Você está na página 1de 9

Outros 500: A peregrinação de Inácio de Loiola a Jerusalem.

1. Gosto de comparar o Inácio de Loiola com uma escavadora que têm a força e a potência para
abrir um caminho onde ainda não ha, como Inácio, com a motivação e a energia que teve, abriu um
caminho na história da Igreja e da humanidade onde ainda não havia… (bem que Inácio vai dizer que
foi Deus que abriu esse caminho)... Um caminho para outros que podem vir atrás, que nem nós, e
passar adiante porque o caminho está aberto. Gerônimo Nadal, um dos primeiros jesuítas, teve essa
ideia muito clara e por isto foi atrás do Inácio e insistiu muitas vezes para que ele contasse “o modo
como Deus lhe havia conduzido desde o principio da sua conversão” (OC95), e assim também insistiu
a Luis Gonçalves da Câmara, quem fora escolhido por Santo Inácio para contar a sua vida e escreve-la,
dizendo lhe “que isto era fundar verdadeiramente a Companhia” (OC99). Ele tinha a ideia de que o
carisma, a graça do caminho inaciano se encontrava inscrita de modo privilegiado na vida de Inácio,
pois ele encarnara e vivera essa graça fundacional, transmitida depois por ele aos primeiros
companheiros, e transmitida para nós ainda hoje. Pois nós também estamos no intuito de fundar, re-
fundar, atualizar o que seja hoje essa graça para a Igreja e o mundo.

2. Nas Constituições é dito que “por onde os primeiros da Companhia passaram, passem também os
que vierem para ela”. Pois bem, vamos ver em qual sentido o caminho físico e especialmente o
caminho interior que Inácio fez naquele tempo para Jerusalem faz sentido para nós hoje. Nós que
caminhamos nessa trilha do caminho inaciano. Me pediram falar do acontecido faz exatamente 500
anos quando Inácio foi para Jerusalem em 1523, e vou falar disso, mas também quero pegar o fio da
meada e falar de um outro momento do caminho de Inácio, agora não mais só mas com os seus
primeiros companheiros lá em Venezia rumo, de novo, a Jerusalem no ano 1537 (14 anos depois). Na
verdade o que eu vou apresentar para vocês é o processo de transformação de Jerusalem como
horizonte de vida cristã de Inácio de Loiola. Se bem alguns poderiam disser que isso lá seriam outros
500, eu acho ainda uma decorrência desta primeira peregrinação que hoje estamos lembrando. Assim o
entendeu a CG36 quando pegou essa passagem de Inácio esperando navio para Jerusalem, junto aos
primeiros companheiros lá em Venezia, tirando novas luzes para nós, e para nossa caminhada hoje.

3. Mas vamos lá começar por estes primeiros quinhentos. Na verdade a peregrinação de Inácio para
Jerusalem levou-o o ano inteiro de 1523. Pois ele partiu de Manresa para Barcelona em fevereiro, de lá
foi de navio para Roma onde chegou no final de março, e depois de conseguir a permissão da Santa Sè
para peregrinar a Jerusalem, saiu a pé de Roma em abril para chegar em Venezia a meados de maio. Ou
seja, em junho, faz agora 500 anos, Inácio estava esperando navio em Venezia. E partiu para Chipre em
julho, e de lá chegou em Jerusalem dia 4 de setembro. E depois de visitar os santos lugares, e estando
proibido de ficar, como ele queria, teve que sair da Terra Santa no dia 23 de setembro. Isto é, esteve lá
somente 19 dias. A viagem de volta de mais de três messes teve muitas complicações, chegando a
Venezia a meados de janeiro do ano seguinte (OC47-48).

4. Vamos agora dar uma olhada sobre quais foram os motivos que levaram Inácio a fazer esse caminho.
E vamos lá para Loiola ver aquele cavaleiro ferido na batalha de Pamplona em maio de 1521, dois anos
atrás. Aquele cavaleiro de 30 anos, muito convencido, não se arredou quando todos no castelo viam que
não era possível resistir perante o número e a superioridade em armas do inimigo francês que tinha
encerrada a fortaleza. Ele quis dar uma de herói e ganhar aquela batalha, que nem o Daví ganhou do
Goliat, e sair coroado de gloria e fama, e convenceu a todos que o razoavelmente impossível era
possível. Como diz o José Fernandez de Castro, de tal maneira que não era mais a fortaleza do castelo
de Pamplona que os franceses combatiam, mas a fortaleza do ego do caçula dos Loiola.
5. Pois bem, nosso cavaleiro caiu ferido pela bala do canhão e foi levado para a casa da família em
Loiola. Chegando a ponto de morrer e embora com a armadura enferrujada, ele que não renunciou as
piores batalhas não ia ficar no leito não, ele não ia abrir mão de conquistas maiores. Ele não temeu
cirurgias sem anestesia, 6. e teimava a se imaginar seduzindo ainda à filha de reis, à princesa Catalina.
E quando ele quis alimentar seus sonhos e fantasias com a leitura de novelas de cavaleiros que vão às
cruzadas para recuperar a Terra Santa e conquistar princesas encantadas, eis que a dona da casa, Dona
Madalena, sua cunhada, não tinha essas novelas (não tinha Netflix para Inácio ver). Tem gente mau
pensada que nem eu que pensa que Dona Madalena na verdade poderia ter conseguido alguma dessas
novelonas, mas tal vez ela achava que o seu cunhado precisava ler outras historias e disse pra ele que só
tinha vídeos das Paulinas, vidas de santos.

5. E lendo essas historias Inácio descobriu um outro caminho de ser herói, o caminho dos santos, dos
heróis da fé. É isto que prendeu o seu ego no começo. Não a santidade mas a heroicidade. Ganhar nome
e fama “fazendo as coisas muito difíceis e graves” que fizeram esses grandes homens, e “quando ele se
propunha fazer achava que facilmente poderia” (OC103). Sao Francisco fez, eu também, Santo
Domingos fez, eu também faço.

7. E ¿como é que Inácio acaba caindo do cavalo? Quando descobre que sonhando as grandes façanhas
do cavaleiro glorioso conquistador de uma mulher da nobreza, as fantasias às quais ele dedicou a vida
inteira e todas as suas energias, ficava no fim seco e desanimado, e quando pensava, pensava ¿o que?
“Quando pensava em ir a Jerusalem de pé no chão e não comer senão ervas e fazer todos os rigores que
tinham feito os santos, no fim ficava contente e alegre” (OC106).

Então ¿qual foi a imagem, o sonho, o ideal, o horizonte que teve a força, o poder de derrubar aquilo que
a batalha de Pamplona, o exército francês que o feriu e deixou a ponto de morrer, não tinha conseguido
derrubar nele? Pois é. Ir para Jerusalem do jeito que tinham feito os santos. E “Tudo o que ele desejava
logo depois de sarar, era ir para Jerusalem”. Aquilo ficou bem no fundo da cabeça de Inácio desde o
começo de sua conversão (e acho que nunca desapareceu). Peregrinar a Jerusalem conseguiu
desmanchar da sua cabeça todas as poderosas fantasias e ilusões que sempre prenderam seu coração, as
vaidades e os desejos de honra que articularam sua vida toda até ali. De jeito que “parecia-lhe que
foram tiradas todas as espécies que tinha antes pintadas na sua alma”.

» Então vejamos bem. Lembremos que as cruzadas, a conquista da Terra Santa, não só a conquista de
princesas, fazia parte dos sonhos de um bom cavaleiro da cristandade, como queria de fato ser Inácio.
Lembremos que o jovem cavaleiro Francisco de Assis foi para as cruzadas, e que depois da sua
conversão, durante a quinta cruzada, em 1219 foi conversar pela paz com o sultão Al Kamil.
¿Poderíamos então dizer que a isca para pegar o coração de um bom cavaleiro como era Inácio, foi esse
desejo heróico de conquistar Jerusalem, que já estava aliás nele muito antes? E se aceitarmos que essa
foi a isca ¿seria então o anzol seguir o caminho de imitação de Cristo que seguiram os grandes santos?
Deus nos conduz a transitar novos caminhos refazendo o sentido daquilo que já estava em nós.

8. A verdade é que Inácio virando peregrino para Jerusalem tem um novo horizonte, mas o peregrino
tem ainda no fundo o cavaleiro cristão. Vamos ver no caminho como o cavaleiro vai pular dentro dele
pra sair fora. Vamos ver ele fazendo vela de armas a Nossa Senhora de Aransazu, e logo em Montserrat,
como deve ser feito por um bom cavaleiro, vamos velo encontrar-se com aquele muçulmano que pôs
em dúvida a virgindade de Nossa Senhora, e o cavaleiro vai atrás para mata-lo. Não fosse pela mula
que o levou por outro caminho, quem sabe se teria Companhia de Jesus. O cavaleiro ainda vive nele e
muito. O mesmo Inácio vi dizer que é bom “entender como Nosso Senhor havia-se com essa alma que
ainda estava cega, porem com grande desejo de servi-lo em tudo o que conhece-se” (A14).
Nós não estamos totalmente isentos de ficar prendidos aos nossos antigos paradigmas. Os nossos novos
ideais e moções espirituais podem se revestir em parte das antigas formas, das “relíquias” das antigas
consolações ou figuras das espécies que a gente tinha pintadas na alma.

9. E vamos ver que este cavaleiro não vai deixar cair aos pedaços a armadura enferrujada até que em
Manresa Inácio, sacudido por terríveis tentações, chegue no fundo do poço e seja tentado até de
suicídio. É na cova de Manresa, onde aquele homem que foi capaz de aguentar cortar os seus ossos
para seguir o mundo como cavaleiro, chega a não mais aguentar as extremas penitências, jejuns,
intermináveis confissões e largas orações, como pensava ele que fizeram os santos e ele devia também
fazer, “e ainda mais” (A14). E o último pedaço da armadura foi cair só quando Inácio reconheceu que
não dava conta, o cavaleiro heróico finalmente se rendeu, e Inácio derrubado, gritava desesperado:
“Socorre-me Senhor que não acho remedio nos homens e em criatura nenhuma… mostra-me tu
Senhor onde eu possa acha-lo assim tivesse que ir atrás de um cachorrinho eu o farei” (A23).

10. Saindo de Manresa temos a Inácio renovado, como peregrino mas peregrino agora conduzido por
Deus. A visão que teve à beira do Rio Cardoner o confirma no caminho certo, igual a visão de Nossa
Senhora o confirmou em Loiola. Não é à toa que ele vai dizer que depois de Manresa começou a ver
“novas todas as coisas… como se fosse outro homem” (Au30). E o cavaleiro ficou atrás, mas não
Jerusalem, que continuava a ser o horizonte de sentido que o chamava. Mas agora, depois de Manresa,
Jerusalem não será mais o lugar para as terríveis penitências “para não comer senão ervas e fazer todos
os rigores que tinham feito os santos” como pensava em Loiola -uma dinâmica própria da primeira
semana dos Exercícios Espirituais- mas o lugar do encontro com o Cristo luminoso que lhe aparece em
Manresa na eucaristia e na oração (Au29). Mais na linha da segunda semana dos Exercícios.

» Agora Inácio o peregrino, não é mais o cavaleiro, mas um discípulo na escola de Deus, como um
menino ensinado e conduzido pelo mestre (Au27), é por isso tal vez que escolhe andar sozinho para
Jerusalem, “porque queria ter afeição e esperança só em Deus” (Au35), não mais nele mesmo nem nos
outros. Como diz o Inácio Tellechea: “O anseio da peregrinação a Jerusalem, ancorada na sua alma
desde os dias de Loiola, mais do que um simples ato penitêncial, é um intento de aproximação sensível
de Cristo. Só faltava Ele nos lugares e paisagens evocativos, mas Ele estava presente no coração cada
dia mais ardente do peregrino” (Tellechea 94).

» Teve o caminho fisico para Jerusalem, e teve a caminhada interior, as descobertas, as novas luzes,
mudanças e transformações que Inácio vai transitando interiormente no caminho do peregrino. Embora
permanece o horizonte geográfico, as motivações vão-se reformulando, novos paradigmas vão
emergindo. As capas da cebola vão caindo (com muitas lágrimas, né?) e ficando no centro o amor pela
pessoa de Jesus, naquele que lá em Manresa já chamavam “o peregrino louco por Cristo”.

11. E lá vai para Roma, e de la pra Venezia. E em Roma e em Venezia perante as próprias dificuldades
e as recomendações de que desistisse por duas vezes ele diz que “tinha na alma uma grande certeza de
que Deus havia de lhe dar um modo de chegar a Jerusalem, com tanta confirmação que não havia
motivos nem medos para faze-lo duvidar” (Au40 e 42). Em Venezia ficou muito doente, estando para
perder o navio que ia de leva-lo para Jerusalem, e o médico disse que se teimasse em embarcar seria
para morrer no caminho. Mas ele embarcou e foi ¿teimoso ou apaixonado? Seja o que for no caminho
começou a sarar, e ainda por cima logo antes da sua chegada a Terra Santa de novo teve aquela visão de
Jesus luminoso que lhe deu muita consolação e força (Au44). Com a bola toda.
Na terra de Jesus ele ficou menos de 20 dias, chegando 4 de setembro e saindo no dia 23. Embora na
Autobiografia Inácio não fala apenas dos lugares que visitara, conta sim que chegando e “vendo a
cidade teve uma grande consolação”, igual os outros peregrinos, “com uma alegria que não parecia
natural, e a mesma devoção teve sempre na visita dos santos lugares” (Au45). Sabemos por outras
fontes que visitaram o Cenáculo, a Igreja da dormição de Nossa Senhora, a Santa Sepultura onde
tiveram missa, confissão e comunhão. Participou com o grupo da Via Sacra, visitou Betânia, o Monte
das Oliveiras, Belém, Getsêmani, o Rio Jordão, o Monte das tentações, e no final voltou ao Monte das
Oliveiras, sozinho (OC48 + Tellechea 94).

12. Em Jerusalem, Inácio sente-se no topo da consolação e sente muita clareza em ficar ali “visitando
sempre aqueles lugares santos e também ajudando às almas” (Au45). E vai apresentar este “firme
propósito” ao custodio franciscano entregando cartas de recomendação que trazia para ele. Ou seja
vinha bem preparado e não pensava abrir mão deste propósito. Mas ao chegar o Provincial franciscano
mostrou para Inácio a mão negativa da Igreja, fechando a porta por onde ele tinha muita clareza que
devia entrar para servir ao Senhor. Não foi a última vez que Inácio esbarrou com a autoridade legítima
da Igreja fechando a porta para ele. Mas não era qualquer opinião na Igreja que Inácio ia aceitar,
mesmo que seja a de um Provincial com autoridade de bispo, mas no caso era uma sentencia formal de
quem tinha autoridade legítima da Santa Sè para excomunga-lo se ficasse.

E embora Inácio não deixou de manifestar ao Provincial franciscano a firme vontade que tinha de ficar
em Jerusalem (Au46), essa firmeza não chegava ao ponto de ficar sendo excomungado, ou seja, podia
até ser teimoso, mas não até o ponto de ficar fora da comunhão da Igreja. Anos depois Inácio iria
escrever nas Regras para sentir com a Igreja: “Devemos sempre, para em tudo acertar, que aquilo que
eu vejo branco, acreditar seja preto, se a Igreja Hierárquica o determinar; acreditando que entre Cristo
Nosso Senhor, o esposo, e a Igreja sua esposa, é o mesmo Espírito quem nos dirige” (EE. 365). É esta
fé que Inácio já tinha antes de escrever essas regras que fez “o peregrino entender que era vontade de
Deus ele não ficar em Jerusalem” (Au50). E ponto, não ficou, fim de papo.

» Mas aqui temos um detalhe interessante (uma jóia) que mostra a paixão do Inácio pela pessoa de
Jesús. Na hora de aceitar ir embora de Jerusalem ele sente um grande desejo de ver de novo as pegadas
do Senhor gravadas na rocha onde Jesus subira ao céu. E la vai, sem permissão, e vai pagar
corrompendo o guarda para deixa-lo entrar, rompendo todas as regras só para ver as pegadas de Jesus,
um sinal concreto da presença da pessoa amada. E logo que sai repara que não viu se a pegada era do
pé direito ou do pé esquerdo, e lá volta e corrompe ao guarda de novo, só para ver qual seja o pé que
deixara a pegada do Senhor na rocha. Coisas que só fazem as pessoas apaixonadas, né. E na volta,
quando fora preso pelo guarda que ameaçava bater nele, ele “teve de Nosso Senhor grande consolação,
e parecia-lhe que via Cristo sobre ele sempre”. O amor paga-se com amor.

13. E já ficando muito claro para Inácio que não havia contradição entre a vontade de Deus e as
disposições da autoridade legítima da Igreja, ficou-se perguntando o que faria. (Quid agendum). Que
nem nós estamos agora. Agora que tal vez os nossos grandes horizontes e sonhos caíram pelo chão ¿o
que é que devemos fazer agora? E Inácio “no fim inclinava-se a estudar um tempo para ajudar às
almas”. Estamos em janeiro do ano 1524, quando Inácio chega a Venezia voltando da Terra Santa.

¿E o desejo de viver em Jerusalem? ¿Sumiu? É. Que nem uma corrente de agua pode sumir baixo da
terra e logo depois aparecer de novo lá longe, bem enfrente. Jerusalem sumiu do horizonte imediato da
visão, da vontade e dos propósitos de Inácio. Durante os quase 10 anos seguintes Jerusalem foi um
poderoso rio subterrâneo que atravessava oculto o coração de Inácio, que foi peregrinando por
Barcelona, Alcalá, Salamanca e Paris. Anos a fio de estudo entre meninos, nas universidades, passando
quatro ou cinco processos da inquisição, até que essa poderosa corrente aparecera de novo.

14. Mas por enquanto foi ficando claro o seu propósito e desejo: “ajudar às almas, e para isto estudar
primeiro e juntar alguns do mesmo propósito (e conservar os que já tinha)” (Au71). Aqui tem uma
mudança muito importante. Inácio deixa de andar sozinho, ele não será mais o peregrino solitário mas o
companheiro de outros que tem o mesmo propósito. Duas poderosas vertentes que vão estruturar o
caminho de Inácio depois de Jerusalem: o empenho nos estudos para ajudar às almas e a dedicação à
formação de uma comunidade apostólica, isto é o cuidado de companheiros com o mesmo propósito
dele. Duas potentes linhas que vão focar toda a energia dele depois de Jerusalem.

» Inácio ainda esteve só durante o ano de estudos de gramática em Barcelona, e começou a juntar
companheiros no seguinte anos de estudos em Alcalá. Mas teve de deixa-los logo depois dos processos
da inquisição em Alcalá e Salamanca, onde “fecharam pra eles a porta” para pregar e mandaram
estudar quatro anos de teologia. Fechadas as portas em Alcalá e Salamanca Inácio teve que partir para
Paris. Lá começou um novo grupo depois de dar os Exercícios para três espanhóis. Este grupo durou
muito pouco e acabou violentamente. Teve de novo processos, proibição de pregar e juntar
companheiros até acabar os estudos. E lá foi colocado, sem ele junta-los, no mesmo colégio de Santa
Barbara abaixo do mesmo mestre Penha, no mesmo quarto do Pedro Fabro e Francisco Xavier. Olha lá.

15. E é por aqui onde vai aparecer de novo Jerusalem no horizonte, aquilo que parecia ter sumido vai
aparecer de novo no propósito dos primeiros companheiros com renovada força e determinação em
1534, depois de dez anos. Depois de Inácio dar o mês de Exercícios Espirituais a cada um dos seis
primeiros companheiros: Fabro, Bobadilla, Lainez, Salmerón, Rodríguez e, por último, a Xavier; todos
decidiram seguir as pegadas de Cristo “indo viver em Jerusalem e gastar a vida em proveito das almas”
(Au85). E todos fizeram votos em Monmartre, um subúrbio de Paris, em agosto de 1534, voto de
castidade e pobreza e de irem todos juntos a Jerusalem para ficar lá vivendo, imitando a primeira
comunidade dos apóstolos de Jesus. Eita peregrino! A visão de Jerusalem não apagou!

16. ¿E como é que esses primeiros companheiros chegaram a fazer esse voto de ir a viver em
Jerusalem? ¿De onde na cabeça de Xavier que só pensava voltar a sua terra com os títulos de Paris na
mão, e na cabeça de Fabro cheia de escrúpulos e dúvidas ainda sobre a própria vocação podia aparecer
com tanta força ir a viver em Jerusalem? Embora Inacio vai disser que todos eles concordaram nesse
propósito sem influencias, não é muito difícil perceber que estes homens que durante mais de 5 anos
(1529-1534) compartilharam o dia a dia dos estudos, a comida, a casa e a oração e até a bolsa comum,
e que Fabro dissera que “chegaram a ser a mesma coisa em desejos e vontade e propósito firme”, foram
todos contagiados do entusiasmo que enchia o coração de quem era o líder do grupo, de quem dera o
mês de Exercícios Espirituais para todos eles. Inácio era um entusiasta conversador e eles sabiam muito
bem da sua vontade de viver em Jerusalem. E a grande mudança de vida, a força do compromisso de
seguir Jesús, vieram para eles, por osmose, revestidos do originário desejo de Inácio, agora feito
propósito da comunidade.

» O peregrino que fora proibido de ficar em Jerusalem lembra-nos àquele piedoso judeu cativo, que
longe da sua terra cantava cheio de saudade, no salmo 137, lá na beira dos rios da Babilónia: “Se eu me
esquecer de ti ó Jerusalem, esqueça-se a minha destra da sua destreza. Apegue-se-me a língua ao céu da
boca, se não me lembrar de ti, se eu não preferir Jerusalem à minha maior alegria”.

» Outros 500 vemos emergir aqui 10 anos depois ¿quem sabe se vão lembra-los? Mas tem tudo a ver
com estes 500 que a gente está lembrando hoje. É para pensar o quanto os nossos bons propósitos,
planos, desejos podem estar revestidos em parte dos planos, dos desejos, da visão daqueles que nos
precederam e influenciaram a nossa vida, a nossa obra apostólica, a nossa comunidade, a nossa
Província por anos e anos. E o quanto também nós podemos contagiar e influenciar a vida dos outros
com os matizes, as cores dos nossos projetos, desejos e planos pessoais, muito bons e piedosos, mas
que tal vez sejam afeiçoes não retamente ordenadas.

17. A semente de Jerusalem estava semeada, mas tinha uma ressalva muito importante nos votos que
fizeram: Se não tivessem permissão, ou se esperando navio durante um ano não pudessem ir para Terra
Santa, “então voltariam para Roma apresentar-se ao Vigário de Cristo para que ele os enviasse onde
julga-se ser maior glória de Deus e utilidade das almas” (Au85). Diz o Inácio Tellechea: “Jerusalem é a
meta fixa e invariável; ficava como ressalva a alternativa de Roma… A romanidade é só uma carta de
reserva; não um ideal originário de Inácio, e muito menos com a intenção de conquistar o coração da
cristandade” (Tellechea 135). Certamente essa ressalva era a visão alternativa, mais ampla, dos
companheiros de Inácio, Fabro e Rodriguez de fato, se bem concordaram com os outros em ir para
Jerusalem, achavam que se não der certo deveriam voltar para Europa. Pelo menos Inácio mostrava
claras resistências para ir a Roma, de fato em Venezia quando deviam ir todos a pedir permissão para
passar a Jerusalem, ele não foi porque segundo escusou-se, tinha lá pessoas (o Doutor Ortiz e o Cardeal
Carafa), com os quais antes, por diversos motivos, não se dera bem (Au93). Parece-me como se Inácio
lhes disse-se: eu fico aqui olhando para Jerusalem, vocês vajam lá olhar para Roma. O Inácio Tellechea
diz: “¿Não estava por acaso fugindo daquela Europa envelhecida e dilacerada, faminta de ciência e
surda aos compromissos da fé?” (Tellechea 135).

Nesse tempo (1535) Inácio ficou doente e teve de interromper os estudos de teologia e foi a sua terra
para tomar remédio nos ares natais. De lá Inácio foi para Venezia completar os estudos de teologia e
esperar os companheiros para passar com eles a Jerusalem.
18. Eles chegaram em Venezia no começo do ano 1537. Nessa ocasião Inácio escreve aquela famosa
frase: “chegaram de Paris para Venezia nove amigos meus no Senhor”. Em junho desse ano os amigos
no Senhor receberam as ordens e começaram celebrar a missa. Só Inácio ficou esperando pois ele
queria celebrar a sua primeira missa na Terra Santa, em Belém, “pedindo a Nossa Senhora lhe queira
pôr com o seu filho” (Au96).

19. De maio de 1537 a maio de 1538, os primeiros companheiros concordam seja o ano de espera para
passar a Jerusalem. Mas em setembro de 1537 acontece a ruptura de relações entre Venezia e os turcos,
e a viagem para Terra Santa torna-se muito improvável. Nos messes de espera do prazo de um ano,
aqueles padres, doutores em teologia, irão viver nessa região do Vêneto em Vicenza, ora se juntando
para partilhar tempos de oração e ora se espalhando para pregar o evangelho nas praças, vivendo de
esmolas, em hospitais e em conventos abandonados.

20. Até que finalmente cumprido o prazo, pelos ares de guerra no horizonte, só por aquele ano, não
partiram os navios para Terra Santa e não foi possível passar para Jerusalem. Da primeira vez foi a mão
negativa da autoridade da Igreja que impediu Inácio de ficar só em Jerusalem, e conduziu ele para um
caminho que ele ainda não via, para aprender a caminhar no seio da Igreja, alinhar-se à doutrina
estudando a teologia, para unir-se a outros, aprendendo com eles a viver em comunidade de fé.
E desta segunda vez, aprendida a primeira lição, e já sendo teólogo e em comunidade, foi a situação de
guerras e conflitos internacionais que, como aquela bala de canhão em Pamplona, impediram a ele e
aos companheiros passar enfrente no seu projeto. Desta vez foram os sinais dos tempos que
endireitaram Inácio e o grupo na contramão dos seus planos. Os conflitos e guerras no mundo
devolveram eles para encarar a difícil e conflituosa situação da Igreja servindo ao Senhor desde Roma,
o centro dela. Assim será dito na fórmula do Instituto para “todo aquele que queira servir a Deus sob o
estandarte da cruz em nossa Companhia”, que o fim dela é “servir somente ao Senhor e à sua esposa a
Igreja, sob o Romano Pontífice, Vigário de Cristo na terra”.

21. A Congregação Geral 36, como eu já disse antes, pegou essa passagem, achando que a grande
virada que deram eles nesse momento pode nos ajudar olhar o momento presente com novas luzes. A
Congregação vai disser que nós (da Província do Brasil) “não somos os primeiros em buscar luz para
conhecer a que nos chama Deus”, e aquilo que viveram “os primeiros companheiros em Venezia
representa uma imagem poderosa e um passo importante na formação da Companhia (pois vendo) os
companheiros em aquela ocasião como se frustraram seus planos de marchar à Terra Santa, (foram
levados) a discernir mais profundamente o que o Senhor queria deles. ¿Aonde os estava conduzindo o
Espírito? (CG36.1.4)… Qualquer semelhança com nós ¿será mera coincidência?

» Tem algumas das luzes que a Congregação Geral viu nessa passagem da vida de Inácio e os primeiros
companheiros que nos podem ajudar neste momento da nossa caminhada: “Partilhar uma vida em
comum como amigos no Senhor”, isto é, “a experiência de formar um único grupo e de permanecer
unidos ... ainda tendo atividades muito diversas” (CG36.1.7), “a vida em pobreza e o andar perto dos
pobres” (6) perguntando-nos também “¿como podemos viver mais simplesmente e com menos?”, e
finalmente a luz de “pregar o evangelho com alegria”…

» Acho que no bojo da comunidade tem tal vez a luz mais importante que a CG36 pega desta passagem
de Venezia, para nós hoje, o holofote da “comunidade de discernimento” e o “instrumento essencial que
anima o discernimento comunitário”, a conversação espiritual. Aquele intercâmbio de escuta ativa y
receptiva, a expressão daquilo que nos toca más profundamente; levando em conta os movimentos
espirituais, individuais y comunitários, para escolher o camino da consolação. “A conversação
espiritual, diz a Congregação é a que, cria um ambiente de confiança y de abertura em nós e nos outros.
Não devemos privar-nos desse tipo de conversação em comunidade, e nem nas outras situações nas
quais se debe tomar una decisão na Companhia” (CG36.1.12).

22. Tem uma imagem muito forte de Inácio no caminho de Venezia para Roma, deixando atrás
Jerusalem. Tem aquela parada com o Diego Lainez na capelinha da Storta, perto de Roma, onde ele
teve uma visão mística de Jesus carregando a cruz e o Pai dizendo a Jesús para pegar ele como
companheiro. Aí então ouviu Jesus dizendo a ele: “Eu quero que tu nos sirvas” e o Pai dizendo: “Eu
vos serei propício lá em Roma” ¡Lá em Roma! ¡Na contramão dos seus sonhos e anseios mais
profundos! Não é à toa que na última frase das orientações e regras para o discernimento nos
Exercícios Espirituais Inácio tenha anotado: “pense cada um que tanto se aproveitará em todas coisas
espirituais, quanto sair do seu próprio amor querer e interesse” (EE189).

23. A subida para Roma de Inácio ¿não seria por acaso, no caminho do discípulo de Cristo, o
seguimento do mestre Jesus que vai para Jerusalem, na trilha da queda dos grandes sonhos e ideais
messiânicos? ¿será muito exagerado pensar que aquela oração antes de chegar a Roma era o Getsêmani
de Inácio? Faça-se a tua vontade e não a minha. ¿Seria por acaso por isto que Inácio saiu da capela sem
entender, pensando que tal vez eles seriam crucificados lá em Roma?

Seja lá como for, Inácio dizia “não ter ânimo para duvidar que naquele momento Deus o colocou com o
seu filho” (Au96). E ¿Por que seria que Inácio não teve nenhuma dúvida desta visão ser de Deus?
Possivelmente porque não era no momento, no lugar e na direcção que ele queria e nem com o
conteúdo que ele queria. 24. Se a gente conversa-se com Freud ¿teria ele dito que Inácio tanto pedia à
Nossa Senhora ser posto com seu filho, porque no fundo ele queria era estar, com Jesus, no colo de
Nossa Senhora? Ou seja, no colo da mãe que não teve, pois a mãe dele morreu pouco tempo depois que
ele nasceu. E tal vez foi por isso que, lá em Loiola, a visão de Jerusalem junto com a visão de Nossa
Senhora com o menino ficou tão gravada no íntimo dele. De fato Inácio esperou um ano e meio depois
da ordenação, como já dissemos antes, porque ele queria celebrar a primeira missa em Belém, na Terra
Santa. Finalmente ele a celebrou chegando em Roma no Natal de 1538, sem abrir mão de Belém, na
cripta da “Igreja de Nossa Senhora a Maior, na capela onde está o presépio onde o Menino Jesús foi
posto” e lá se conserva segundo a tradição (Carta de S. Inácio à sua família: Villoslada 1986. p. 460).

Como a visão de Nossa Senhora em Loiola desmanchara as suas ilusões de cavaleiro, a visão da Storta
desmanchou aquelas espécies de fixação geográfica e quase que material do seguimento de Cristo em
Jerusalem, e colocou ele e os companheiros num outro horizonte, desta vez definitivo, no horizonte da
Igreja de Deus, aquele que se vê desde Roma, sob o olhar do Vigário de Cristo (Au10).

» E foi já em Roma “nos messes seguintes que o Papa Paulo III convidara varias vezes aos membros do
grupo a dissertar ante ele … e lhes dissera: “¿Por que tanto desejais ir para Jerusalem? Boa e verdadeira
Jerusalem é Italia, se desejais fazer fruto na Igreja de Deus” (Melloni p.146). Como diz o Xavier
Melloni: “Roma não ia ser um lugar, mas um não-lugar que ia gerar outros lugares. Se Jerusalem tinha
a força centrípeta da atracão, Roma teria a força centrífuga da missão. Se Jerusalem era o lugar
sonhado e idealizado onde ficar, Roma era o lugar real do qual partir, mas não ele, senão a fecundidade
que brotou dele. A experiência da Storta é o umbral desse não-lugar, a chave para entrar onde não
desejava ir, mas teve que chegar pela sua obediência à realidade”. (Melloni, 2020, p. 136).

O Papa Francisco disse à Congregação Geral 36 que “é próprio da Companhia fazer as coisas sentindo
com a Igreja… sem perder a paz e com alegria”, perante os nossos pecados pessoais e os pecados das
estruturas que temos criado, carregando a cruz das humilhações”… (*) Disse ainda o Papa Francisco:
“só se a gente experimentar a força da misericórdia nos sarando no vivo das nossas próprias chagas
(chagas com nomes e sobrenomes), como pessoas e como corpo, vamos perder o medo de nos deixar
comover pela imensidade do sofrimento dos nossos irmãos e vamos nos lançar a caminhar
pacientemente com nossos povos, aprendendo deles o modo melhor de ajuda-los e servi-los”.

E quero encerrar com as palavras do Provincial, Bernhard Bürgler, que escreveu na Semana Santa aos
Jesuitas da Áustria, Alemanha, Lituânia-Letônia e Suíça, unidos desde 2021 numa única Província, e
disse que observando a Província, as comunidades e obras, ficava-lhe muito claro estar no principio de
um processo que vai afetar profundamente a nossa ordem e a muitos de nós de maneira muito pessoal.
E disse-lhes: “Nestes dias santos celebramos nossa vontade de morrer com Cristo para ressuscitar com
ele. ¿É isso o que queremos? ¿Não poderíamos esquecer a morte, a decadência e ir diretamente à
ressurreição?... E acaba dizendo estar certo da renovação externa ser uma oportunidade de renovação
espiritual da Companhia, na medida que seguirmos a Cristo crucificado e nos ligarmos mais
profundamente a ele.
BIBLIOGRAFÍA

San Ignacio de Loyola, nueva biografía.


Ricardo García Villoslada.
BAC, Madrid, 1986.

Exodo y éxtasis en Ignacio de Loyola, una aproximación a su Autobiografía.


Javier Melloni, SJ.
Sal Terrae, Santander, 2020 (2ª edición).

* Como aconteceu logo depois em Alcalá e Salamanca onde proibiram ele pregar até depois de estudar
quatro anos de teologia. Naquele tempo Inácio disse que fecharam para ele a porta para ajudar às almas
(Au70).

* Perante as muitas criticas que leio e ouço da Companhia hoje, até concordando com alguma delas,
lembro do Pedro Fabro, quem achava que “em muitas coisas os que queriam reformar à Igreja tinham
razão, mas Deus não queria corrige-la com os modos que eles propunham”. E fico pensando se muitos
dos nossos planos de renovação não tem o vírus de “fazer a Companhia grande de novo” resistindo-nos
a aceitar a perda, a nossa pobreza, a diminuição, que nos leva a caminho de sermos de novo mínima
Companhia de Jesús (tal vez seja o caminho que a realidade nos oferece hoje para sermos menos
Companhia e mais de Jesus).

* Comparávamos antes a ida dos companheiros a Jerusalem com o intuito próprio da segunda semana,
seguindo as pegadas de Jesus por vilas e vales, à procura do “conhecimento interno de Cristo para mais
ama-lo”, e a subida de Inácio e os companheiros a Roma com a trilha própria da terceira semana,
seguindo a Jesus que vai entregar a vida. Lá onde a “dor com Cristo doloroso, as lágrimas, a pena
interna” (EE203) não vão acabar sendo uma desgraça, mas semente de vida nova.

Caminhar de horizontes abertos, em comunidade de discernimento como amigos no Senhor, confiantes


em Deus, obedecendo ao seu Espírito que nos conduz na Igreja, pelos seus pastores, que nos faz cair na
real a traves dos sinais dos tempos e que nos ensina como servi-lo estando perto dos pobres; são
algumas das lições que podemos pegar do caminho de Inácio para Jerusalem.

O nosso caminho visa para encarar hoje a mudança de época da Companhia e da Igreja, para entrar
com decisão e coragem na busca da re-significação do sentido de nossa vocação, de nossa vida e
missão, da necessária reconfiguração de nossas estruturas. São outros 500. Um itinerário para o qual
não temos uma rota conhecida. Mas temos a inspiração daquele que aprendeu a não se adiantar ao
Espírito mas a segui-lo, sabiamente ignorante.

Você também pode gostar