas missões volantes, em re-
lação às quais João de Azpilcueta Navarro vinha tendo bom desempenho
no aprendizado da língua nativa e na comunicação com os índios, para a
missão nos moldes das aldeias administradas por jesuítas, o que configura
uma ressignificação do aldeamento feito por dentro, ou de dentro para
fora: das missões volantes, familiarizando-se com as aldeias, para aldeias
formadas por índios convertidos ou em vias de converter-se, as quais fu-
turamente receberiam índios provenientes de diferentes tribos, que se
tornarão supérfluas depois da conversão e compartilhamento da mesma
língua e matriz civilizacional-religiosa.
Nóbrega, no entanto, reconhece não ter podido ainda “cumprir esta
intenção” devido ao receio de guerra, pois alguns povos de mais longe
ainda tinham ódio aos cristãos e poderiam vir a atacá-los142. De fato, a Ba-
hia daquele período, e ainda o Espírito Santo, eram regiões de grande
resistência indígena em relação aos portugueses. Nóbrega relata a pre-
sença de um escravo outrora cristão sublevando alguns índios contra
portugueses: “dizendo que o Governador os quer matar a todos ou fazel-
os escravos, e que nós procuramos os enganar, e a todos queremos vêr
mortos, e que baptisar-se é fazer-se uma pessoa escravo dos Christãos e
outras coisas similhantes”143. Juntamente com este ex-escravo, diz Nó-
brega, ainda concorreram os “pecadores portugueses”:

141
NÓBREGA, CB, pp. 103-104. Carta a Simão Rodrigues, Porto Seguro, 1550. Grifos meus.
142
Idem, p. 104.
143
Idem, ibidem.
208 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

(...) e não ha muito tempo que mataram em uma aldeia o filho de um Christão
nascido de uma Negra da terra, o que trouxe muito ressentimento ao Gover-
nador, e pensamos que será origem de um bom castigo e de grande exemplo
aos outros Gentios, e talvez por medo se convertam mais depressa do que o
fazem por amor; tanto vivem corrompidos nos costumes e apartados da ver-
dade.144

Aparece neste trecho dois aspectos que se tornarão, a nosso ver, as


principais constantes da colonização portuguesa no Brasil do ponto de
vista da conversão operada pela Companhia de Jesus, atravessando toda a
sua história: a rivalidade com os colonos e o método de adotar o medo
como causa da conversão145.
Ora, Nóbrega desde o início aponta para a tensão, no Brasil, entre
medo e amor, medo versus amor. Quando da chegada à Bahia, Nóbrega já
constata o mau estado moral dos colonos portugueses e escreve a Simão
Rodrigues sobre a necessidade de um vigário-geral capaz de, apoiado na
validade do Direito Canônico, disciplinar a então nascente sociedade colo-
nial: colocou-se aqui Nóbrega e os demais jesuítas do lado do amor
(simbolizado pela caridade), deixando para o clero secular o papel de atuar
na seara do medo. Porém, Nóbrega logo percebe que, dado o estado pre-
cário da colônia, teria que cumprir a função de vigário-geral e admoestar
alguns colonos: “Neste officio me metti em ausência do Vigario Geral, pa-
recendo-me que em cousas de tanta necessidade, Nosso Senhor me dava
cuidados destas ovelhas”146.
Além disto, percebe-se também que em relação aos índios, apostar
no medo poderia ser mais eficaz para a sua conversão. O castigo exemplar,
aqui, recaindo sobre os “peccadores portugueses”, atuaria sobre os gentios
de modo que “talvez por medo se convertam mais depressa do que o fazem
por amor”. Tal mudança apresenta um deslocamento mais ou menos ra-
dical em relação ao ideal evangélico e missionário, e pode-se questionar se

144
Idem, ibidem.
145
Cf. a tese de EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aven-
turas teóricas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000.
146
Idem, p. 80.
Pedro Brocco | 209

a metodologia de apostar no medo foi aplicada em outras regiões de mis-


são ao redor do mundo.
Com relação à questão da rivalidade com os colonos, a tensão irá cres-
cer de modo exponencial até a expulsão dos jesuítas dos domínios
portugueses e a extinção da Companhia de Jesus no século XVIII. Os colo-
nos irão apresentar-se hostis em relação aos jesuítas de modo especial em
São Paulo de Piratininga e no Maranhão e Grão-Pará, no século XVII. Estas
regiões possuíam mais dificuldade de obter e organizar a mão-de-obra es-
crava africana, de modo que encontrarão na mão-de-obra escrava
indígena os meios adequados para o desenvolvimento de suas atividades
econômicas, em contraposição direta aos missionários, que se colocavam
como protetores paternalistas dos corpos e almas dos índios com o intuito
de convertê-los e conduzi-los pelo caminho evangélico. Trata-se, como se
pode ver, desde o início, de uma questão de economia política que se tor-
nará mais clara só depois, ao longo dos séculos XVII e XVIII147. Provoca-se
aqui neste trabalho, no entanto, o seguinte questionamento: em que me-
dida a economia da salvação (jesuíta) concorre para o estabelecimento da
economia política (secular, colonial)? E quando e por que motivos estas
duas modalidades de economia (que derivam do grego oikonomia, go-
verno da casa, oikos) se tornam incompatíveis?
Parece correto afirmar, ao menos, em um primeiro momento, que a
economia da salvação pavimenta o caminho para a conversão e o alarga-
mento dos súditos do império português, capazes de falar a mesma língua
e partilhar um mesmo solo civilizacional. Ora, dado o contingente popula-
cional bastante desigual de colonos portugueses e nativos indígenas,
parece também correto assumir a hipótese de Maria Regina Celestino de
Almeida148, segundo a qual a mão-de-obra indígena, nestes primeiros anos
de colonização, foi utilizada sobretudo do ponto de vista militar e estraté-
gico, com a função de construção de limites territoriais e de sua

147
Quando a Companhia de Jesus é extinta, pode-se perceber que havia surgido inclusive uma tensão em relação aos
Estados nacionais acerca da soberania política, como no caso paradigmático do Paraguai.
148
ALMEIDA, Maria R. C. de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.
210 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

conservação. Falaremos com mais detalhes sobre isto à frente, quando


analisarmos a fundação da cidade do Rio de Janeiro.
Os colonos portugueses aparecem nesta carta de Nóbrega de 1550 em
um registro muito próximo daquele encontrado nos relatos lascasianos:
violentos e cruéis ameaçadores da paz e equilíbrio comunal nas terras
americanas.
Ao discorrer sobre a situação das aldeias de Porto Seguro, onde a
carta é escrita, Nóbrega observa a dificuldade de “desarraigar aos mais ve-
lhos suas más usanças”, já com os meninos se pode esperar “muito fructo,
pois não se oppõem quasi nada á nossa lei e assim me parece que esteja
aberta a porta para muito ajudar as almas nesta terra”149, pois ali os jesu-
ítas não encontravam resistências em relação ao projeto de conversão,
ressalvando o seguinte fato:

(...) comquanto não sejam induzidos pelos Christãos que aqui vêm com o
exemplo ou com a palavra ao conhecimento de Deus, mas antes o chamam
cães e fazem-lhes todo mal. E toda intenção que trazem é de os enganar, de os
roubar, e por isso permittem que vivam como Gentios sem a sciencia da lei e
têm praticado muitos desacatos e assassinios (...) e assim é de todo perdido
nesta terra o zêlo e a charidade para com as almas que tanto ama o Senhor.150

Percebemos, assim, um deslocamento do mal, dos maus costumes e


da má crença, sustentada pelos feiticeiros, para o coração do próprio co-
lono e, assim, do projeto colonizador, operação também realizada por Las
Casas e os dominicanos na América hispânica. A colonização aparece,
neste registro, sob um ponto de vista moral.
Tal questão não é nova nas colônias ultramarinas portuguesas: antes
de Nóbrega e seus companheiros chegarem às terras brasileiras, em um
documento datado de 20 de janeiro de 1549, escrito em Cochim, na Índia,

149
Idem, p. 107. Carta a Simão Rodrigues, Porto Seguro, 1550.
150
Idem, pp. 107-108.
Pedro Brocco | 211

o padre Francisco Xavier escrevia ao Vigário-geral da Índia Pedro Fernan-


des Sardinha, o qual posteriormente se tornará bispo do Brasil e terá um
trágico desfecho na costa brasileira:

Quanto serviço faria a Deus Sua Alteza, se mandasse a estas partes da Índia o
Padre Mestre Simão, com muitos da Companhia de Jesus, pois com sua vinda
se faria muito fruto nas almas dos portugueses da Índia e muitos cristãos na
terra japã, que é dos infiéis. Contanto, [porém], que venha muito favorecido
de Sua Alteza com jurisdição no cível sobre todos os cristãos da terra: que nin-
guém tivesse mando sobre eles, senão as pessoas que fossem postas pelo Padre
Mestre Simão, por cima de serem providos homens por Sua Alteza para servi-
rem os tais cargos. É que os capitães que têm essa jurisdição sobre os cristãos
da terra, não se aproveitam dela para mais, que para fazer mal e tomarem o
seu a seu dono, contra sua vontade, escandalizando os cristãos da terra e fa-
zendo que os infiéis não se convertam, pelo mau tratamento que vêem fazer
aos que já são cristãos.151

Francisco Xavier escrevia ao Vigário, que estava de partida para Por-


tugal, que levasse tal mensagem ao rei: os governadores da Índia
(estrutura da qual acabava de sair Sardinha, indo para o reino) eram cor-
ruptos e escandalizavam os cristãos da terra, portugueses e convertidos.
Ora, o que pretendia o padre jesuíta senão agir diretamente sobre a esfera
administrativa e judicial, ao pretender concentrar tais poderes nas mãos
de inacianos, comandados por Simão Rodrigues, naquela altura Provincial
de Portugal? Simão Rodrigues que, por muito pouco, acabou não embar-
cando com destino ao Brasil para ocupar a posição de Manuel da Nóbrega.
Nota-se, porém, que, estruturalmente, a questão administrativa nos domí-
nios ultramarinos portugueses da Índia ao Brasil, estava unida por uma
continuidade temática, dizendo respeito sobre a má-administração e a cor-
rupção, que aparece como um indício nas cartas tanto de Nóbrega quanto
de Xavier, situados aqui em uma zona de opacidade entre o religioso e o
secular (basta dizer que Xavier pretendia que os jesuítas se ocupassem da
“jurisdição no cível” sobre todos os cristãos da Índia!).

151
XAVIER, Francisco. Obras completas. Braga: Edições A.O.; São Paulo: Edições Loyola, 2006, pp. 411-412. Realces
meus.
212 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Nóbrega constrói uma narrativa cujo objetivo é o de mostrar que os


maus exemplos dos cristãos produzem uma ineficácia não apenas do cris-
tianismo como projeto de evangelização, mas também do poder secular:

E dahi vem o pouco credito que gozam os Christãos entre os Gentios, os quaes
não estimam mesmo nada, sinão vituperam aos que de primeiro chamavam
santos e tinham em muita veneração e já tudo o que se lhes diz acreditam ser
manha ou engano e tomam á má parte. Esses e outros males fizeram os Chris-
tãos com o mau exemplo de vida e a pouca verdade nas palavras e novas
crueldades e abominações nas obras. Os Gentios desejam muito o commercio
dos Christãos pela mercancia que fazem entre si do ferro e disto nascem da
parte destes tantas cousas ilícitas e exorbitantes que nunca as poderei escre-
ver, e não pequena dôr sinto n’alma, máxime considerando em quanta
ignorancia vivem aquelles pobres gentios e que pedem o pão de Deus e da
santa Fé, sem haver qui frangat eis152.153

Pelo trecho pode-se depreender o papel multissecular da Igreja, cujos


efeitos hoje ainda se sentem: a criação e conservação de um horizonte de
crença (daí a presença do termo “crédito”) norteador de uma sociabilidade
possível. Neste sentido, a Igreja porta uma ética, e a ética cristã mantida
pela Igreja aparece em Nóbrega ligada aos costumes e virtudes exemplares
que encontram seus principais marcadores no estoque ético-teológico dos
Evangelhos sinóticos. Entra também neste argumento de Nóbrega a ques-
tão do reconhecimento por parte do Outro, trabalhado acima. Os colonos
cristãos portariam este reconhecimento, fazendo já parte da comunidade
na qual se pretendia inserir os índios. O lamento de Nóbrega é o de um
jesuíta que entrevê o fracasso da conversão, ligado à um déficit de crença
produzido pelo mau exemplo dos próprios colonos cristãos e à conse-
quente produção de não-sentido, geradora do real da angústia, que
aparece na carta: “(...) nascem da parte destes tantas cousas ilícitas e exor-
bitantes que nunca as poderei escrever, e não pequena dôr sinto n’alma
(...)”.

152
“sem haver alguém para quebrá-lo para eles”, tradução livre.
153
Idem, p. 108. Carta a Simão Rodrigues, Porto Seguro, 1550.
Pedro Brocco | 213

Além disso, observa-se que Nóbrega já realizava uma leitura econô-


mico-política ao descrever o jogo de relações entre índios e colonos dentro
de uma perspectiva mais ampla, relativa ao comércio e à exploração da
mão-de-obra escrava indígena. Cabe realçar aqui a importância decisiva
do ferro nesta questão, uma tecnologia trazida pelo europeu ao Brasil
ainda desconhecida por parte do nativo. Nóbrega faz uso da figura do ferro
e do ferreiro em seu Diálogo sobre a conversão do gentio, o qual será opor-
tunamente analisado neste trabalho.
Ainda nesta carta de 1550, Nóbrega observa os avanços da atuação da
Companhia de Jesus no quesito comunicação e aprendizado da língua da
terra. Nestes primeiros anos, o padre João de Azpilcueta Navarro era o
mais hábil na arte de evangelizar na língua da terra:

Na lingua deste paiz alguns somos muito rudes e mal exercitados, mas o padre
Navarro tem especial graça de Nosso Senhor nesta parte, porque andando pe-
las aldeias dos Negros, em poucos dias que aqui estamos, se entende com elles
e prega na mesma lingua e finalmente em tudo parece que Nosso Senhor lhe
presta favor e graça para mais poder ajudar as almas. (...) á noite ainda faz
cantar aos meninos certas orações que lhes ensinou em sua lingua delles, em
logar de certas canções lascivas e diabolicas que d’antes usavam.154

Observa-se aqui duas operações essenciais dos jesuítas na arte da


conversão: a primeira delas é o aprendizado da língua nativa dos que se
pretendiam converter, de modo que se pudesse entabular cenários comu-
nicativos a partir da língua do outro. Em segundo lugar, havia o
deslocamento do cristianismo, em todas as suas dimensões de cultura e
doutrina, para a língua do outro. Assim, o padre Navarro pôde se entender
e pregar na língua dos índios e ensinar orações cristãs às crianças “em sua
lingua delles”. Além disso, as crianças eram de mais fácil trato para a con-
versão e muitos línguas nestes primeiros anos eram crianças que podiam
aprender o português através dos jesuítas.

154
Idem, p. 105.
214 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

A carta escrita aos Padres e Irmãos de 1551 também toca na questão


da educação das crianças e jovens: “Principalmente pretendemos ensinar
bem os moços, porque estes bem doutrinados e acostumados em virtude,
serão firmes e constantes, os quaes seus paes deixam ensinar e folgam com
isso, e por isso nos repartiremos pelas capitanias, e com as linguas que nos
acompanham nos ocupamos nisto”155.
Nóbrega foi o principal arquiteto da fundação da cidade de São Paulo.
Já desde esta época, procurava entrar em contato com índios do sertão que
ainda não tivessem conhecido os colonos europeus. Almejando este obje-
tivo, e para uma entrada mais fácil pelo planalto até o Paraguai, Nóbrega
sobe a serra de São Vicente até onde se situa hoje a cidade de São Paulo, e
ali estabelece, com outros jesuítas, a vila de São Paulo de Piratininga, em
1554.
Ainda em 1551, no entanto, obcecava Nóbrega a ideia de encontrar
índios mais dúcteis e fáceis de converter, que não conhecessem as contra-
dições da colonização. Observa em um trecho, após falar da divisão dos
jesuítas pelas capitanias do Brasil:

(...) aprendendo pouco a pouco a lingua, para que entremos pelo sertão dentro,
onde ainda não chegaram os Christãos, e tenho sabido de um homem Gentio
que está nesta terra, que vivem em obediencia de quem os rege e não comem
carne humana, andam vestidos de pelles, o que tudo é uma disposição para
mais facilmente se converterem e sustentarem.156

A carta aos padres e irmãos de 1551 talvez seja a mais otimista escrita
por Nóbrega após a primeira carta de chegada à Bahia. Como era o cos-
tume em cartas deste tipo, o tom era encomiástico e triunfalista a respeito
das missões. Em geral, Nóbrega se mostrava melancólico e pessimista com
muitos aspectos encontrados nas missões do Brasil, mas aqui, talvez, qui-
sesse transmitir outra imagem do estado das coisas da missão brasileira.
Observe-se o primeiro parágrafo da carta:

155
Idem, p. 115. Carta aos padres e irmãos, Pernambuco, 1551.
156
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 215

Em estas partes depois que cá estamos, charissimos Padres e Irmãos, se fez


muito fructo. Os Gentios, que parece que punham sua bem-aventurança em
matar os contrarios e comer carne humana e ter muitas mulheres, se vão
muito emendando, e todo o nosso trabalho consiste em os apartar disto; por-
que todo o demais é facil, pois não têm ídolos, ainda que ha entre elles alguns
que se fazem santos, e lhes promettem saude, e victoria contra seus inimi-
gos.157

O aspecto interessante deste primeiro parágrafo é o fato de Nóbrega


reconhecer que todo o trabalho dos jesuítas consistisse na questão moral
de apartar os índios dos costumes da antropofagia e poligamia: o restante,
que tocaria de forma mais direta na religião, seria mais fácil, pelo fato de
os índios não possuírem ídolos (o que já se provou não ser exatamente
verdadeiro; ainda que não possuíssem sistema de escrita organizando ritos
religiosos, praticavam os rituais envolvendo os maracás e os feiticeiros,
que no início da evangelização se tornaram grandes adversários dos jesu-
ítas). Ora, tais questões de raiz moral tocam no direito de forma muito
direta e especial, pois a antropofagia encontrará obstáculo na proibição de
matar o próximo (direito penal) e a poligamia na interdição de tomar ou-
tro cônjuge, além de interdições relacionadas ao parentesco (direito civil).
É verdade que estas questões morais encontravam-se reguladas pela reli-
gião, com os mandamentos e a lei mosaica; mas é certo também que uma
história do direito penal ou civil no Brasil não pode ser feita sem levar em
consideração esta problemática do século XVI.
Nóbrega relata o desejo que os índios da costa tinham de se tornarem
cristãos: “com quantos Gentios tenho fallado nesta costa em nenhum achei
repugnancia ao que lhe dizia. Todos querem e desejam ser christãos”158.
Assim também os escravos índios dos cristãos e os próprios cristãos se iam
emendando. Além disso, relata que se faziam “muitos casamentos entre os
Gentios”159.

157
Idem, p. 114.
158
Idem, ibidem.
159
Idem, p. 115.
216 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Relata também a novidade da chegada de meninos órfãos de Lisboa,


que “com seus cantares attrahem os filhos dos Gentios e edificam muito
os Christãos”160. Os meninos órfãos portugueses tiveram a importância de
representar para as crianças índias as crianças europeias, aproximando-
as na educação. Seria mais fácil que aprendessem umas a língua das outras
e pudessem ter uma educação bilíngue, além de as crianças índias terem
possibilidade de se formarem futuros bons línguas.
Um aspecto novo que aparece nesta carta e que será confirmado com
a futura chegada do bispo Sardinha é a tensão e mesmo rivalidade posta
em cena entre os jesuítas e o clero secular:

Os clerigos desta terra têm mais officio de demonios que de clerigos: porque,
além de seu mau exemplo e costumes, querem contrariar a doutrina de
Christo, e dizem publicamente aos homens que lhes é licito estar em peccado
com suas negras, pois que são suas escravas, e que podem ter os salteados,
pois que são cães, e outras cousas semelhantes, por escusar seus pecados e
abominações, de maneira que nenhum Demonio, temo agora que nos persiga,
sinão estes.161

Aparece então mais um “inimigo” dos jesuítas nas missões brasilei-


ras: já o foram os feiticeiros, os próprios colonos, e agora ninguém menos
do que o clero secular. Nóbrega chega a dizer que nenhum demônio – no
sentido de ninguém pior – os perseguisse naquele momento. Na carta an-
terior escrita aos padres e irmãos, em 1549, a Informação das terras do
Brasil, trazia justamente os feiticeiros encabeçando o rol das ameaças da
missão: “Depois lhe offerecem muitas cousas e em as enfermidades dos
Gentios usam tambem estes feiticeiros de muitos enganos e feitiçarias. Es-
tes são os móres contrarios que cá temos (...)”162.
Sobre o clero da colônia, Nóbrega chega mesmo a confessar um re-
ceio pela própria vida dos missionários, e é verdade que neste momento

160
Idem, ibidem.
161
Idem, p. 116.
162
Idem, p. 100. Informação das terras do Brasil.
Pedro Brocco | 217

escreva esperar a chegada de um bispo para que a situação da colônia seja


regulada:

Querem-nos mal, porque lhes somos contrarios a seus maus costumes e não
podem soffrer que digamos as missas de graça, em detrimento de seus inte-
resses. Cuido que, si não fora pelo favor que temos do Governador e principaes
da terra, e assim porque Deus não o quer permitir, que nos tiveram já tiradas
as vidas. Esperamos que venha o Bispo, que proveja isto com temor, pois nós
outros não podemos com amor.163

Vê-se assim que o projeto de conversão no Brasil, como em outras


partes do mundo, não foi de modo algum levado adiante em harmonia e
sem tensões dentro da Igreja.
Na carta escrita para os irmãos do Colégio de Coimbra164 em 1551,
Nóbrega mostra de forma clara o esforço da Companhia de Jesus de pro-
duzir uma sociabilidade entre as tribos indígenas divididas e em constante
guerra. A intuito seria o de utilizar a Igreja como dispositivo de criação e
conservação de um sentimento de amizade, alicerçado também nos casa-
mentos e alianças conjugais e familiares construídas a partir do
casamento.

Os mais aqui tinham Indias de muito tempo de que tinham filhos e tinham por
grande infâmia casarem com ellas. Agora se vão casando e tomando vida de
bom estado. São feitas muitas amizades porque esta capitania estava em ban-
dos com os principaes da terra, e os fizemos amigos á porta da egreja com que
já todos estão em paz. Havia muitas moças filhas de Christãos dadas á soldada
a solteiros, com que publicamente peccavam e davam-lh’as a Justiça; fil-as
ajuntar em casa de casados virtuosos e agora se vão casando e amparando.165

O objetivo de Nóbrega com esta carta, escrita em Pernambuco, era o


de despertar nos leitores do Colégio de Coimbra o desejo de ir ao Brasil

163
Idem, p. 116. Carta aos padres e irmãos, Pernambuco, 1551.
164
“Para os Irmãos do Collegio de Jesus de Coimbra”.
165
NÓBREGA, M., CB, p. 119.
218 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

participar do projeto evangelizador dos jesuítas. O foco da carta é o de in-


formar sobre a melhoria da situação social da colônia depois da chegada
da Companhia de Jesus, e dos feitos realizados relacionados à conversão e
à observância dos sacramentos.
Ao mesmo tempo em que informava o respeito haurido pelos jesuítas
no Brasil (“(...) pela fama da Companhia, a qual é cá tida em muita vene-
ração. Em somente verem que somos membros della (...) isto faz em todos
abalo, a emendar-se de suas vidas”166), Nóbrega fala dos maus exemplos
dos sacerdotes que até então atuavam na colônia: “Havia cá mui pouco
cuidado de salvar almas; os sacerdotes que cá havia estavam todos nos
mesmos peccados dos leigos, e os demais irregulares, outros apostatas e
excomungados”167.
Um aspecto interessante que surge nesta carta é a passagem que fala
sobre a necessidade de aproximação das “índias forras”, de modo que se
evitasse que elas voltassem para a vida pré-cristã: “As Indias forras que ha
muito que andam com os Christãos em peccado, trabalhamos por reme-
diar por não se irem ao sertão porque são christãs e lhes ordenamos uma
casa á custa dos que as tinham para nella as recolher e d’alli casarão com
alguns homens trabalhadores pouco a pouco”168.
O parágrafo em que Nóbrega fala das índias forras é de grande im-
portância para a compreensão do projeto da Companhia de Jesus no Brasil.
O peso dado à conversão das mulheres para a criação e conservação de
uma comunidade cristã é tal que se pode ver até mesmo um esforço para
transformar uma das índias em meirinha169, talvez a primeira índia mei-
rinha do Brasil:

166
Idem, ibidem.
167
Idem, ibidem.
168
Idem, pp. 119-120.
169
Os meirinhos eram oficiais de justiça durante a Idade Média portuguesa, tendo funções típicas de oficiais de justiça
como executar prisões, citações, penhoras e mandados judiciais. Este indício da índia meirinha corrobora a hipótese
de que os jesuítas atuaram como funcionários públicos no Brasil: funcionários da Igreja e também da Coroa, cuja
atuação se dava em prol da fundação de uma comunidade orientada pela ética cristã centrada em Roma e pela sujei-
ção à Coroa portuguesa centrada em Lisboa.
Pedro Brocco | 219

Todas andam com grande fervor e querem emendar-se de seus peccados e se


confessam já as mais entendidas e sabem-se mui bem accusar. Com se ganha-
rem estas se ganha muito, porque são mais de 40 só nesta povoação, afora
muitas outras que estão pelas outras povoações, e acarretam outras do sertão,
assim já christãs como ainda gentias. Algumas destas mais antigas prégam ás
outras. Temos feito de uma dellas meirinha, a qual é tão diligente em chamar
á doutrina que é para louvar a Nosso Senhor: estas, depois de mais arraigadas
no amor e conhecimento de Deus, hei de ordenar que vão prégar pelas aldeias
de seus parentes e certo que em algumas vejo claramente obrar a virtude do
Altissimo. Ganharemos tambem que estas nos trarão meninos de Gentio para
ensinarmos e criarmos em uma casa que para isso se ordena e já fazem nella
com muita pressa e fervor todo o povo assim homens como mulheres.170

Nóbrega também escreve aos colegas de Coimbra sobre os muitos


índios que os procuravam pela fama que a Companhia de Jesus possuía na
colônia: “Destes escravos e das prégações corre a fama ás aldeias dos Ne-
gros, de maneira que vêm a nós de mui longe a ouvir nossa pratica.
Dizemos-lhes que por seu respeito principalmente viemos a esta terra, e
não por os Brancos”171. Os jesuítas apostavam na habilidade retórica das
pregações e sermões e desde essa época conheciam o hábito dos índios de
apreciarem bons oradores. Os “principais” das aldeias conquistavam tal
posição devido ao fato de serem bons oradores e de conseguirem mover
seus próximos, principalmente quando a palavra se ligava à função guer-
reira. Os jesuítas então buscavam imitá-los nos trejeitos, nos gestos, no
andar batendo no peito, no falar alto, quiçá com a mesma tonalidade da
voz, para ganhar a atenção e o crédito dos índios, muito guiados, como já
se observou, pelo aspecto da oralidade, imersos que estavam em culturas
orais.
Interessa também mostrar como os jesuítas desempenharam esta vo-
cação da Igreja de chegar a todos os povos do mundo, quando analisamos
esta frase de Nóbrega, que opera um efeito de chiaroscuro ao expor aos
índios, naquele momento chamados de “negros”, que os jesuítas estavam

170
Idem, p. 120. Grifo meu.
171
Idem, p. 121.
220 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

no Brasil mais por causa deles do que pelos “brancos”, o que, do ponto de
vista da estratégia de conversão, era verdade; o que não se manifesta aí
claramente é a tentativa de apagar o que permanecia de “negro” e trans-
formá-los em “brancos” nos costumes e na prática dos sacramentos
católico-tridentinos. Essas metáforas se ligam ao que João Adolfo Hansen
trabalha a partir das imagens da “luz”: “o tembetá não impede a fala es-
cura dos meninos porque, em sua barbárie material, é análogo e simpático
da sua mudez e cegueira; mas obscurece e impede antipaticamente a fala
da Luz”, significando aí a luz do verbo divino. Hansen analisa um episódio
da narrativa de Nóbrega constante na carta enviada a Martín de Azpilcueta
Navarro:

D’entre muitas cousas referirei uma que bastante me maravilhou, e foi que
ensinando um dia o padre João de Aspilcueta os meninos a ler e a fazer o signal
da cruz, e tendo os ditos meninos certas pedras de varias cores nos lábios, que
é uso trazer furados, e muito estimam, embaraçando as pedras de fazer-se o
signal da cruz, veiu a mãe de um delles e para logo tirou a pedra dos labios de
seu filho e atirou ao telhado; de repente os outros fizeram o mesmo: e isto foi
logo quando começamos a ensinar.172

João Adolfo Hansen viu aí, no gesto da mãe de tirar a pedra (tembetá)
do beiço do filho, uma alegoria exemplar: “não saberia que, ao abrir-lhe a
boca para a audição sublime do verbo católico e a visão humilde do seu
pecado original, fechava-a, boca muda, boca cega, para sempre”173.
Tanto os “índios” quanto os “brancos” deveriam se guiar, na vida co-
lonial, pelo procedimento ético cristão extraído e destilado das noções que
informavam os sacramentos: batismo, casamento, confissão, eucaristia.
Nóbrega, aliás, toca neste ponto: “Mostram grande vontade e desejos de
os conversarmos e ensinarmos. Mui facil cousa é serem todos christãos si
houver muitos obreiros que os conservem em bons costumes, porque
d’outra maneira far-se-á a grande injuria ao Sacramento”174. Ora, como

172
Idem, p. 92. Carta a Martín de Azpilcueta Navarro, Bahia, 1549.
173
HANSEN, João Adolfo. “O nu e a luz: cartas jesuíticas do Brasil. Nóbrega – 1549-1558”, op. cit., p. 119.
174
NÓBREGA, CB, op. cit., p. 121.
Pedro Brocco | 221

interpretar esta passagem sem ter em conta que os jesuítas buscavam con-
servar aspectos normativos ligados a procedimentos informados pelos
sacramentos, sobretudo quando se leva em consideração que a Companhia
de Jesus estava naquele momento engajada no movimento da Contrarre-
forma, que tocou de forma especial na reforma dos sacramentos?
Ademais, Nóbrega escreve a carta também para chamar mais jesuítas
para trabalhar na vinha da Companhia no Brasil175. A mão de Nóbrega que
escreve a carta para que os jesuítas de Coimbra a leiam e desejem percor-
rer os muitos percalços da colônia revela a metáfora organicista do corpo
místico de Cristo, a informar a ideologia política da Coroa e também a or-
ganização da Igreja: “Isto vos quiz escrever assim em breve para que
vejaes, charissimos, quanta necessidade cá temos de vossas orações. Non
solum nobis nati estis: um corpo somos em Jesus Christo; si lá não susten-
tardes, este vosso membro perecerá”176.
Ainda em 1551, Nóbrega escreve de Pernambuco uma carta ao rei
Dom João III. Nela, vemos uma espécie de resumo da atividade da Compa-
nhia de Jesus no Brasil e impressões gerais sobre moral e costumes de
Pernambuco, extensíveis ao restante da costa brasileira. Entretanto, Nó-
brega realiza, após descortinar o panorama da colônia na carta, alguns
pedidos ao rei, como a introdução de escravos africanos da Guiné no Co-
légio da Bahia.
A questão introdutória desta carta ao rei concerne à questão dos sa-
cramentos, maus costumes e maus exemplos dos sacerdotes de
Pernambuco:

Nesta capitania se vivia muito seguramente nos peccados de todo genero, e


tinham o peccar por lei e costume; os mais ou quase todos não commungavam
nunca e a absolvição sacramental a recebiam perseverando em seus peccados.
Os ecclesiasticos que achei, que são cinco ou seis, viviam a mesma vida e com
mais escandalo e alguns apostatas, e por todos assim viverem não se estranha

175
Cf. a tese de doutorado de CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a
conversão dos índios no Brasil 1580-1620. Bauru: Edusc, 2006.
176
Idem, ibidem.
222 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

peccar. A ignorancia das cousas da nossa Fé Catholica é cá muita e parece-lhes


novidade a pregação d’ellas. Quasi todos têm negras forras do Gentio e quando
querem se vão para os seus.
Fazem-se grandes injurias aos Sacramentos que cá se ministram.177

Interessante notar, pouco depois, como, argutamente, Nóbrega faz


observações sobre o donatário da capitania, Duarte Coelho, e sugere que o
rei tomasse a jurisdição de toda a costa brasileira para si:

Duarte Coelho e sua mulher são tão virtuosos quanto é a fama que têm, e certo
creio que por elles não castigou a justiça do Altissimo tantos males até agora
e, porém, é já velho e falta-lhe muito para o bom regimento da Justiça e por
isso a jurisdicção de toda a costa devia de ser de Vossa Alteza.178

Percebe-se quão interligados estavam os campos da religião e do go-


verno secular, a ponto de Nóbrega observar que em Pernambuco haveria
mais facilidade para a conversão pois o governo secular não permitia que
os índios fossem molestados: “Este Gentio está mui apparelhado a se nelle
fructificar por estar já mais domestico e ter a terra Capitão, que não con-
sentiu fazerem-lhe agravos como nas outras partes”179. Quer isto sinalizar
para os relatos anteriores sobre assaltos, assassinatos, preações e pilha-
gens realizados pelos próprios colonos portugueses, o que diminuía o
crédito dos indígenas acerca da ética cristã e abalava a possibilidade de sua
integração à sociedade colonial.
Nesta carta ao rei, Nóbrega diz que em Pernambuco com os escravos
se fazia muito fruto, “os quaes viviam como gentios sem terem mais que
serem baptisados com pouca reverencia do Sacramento”, e “das prégações
e doutrina que lhes fazem corre a fama a todo Gentio da terra e muitos
nos vêm ver e ouvir o que de Christo lhes dizemos (...)”180.

177
Idem, pp. 123-124. Carta a D. João III, Olinda, 1551.
178
Idem, p. 124.
179
Idem, ibidem.
180
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 223

Se for possível estabelecer um núcleo para a carta, este se dividiria


em dois: o primeiro deles está em mostrar ao rei a facilidade da conversão
dos índios da terra, desde que houvesse uma estrutura de pessoal e inves-
timentos; e o segundo consiste em alertar o rei para os maus costumes dos
colonos: adultério e poligamia, principalmente.
Em relação ao primeiro núcleo, temos o trecho já citado anterior-
mente quanto à metáfora do papel branco:

O converter todo este Gentio é mui facil cousa, mas o sustental-o em bons
costumes não póde ser sinão com muitos obreiros, porque em cousa nenhuma
crêm e estão papel branco para nelles escrever á vontade, si com exemplo e
continua conversação os sustentarem. Eu quando vejo os poucos que somos,
e que nem para acudir aos Christãos bastamos, e vejo perder meus proximos
e creaturas do Senhor á mingua, tomo como remédio clamar ao Creador de
todos e a Vossa Alteza que mandem obreiros e a meus Padres e Irmãos que
venham.181

Como já exposto anteriormente, Nóbrega se contradiz ao afirmar que


os índios “em nenhuma cousa crêm”. O que daí se segue, isto é, o “estarem
papel branco para nelles escrever á vontade, si com exemplo e continua
conversação os sustentarem” toca de forma particular na psicologia aris-
totélica, pressuposto de sua ética, elemento fundamental na formação
jesuíta e parte importante da escolástica ibérica. Passando pela metafísica
de Aristóteles no tocante aos conceitos de potência e ato, Nóbrega reco-
nhece a capacidade do gentio brasileiro de receber a escritura ocidental
por intermédio dos jesuítas. Alguns séculos antes do horizonte distópico
de Kafka ao escrever o conto Na colônia penal, os jesuítas utilizavam a me-
táfora da escrita sobre o corpo, um corpo feito papel branco. A escrita
sobre o corpo corre em paralelo com a narrativa do apagamento de hábitos
corporais para a vida cristã, como o caso da alegoria da mãe que retira o
tembetá do beiço do filho e o atira no telhado182.

181
Idem, pp. 124-125.
182
HANSEN, João Adolfo. “O nu e a luz”, op. cit.
224 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

A metáfora do papel branco fala também do fato de os indígenas não


possuírem sistema de escrita, mas também de sua suposta capacidade de
adaptação e integração em um projeto social e político intermediado pelos
saberes, práticas e instituições da Europa e da Igreja Católica.
A escritura europeia-católica que pretende se insinuar no corpo do
índio brasileiro faz parte de uma trajetória multissecular da Igreja Católica
e de suas conjunções com os poderes seculares então em vias de formação
dos Estados nacionais. A escritura que jungia os corpos e as práticas na
Europa devia ser transferida ao Novo Mundo, de modo que aqui o exemplo
e a conversação contínua seriam indispensáveis para dar continuidade à
escrita europeia. Mas Nóbrega queixava-se amiúde dos maus costumes
dos índios e dos colonos portugueses que habitavam o Brasil, como se a
escritura católico-europeia no Brasil fosse de difícil consecução. É muito
comum aparecerem nas cartas de Nóbrega afirmações sobre os pecados
dos colonos e dos índios: “Por toda esta costa ha muitos homens casados
em Portugal e vivem cá em grandes peccados com muito prejuízo de suas
mulheres e filhos (...)”; “Nestas partes há muitos escravos e todos vivem
em peccado com outras escravas (...)”183. Por toda a parte, o pecado apa-
rece como uma força muito poderosa, capaz de arrastar colonos, escravos
e índios para os maus costumes.

b. A criação dos soldados de Cristo184: 1552-1557

A carta de 1552 para o provincial de Portugal relata a chegada do


bispo D. Pedro Fernandes Sardinha em 22 de junho daquele ano. Chega
com ele, também, o clero secular e a estrutura administrativa da Igreja
Católica à Bahia. Nesta carta, Nóbrega observa que o bispo determina que

183
NÓBREGA, CB, p. 125.
184
NEVES, Luiz Felipe Baêta. O combate dos soldados de Cristo na Terra dos Papagaios. Rio de Janeiro: Forense-
Universitária, 1978.
Pedro Brocco | 225

os padres da Companhia se ocupem da visitação das capitanias185. Nó-


brega, no entanto, parece mais do que nunca querer aproximar-se do
Governador, talvez por entrever que a Companhia poderia ver seu projeto
evangelizador ficar enfraquecido com a chegada do bispo: “D’aqui a dous
mezes irá o Governador correr a costa e irei com elle visitando as casas, e
darei ordem, como me Nosso Senhor ensinar, para que se comecem a fa-
zer; posto que algumas estão já bem principiadas”186.
Entrevendo já que o governador Tomé de Sousa fosse um aliado im-
portante para a Companhia, Nóbrega escreve ao provincial que tente
sondar o rei sobre a possibilidade de Tomé de Sousa permanecer no Brasil,
algo bastante inusitado politicamente enquanto proposta de um jesuíta:

O Governador Thomé de Sousa eu o tenho por tão virtuoso e entende tão bem
o espirito da Companhia, que lhe falta pouco para ser della; não creio que esta
terra fôra avante com tantos contrastes, como teve, si houvera outro Gover-
nador; dizem que se vai este anno que vem, que tememos muito vir outro, que
destrua tudo; de quantos lá vieram nenhum tem amor a esta terra: só elle,
porque todos querem fazer em seu proveito, ainda que seja á custa da terra,
porque esperam de se ir; parecem-me que si El-Rei lhe der lá o que tem á sua
filha, e a casar, e lhe mandar sua mulher, que folgará muito de viver cá (...)187.

Aparece também no trecho um receio por parte de Nóbrega da vinda


de outro governador, talvez menos imbuído e conhecedor do espírito da
Companhia, ou que pudesse agir contra os interesses desta, em favor do
que se insinuava ser outra grande força da Igreja no Brasil, representada
pelo bispo recém-chegado.
O mesmo tom assume Nóbrega em carta enviada ao próprio rei no
ano de 1552. Ao referir-se à notícia de volta de Tomé de Sousa ao reino,
escreve o jesuíta:

185
Idem, p. 129.
186
As casas a que Nóbrega faz referência aqui são os colégios das capitanias, o que se depreende pelo trecho anterior
ao citado: “(...) e tambem os outros collegios das capitanias querem fazer os moradores, e escrevem-me cartas sobre
isso, e querem dar escravos e muita ajuda”. Cf. NÓBREGA, CB, p. 130. Carta ao Provincial de Portugal, Bahia, 1552.
187
NÓBREGA, CB, p. 131. Idem.
226 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Temos por nova que manda Vossa Alteza ir para o anno a Thomé de Sousa;
obriga-me Nosso Senhor a dizer o muito que temo vir outro, que destrua isso
pouco que está feito, e que favoreça mais os peccados, vícios que este, e que
queira ir aproveitando á custa da terra; sei que folgará muito de viver nesta
terra si cá tivesse sua mulher, ainda que não fosse Governador (...) porque o
maior mal que lhe achamos é ser mais amigo da Fazenda um pouco de Vossa
Alteza do que deve; ao menos, lembro a Vossa Alteza que não mande a esta
terra Governador solteiro nem mancebo, si a não quer ver destruída, e grande
bem seria si fosse casado, e viesse com sua mulher por darmos principio e
fundamento a estas casas das capitanias, que começamos a fundar.188

Cabe aqui sublinhar a diametral posição de Nóbrega e dos jesuítas em


relação à hipótese de Gilberto Freyre acerca dos fundamentos da coloniza-
ção no Brasil. Freyre deposita na abstração de uma inclinação à
miscibilidade o principal trunfo português no tocante à sua capacidade
adaptativa ao ambiente tropical:

A escassez de capital-homem, supriram-na os portugueses com extremos de


mobilidade e miscibilidade: dominando espaços enormes e onde quer que pou-
sassem, na África ou na América, emprenhando mulheres e fazendo filhos, em
uma atividade genésica que tanto tinha de violentamente instintiva da parte
do indivíduo quanto de política, de calculada, de estimulada por evidentes ra-
zões econômicas e políticas da parte do Estado.189

Se assim de fato foi com os “lançados” Diogo Álvares (Caramuru) na


Bahia e João Ramalho em Piratininga, parece-nos que o investimento de
longo prazo e maior envergadura no projeto colonizador não teria sido
possível sem o arcabouço institucional capaz de influir ao mesmo tempo
na: i) organização política e na ii) estrutura comportamental dos contin-
gentes populacionais regulados. A Companhia de Jesus, por intermédio de
Nóbrega, buscava incidir nesses dois eixos ao participar do esforço de cen-
tralização política das capitanias ao redor do governador-geral e de
Salvador e ao incidir sobre os costumes, hábitos, linguagem, pensamentos

188
Idem, p. 134. Carta a D. João III, Bahia, 1552.
189
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal.
São Paulo: Global, 2004, p. 70.
Pedro Brocco | 227

e forma de organização social dos índios, ligando-os ao modo de vida por-


tuguês através do campo político-jurídico (direito) e religioso
(sacramentos), formando assim um aspecto unitivo a respeito de sua es-
trutura comportamental, desdobrando-a em cultural (lusófona).
Freyre faz uma leitura correta acerca das tensões das forças que dis-
putavam, no mundo colonial luso-brasileiro, a hegemonia do uso dos
corpos dos índios, porém não identifica na Companhia de Jesus enquanto
instituição a primazia no front contra o método colonial nestes anos inici-
ais de captura e escravização da força de trabalho indígena. Correndo o
risco de realizar uma leitura individualista, psicológica e abstrata, Freyre
fala no “amor do homem branco” acima de preconceitos de classe e de
raça:

Desse amor, acima de preconceitos de raça e de convenções de classe, do


branco pela cabocla, pela cunhã, pela índia, de que foram capazes tantos colo-
nos portugueses, fundadores do Brasil, desde os primeiros tempos, de famílias
mestiças, não deve ser esquecido o aspecto romântico, para acentuar-se só o
voluptuoso.190

Parece-nos mais tangível a análise da colonização a partir de forças


políticas e sociais empiricamente verificáveis através das fontes do que
apostar em forças abstratas como a miscibilidade ou o “instinto” sexual
mais desenvolvido entre os portugueses. O fato é que a Igreja Católica apa-
receu com igual importância para a consecução do objetivo colonizador
tanto entre os portugueses quanto entre os castelhanos. E isto operando a
partir de uma rede de instituições e saberes capazes de formar um plane-
jamento e programas de ação com vistas à conversão de enormes
contingentes populacionais ao modo de vida cristão (processo definido
aqui como uma psicagogia).

190
FREYRE, Gilberto. O mundo que o português criou: aspectos das relações sociais e de cultura do Brasil com Por-
tugal e as colônias portuguesas. São Paulo: É Realizações, 2010, p. 27. Cf. também FREYRE, Gilberto. O luso e o
trópico: sugestões em torno dos métodos portugueses de integração de povos autóctones e de culturas diferentes da
europeia num complexo novo de civilização: o lusotropical. São Paulo: É Realizações, 2010.
228 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

A carta de Nóbrega ao rei D. João III de 1552 tem ao menos dois tre-
chos de suma importância, além do que se refere ao governador. O
primeiro deles, que figura logo no início da carta, refere-se à preocupação
de construção da sociedade colonial nos moldes de Portugal; nos moldes,
portanto, de uma cultura europeia, com a vinda de mulheres da Europa,
como forma de afastar os homens do pecado:

Já que escrevi a Vossa Alteza a falta que nesta terra ha de mulheres, com quem
os homens casem e vivam em serviço de Nosso Senhor, apartados dos pecca-
dos, em que agora vivem, mande Vossa Alteza muitas órfãs, e si não houver
muitas, venham de mistura dellas e quaisquer, porque são tão desejadas as
mulheres brancas cá, que quaisquer farão cá muito bem á terra, e ellas se ga-
nharão, e os homens de cá apartar-se-hão do peccado.191

Este trecho liga-se ao anterior, sobre a vinda do novo governador.


Nóbrega cuidava para que não fosse enviado nem solteiro, nem mancebo,
sem ligações com a terra, mas que fosse enviado um casado e com talvez
desejo de se estabelecer na colônia. Nóbrega parecia sugerir uma orienta-
ção em direção a algo mais próximo de uma colônia de povoamento, ao
mesmo tempo em que constatava que tudo se fazia “às custas da terra” e
em benefício próprio.
O segundo tópico relevante da carta consiste na observação de uma
nascente tensão entre os jesuítas e o clero secular, representado pelo bispo
Sardinha. É a primeira vez que se lê nas cartas de Nóbrega a notícia da
fundação de aldeamentos enviada ao rei de Portugal; e logo depois, fica
marcada a posição dos jesuítas contra a de Sardinha a respeito dos batis-
mos coletivos:

(...) alguns se fazem christãos, depois de muito provados, e vai-se pondo em


costume de, ou serem bons christãos, ou apartarem-se de todo da nossa con-
versação; e os que se agora baptisam os apartamos em uma aldêa, onde estão
os Christãos, e têm uma egreja e casa nossa, onde os ensinam; porque não nos
parece bem baptisar muitos em multidão, porque a experiencia ensina que

191
NÓBREGA, CB, p. 133. Carta a D. João III, Bahia, 1552.
Pedro Brocco | 229

poucos vêm a lume, e é maior condenação sua, e pouca reverencia do Sacra-


mento do Baptismo (...)192.

Ao denunciar os batismos coletivos, produzidos em atacado e não no


varejo, Nóbrega em um mesmo movimento defende a vinda de moradores
para a colônia, com ânimo de nela se estabelecerem e viverem. Assim, se-
gundo ele, “este Gentio se senhoreará facilmente, e serão todos christãos
(...) debaixo da obediencia de um pae que os reja, e de um Padre nosso que
os doutrine (...)”193.
Na carta enviada em 1552 a Simão Rodrigues194, Nóbrega escreve
abertamente sobre o projeto da Companhia de Jesus no Brasil naquele mo-
mento. As cartas enviadas a membros de cúpula da Companhia permitem
a colheita de informações neste sentido: mais estratégico e menos retórico.
O projeto de conversão dos jesuítas neste período aparece na con-
fluência entre o campo religioso e o político-militar. Não apenas seria
importante para o projeto salvífico da Igreja, mas também para a tomada
da terra e o estabelecimento de suas fronteiras, protegidas militarmente
em um contexto de crescente rivalidade entre as potências europeias. Nó-
brega reconhece em cartas anteriores, como a enviada ao rei D. João III em
1552, a necessidade de povoar a terra. Parece também intuir a importância
crucial da conversão para o setor militar e da defesa do território. Neste
projeto está implícita uma compreensão que envolve o acolhimento dos
costumes indígenas aliado à construção de colégios para educar e instruir
o indígena brasileiro, transformando-o em “soldado para Christo”:

Já tenho escripto por vezes a Vossa Reverendissima como nestas partes pre-
tendíamos criar meninos de Gentio, por ser elle muito, e nós poucos, e
sabermos-lhe mal falar em sua lingua, e elles de tantos mil annos criados e
habituados em perversos costumes, e por este nos parecer meio tão necessário
á conversão do Gentio: trabalhamos por dar principio a casas, que fiquem para

192
Idem, p. 135.
193
Idem, ibidem.
194
Carta ao Padre Mestre Simão, Bahia, 1552, p. 137 e ss.
230 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

emquanto o mundo durar, vendo que na India isso mesmo se pretende, e em


outras partes muitos collegios, em que se criem soldados para Christo.195

Escreve então Nóbrega um relatório sobre a questão material a res-


peito da consecução do projeto jesuíta para o Brasil. Tratava-se de fundar
escolas e cuidar dos mantimentos e víveres necessários à manutenção dos
estudantes, de modo que os próprios padres trabalhassem nas roças para
a produção destes mantimentos, segundo o relato de Nóbrega: “(...) e logo
assim, nós, por nossas mãos, como rogando aos Indios da terra, como os
escravos dos Brancos, e elles mesmos, por sua devoção, começamos a ro-
çar, e fazer mantimentos aos meninos (...)”196.
Percebe-se também que o governador Tomé de Sousa supria com re-
cursos suplementares os colégios fundados pelos padres da Companhia,
pois estes, neste momento, viviam de esmolas que mal pagavam o neces-
sário à sobrevivência: “as esmolas que se pediam não bastavam a um só
comer”.197
Nestes primeiros anos da Companhia de Jesus no Brasil, o chamado
período heroico, decidiu-se que os padres pouco se envolveriam em assun-
tos seculares: “nos tiramos de negócios temporaes, quando podemos,
commettendo-os a leigos”198. Havia, no entanto, grande preocupação com
o aspecto material da missão: recursos necessários para sobretudo manter
os colégios e a estrutura educacional. Nóbrega, assim, não se furta a utili-
zar escravos, tanto africanos quanto índios: “Depois que vieram os
escravos d’El-Rei, de Guiné a esta terra, tomaram os Padres fiados por
dous annos tres escravos, dando fiadores a isso, e acaba-se o tempo agora
cedo. Desta vestiaria fiz mercar outros escravos da terra (...)”199. Todos es-
tes escravos, segundo a carta, serviriam para a manutenção dos meninos
do colégio, assim como doze vacas d’El-Rei, também tomadas mediante

195
Idem, p. 137.
196
Idem, p. 138.
197
Idem, ibidem.
198
Idem, p. 140.
199
Idem, p. 138.
Pedro Brocco | 231

fiança. Interessante notar no relato de Nóbrega a compreensão acerca da


divisão do trabalho entre os índios, quando observa a diferença entre as
mulheres e os homens no tocante aos papéis sociais ligados ao trabalho:

Alguns escravos destes, que fiz mercar para a casa, são fêmeas, as quaes eu
casei com os machos e estão nas roças apartados todos em suas casas, e bus-
quei um homem leigo, que delles todos tem cuidado e os rege e governa, e nós
com elles não temos conta, e com o homem nos entendemos e o homem com
elles. A causa por que se tomaram femeas é porque d’outra maneira não se
póde ter roças nesta terra, porque as femeas fazem a farinha, e todo o principal
serviço e trabalho é dellas; os machos sómente roçam, e pescam e caçam, e
pouco mais (...)200.

Encontram aí os jesuítas, no manejo do trabalho dos índios, o princi-


pal ponto de controvérsia com os colonos brasileiros. Nóbrega observa que
desde esta época somente se absolvia o colono que não tivesse escravas
com as quais pecassem. A maior parte dos colonos do sexo masculino no
Brasil eram solteiros e, segundo Nóbrega, possuíam escravas índias. Outra
causa para a não absolvição em caso de posse de escravos índios era
quando estes eram “salteados”, isto é, capturados em guerras injustas201.
No entanto, Nóbrega observa que no Brasil havia outros padres que absol-
viam os colonos202: os jesuítas, assim, iniciavam um árduo embate contra
colonos e alguns setores do clero.
O principal argumento dos colonos para não se desfazerem dos es-
cravos em troca da absolvição dos jesuítas era o de que os próprios jesuítas
possuíam escravos. Nóbrega constrói o relato para dar conta desta apa-
rente contradição. Submete a posse de escravos ao projeto de conversão e
educação conduzido pela Companhia, além das necessidades materiais e
práticas para os colégios e a manutenção dos estudantes e catecúmenos.
Os jesuítas ocupavam a paradoxal posição de missionários e criptofuncio-
nários da Coroa no quesito educação e fortalecimento militar das defesas

200
Idem, p. 139.
201
Neste sentido, a doutrina das guerras justas e injustas remonta às teorias de Francisco de Vitoria. Cf. supra.
202
Cf. CB, p. 139.
232 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

e fronteiras da colônia, pois atuavam assim como mediadores culturais


entre Portugal e os povos nativos.
Neste momento, é ponto pacífico que os padres da Companhia não
deveriam se envolver com assuntos seculares. Nóbrega chega a admitir
que transferia todos os recursos recebidos da Coroa e do governador aos
colégios, para isto vivendo de esmolas e obtendo alimentação junto aos
criados do governador:

(...) me determinei com meus Irmãos de darmos a entender ao mundo que


desta casa não queríamos nada para nós sinão para os meninos, por todas as
vias que pudéssemos, e assim ordenamos de ir pedir de comer pelas casas, e
os mais dos dias, dois que estamos na cidade, imos comer com os criados do
Governador, o qual dá de comer com seus criados a todos que o não têm e
querem alli ir tomar, e entre outros somos nós destes (...)203.

A chegada do bispo Sardinha foi vista com otimismo, porém colocou


alguns desafios e necessidade de arranjos para a composição entre o clero
secular e os jesuítas. Exemplo disto é o rol de dúvidas que aparece ao final
da carta, introduzido pelas palavras: “Com a vinda do Bispo se moveram
algumas duvidas, nas quaes eu não duvidava porque sam soberbo e muito
confiado em meu parecer, as quaes nos pareceu bem communical-as com
Vossa Reverendissima para que as ponha em disputa entre parecer de le-
trados e me escreva o que devo fazer”204. Ora, parece razoável supor, para
além da leitura das entrelinhas das cartas escritas por Nóbrega até este
trecho, que havia um confronto doutrinário e ideológico em curso no Bra-
sil a partir do momento em que chega o bispo Sardinha. Nóbrega, aliás,
não esconde de seu superior que os assuntos objeto de dúvidas não o eram
até então. A estratégia é então a de transferir a decisão das matérias sob
disputa para juntas de letrados e intelectuais das universidades da Europa,
sobretudo as da Península Ibérica, como Salamanca e Coimbra. Nóbrega

203
Idem, pp. 139-140.
204
Idem, p. 141.
Pedro Brocco | 233

parece acreditar, com este movimento, na supremacia dos doutores em


detrimento da autoridade eclesiástica.
São ao todo cinco dúvidas que Manuel da Nóbrega envia a seu supe-
rior Simão Rodrigues. A primeira delas tem importância fulcral para a
conversão e toca em pontos centrais da contrarreforma tridentina: “si se
poderão confessar por interprete a gente desta terra que não sabe fallar
nossa lingua; porque parece cousa nova, e não usada em a Christan-
dade”205. Trata-se aí de levar às últimas consequências do sacramento da
confissão, adaptando-o às novas questões da expansão do catolicismo mi-
litante, à alteridade radical de línguas até então desconhecidas. De outra
forma, como aplicar o sacramento da confissão?
A confissão punha em jogo um mecanismo em que o falante deveria
contabilizar seus atos, pensamentos e intenções supostamente eivados de
culpa e buscar a absolvição do ouvinte. Era então um mecanismo comuni-
cativo, impossível de ser cultivado entre dois sujeitos falando línguas
incompatíveis ou desconhecidas uma da outra. Nóbrega propunha a utili-
zação de intérpretes que pudessem mediar o rito da confissão. Muitas
vezes, tais intérpretes eram crianças que estavam em vias de alfabetização
e eram educadas também em português, pois os adultos tinham mais di-
ficuldade para se tornarem bilíngues.
Outra dúvida levantada por Nóbrega toca no sacramento da eucaris-
tia: “ha costume nestas partes de se permittirem os Gentios nas egrejas, á
missa juntamente com os Christãos, e não os deitam fora por os não es-
candalisar: si se guardará o direito antigo ou si se permittirá estarem todos
de mistura?”206. Esta dúvida revela um aspecto central da utilização das
igrejas como espaços de congregação entre Europa e Novo Mundo, além
de levar a eucaristia a um outro patamar ao conceder aos índios a possibi-
lidade de frequentar igrejas e participar de missas. Ora, tal aspecto é
fundamental para a montagem do imaginário da igreja barroca e da ora-
tória sacra, fator utilizado na política de conversão.

205
Idem, ibidem.
206
Idem, p. 142.
234 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Liga-se à questão eucarística da congregação de índios e cristãos na


igreja e na prática litúrgica a terceira dúvida enviada a Simão Rodrigues,
crucial na atuação da Companhia de Jesus:

Si nos abraçarmos com alguns costumes deste Gentio, os quaes não são contra
a nossa Fé Catholica, nem são ritos dedicados a ídolos, como é cantar cantigas
de Nosso Senhor em sua lingua pelo seu tom e tanger seus instrumentos de
musica, que elles em suas festas, quando matam contrarios, e quando andam
bebados, e isto para os attrahir a deixarem os outros costumes essenciaes, e,
permitindo-lhes e approvando-lhes estes, trabalhar por lhes tirar os outros, e
assim o prégar-lhes a seu modo em certo tom, andando, passeando e batendo
nos peitos, como elles fazem, quando querem persuadir alguma cousa, e dizel-
a com muita efficacia, e assim tosquiarem-se os meninos da terra, que em casa
temos, a seu modo, porque a similhança é causa de amor, e outros costumes
similhantes a estes?207

Esta dúvida enviada a Simão Rodrigues representa o método inaciano


de converter a partir de dentro das estruturas sociais e culturais do outro:
trata-se de pôr sob exame a metodologia missionária jesuíta que parece
ser abalada com a chegada do bispo Sardinha: assim, o que se vinha fa-
zendo e pode ser vislumbrado nas cartas anteriores, como a técnica
retórica adaptada aos costumes dos índios, de pregar andando e batendo
nos peitos, ou a aceitação dos instrumentos musicais e do corte do cabelo
das crianças, torna-se, em algum momento, controverso do ponto de vista
de uma ortodoxia católica.
Tratava-se para o jesuíta, como o reconhece Nóbrega, de fazer o outro
que se pretendia converter “cantar as cantigas de Nosso Senhor” em sua
língua e em seu tom, tocando seus instrumentos musicais, como se obser-
vou no Paraguai, por exemplo, nos frisos da missão de Trinidad,
abordados neste trabalho: é fazê-lo falar a língua católica a partir de seus
recursos simbólicos e culturais, seus tons e seu instrumental.
A dúvida seguinte relaciona-se à problemática anterior: o que fazer
diante de índios que vão pedir batismo e não têm camisas nem roupas

207
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 235

para vestir? Somente pelo fato de andarem nus, mesmo que cultivados na
doutrina cristã, se lhes negaria o batismo e a entrada na igreja e à missa?
Trata-se de uma dúvida que relaciona de modo especial religião e etiqueta.
Caso a entrada dos índios às igrejas e à vida cristã fosse negada tendo em
consideração que eles não se vestiam à moda europeia, como convertê-
los?
Nóbrega não nega que vestir-se apropriadamente fosse algo impor-
tante na economia da salvação e da organização social cristã; porém
pondera, pragmaticamente: “eu não sei quando tanto Gentio se poderá
vestir, pois tantos mil annos andou sempre nú, não negando ser bom per-
suadir-lhes, e prégar-lhes, que se vistam e mettel-os nisto quando puder
ser?”208. Há um reconhecimento prático das limitações materiais da colô-
nia naquele momento para vestir todos os índios e levar adiante o
cumprimento da etiqueta católica. Não se deve esquecer que uma das pri-
meiras medidas práticas de Nóbrega ao chegar à Bahia foi a de incentivar
a plantação de algodão para a produção de roupas para os índios; porém,
de fato, havia um contingente muito maior do que a capacidade produtiva
de tecido naquele momento.
Se a chegada do bispo promove a produção desta carta, parece tam-
bém possível afirmar que neste momento Nóbrega submete aos seus
superiores as escolhas e decisões que vinha tomando à frente da missão
brasileira. Todas as dúvidas enviadas envolvem algum ponto de divergên-
cia entre diretrizes estabelecidas por ele e as defendidas pelo bispo
Sardinha ou, ao menos, por uma certa ortodoxia católica.
Por fim, a última dúvida toca no ponto da guerra e preação dos ín-
dios: “si é licito fazer guerra a este Gentio e captival-os, hoc nomine et titulo
que não guarda a lei de natura por todas vias?”209. Pergunta Nóbrega se é
lícito utilizar a guerra como meio para o cativeiro de mão de obra escrava.
Tal questão é talvez a maior fonte de tensão entre os colonos e os jesuítas,
mas Nóbrega neste momento aponta para sua formação em Salamanca,

208
Idem, ibidem.
209
Idem, ibidem.
236 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

bem como para a doutrina de Francisco de Vitoria, sobretudo o De indis,


já abordado neste livro.
Data de cerca de dois anos depois desta carta enviada a Simão Rodri-
gues a próxima carta da coletânea, enviada em 1554 ao rei D. João III. Esta
curta e importante carta marca a notícia sobre a fundação de São Paulo,
então vila de Piratininga. Nóbrega inicia a execução de seu grande projeto
de conversão do sertão brasileiro, desejando chegar ao Paraguai. Fica clara
a intenção de Nóbrega neste sentido quando se analisa a carta:

(...) para cumprir com a devoção de Vossa Alteza, e com os desejos, que em
Nosso Senhor eu tenho, destas partes serem favorecidas delle, sómente lhe
darei alguma conta desta capitania de S. Vicente, onde a maior parte da Com-
panhia residimos, por ser ella terra mais aparelhada para a conversão do
Gentio que nenhuma das outras, porque nunca tiveram guerra com os Chris-
tãos, e é por aqui a porta e o caminho mais certo e seguro para entrar nas
gerações do sertão, de que temos boas informações; ha muitas gerações que
não comem carne humana, as mulheres andam cobertas, não são crueis em
suas guerras, como estes da costa, porque sómente se defendem; algumas têm
um só Principal, e outras cousas mui amigas da lei natural, pela qual razão nos
obriga Nosso Senhor a mais presto lhes soccorrermos, maiormente que nesta
capitania nos proveu de instrumentos para isso, que são alguns Irmãos línguas
(...)”210.

Podemos interpretar de duas maneiras a aposta de Nóbrega na con-


centração de esforços no extremo sul da colônia portuguesa naquele
momento: de fato já havia a informação de que a recém-fundada vila de
Piratininga abriria as portas ao planalto brasileiro e de que por ali se che-
garia ao Paraguai, em regiões habitadas por nativos mais fáceis de
converter, pelas características apontadas por Nóbrega no trecho acima;
por outro lado, pode-se supor também que os jesuítas encontraram resis-
tências em Salvador com a chegada do bispo Sardinha, e também por este
motivo, Nóbrega optou por deslocar-se a São Vicente e a Piratininga, re-
gião que se tornará o principal centro econômico da sociedade sul-
americana vindoura.

210
Idem, pp. 144-145. Carta a D. João III, São Vicente, 1554.
Pedro Brocco | 237

A vila de São Paulo de Piratininga é fundada em 25 de janeiro pelos


jesuítas, entre eles Nóbrega e Anchieta. A data faz parte da tradição católica
marcando o dia da conversão de Paulo de Tarso e por este motivo a vila
ora é chamada de Piratininga, ora de São Paulo de Piratininga, antes de
definir-se como apenas São Paulo. Nóbrega, na carta, chama-a de “Pirati-
nin”211:

Está principiada uma casa na povoação de S. Vicente, onde se recolheram al-


guns órfãos da terra e filhos do Gentio; e do mar dez leguas, pouco mais ou
menos duas léguas de uma povoação de João Ramalho, que se chama Piratinin,
onde Martim Affonso de Sousa primeiro povoou, ajuntamos todos os que
Nosso Senhor quer trazer á sua Egreja, e aquelles que sua palavra e Evangelho
engendra pela pregação, e estes de todo deixam seus costumes e se vão estre-
mando dos outros, e muita esperança temos de serem verdadeiros filhos da
Egreja (...)212.

Neste momento, a Bahia vivia um caos social marcado por intensos


embates entre colonos e índios, e entre tribos de índios rivais. A falta de
comunicação e entendimento é exposta por Nóbrega: “Na Bahia não se
entende agora com o Gentio por falta de línguas, que não temos”213. A
Bahia havia entrado em um período de convulsões e guerras, “que visinhos
com visinhos e casa com casa se comem”214. O período em que Salvador
abriga o governador-geral Duarte da Costa e o bispo Sardinha é marcado
pelo rompimento do andamento do trabalho até então tocado pelos padres
jesuítas, com o consequente aumento das guerras e da violência em rela-
ção aos índios, os quais Nóbrega afirma na carta que “folgariam aceitar
qualquer sujeição moderada” a viver nos trabalhos em que viviam. Trata-
se de um certo equilíbrio, então buscado pelos jesuítas, entre a doutrinação
religiosa, espiritual, e o âmbito do trabalho, ligado ao campo da economia,

Em carta a Inácio de Loyola, dois anos depois, Nóbrega já chama a vila de “S. Paulo de Piratinin”. Cf. NÓBREGA,
211

CB, p. 153.
212
Idem, p. 145.
213
Idem, ibidem.
214
Idem, ibidem.
238 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

aos colonos e à Coroa; enfim, ao poder temporal. Tal equilíbrio representa


o que Nóbrega chama de “sujeição moderada” na carta.
Pouco depois, Nóbrega evidencia o que aparecia apenas nas entreli-
nhas de suas cartas anteriores: a situação caótica da Bahia era de
responsabilidade direta do bispo e das dificuldades criadas ao método dos
padres jesuítas: “Parece razão deixarmos esta parte e quinhão ao Bispo e
a seus Padres, o qual quer levar outro estilo com elles diferente do nosso
proceder, e o seu deve ser o melhor, pois é muito virtuoso, zeloso e letrado
e em tudo muito experimentado”215.
A aposta da Companhia de Jesus passa a ser então a fundação de uma
nova vila que possa servir de modelo missionário e funcionar como porta
de entrada ao planalto brasileiro e ao tão sonhado Paraguai. A maior ci-
dade da América do Sul nasce de um planejamento jesuíta voltado à
conversão das almas e, assim, à economia salvífica. Não tardará até que os
colonos paulistas passem a rivalizar com os jesuítas pela posse dos corpos
dos índios, deslocando o campo e o objetivo da economia salvífica para
aquele da economia política. Mas seria possível uma economia política sem
economia salvífica? Qual a importância da disciplina jesuíta para a econo-
mia política? Dos exercícios espirituais aos exercícios laborais, a ética
jesuíta promove um estímulo ao cultivo de um sujeito a partir do qual se
desenrolará um novo regime de produção e de vida comunal.
Entender a íntima relação entre os aspectos da economia salvífica
com o da economia política pode-nos ajudar a compreender as razões pe-
las quais as duas cidades brasileiras mais populosas e importantes do
ponto de vista econômico e produtivo foram fundadas sob a tutela da Com-
panhia de Jesus. A cidade de São Paulo fez parte de um planejamento
jesuíta no momento em que o bispo Sardinha chegava a Salvador; a cidade
do Rio de Janeiro se estabelece para fazer frente à ameaça francesa, mas
cumpre também um objetivo de conversão das almas e logo recebe um
Colégio da Companhia de Jesus. Estas duas cidades, sobretudo, que che-
gam ao século XXI com altos índices de desigualdade social, mas também

215
Idem, p. 146. Carta a D. João III, São Vicente, 1554.
Pedro Brocco | 239

de urbanização e de circulação de capitais, representam o novo modelo de


colonização assumido pelo capitalismo monárquico português a partir dos
anos 1548-1549, com a fundação do governo geral.
Pretende-se aqui sugerir a hipótese de que a chegada ao Brasil do
governador-geral e da Companhia de Jesus, em 1549, representa um novo
modelo administrativo colonial, ligado à reforma dos costumes, à admi-
nistração da justiça e ao processo civilizador emparelhado ao processo de
conversão religiosa, processo que, em sua essência, se mantém até os dias
atuais.

Figura 9: Antônio Parreiras216, “Fundação de São Paulo”, 1913.

Os jesuítas, buscando adaptação às culturas nativas, incorriam em


curiosos arranjos, como os aqui expostos sobre o estilo de pregar, a utili-
zação de instrumentos musicais dos índios, a anuência a alguns de seus
costumes. Talvez o mais importante destes arranjos do ponto de vista da
religião católica esteja em um trecho de carta de Nóbrega enviada a Inácio
de Azevedo, em 1556. Na curta missiva, Nóbrega observa que para o ba-
tismo e conversão dos índios brasileiros, uma mudança de direito positivo
e canônico deveria ocorrer em relação aos casamentos:

216
Niterói, 1860-1937.
240 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

O Gentio desta terra, como não tem matrimonio verdadeiro, com animo de
perseverarem toda a vida, mas tomam uma mulher e apartam-se quando que-
rem, de maravilha se achará em uma povoação, e nas que estão ao derredor
perto, quem se possa casar, dos que se converterem legitimamente á nossa Fé,
sem que haja impedimento de consaguinidade ou afinidade, ou de publica ho-
nestidade, e este nos é o maior estorvo que temos não os poder pôr em estado
de graça, e por isso não lhe ousamos a dar o Sacramento do Baptismo, pois é
forçado a ficarem ainda servos do peccado. Será necessário haver de Sua San-
tidade nisto largueza destes direitos positivos, e, si parecer muito duro ser de
todo o positivo, ao menos seja de toda affinidade e seja tio com sobrinha, que
é segundo grau de consaguinidade, e é cá o seu verdadeiro casamento, a so-
brinha, digo, da parte da irmã, porque a filha do irmão é entre elles como filha,
e não se casam com as taes; e, posto que tenhamos poder de dispensar no
parentesco de direito positivo com aquelles que, antes de se converterem, já
eram casados, conforme as nossas bulas, e ao direito canônico, isto não póde
cá haver logar; porque não se casam para sempre viverem juntos, como outros
Infieis, e si disto usamos alguma hora é fazendo-os primeiro casar, in lege na-
turae, e depois se baptisam.217

Nóbrega se refere à estrutura social indígena, refratária ao casamento


monogâmico e ao estabelecimento de vínculos vitalícios neste sentido (o
que ele chama de “matrimonio verdadeiro”). Além disto, era também co-
mum que os índios com algum grau de parentesco se casassem, como os
tios com as filhas de suas irmãs. Nóbrega pede então que o próprio papa
interpretasse o direito positivo e canônico “com largueza”, ou seja, reco-
nhecendo a possibilidade de viabilizar tais configurações de
relacionamento matrimonial, caso contrário o sacramento do batismo se-
ria inviável. Pode-se assim observar como Nóbrega apostava na
interpretação do pontífice e, em último caso, da lei, para justificar a atua-
ção dos missionários.
O ano de 1557 é o ano de transição entre os governadores-gerais D.
Duarte da Costa e Mem de Sá. É também deste ano que data uma impor-
tante carta de Nóbrega escrita à maneira de relatório, chamada

217
NÓBREGA, M. CB, p. 148. Carta a Ignacio de Azevedo, São Vicente, 1556.
Pedro Brocco | 241

“Quadrimestre de Janeiro até Abril de 1557, ao Padre Ignacio”218. Nesta


carta pode-se apreender uma espécie de retrato da administração de Du-
arte da Costa (1553-1557), bem como as dificuldades e agruras da missão:
“Este quadrimestre de Janeiro até Abril relatará cousas que muito aos de
cá nos hão consolado, e outras que nos hão entristecido; porque á maneira
de lavradores nos havemos que se vêm suas sementeiras ir bem, se ale-
gram, e si tempo contrario lhes succede, se entristecem”219. No primeiro
parágrafo da carta, além da metáfora dos lavradores e da semeadura, Nó-
brega reconhece que o que se fazia no Brasil era a criação de um povo:
“negoceie com a divina misericordia o que cumpre a estes seus filhos des-
terrados, e para este povo que em Christo e para Christo se começa a
criar”220.
Neste momento, parece tomar forma mais definitiva no jogo de for-
ças colonial um dos principais entraves à conversão e à consequente
criação do “povo de Cristo”: os próprios colonos, os quais obtinham certo
apoio do governador-geral. As principais queixas dos jesuítas relativas aos
colonos neste período giravam em torno da escravização dos índios e ao
fomento e prática de guerras entre as tribos indígenas: “é a pratica
commum de todos os Christãos fazerem-nos guerrear e matar, e induzi-
rem-nos a isso, por dizerem, que assim estarão mais seguros; o que é total
estorvo de sua conversão (...)”221.
O governador-geral D. Duarte da Costa não era muito estimado entre
os jesuítas, e pela análise desta carta é possível perceber como houve, por
parte do governador, incentivo a vinganças e à antropofagia entre tribos
contrárias, e como era pressionado pelos jesuítas a atuar de modo contrá-
rio:

218
Provavelmente Inácio de Azevedo. Inácio de Loyola morrera em 31 de julho de 1556.
219
NÓBREGA, CB, p. 156. Quadrimestre de janeiro até abril, Bahia, 1557.
220
Idem, ibidem.
221
Idem, pp. 156-157.
242 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

(...) deu-lhe o Governador licença para o matarem fóra da aldêa; fizeram-no


assim, e mataram-no, e comeram-no, porque lh’o acharam a coser; mostra-
ram os Padres muito sentimento de tão grande abominação, e veiu-se o padre
Navarro da aldêa, que muito sentiu a aldêa toda, queixaram-se ao Governador,
por haver dado tal licença, o que elle muito sentiu; mas Nosso Senhor, que
sabe do mal tirar bem, o permittiu assim pelo bem, que disso se seguiu, porque
o Governador fez nisso grandes ameaças aos Indios, e mandou apregoar por
sua aldêas, sob pena de morte, que ninguem comesse carne humana; de ma-
neira que os Indios ficaram atemorisados (...)222.

Nóbrega relata um traço moral comum aos colonos do Brasil que


pode ainda relacionar-se com o ethos brasileiro quando se pensa em ad-
ministração da justiça e, de forma mais geral, com o direito e a noção de
legalidade, o que aqui pode se analisar a partir das noções de isonomia e
casuísmo. Ao falar da crueldade dos cristãos, Nóbrega escreve: “(...) a cru-
eldade dos Christãos d’esta terra, que, podendo defender a uns e a outros
que não guerreem, e todos obedeceriam, pelo grande medo que têm depois
da guerra passada; todavia lhes consentem que junto às portas da cidade
venham matar aos que estão em serviço dos mesmos Christãos, e apren-
dem a doutrina com desejos de se baptisarem (...)”223.
Sobre o batismo, fica claro pela análise da carta que os jesuítas utili-
zavam sua autoridade nas povoações para fazerem delas missões de
evangelização, cujo objetivo seria o de administrar a vida comunal dos ín-
dios com o objetivo de batizá-los e convertê-los: “o trabalho que se com
elles leva é dispol-os e fazel-os capazes do batismo, para quando parecer
bem, dar-lh’o”224. E nesta preparação para o batismo buscavam ensinar a
doutrina e introduzir os nativos ao conceito de fé cristã por meio de per-
guntas, em forma de diálogo, ensinadas na língua da terra: “(...) á maneira
de dialogo, lhes ensinam na sua lingua; têm grande obediencia aos Padres,
ninguem na aldêa vai fóra sem pedir licença aos Padres, e si algum faz

222
Idem, p. 157.
223
Idem, pp. 157-158.
224
Idem, p. 158.
Pedro Brocco | 243

alguma travessura, faz a penitencia, que lhe dão, e ás vezes é disciplinar-


se na egreja (...)”225.
A partir da experiência administrativa com os índios nestes primeiros
oito anos, Nóbrega, enfim, parece desenhar e estabelecer as linhas gerais
da fundamentação ética da direção disciplinar e pedagógica da missão bra-
sileira: o sentimento do medo é mais eficiente do que o amor como
principal fator motivacional da conversão. Podemos perceber isto em dois
trechos cruciais da carta. O primeiro trata da prisão de um feiticeiro:

(...) foram muitos ou todos da aldêa a fazer oferta das raízes de seu manti-
mento a um seu feiticeiro, para que lhes fizesse crescer a que tinham plantada,
dando-lhe chuva e tempo conveniente; outras muitas ofertas destas haviam
feito, quando partiam para a guerra, mas era em secreto, posto que não faltava
quem os descobrisse dos mesmos seus, a quem aquillo parecia mal e haviam
sua reprehensão, mas esta foi em publico perante o Padre seu mestre, e sobre
isso se ajuntou blasfemarem da nossa doutrina e desprezarem-na, o que sa-
bido pelo Governador, mandou prender ao feiticeiro e a outro que contra a
doutrina fallava, estiveram presos sete ou oito dias, até que pelos rogos dos
Padres, os soltaram, de que ficaram todos amedrontados, que dahi por deante
se começaram a encher as egrejas (...) de maneira que subitamente vimos o
notavel proveito que nasceu de se castigar áquelle feiticeiro, porque d’onde
antes nem com rogos nem com importunações queriam vir á egreja, depois
logo, como ouviam a campainha acudiam todos, e logo os meninos, que antes
vinham á eschola com tanto trabalho de os irem buscar, vinham todos (...)226.

O segundo trecho corrobora este e traz observações sobre o uso do


medo através de castigos e prisões para o trabalho de conversão:

O Governador vendo que succedia tão bem á prisão do feiticeiro e que tanto
fructo disso sahiu, apposuit ut aprehenderentur alii malefactores227, os que im-
pediam a palavra do Evangelho do Senhor; do que resultou muito maior bem,
e os Indios se sujeitaram com isso mais, e se fizeram muito nossos obedientes;
assim que por experiencia vemos que por amor é mui difficultosa a sua con-
versão, mas, como é gente servil, por medo fazem tudo, e posto que nos

225
Idem, ibidem. Realce meu.
226
Idem, pp. 158-159.
227
Acrescentou à apreensão outros malfeitores, tradução livre.
244 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

grandes por não concorrer sua livre vontade, presumimos que não terão fé no
coração; os filhos creados nisto ficarão firmes christãos, porque é gente que
por costume e criação com sujeição farão d’ella o que quiserem, o que não será
possivel com razões nem argumentos.228,229

O medo seria então uma primeira medida, o primeiro passo da estra-


tégia de conversão. O objetivo seria o de formar comunidades cristãs
consistentes. Pouco depois do trecho sobre o medo, Nóbrega relata casos
de índios que por espontânea vontade se afastaram de suas tribos para
viver nas aldeias cristãs administradas pelos jesuítas:

(...) nesta egreja do rio Vermelho se começam já alguns a extremar dos seus e
vieram a fazer casa junto da egreja, com desejos de em tudo se conformarem
com a vida christã; escolheram uma só mulher, são mui continuos, e quanto
parece ao de fóra não pode ser melhor exterior, porque mostram sentir no
coração o que dizem pela boca.230

A exemplo deste trecho, Nóbrega reconhece avanços da missão jesu-


íta no Brasil quando escreve sobre a confissão, talvez o sacramento que
mais se apoie na vontade espontânea do fiel. Excetuando-se o padre Na-
varro, todos os outros padres confessavam os índios mediante intérpretes:
“(...) posto que todos confessassem, sempre sobejavam muitos, que não se
podiam confessar; foram tão proveitosas estas confissões, que enxergamos
muita emenda de seus vicios e maus costumes (...)”231.
Um ponto que chama atenção neste trecho é a importância dada à
escuta das confissões das índias escravas: “Acham-se já Indias escravas dos
Christãos, que admoestadas nas confissões, que não pequem com seus se-
nhores, nem outrem ninguem, antes se deixam espancar e se oferecem a
matarem-nas antes que tornarem ao peccado passado”232. A confissão era,

228
Idem, p. 159.
229
Cf. EISENBERG, José, op. cit.
230
NÓBREGA, CB, p. 160.
231
Idem, ibidem.
232
Idem, p. 161.
Pedro Brocco | 245

então, um momento de também admoestar os fiéis: os jesuítas transfor-


mavam-se numa importante e capilar força política da colônia, assim
como vinham fazendo nas cortes europeias e onde atuavam: mediante a
confissão, atuavam nos corpos, nos desejos e nas vontades, nos costumes,
enfim, nas estruturas sociais de seu tempo. A atuação política jesuíta feita
desde o confessionário era quase imperceptível, mas alterava, como este
trecho insinua, as relações sociais.
Não se pode esquecer que neste período histórico a Contrarreforma
ainda está em curso, e Nóbrega parece estar a par de alguns pontos essen-
ciais das reformas dos sacramentos, como é o caso do aparecimento do
sacramento da confissão em suas cartas.
Em um raro documento mais voltado à retórica e menos ao estilo do
relatório, Nóbrega nos revela um trabalhado sermão, escrito como exorta-
ção aos moradores de São Vicente233, que em alguns trechos lembra o estilo
de Antonio Vieira. Trata-se de uma exortação moral apoiada na teologia
cristã, escrita em 1557, onde já se lê a crítica velada ao desejo desenfreado
do comércio, da acumulação de riquezas, sem a preocupação com a graça,
ou as “mercadorias espirituaes de graça, de virtudes, de consolações”234:

(...) o trato bemdito não é de assucar corruptível, mas de graça, mais saborosa
que favo de mel: quão poucos ha que te queiram ter? Quão poucos mercadores
da vida eterna se acham? Si os mercadores de pedras preciosas topassem com-
tigo, venderiam tudo por te mercar, e em ti tratar; trato sem perigo, porque o
piloto, que governa, não póde errar! Trato de tanto ganho, no qual não se ga-
nha um por cento, e sobretudo vida eterna em contrapeso! Trato que neste
mundo enriquece de graça, e no outro de gloria! Trato sem desassocego, antes
quanto mais se trata, quanto mais de quietação se ganha!235

Do religioso ao mundano, de Nóbrega a Gregório de Matos236, em-


bora em planos distintos, aparece a tópica do trato, da mercancia, do

233
Aparece com o título “Aos moradores de S. Vicente” no trabalho consultado.
234
NÓBREGA, CB, p. 167. Carta aos moradores de São Vicente, Bahia, 1557.
235
Idem, p. 167.
236
Conferir a este respeito a tese de doutorado de HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e
a Bahia do século XVII. São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Editora da Unicamp, 2004.
246 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

comércio diluidor da vida social calcada na graça, na caridade e na obser-


vância das virtudes morais e teologais. O evangelho representava a
principal narrativa criadora de um arcabouço de exemplos e posições mo-
rais a serem ocupadas.
No interior deste percurso de reforma moral orientado pelos jesuítas,
a linguagem e a comunicação adquirem papel de grande importância. Isto
pode ser representado pela exortação de Nóbrega: “Primeiro accendeu o
Espirito Santo fogo de línguas em seus doze apóstolos (...)”237 e “(...) te-
nham tambem grande cuidado que não se lhe apague, mas antes, atiçando
com a communicação dos sacramentos, com as orações ferventes, com as
conversações castas e puras, com grande contrição do passado (...)”238.
Os sacramentos, ritos que moldavam a sociabilidade cristã e inse-
riam-na na tradição que vivia nos fiéis, alicerçam-se na condição humana,
estruturada pela linguagem. Assim é como se articulam os sacramentos,
todos tendo em seu horizonte a vereda linguageira: os casamentos e o ba-
tismo ao inserirem na cultura o evento, a eucaristia ao corporificar a
reunião comunitária, a confissão ao permitir a inflexão total da vida pela
linguagem.
É o campo da confissão que aparece de forma especial no rol dos sa-
cramentos ligados à linguagem e à comunicação no projeto de reforma
moral. A confissão ganha novos contornos na Contrarreforma e passa a
ser ministrada de modo contínuo, sem um limite específico de vezes, con-
trariamente às confissões anuais e periódicas do período medieval.
Nóbrega se manifesta neste sentido:

Muito desejo saber a vantagem que achais da confissão continuada, a qual co-
nhecereis da emenda da vida, com o qual rogo a Nosso Senhor me queira
consolar, vindo-me disso boas novas, e folgaria muito que muitos me escre-
vessem mui particularmente (...).239

237
NÓBREGA, CB, p. 166.
238
Idem, ibidem. Realce meu. De fato, buscava-se uma comunicação dos sacramentos, o que se insere na doutrina
de Francisco de Vitoria com a articulação entre ius communicationis e ius missionis.
239
Idem, p. 166.
Pedro Brocco | 247

Pressupõe-se nesta fala de Nóbrega que uma mudança envolvendo o


sacramento da confissão estivesse em curso na prática confessional do
Brasil (“a vantagem que achais da confissão continuada”), e que Nóbrega
soubesse alguma informação sobre os desdobramentos de Trento e bus-
casse aplicar os novos ventos do catolicismo tridentino no Brasil.
A última carta de 1557 presente na coletânea aqui analisada, enviada
ao provincial de Portugal, representa uma espécie de capitulação de Nó-
brega e do projeto missionário brasileiro. A partir desta carta, pode-se
dizer que o otimismo em relação à missão brasileira não será retomado.
Por uma série de fatores, desde a chegada do bispo Sardinha e uma suces-
são de guerras entre colonos e índios nas cercanias de Salvador, o que se
havia construído pelos jesuítas em termos de infraestrutura e índios con-
vertidos, se perdeu. Ao refugiar-se em São Vicente e depois na vila de São
Paulo de Piratininga, Nóbrega deixava uma Salvador em um cenário de
guerra civil e desentendimentos entre colonos e índios, os mesmos sem os
quais não seria possível fundar a cidade do Rio de Janeiro.
Nóbrega relata um momento de extrema dificuldade e penúria. A Co-
roa portuguesa também passa por um declínio econômico e político, tendo
suas possessões na Índia ameaçadas e vendo incursões de franceses nos
territórios brasileiros. O foco principal da Coroa ainda era o de conservar
o comércio da Índia, de modo que pouco fazia para sustentar sua estrutura
administrativa no Brasil. Nóbrega relata: “(...) d’El-Rei não nos dão nada,
nem há que dar, e, si Nosso Senhor não abrira este caminho, não sei que
fôra de nós, porque nem com vender os ornamentos, e cálices da Igreja,
fora possível manter-se toda a gente. Esperamos maneira de sustenta-
ção”240.
Além disto, Nóbrega queixa-se novamente dos colonos (Christãos),
ao dizer que os poucos índios “que eram fregueses d’estas duas egrejas,
fugiram”241, tendo a causa da fuga sido a tomada pelos colonos de suas
terras e mantimentos nelas cultivados. A sensibilidade social e psicológica

240
Idem, p. 173.
241
Idem, p. 172. Nóbrega neste momento escreve da Casa de Nossa Senhora do Rio Vermelho (Bahia), 1557.
248 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

de Nóbrega o faz observar: “(...) alguns se asseguravam com as nossas pa-


lavras, inventaram a dizer-lhes que nós os queriamos ter juntos para os
melhor matarem, e com este medo de os matarem e com lhes tomarem as
roças e terras, que é outro gênero de os matar, se foram muitos (...)”242.
Colocando sobre o próprio colono cristão a responsabilidade pelo de-
sarranjo social da colônia, Nóbrega declara estarem os jesuítas fartos de
ouvir dos índios “cousas vergonhosas” dos cristãos: “De maneira que por
todas as vias está esta terra mui perdida e desbaratada, nem ha nisso Jus-
tiça nem remédio, porque acharam que Infieis não podem testemunhar
nada contra Christãos (...)”243. Este ponto toca em algo de fundamental
relevância para o projeto de conversão e para este trabalho, inserido em
uma perspectiva interdisciplinar envolvendo, de modo especial, direito,
sociologia e história: Nóbrega coloca a justiça como crucial no projeto je-
suíta. Após o trecho citado acima, discorrerá sobre o absurdo de não
considerar o índio como apto a produzir prova testemunhal contra os cris-
tãos. Ora, isto não seria o mesmo que tirar o indígena de qualquer registro
referencial à linguagem em relação ao qual buscavam os jesuítas construir
toda sociabilidade possível? E mais: parece ser daí também derivada toda
capacidade de humanidade e humanização.
Logo em seguida, há um parágrafo que parece concentrar as linhas
mais importantes da concepção de justiça sustentada pelo jesuíta:

E, todavia, com estes poucos [índios], que nos ficaram, trabalhamos, e a mui-
tos baptisariamos e casariamos já, si as cousas se pusessem em seu logar; a
ordem que desejamos era fazerem ajuntar ao Gentio, este que está sujeito em
povoações convenientes, e fazer-lhes favores em favor de sua conversão e cas-
tigar nelles os males que forem para castigar e mantel-os em Justiça e verdade
entre si, como vassallos d’El-Rei, e sujeitos á Egreja, como nesta parte são, e
fazer-lhes tambem justiça nos aggravos, escandalos dos Christãos, o que se
faria bem, si a Justiça secular e ecclesiastica fosse mais zelosa, como convém á

242
Idem, ibidem.
243
Idem, p. 173.
Pedro Brocco | 249

honra de Nosso Senhor e bem commum da terra; e d’esta maneira podiam ir


cada dia ganhando gente e sujeitando-a ao jugo da razão.244

Temos aí muito claramente os pilares políticos, teológicos e jusfilosó-


ficos da atuação jesuíta: os padres faziam parte de um projeto político de
ocupação da terra, projeto este de contornos monárquicos e equilibrado
entre relações de vassalagem ao rei e sujeição e fidelidade à Igreja Católica.
Porém, se observamos mais de perto, isto não significa de modo algum
que os habitantes nativos do Novo Mundo seriam inferiorizados dentro
deste projeto jesuíta; ao contrário, no que fosse possível, seriam postos em
igualdade com os colonos, a partir da literalidade que se pode dispensar ao
termo jurisprudência: pelo jugo do direito e da prudência aristotélica
(phrónesis), os jesuítas acreditavam que seria possível criar comunidades
cada vez mais inclusivas do ponto de vista do projeto de conversão. Aqui a
categoria da razão opera a função de fiel da balança jurisprudencial: é ver-
dade que os jesuítas, sobretudo no Brasil, apostavam no que se pode
chamar hoje de emoção em detrimento da razão (Nóbrega escreve, na
exortação aos moradores de S. Vicente: “(...) com a frequente meditação
dos tempos passados, dos presentes e dos que esperamos, que serão sem
fim, com muita guarda dos sentidos, e muito mais do coração, o qual não
é razão, que seja senhor delle sinão o mesmo que o criou á sua imagem e
similhança: com estas cousas, e outras muitas que o mesmo espirito de
vida sabe mui bem ensinar nos corações, onde entra, queria eu que de tal
maneira ardesseis em charidade que até os matos se queimassem com
elle”.245; porém, aqui, vemos como a razão vem ocupar um espaço de re-
levo no campo do direito e da justiça: seria daí também que se buscaria a
atividade judicante, a equidistância, o equilíbrio e a equidade.
E vejamos então como Nóbrega enxerga essa curiosa dialética entre
colonos e índios no Brasil, mostrando-se muito bem informado sobre o
que acontecia no restante do continente: “E os que não quisessem recebel-

244
Idem, ibidem. Realces meus.
245
Idem, pp. 166-167.
250 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

os, sujeital-os e fazêl-os tributarios ao serviço d’El-Rei e dos Christãos, que


os ajudassem a senhorear, como se fez em todas as terras novas que são
conquistadas, como do Perú e outras muitas”246. De fato, no Peru os jesu-
ítas engajaram-se em ensinar e educar as elites remanescentes do
Tahuantinsuyo, vulgarmente conhecido como Império Inca247.
Nóbrega então volta à carga com sua hipótese de que o indígena bra-
sileiro seria desprovido de razão (a mesma que devia ser “ensinada”,
ministrada através de exemplos de justiça):

Des que fui entendendo, por experiencia, o pouco que se podia fazer nesta
terra na conversão do Gentio, por falta de não serem sujeitos, e ella ser uma
maneira de gente de condição mais de féras bravas que de gente racional, e
ser gente servil, que se quer por medo, e conjuntamente vêr a pouca esperança
de se a terra senhorear, e vêr a pouca ajuda e os muitos estorvos dos Christãos
d’estas terras, cujo escandalo e mau exemplo bastára para não se convencer,
posto que foi gente de outra qualidade, sempre me disse o coração que devia
mandar aos Carijós, os quaes estão senhoreados e sujeitos aos Castelhanos do
Paraguay e mui dispostos para nelles fructificar com outras gerações (...).248

Nóbrega estava também bem informado sobre o que se passava no


Paraguai e isto teve influência sobre a fundação da vila de São Paulo de
Piratininga. O jesuíta mostra ter pleno conhecimento do potencial do Pa-
raguai para as conversões, e os índios carijós aos quais se refere são os
guaranis da futura região dos Sete Povos das Missões, grande baluarte je-
suíta na América até a extinção da Companhia.
Mas será que os índios brasileiros eram “naturalmente” servis, mais
bem sujeitados pela via do medo, feras, desprovidos de razão? Esta res-
posta há de ser buscada nas condições sociais e econômico-políticas da
colônia portuguesa. O empuxo à acumulação de riquezas, ao início do ciclo
da cana e a baixa disponibilidade e mão-de-obra fez com que os colonos

246
Idem, pp. 173-174.
247
Em Cusco foi criado o Colégio de Caciques San Francisco de Borja, voltado à educação das elites e da nobreza inca:
desde pequenos, os filhos dos caciques e principais lideranças eram doutrinados, convertidos, afastados da “idola-
tria”, dentro da dinâmica educacional jesuíta.
248
Idem, p. 174.
Pedro Brocco | 251

brasileiros recorressem aos índios para a função de força de trabalho. Os


jesuítas, por sua vez, preocupavam-se com a conversão destes índios ao
catolicismo, o que implicava em um grande investimento de forças e re-
cursos para a educação e doutrinação destes mesmos índios. Em suma, os
jesuítas preocupavam-se mais com a reprodução desta força de trabalho e
lutavam contra uma utilização excessiva que a levasse ao completo exau-
rimento, o que os coloca, em linhas gerais, na mesma via de Las Casas.
As colônias espanholas possuíam uma rede eclesiástica maior, rece-
bendo bispados e arcebispados de maior envergadura e antes que as
colônias portuguesas pudessem alcançar o mesmo patamar; as colônias
portuguesas recebem a Companhia de Jesus antes de a receber as de Cas-
tela, mas de forma desbastada e quixotesca, praticamente sem estrutura
alguma. Além disso, logo são fundadas as Universidades de Santo Do-
mingo, em 1538, e as Universidades de São Marcos no Peru e a Real e
Pontifícia do México (futura UNAM), em 1551, o que favoreceu a criação de
uma elite formada localmente. Somam-se a isso as diferenças de constitui-
ção e complexidade das civilizações nativas presentes nos territórios
espanhóis, com dimensões de impérios, sistema de escrita e estrutura ad-
ministrativa, isto é, inseridas em uma estrutura mais próxima do
Ocidente. Todavia, é inegável o trabalho inaciano nos primeiros anos de
missionação no Brasil, como podemos ler nas cartas de Nóbrega, bem
como o que se pôde realizar depois no Paraguai entre os tupi-guaranis.

2.6 Balanço da primeira década da missão brasileira (1549-1560)

A história da Companhia de Jesus no Brasil inicia-se com a chegada


do primeiro governador-geral do Brasil249, Tomé de Sousa, em um novo
planejamento colonial que alçava a colônia portuguesa a uma espécie de
vice-reinado (como o foram o México e o Peru), sob domínio de um gover-
nador, espécie de vice-rei, inclusive com ocorrência de periódicas

249
Cf. PUNTONI, Pedro. O Estado do Brasil: poder e política na Bahia colonial 1548-1700. São Paulo: Alameda, 2013.
252 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

renovações de comando por parte do poder central metropolitano, possi-


velmente para se evitarem concentrações de poder e movimentos
sediciosos, com a formação de uma elite local coesa. O fato é que o modelo
anterior, concedendo a donatários por período vitalício todo o ônus da co-
lonização de vastos territórios, maiores do que a própria metrópole, seria
praticamente impossível e hercúleo sem o desenvolvimento de atividades
comerciais que fossem minimamente lucrativas para o financiamento da
colonização, como foi o caso do início da empresa canavieira no Pernam-
buco de Duarte Coelho, talvez a capitania mais bem-sucedida, porém uma
exceção.
Os jesuítas chegam, então, acompanhados do governador-geral em
uma missão antes de tudo civilizatória e administrativa: contra as doações
vitalícias de vastos territórios sob comando de uma fidalguia que se mos-
trava ineficiente e improdutiva do ponto de vista da conservação da
colônia, que então passava por ameaças reais de invasão e conquista por
outras potências europeias, o desafio de um governo geral sediado em
Salvador seria, antes de tudo, formar um governo minimamente coeso e
voltado a objetivos comuns e concretos. Como braço indispensável do po-
der secular, embora relativamente autônomo, cabia aos jesuítas num
primeiro momento recrutar soldados: de Cristo, mas sobretudo da Coroa,
capazes de ocupar e defender o território brasileiro. Pressupunha-se que o
cristão converso que dominasse a língua vernácula estaria incorporado ao
Corpo Místico de Cristo e da Coroa, a partir da metáfora política medieval
e organicista do corpo.
Ora, o falso logro do modelo das capitanias hereditárias estava em
justamente tomar um expediente imaginário de divisão e doação250 de ter-
ritórios a perder de vista como o concreto e o efetivo povoamento e defesa
daqueles mesmos territórios. E como defender, povoar, sem desenvolver,
sem investir e fomentar um povo qualquer? Pois este era o grande desafio

250
Tal doação aparece como um instrumento de direito privado ainda alinhado às doações pontifícias dos territórios
do Novo Mundo à Coroa espanhola, abordadas no início deste livro em suas repercussões sobre a doutrina da Escola
de Salamanca.
Pedro Brocco | 253

de um pequeno país voltado às navegações e ao comércio sem uma popu-


lação suficiente para colonizar, ocupar e defender.
A Igreja Católica vinha se esforçando para tornar possível a entrada
dos povos do Novo Mundo em seu redil, tendo aperfeiçoado ao longo do
século XVI uma série de experiências, embates, avanços, discussões, dire-
trizes e bulas papais tratando do estatuto do índio americano do ponto de
vista religioso. Este movimento que corria em paralelo ao desenrolar dos
desafios da colonização ibérica, dialogando profundamente com ela, torna-
se a luva perfeita para receber a mão do governador-geral português no
Brasil. A atuação jesuíta consistiu, nestes primeiros anos, em acumular um
saber voltado à conversão das populações nativas do Brasil, com um pla-
nejamento mais ambicioso de fundar vilas e aldeias que se abrissem ao
planalto brasileiro e possibilitassem a entrada da Igreja rumo ao centro do
território sul-americano, à Amazônia, ao Peru e ao Paraguai. Neste pri-
meiro momento, os dois projetos convivem sem qualquer grande curto-
circuito, mas é possível fazer leituras preventivas acerca de curtos-circui-
tos pontuais que chegarão ao século XVIII como a grande onda anti-
inaciana que suplantará a Companhia de Jesus: conflitos entre jesuítas e
colonos sobre o estatuto e o uso da força de trabalho dos índios; tensões
com a própria Igreja Católica, acerca de métodos utilizados para as con-
versões e críticas aos costumes do clero secular; ruídos e pleitos
direcionados à Coroa, como o do escasso financiamento, que futuramente
dará origem à opção de auto-financiamento da Companhia com o desen-
volvimento de atividades comerciais. Em suma, é possível perceber, nos
primeiros anos de análise das cartas de Nóbrega no Brasil, todos estes pon-
tos, capazes de lançar a análise histórica prospectivamente em direção à
compreensão do futuro deste projeto político-teológico tão necessário na-
quele momento.
Ainda que religiosa, a Companhia é a inovação do catolicismo; é um
entre, uma heterodoxia ainda não laica; uma ordem que fomenta o indivi-
dualismo, com o cultivo do sujeito em sua relação com a linguagem e o
discurso; é o passeio da voz humana pelo mundo, transportada pelos pés
254 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

da história, escrita por múltiplas mãos em um volume inaudito de cartas,


relatórios e informações; é o sentido do global ganhando sua forma. O es-
paço, o tempo, a história, a memória e o imaginário articulam-se no e a
partir do homem, que se torna capaz de colocar-se frente ao outro e
apontá-lo como o mesmo e no entanto outro. O semelhante e o diferente,
o próximo e o distante: tal “distância próxima”251 é o que permite a con-
versão, a comunicação, a interpretação, a etnografia252. Aqui é onde
começam a ganhar forma, também, as ciências humanas, ainda não anco-
radas completamente na ciência.
A carta escrita por Nóbrega em 1559 aos padres e irmãos de Portugal
é a primeira que fala sobre a gestão de Mem de Sá, chegado ao Brasil em
1557. A carta é importante por trazer indícios da administração de Mem
de Sá e do que esta aportou de novo em relação a Tomé de Sousa e Duarte
da Costa. Sob Mem de Sá ocorrerão episódios decisivos para a colônia,
como a fundação da cidade do Rio de Janeiro e a expulsão dos franceses
daquela região.
Além disso, no entanto, é correto afirmar que Mem de Sá aprofunda
a relação entre o governo e os padres jesuítas, trazendo-os para o centro
do planejamento administrativo como grandes aliados.
Nóbrega começa dizendo que depois da vinda de Mem de Sá se fize-
ram três igrejas em três povoações de índios “e muitas mais se fizeram, si
houvera Padres e Irmãos para nellas residirem”253. A igreja de S. Paulo se

251
Cf. HARTOG, François, op. cit.
252
Este trabalho pretende também apontar para a importância e as formas a partir das quais os Exercícios espirituais,
uma prática discursiva, contribuíram decisivamente para a comunicação entre culturas e para a criação deste “pró-
ximo distante”, na medida em que colocam o exercitante como um “próximo distante” de si mesmo, isto é: um falante
que fala de si mesmo na terceira pessoa, objetivando-se, objetivando sua própria vida e experiências singulares,
articulando-as pelo discurso. Tal é a pré-história da associação livre, que surgirá enquanto técnica somente no século
XIX. A importância da tradição jesuíta para Freud, que encontra em seu tempo uma confluência entre uma tradição
germânica articulada com o catolicismo no Império Austríaco e depois na Áustria-Hungria, configura uma história
que ainda está para ser escrita. Cabe-nos compreender por que a psicanálise não floresce em países com cultura
protestante.
253
NÓBREGA, CB, p. 179. Carta aos padres e irmãos de Portugal, Bahia, 1559.
Pedro Brocco | 255

fez a uma légua254 da cidade de onde escrevia Nóbrega, provavelmente Sal-


vador; a segunda igreja, de S. João, foi construída a três léguas da cidade;
a terceira, de Sancti Spiritus, a sete léguas. Isto queria dizer que a constru-
ção das igrejas foi importante para a expansão territorial dos jesuítas e,
consequentemente, da área de ação e influência do governo e da Coroa.
Outro indício importante desta parte da carta é o aparecimento da
figura do meirinho nativo, geralmente um cacique (também chamado de
“Principal”), que inclusive também pregava aos domingos e em dias de
festa:

Aos domingos e santos têm missa e prégação na sua lingua e de continuo ha


tanta gente que não cabe na egreja, posto que é grande; alli se toma conta dos
que faltam ou dos que se ausentam e lhes fazem sua estação: o meirinho, que
é um seu Principal delles, préga sempre aos domingos e festas pelas casas de
madrugada a seu modo. A obediencia que têm é muito para louvar a Nosso
Senhor, porque não vão fóra sem pedir licença, porque lh’o temos assim man-
dado por sabermos onde vão para que não vão communicar ou comer carne
humana ou embebedar-se a alguma aldêa longe; e, si algum se desmanda, é
preso e castigado pelo seu meirinho e o Governador faz delles justiça como de
qualquer outro Christão e com maior liberdade.255

O espaço ocupado pelo meirinho cacique e sua importância na dinâ-


mica colonial parece ganhar novo impulso sob Mem de Sá. O meirinho
possuía poder de polícia para vigiar e castigar seus administrados, de-
vendo prestar contas ao governador, seu superior hierárquico e
administrador da justiça. Liga-se ao poder de punir o de curar, no que
participam especialmente os padres:

Si algum adoece, [o meirinho] é obrigado a mandar-nos chamar e é de nós


curado e remediado assim no corpo como na alma, o melhor que podemos, e
assim poucos morrem que não sejam baptisados no artigo da morte quando

254
Uma légua terrestre atual (légua imperial) equivale a aproximadamente cinco quilômetros; porém, a légua antiga,
anterior à introdução do sistema métrico, perfazia a antiga unidade de medidas terrestres em Portugal e Brasil e
poderia equivaler a um intervalo que poderia variar de dois a sete quilômetros.
255
Idem, p. 179.
256 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

elles mostram signaes de fé e de contricção, e assim destes como dos innocen-


tes regenerados com a agua do baptismo se salvam muitos.256

A maior importância dada ao meirinho nativo convive com um sis-


tema de administração da justiça bastante rigoroso que utiliza o castigo de
forma exemplar como método para instaurar a ordem através do medo257.
Sobre isto, há dois exemplos sucessivos no relato de Nóbrega que apontam
para a mesma direção, ambos relacionados a potenciais rivais dos jesuítas
no âmbito da religião e da eficácia simbólica da crença: os feiticeiros e um
curioso caso de “Santidade”258:

Em um engenho se levantou uma Santidade por um escravo que desinquietou


a toda a terra, porque os escravos dos Christãos são os que nos fazem cá a
principal guerra por o descuido de seus senhores. Aconteceu que vindo um
Indio de outra aldêa á pregar a Santidade que andava, um o recolheu e lhe
ajunctou gente em terreiro para ouvir e a Santidade que pregava era que
aquelle Santo fizera bailar o engenho e ao senhor com elle, e que converteria
a todos em pássaros, e que matava a lagarta das roças que entonces havia, e
que nós não eramos para a matar e que havia de destruir a nossa egreja, e os
nossos casamentos que não prestavam, que o seu Santo dizia que tivessem
muitas mulheres e outras cousas desta qualidade259 (...). Sabendo o Governa-
dor onde estava, o mandou buscar; mas elle tambem fugiu dos homens
brancos, ferido em um braço; depois tomou por seu conselho vir pedir mise-
ricordia e foi-lhe dada penitencia que se disciplinasse em um domingo na
egreja e pedisse perdão a Deus e ao povo do escandalo que dera em recolherão
que trazia a feitiçaria, o que elle fez melhor do que lhe foi mandado, não só-
mente elle mas tambem os outros culpados; e metteu nos outros tanto fervor

256
Idem, p. 180.
257
Cf. EISENBERG, José, op. cit.
258
Tal categoria aparece no relato como “uma assimilação grosseira de ritos católicos com tradições e práticas gen-
tílicas”. Cf. NÓBREGA, CB, p. 180.
259
Interessante notarmos como a tal Santidade configura-se como um discurso contestatório jogando no mesmo
terreno e a partir dos mesmos métodos dos jesuítas: contesta o sistema monogâmico, fala em “converter a todos em
pássaros”, etc. Tratava-se de uma tentativa de contra-conversão, muito curiosa por apresentar-se como um sintoma
da conversão e da mudança radical do modo de vida indígena. O poder secular age repressivamente em defesa do
poder espiritual que agia por sua vez sobre os costumes dos índios. Teríamos então o poder repressivo-penal agindo
para proteger o sistema dos costumes (religioso). O poder de polícia exercido pelo governo em prol de um alinha-
mento de costumes e religião mobilizado contra irrupções como a aqui analisada, funcionando como o lugar-tenente
de um novo imaginário em vias de se sustentar e cujo pano de fundo era o de uma sociabilidade que então se diluía
e desintegrava.
Pedro Brocco | 257

e devoção assim verem-no como se açoitava cruamente com a pratica que fez
que moveu a muitos, que se sentiam culpados em suas consciências, a virem
confessar seu peccado secreto e a disciplinarem-se tambem com elle em pu-
blico (...).260

Mais à frente, Nóbrega escreve que “a carne humana que todos co-
miam e mui perto da cidade é agora tirada e muitos tomam já por injuria
lembrar-lhes aquelle tempo, e si em alguma parte se comem, são admoes-
tados e castigados por isso”261. A injúria aparece aí como um sentimento
moral cuja finalidade é aliar-se à culpa na representação mental de um ato
antes aceito e praticado. A admoestação e o castigo, sustentados pelo poder
administrativo político-religioso, era o esteio do sentimento de injúria e o
fomentava: em regiões mais afastadas da Bahia, ainda se comia a carne
humana, e segundo o relato de Nóbrega, “pela Bahia á dentro sete ou oito
léguas desta cidade, um Principal não quiz senão comel-a com festas”, o
que fez com que o governador mandasse prendê-lo durante um ano por
desobediência, “e é agora o melhor Indio que há na terra”262.
Se o tom de Nóbrega vai, ao longo dos dez primeiros anos de presença
jesuíta no Brasil, se tornando mais pessimista e encontrando no medo uma
via para a conversão dos nativos, esta carta consolida tal entendimento em
articulação ao poder secular: em suma, ao poder de polícia do governador.
São relatos sucessivos em que o governador aparece como figura de auto-
ridade que é obedecida, que arbitra penas, castigos, prisões, cujo objetivo
último é o de reprimir e modificar os costumes dos índios e coibir a rivali-
dade dos feiticeiros no campo da eficácia simbólica religiosa católica: “e
desta maneira se vai tirando seu costume e vão tomando obediencia e
aborrecendo os feiticeiros e tomando credito ao baptismo”263 – este trecho
sintetiza todos os pontos trabalhados até aqui: a obediência significa a sub-
missão aos poderes constituídos da metrópole e da hierarquia religiosa da

260
NÓBREGA, CB, pp. 180-181. Carta aos padres e irmãos de Portugal, Bahia, 1559.
261
Idem, p. 182.
262
Idem, p. 183.
263
Idem, p. 189.
258 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Igreja Católica, suplantando a eficácia simbólica dos feiticeiros e dimi-


nuindo o crédito em suas palavras, desinvestindo daí a crença a ser
transferida para o sistema sacramental católico, com seus ritos e procedi-
mentos regulatórios do ritmo social: batismo, casamento, eucaristia,
confissão.
A carta mais longa escrita por Nóbrega nesta compilação aqui anali-
sada é a carta enviada a Tomé de Sousa, escrita em 1559, dez anos após
sua chegada à Bahia como primeiro governador-geral do Brasil junta-
mente com os jesuítas. Esta carta faz um verdadeiro balanço da
colonização nestes dez anos e mostra a afinidade que ligava o jesuíta ao
governador, que não era nobre como D. Duarte da Costa, mas apenas um
militar.
O tom da carta é o confessional, posto ser uma espécie de conversa
entre velhos conhecidos. Nóbrega começa advertindo Tomé de Sousa so-
bre a extensão e a prolixidade da carta antes de iniciar o relato sobre o
estado da colônia: “E primeiramente quero fazer pranto sobre esta terra e
dar-lhe conta d’ella particular de cousas que mais tenho na alma des o
tempo que a Vossa Mercê deixou (...)”264.
O jesuíta e o primeiro governador-geral do Estado do Brasil foram
cúmplices no projeto de replanejamento administrativo da colônia. Do
ponto de vista dos objetivos da Companhia de Jesus, Nóbrega reconhece
que dois foram os principais: reformar os costumes dos colonos cristãos e
converter os índios:

Destes dois desejos que digo, me nasciam outros, que era desejar os meios
para que isto tivesse effeito, e d’estes escolhia dous que me pareciam melhores:
um, era desejar Bispo, tal qual Vossa Mercê e eu o pintavamos cá para refor-
mar os Christãos; e outro, vêr o Gentio sujeito e mettido no jugo da obediencia
dos Christãos, para se nelles poder imprimir tudo quanto quisessemos, porque
é elle de qualidade que domado se escrevera em seus entendimentos e vonta-
des muito bem a fé de Christo (...).265

264
Idem, p. 192. Carta a Tomé de Sousa, Bahia, 1559.
265
Idem, p. 193.
Pedro Brocco | 259

Nóbrega reconhece, entretanto, que pouquíssimo foi feito no projeto


jesuíta de conversão: se os índios eram “gente brutal” e não se podia deixá-
los em sua liberdade e vontade, não se fez muito fruto tentando subjugá-
lo: “sem d’elle tirarmos mais fructo que poucas almas innocentes que aos
céus mandamos”266.
A ausência de organicidade entre as duas frentes civilizatórias da mis-
são (reforma dos costumes e conversão) pôde funcionar como fator
explicativo pelo baixo sucesso do projeto de conversão entre os índios na-
quele momento. Nóbrega articula essa hipótese ao tratar do bispo
Sardinha:

Trouxe Nosso Senhor o bispo D. Pedro Fernandes, tal e tão virtuoso qual o
Vossa Mercê conheceu, e mui zeloso da reformação dos costumes dos Chris-
tãos, mas quanto ao Gentio e sua salvação se dava pouco, porque não se tinha
por seu Bispo, e elles lhes pareciam incapazes de toda doutrina por sua bruteza
e bestialidade, nem as tinha por ovelhas de seu curral, nem que Christo Nosso
Senhor se dignaria de as ter por taes; mas nisto me ajude Vossa Mercê a louvar
a Nosso Senhor em sua providencia, que permitiu que fugindo elle dos Gentios
e da terra, tendo poucos desejos de morrer em suas mãos, fosse comido d’elles,
e a mim que sempre o desejei e pedi a Nosso Senhor, e mettendo-me nas oca-
siões mais que elle, me foi negado.267

A história de Pedro Fernandes Sardinha, bispo do Brasil no período


de 1551 a 1556, é bastante conhecida. Tendo vindo ao Estado do Brasil
como seu primeiro bispo, para reformar os costumes dos colonos e auxiliar
os jesuítas no processo de conversão dos índios, logo entra em rota de co-
lisão com os inacianos, ao reprovar alguns métodos utilizados por estes
para a conversão, bem como seus modos heterodoxos de relacionarem-se
com os sacramentos, sobretudo o da confissão. Manuel da Nóbrega logo
abandona Salvador e vai ao extremo sul fundar a vila de São Paulo de Pi-
ratininga, no momento em que se vive o período mais caótico e sangrento

266
Idem, ibidem.
267
Idem, ibidem.
260 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

da capital da colônia, com uma guerra civil generalizada entre os índios e


os colonos. Durante a gestão de D. Duarte da Costa (1553-1557) este perí-
odo conturbado atinge o seu ápice, o que leva o bispo Sardinha a abdicar
e renunciar de sua função de bispo e retornar a Portugal. Na viagem de
volta, porém, sua embarcação sofre um naufrágio e o bispo é devorado por
índios da costa, em um episódio bastante irônico, como ressalta Nóbrega
ao falar da providência, que permitiu um desfecho contraditoriamente sa-
tírico da história do bispo. Não é por outro motivo que este episódio foi
escolhido por Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropofágico para
representar o modernismo brasileiro.
Ao fazer o levantamento do rol de pecados cometidos no Brasil, Nó-
brega chega a um episódio que pode ilustrar muito bem a perversidade do
colono português nesta época. Diz o jesuíta:

Em toda a costa se tem geralmente por grandes e pequenos que é grande ser-
viço de Nosso Senhor fazer aos Gentios que se comam e se travem uns com os
outros, e nisto têm mais esperança que em Deus vivo, e nisto dizem consistir
o bem e segurança da terra, e isto aprovam capitães e prelados, ecclesiasticos
e seculares (...), sempre dão carne humana a comer não sómente a outros In-
dios, mas a seus próprios escravos. Louvam e approvam ao Gentio o comerem-
se uns a outros, e já se achou Christão a mastigar carne humana, para darem
com isso bom exemplo ao Gentio. Outros matam em terreiro à maneira dos
Indios, tomando nomes, e não sómente o fazem homens baixos e Mamalucos,
mas o mesmo Capitão, às vezes! O’ cruel costume! O’ deshumana abominação!
O’ Christãos tão cegos!268

Já havia aparecido em cartas anteriores a crítica aos colonos que usa-


vam a guerra entre os índios para enfraquecê-los e poder tomá-los como
escravos. Todavia, o relato de cristãos comendo carne humana e tomando
nomes à maneira dos índios é novo no corpus de cartas de Nóbrega até
aqui analisado: verdade ou ficção de Nóbrega? Supõe-se o poder de in-
fluência que Tomé de Sousa poderia ter ainda junto à Coroa. O fomento

268
Idem, p. 196.
Pedro Brocco | 261

das guerras entre tribos indígenas rivais e das guerras entre índios e colo-
nos pode também figurar aqui como hipótese para o aumento do número
de escravos naquele período. Nóbrega estaria aí, neste sentido, denunci-
ando um mecanismo social que funcionava a favor da preação e
escravização de pessoas, tidas pelos jesuítas como almas que se perdiam e
não se poderiam salvar pela via da conversão, catequese e educação, ou no
máximo o poderiam sê-lo enquanto escravos dos colonos.
A tópica lascasiana sobre a colonização espanhola instituída na Bre-
vísima Relación sobre la destrucción de las Indias aparece nesta carta
quando Nóbrega diz: “D’este mesmo odio que se têm ao Gentio, nasce não
lhe chamarem sinão cães, tratarem-nos como cães (...)”269. Daqui podemos
afirmar que esta metáfora do cão como o nativo aparece de forma mais ou
menos homogênea nas Américas espanhola e portuguesa. A imagem ficou
conhecida com os relatos lascasianos, ademais das pesquisas etimológicas
do termo cholo, o qual, segundo Inca Garcilaso de la Vega, quer dizer cão,
termo que os espanhóis usavam por infâmia e vitupério em relação aos
nativos270. Trata-se agora também de perceber o aparecimento deste
mesmo termo e nas mesmas condições na colonização portuguesa, em
uma dinâmica perversa que se voltava ao aniquilamento étnico dos índios
do Brasil, com o fomento de guerras intertribais.
Junto desta maneira de proceder do colono em relação aos povos in-
dígenas, aparece, de forma inseparável, a posição que o índio assumia,
acerca de seu trabalho e dignidade, para o colono. A tópica da exploração
do trabalho é uma revisita aos cronistas espanhóis e mais uma vez se per-
cebe a repetição das dinâmicas colonizadoras sobre a força de trabalho dos
nativos:

Desta mesma raiz nasce darem-se pouco os Christãos pela salvação dos escra-
vos que têm do Gentio, deixando-os viver em sua lei, sem doutrina nem
ensino, em muitos peccados; e si morrem os enterram nos monturos, porque

269
Idem, p. 197.
270
Cf. Nota de rodapé número 45 do primeiro capítulo de PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história
lexical da Ibero-América entre os séculos XVI e XVIII.
262 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

delles não pretendem mais que o serviço e para terem mais quem os sirva,
trazem Gentios á casa para se contenrarem de suas escravas, e assim estão
amancebados Christãos com Gentios.271

Explorados em sua força de trabalho, desprovidos de qualquer digni-


dade em relação à sua pessoa, dignidade e humanidade já reconhecidas
desde 1537 pela bula Sublimis Deus, o índio do relato de Nóbrega aparecia
como mera força de trabalho no sistema produtivo da colônia. Embora não
partissem da crítica do abuso da força de trabalho do indígena, os jesuítas
eram militantes pela conquista e conservação de sua alma: era a alma que
buscavam, que supunham capaz de participação metafísica no conceito de
Deus, como diretas emanações deste.
Ignorantes de sua participação metafísica no conceito de Deus, com
seus desdobramentos de tempo e de história pressupostos nas Escrituras,
os índios seriam possuidores da graça em estado bruto, e era preciso fazê-
los “relembrar”, direcionando-os ao verdadeiro Deus, rememorando, pe-
dagogicamente, os longínquos antepassados de Cam. Está neste ponto a
principal diferença entre a visão jesuíta e a luterana acerca da graça: para
os luteranos os índios seriam “desgraçados” e hereges. Nóbrega confirma
este ponto em sua carta: “E porque não haja peccado que nesta terra não
haja, tambem topei com opiniões luteranas e com quem as defendesse,
porque, já que não tinhamos que fazer com o Gentio em lhe tirar suas
erronias por argumentos, tivessemos hereges com quem disputar e defen-
der a Fé Catholica”272. Tal conjunto de opiniões “luteranas” era o mesmo
que dava forma às ações dos colonos, tratando o índio como desprovido
de graça, ou, em termos aristotélicos, capacidade ou potencialidade para
incorporar-se ao sistema colonial através da conversão.
Este viver no sistema colonial através da conversão, ainda que inega-
velmente supusesse altas doses de aculturação e alienação ao modo de vida
europeu, do ponto de vista jesuíta supunha também a criação de limites

271
NÓBREGA, CB, p. 198. Carta a Tomé de Sousa, Bahia, 1559.
272
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 263

ditados e informados pelas noções de justiça e razão, cujo percurso pode


ser encontrado no caminho que vai de Aristóteles a Francisco de Vitoria,
passando pelos jurisconsultos romanos.
O horizonte da conversão unia o aspecto ético-religioso ao jurídico-
civilizacional, com todas as estruturas, vezos e costumes da tradição greco-
romana e judaico-cristã que formavam o ethos ocidental daquele período.
A doutrina do poder civil defendida por Francisco de Vitoria, criada para
dar conta tanto do movimento luterano reformista quanto da parte cató-
lica que acreditava que o papa possuía plenos poderes e legitimidade para
fazer doações de partes do mundo às potências europeias, assumia a exis-
tência de direitos naturais nas organizações nativas do Novo Mundo, que
demandavam reconhecimento, em primeiro lugar, por parte dos coloniza-
dores, para depois se criar qualquer tentativa de comunicação e criação de
pactos sociais que pudessem levar ao pacto de sujeição ao poder metropo-
litano. Isto quer dizer que a doutrina política criada e defendida por
Salamanca, característica dos poderes ibéricos daquele período, localizava
o poder do soberano em uma triangulação: do direito natural, expressão
da lei divina que habita o coração dos homens, extraía-se o poder civil que
era alienado ao rei, no pacto de sujeição. Não era o poder divino que descia
sobre a cabeça real automaticamente e sem qualquer mediação: o povo,
para esses teólogos-juristas ibéricos, era a própria mediação entre Deus e
o soberano. Ora, para Nóbrega a questão da conversão tratava-se da cons-
trução de um povo católico entre os índios. E para fazê-lo, era necessário
que se reconhecesse a capacidade dos índios para tornar-se um povo cató-
lico; em outras palavras, era preciso que se reconhecesse neles uma graça
inata.
Haveria então uma diferença envolvendo o conceito de sujeição para
esta corrente da tradição ibérica que a fundamentava no pacto de sujeição
e na mediação do povo acerca do poder civil e a corrente luterana, citada
acima, para a qual o homem estava desde sempre desprovido da graça
dada a sua natureza corrupta desde o pecado original, e as sociedades de-
mandavam um soberano poderoso para evitar o caos social, soberano cujo
264 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

poder advinha diretamente de Deus. Ocorre que entre uma posição e ou-
tra, definidas do ponto de vista moral-teológico, há a posição dos colonos
em relação aos índios, presente no funcionamento da economia política,
contaminada pela visão de que os índios seriam servos por natureza, pre-
sente nos debates de Valladolid entre Bartolomé de Las Casas e Juan Ginés
de Sepúlveda. Diz Nóbrega na carta a Tomé de Sousa:

Pois que direi das tyrannias, agravos e sem razões que se fazem aos Indios,
maiormente nesta capitania e outras d’onde os Christãos têm algum domínio
sobre os Indios? Vossa Mercê as poderá julgar, pois já cá esteve: de maneira
que a sujeição do Gentio não é para se salvarem e conhecerem a Christo e
viverem com justiça e razão, sinão para serem roubados de suas roças, de seus
filhos e filhas e mulheres, e dessa pobreza que têm, e quem disso usa mais,
maior serviço lhe parece que faz a Nosso Senhor, ou, por melhor dizer, a seu
senhor, o príncipe das escuridades.273

A luta pela terra, que no Brasil tem início neste período, com a lenta
formação da classe trabalhadora, se dá pela violenta ação dos colonos em
relação aos índios.
Isto, no entanto, não significa que os jesuítas apresentassem uma via
que objetivamente não significasse a colonização e a sujeição dos índios à
Coroa portuguesa. Os jesuítas foram funcionários, talvez os mais bem pre-
parados, da colonização portuguesa. Talvez não estivesse posto claramente
naquele momento que a defesa da liberdade dos índios significasse um au-
mento da demanda de mão-de-obra escrava africana, e sabe-se como a
economia da Coroa portuguesa passou a ficar cada vez mais dependente
do tráfico de escravos africanos após perder suas possessões na Índia e ver
seu comércio de especiarias ruir a partir da segunda metade do século XVI.
Lutadores implacáveis contra os costumes indígenas que considera-
vam maus, os jesuítas buscavam a conversão mediante a ajuda do poder
temporal da colônia. Por este motivo, principalmente, a figura do gover-
nador-geral era decisiva para os rumos da conversão. Após o período

273
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 265

inicial de governo de Tomé de Sousa, seguiu-se a administração de D. Du-


arte da Costa, a qual não recebeu grande aprovação dos jesuítas. Os
ânimos mudam com a chegada de Mem de Sá em 1557. Escreve Nóbrega a
respeito do desânimo enfrentado no período que compreendeu 1553-1557,
na gestão Duarte da Costa, ao narrar a morte do padre Navarro:

Neste tempo nos levou Nosso Senhor ao nosso companheiro o padre Navarro,
que era um grande operario d’esta obra (...) morrendo disse que por isso só-
mente partia triste d’este mundo, por não ver cumpridos seus desejos; mas eu
creio que Nosso Senhor ouviu lá suas orações mais perto, e concedeu-nos que
d’ahi a pouco tempo viesse Men de Sá com um regimento de Sua Alteza, em
que o mandava mui de preposito ajudar a conversão, por paz ou por guerra,
ou como mais conveniente fosse.274

Percebe-se aí neste trecho que estava dado como pressuposto que


com Mem de Sá Nóbrega concretizaria a implementação do projeto de con-
versão conforme a sua tese de que o índio brasileiro se converteria mais
eficazmente através do medo do que através do amor. Implementa-se, en-
tão, a mudança da pedagogia do amor para a pedagogia do medo.
Um exemplo pode ser fornecido para que se compreenda a mudança
política em relação à repressão de certos costumes, como o da antropofa-
gia. Nóbrega informa a seu amigo Tomé de Sousa que pediu duas coisas a
Duarte da Costa “para bem da conversão”: i) que ajuntasse algumas al-
deias em uma povoação, para que menos jesuítas fossem necessários para
ensinar a muitos índios e ii) “tirasse o comer para carne humana, ao me-
nos áquelles que estavam sujeitos e ao derredor da cidade, tanto quanto
seu poder se estendesse”275, isto é, que politicamente fomentasse a proibi-
ção do costume de comer carne humana. Nóbrega afirma que não pareceu
uma boa ideia ao governador e seu conselho, pois o rei havia mandado que
desse paz aos índios e não os escandalizasse (mas o que seria de fato dar

274
Idem, p. 203.
275
Idem, p. 202.
266 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

paz aos índios? Será que seria a instigação das guerras intertribais e o ex-
termínio a conta-gotas?). Duarte da Costa, conta Nóbrega, todavia
favoreceu os jesuítas em “duas egrejas que fizemos de palha, das quaes se
visitavam quatro aldeias”276, e mandou que os índios não comessem carne
humana, de tal maneira que se comessem não se fazia nada a respeito, e
assim puderam continuar com o costume às escondidas e em outras al-
deias mais distantes “mui livremente”.
Com a chegada de Mem de Sá, a política repressiva do governo geral
a respeito dos costumes indígenas muda radicalmente:

Acabou o engenho, e acabará cedo a Sé, e com exemplo de sua pessoa convida
a todos a bom viver de tal maneira, que sabe Nosso Senhor quanta inveja lhe
eu tenho. Na conversão do Gentio nos ajudou muito, porque fez logo ajuntar
quatro ou cinco aldeias que estavam derredor da cidade, em uma povoação
junto ao rio Vermelho, onde pareceu mais conveniente, para que toda esta
gente pudesse aproveitar-se das roças e mantimentos que tinham feito, e aqui
mandou fazer uma egreja grande, em que coubesse toda esta gente, a que cha-
mam S. Paulo. Mandou apregoar por toda a terra, scilicet: oito e nove leguas
ao derredor, que não comessem carne humana, e por se mostrar ao Gentio foi
ouvir a primeira missa dia de S. Paulo, acompanhado de todos os Principaes
da terra, e naquelle dia baptisaram muitos, onde deu a todos de comer, gran-
des e pequenos.277

Neste trecho pode-se notar como o projeto de conversão estava um-


bilicalmente ligado ao poder político secular, e de que modo Nóbrega
aproxima a conversão à atuação política material: construir, ajuntar, ali-
mentar, aparecer (se mostrar, ser visto). Ora, tais verbos foram praticados
pelo governador-geral Mem de Sá, e por eles se percebe um reforço ao
projeto de conversão, e mesmo se pode vislumbrar a grande importância
do poder político secular na conversão dos índios do Brasil. Nesta dinâ-
mica, o batismo aparece para haurir todo um processo material de

276
Idem, p. 203.
277
Idem, p. 204. Realce meu.
Pedro Brocco | 267

construção de um corpo social, dando-lhe forma e eficácia simbólica: na-


quele dia batizaram muitos, onde deu a todos de comer. O alimento do
corpo e da alma surge então indiscernível aos olhos do jesuíta, formando
materialmente o conceito da eucaristia.
O projeto de conversão jesuíta estava, portanto, inserido em um pla-
nejamento material de governo. Em um mesmo trecho de carta, ao
discorrer sobre a melhora que a administração de Mem de Sá trouxe para
a conversão, Nóbrega fala das intervenções do novo governador em três
domínios, representados pelas seguintes figuras: i) a religião, com a cons-
trução de novas igrejas; ii) a educação, com a construção de escolas; iii) a
polícia, com a transformação dos “principais” dos índios (caciques) em
meirinhos, figura medieval ligada à administração da justiça, equivalente
a um oficial de justiça, que naquele momento desempenhava uma função
próxima ao delegado de polícia, com poderes para reprimir, prender os
delinquentes, etc, a partir do código moral católico- português. Ao falar
sobre as novas igrejas construídas por Mem de Sá, Nóbrega observa:

Em todas ha eschola de muitos meninos; pequeno nem grande morre sem ser
de nós examinado si deve ser baptisado, e assim Nosso Senhor vai ganhando
gente para povoar sua Gloria, e a terra se vai pondo em sujeição de Deus e do
Governador, o qual os faz viver com justiça e razão, castigando os delinquentes
com muita moderação, com tanta liberdade como aos mesmos Christãos. E
cada povoação d’estas tem seus meirinhos, os Principaes d’ellas, os quaes por
mandado do Governador prendem e lhe trazem os delinquentes, e assim lhes
tira a liberdade de mal viver e os favorece no bem.278

A preocupação, portanto, era a de aumentar o número de cristãos e


sujeitá-los a Deus e ao governador, o qual utiliza e delega seu poder aos
meirinhos de cada povoação, transformados em funcionários da Coroa no
sistema administrativo colonial.
Contrapondo-se ao projeto da conversão e à aliança dos jesuítas com
Mem de Sá, aparecem as forças representadas pelos colonos. Nóbrega fala

278
Idem, p. 205.
268 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

sobre os colonos, “imigos da humana geração”, que começaram o seu pro-


jeto de desestabilização do governo Mem de Sá ao incursionarem contra
os índios de São Paulo, tomando-lhes as terras e roças: “em que primeiro
estiveram de posse e nunca fizeram por donde as perdessem, antes na
guerra passada estes ajudaram aos Christãos contra os seus próprios”279.
Por aí se percebem os primórdios da desigualdade fundiária e da luta em
torno da questão agrária que chega aos dias atuais: o fim do sistema das
capitanias hereditárias não significou o fim da concentração fundiária. São
Paulo, que nos primeiros anos de colonização não passava de sertão, co-
meçava a enfrentar o problema da turbação da posse das terras dos índios
pelos colonos, que visavam ainda tomar os mesmos índios por escravos.
Esta carta a Tomé de Sousa aqui analisada, datada de 5 de julho de
1559, portanto já dez anos passados do início da presença de Nóbrega no
Brasil, é a que traz mais claramente os rudimentos de uma futura “questão
social”, ainda em forma de “questão colonial”, envolvendo os descendentes
dos índios, o trabalho escravo destes, sua condição enquanto índios, a
questão agrária que se ligava a esta. No relato do jesuíta, o índio, ou Gentio,
aparecia como um estrato da sociedade colonial que passava por esbulhos
de suas posses, além de maus tratos vários, privados de dignidade ao tra-
balhar para os colonos, os quais teriam pouca preocupação de salvar suas
almas “e muito por enriquecer e levar boa vida, segundo a carne e os vicios
e peccados que, segundo a pobreza da terra, se póde ter nella”280.
Junto dos colonos, Nóbrega reconhecia alguns setores da administra-
ção pública e da administração da justiça, como os Ouvidores. Em um
trecho da carta, o jesuíta se queixa do fato de que os índios turbados e
furtados por colonos (“gente de mau viver”), que lhes dão pancadas e fe-
ridas pelos caminhos, furtando-lhes seu peixe e mantimentos, não
conseguem o castigo das ações perpetradas pelos colonos junto ao Ouvidor

279
Idem, ibidem.
280
Idem, p. 209.
Pedro Brocco | 269

Geral, pois este entendia que, sem a prova de dois ou três cristãos brancos,
não se poderia aplicar castigo algum: “e nisto não póde haver justiça”281.
Esta concepção de justiça de Nóbrega é muito antiga: deita raízes em
Aristóteles e em sua Ética a Nicômaco, na virtude da justiça subdividida
entre justiça geral ou distributiva e justiça particular ou comutativa. Era
justo buscar a reprimenda e reparação de atos reprováveis dos colonos em
relação aos índios. O que se buscava com isto era construir uma narrativa
de comunidade capaz de abarcar também os índios em condições mínimas
de igualdade: para isto, o fator distributivo de assegurar-lhes suas terras e
seus mantimentos, bem como o comutativo de reparação contra atos ca-
pazes de turvar o equilíbrio distributivo.
Neste sentido, é possível entender que o conceito de comunidade que
se buscava construir, fundamentada no conceito aristotélico (e tomista) de
justiça, ligava-se ao conceito de ordem. O conceito representado pelos co-
lonos, oposto a este, apontava para a preação dos índios e a desordem civil,
fomentando as guerras intertribais.
Os jesuítas e o governador Mem de Sá apostavam na criação de co-
munidades, aldeamentos ou povoamentos, que também diluíam os
vínculos comunais originários entre etnias (o próprio fato da criação da
nomenclatura generalizante de “índio” para se referir a todo e qualquer
nativo é um indício), com a diferença de se acreditar poder construir tais
comunidades em clave católica-tomista-aristotélica, a partir do respeito
aos sacramentos, e uma política católica organicista que se colocasse con-
tra guerras intestinas e promovesse a amizade entre os membros dos
aldeamentos, ainda que proviessem de etnias diferentes: “(...) mandou o
Governador ajuntal-os de uma parte em povoações sobre si, e mandou-
lhes que em mentes se ajuntavam, não guerreassem (...)”282.
Os colonos, por sua vez, apostavam na outra vertente, segundo a qual
era melhor que os índios rivais guerreassem para que aos poucos todos se
enfraquecessem em guerras ininterruptas. A segurança da terra, portanto,

281
Idem, p. 206.
282
Idem, ibidem.
270 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

para os jesuítas, estava na conversão e sujeição dos índios ao cristianismo


e à Coroa; para os colonos, a segurança da terra estava na destruição mú-
tua e no enfraquecimento dos índios decorrente das guerras intertribais.
Não se preocupavam, assim, que essas guerras gerassem os rituais de an-
tropofagia, ferrenhamente combatidos pelos jesuítas:

O Capitão do Paraguay se mandou offerecer por vezes que sujeitaria os Tupis


a S. Vicente si lhe dessem licença e querem com os Portuguezes tracto e con-
versação e ajudal-os contra o Gentio e outros inimigos, e nem o querem
acceitar nem querem ganhar a terra, mas deixam-se estar esperando que por
uma parte os matem Francezes e os contrarios por outra, e os Indios da terra
que se levantem e os acabem de consumir e comer a todos. Este segredo eu
não o entendo, mas vejo ir-se a perder tudo.283

Um sentimento de contradição e incompreensão perpassa toda a


carta de Nóbrega: como conciliar o projeto de conversão dos nativos com
as resistências apresentadas pelos colonos? Vai se tornando mais clara a
posição renitente dos colonos com o passar dos anos de Nóbrega frente à
missão jesuíta no Brasil. O jesuíta chega a dizer a Tomé de Sousa que lhe
parecia bem conquistar a terra e repartir os índios pelos moradores obri-
gando-se a “doutriná-los”, mas logo reconhece que não há nenhum colono
que por isso queira “levar uma má noite”. No momento em que Mem de
Sá logra, ao lado dos jesuítas, construir aldeias e reunir alguns grupos de
índios para a vida comum cristã, “não falta quem vá tirar nossos Indios
que temos juntos com muito trabalho e leval-os ás suas roças a viver”284.
Este trecho se conecta de forma muito eloquente com este outro já aqui
citado, da mesma carta: “(...) de maneira que a sujeição do Gentio não é
para se salvarem e conhecerem a Christo e viverem com justiça e razão,
sinão para serem roubados de suas roças, de seus filhos e filhas e mulheres,
e dessa pobreza que têm, e quem disso usa mais, maior serviço lhe parece

283
Idem, p. 218.
284
Idem, p. 209.
Pedro Brocco | 271

que faz a Nosso Senhor (...)”285. Ainda que recoberta sob uma treliça reli-
giosa, os trechos realçados em itálico do último excerto representam já
uma tensão crucial, fundadora da sociabilidade brasileira: a disputa entre
as frentes econômico-política pela força de trabalho e religiosa-moral-pe-
dagógica pela conversão, catequese e educação. O saldo da disputa, como
relata Nóbrega, é a pobreza produzida artificialmente por aqueles que dela
se valem para desnudar ainda mais uma vida já nua: a do índio, neste pri-
meiro momento. Retirando-o de suas roças e de perto de familiares, o
poder econômico-político colonial despojava-o do pouco que possuía, iso-
lando-o como mera força de trabalho de um sistema de trabalho escravo
no umbral da fundação da grande empresa agroexportadora de produtos
tropicais que definirá os rumos do Brasil até os dias atuais.
A posição dos jesuítas nesta disputa é aquela da aposta pedagógica e
educativa da mudança de vida e de costumes: uma psicagogia, no hori-
zonte proposto por este trabalho; o ensino das virtudes da justiça,
amizade, prudência, bem como das virtudes supostas nos sacramentos
como o da eucaristia, como método de criação de que definiam como “bem
viver”, a partir dos “bons costumes”. Em ambos os casos, o corpo do índio
era requerido, despojado de sua anterior forma de vida. Sem qualquer
pendor pelo discurso apologético em relação aos jesuítas, de que padecem
grandes obras e grandes autores como o padre Serafim Leite, autor da co-
lossal História da Companhia de Jesus no Brasil, os objetivos tanto dos
colonos quanto dos jesuítas, em um primeiro momento, consistia em pro-
duzir súditos dóceis para a Coroa portuguesa: seja como força de trabalho,
colono civilizado a partir do ethos cristão ou força militar de defesa e con-
quista do território.
Nóbrega, como bom ideólogo jesuíta, escreve a Tomé de Sousa em
defesa do projeto da Companhia de Jesus contra os colonos. Se D. Duarte
da Costa parece ter apoiado mais os colonos, seu sucessor Mem de Sá e
seu antecessor Tomé de Sousa parecem ter trabalhado mais ao lado dos

285
Idem, p. 198. Realce meu.
272 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

padres jesuítas. Neste sentido se entende o seguinte trecho escrito por Nó-
brega:

Outros zelando por parte dos Indios, ou por parte de Satanaz, murmuram por
serem presos e castigados por seus delictos, e por serem apremiados á dou-
trina e a bons costumes, temendo que por isso se levantem, e não murmuram
pelas sem razões que elles fazem aos Indios que é maior occasião de se elles
amotinarem, porque nós, posto que por uma parte os apremiamos a bem viver,
por outra lhes mostramos entranhas de amor, pugnando por elles em tudo e
defendendo-os de tyrannias e servindo-os e curando-os de suas enfermidades
com muito amor, de que elles são bem em conhecimento, e por outra parte
estes Christãos, si algum Indio lhe prejudica em uma palha de sua fazenda,
querem logo que seja crucificado.286

Ora, o que se depreende deste trecho, além da diatribe entre jesuítas


e colonos pelo “zelo do indígena”, senão o que Pierre Legendre definiu
como “o amor do censor”287? Pois se havia o amor como sentimento de
caridade e sacrifício por um outro que não queria nada com isso, havia
também o esforço de reprimir costumes antigos, ainda que fossem conser-
vados alguns traços, melodias, crenças adaptáveis, etc. Os jesuítas
situavam-se então na complexa posição entre: i) a imposição de uma su-
jeição e ii) o fazer-se amar ou, como mostra Nóbrega no Brasil, temer.
Tanto a imposição da sujeição quanto o fazer-se amar pressupunham
a presença de aparato militar e coercitivo da Coroa portuguesa. Se houve
as famosas missões volantes em território brasileiro, reminiscências apos-
tólicas do cristianismo primitivo, foram só nos primeiros anos de atuação
da Companhia de Jesus, e a partir de sede administrativa já estabelecida
em Salvador. Apesar de alguns martírios de padres em missão, é razoável
se afirmar que este modelo não foi o hegemônico no Brasil. Pode-se forta-
lecer esta hipótese a partir do exame da carta de Nóbrega a Tomé de Sousa.
Há um trecho muito rico que se debruça sobre o tópico da sujeição do ín-
dio. Após afirmar que os índios não são serpes, mas “gente nua” que não

286
Idem, p. 207. Realce meu.
287
Cf. LEGENDRE, Pierre. O Amor do censor: ensaio sobre a ordem dogmática. Rio de Janeiro: Forense Universitá-
ria/Colégio Freudiano, 1983.
Pedro Brocco | 273

parecem ser da mesma casta dos portugueses, Nóbrega fala sobre ataques
de índios a colonos na capitania de Ilhéus, para depois afirmar:

E o mesmo será de todas as outras capitanias, em mentes o Gentio não fôr


senhoreado por guerra e sujeito, como fazem os Castelhanos nas terras que
conquistam e no Paraguay o fizeram com mui pouca gente, senhoreando o
maior Gentio que ha na terra (...) Se isto fosse, os Indios seriam christãos e a
terra se povoaria em serviço de Deus Nosso Senhor e em prol do Reino.288

Nóbrega coloca em um mesmo plano a conversão e a sujeição à Co-


roa. Além disso, sabia desde aquele momento que a região do Paraguai
possuía grande número de índios, o maior contingente de “gente nua” que
havia na terra para a roupagem da conversão289.
A última carta da edição consultada das cartas de Nóbrega é endere-
çada ao infante cardeal D. Henrique, em 1560. Nela se pode ler uma
repetição acerca dos tópicos da conversão e da contradição dos colonos,
mas grande parte dela se concentra em relatos sobre a região na qual seria
fundada a cidade do Rio de Janeiro.
No início da carta, Nóbrega afirma ter Mem de Sá vencido as contra-
dições dos colonos:

(...) pôde vencer Men de Sá a contradição de todos os Christãos desta terra,


que era quererem que os Indios se comessem, porque nisso punham a segu-
rança da terra, e quererem que os Indios se furtassem uns aos outros, para
elles terem escravos, e quererem tomar as terras aos Indios contra razão e
justiça, e tyrannisarem-nos por todas vias, e não quererem que se ajuntem
para serem doutrinados (...)290

Há um incontornável elemento jurídico neste argumento de Nóbrega


e de seus companheiros jesuítas, que vem de modo sistematizado ao me-
nos desde Francisco de Vitoria: o de que as terras dos índios não poderiam

288
Idem, p. 217.
289
Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
290
NÓBREGA, CB, p. 221. Carta ao Infante Cardeal D. Henrique, São Vicente, 1560.
274 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

ser turbadas e retiradas de seu domínio sem justa razão. Em outras pala-
vras, tratava-se de incluir o indígena sob o mesmo sistema jurídico de
organização social, com as garantias e proteções do direito civil.
Tendo por interlocutor o infante cardeal, Nóbrega não economiza a
tinta para sublinhar que os franceses que ameaçavam o território do Bra-
sil, em especial o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, eram protestantes:

Estes Francezes seguiam as heresias da Allemanha, principalmente as de Cal-


vino, que está em Genebra, e segundo soube delles mesmos e pelos livros que
lhes acharam muitos, e vinham a esta terra a semear estas heresias pelo Gen-
tio; e segundo soube tinham mandados muitos meninos do Gentio a aprendel-
as ao mesmo Calvino e outras partes para depois serem mestres, e destes levou
alguns a Villagalhão que era o que fizera aquella fortaleza, e se intitulara Rei
do Brasil.291

Nóbrega relata ao cardeal D. Henrique os primeiros episódios da to-


mada do forte de Villegaignon e a posterior fundação da cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro, alguns anos depois, em 1565. Assim como na
fundação da vila de São Paulo de Piratininga, Nóbrega foi peça fundamen-
tal na fundação e povoamento da cidade do Rio de Janeiro, onde passa os
últimos anos de vida até o dia de sua morte, em 18 de outubro de 1570.

2.7 Da fundação de São Paulo ao Paraguai: o planejamento de


Nóbrega

Entender as sutilezas da presença e ação jesuíta em plena instituição


do governo geral do Estado do Brasil não é simples: pode-se aderir ao risco
de vê-los como meros braços da Coroa portuguesa, como de fato, em li-
nhas gerais, o eram; porém, uma análise mais minuciosa mostra outras
linhas de atuação, inclusive centrífugas em relação às planejadas pela Co-
roa no Regimento Régio que criou as coordenadas para Tomé de Sousa e
os agentes que ficaram incumbidos de fundar o Brasil para além das capi-
tanias esparsas.

291
Idem, p. 226.
Pedro Brocco | 275

Vimos acima, no decorrer da análise das cartas escritas por Nóbrega,


que a relação dele e dos jesuítas com o clero secular, sobretudo com o bispo
Sardinha, logo tornou-se tensa. Se por um lado a vinda de um bispo fora
desde o primeiro momento desejada e requerida, por outro, assim que
Pero Fernandes Sardinha pisa na Cidade do Salvador, surgem as primeiras
rusgas com Nóbrega e diatribes com os jesuítas e em seguida com o poder
civil, representado pelo futuro governador-geral, D. Duarte da Costa.
O padre Leonardo Nunes, que chegou com Nóbrega na mesma ar-
mada que trouxe Tomé de Sousa, foi o primeiro jesuíta a desembarcar no
Sul do Brasil. Nunes foi a São Vicente, enviado em missão por Nóbrega292.
Leonardo Nunes, apesar de bem recebido pelos colonos, começa a ter
problemas ao pregar contra a escravidão e o concubinato; entretanto, seus
sermões são bem-sucedidos em ao menos dois ouvintes decisivos: Pero
Correia e Manuel de Chaves.
Pero Correia, exímio caçador de índios, tornara-se um dos homens
mais ricos de São Vicente devido ao número de escravos sob seu comando.
Fluente em tupi, havia percorrido as trilhas indígenas do sertão que leva-
vam ao Paraguai, via Paraná, e a Santa Catarina. Torna-se a partir de então
o principal aliado de Leonardo Nunes e também passa a ajudá-lo como
língua, e futuramente seria aceito por Nóbrega na Companhia de Jesus,
para a qual doou todas as suas terras em São Vicente e em Peruíbe293.
Manuel Chaves também estava envolvido com a preação de índios,
tendo chegado a São Vicente em 1548, após uma vida de captura de índios
pelo sertão. Ao ouvir os sermões de Nunes, libertou todos os seus escravos
e juntou-se à Companhia de Jesus.
Correia e Chaves foram os primeiros a informar a Nunes que acima
da serra a cerca de 15 léguas (aproximadamente 90 quilômetros de São

292
Conferir, neste sentido, as cartas de Nunes escritas desde São Vicente em 1550 e 1551 em NAVARRO, Azpilcueta e
outros. Cartas avulsas, 1550-1568. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.
293
Conferir a narrativa de Bueno com base nas cartas de Nunes e outros jesuítas que missionaram em São Vicente,
São Paulo de Piratininga e no Guairá em BUENO, Eduardo. A coroa, a cruz e a espada. Rio de Janeiro: Estação Brasil,
2016, p. 172 e ss. A utilização desta obra de Bueno aqui se deve ao fato de o autor ter produzido uma prosa escorreita
a partir da pesquisa de fontes do período colonial como as cartas jesuíticas e de reconhecidos historiadores que as
comentaram, como Jaime Cortesão e Serafim Leite.
276 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Vicente), havia junto dos índios, no campo, “alguma gente cristã derra-
mada” que passara anos sem ouvir missa nem se confessar, andando em
uma vida de selvagens294. Aquelas terras do “campo”, onde seria fundada
a futura cidade de São Paulo, eram controladas já por um nascente melting
pot caboclo: João Ramalho, o patriarca branco que dominava aqueles ter-
ritórios e vivia ali há cerca de quarenta anos, era casado com a índia
Bartira, filha de Tibiriçá, principal de uma aldeia que ficava na confluência
dos rios Tamanduateí e Anhangabaú, cerca de 30 quilômetros de distância
do local onde vivia Ramalho. Os cristãos que viviam perdidos naquela lo-
calidade foram encontrados por Nunes. Quase todos eram, conforme
Jaime Cortesão295, remanescentes da vila de Piratininga, fundada pelo do-
natário Martim Afonso de Sousa em 1532 junto a uma aldeia indígena. Os
remanescentes do povoado, que se desagregara em 1535 e não desceram a
serra de volta para São Vicente, lá ficaram e viveram de acordo com o
modo de vida dos indígenas. Os jesuítas, assim, quando fundaram o Colé-
gio em Piratininga, não apenas fundaram os alicerces da futura cidade de
São Paulo, mas também refundaram um antigo povoamento que não vin-
gara no regime anterior das capitanias hereditárias.
Foram os índios de Piratininga, além dos outros dois intérpretes ex-
perientes (Correia e Chaves) que revelaram a Leonardo Nunes, que tinha
o apelido de Abarebebé ou “padre voador”, em razão de sua rapidez ao
caminhar e deslocar-se, a existência de grandes contingentes de índios ca-
rijó nos campos além de São Paulo, revelando-lhe também a presença de
uma série de trilhas que iriam conduzir até lá e depois ao Paraguai. No
limite, tais trilhas indígenas, conhecidas como peabirus, dizia-se que con-
duziam também ao Peru e a Potosí. O principal destes caminhos ligava
Cusco, no Peru, ao litoral brasileiro, na altura de São Vicente.
Leonardo Nunes, em constante comunicação epistolar com Nóbrega,
que então estava em Salvador, começa a planejar uma viagem ao Paraná e

294
Idem, ibidem.
295
Idem, p. 175.
Pedro Brocco | 277

ao Paraguai, segundo ele cerca de 200 léguas (ou 1.200 quilômetros296)


terra adentro, numa viagem de seis ou sete meses297.
Para os jesuítas, seria muito mais fácil promover um grande projeto
de conversão dos índios com os nativos carijós, pertencentes à grande fa-
mília guarani, mormente os que estivessem terra adentro e tivessem
menos chances de terem sido “contaminados” pelos brancos. Além disso,
munidos de informações de viajantes, os padres jesuítas sabiam que os
carijós e os guaranis eram mais pacíficos, ligados à agricultura e, portanto,
mais sedentários, e não praticavam a antropofagia como os temidos índios
da costa brasileira.
Em carta decisiva enviada a Nóbrega desde São Vicente em 1552, Le-
onardo Nunes é mais enfático: relata que haviam chegado a São Vicente
alguns castelhanos provenientes do Peru a pé por terra e depois destes
haviam chegado outros vindos do Paraguai, onde os espanhóis construíam
uma grande povoação298.
Entre os aventureiros espanhóis vindos do Peru chegou um merce-
nário que também seria decisivo para o front missionário jesuíta no Sul:
Antônio Rodrigues. Português, Rodrigues teria feito parte da expedição de
D. Pedro de Mendoza, enviada para fundar Buenos Aires em 1536. Depois
que a nascente vila na embocadura do rio da Prata foi destruída pelos ín-
dios, Rodrigues foi com os sobreviventes ao interior do Paraguai, tendo
presenciado a fundação de Assunção em 1537. De lá, iniciou uma peregri-
nação pelo interior da América do Sul, indo ao Peru, Bolívia e Mato Grosso,
onde chegou às nascentes de rios que desaguavam no Amazonas e no Ma-
ranhão299.
Antônio Rodrigues também se filia à Companhia de Jesus em São Vi-
cente e seus relatos deixam claro para Nunes e Nóbrega que era possível
ir ao Paraguai por terra e de como os carijó ou guaranis de Assunção eram

296
Leonardo Nunes mostrou grande precisão nesta previsão: a distância entre São Paulo e Assunção em linha reta,
em uma viagem de avião, é de cerca de 1.124 quilômetros.
297
Idem, ibidem.
298
Idem, p. 176.
299
Idem, ibidem. A nomenclatura “rio do Maranhão” aparece em carta de Antônio Rodrigues.
278 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

dóceis e adaptáveis à catequese e conversão: “mansos, castos, não têm es-


cravos e não estão sedentos de vinho, mas de nossa santa fé”300.
Nóbrega então aproveita a dissidência em relação ao bispo Sardinha
e o fato de Tomé de Sousa sair para “correr a costa” do Brasil em inspeções
das capitanias em 1º de novembro de 1552 para juntar-se ao governador-
geral rumo ao Sul – “rumo a São Vicente e aos Guarani do Paraguai”301.
Este objetivo, no entanto, como se vê, coloca-se em uma zona limí-
trofe entre os domínios português e espanhol, de modo que não é
diretamente ligado ao estabelecimento do governo geral em território bra-
sileiro. Por isto, talvez, esta primeira incursão jesuíta ao Paraguai não
obterá êxito.
Nóbrega desce a costa com Tomé de Sousa e passa por inspeções nas
capitanias de Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, além da deserta Rio de
Janeiro, então de Martim Afonso de Sousa, também donatário de São Vi-
cente. Nóbrega, que vinha muito mal e fraco por uma doença que o
acometera na altura de Angra dos Reis, ainda passou pelo naufrágio do
barco que o levava, na costa de São Vicente, devido a uma tempestade. De
acordo com o relato de Leonardo Nunes, Nóbrega foi salvo por índios que
o resgataram e puseram em uma pequena ilha próxima ao naufrágio “todo
molhado, porque doutra maneira não pudera salvar-se, por não saber na-
dar e vir ainda fraco da doença”302.
Chegando enfim a São Vicente, Nóbrega viu a recepção que o padre
Leonardo Nunes havia preparado:

Os oitenta jovens alunos indígenas do colégio recém-fundado pelo Abarebebê


desfilaram em solene procissão por ruas enfeitadas com ramos, usando seu
tradicional corte de cabelo, tocando flautas e entoando cânticos cristãos em
tupi. Nóbrega ficou vivamente impressionado: tudo o que o bispo Sardinha o
proibira de fazer em Salvador, Leonardo Nunes realizava, com sucesso, no co-
légio de São Vicente.303

300
Idem, ibidem. A citação é de carta de Leonardo Nunes.
301
Idem, p. 177.
302
Citado por BUENO, E. op. cit., p. 177.
303
Idem, p. 178.
Pedro Brocco | 279

Menos de um mês depois, em 12 de fevereiro de 1553, Nóbrega es-


creve a Simão Rodrigues anunciando que deseja partir sertão adentro:
“Ajuntamo-nos quatro padres aqui e depois de feitas muitas orações, com
jejuns e disciplinas, nos determinamos de entrar pela terra dentro, umas
100 léguas [cerca de 600 quilômetros], porque essa capitania é mais con-
veniente [para isso] que todas as outras”304.
Neste momento, pode-se perceber uma espécie de descolamento en-
tre o projeto jesuíta e o projeto do governo geral: fincados no extremo Sul
do Brasil naquele momento, em uma região estratégica por se encontrar
na fronteira com o império espanhol, os padres desejavam ir terra adentro
para fundar missões que não visavam tão-somente o benefício da coloni-
zação portuguesa, nem espanhola, mas fundar algo novo, povos sem
fronteiras: este projeto, não realizado naquele momento, daria origem aos
Povos das Missões nas fronteiras entre Paraguai, Argentina e Brasil.
Naquele momento, o governador Tomé de Sousa, sabendo também
da porosidade entre as fronteiras lusas e espanholas no Sul, ordenou o
fechamento do caminho do sertão, impedindo o projeto dos jesuítas. Al-
gum tempo depois, aqueles sertanistas que venceriam as barreiras para o
interior – os bandeirantes – seriam também os que preariam índios das
missões jesuítas da região Sudoeste da colônia.

2.8 O Diálogo sobre a conversão do gentio: entre o sentido da ação e


a ação do sentido

O Diálogo sobre a conversão do gentio é um texto composto por Ma-


nuel da Nóbrega entre 1556 e 1557, na Bahia ou Espírito Santo (o Diálogo
se passa no Espírito Santo), após a morte do bispo Sardinha pelos índios
da costa nordestina, quando os jesuítas começavam a enfrentar um cres-
cente desânimo e pessimismo com a conversão dos índios brasileiros.
Segundo João Adolfo Hansen, é neste momento em que a “pedagogia do

304
Idem, p. 178, citação de carta de Nóbrega.
280 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

amor” começa a ser substituída pela “pedagogia do medo”, com as medi-


das repressivas do governador-geral Mem de Sá.
João Adolfo Hansen, em seu estudo sobre o Diálogo de Nóbrega, ob-
serva que o diálogo enquanto gênero retórico costuma possuir três
articulações: 1. Ataque ou acusação, chamados de prima pars ou primeira
parte, e defesa, secunda pars ou segunda parte. 2. Correspondência recí-
proca das partes, em que cada debatedor deve falar algo que corresponda
à causa debatida segundo três modalidades: a) aceita a validade do que o
interlocutor diz, do tipo “concedo”; b) nega o que o outro afirma; c) aceita
parcialmente o que o interlocutor diz, em enunciados do tipo “aceito isso,
mas distingo ou nego aquilo”. 3. Persuasão do interlocutor com as provas
da justeza do próprio ponto de vista, que ocorre ao final, depois que um
dos debatedores acumula provas parciais que validam sua tese305. Interes-
sante notar aqui como o diálogo tornou-se a base da relação entre as partes
litigantes perante a Justiça. O termo diálogo alude ao grego diá-logos, sig-
nificando através do logos, da razão ou linguagem.
Imitando os diálogos platônicos, Nóbrega representa a conversa en-
tre dois padres jesuítas efetivamente existentes naquele período, o língua
Gonçalo Álvares306 e o ferreiro Matheus Nogueira. Mais do que isto, busca
representar dois tipos de jesuítas da missão brasileira, os letrados e os não-
letrados. Estes dois tipos aludem a práticas que vinham sendo adotadas
nas missões brasileiras: o procedimento com palavras apontava para a
pregação e o ensino da palavra de Deus, e o procedimento não-letrado
consistia no trabalho com obras, exemplos e persuasão através de ações.
Os interlocutores encontram-se no Espírito Santo, onde Gonçalo Ál-
vares é língua (intérprete) dos índios e na primeira cena reclama a
Nogueira dos “negros do Gato”307 (índios de Maracajaguaçú) e “de todos

305
Este trecho está em HANSEN, op. cit., p. 126.
306
Ou Alves, como vem grafado na edição do Diálogo ao final das Cartas do Brasil, volume 1, de Manuel da Nóbrega,
p. 229 e ss.
307
“Negro” aqui aparece em oposição a “branco”. Era comum os portugueses referirem-se aos índios como negros
no sentido de marcar oposição aos brancos. Assim o faz também Camões, ao se referir a um funcionário hindu nos
Lusíadas: Concertam-se que o Negro mande dar / Embarcações idóneas com que venha (...), Canto VIII, 93).
Pedro Brocco | 281

os outros, meio desesperado de sua conversão”308. Os índios de Maracaja-


guaçú, ou “Gato grande” eram originários da Ilha do Governador, no
futuro Rio de Janeiro, mas, devido às guerras com franceses e tamoios,
mudaram-se para a capitania do Espírito Santo, sob tutela dos portugue-
ses.
A primeira cena do diálogo consiste na entrada do irmão Gonçalo Ál-
vares: “Emtra logo ho Irmão Gonçalo Alvarez, tentado dos negros do Gato
e de todos os outros e, meio desesperado de sua conversão (...)”309.
Gonçalo, então, logo de saída expõe a dificuldade de converter os ín-
dios devido à sua bestialidade, ao que Nogueira responde imputando-lhes
a ignorância (de rei e Deus) e a inconstância, algo que, segundo Hansen,
explicita a relação entre poder e saber:

Gonçalo está “meio desesperado” da conversão deles e dos outros. Ambos pas-
sam a discutir as dificuldades da conversão. Gonçalo caracteriza o índio como
ser bestial que só pensa em matar e comer, afirmando que pregar a ele é “pre-
gar no deserto a pedras”. Nogueira responde, evidenciando a íntima
associação de poder e saber da catequese, ao afirmar que, se tivessem rei ou se
adorassem alguma coisa, poderiam converter-se (...)310

A catequese produziria a crença em um Deus e a obediência ao rei,


criando todos os sentimentos e expectativas que daí emergem, como a
culpa e a vergonha. Como diz Nogueira: “Como não sabem o que é crer ou
adorar, não podem entender a pregação do Evangelho, pois ela se funda
em fazer crer e adorar a um só Deus, e como esse gentio não adora nada,
nem crê nada, tudo o que lhe dizeis se fica nada”311. Como dito acima, é
questionável essa afirmação de que os índios não criam em nada, tendo
em vista os seus rituais envolvendo os maracás e a posição que ocupavam

308
HANSEN, Manuel da Nóbrega, op. cit., p. 143.
309
Idem, p. 143. A grafia aqui reproduzida segue a do texto que consta ao final do estudo de Hansen. O termo “negros”
utilizado por Nóbrega refere-se aos índios, como dito acima.
310
Idem, p. 127. Realce meu.
311
Idem, ibidem.
282 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

os feiticeiros neste processo; todavia, é certo supor que havia entre os je-
suítas um certo horror neste modo de vida indígena de nada crer ou
adorar. O existencialismo somente surgirá cerca de quatrocentos anos de-
pois, de modo que o nada evocado por Nogueira em sua fala demandava
um preenchimento, que seria realizado pela catequese e pela conversão
administrados pelos jesuítas. O início do diálogo, entretanto, não poderia
começar de forma mais precisa, com a queixa ansiosa e “meio desespe-
rada” de um jesuíta que constatava a impossibilidade de seu ofício.
A maneira encontrada pelos jesuítas para explicar a forma de vida
indígena em relação à religião foi a de vê-los a partir dos filtros dos con-
ceitos de inconstância e ignorância. No início do diálogo, a inconstância
aparece de modo mais claro, embora a ignorância esteja sempre implí-
cita312.
A analogia estabelecida por Nogueira se dá a partir da passagem do
Evangelho que diz não dar Santo aos cães nem deitar as pedras preciosas
aos porcos, quando dirá: “Se alguma geração há no mundo, por quem
Christo N. S. isto diga, deve ser esta, porque vemos que são cãis em se
comerem e matarem, e são porcos nos vícios e na maneira de se tratarem
(...)”313. Logo depois, Nogueira diz que os padres do Reino estavam “resfri-
ados”, desanimados com a conversão, pois não conseguiam converter
muitos brasis devido à sua rudeza e bestialidade.
A desilusão dos padres com o Brasil aparece de forma bem-humorada
em alguns trechos do diálogo, como quando Nóbrega, através de Gonçalo,
observa que muitos padres que vinham na nau a caminho do Brasil ima-
ginavam-se um São João Batista junto de um rio Jordão a batizar quantos
a eles viessem314.
Alguns anos antes do Sermão do Espírito Santo, de Antonio Vieira,
onde fica marcada a metáfora do mármore e da murta, cá estão os jesuítas

312
Retificando aqui levemente o que afirma Hansen, de que o principal obstáculo à conversão, segundo os persona-
gens do diálogo, seria a inconstância. Parece razoável sustentar que também identificam a ignorância como um
obstáculo preliminar.
313
Idem, p. 144.
314
Idem, p. 145.
Pedro Brocco | 283

retratados por Manuel da Nóbrega evocando o mesmo motivo ligado à in-


constância da alma selvagem. Os brasis, como se refere aos índios o
ferreiro Nogueira, diziam muito facilmente sim ou pâ, tudo aprovavam, e
com a mesma facilidade diziam aani, não.
No cerne do diálogo entre os padres, está a questão fundamental, te-
ológico-política, a respeito da viabilidade de se construir uma comunidade
entre cristãos e índios. Ao chegarem à conclusão de que tanto a língua
quanto a forja prestam-se ao mesmo fim, isto é, à caridade e amor de Deus
e do próximo, Gonçalo Alves315 pergunta: “Dizei-me, irmão Nogueira, esta
gente são proximos?”316, ao que Nogueira, com senso de humor, toma o
termo “próximo” em seu sentido físico ao invés do sentido cultural-antro-
pológico: “Nogueira: Sim, porque próximo, chegados quer dizer, e elles
sempre se chegam a mim (...)”317. Gonçalo passa então a fazer observações
que se relacionam às doutrinas sobre os índios presentes no crucial debate
de Valladolid entre Las Casas e Sepúlveda: “Pois a pessoas mui avisadas
ouvi eu dizer, que estes não eram próximos (...) nem têm para si, que estes
são homens como nós”318.
Gonçalo Alves apresenta o ponto de vista de que os índios não seriam
humanos, muito em voga na época. Os jesuítas, no entanto, representa-
vam a corrente oposta, que via nos índios a presença da humanidade por
intermédio da graça inata. Assim, os índios seriam capazes de conhecer a
Deus, seu criador, pois possuiriam alma, aparelhada com as três potências
que a caracterizaria: entendimento, memória e vontade.
Há que se entender que este momento é extremamente delicado para
a Companhia de Jesus no Brasil, entre o fim da administração de D. Duarte
da Costa e a ainda não iniciada gestão de Mem de Sá, o governador-geral
que mais se aproximaria dos objetivos dos inacianos. Assim, é um mo-
mento de grande apreensão e pessimismo, pois a conversão dos índios ia

315
Trabalho aqui com as diferentes grafias do personagem: Gonçalo Alvarez, Gonçalo Álvares, Gonçalo Alves. São
consultadas tanto a edição que se segue ao final da obra de Hansen quanto a que vai ao final das Cartas do Brasil.
316
Cf. CB, op. cit., p. 233.
317
Idem, ibidem.
318
Idem, ibidem.
284 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

muito mal na Bahia, de onde Nóbrega havia saído para fundar São Paulo
em 1553. O Diálogo é escrito entre 1556 e 1557, no momento em que Nó-
brega retorna à Bahia.
Curiosamente, quem no Diálogo representa a confiança, a esperança
e a força de vontade é o ferreiro, que aliás possui as iniciais do nome de
Nóbrega. O língua, ainda que tivesse como função comunicar-se com os
índios, duvidava que estes pudessem se converter, e até mesmo de que
fossem humanos. Diz a certa altura Gonçalo: “Dizei-me, irmão, por amor
de Nosso Senhor, não ha entre estes meus irmãos e padres quem esteja da
parte destes negros?”319. Nogueira, então, responde: “Todos, porque todos
os desejam converter, e estão determinados de morrer na demanda, como
disse”320.
O “morrer na demanda” era um dos lemas da Companhia de Jesus,
ao lado do perinde ac cadaver, que remetia à obediência hierárquica abso-
luta. Ligam-se os dois lemas ao sugerirem que o padre jesuíta, mesmo que
descrente em sua missão, morreria tentando cumpri-la, pois estaria cum-
prindo o voto de obediência absoluta ao papa e aos superiores que o
designaram para a missão.
O língua Gonçalo, então, no momento de desespero sugerido pelo di-
álogo, retorque:

Gonçalo Alves: Não duvido eu, quer todos têm esses desejos; mas como isso é
cousa de necessidade, quizera eu, que houvera um, que déra razões para nos
accender o fogo, e para nos falar por nossos termos, quiséramos uns foles para
nos assoprar o fogo, que se nos apaga.321

Qual seria, então, a saída? Nogueira afirma que não falta o fogo que
os padres produzem artificialmente no espírito dos que tocam a missão,
“que nos queime a todos os que neste negocio nos occupamos”, diz No-
gueira. Ser inaciano, de Ignacio, ígneo, seria produzir tal fogo.

319
Idem, p. 234.
320
Idem, ibidem.
321
Idem, pp. 234-235.
Pedro Brocco | 285

Surge então o deslocamento fundamental apresentado por Nóbrega


por intermédio de seus personagens, o deslocamento da “pedagogia do
amor” para a “pedagogia do medo”: “Gonçalo Alves: (...) por amor de Deus,
que me digaes algumas das razões, que os padres dão para estes gentios
virem a ser cristãos, que alguns têm acertado, que trabalhamos debalde,
ao menos até que este gentio não venha a ser mui sujeito, e que com medo
venha a tomar a fé”322.
Nogueira, então, pergunta no que isto aproveitaria, isto é, a conver-
são pelo medo, se os índios forem cristãos pela força, mas gentios na vida,
nos costumes e na vontade. Gonçalo responde, ecoando Nóbrega: “Aos
paes, dizem os que têm esta opinião, que pouco; mas os filhos, netos, e
dahi por diante, o poderiam vir a ser, e parece que têm razão”323. Apre-
senta-se então o caminho do medo como uma estratégia de conversão a
longo prazo, cujos efeitos recairiam sobre as crianças e futuras gerações
de índios.
Mas Gonçalo, ainda que fornecendo as razões do medo, ainda deseja
saber quais seriam as razões dos padres para que o fogo de seu labor e sua
confiança voltasse a se acender: “Gonçalo Alves: Mas as razões dos padres,
se vos lembram, desejo ouvir (...)”324. Ao que Nogueira, sempre o persona-
gem mais seguro, responde: “Olhae cá, irmão, a charidade tudo desfaz e
derrete, como o fogo ao ferro muito duro amolenta e faz em massa”325.
Nogueira fornece suas razões de ferreiro, trabalhador manual, ao lançar
mão da metáfora do fogo e do ferro para falar da caridade. Era o ferro o
objeto mais cobiçado pelos índios, fruto de uma tecnologia que não domi-
navam, e que melhorava os seus trabalhos: no arar do solo, na melhora da
caça e da pesca com a utilização de armas e artefatos de ferro, etc. Estaria,
assim, por baixo da metáfora da caridade como uma forja a esquentar e

322
Idem, p. 235.
323
Idem, ibidem.
324
Idem, p. 236.
325
Idem, ibidem.
286 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

amolecer o ferro, o argumento da supremacia tecnológica e da vantagem


das trocas comerciais resultantes de tal domínio.
Nesta parte do diálogo, ocorre o momento fundamental segundo
Hansen, quando Nogueira diz, novamente recorrendo às metáforas de seu
ofício:

Estou eu imaginando todas as almas dos homens serem humas e todas de hum
metal, feitas à imagem e semelhança de Deus, e todas capazes da glória e cri-
adas pera ela; e tanto vale diante de Deus por naturaleza a alma do Papa, como
a alma do vosso escravo Papaná.326

O papaná era um grupo indígena do sul da capitania do Espírito


Santo que se comunicava com a capitania de São Vicente pelo rio Paraíba.
No início de 1555, homens de Martim Afonso Tibiriçá, o chefe tupiniquim
de Piratininga, capturaram um papaná e desejaram matá-lo em terreiro,
em um ritual de antropofagia, sendo impedidos pelos jesuítas. É bastante
provável que Nóbrega tenha participado do episódio. Como mostra a da-
tação de suas cartas, há uma carta escrita ao padre Ignacio de Azevedo,
desde São Vicente, no ano de 1556.
O argumento de Nogueira utiliza a metáfora do metal para a alma
humana, fazendo-a reproduzir-se metonimicamente do papa ao papaná. A
alma seria então, a partir deste discurso, uma metonímia de uma substân-
cia comum.
Gonçalo Alves logo depois responde: “Estes têm almas como nós”.
Parece-nos aqui que o argumento de Nóbrega em muito avança relativa-
mente ao de Francisco de Vitoria a respeito do poder civil, trabalhado no
início deste livro. Em Vitoria, tratava-se de limitar o poder do papa como
senhor do mundo, em detrimento do direito natural presente em comuni-
dades do Novo Mundo, direito que deveria ser reconhecido e absorvido em
uma comunidade internacional reciprocamente considerada. Era uma
doutrina que visava coibir movimentos como o das doações pontifícias de

326
HANSEN, op. cit., p. 130.
Pedro Brocco | 287

vastas terras a soberanos europeus, como a América aos castelhanos, com


as bulas alexandrinas.
Nóbrega, não obstante, afirma aqui que o vigário de Cristo, sucessor
de Pedro, seria equivalente a um índio do sul do Espírito Santo em subs-
tância anímica. Ambos seriam desdobramentos, metonímias de uma
substância comum: alma, ferro. Trata-se de um intermezzo entre um en-
tendimento metafísico-religioso e o mundo do capitalismo em seu estágio
industrial que estava por vir: precisando muito do ferro para seu maqui-
nário, suas estradas, suas locomotivas, seus barcos a vapor, colocaria os
homens em igualdade a partir de sua força de trabalho. O trabalho hu-
mano seria o ápice desta igualdade do ser genérico.
Mas não foi somente na igualdade da substância da alma que Nóbrega
aproximou os homens, do papa ao papaná. Para uma aproximação efetiva
do branco portador da civilização ao índio, Nóbrega, novamente por inter-
médio de Nogueira, reconhece também uma igualdade na bestialidade:

Nogueira: (...) depois que nosso pae Adão peccou, como diz o psalmista, não
conhecendo a honra, que tinha, foi tornado semelhante á besta, de maneira
que todos, assim portuguezes, como castelhanos, como Tamoios, como Aimu-
rés, ficamos semelhantes a bestas, por naturaleza corrupta, e nisto todos
somos iguaes (...).327

Gonçalo Alves, então, responde, interpolado por Nogueira:

Gonçalo Alves: Isso bem entendo eu, porque o vi em mim antes que fôsse ca-
sado, que andava em peccados, e ainda agora praza a Deus, que não tenha
muito disso.
Nogueira: Pois que, direi eu, que envelheci nelles, e, como homem, que foi
ferido, fallo.
Gonçalo Alves: Pois assim é, que todos temos uma alma e uma bestialidade
naturalmente (...).328

327
Valho-me neste trecho da edição do Diálogo ao final das Cartas do Brasil, op. cit., p. 238.
328
Idem, ibidem.
288 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Nogueira depois agrupa, pela via da bestialidade, todas as gerações


humanas, tornando possível a aproximação entre os índios, os romanos,
os gregos, os judeus, os muçulmanos: “todas as gerações tiveram tambem
suas bestialidades; adoravam pedras e páus, dos homens faziam deuses,
tinham credito em feitiçarias do diabo; outros adoravam os bois e vacas, e
outros adoravam por Deus aos ratos, e outras immundicies (...)”329.
Os indígenas, para o ferreiro Nogueira, possuem inclusive mais razão
em tomar por Deus o trovão, algo que temem, do que tomá-Lo por uma
vaca, um galo ou uma rã. Está aqui Nóbrega a articular aproximações e
distâncias pré-antropológicas entre culturas de tipo totêmico e os índios
brasileiros, os quais, ainda que possuíssem algumas representações de tipo
totêmico (a onça, por exemplo), possuíam um temor reverencial pelo tro-
vão, que chamavam Tupã, a partir de onde os jesuítas avançam para a
comunicação religiosa-intercultural ao traduzirem este conceito de Tupã
para o do Deus cristão. Certamente, o Tupã era apenas uma das muitas
forças naturais e temíveis identificadas no horizonte simbólico dos índios;
porém, percebe-se uma valorização desta entidade por parte dos jesuítas
como um esforço para construir o indígena como potencialmente mono-
teísta. Por outro lado, a figura de um Deus temível era também útil para
os jesuítas naquele momento em que a orientação geral da missão brasi-
leira passava a apostar na “pedagogia do medo” como estratégia de
conversão.
Apesar de a Companhia de Jesus representar as forças eurocêntricas
que buscaram a conquista e libertação da Jerusalém da época das cruzadas,
Manuel da Nóbrega opera uma notável relativização do eurocentrismo no
Diálogo. Após o reconhecimento da bestialidade universal, que nada mais
é do que a atualização do dogma da queda adâmica, segue-se este diálogo
entre Gonçalo Alves e Nogueira:

329
Idem, p. 239.
Pedro Brocco | 289

Gonçalo Alves: Bem, estou com isso; mas como são os outros todos os mais
polidos, sabem lêr e escrever, tratam-se limpamente, souberam a filosofia, in-
ventaram as sciencias, que agora ha, e estes nunca souberam mais que
andarem nús e fazerem uma frécha, o que está claro, que denota haver enten-
dimento em uns e em outros.
Nogueira: Não é essa a razão de homem que anda fazendo brasil no mato,
mas estae attento, e entendereis: terem os romanos e outros gentios mais po-
licia, que estes, não lhes veiu de terem naturalmente melhor entendimento,
mas de terem melhor criação, e criarem-se mais politicamente, e bem creio,
que vós vereis claro pois trataes com elles, e vêdes, que nas cousas de seu mes-
tre, e em tão discretas palavras, como todos, e os padres os experimentam
cada dia com seus filhos, os quaes acham de tão bom entendimento, que mui-
tos fazem vantagem aos filhos dos christãos.330

O padre língua Gonçalo, empenhado nas coisas das letras e na pala-


vra, valorizava naturalmente os gentios portadores da civilização quando
comparados aos brasileiros. O ferreiro, mais ligado à vida material, con-
creta, logo retorque: não é toda razão suposta pelo língua aquela “de
homem que anda fazendo brasil no mato”, isto é, empenhado na extração
e venda do pau-brasil, a primeira matéria-prima exportada em larga es-
cala do território brasileiro, e a que ademais o define simbolicamente. O
europeu e o cristão estavam obviamente aí implicados, seja o proveniente
do reino, seja o colono. Não haveria que separar uma supremacia cultural
de uma crítica social relativa ao próprio conceito de razão proveniente do
europeu (o que chegará ao ápice com a analítica da ideologia e com a Es-
cola de Frankfurt – todavia, atentemos a estas filigranas de uma crítica da
ideologia criada por um padre jesuíta no Brasil!). Ainda nesta toada, o fer-
reiro critica também a concepção da supremacia racional natural: não se
trata disto entre os romanos ou os gregos; o entendimento neles não é
melhor naturalmente frente a outros homens, mas tal entendimento surge
e é cultivado a partir de sua criação e de sua vida, vivida mais politica-
mente. Desloca-se, portanto, o argumento do natural-inato para a
importância do meio (social). E neste deslocamento do inatismo ingênuo

330
Idem, pp. 239-240.
290 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

para o meio está toda a potência do planejamento missionário jesuíta na


América do Sul neste momento até a extinção da Ordem: o Brasil foi, de
fato (e Nóbrega o sabia, como atestam as análises de suas cartas), um ti-
rocínio para o Paraguai. A criação da aldeia de São Paulo de Piratininga foi
pensada como via comunicante às missões do sul, sobretudo as do Para-
guai. Nada na criação e manutenção das missões faria sentido sem a
preocupação relativa à importância do meio em detrimento do natural.
O ferreiro ainda comenta, de modo um pouco confuso, ainda assim,
sobre o entendimento dos índios, muitos fazendo vantagem aos filhos dos
cristãos. Este argumento, ligado ao da graça (esta sim) inata, constrói uma
espécie de visão de mundo acerca do homem enquanto ser social: possui-
dor da capacidade natural para a sociabilidade, necessita de um meio
político para se desenvolver. Trata-se ainda da velha concepção aristotélica
de política, pressupondo uma ética e uma psicologia.
É possível propor, assim, um esquema de leitura para o Diálogo sobre
a conversão do gentio composto por três movimentos: 1. Reconhecimento
da alma humana dos índios (tanto vale a alma do papa quanto a do pa-
paná); 2. Reconhecimento de uma bestialidade universal comum a todas
as culturas; 3. A relativização da superioridade de culturas supostamente
civilizadas: concessão de importância ao meio em detrimento de qualquer
forma de naturalização de uma superioridade cultural ou civilizacional.
Estes três movimentos colocam os índios brasileiros frente às culturas eu-
ropeias e “civilizadas” de seu tempo, aproximando-os enquanto humanos;
reconhecem que costumes tido por bárbaros como a antropofagia e a po-
ligamia são oriundos de uma bestialidade comum a todos os homens
(“temos uma alma e uma bestialidade naturalmente”); o terceiro movi-
mento é do foco no meio social: se há alma e bestialidade naturalmente,
isto não implica uma superioridade advinda também naturalmente por
parte de nenhuma forma cultural, pois trata-se antes do meio construído
“mais politicamente”, implicações morais traduzidas institucionalmente e
impressas nos costumes sociais. Aí se situaria então o jesuíta como ator
Pedro Brocco | 291

central para perfazer uma atuação orientada pelos três movimentos ante-
riormente descritos, que formam um arco que vai da aproximação pela via
do que é natural (alma e bestialidade) para a invenção do artifício do meio
social, administrável, no Brasil, no interior da política missionária dos pa-
dres jesuítas: é este o momento da criação dos aldeamentos e reduções, da
escolha pelo agrupamento de conjuntos de tribos em um só aldeamento,
com igreja e estrutura administrativa de almas cristãs, como escolas de ler
e escrever para a catequese, locais para mulheres solteiras e viúvas, cemi-
térios, etc). Tratava-se, assim, de uma atuação capaz de incidir em todos
os meandros e domínios da pessoa humana: alma e intelecto, pela via da
ideologia e doutrina religiosa, corpo físico e estrutura social, pela via da
modificação espacial, implementação de regimes administrativos e insti-
tucionais criadores de uma forma de vida, de novos costumes e reformas
de estruturas culturais antigas: a conversão, assim, se confundiria com
uma reforma cultural, um dar nova forma ao regime da vida que se pre-
tende apagar.

Figura 10: Maquete de missão jesuíta (missão de San Ignacio Miní). Arquivo pessoal.

As missões ou aldeamentos eram núcleos protourbanos autossusten-


táveis e autárquicos331 do ponto de vista da independência da colônia,
administrados por um ou mais padres jesuítas. A figura acima, presente
no pequeno museu nas ruínas da missão de San Ignacio Miní, no atual

331
Cf. NEVES, Luiz Felipe Baêta. O combate dos soldados de Cristo na Terra dos Papagaios, op. cit., p. 162.
292 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

território argentino, retrata uma missão na antiga zona dos Sete Povos das
Missões, que compreendia os territórios do Paraguai, Argentina e sul do
Brasil. Pode-se perceber que o modelo das missões da região compreendia
uma praça central ladeada por casarões divididos em quartos que serviam
de dormitórios para as famílias indígenas. Cada quarto compreendia uma
família, o que representa uma grande mudança no regime de organização
familiar, tendo em vista que o costume anterior dos índios da região era a
construção de grandes estruturas capazes de abrigar até cinquenta famí-
lias. Em seguida, observa-se, de frente para a entrada e a praça, a igreja,
tendo do lado esquerdo um colégio com oficinas para o aprendizado de
trabalhos manuais e artísticos, além do letramento e catequese e, do lado
direito, um cemitério e o cotiguaçu, casas construídas para o recolhimento
das viúvas e dos órfãos. Na parte de trás da igreja costumava-se ter um
pomar e locais de cultivo de hortaliças para o sustento da missão, ou
mesmo, como se desenvolveu no Paraguai por intermédio dos padres je-
suítas, áreas de cultivo de erva-mate para consumo interno e para
exportação. As missões dessa região chegavam a abrigar até três mil pes-
soas.
A partir de determinado momento, as missões jesuítas, com todo o
seu potencial autocrático e mobilizador de centenas de milhares de almas
vivendo em uma espécie de comunismo patriarcal, onde a todos era atri-
buída uma função social, passam a representar um sério incômodo para
as Coroas ibéricas e para as elites locais, que acusavam os padres jesuítas
de se locupletarem de seus incentivos fiscais junto às Coroas para vende-
rem seus produtos de forma mais vantajosa. De fato, neste momento, a
Companhia exerce funções econômicas e se torna uma poderosa ordem
autárquica na América do Sul.
Pedro Brocco | 293

Figura 11: Mapa das missões jesuítas entre o Paraguai, a Argentina e o Brasil.332

Nos tempos de Nóbrega, no entanto, os jesuítas ainda dependiam de


esmolas dos colonos e do financiamento da Coroa portuguesa para o sus-
tento das atividades missionárias. Pode-se por isso imaginar que as
missões brasileiras dos primeiros anos engendraram aldeamentos muito
mais precários e humildes do que os paraguaios; porém, foram importan-
tes como primeiras experiências administrativas e é razoável supor que
produziram material epistolar capaz de circular e ser usado internamente
para aperfeiçoamento da experiência missionária do aldeamento.
A situação brasileira do tempo de Nóbrega é ainda muito anterior aos
grandes aldeamentos paraguaios, quando ainda não se intuía o conceito
de força de trabalho mas já se o empregava na construção de comunidades
autocráticas orientadas teologicamente. O problema fundamental de Nó-
brega era o de afastar os índios dos costumes da antropofagia e da
poligamia. Era evitar que os índios matassem e comessem carne humana

332
Fonte: PINTO, Muriel; MAURER, Rodrigo. Quando a geo-história avança sobre os significados de um espaço ur-
bano: as paisagens culturais e as transformações identitárias da fronteira Brasil-Argentina. EURE (Santiago),
Santiago, v. 40, n. 120, p. 135-158, maio de 2014. Acesso em 1 de novembro de 2017.
294 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

em terreiro, nada mais contrário à noção cristã de eucaristia e à noção


aristotélica de amizade, fundamentos dos aldeamentos.
A questão fundamental do Diálogo sobre a conversão do gentio está
no fracasso, até aquele momento, da missão brasileira, e na dúvida sobre
a capacidade do índio brasileiro para a fé. A certa altura do diálogo, o lín-
gua Gonçalo Alves pergunta a Nogueira: “mas os padres, que lhes falam
com tanto amor [aos índios], por os não crêm?”333. E Nóbrega, por inter-
médio do ferreiro, irá descortinar sua hipótese e o eixo principal do que se
tornará a relação da Companhia de Jesus na América do Sul pelos dois
séculos seguintes. É a mesma problemática que enfrentarão Vieira, Bet-
tendorf, João Daniel, Gabriel Malagrida e tantos outros:

Nogueira: Porque até agora não têm os índios visto essa diferença entre os
padres e os outros christãos, seja logo esta a conclusão, que quando Santiago
com correr toda a Espanha, e falar mui bem a lingua, e ter grande charidade,
e fazer muitos milagres, não converteu mais que nove discípulos (...) ainda que
alguns não deixem a vida viciosa por exemplo de outros máus christãos, que
vêm, todavia se crê delles terem fé, pois o principal pecado, e que lhes mais
extranham, deixaram, que é matarem em terreiro, e comerem carne humana
(...).334

Vencida esta dúvida, isto é, uma vez que o índio brasileiro tenha plena
capacidade para a fé e para a conversão, e compreendido que o problema
da missão brasileira residia numa falta de estrutura e em dificuldades de
ordem política e econômica frente aos colonos (os outros cristãos), resta a
conclusão de que o índio não seria diferente dos outros humanos do ponto
de vista das dificuldades inerentes da conversão. Nóbrega, através de No-
gueira, dirá, ao final do Diálogo, que é mais simples a conversão de um
índio do que outros gentios, de onde surge a curiosa comparação entre um
índio brasileiro e um filósofo romano:

Nogueira: Contae-me o mal de um destes [índios] e o mal de um philosopho


romano, um destes, muito bestial, sua bem-aventurança é matar, e ter nomes,

333
NÓBREGA, CB, p. 242.
334
Idem, pp. 242-243.
Pedro Brocco | 295

e esta é sua gloria; porque mais fazem, a lei natural não guardam, porque se
comem, são luxuriosos, muito mentirosos, nenhuma cousa aborrecem por má,
e nenhuma louvam por bôa; têm credito em seus feiticeiros335, aqui me encer-
rareis tudo; um philosopho é muito sábio, mas muito soberbo, sua bem-
aventurança está na fama ou nos deleites, ou nas victorias de seus inimigos,
muito malicioso, que a verdade que Deus lhe ensinou, escondeu, como diz São
Paulo, não guardam a lei natural, posto que a entendam, muito viciosos no
vicio contra a natura, muito tyrannos e amigos de senhorear, muito cobiçosos,
e mui temerosos de perderem o que têm, adoram ídolos, sacrificam-lhes san-
gue humano, e senhores de todo gênero de maldade, o que não achareis nestes
[índios], porque, segundo dizem os padres, que confessam, em dois ou tres
dos mandamentos, têm que fazer com elles, entre si vivem muito amigavel-
mente, como está claro, pois que nos parece maior punido para desfazer.336

Ora, tal comparação, distante no tempo, não é de modo algum des-


cabida: o cristianismo primitivo teve de enfrentar tais adversários no
caminho da conversão. Nóbrega, na verdade, está aí dialogando com Paulo
de Tarso, pois é de suas epístolas que se informa sobre o comportamento
dos filósofos romanos. Fundador da vila de São Paulo de Piratininga, Nó-
brega intuía que o percurso da obra missionária no Brasil seria mais fácil,
pois os índios seriam no fundo mais dóceis e dúcteis do que o gentio ao
qual se endereçou Paulo. Mas justamente de São Paulo saem o tipo de ad-
versário mais ferrenho dos padres jesuítas: os colonos que contra eles
disputam a preação e a descida de índios do sertão para o aproveitamento
de sua força de trabalho no interior do mecanismo capitalista em vias de
universalização e globalização.

2.9 O governo de Mem de Sá e a administração temporal dos jesuítas


no Brasil (1557-1572)

Nóbrega escreve o Diálogo sobre a conversão do gentio em um perí-


odo de crise da missão brasileira: retornando de São Vicente, aonde havia

335
Esta curiosa afirmação, dentro do Diálogo, contradiz frontalmente as afirmações das cartas de Nóbrega quando
este diz que os índios em nada crêem. Esta contradição já foi por nós apontada acima, mas o próprio Nóbrega a
apresenta ao final do Diálogo.
336
Idem, p. 244.
296 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

ido fazer frutificar os esforços missionários no planalto de Piratininga, fun-


dando São Paulo, mas antes de tudo também deixando a capital Salvador
no momento em que o bispo Pedro Fernandes Sardinha oferecia grandes
resistências ao projeto evangelizador jesuíta. O governo geral era então
capitaneado por D. Duarte da Costa, que não parecia estar tão próximo dos
padres da Companhia quanto o primeiro governador, Tomé de Sousa.
O confuso governo de D. Duarte da Costa, somado à aberta resistên-
cia do bispo Sardinha, repeliu os inacianos de Salvador e fez a capital da
colônia mergulhar em um turbulento período de guerra civil. D. Duarte da
Costa, apesar de ter declarado que puniria com pena de morte a antropo-
fagia, não fiscalizava de fato a prática, fazendo um jogo dúbio entre a
política declarada de repressão da antropofagia e os efeitos de deixar es-
paço ao entendimento de alguns colonos segundo o qual seria melhor para
a paz da colônia que as tribos indígenas estivessem em guerra perma-
nente, pois isso as enfraqueceria mutuamente. Do lado oposto deste
entendimento, encontravam-se os jesuítas ao apostarem na inclusão social
dos índios mediante a conversão e o aldeamento. Para tanto, era necessá-
rio algum esforço de adaptação aos costumes indígenas para, aos poucos,
trazê-los à quadratura cristã-ocidental, no processo de conversão. Exem-
plos já foram citados: a permissão da nudez nas igrejas, o uso de músicas
e instrumentos musicais indígenas, permissão do corte de cabelo indígena
para as crianças e, principalmente, aquelas adaptações que tocavam na or-
todoxia sacramental: a confissão mediante intérprete, o casamento entre
tio e sobrinha por parte de mãe, além da já citada nudez nas missas, que
toca no sacramento da eucaristia. Estes eram os pontos mais sensíveis na
oposição que o clero secular, representado por Sardinha, fazia aos jesuítas.
Neste sentido, todo esforço adaptativo era feito com vistas a um processo
unitivo da sociedade colonial, inclusivo em seu objetivo de trazer o gentio
ao seio da cristandade portuguesa. Definir o gentio ou “o” índio desta
forma é já um processo simbólico de síntese de uma miríade de tribos dis-
tintas. Serafim Leite, autor jesuíta com obra relevante sobre o tema, ainda
Pedro Brocco | 297

que tome as categorias católicas acriticamente, realiza uma leitura correta


do processo de inclusão do indígena na dinâmica social comum da colônia:

O acesso do gentio à vida cristã e o comportamento, dentro dela, dos Portu-


gueses e dos seus filhos mestiços, criaram no Brasil situações peculiares a que
urgia dar solução dentro das leis canónicas da Igreja e das leis civis portugue-
sas, isto é, dentro do exercício da vida sacramental com todos os actos sociais
que dela derivavam ou nela repercutiam.337

Viu-se acima, na análise das cartas de Nóbrega, a frequência de uma


denúncia de um paradoxo do pensamento colonial, ao apostar na pacifica-
ção social mediante um fomento de guerra civil contínua entre os índios.
É neste contexto que Nóbrega compõe o seu Diálogo entre o Espírito Santo
e a Bahia, provavelmente em 1556, quando voltava a Salvador.
A situação administrativa da colônia muda radicalmente com a che-
gada do terceiro governador, Mem de Sá, em 1557. Mem de Sá faz parte de
um movimento orquestrado com os jesuítas e com a Coroa portuguesa
cujo objetivo seria o de promover a máxima eficácia da evangelização na
colônia. Neste sentido, o entendimento que passa a vigorar em relação aos
índios é o de buscar sua conversão e inclusão social na colônia. Buscare-
mos realizar uma análise do contexto e do papel do governo Mem de Sá
no planejamento de conversão jesuíta a partir da importante tese de dou-
torado de Herbert Ewaldo Wetzel, desenvolvida na Faculdade de História
Eclesiástica da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma338.
Ao chegar à Bahia, Mem de Sá procura atuar junto dos jesuítas no
estabelecimento de aldeias e na garantia da segurança para o trabalho mis-
sionário. Pouco a pouco, os limites entre o espiritual e o temporal tornam-
se incertos, de modo que a atuação jesuíta na conversão dos índios mostra-
se indispensável para a administração da colônia.

337
LEITE, Serafim S. J. A vida sacramental e os seus reflexos sociais no Brasil do tempo de Nóbrega (1549-1570).
Lisboa: Brotéria, vol. 75, pp. 28-47, 1962.
338
WETZEL, Herbert Ewaldo. Mem de Sá: terceiro Governador Geral (1557-1572). Rio de Janeiro: Conselho Federal
de Cultura, 1972.
298 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Neste sentido, os dois pilares da conjunção Mem de Sá-jesuítas foram


a conversão dos índios propriamente dita e, especificamente, a construção
de aldeamentos para a consecução do objetivo. A dinâmica da vida institu-
ída pelos aldeamentos tocou de perto na questão da administração
temporal. Converter e administrar está na raiz no que se pode entender
pelo mandato salvacionista que aparece já na carta fundadora do Brasil,
quando Pero Vaz de Caminha escreve: “o melhor fruto que nela (na terra)
se pode fazer me parece que será salvar esta gente; e esta deve ser a prin-
cipal semente que V.A. em ela deve lançar”339.
Nóbrega comenta em carta a Tomé de Sousa que a intenção do rei D.
João III na colônia brasileira não havia sido a riqueza de ouro e prata e nem
de fazer engenhos, mas de salvar a população autóctone:

Mui mal olham que a intenção do nosso Rei santo, que está em gloria, não foi
povoar tanto por esperar da terra ouro nem prata, que não a tem, nem tanto
pelo interesse de povoar e fazer engenhos, nem por ter onde agasalhar os Por-
tugueses que lá em Portugal sobejam e não cabem, quanto por exaltação da Fé
Catholica e salvação das almas.340

No mesmo período em que Nóbrega preparava-se para ir ao Brasil,


também sob o influxo de D. João III, Francisco Xavier embarcava pra a
Índia, de onde depois partiria para a China e Japão, no extremo Oriente.
Escreve Francisco Xavier às vésperas de sua viagem para o Oriente:

O rei (D. João III) disse-me, quando me despedi dele, que por amor de Nosso
Senhor lhe escrevesse muito por extenso sobre a disposição que lá (nas Índias)
havia para a conversão daquelas pobres almas, doendo-se muito da miséria
em que estão metidas (...) É tanto o zelo que Sua Alteza tem da honra de Cristo
Nosso Senhor e da salvação dos próximos que é coisa para dar infinitos louvo-
res e graças a Deus por ver um rei que tão bem e piamente sente das coisas de
Deus: e assim que, se eu não fosse testemunha de tudo, como sou, não poderia
crer o muito que nele tenho visto. Rogue a Deus nosso Senhor e lhe acrescente

339
Carta de Pêro Vaz de Caminha, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Gaveta 8ª, Maço 2º, nº 8. Disponível em:
http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4185836, acesso em 07 de dezembro de 2017.
340
NÓBREGA, M. CB, pp. 198-199.
Pedro Brocco | 299

os dias de sua vida por muitos anos, pois tão bem os emprega e tão útil e ne-
cessário para seu povo.341

As conclusões que se podem chegar pela análise das cartas tanto de


Nóbrega quanto de Francisco Xavier, em conjunto com outras fontes, dão
conta de que a monarquia portuguesa sob D. João III pretendia realizar um
grande esforço de conversão (sob pretexto de salvar as almas do “gentio”)
e julgava-se responsável pela evangelização das terras descobertas342. A
formação de Manuel da Nóbrega é neste contexto diretamente influenci-
ada pelo planejamento missionário sob a Coroa portuguesa, quando, sob
orientação de Simão Rodrigues (o jesuíta que ao lado de Francisco Xavier
começou o trabalho conjunto com a monarquia portuguesa), D. João III
funda o colégio de Coimbra, de onde saem Manuel da Nóbrega e todos os
primeiros jesuítas do Brasil.
A aliança entre D. João III e a Companhia de Jesus foi estratégica e
sua importância foi de tal monta que o próprio Inácio de Loyola, em 14 de
junho de 1553 (quando, portanto, já havia jesuítas tanto na América Por-
tuguesa quanto no Extremo Oriente), manda que os jesuítas do mundo
inteiro recordassem na celebração eucarística e nas orações diárias o rei
de Portugal e sua família.
O investimento na formação de um jesuíta era encarado como prio-
ridade para a colonização portuguesa, de modo que houve esforços
também no sentido de se evitar deserções. Sabendo que as viagens e os
trabalhos nas missões eram difíceis, a Coroa temia que alguns jesuítas
abandonassem a Ordem. Neste sentido se compreende a carta de 13 de
junho de 1565 de D. Sebastião ao Geral da Ordem pedindo que o papa con-
firmasse a proibição de os padres da Companhia passarem a outras
ordens, exceto a Cartuxa343:

341
Epp. Xav. I 81-82: PP Ignatio de Loyola et Joanni Coduri, Romam ; Ulyssipone 18 martii 1541, In: WETZEL, Herbert
Ewaldo. Mem de Sá: terceiro Governador Geral (1557-1572). Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972, p. 155.
342
Entendimento presente em Herbert Ewaldo Wetzel, op. cit., p. 156.
343
Carta régia de 1565, assinada pelo Cardeal Infante D. Henrique, Regente do Reino. In WETZEL, Herbert E. op. cit.,
p. 158. Há também outra carta citada por Wetzel que fornece mais indícios de como a relação entre o poder régio e
os jesuítas era importante. Em carta enviada pela metrópole de Lisboa a Inácio de Loyola em 20 de outubro de 1555,
300 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

A 29 de novembro do mesmo ano (1565) comunicava o Geral ao Padre Provin-


cial de Lisboa que Sua Santidade concedia a proibição de passar a outras
ordens. Pedia o Geral que todos os jesuítas rezassem em sinal de gratidão pelo
rei de Portugal, rogando a Deus N. Senhor guardasse Sua Alteza e o acrescen-
tasse «em sua santa graça e dons, para mui grande benefício destes Reinos e
de toda a Igreja».344

Estes trechos citados mostram a importância da Companhia de Jesus


para o projeto colonizador português. O governo geral do Brasil, neste sen-
tido, opera a máxima conjunção entre o temporal e o espiritual durante a
gestão Mem de Sá. A carta régia enviada a Mem de Sá em 1558, após sua
chegada ao Brasil, o adverte que o intento que se teve ao descobrir as terras
brasileiras era:

(...) ser Nosso Senhor nelas tão servido e seu nome tão conhecido e louvado
como por tantas razões o deve ser. E porque o meio de se isto conseguir é o
dos ditos Padres, que são tão virtuosos como sabeis, e que com todas suas
forças tanto procuram servir a Nosso Senhor, vos encomendo muito que te-
nhais particular cuidado como sei que tendes d’os favorecer a ajudar no que
vos requererem e virdes ser necessário.345

A colonização portuguesa no Brasil sustentava-se, como se pode com-


preender, por uma economia salvífica orientada pelos padres da
Companhia de Jesus: “porque o meio de se isto conseguir é o dos ditos
Padres”, diz a carta régia acima. Os padres apareciam como especialistas
na arte da conversão, sem a qual a colonização, compreendida como a ocu-
pação do território, defesa e desenvolvimento, seria impossível.
Imaginemos então hoje quem seriam os especialistas a ocupar a posição

assinada por D. Anrique Rasteiro, Symão de Mello e Dom Martinho de Sousa, pode-se ler: “sejam em grande obriga-
ção a Vossa Paternidade por serdes o fundador de tão santa obra, parece que os portugueses hão de ter nisto o
primeiro lugar pelo grande benefício espiritual que nisso recebem... Certificamos que sua doutrina (dos padres) é
boa e santa e aprovada de todos os homens em que há razão e entendimento... Todo seu exercício é a caridade e
obrar misericórdia com os próximos, confessando continuamente, pregando, ensinando e consolando a todos...
Nosso Senhor há de permitir que os homens que com tanta bondade vivem e morrem, perseverem sempre em vir-
tude e santidade para seu serviço”, p. 157. Cerca de duzentos anos depois, será outra a “opinião pública” acerca dos
jesuítas.
344
WETZEL, Herbert E. idem, ibidem.
345
Idem, pp. 157-158.
Pedro Brocco | 301

dos jesuítas, ou seja, a posição daqueles que possuem um saber sobre a


quem melhor servir: os economistas, tecnocratas, que orientam as políti-
cas governamentais submetidas aos ditames do mercado financeiro. Com
efeito, pode-se realizar este curioso exercício de substituição de “padres”
por “economistas” e “Nosso Senhor”, por “Mercado” no trecho citado
acima. Mas que esta interpolação não seja tomada apenas ao pé da letra: a
ética das virtudes que perpassava a formação dos jesuítas difere da ética
utilitarista que de modo geral sustenta o capitalismo. Pode-se pensar então
qual seria o lugar da ética das virtudes no contexto do deslocamento da
economia salvífica para a economia política, e se ela ainda teria lugar nesta
sociedade.
Herbert Wetzel observa, ao falar sobre os primórdios da catequese
jesuítica no Brasil, que “desde o início tiveram os jesuítas interesse especial
pelos habitantes mais abandonados, os indígenas da região”346. Em ver-
dade, o interesse era este e mais o de promover a reforma dos costumes
dos colonos já instalados na terra, no contexto de um amplo projeto de
conversão. Mas é interessante a utilização, por parte de Wetzel, do termo
“abandonados” para referir-se aos índios. Com efeito, os índios estavam
abandonados em relação a quê? Não nos parece o termo mais adequado
para os índios naquele momento, mas é precisamente esta inadequação,
erro ou falha na descrição dos mesmos que revela o sentido implícito por
Wetzel: os índios estavam fora do bando, a-bandonados, em relação ao
bando que pretendia integrá-los. E esta mesma integração produzia repre-
sentações que transformavam os índios em bandos mais ou menos
nômades sem leis, reis e ordem.
É este o sentido que se apreende dos relatos de Anchieta sobre os
primeiros habitantes de Piratininga, quando escreve a Inácio de Loyola:

Não estão (os índios) sujeitos a nenhum rei ou chefe e só têm nalguma estima
aqueles que fizeram algum feito digno de homem forte. Por isso, frequente-
mente, quando os julgamos ganhos, recalcitram, porque não há quem os

346
Idem, p. 159.
302 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

obrigue pela força a obedecer; os filhos obedecem aos pais conforme lhes pa-
rece; e finalmente cada um é rei em sua própria casa e vive como quer: por
isso nenhum fruto, ou ao menos pequeníssimo, se pode colher deles, se não se
juntar a força do braço secular, que os dome e sujeite ao jugo da obediência.
Vivendo sem leis nem autoridade, segue-se que não se podem conservar em
paz e concórdia.347

É neste sentido que o poder secular concorre com o espiritual dos


inacianos: corroborando o trabalho de conversão em aldeamentos e cri-
ando um continuum da aldeia à sociedade, ao referendar as noções de lei
e de autoridade que estavam implícitas na conversão e na teologia política
da Coroa portuguesa. A maneira que os jesuítas encontraram, inicial-
mente, para destilar as noções ocidentais de lei, rei, escrita, etc., foi através
da instrução e catequese, que incluíam escolas de ler e escrever e a educa-
ção musical, muito apreciada pelos índios brasileiros, sobretudo as
crianças. O plano era o de ganhar os pais mais supersticiosos ou arredios
por intermédio dos filhos de mais tenra idade. A capacidade infantil para
a ductibilidade e o aprendizado também era um fator positivo, visto que a
estrutura comportamental dos adultos se apresentava mais rígida e já for-
mada. A vinda dos primeiros meninos órfãos de Lisboa nos primeiros anos
da colonização pode ser vista, assim, como um esforço de intercâmbio cul-
tural e linguístico entre as crianças, que passariam por um mesmo
processo educacional entre os inacianos.
A administração de Mem de Sá apresenta um segundo passo na polí-
tica de conversão: investe na construção de igrejas e aldeias, reforçando a
estrutura material das missões, e também no projeto de tornar os princi-
pais das aldeias meirinhos e fiscais da aplicação da lei em cada aldeia sob
sua responsabilidade, criando um movimento de cima para baixo, a partir
da cúpula ou dos centros locais de poder, capaz de convergir com o da
instrução-catequese entre as crianças e jovens. O percurso do índio brasi-
leiro na catequese e na conversão foi sem dúvidas sinuoso, conforme todas
as fontes consultadas. Embora Anchieta observe, na sua Informação da

347
Carta de Anchieta a Inácio de Loyola, Monumenta Brasiliae, II, In: WETZEL, Herbert E. op. cit., pp. 159-160.
Pedro Brocco | 303

Província do Brasil, que os índios “compreendem mui bem a doutrina


cristã e os mistérios de nossa fé, o catecismo e aparelho para a confissão e
comunhão e sabem estas coisas tão bem ou melhor que muitos portugue-
ses”, o fato é que também tinham como traço a inconstância, além de
muitos costumes que impediam os progressos da catequese e conversão.
Antes de pensar no índio converso como um “efeito do poder”, cabe
entendê-lo como sujeito capaz de simbolizar e interagir com a tradição que
pretendia transformá-lo radicalmente348. Assim, era capaz de negociar,
mesclar costumes e crenças, ou mesmo recusar-se a fazer parte das redu-
ções e aldeamentos e retirar-se para o sertão, como mostram as fontes
consultadas. Ora, o próprio esforço missionário e a dificuldade de traduzir
os conceitos de crença e religião das línguas locais para a língua portu-
guesa indica basicamente um movimento de negociação, embora feito de
modo desigual e muito sofisticado: a conversão implicava a ligação a outra
forma de vida e a outra identidade, com apagamentos de identidades sim-
bólicas individuais e coletivas, afetando também diretamente a memória
social. A atuação direta sobre a linguagem, por parte dos jesuítas, foi o que
de mais sofisticado e inovador foi feito durante o período colonial e aparece
também como uma ruptura em termos de história das colonizações reali-
zadas no Ocidente, ao menos desde gregos e romanos.
Há, no entanto, algo que permanece ainda não dito, reconhecido por
Herbert Wetzel e repetido desde as cartas de Nóbrega, acerca da incons-
tância dos índios, característica muitas vezes tomada como proveniente de
uma inclinação natural. Desde o início da colonização, Nóbrega reconhece
como um problema o fato de os colonos portugueses estarem de certa
forma desconectados do projeto colonizador orientado pela conversão, an-
tes capturando os índios e transformando-os em escravos, mão-de-obra
para o desenvolvimento das atividades econômicas (entendidas em sen-
tido amplo: também no governo ou administração da casa). Wetzel
observa:

348
Cf. LAMANA, Gonzalo. Dominación sin dominio: el encuentro inca-español en el Perú colonial temprano. Cusco:
Centro de Estudios Regionales Andinos Bartolomé de Las Casas, 2016.
304 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Perceberam os jesuítas que a catequese não progredia porque os índios esta-


vam indômitos. Mas havia uma outra causa talvez mais importante: «a esta
terra não vieram até agora senão desterrados da mais vil e perversa gente do
Reino»349. Tudo isso procurou remediar Mem de Sá, impondo ordem aos por-
tugueses e sujeição aos índios. Deviam aceitar a instrução dos Padres que lhes
era proposta como condição de pazes. A imposição era aceitar a instrução, fi-
cando o batismo reservado aos que os missionários julgassem suficientemente
preparados. O Governador assistia às cerimônias mais solenes dos batizados e
por vezes se fazia seu padrinho.350

Com efeito, Mem de Sá representa a primeira tentativa da Coroa por-


tuguesa em trabalhar ao lado dos jesuítas (após Tomé de Sousa, quando a
colonização da Bahia, sobretudo, encontrava-se ainda muito incipiente).
De um lado entregava a instrução e a educação da colônia aos padres
jesuítas e, de outro, enfrentava os colonos e cortava seus desmandos e abu-
sos, tendo sido alvo de críticas e queixas na metrópole. Tais denúncias
direcionavam-se também aos jesuítas, tendo naquele momento início um
movimento de resistência mais proeminente em relação aos inacianos e ao
governador-geral que os protegia e agia de acordo com o que aos padres
parecia ser a glória de Deus e o bem das almas e proveito da terra351. Nó-
brega já naquele tempo mostrava-se apreensivo com as queixas contra
jesuítas e Mem de Sá, reconhecendo que “sempre no serviço de N. Senhor
há coisas contrárias ao que (os colonos) pretendem de seus interesses, e a
estas acrescentam mil falsidades e mentiras que alevantam, porque assim
é costume do povo, quando está mal afeiçoado”352.
A conversão nas terras brasileiras foi feita de maneira menos intelec-
tualizada e mais infraestrutural. Isto porque o índio brasileiro não oferecia
resistências do ponto de vista teológico, visto que não possuía uma clara

349
Carta de Nóbrega a Inácio de Loyola, S. Vicente, 25 de março de 1555, Monumenta Brasiliae II, 171. In: WETZEL,
Herbert E. op. cit., p. 162.
350
Idem, ibidem.
351
Idem, p. 162.
352
Idem, ibidem. Trecho de carta de Nóbrega a Tomé de Sousa, Bahia, 5 de julho de 1559.
Pedro Brocco | 305

concepção teológica. Nóbrega diz em suas cartas que os índios não possu-
íam nem juramentos nem ídolos, mas vimos como esta afirmação não se
sustenta muito bem: seja pelo juramento de vingança do vencido e devo-
rado no ritual antropofágico, seja pelos costumes dos feiticeiros com os
maracás, o fato é que o índio brasileiro possuía um sistema de crenças.
As maiores dificuldades para a conversão situavam-se na ordem so-
ciológico-moral, de acordo com Herbert Wetzel, de modo especial os
costumes alheios ao modo de vida europeu, sobretudo a antropofagia353.
Havia entre os padres a discussão acerca da inocência dos índios, so-
bretudo em matéria sexual. Anchieta parece fazer uma distinção entre a
vida sexual dos chefes (principais) que tinham muitas mulheres e filhos e
os outros índios, de modo que pudesse haver uma corrupção ou concupis-
cência no fato da poligamia. A possibilidade da poligamia estava atrelada
a uma questão de fundo econômico: para possuir maior número de mu-
lheres, era preciso que se lhes garantisse a subsistência. Diz Anchiteta,
citado por Wetzel: “muitos não têm mais que uma só (mulher), mas se é
grande principal e valente, tem dez, doze, vinte”354. A maior parte dos ín-
dios, assim, não possuíam mais que uma mulher, como reconhece
Anchieta na Informação do Brasil. Anchieta observa também a facilidade
com que as índias provocavam o aborto em si mesmas355.
Fernão Cardim encontra inocência nos índios apenas em relação à
nudez, e chega a observar que a inocência não era geral e que os índios na
bebedeira tomavam as mulheres alheias356.
A erradicação da poligamia passou, então, por diversos pontos con-
correntes: a questão econômica, da concentração de bens e prestígio em
um só principal; os ritos e costumes envolvendo entorpecentes, como o
cauim, que turvavam a reta razão na condução da própria vida; a profa-
nação do corpo próprio e alheio. O fato é que na colônia brasileira logrou-

353
Idem, p. 163.
354
Idem, p. 164.
355
Idem, ibidem.
356
Cf. CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Univer-
sidade de São Paulo, 1980, p. 89.
306 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

se certo êxito em relação à erradicação da poligamia entre os índios, so-


bretudo quando entram em cena os aldeamentos, com uma direta
interferência sobre a montagem do meio físico das aldeias indígenas, com
construções aptas a albergar apenas as famílias monogâmicas e também
com asilos para as viúvas. Quando se pensa em outras localidades sob do-
mínio português, como Moçambique, se percebe a tradição familiar
poligâmica persistindo ainda hoje357.
No Brasil, a erradicação da poligamia foi fruto do plano colonizador
arquitetado por Nóbrega a partir da chegada de Mem de Sá e em grande
parte executado por este. Alguns trechos presentes em cartas de outros
jesuítas podem corroborar esta afirmação. Em 1561, escreve Antônio
Blazquez: “Há entre eles agora mui poucos que tenham duas mulheres;
pelo que parece não haverá muito trabalho com eles”358. Pouco depois, na
mesma carta, Blazquez dirá: “O Governador (Mem de Sá) dá-nos quanta
autoridade nós queremos com os índios, não querendo neste negócio se-
não o que os Padres querem. De nossa parte não há mais que apontar e
tocar o que queremos, porque logo se efetua”359. Este trecho relaciona a
boa fase da atuação missionária sob os auspícios de Mem de Sá com a au-
toridade que este concedia aos inacianos. Importante se perceber que ao
se falar em autoridade, está-se referindo não apenas à figura de um Go-
vernador, mas aos desdobramentos práticos que a inclinação ao
planejamento jesuíta comportava, sobretudo a mobilização das institui-
ções coloniais, como o aparato militar para o processo missionário, que foi
também, neste sentido, processo civilizador nos moldes católicos e ociden-
tais. De outro lado, foi também importante para o projeto de conversão o

357
Em recente conferência do Prof. Gil Wa-Nhamymba (José Gil Vicente) intitulada África e Direitos Humanos: o caso
de Moçambique, proferida em dezembro de 2017 na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, se
pôde ter uma dimensão da persistência da poligamia no interior de Moçambique. E os motivos econômicos de fundo
acompanham a poligamia dos índios brasileiros de quinhentos anos atrás: a poligamia é insustentável em cenários
de urbanização, como o das maiores cidades de Moçambique. O trabalho assalariado favorece a constituição de pe-
quenos núcleos familiares, de modo que também aí há desvalorização do trabalho doméstico.
358
Carta de Antônio Blazquez ao Pe. Diogo Laynes, Bahia, 1º de setembro de 1561, In WETZEL, Herbert. E. op. cit., p.
165.
359
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 307

bispo Dom Pedro Leitão, que se encontrava igualmente alinhado aos jesu-
ítas.
Além da prática da poligamia, a erradicação da antropofagia talvez
tenha sido o ponto mais sensível para a fundação de uma sociedade colo-
nial no Brasil. Isto porque a antropofagia fazia parte de uma dinâmica
social de relações intertribais que tornava impossível a formação de vín-
culos sociais mais extensos para além de núcleos tribais. A antropofagia
ocupava uma função que transcendia a mera motivação alimentar. Ob-
serva Wetzel:

Não vem ao caso examinar aqui os motivos da antropofagia das tribos brasi-
leiras. Não a praticavam, é certo, por razões de caráter alimentar. A
antropofagia tinha um significado diferente, quer guerreiro, quer religioso-
social. Nóbrega diz que os índios não se podiam afastar das Aldeias sem licença
dos padres para não irem «comunicar ou comer carne humana». Com isso
sugere o sentido ritual da antropofagia. Os índios «comungavam a carne do
inimigo» para lhe tomar o nome e participar de sua força e valentia.360

Insinua-se aí que a antropofagia fizesse parte de profundas estrutu-


ras culturais que perfaziam um papel análogo ao atribuído por Nóbrega ao
da religião. Arrematando a afirmação acima com a observação de que a
matança do inimigo em terreiro público com ritos de grande solenidade
constituía uma festa tribal, Wetzel compartilha o ponto de vista dos estu-
dos de antropólogos que se debruçaram sobre o rito antropofágico
enquanto forma de laço social e construção coletiva da memória, posto que
esses mesmos ritos davam ensejo a mudanças performativas nos sujeitos
que deles tomavam parte, como a questão da nomeação, figurando aí uma
mudança simbólica provocada pelo rito. Fernão Cardim, grande geógrafo,
botânico e etnógrafo jesuíta a atuar no Brasil do século XVI, afirma, ao
descrever o costume da antropofagia dos índios: “De todas as honras e
gostos da vida, nenhum é tamanho para este gentio como matar e tomar

360
WETZEL, op. cit., p. 167.
308 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

nomes nas cabeças de seus contrarios, nem entre elles ha festas que che-
guem ás que fazem na morte do que matão com grandes ceremonias
(...)”361.
Desde Cardim, passando por Wetzel, há um esforço de compreensão
dos ritos antropofágicos que apontam para o seu papel no modo de vida
indígena. No caso da construção da memória, esse papel não difere da co-
municação dos mitos e mesmo da função da rede sacramental, ela também
funcionando como rito em que se come, no caso da eucaristia, o corpo de
Cristo representado pelo pão consagrado. A antropologia chega ao século
XX trabalhando a questão da antropofagia do ponto de vista de sua função
nas sociedades indígenas, e também o seu papel na construção da memó-
ria social através da vingança (a antropofagia perfazia sempre uma
vingança). Neste sentido, pode-se citar tanto a tese de Florestan Fernan-
des362 quanto os trabalhos desenvolvidos por Manuela Carneiro da Cunha
e Eduardo Viveiros de Castro363.
Tratando-se de rito incompatível com o modo de vida cristão orien-
tado pelos sete sacramentos, a antropofagia aparece nas páginas mais
dramáticas das correspondências de Nóbrega, quando relata a tolerância
e mesmo o fomento das guerras intertribais pelos colonos, orientados por
interesses econômicos de captura da mão-de-obra escrava dos índios.
Também explicita Wetzel em referência a uma carta de Pero Rodrigues,
escrita na Bahia em 19 de dezembro de 1559: “A antropofagia era praticada

361
CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1980, pp. 95-96.
362
FERNANDES, Florestan. A função social da guerra na sociedade tupinambá. 3. ed. São Paulo: Globo, 2006. Flores-
tan Fernandes estudou a sociedade tupinambá tanto em sua dissertação quanto na tese. Em 1946, tornou-se mestre
em Ciências Sociais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo com dissertação que possuía o título A organi-
zação social dos Tupinambá. Em 1951, tornou-se doutor em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo,
defendendo tese de título A função social da guerra na sociedade tupinambá, publicada em 1952.
363
CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009. O conceito
central da figura da vingança na organização social tupi foi sustentada de forma consistente há pouco mais de trinta
anos no trabalho Vingança e temporalidade: os Tupinambá, de Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de
Castro. O ponto de partida deste ensaio foram as observações de Carneiro da Cunha expostas na defesa da tese de
Viveiros de Castro, em que se fazia a crítica da explicação funcionalista que Florestan Fernandes deu à vingança e à
guerra em sua obra A função social da guerra entre os Tupinambá (1952).
Pedro Brocco | 309

em conivência tática e muitas vezes explícita dos colonizadores portugue-


ses. Também os franceses do Rio Grande do Norte a permitiam, vendendo,
segundo o testemunho de Pero Rodrigues, brancos e negros aos Potigua-
res, para serem devorados”364.
Não é por outro motivo que os jesuítas aproveitam a aliança com
Mem de Sá para promoverem a repressão ao costume da antropofagia. O
governador-geral aplica a penalização aos praticantes do rito antropofá-
gico, ameaçando-os com a pena de morte. Esta é, talvez, a primeira
atuação consistente do direito penal em terras brasileiras; porém, antes de
tutelar pura e simplesmente a vida humana, como pode fazer parecer o
pensamento liberal dos códigos penais modernos, o verdadeiro objetivo
naquele momento era construir uma estrutura comunitária e cooperativa
orientada pelos sacramentos católicos. Uma estrutura e autoridade política
que os jesuítas pretendiam fundar ao mesmo tempo nas consciências e no
território: a antropofagia só foi reprimida pois violava diretamente os
pressupostos sacramentais, que influenciavam desde a formação de um
corpo administrável de fiéis até a unidade do território da colônia, que de-
veria se manter católica, portuguesa, ibérica.
A carta de Nóbrega a Tomé de Sousa365 traz muitas informações re-
levantes sobre o tema da antropofagia e de como os colonos encaravam-
na. O fomento à antropofagia era considerado como algo absurdo por
parte dos jesuítas. Na carta, escreve Nóbrega: “Em toda a costa se tem ge-
ralmente, por grandes e pequenos, que é grande serviço de N. Senhor fazer
aos gentios que se comam e se travem uns com os outros, e nisto têm mais
esperança que em Deus vivo. Nisto dizem consistir o bem e segurança da
terra (...)”. A continuação deste trecho dá notícia de se terem achado até
mesmo cristãos antropófagos: “Louvam e aprovam ao gentio o comerem-
se uns aos outros, e já se achou cristão a mastigar carne humana para dar
com isso bom exemplo ao gentio”. Ora, nada mais contrário ao modo de

364
WETZEL, op. cit., p. 167.
365
Carta de 5 de julho de 1559, Bahia, citada acima.
310 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

proceder da Companhia, onde o exemplo ao gentio seguia as normas sa-


cramentais e a tradição da Eclesia366. Wetzel afirma que os colonos
aplicavam a máxima dos latinos: divide et impera. Com razão, tal observa-
ção dá conta de que para os colonos era importante manter os índios
desunidos e em constante conflito entre si, numa espécie de indução ao
estado de natureza hobbesiano, pois assim os índios ofereciam menos pe-
rigo e força para molestar os colonos em suas roças e negócios, e ainda
facilitava a captura de mão de obra escrava de tribos fragilizadas pelas
guerras ininterruptas. Escreve Wetzel em arremate: “Era por motivo de
segurança pessoal e não por racismo que por vezes favoreciam a antropo-
fagia das tribos indígenas”367. Esta observação é preciosa para a
compreensão das motivações da conduta dos colonos. Antes de se ventilar
a hipótese do racismo, ligada às teorias do século XIX, o fomento à antro-
pofagia ligava-se à segurança: pessoal, patrimonial, social; algo que pode
ser reconhecido no núcleo formativo de uma concepção de sociedade civil.
Era, portanto, uma aposta contrária aos jesuítas, que pretendiam a exten-
são de uma sociedade civil colonial aos índios, e não sua exclusão. Os
colonos que assim agiam contribuíam para a formação de uma sociedade
civil debilitada e assaltada por guerras intestinas.
A vinda dos jesuítas, neste sentido, representou um combate huma-
nista contra o costume da antropofagia. Diziam os inacianos ser a
antropofagia um costume contra a natureza e indigno da pessoa hu-
mana368. De um ponto de vista diretamente teológico, sustentavam que o
costume era contra a caridade, amor de Deus e do próximo. No que toca
ao Direito, cumpre destacar que a normatividade embutida nos sacramen-
tos, sobretudo aqui o da eucaristia, liga-se ao conceito de pessoa humana

366
Aqui entendida em seu sentido amplo: desde a Igreja até o étimo que lhe dá origem, o qual remonta às assembleias
da democracia ateniense. De modo geral, este termo multissecular e muito caro à tradição ocidental designa espaços
de fala e discurso; retórica e convencimento. De certa maneira, a conversão procedia pela sublimação e conquista
espiritual, de modo que os principais costumes que buscavam ser combatidos incidiam diretamente sobre a carne:
antropofagia, poligamia, bebedeira. A eclesia representa um modo de vida de laço social urdido pela palavra, em
torno da construção de um conceito (imaginário) de soberania.
367
WETZEL, Herbert. Op. cit., p. 168.
368
Idem, p. 169.
Pedro Brocco | 311

para formar uma teoria a respeito da formação do conceito de pessoa hu-


mana no direito civil, vinculada a um conceito de poder civil no âmbito do
direito público. Tais conceitos desdobram-se na atuação coercitiva do di-
reito penal colonial, ao prever a pena de morte aos praticantes da
antropofagia. Do lado do poder punitivo, foi com Mem de Sá que se cons-
truíram pelourinhos nas praças centrais das principais cidades da colônia,
como Salvador.
Não por acaso, escreveu Nóbrega um Tratado de Direito contra a an-
tropofagia e contra os cristãos, seculares e eclesiásticos que a fomentam ou
consentem, material lamentavelmente perdido, mas de grande importân-
cia para o Direito brasileiro, e que trouxe alguns problemas para Nóbrega
por se tratar de escrito polêmico em que faz acusações a figuras importan-
tes da sociedade colonial da época. O tratado lhe rendeu críticas e
admoestações vindas desde Lisboa, mediante missiva do Provincial Miguel
de Torres:

Aqui veio a São Roque um frade que diz que V. Rev. fez um libelo contra ele.
Não deixaria de haver alguns bons respeitos que movessem a isso, mas ainda
que os houvesse, é muito contra o modo de proceder da Companhia e causa
algum escândalo. Tenha V. Rev. conta, por amor de Deus, que não use de suas
letras senão no foro interno, pois o foro externo não é nosso.369

Da repreensão que sofre Nóbrega aparecem alguns indícios ao intér-


prete: os jesuítas enxergavam-se como ordem com autoridade para
vislumbrar no frade queixoso e quejandos debilidades morais suscetíveis
de reforma (“não deixaria de haver alguns bons respeitos que movessem
a isso (...)”). Nóbrega, assim, desde o Diálogo sobre a conversão do gentio,
que não se trata propriamente de uma carta, passa a se colocar em um
foro externo, que define Miguel de Torres como não fazendo parte da al-
çada da Companhia. No entanto, um tratado de Direito escrito para
circular publicamente faz de Nóbrega um filósofo do Direito à Francisco

369
Carta do padre Miguel de Torres ao padre Manuel da Nóbrega, Lisboa, 12 de maio de 1559. In: WETZEL, Herbert,
op. cit., p. 169.
312 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

de Vitoria: ainda que não possuísse espaço na cátedra, como havia sido seu
desejo de juventude, pôs-se a escrever um tratado jurídico de tal relevância
crítica para o campo político de sua época que acabou, quiçá por isto, su-
primido e perdido.
Wetzel observa que “na luta contra a antropofagia valiam-se os pa-
dres do seu prestígio junto aos naturais. Mas para o triunfo completo
requeria-se a força do poder civil, e nisso nem sempre a colaboração foi
suficiente. Tomé de Sousa deu alguma ajuda, D. Duarte da Costa quase
nenhuma”370.
D. Duarte da Costa, aliás, protagonizou um dos primeiros episódios
de instauração da lei penal em território brasileiro. Instado pelos jesuítas
a proibir a antropofagia nos arredores da Bahia, D. Duarte da Costa proi-
biu-a sob pena de morte, mas nada fazia para a fiscalização e execução da
pena. Nóbrega observa que o governador-geral deu ordem “de tal maneira
que ainda que a comessem, não se fazia por isso nada, e assim a comiam
a furto de nós e pelas outras Aldeias ao derredor, mui livremente”371.
A novidade que traz Mem de Sá, aperfeiçoando a gestão de Tomé de
Sousa, concentra-se na eficácia da lei civil. Wetzel fala em “fase decisiva” e
“colaboração eficiente de Mem de Sá”372. Colaborando com os jesuítas, tem
como uma das primeiras medidas de governo a proibição absoluta da an-
tropofagia.
O governo Mem de Sá acentua a primeira inflexão do Brasil colônia
contra a escravização dos índios, vendo-os sobretudo como súditos da Co-
roa, ao mesmo tempo em que há paradoxalmente a expansão da
escravização para abastecer os engenhos. Na verdade, pelo exame das fon-
tes, não é possível afirmar se o alinhamento de Mem de Sá aos jesuítas,
sob os auspícios da Coroa, de fato significava uma vontade política de tor-
nar os índios brasileiros súditos da Coroa portuguesa, ou se a tendência
sofrera modificação temporária com vistas ao uso da mão-de-obra nativa

370
WETZEL, Herbert, op. cit., p. 169.
371
Carta de Nóbrega a Tomé de Sousa, Bahia, 5 de julho de 1559. In: WETZEL, Herbert, op. cit., p. 170.
372
WETZEL, Herbert, op. cit., p. 170.
Pedro Brocco | 313

para a empresa militar, no momento em que o território brasileiro viu-se


como nunca antes ameaçado por potências estrangeiras.
Negando o Tratado de Tordesilhas, a França fez ao menos duas gran-
des incursões em território brasileiro com o objetivo de fundar colônias. A
primeira delas foi a fundação da França Antártica, empreendimento que
tinha à frente Nicolas Durand de Villegagnon, o qual desembarca no que
seria o Rio de Janeiro em 1555, portanto antes da chegada de Mem de Sá.
A conquista do Rio de Janeiro com a consequente derrota dos france-
ses capitaneados por Villegagnon não teria sido possível sem a utilização
intensa dos índios nas fileiras militares portuguesas. Deixando este as-
sunto para ser abordado com mais cuidado no próximo tópico, no entanto,
é possível afirmar que as tensões envolvendo jesuítas e colonizadores nes-
tes primeiros anos da colonização brasileira, quando se tentava centralizar
a administração da colônia com o governo geral em Salvador, seria como
uma espécie de tensão política central do DNA da futura nação brasileira:
entre a orientação agroexportadora de monocultura com intensa explora-
ção dos corpos de seus escravos e a fundação de uma sociedade a partir do
fortalecimento da função simbólica da lei. Do lado dos colonizadores por-
tugueses que buscavam ocupar a terra e explorar a mão-de-obra escrava
dos índios, a visão da força e do poder era ligada à força física sobre os
corpos com vistas a domesticá-los; a visão acerca do índio era a de ser
inferior e mera força de trabalho a ser dominada e explorada; a adminis-
tração dos corpos voltava-se ao âmbito da produção. Do lado jesuíta, a
visão da força e do poder era ligada ao poder simbólico e à retórica que
formava as finas linhas do convencimento mediante a catequese e as mis-
sões volantes, depois transformadas em aldeamentos; a visão acerca do
índio era a de seres aptos à conversão e possuidores da capacidade humana
de memória, entendimento e vontade; a administração dos corpos voltava-
se ao âmbito religioso-psicológico-político, com vistas à educação e inser-
ção em um novo modo de vida orientado pela vivência dos sacramentos
(portanto, um modo de vida orientado simbolicamente a uma vida religi-
osa-política). Se o projeto da escravização apontava para uma alienação
314 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

permanente, em relação a si mesmo, em relação à própria língua, cultura


e corpo, o projeto jesuíta apontava para uma alienação inicial da cultura
nativa acompanhada de uma promessa de inserção em um modo de vida
cristão. A alienação, no entanto, estaria sempre presente.
O sucesso jesuíta com Mem de Sá e com a conquista do Rio de Janeiro
foi o sucesso da Contrarreforma católica: funcionários reais especializados,
os jesuítas auxiliaram a implantação da força simbólica da lei portuguesa
na colônia, mediante a conversão, utilizando todo o expediente autorizado
pela tradição da Igreja Católica: música, imagens, cantos, sermões, missas,
autos, teatros, além da aliança com o poder secular na fundação dos alde-
amentos. O sucesso jesuíta foi também, para além de uma mera vitória da
Igreja face à orientação protestante no Novo Mundo, o sucesso de Sala-
manca.

2.10 O Rio de Janeiro ou a vitória da Contrarreforma e de Salamanca


no Novo Mundo

Ao desembarcar no Rio de Janeiro em 1555, Villegagnon conta com


um corpo expedicionário composto por soldados e artesãos. A aliança com
índios da região seria fundamental para enfrentar os portugueses e seus
aliados tupis-guaranis. Entretanto, um ano depois, em 1556, Villegagnon
escreve a João Calvino, um dos expoentes da Reforma protestante e seu
condiscípulo da faculdade de Direito em Orleans373,374 pedindo-lhe o envio
de um contingente de partidários da fé reformada para conter as rebeliões
que começavam a ocorrer na colônia. Chegam então em 1557 catorze hu-
guenotes, que não conseguem conter as rebeliões e discórdias. Os
calvinistas deixam a ilha, na baía de Guanabara, e buscam refúgio junto
aos índios tupinambás, aliados dos franceses. Chega também, em 1558,

373
SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia, op. cit., p. 37.
374
João Calvino torna-se doutor em Direito em Orleans em 1532. Seu primeiro trabalho publicado foi um comentário
sobre o texto De Clementia, do filósofo romano Sêneca. Calvino escolhe justamente um filósofo expoente do estoi-
cismo para escrever um trabalho em que reflete sobre o sentido estoico da predestinação.
Pedro Brocco | 315

Jean de Léry, pastor e membro da Igreja na fase inicial da Reforma, estu-


dante em Genebra quando Villegagnon solicita reforços à Igreja de
Calvino375.
Léry, que também convive com os tupinambás, se tornará, ao lado do
frade franciscano André de Thevet, o qual chega junto à comitiva de Ville-
gagon em 1555 para fundar a França Antártica mas passa pouco tempo no
Brasil, o principal cronista e escritor francês no Rio de Janeiro. Irá fundar
uma importante tradição de pensamento etnográfico na França, influen-
ciando diretamente pensadores como Montaigne e, no limite, também
Rousseau e mesmo a antropologia de Lévi-Strauss. Léry será o primeiro a
observar os ritos antropofágicos dos índios em termos de regras internas:
a guerra entre os tupinambás respeitaria tais regras internas e a vingança
constituiria um valor compartilhado376. A partir daí se começa a enxergar
a antropofagia, ligada à vingança e a uma espécie de funcionamento social
específico, como um pouco diferente do canibalismo, mero ato de comer
carne humana.
Deve-se à capacidade de observação e descrição de Léry e desses pri-
meiros huguenotes que chegaram ao Rio de Janeiro as primeiras “sínteses
antropológicas” sobre os índios. Talvez por não estarem engajados na em-
presa da conversão, fosse-lhes possível descrever os costumes indígenas
de forma mais desinteressada; talvez também antecipassem uma certa tra-
dição racionalista em suas descrições sistemáticas: o certo é que estes
etnógrafos franceses, a despeito de sua importância nesta seara da descri-
ção etnográfica, não foram capazes de agir politicamente junto a
Villegagnon no mesmo sentido que os jesuítas portugueses. Em outras pa-
lavras: seu poder de ação junto aos índios com vistas à mobilização e
agenciamento de sua força física no campo militar não poderia se compa-
rar aos jesuítas.

375
SCHWARCZ; STARLING, idem, p. 39.
376
Cf. CHEMAMA, Roland. “Singularidades ou universalidade? O índio Tupinambá na obra de Jean de Léry”. Narra-
tivas do Brasil: cultura e psicanálise. Porto Alegre: APPOA, 2005, pp. 18-24.
316 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

A Companhia de Jesus atuava no Brasil já há alguns anos com o ob-


jetivo de converter os índios e torná-los cristãos e súditos da Coroa
portuguesa. A chegada de Mem de Sá a Salvador em 1557 traria consigo a
promessa de intensificar este processo e também já se previa a tomada do
Rio de Janeiro com o rechaço dos franceses, cada vez mais ameaçadores
na região. O poder de mobilização dos jesuítas foi capaz de agenciar forças
indígenas para as fileiras militares portuguesas desde o Espírito Santo e
São Paulo (Piratininga e São Vicente), o que facilitou o deslocamento de
tropas para o Rio de Janeiro. Neste sentido, a aliança com João Ramalho,
casado com a filha de Tibiriçá na região de Piratininga, permitiu aos por-
tugueses uma aliança estratégica capaz de mobilizar milhares de
guerreiros tupi-guarani. Soma-se a isso a decisiva aliança dos portugueses
com os temiminós, que haviam se deslocado da Ilha do Governador para
o Espírito Santo e voltariam para ajudar na guerra contra os franceses,
capitaneados por Arariboia.
A capacidade dos jesuítas se infiltrarem na dinâmica indígena fica
clara também quando se analisa o célebre episódio denominado Armistício
de Iperoig (ou Iperuí), atual Ubatuba. Os aliados dos franceses, tupinam-
bás ou tamoios, estendiam-se pela costa brasileira de Cabo Frio até o litoral
paulista. Consta que em 21 de abril 1563 Nóbrega e Anchieta, que servia de
língua, decidiram negociar a paz com os tamoios e informar-se sobre suas
forças. Saíram de São Vicente por mar até Iperoig, sendo recebidos pelos
líderes tamoios Caaoquira e Pindobuçu, além do tupinambá Cunhambebe.
Doze índios foram levados como reféns no navio que voltava a São Vicente
e cinco no que ia para o Rio de Janeiro. Aimbirê, chefe tamoio da Guana-
bara, falando em nome dos chefes confederados de Cabo Frio e do vale do
Paraíba, afirma que os peró, portugueses, eram gente malvada e sem pa-
lavra que devia ser exterminada377. Nóbrega e Anchieta entregam-se como
reféns e durante dois meses, entre idas e vindas nas negociações, tendo os
dois jesuítas quase perdido a vida. Nóbrega consegue a façanha de reunir
os rivais tamoios e tupis na igreja de Itanhaém, onde fizeram as pazes.

377
Cf. toda essa narrativa em HANSEN, João Adolfo. Manuel da Nóbrega, op. cit., pp. 42 e ss.
Pedro Brocco | 317

Em São Paulo de Piratininga, os tupis e tamoios que chegaram pelo


rio Paraíba também estabeleceram amizade. Este episódio foi fundamental
para minar as forças dos tamoios da região da Guanabara e Cabo Frio,
liderados por Aimbirê. Lembre-se que Nóbrega faz sua formação em teo-
logia e humanidades em Salamanca, e este episódio ilustra bem a forma
com a qual a doutrina da Escola de Salamanca se relacionava com a visão
sobre o poder e a soberania natural dos nativos. Foi aplicando na prática a
teoria sobre o ius communicationis que os jesuítas Nóbrega e Anchieta
conseguiram dobrar a resistência tupinambá em Iperoig e, de certa forma,
ajudar indiretamente na conquista do Rio de Janeiro frente aos franceses
e seus aliados.
As batalhas decisivas travadas na Guanabara, com a derrota do Forte
Coligny até a conquista definitiva do Rio de Janeiro pela família Sá (Estácio
de Sá e Mem de Sá diretamente envolvidos) tiveram a atuação também
decisiva dos jesuítas nos bastidores das batalhas e deslocamentos de tro-
pas.
O saber de teologia-moral que vinha sendo desde os anos 1520 traba-
lhado em Salamanca por Francisco de Vitoria, que tinha como objetivos
repensar os fundamentos jurídicos e políticos do poder à luz da descoberta
do Novo Mundo, com a visão de que o poder não se transferiria direta-
mente de Deus a um monarca (ou ao papa), mas seria mediado pela figura
do povo e dos naturais da terra, foi importante para a inclusão simbólica
dos povos americanos no mesmo quadro cultural da civilização europeia.
Esta tradição aliada ao saber especializado da Companhia de Jesus com
vistas à conversão dos índios ao cristianismo tornou o lado português mais
poderoso na luta pelo Rio de Janeiro. É possível então dizer que a Contrar-
reforma, simbolizada por Salamanca e pela Companhia de Jesus, consegue
sua primeira grande vitória em disputa direta com uma potência estran-
geira que busca utilizar o apoio teológico reformado protestante (neste
caso, calvinista) para a sua empresa de colonização. As trajetórias de Inácio
de Loyola e João Calvino são paralelas, e ambos estudam no mesmo colégio
318 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Montaigu em Paris e seguem caminhos opostos em relação à Reforma pro-


testante. De igual maneira, Villegagnon forma-se em Direito em Orleans
por onde passa também Calvino, o qual desde o Rio de Janeiro recebe uma
carta de Villegagnon pedindo reforços de partidários da fé reformada para
a ação moral junto aos colonos franceses. De outro lado, temos Manuel da
Nóbrega, que faz sua formação em Teologia e Direito entre Salamanca e
Coimbra e Mem de Sá, que se forma em Direito em Salamanca no período
de atuação de Francisco de Vitoria naquela Universidade. Teríamos, assim,
duas linhas opostas de atuação enfrentando-se no Rio de Janeiro, tendo
vencido a contrarreformista salmanticense.
A conquista definitiva do Rio de Janeiro e sua fundação em 1565
marca também o momento de supremacia e, de certa forma, fundação da
dinastia dos Sá na cidade. Salvador Correia de Sá, descendente direto desta
linhagem, será o maior comerciante de escravos na triangulação do co-
mércio com Luanda e Buenos Aires no século XVII. Harold B. Johnson, ao
preparar o verbete sobre Mem de Sá para o Dicionário do Brasil colonial,
não hesita ao afirmar que Mem de Sá era claramente corrupto e amealhou
uma grande quantidade de fortuna pessoal com os resgates e as expedições
para escravizar índios enquanto ocupou o cargo de governador-geral.
Quando morreu, Sá possuía dois dos maiores engenhos de açúcar da colô-
nia, o maior dos quais o famoso engenho de Sergipe do Conde, no
Recôncavo baiano, com 250 escravos e cobrindo uma área de cerca de 350
km². Também foi um dos maiores criadores de gado do Brasil e exportou
grandes quantidades de pau-brasil. Não obstante, sua atuação, como já foi
aqui marcado, alinhou-se aos desígnios jesuítas. O mesmo Harold Johnson
afirma que Sá, ao contrário de seus predecessores, “cuidou de sua imagem
e compreendeu as «relações públicas»”378. Frei Vicente do Salvador o ape-
lidou de “espelho dos governadores do Brasil”.
A despeito de ter fortalecido sua posição no âmbito privado e de fun-
dar uma dinastia no Rio de Janeiro, Mem de Sá foi capaz também de

378
SILVA, Maria Beatriz Nizza da (Coord.). Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil. Lisboa: Verbo,
1994, verbete “Mem de Sá”, pp. 730-731.
Pedro Brocco | 319

fortalecer o planejamento colonial do Brasil, com a construção de igrejas e


a observância inaudita das leis na coerção de costumes como a antropofa-
gia e a poligamia. Trabalhando ao lado dos jesuítas, seria possível dizer
que Mem de Sá coloca-se aí do lado oposto ao dos interesses da classe dos
colonos brasileiros que buscavam desbaratar a construção de uma socie-
dade colonial nos moldes propostos pelo governo geral. Para os colonos,
importava capturar mão-de-obra escrava indígena, mesmo que para isso
fosse necessário fomentar uma guerra generalizada entre tribos indígenas
e tolerar a prática da antropofagia. O projeto dos jesuítas, ajudados por
Mem de Sá, seria o de buscar integrar os índios brasileiros ao sistema ad-
ministrativo colonial enquanto súditos, educando-os, catequizando-os,
convertendo-os. Neste sentido, promoveriam a função simbólica da lei
cristã portuguesa na colônia. Tal função simbólica da lei portuguesa diria
respeito a parâmetros legais acerca do uso da força de trabalho e dos cor-
pos dos índios, vistos como escravos potenciais pelos colonos. Seus corpos
deveriam ser respeitados como os corpos dos demais súditos da Coroa;
estariam submetidos aos ritos ordenados pelos sacramentos, promovidos
pelos jesuítas, e sua força de trabalho seria utilizada a princípio no interior
dos projetos dos aldeamentos, onde não seria explorada tendo em vista o
âmbito da produção de bens para exportação, embora fosse necessária
para o cotidiano das aldeias. Tal trabalho realizado nas aldeias seria sem
dúvidas utilizado para a produção de bens eventualmente comercializá-
veis, sobretudo ao longo dos séculos XVII e XVIII, quando os jesuítas
passam a possuir fazendas e a atuar de forma mais intensa no comércio.
Neste período do século XVI aqui analisado, os aldeamentos funcio-
nariam como uma espécie de controle da mão-de-obra indígena,
fortalecendo o monopólio da Metrópole sobre a colônia.
Se estamos aqui falando de uma vitória contrarreformista e salman-
ticense no Brasil, marcada pela conquista e fundação do Rio de Janeiro, é
preciso que se compreenda em que medida o saber de Salamanca é apli-
cado e destilado pelos padres da Companhia, instituição que simboliza o
320 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

período da Contrarreforma. Enquanto a França parecia dar poderes ilimi-


tados a Villegagnon para fundar sua França Antártica na Guanabara,
Portugal incorria em um movimento que também vinha sendo praticado
pela Espanha, isto é, reafirmar o poder da Metrópole nas colônias, um ex-
pediente que Luiz Felipe de Alencastro chamou de “colonizar seus próprios
colonos”379. Alencastro observa que os objetivos das Leyes Nuevas de 1542-
43 promulgadas por Carlos V eram o de enfraquecer o poderio dos colo-
nos, reconhecendo a soberania indígena, prevendo o fim das encomiendas
e da concessão de indígenas aos conquistadores, com a passagem gradual
dos nativos à dependência da Coroa, à qual pagariam tributos. Esta seria
a primeira contradição do projeto colonial espanhol, segundo Alencastro.
Para afirmar-se como “imperador sobre muitos reis”, segundo pala-
vras de Bartolomé de Las Casas, um dos inspiradores das Leyes Nuevas,
influência direta da Escola de Salamanca, Carlos V deveria reconhecer a
soberania dos índios com o estabelecimento do vínculo de vassalagem, ao
passo que os colonos também deveriam reconhecer a soberania dos se-
nhores naturais indígenas. A contradição fica patente quando se
examinam os alicerces do início da colonização espanhola e se compreende
que este entendimento convalidado pelas Leyes Nuevas contrariava con-
cessões régias que permitiam que os colonos levantassem por sua conta e
com seus recursos as primeiras paredes das colônias ultramarinas. Logo
estouram as primeiras rebeliões protoseparatistas lideradas pelos colonos
do Peru, nas décadas de 1540 a 1560. Alencastro examina fontes sobre o
levante liderado por Hernandez Girón no Peru:

Investigando as causas do levante liderado por Hernandez Girón, o ouvidor do


Tribunal de Lima resume o ponto de vista dos rebeldes: “Tinham compreen-
dido que S. M. queria todo o Peru para si próprio e que, nesse caso, o Peru não

379
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000, p. 11.
Pedro Brocco | 321

poderia deixar de fazer-se senhoria e de se governar livremente, como Ve-


neza”. No meio tempo, tropas fiéis à Coroa, mobilizadas e dirigidas pelo clero,
haviam derrotado os colonos rebeldes.380

Estabeleceu-se, então, um compromisso que passou a gerir a relação


entre a Metrópole espanhola e suas colônias: os conquistadores ficavam
com os índios dominados, mas aceitavam a tributação régia imposta às
encomiendas. De seu lado, a Coroa “impedia a criação de feudos hereditá-
rios e impunha sua autoridade sobre as terras e populações conquistadas
e por conquistar”381. Neste período, a Coroa portuguesa também se engaja
no movimento de colonizar seus próprios colonos, com a instituição do
governo geral no Brasil, onde um depositário fiel das ordens régias teria o
encargo de governar a colônia centralizada a partir de Salvador.
Mas o essencial do compromisso nas colônias espanholas, sobretudo
na análise feita no caso peruano, segundo Alencastro se desenrola “em ou-
tras instâncias”, com a descoberta das ricas minas de Potosí, em 1545. A
partir de 1545, a prata de Potosí reorienta os fluxos de trocas americanas
e torna o Peru viável à penetração comercial metropolitana. Assim, o poder
imperial promove um discurso global e coerente associando a exploração
da prata americana ao empreendimento político e ideológico arquitetado
na Europa. Seria o que Alencastro chama de Pax Christiana. E seria tam-
bém o que Bataillon chamou de “mito justificador”: uma riqueza metálica
prodigiosa havia sido providencialmente escondida nesta parte da terra,
descoberta para pagar o salário de seus evangelizadores, para exaltar o
Deus católico contra o herege luterano e contra o infiel muçulmano382.
As colônias portuguesas apresentam conflitos políticos semelhantes.
O Brasil não havia ainda descoberto nenhuma reserva prodigiosa de me-
tais preciosos e tampouco se colocado definitivamente na rota da

380
Idem, p. 13.
381
Idem, ibidem.
382
Idem, ibidem.
322 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

“civilização do açúcar”383, com o latifúndio monocultor e agroexportador


propulsado por mão-de-obra escrava africana. Alencastro, no entanto, ob-
serva que em Angola houve um conflito semelhante ao exemplo do Peru,
exceto pelo fato de a Coroa ali bater de frente tanto com o colonato quanto
com os jesuítas (o que não ocorre no Brasil). Angola havia sido concedida
como capitania hereditária em 1571 a Paulo Dias Novais, neto de Bartolo-
meu Dias. O donatário então concede aos colonos e aos jesuítas terras,
nativos (os sobas) e rendas em um sistema em muito semelhante ao das
encomiendas. Esses novos feudatários, denominados amos, cobravam tri-
butos da população local. Os tributos devidos pelos nativos costumavam
ser quitados, na maioria das vezes, sob a forma de escravos que os amos
(jesuítas e capitães) exportavam para a América384.
A Coroa portuguesa, ao constatar que Angola não possuiria minas de
prata, como se supunha, e que o tráfico de escravos emergia como a prin-
cipal e mais lucrativa atividade comercial da região, retoma a capitania
hereditária, extinguindo-a, e um governador depositário da autoridade ré-
gia recebe ordens para extinguir também a instituição dos amos. Capitães
e jesuítas então se amotinam contra o governador Francisco de Almeida
em 1592. Sabendo do motim, Filipe II havia decidido banir a Companhia
de Jesus do território angolano, mas é demovido da ideia pelo cardeal-ar-
quiduque Alberto, vice-rei e inquisidor-geral de Portugal. Ordena, então, a
expulsão e o retorno imediato do superior dos jesuítas em Angola, padre
Barreira. A instituição dos amos, inicialmente restaurada após o motim, é
novamente proibida em 1607 e os sobas tornam-se vassalos da Coroa385.
Alencastro observa: “Embora continue a haver encrencas entre os gover-
nadores, de um lado, e capitães e jesuítas que tentam restabelecer os
privilégios dos amos de outro, os solavancos dos negociantes reinóis e da
Coroa puxam Angola para dentro das correntes atlânticas”386.

383
Cf. SCHWARCZ, Lilia; STARLING, Heloisa. Brasil: uma biografia, op. cit., capítulo 2 (“Tão doce como amarga: a
civilização do açúcar”), pp. 50-78.
384
ALENCASTRO, op. cit., p. 14.
385
Idem, ibidem.
386
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 323

Esta história que avança sobre Angola é fundamental para compre-


ender a posição do Rio de Janeiro na construção do Brasil e de um comércio
cada vez mais intenso no Atlântico Sul. Se as elites locais do mundo ibérico
passaram a ser espezinhadas pela tentativa de centralização régia animada
pela doutrina de Salamanca que propunha uma política inovadora de go-
verno indireto com o reconhecimento das soberanias nativas, a relação de
compromisso que passou a ser pactuada entre elites locais e poder metro-
politano só pôde se estabilizar com um incremento da atividade comercial:
a descoberta de prata em Potosí e a exploração intensificada do tráfico de
escravos africanos em Angola. O Brasil passava a ser visto já como lugar
para plantar cana e exportar açúcar mascavado e não refinado para a Eu-
ropa. Nos dois séculos seguintes se formaria no Rio de Janeiro um potente
mercado no Atlântico Sul que ligaria Rio de Janeiro a Luanda e Buenos
Aires em um eixo comercial acerca do tráfico de escravos africanos e a
prata de Potosí escoada pelo rio da Prata387.
A perspectiva de Alencastro sobre a atuação da Companhia de Jesus
tende a dividi-la em duas facetas principais, a primeira sendo o processo
de transculturação evangélica dos nativos e a segunda o ajustamento dou-
trinário pró-escravista operado pelos jesuítas em Angola e no Brasil. Por
trás delas, no entanto, resta uma atuação global de uma grande instituição
que se torna cada vez mais importante para a Coroa em seu processo de
expansão territorial e comercial: “Decerto, a incumbência da catequese im-
punha aos missionários o exercício de reflexão social voltada ao
entendimento das culturas ultramarinas”388. Pode-se dizer que este tam-
bém é um eco da doutrina de Salamanca: as conquistas eram menos
entendidas em termos de violência e dominação militar e mais em termos
de compreensão da cultura nativa e atuação em seu interior (lembremos
do ius communicationis de F. de Vitoria). Assim, antes da atuação pró-

387
Donde se extraem as curiosas raízes do nome Copacabana, transferido ao Rio de Janeiro por peruleiros que incur-
sionavam pela região dos Andes, entre o Peru e a Bolívia. Ali, às margens do Lago Titicaca, está situada a cidade de
Copacabana, a qual possui, por sua vez, raiz na expressão kota kahuana do dialeto aymara, que significa “vista do
lago”.
388
Idem, p. 157.
324 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

escravista, estava um desejo de conversão de todos ao cristianismo: livres


e escravos. Está-se diante da nunca antes vista tentativa de extensão de
uma rede simbólico-imaginária por toda a superfície do globo, uma con-
versão global.
As missões japonesas seriam, neste sentido, sintomáticas deste desejo
de converter o mundo inteiro, pois lá as dificuldades talvez tenham sido
maiores do que em outros lugares, onde as Coroas poderiam se dar ao luxo
de retomar o poder sobre as colônias e “colonizar os colonizadores”. No
Japão, a Companhia de Jesus entra como que desarmada para realizar as
missões. Vejamos a sua dinâmica e seus principais desdobramentos no ca-
pítulo seguinte, após alguns comentários sobre um tópico especulativo de
caráter teológico e político presente no imaginário português na América
e na Ásia do século XVI: o mito de São Tomé ou Sumé. A circulação do
mito entre o Oriente e o Ocidente pode apontar para uma solução mais
ampla para a colonização católica portuguesa, capaz de situar o nexo entre
o mundo indo-sino-asiático (englobando o Japão em sua extremidade) e a
América portuguesa.
Interlúdio

O mito de São Tomé ou Sumé:


o nexo teológico-político entre o oriente e o ocidente

Antes que os esforços e investimentos portugueses se voltassem para


a implementação de um Governo no Brasil, as atenções destinavam-se ao
Oriente, sobretudo às praças e feitorias da Índia e, pouco depois, de Ma-
laca, considerada a “segunda cabeça do Índico”1. A região dos mares do Sul
ou Insulíndia, compreendendo Malaca, na atual Malásia, as Ilhas Molucas,
na região da atual Indonésia, passaria a despertar uma crescente disputa
entre as potências europeias, neste período principalmente Portugal e Es-
panha.
Da região da Insulíndia, sobretudo das Ilhas Molucas, provinham as
árvores da noz-moscada e do cravo-da-Índia, cobiçadas especiarias que fi-
zeram com que a Coroa portuguesa estrategicamente ordenasse a D.
Francisco de Almeida o “descobrimento” de Malaca, seguindo-se em 1506
instruções para que ali construísse uma fortaleza porque “a posse nestas
coisas dava muita força”2.
Malaca tinha uma localização estratégica, pois funcionava como “pla-
taforma giratória”3 dos produtos que do Índico Ocidental e do golfo de
Bengala rumavam à Insulíndia e ao Extremo Oriente e vice-versa. Esta im-
pressão se concretiza quando se observa que, em julho de 1547, ao chegar
em Malaca vindo das Molucas, é ali que Francisco Xavier encontra o pri-
meiro japonês convertido ao catolicismo de grande importância para a

1
COSTA, J.P.O; RODRIGUES, V.L.G. Construtores do Império. Lisboa: A esfera dos livros, 2017, p. 228.
2
Carta régia de 06 de abril de 1506 para o vice-rei, retirada de COSTA, J.P.O; RODRIGUES, V.L.G, idem, ibidem.
3
COSTA, J.P.O; RODRIGUES, V.L.G. idem, ibidem.
326 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

missão japonesa: Anjirô, batizado Paulo de Santa Fé. De Malaca, partem


para a Índia, onde Anjirô se fará cristão no Colégio de Goa. Aos “36 ou 37
anos”, como nos informa Luís Fróis em sua Historia de Japam4, Anjirô en-
contrava-se vestido como Irmão no Colégio de São Paulo em Goa,
preparando-se juntamente com Xavier para a missão japonesa. Ali tam-
bém chega, via Molucas, o padre espanhol Cosme de Torres, que vinha da
Nova Espanha. Encontrando-se em Goa, esta autêntica comitiva global
partirá novamente a Malaca, de onde sairá no navio de um pirata chinês
gentio que se obrigou junto ao capitão de Malaca, Dom Pedro da Silva da
Gama, filho de Vasco da Gama, em 24 de junho de 1549, rumo ao Japão.
Alguns anos antes deste fato, porém, a região da Insulíndia era o epi-
centro de grandes disputas entre portugueses, espanhóis e os poderes
locais, como o sultanato de Malaca. Por volta de 1520, com a chegada de
Fernão de Magalhães às Molucas, a serviço da Coroa de Castela, e a inicia-
tiva de Carlos I de colonizar a região, dada a sua importância, terá início a
chamada “Questão das Molucas”5. Será necessário rediscutir o Tratado de
Tordesilhas em sua faceta Oriental, com o chamado Tratado de Saragoça,
que estipulou, mediante pagamento da Coroa portuguesa de 350 mil du-
cados6 de ouro, a continuação do meridiano de Tordesilhas no hemisfério
oposto, a 297,5 léguas a leste das Ilhas Molucas. Especula-se que a posição
espanhola no Tratado de Saragoça se deva a três grandes motivos: i) a
maior facilidade portuguesa de escoamento das especiarias em rotas co-
merciais já praticadas havia alguns anos, ligando as praças asiáticas a
Lisboa, aliada à inviabilidade econômica de exploração do comércio de es-
peciarias via Estreito de Magalhães (a rota do Galeão de Manila ligando as
Filipinas à Nova Espanha, indo de Manila a Acapulco, teria início somente
em 1565); ii) a necessidade de fundos, por parte de Castela, para financiar

4
FRÓIS, Luís. Historia de Japam, volume I (1549-1564). Ed. anotada por José Wicki S. J. Lisboa: Biblioteca Nacional
de Lisboa, 1976.
5
“A expedição de Magalhães permitiu ganhar uma melhor noção do oceano Pacífico e abriu um novo contencioso
luso-castelhano a propósito da posse das Molucas”. COSTA, J.P.O et. al. História da expansão e do Império português.
Lisboa: A esfera dos livros, 2014, p. 133.
6
COSTA, J.P.O et. al. História da expansão e do Império português, ibidem.
Pedro Brocco | 327

as guerras contra a França de Francisco I; iii) por fim, ao casamento entre


Carlos I e Isabel de Portugal, filha do rei D. Manuel, em 1526, estimulando
uma aliança entre as potências ibéricas.
Com o Tratado de Saragoça, assinado 1529, toda a Índia, a Insulíndia
e a maior parte do Extremo Oriente ficariam nos limites atribuídos à Coroa
portuguesa.
Como afirma Charles Boxer, a característica mais espantosa do im-
pério marítimo português, estabelecido no século XVI, foi sua extrema
dispersão7. Cobria uma parte cada vez mais significativa do continente
americano, a África, a Índia, a Insulíndia e o Extremo Oriente, circulando
o globo terrestre ao buscar capitalizar a Coroa portuguesa. Para calcar po-
liticamente suas possessões e praças ultramarinas, Portugal aliou-se
visceralmente à Companhia de Jesus, que forneceu armas ideológicas e re-
tóricas orientadas pelo planejamento colonial de uma conversão global ao
catolicismo de corte tridentino, em uma dinâmica ao mesmo tempo colo-
nial, econômica, política e teológica contrarreformista.
Antes, porém, construiu-se uma verdadeira mitologia portuguesa e
depois luso-brasileira e americana ao redor do mito de São Tomé, apóstolo
direto de Cristo que teria chegado à Índia e à costa do Ceilão em seu per-
curso evangelizador. A passagem de São Tomé pelo mundo asiático e
indiano indiciaria o saber desses povos em relação à queda adâmica e sua
remição pela graça da vinda de Cristo ao mundo. Seriam, assim, povos
dispersos, filhos de Adão, que, se não se lembravam da Boa Nova, era por
motivo de esquecimento e corrupções que deveriam ser desbastadas e re-
orientadas para a verdade cristã. Tal narrativa vinha a calhar em
ambientes sociais fortemente dominados por castas ou por influências
emanadas da tradição islâmica, que passariam a ser utilizadas como figura
privilegiada do esquecimento da verdade anteriormente trazida por São
Tomé.
Assim, Portugal utilizou-se de uma narrativa cultivada desde a Idade
Média e os primeiros contatos Europeus com o Oriente e com a Índia,

7
BOXER, Charles R. O império marítimo português 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 66.
328 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

quando se soube que representantes da Igreja ortodoxa haviam chegado à


península indiana e também quando se começou a falar na possibilidade
da passagem de São Tomé8 pela região. A apresentação de sinais de São
Tomé começou a surgir para reforçar a narrativa: marcas de pegadas no
chão e nas pedras; aparecimento de relicários e entalhes de madeira que
seriam da própria cruz de Cristo, levados para a Índia por Tomé; e logo
sua possível sepultura na costa do Ceilão passaria a ser lugar de adoração
e peregrinação.
Diferentemente do mundo castelhano, que se orientou, desde as pri-
meiras cartas de Colombo, por questões imaginárias relativas à ideia de
Paraíso terreal, de fonte da juventude, de Amazonas e seus tesouros, do
Rei branco e suas montanhas de ouro, o mundo português se nutriu mais
modestamente e de forma especial do imaginário em torno da mitologia
de São Tomé e de sua passagem pelo mundo9.
Com a chegada lusa ao Brasil, a narrativa em torno de Tomé torna-
se mais interessante na medida em que também aí se começa a ventilar a
possibilidade de sua passagem por terras brasileiras.
Relatos de viajantes dando conta de pegadas no interior do continente
e da presença de um deus entre os índios chamado de Sumé começam a
circular e a dar contorno a um mito globalista acerca da figura de São
Tomé. Tomando a narrativa como verdadeira para justificar a presença
colonizadora, chegava-se à perspectiva de que todos os povos entre a Índia
e a América pudessem ter tido um contato com a Boa Nova por intermédio
de São Tomé10. Disto deriva que poderiam ser considerados, ao lado dos

8
A referência a São Tomé no Oriente Médio e Ásia possuiu fortes raízes no cristianismo primitivo. Com a descoberta
da Biblioteca Nag Hammadi, em 1945, no Alto Egito, constante de treze códices de papiro embrulhados em couro
dentro de um jarro de barro enterrado, formando uma coleção de textos do cristianismo primitivo que vai da funda-
ção até o Primeiro Concílio de Niceia (325 d. C.), havia entre os escritos um Evangelho de Tomé. Cf. GREENBLATT,
Stephen. Ascensão e queda de Adão e Eva. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 67.
9
Esta é a hipótese, em linhas gerais, de Sérgio Buarque de Holanda em Visão do Paraíso.
10
Tal perspectiva possui continuidade com a literatura produzida já no século XX por missionários cristãos, não
necessariamente provenientes da Igreja Católica, como o canadense Don Richardson, que publicou nos anos 1980 O
fator Melquisedeque, também justificando a missionação e a presença do Deus cristão em todas as culturas do mundo.
Sobre Tomé, Richardson escreve: “Tomé, diz a tradição, permitiu que a última linha da Grande Comissão o levasse
à ‘Índia’. Naqueles dias, a palavra ‘Índia’ significava tudo o que estava a leste da Síria; porém a evidência indica que
Tomé pode ter alcançado até a região de Madras, que fica na extremidade sul da Índia propriamente dita. Várias
igrejas muito antigas nessa região se dão o nome de Mar Toma. O nome Toma talvez seja derivado de Tomé”. Cf.
Pedro Brocco | 329

europeus, filhos de Adão, esquecidos e perdidos, à espera da recondução


ao redil cristão, em um esforçor de rememoramento da verdade já esque-
cida. Por outro lado, se insistiam em práticas e em organizações sociais
contrárias à forma de vida cristã, isto não se dava exatamente por inocên-
cia, mas por serem apóstatas, algo que poderia até justificar a guerra
justa11.
A especulação sobre a origem dos povos americanos, por intermédio
de Nóbrega, liga-se ao mito de São Tomé e aponta para a tradição judaico-
cristã de Noé. Como observa Manuela Carneiro da Cunha:

Porque a humanidade é uma só, os habitantes do Novo Mundo descendem


necessariamente de Adão e Eva, e portanto de um dos filhos de Noé, provavel-
mente o maldito, Cam, aquele que desnudou seu pai – razão, especula
Nóbrega, da nudez dos índios –; como camitas e descendentes de Noé, os Tupi
da costa guardariam aliás uma vaga lembrança do dilúvio – “sabem do dilúvio
de Noé, bem que não conforme a verdadeira história” (...) suficiente no en-
tanto, para atestar sua origem. E por que não poderiam ter ficado à margem
da Boa Nova, teriam sido visitados pelo apóstolo São Tomé, que seria lem-
brado (e cujas pegadas Nóbrega teria ido ver em 1549, na Bahia, gravadas na
pedra) sob o nome levemente deturpado de Sumé ou Zomé (...). Há aí, clara-
mente, toda uma problemática de confluência, em que a mitologia tupi de
Sumé e do dilúvio é interpretada como vestígio, confuso e distorcido, de uma
origem e de um conhecimento comuns à humanidade.12

Nóbrega demonstra certa obsessão com o tópico de São Tomé, ao


chegar à Bahia, em 1549. Das cinco cartas escritas em seu primeiro ano em

RICHARDSON, Don. O fator Melquisedeque: o testemunho de Deus nas culturas por todo o mundo. São Paulo: Vida
Nova, 2008, p. 228.
11
“(...) o próprio resgate e escravidão dos índios americanos, assim como dos negros africanos, que os portugueses,
mesmo os jesuítas portugueses, foram naturalmente menos solícitos em combater com razões teológicas do que
numerosos autores castelhanos, a começar por Vitória e Las Casas, poderiam ser praticados, nessas condições, sem
excessivo escrúpulo. Pois uma vez admitida a pregação universal do Evangelho, tenderiam por força a alargar-se as
possibilidades de guerra justa contra alguns povos primitivos, equiparados, agora, não a simples gentios, ignorantes
da verdade revelada, mas aos apóstatas”. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no
descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 201.
12
CUNHA, Manuela Carneiro da. “Imagens de Índios no Brasil: O Século XVI”. Estudos Avançados, v. 4 n. 10. São
Paulo, USP, 1990.
330 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

terras brasileiras, três mencionam São Tomé. Na primeira delas, endere-


çada a Simão Rodrigues, escreve: “tambem me contou pessoa fidedigna
que as raizes que cá se faz o pão, que S. Thomé as deu, porque cá não
tinham pão nenhum. E isto se sabe da fama que anda entre elles, quia
patres eorum nuntiaverunt eis. Estão d’aqui perto umas pisadas figuradas
em uma rocha, que todos dizem serem suas”13.
Em carta posterior, endereçada a seu mestre em Coimbra, Dr. Na-
varro, Nóbrega escreve:

Sabem do dilúvio de Noé, bem que não confirme a verdadeira historia; pois
dizem que todos morreram, excepto uma velha que escapou em uma arvore.
Têm noticia egualmente de S. Thomé e de um seu companheiro e mostram
certos vestigios em uma rocha, que dizem ser delles, e outros signaes em S.
Vicente, que é no fim desta costa. Delle contam que lhes dera os alimentos que
ainda hoje usam, que são raizes e hervas e com isso vivem bem.14

O termo “Zomé” aparece somente na carta posterior, enviada prova-


velmente aos padres e irmãos do Colégio de Coimbra em 1549. Nela,
Nóbrega articula o mito de São Tomé ao termo utilizado pelos índios:

Dizem elles que S. Thomé, a quem elles chamam de Zomé, passou por aqui, e
isto lhes ficou por dito de seus passados e que suas pisadas estão signaladas
juncto de um rio; as quaes eu fui ver por mais certeza da verdade e vi com os
proprios olhos, quatro pisadas mui signaladas com seus dedos, as quaes algu-
mas vezes cobre o rio quando enche; dizem também que quando deixou estas
pisadas ia fugindo dos Indios, que o queriam frechar, e chegando ali se lhe
abrira o rio e passara por meio dele a outra parte sem se molhar, e dalli foi
para a India.15

Nesta terceira e última carta de 1549 mencionando São Tomé, como


que fechando os fundamentos catequéticos-teológicos-geopolíticos do
mundo português quinhentista, Nóbrega ao mesmo tempo reconhece a

13
NÓBREGA, Manuel da. Cartas do Brasil, op. cit., p. 78. Carta a Simão Rodrigues, Bahia, 1549.
14
Idem, p. 91. Carta ao Dr. Navarro, seu mestre em Coimbra, Salvador, 1549.
15
Idem, p. 101. Informação das terras do Brasil, 1549.
Pedro Brocco | 331

passagem de São Tomé pelas terras brasileiras com um significante nativo


próprio e dá notícia de sua ida do Brasil diretamente para a Índia de acordo
com uma mitologia local. Esta mitologia local estava curiosamente articu-
lada com outras histórias do mesmo período acerca de São Tomé e a
extensão do território ultramarino português. É revelador que Nóbrega
articule a ida de São Tomé para a Índia “sem se molhar” e depois de atra-
vessar um rio, insinuando que Tomé tenha tomado a direção rumo ao
interior do continente. Teria o santo chegado à Índia por terra?
Antes da criação da Companhia de Jesus, já se pode ler na Nova Ga-
zeta Alemã, de 1515, notícias sobre São Tomé no Brasil.
Trata-se de notícia de uma expedição de dois navios enviados pelo rei
de Portugal para reconhecer e descrever a terra do Brasil. A análise do
documento é interessante pois fica clara a especulação sobre uma possível
aproximação geográfica de Brasil e Índia articulada ao mito de São Tomé:

O piloto, isto é, o comandante ou capitão, que navegou neste navio, é meu


optimo amigo. Elle é tambem o mais afamado (piloto) que tem o rei de Portu-
gal. Esteve tambem em algumas viagens na India e diz-me e opina que desse
Cabo do Brasil, isto é, um começo da terra do Brasil, não ha mais de seiscentas
leguas para Malacca. Pensa tambem que em curto tempo com tal viagio, isto
é, caminho ou viagem, (será possível) ir e voltar de Lisboa a Malacca, o que
trará ao rei de Portugal, com a especiaria, grande auxilio. Acham também que
a terra do Brasil se extende até Malacca (...).
Nessa mesma costa ou terra há ainda memoria de São Thomé. Quizeram tam-
bem mostrar aos Portuguezes as pegadas no interior do paiz. Mostram
igualmente a cruz que ha terra a dentro. E quando falam de São Thomé dizem
que ele é o deus pequeno. Pois ha outro deus que é maior. É bem crivel que
tenham lembrança de São Thomé, pois é sabido que São Thomé realmente
está por traz de Malacca na costa de Siramatl no golfo de Ceylão.16

O mito de São Tomé é, essecialmente, uma tentativa intelectual e es-


peculativa de ligar o Brasil à Ásia e ambos os continentes à cosmologia
cristã, representada por Portugal, o qual, a partir do indício presente na

16
A Nova Gazeta da Terra do Brasil (Newen Zeytung auss Presillg Landt), tradução portuguesa e reprodução em fac-
símile. Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, volume XXXIII, 1911.
332 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Nova Gazeta Alemã, por volta de 1515 acreditava na possibilidade de liga-


ção por terra entre Brasil e Malaca.
Esta perspectiva americano-asiática do mito de São Tomé parece-nos
o leitmotiv original de sua presença nos discursos portugueses do século
XVI. Seria interessante aqui fazer a referência ao importante trabalho de
Sérgio Buarque de Holanda sobre as repercussões dos mitos na América
colonial em Visão do Paraíso.
Sérgio Buarque, com efeito, refere-se ao mito de Sumé como o único
mito luso-brasileiro do período colonial, ao afirmar que “pode-se, quando
muito, apontar um mito da conquista cuja difusão no continente esteve a
cargo dos portugueses e, em contraste com os demais, foi do Brasil que se
expandiu para o Paraguai, o Peru e o Prata”, para logo depois observar que
“já era imemorial nas partes do Extremo Oriente, quando atingidas pelas
naus de Vasco da Gama e seus sucessores lusitanos, a lenda que associa os
cristãos da Índia, ramo dos nestorianos, à prédica de São Tomé”17.
Da conexão de São Tomé com o Oriente há já notícia em escrito de
Gregório de Tours, do século VI, das comunidades cristãs do Oriente ou os
“cristãos de São Tomé”, notícia que chega muito cedo à Inglaterra, cujo rei
envia, em 883, embaixada com muitos presentes, tendo à frente o bispo
Sigelmus de Sheborne18.
Os lusitanos seriam, neste sentido, construtores e fiadores de uma
espécie de nexo especulativo entre os “cristãos de São Tomé” do Oriente e
os índios brasileiros e de modo geral americanos, como bem observa Ho-
landa, em um mito veiculado e ventilado pelos mesmos portugueses a
partir do Brasil.
A amplificação do sentido cristão através da narrativa do mito de São
Tomé simplifica e globaliza uma visão de mundo e uma ideologia a res-
peito do Novo Mundo e dos povos ignotos submetidos às contingências das

17
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 172.
18
Idem, ibidem.
Pedro Brocco | 333

explorações ultramarinas que a Igreja ia, ela também, adaptando estrutu-


ralmente de acordo com a imagem de mundo que se descortinava. Mas a
circulação e difusão do mito tomista supre de sentidos a prática coloniza-
dora, mormente a que se voltava à conversão, de modo mais ágil e talvez
eficaz, nos primeiros anos de contato, diante de uma mais lenta e gradual
mudança da ortodoxia católica. Neste sentido, Sérgio Buarque de Holanda
define a confluência do mito de São Tomé e o de Sumé entre os nativos
brasileiros como uma “solução”:

(...) enquanto a Igreja se via impelida a uma ampla revisão de suas antigas
posições, buscando renovar a própria estrutura ideológica de acordo com a
imagem do mundo que se começava, pela primeira vez, a descortinar, a sim-
ples tentativa de identificação de um herói mítico ancestral dos índios do Brasil
com o apóstolo das Índias deveria simplificar as dúvidas, fornecendo uma so-
lução concreta e “histórica” para o problema. Solução coincidente, aliás, com
as teses a que permaneciam fiéis muitos dos mais ilustres teólogos da Con-
trarreforma, como Belarmino, ainda aferrados à ideia da universal pregação
dos apóstolos, que teria chegado às remotíssimas ilhas do Mar Oceano onde,
perdida mais tarde a lembrança delas, ia sendo reavivada agora pelos novos
apóstolos.19

Difundido desde o Brasil com precedentes colhidos da Índia, a narra-


tiva em torno do apóstolo Tomé serviu ideologicamente para interligar os
domínios portugueses e castelhanos no Novo Mundo, sobrepondo-se às
rotas indígenas que se ramificavam pelo interior do continente americano.
A mais famosa dessas rotas, que ia do litoral sul do Brasil, com entradas a
partir de São Vicente e Cananeia, até o Paraguai e de lá, dizia-se, até o Peru,
conhecida pelos locais como Peabiru, ganhou o nome de Caminho de São
Tomé, ou Pay Zumé, como era conhecido o personagem na mitologia pe-
ruana, associado ao Sumé dos índios da costa do Brasil. A figura do herói
da mitologia indígena intercalou-se e por fim fundiu-se à do herói da mi-
tologia cristã, de modo que por todo o continente americano se ouviram

19
HOLANDA, Sérgio Buarque de. op. cit., p. 201.
334 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

variações fonéticas, possivelmente já existentes, entre os vocábulos Tomé


e Sumé: Pay Zumé, Pay Tumé, Zomé.
Cruzes de uma madeira encontrada no Brasil, chamada pelos natu-
rais de jacarandá e pelos espanhóis de pau-santo, com resiliência e peso
que lembravam o ébano, espalhavam-se pelo continente americano. É o
caso, citado por Holanda, da cruz de Carabuco, aldeia situada nas imedia-
ções do lago Titicaca. Os nativos e os padres concentravam-se em esmiuçar
as origens da cruz e da pesada madeira de que era feita: “teria sido trans-
portada de muito longe, e que a não fez em Carabuco, pois toda aquela
comarca é falta não só de madeira de proveito para qualquer lavor, mas
até mesmo de paus para lenha comum”20.
A utilização de São Tomé como solução de aproximação especulativa
entre os povos atinge seu máximo alcance com Francisco Xavier, que busca
encontrar o herói apóstolo na China:

De Malaca, vão todos os anos muitos navios de portugueses aos portos da


China. Eu tenho encomendado a muitos, para que saibam dessa gente, pe-
dindo-lhes que se informem muito das cerimónias e costumes que entre eles
se guardam, para por elas se poder saber se são cristãos ou judeus. Muitos
dizem que S. Tomé Apóstolo foi à China e que fez muitos cristãos; e que a
Igreja da Grécia, antes de os portugueses senhorearem a Índia, mandava bis-
pos para que ensinassem e baptizassem os cristãos que S. Tomé e seus
discípulos nessas partes fizeram. Um destes bispos disse, quando os portugue-
ses chegaram à Índia, que, depois que veio da sua terra à Índia, ouviu dizer
aos bispos que na Índia achou, que S. Tomé foi à China e que fez cristãos.21

Com a ideia da passagem de São Tomé pela China, Francisco Xavier


aludiria ao fato de que a memória de São Tomé poderia ter chegado ao
Japão, ou ao menos pudesse funcionar como denominador cultural co-
mum em relação à missão japonesa.

20
Idem, p. 191.
21
XAVIER, São Francisco. Obras completas. Braga: Editorial A. O; São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 277. Trata-se
da carta de 10 de maio de 1546 escrita aos companheiros da Europa.
Pedro Brocco | 335

Poucos anos depois, Xavier escreveria, desde o Japão, acerca das con-
fluências culturais e ideológicas das tradições sino-japonesas, seja com
respeito à forma da escrita, seja em relação aos costumes e à religião, afir-
mando claramente que, ao menos quanto ao budismo, tratou-se de
formação cultural transplantada desde a China. Ao morrer às portas da
China fechada então aos portugueses, Francisco Xavier indiciava um pla-
nejamento de, iniciada e consolidada a missão chinesa, conseguir, de
forma mais eficaz e desde a raiz, converter o Japão.
No entanto, chama atenção, na busca dos rastros de São Tomé na
Ásia, a falta de menção à passagem do herói apóstolo pelo Japão, como
ocorrera em relação à Índia, ao Brasil e mesmo à China.
Pode-se arriscar uma talvez precipitada conclusão a partir das epís-
tolas de Xavier: quando se analisa o aparecimento dos “nativos” nas cartas
jesuíticas brasileiras, sobretudo as aqui analisadas de Nóbrega, e japone-
sas, em por exemplo Xavier e nos escritos de Fróis, percebe-se que no
Japão o nativo funciona como um personagem do relato, com nome e iden-
tidade pessoal, atributos e descrições de traços mais ou menos bem
definidos.
Ora, a missão japonesa tem sua inauguração com a comitiva liderada
por Xavier, da qual fazia parte um importante personagem da narrativa
jesuíta acerca do Japão: Anjirô ou Paulo de Santa Fé, um japonês conver-
tido ao cristianismo que dominava os fundamentos da língua portuguesa,
tendo já escrito uma missiva para Inácio de Loyola, enviada a Roma22. Con-
vertido no circuito que vai de Malaca a Goa, Paulo de Santa Fé funciona
como personagem e também como uma espécie de modelo ou paradigma
da capacidade de conversão dos nativos japoneses. Como expressa Xavier
em carta escrita de Malaca, dois dias antes da partida para o Japão, ou seja,

22
ANJIRÔ. Carta de Paulo Iapão (que antes de se converter à nossa santa fé se chamava Angéro) para o padre M.
Inacio de Loyola, fundador da Companhia de IESV em Roma, & mais padres & irmãos da mesma Companhia, escrita
em Goa, a 29 de Novembro de 1548. In Cartas que os padres e Irmãos da Companhia de Iesus escreverão dos Reynos
de Iapão & China aos da mesma Companhia da India & Europa des do anno de 1549 ate o de 1580, Primeiro tomo.
Évora: Manoel de Lyra, 1598, pp. 3-4.
336 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

22 de junho de 1549, já ventilando certas narrativas ouvidas de Paulo de


Santa Fé e, portanto, já “reverberando” sua voz no próprio discurso:

Uma coisa me disse Paulo de Santa Fé, japão, nosso companheiro, de que fico
muito consolado: e é que – me disse – no mosteiro de sua terra, onde há muitos
frades e Estudo, entre eles têm um exercício de meditar, o qual é este: o que
tem cargo da casa, superior deles, que é o mais letrado, chama-os a todos e
faz-lhes uma prática à maneira de pregação; e, então, diz a cada um deles que
medite pelo espaço de uma hora. Sobre este ponto: quando um homem está
expirando e já não pode falar, quando a alma se despede do corpo, se então
em a tal separação e apartamento da alma pudesse falar, que coisas diria a
alma ao corpo? E assim por conseguinte, se os que estão no purgatório ou
inferno a esta vida tornassem, que diriam? Depois, passada a hora, pergunta
o superior de casa a cada um deles o que, na tal hora que meditou, sentiu: se
algumas coisas boas diz, gaba-o; e, pelo contrário, repreende-o quando diz coi-
sas que não são dignas de memória. Dizem que estes Padres pregam ao povo,
de quinze em quinze dias, e acode muita gente às suas pregações, assim ho-
mens como mulheres; e que choram nas pregações, principalmente as
mulheres; e que, o que prega, tem pintado o inferno e seus tormentos e mostra
aquelas figuras ao povo. Isto me contou Paulo de Santa Fé.23

Aparece de forma clara a tópica da transmissão da voz nativa (“me


disse”): de um discurso, de práticas curiosas e ao mesmo tempo muito
familiares e próximas aos europeus: “há muitos frades e Estudo”; “estes
Padres pregam ao povo”; e também uma espécie de maravilhamento cu-
rioso que se expressa pelas perguntas a respeito de aspectos envolvendo
as meditações zen budistas: é como se a especulação se deslocasse do ponto
de vista do saber cristão-europeu sobre o outro, para o ponto de vista re-
flexivo e oposto do eu-mesmo em relação ao saber do outro.
Neste sentido, se São Tomé figurava como uma tópica no discurso
português e jesuíta de modo geral para que especulativamente por meio
dele se aproximassem povos e regiões do orbe terrestre, pela via do su-
posto contato com a Boa Nova cristã, com as narrativas japonesas a

23
XAVIER, São Francisco. op. cit., p. 489. Carta enviada à Companhia de Jesus na Europa, Malaca, 22 de junho de
1549.
Pedro Brocco | 337

aproximação se dá pela própria realidade e pela comparação de estruturas


normativas e comportamentais: o outro distante começa a adquirir con-
tornos de um próximo que, se pode ser descrito de forma pitoresca e
invertida, não deixa por isso de ser destinatário de curiosidade e admira-
ção: “Paulo de Santa Fé, japão, nosso companheiro”. O fato de Paulo de
Santa Fé ter sido recebido como companheiro e ter iniciado a missão japo-
nesa ao lado dos inacianos indica outra abordagem com relação ao gentio
japonês, se comparado, por exemplo, aos nativos do Brasil.
O próprio Xavier não esconde sua grande admiração pelos japoneses
em sua extensa primeira carta escrita desde o Japão. Após narrar a turbu-
lenta viagem de Malaca ao Japão, Xavier faz elogios aos costumes da
população, observa estruturas semelhantes às da Europa: em relação ao
campo religioso, observa a existência dos bonzos, “que andam à maneira
de frades, vestidos de hábitos pardos, todos rapados”24, relata diálogos
com os sábios locais, como o caso de um sábio chamado Ninxit que se-
gundo Xavier “é entre eles como bispo”25, e depois de observar que a ilha
do Japão está muito disposta para “nela se acrescentar muito nossa santa
fé”, pede aos companheiros que se empenhem no aprendizado da língua
japonesa, única maneira de lograr o sucesso da missão: “agora, compete-
nos ser como meninos, em aprender a língua”26.
No entanto, Xavier explicita em suas cartas que a missão japonesa
seria talvez a mais difícil para os inacianos, tanto por seu isolamento
quanto pelos rigores do ambiente: “Os Padres que vierem, venham bem
providos de vestidos de panos de Portugal e de calçado, porque aqui mor-
remos de frio”27. Em relação à dureza do clima, Xavier em carta posterior,
escrita a Inácio de Loyola, recomendaria o envio de missionários habitua-
dos ao frio, talvez nórdicos28.

24
Idem, p. 511. Carta escrita aos companheiros residentes em Goa, Cangoxima, 5 de novembro de 1549.
25
Idem, p. 513.
26
Idem, p. 522.
27
Idem, p. 538. Cata escrita ao padre Paulo Camerino, Cangoxima, 5 de novembro de 1549.
28
Idem, p. 578 e ss. Carta escrita ao padre Inácio de Loyola (Roma), Cochim, 29 de janeiro de 1552.
338 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Estava claro também que os inacianos não poderiam contar com in-
cursões militares da Coroa portuguesa para auxiliar os esforços
missionários, como passou a acontecer no Brasil.
Alcir Pécora observa que Nóbrega passou a se aproximar de Sepúl-
veda em relação ao método de ação missionária, adotando o medo à
doutrina para que os índios se apartassem de costumes considerados
maus. Ao fazer observações sobre um escrito do jesuíta José de Acosta, De
procuranda indorum salute, de 1576, Pécora identifica três métodos de
ação missionária: o primeiro deles seria o apostólico ou orientado pelo
amor, aproximando-se dos primeiros apóstolos de Cristo, segundo o qual
a pregação apostólica se faz sem qualquer uso de aparato militar. O se-
gundo método referido por Acosta se restringiria aos povos já sujeitos aos
príncipes cristãos, sendo útil para a “colonização” de territórios já ocupa-
dos e não para a “exploração” de novos territórios e nações. Neste método
seria decisivo não se opor à jurisdição civil dos príncipes. O terceiro mé-
todo de evangelizar, anunciado por Acosta como um “novo método”
adaptado a um “novo gênero de homens” e já praticado por Nóbrega no
Brasil, propõe que a pregação a novas nações seja acompanhada de tropas
de soldados para defesa da vida dos missionários, “dados os costumes bru-
tais dos índios”29. Uma união de soldados e missionários que formaria uma
solução híbrida de evangelização, religiosa e secular, envolvendo a sujeição
política como pressuposto e reforço da evangelização.
A solução híbrida de evangelização aplicada no Brasil teria muitas di-
ficuldades no caso do Japão, em razão da distância do arquipélago e do
investimento que a Coroa portuguesa deveria realizar em tempos de crise
econômica e diminuição de seu poder geopolítico.
Assim, a ausência da menção da passagem de São Tomé pelo arqui-
pélago japonês poderia indicar uma manifesta dificuldade de extensão da

29
PÉCORA, Alcir. “Cartas à Segunda Escolástica”, in NOVAES, Adauto (org.). A outra margem do Ocidente. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999, p. 404.
Pedro Brocco | 339

influência portuguesa e ao mesmo tempo o reconhecimento de um con-


texto distinto de outros lugares de colonização portuguesa, caso da Índia,
Malaca e Brasil.
Francisco Xavier escreve em carta de 1552 que não conseguiu encon-
trar indícios de que os japoneses tivessem notícia de Deus e de Cristo:

Muito trabalhei no Japão para saber se em algum tempo tiveram notícia de


Deus e de Cristo; mas, segundo as suas escrituras e dito do povo, achei que
nunca tiveram notícia de Deus. Em Cangoxima, onde estivemos um ano, acha-
mos que o duque da terra e os seus parentes tinham por armas uma cruz
branca, mas não era por conhecimento que de Cristo Nosso Senhor tivessem.30

Uma possível razão, teológica, para este fato, talvez se deva também
à exterioridade dos japoneses em relação ao laço camita, que ligaria os
africanos, os indianos e os nativos brasileiros, todos chamados de forma
mais ou menos homogênea de negros (no caso dos brasileiros, “negros da
terra”). Supôs-se que os índios brasileiros tivessem notícia de São Tomé e
também do dilúvio, e de que pudessem ser descendentes de Cam31, como
observa Manuela Carneiro da Cunha:

Com o Novo Mundo, descobre-se também uma Nova Humanidade. Resta o


problema crucial de inseri-la na economia divina o que implica inseri-la na
genealogia dos povos. Para isso, não há outra solução senão a da continuidade,
senão abrir-lhe um espaço na cosmologia européia. Por que a humanidade é
uma só, os habitantes do Novo Mundo descendem necessariamente de Adão e
Eva, e portanto de um dos filhos de Noé, provavelmente do maldito, Cam,
aquele que desnudou seu pai – razão, especula Nóbrega, da nudez dos índios
–; como camitas e descendentes de Noé, os Tupi da costa guardariam aliás
uma vaga lembrança do dilúvio (...).32

30
XAVIER, op. cit., p. 569. Carta escrita aos companheiros da Europa, Cochim, 29 de janeiro de 1552.
31
Cam, um dos filhos de Noé, ao deparar-se com a nudez de seu pai embriagado e contado o ocorrido a seus irmãos,
ao invés de guardar o pudor e cobrir o pai, é por ele amaldiçoado a ser “servo dos servos” a seus irmãos. A imagem
de Cam foi invocada pelos defensores do racismo e da escravidão de negros africanos, sob a alegação de que descen-
diam de Cam. Cam teria se mudado para o sudeste da África e sido o patriarca de importantes nações, entre elas os
povos cananeus, Núbia, no vale do Nilo, envolvendo egípcios, etíopes e sudaneses, Sabá e Nimrod, estando ligado aos
povos de pele escura. No Brasil, Cam foi evocado para justificar a escravidão e aproximar os índios aos africanos
enquanto “descendentes da maldição de Cam”.
32
CUNHA, Manuela Carneiro, op. cit., p. 102.
340 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

Uma constante pode ser percebida entre o aparecimento do laço ca-


mita e o aparecimento de São Tomé: se Cam foi biblicamente reconhecido
como patriarca das nações do sudeste africano e de regiões do Oriente Mé-
dio englobando cananeus e filisteus, por exemplo, é dessa região de onde
parte o mito de São Tomé em direção à Índia.
Como dito acima, as pesquisas arqueológicas que noticiaram o en-
contro, no Alto Egito, de códices de papiro em copta formando um
conjunto de escritos gnósticos do cristianismo primitivo33 com a desco-
berta do Evangelho de Tomé podem sugerir que daquela região se
construiu uma tradição ao redor do apóstolo que pode ter se irradiado pelo
Oriente Médio e chegado à Índia, onde foi recepcionada e impulsionada
pelos portugueses na direção do Novo Mundo.
Se a população japonesa não teve notícia de Deus e de Cristo, a estra-
tégia de Xavier para inseri-la na economia divina e na genealogia dos
povos, ao contrário da solução adotada no Brasil por Nóbrega, isto é, de
suplementação de uma língua da falta falada por um ser imperfeito e in-
cônscio de sua participação na Causa Primeira, foi a de analogia com a
civilização europeia. O Japão, assim, não faria parte do circuito camita, no
sentido dos povos que descenderiam de Cam, o filho maldito de Noé. Fran-
cisco Xavier, ao descrever os chineses em carta para Inácio de Loyola,
aproximando-os dos japoneses, os descreverá como “engenhosos”, “dados
a estudos” e “brancos”: “Estes chineses são muito engenhosos e dados a
estudos, principalmente às leis humanas sobre a governação da república:
são muito desejosos de saber. É gente branca, sem barba, os olhos muito
pequenos”34. Em contraposição ao valor semântico de “negro”35, aplicado

33
Cf. GREENBLATT, op. cit. Especula-se que tais escritos pudessem ter pertencido ao mosteiro de São Pacômio,
considerado o fundador do monasticismo cenobita.
34
XAVIER, op. cit., p. 583. Carta escrita a Inácio de Loyola, Cochim, 29 de janeiro de 1552.
35
João Adolfo Hansen observa que a escolha léxica neste sentido não é neutra e implica categorias teológico-políticas
do agente: “Em outras palavras, a seleção léxica e sua combinatória no discurso indicam para o destinatário os cam-
pos semânticos do agente, como paradigmas institucionais interpretantes dos discursos locais. No caso de Nóbrega,
o uso constante de um termo como “negro” para referir índios e africanos, por exemplo, é decorrência do pensamento
analógico operante em sua teologia-política, que constitui em uns e outros a mesma carência de Bem, como “genti-
lidade” herdeira do pecado de Cam e, ainda, de um critério jurídico, que para uns e outros postula o “naturalmente
escravo”, como bárbaros interpretados através da Política aristotélica. In HANSEN, João Adolfo. “O nu e a luz: cartas
Pedro Brocco | 341

aos nativos da Índia, da África e do Brasil, Xavier denotava com sua obser-
vação a aproximação dos provenientes do ambiente sino-japonês aos
europeus, assim como Valignano se esforçará por mostrar, anos depois,
em relação aos japoneses, definindo-os como “um povo nobre e racio-
nal”36. No entanto, diante a impossibilidade de abarcá-los em uma
genealogia comum, os jesuítas se verão diante de uma espessa barreira:
tanto linguística quanto cultural, religiosa e política.
A solução talvez seja fornecida pela obra de Luís Fróis, tanto em sua
Historia de Japam quanto em seu Tratado das contradições e diferenças
entre a Europa e o Japão, isto é, uma aproximação invertida em um espe-
lhamento de semelhança e diferença, tornando os japoneses na mesma
medida avessos e próximos.
Incorporando e tornando inteligíveis os japoneses e seus costumes e
crenças a partir de descrições minuciosas dos mesmos, Fróis operaria a
reflexão sobre o “estatuto do alheio”37 e do dessemelhante; não, porém,
utilizando categorias teológicas como fez Nóbrega ao especular sobre a nu-
dez dos índios como efeito de sua descendência de Cam, mas descrevendo
sua estrutura social e comportamental como que a partir de dentro, bem

jesuíticas do Brasil. Nóbrega – 1549-1558”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 38, pp. 87-119,
1995.
36
MORAN, J. F. The Japanese and the Jesuits: Alessandro Valignano in sixteenth-century Japan. London/New York:
Routledge, 1993, p. 192.
37
Cf. CUNHA, Manuela Carneiro, op. cit., p. 103.
342 | Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas no Brasil e no Japão (1549-1587)

como narrando uma história com personagens e vozes nativas, pertencen-


tes ao “campo do dessemelhante”38, as quais, no entanto, contrariamente
ao nativo do Brasil, cuja alma aparece como falta39, falam40.

38
Citando novamente o estudo seminal de Hansen: “(...) ao mesmo tempo que a maravilha ou a fantasia das descri-
ções efetuam-se como novidade e desconhecimento do destinatário, a técnica retórica de composição de mistos
suplemente a ignorância, pois propõe os monstros e as maravilhas brasileiras como espécies novas de um gênero já
conhecido e partilhado. O que é homólogo da concepção teológico-política dos agentes da correspondência. Não pen-
sam a nova terra e o gentio que a habita antropologicamente, deve ser óbvio, mas os propõem sempre como o Mesmo,
que faz do mundo uma figura do Ditado. Quando atualiza a fala do agente da correspondência, a escrita suplementa
a mesma ausência de conhecimento pela reiteração do código aplicado à sua produção; desta forma, como uma
repetição doutrinária da participação dos agentes da correspondência na unidade divina que fundamenta a política
da Ordem, toda diferença da experiência é traduzida como um análogo distante, por isso mesmo reconhecível e
identificável, quando sua estranheza é interpretada pela Palavra que se espelha na proporção retórica do discurso”,
HANSEN, “O nu e a luz”, op. cit., p. 94. No entanto, no caso dos japoneses, o Mesmo se deslocaria de um registro
puramente teológico para um registro civil, político e relativo aos costumes. Os japoneses e chineses seriam conver-
tidos na medida em que os missionários se adaptassem aos seus costumes e, assim o fazendo, também se
convertessem a eles.
39
Idem, p. 114: “Uma vez, contudo, que o jesuíta defende a tese tridentina de que o gentio tem alma, não a classifica
como ausência da luz do Bem, o que seria herético, mas como falta, explicitada no enunciado como indeterminação
do modo da sua participação na Causa Primeira. Na alma bárbara, Deus se escreve também, mas torto e em linhas
tortas, desde aquele dia em que confundiu o orgulho de Nemrod na Torre de Babel. No índio, como na frase de São
Paulo, vidimus nunc per aenygmatem, cabendo ao padre fazer a ortopedia do sagrado, rasurando o mato, endirei-
tando o traço, grafando o tipo, tatuando a Letra para que se acenda a luz do ‘verbo interior’ na sua alma selvagem”.
Ora, como aplicar semelhante entendimento a culturas que se distinguiam pela arte da caligrafia e domínio do traço
sensível do pincel? O esforço jesuíta, pois, era o de, citando o São Paulo de Hansen, não fazer ver por enigma, através
da cultura dessemelhante, a alma enquanto falta, mas fazer ver pelo espelho a Mesma imagem.
40
Outra chave de leitura a respeito da “mudez” do índio brasileiro é fornecida também por Hansen: “A cegueira da
Luz e a mudez do Verbo escrevem-se visíveis e falantes como nudez do seu corpo, interpretado como um vazio do
sentido, dado a ler/ver na abominação de suas práticas, simulacros de Anhangá-Diabo”, idem, p. 115. No caso dos
japoneses, a incidência do Vazio/vazio do sentido é feita pelo seu próprio discurso, não é exterior a ele e nem mesmo
definida pelo outro. Ao contrário, tal Vazio “interno” que aparece na doutrina budista e no taoísmo e que seria con-
trário à ideia aristotélico-tomista de Causa Primeira se coloca desde o início da missão japonesa como um grande
desafio do ponto de vista teológico-político.
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