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Introdução

“Tudo em nós é imposto1”. Essa frase de Marcel Mauss conclui um capítulo de


sua obra Sociologia e Antropologia (1950) no qual discorre sobre conjuntos de atitudes e
práticas corporais permitidas ou não; estimuladas ou reprimidas, que tem como
característica fundamental sua naturalização diante de um determinado contexto. Nesse
mesmo capítulo, o sociólogo desenvolve a categoria de “técnicas corporais”, que expressa
os modos pelos quais os indivíduos, a partir de suas respectivas sociedades utilizam seu
próprio corpo, cristalizando hábitos, conveniências, regras de postura, dentre outros
aspectos, que passam a incorporar uma tradição - pressupondo, portanto, sua transmissão
e recriação2. Nesse sentido, mais do que motivações naturais, os corpos humanos têm sua
existência mediada pela cultura, que por meio do processo de socialização imprime o
conjunto de valores (sociais, políticos, econômicos ou religiosos) de uma comunidade
nos novos corpos, não descuidando também da manutenção daqueles já moldados3.
Compreendendo que os homens “criam” seus próprios corpos, o objetivo dessa
pesquisa é investigar as narrativas cristãs sobre o corpo na Antiguidade Tardia, em
especial entre os séculos II a V d.C., em diferentes tipologias de fonte, a saber: textos de
alguns dos chamados Pais da Igreja que compõe a tradição Ocidental – Agostinho de
Hipona (354-430 d.C), Ambrósio de Milão (337-397 d.C.) e Jerônimo de Estridão (347-
420 d.C.) - e afrescos encontrados em catacumbas cristãs da cidade de Roma
(contemporâneas aos escritos dos religiosos citados). Com isso, pretendemos analisar a
forma como o corpo era representado neste período, traçando um diálogo entre História
das Religiões, História Antropológica e História da Imagem, no âmbito da História
Cultural4. Reconhecemos ainda que o estudo do corpo suscita uma multiplicidade de
aspectos a serem explorados e, por este motivo, delimitaremos nossa investigação por

1
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naif, 2003, p. 408.
2
Idem, p. 401.
3
RODRIGUES, José Carlos. Tabu do Corpo. Rio de Janeiro: Edições Achiamé, 1975, p. 11-14.
4
História da Religião porque estamos estudando a manifestação de um aspecto específico (o corpo) a partir
do ponto de vista do cristianismo, envolvendo consequentemente eventuais embates entre este e a religião
tradicional romana. História da Imagem porque utilizamos fontes de natureza imagética, compreendendo-
as dentro de suas especificidades. Quanto a História Antropológica, sendo um campo específico da História
Cultural, é mobilizada não apenas pela natureza de nosso objeto, o corpo – muito relacionado aos estudos
de Antropologia – como também por nossa abordagem. Afinal, mobilizaremos como instrumental teórico
elementos da Antropologia Estrutural, baseados, especialmente, em Marshall Sahlins. Por fim, esses três
campos serão amalgamados visando um olhar a partir da perspectiva da História Cultural, que carrega como
conceitos fundamentais a “alteridade cultural” e as “trocas culturais”.
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meio de dois focos fundamentais, são eles: a relação corpo-alma, e a sexualidade – que,
como se verá adiante são tópicos relacionados.
Para a análise da nossa documentação mobilizamos como instrumentais teóricos as
categorias de representação; de transculturação e ressignificação; e iconologia,
postulados respectivamente, por Roger Chartier; Marshal Sahlins; e Erwin Panofsky.
Como abordagem metodológica, optamos pela aplicação da Análise do Discurso,
conforme estabelecida por Domenique Maingueneau, nos discursos literários; e do
Método Iconológico, também de Panofsky, para trabalhar com o material imagético. A
partir desse embasamento teórico-metodológico buscamos examinar e evidenciar não
apenas as narrativas sobre o corpo de cada documentação em particular, como também
estabelecer o grau de correspondência existente entre a documentação escrita e a
documentação imagética com relação a representação deste.
As obras trabalhadas foram: Comentário Literal sobre o Gênesis e Comentário sobre
o Gênesis contra os maniqueus, de Agostinho de Hipona; Sobre os sacramentos; Sobre
os mistérios e Sobre a penitência, de Ambrósio de Milão; e Apologia contra os livros de
Rufino, de Jerônimo de Estridão. Já a documentação imagética foi composta por seis
afrescos, presentes nas catacumbas de Priscila (s. II – IV d. C.); de Pedro e Marcelino (s.
III e IV d.C.) e da Via Latina (s. IV-V d.C.). Os temas incluem A Orante, Hércules no
jardim de Hespérides, Adão e Eva (dois afrescos têm esse mesmo tema: o presente na
catacumba de Pedro e Marcelino e outro, nas catacumbas da Via Latina), Noé na Arca e
Jonas sendo vomitado pela Baleia.
Nosso critério para seleção da documentação literária seguiu a seguinte lógica: os três
religiosos mobilizados (Agostinho, Jerônimo e Ambrósio) se constituem como os autores
cristãos mais relevantes do período, considerando a tradição Ocidental; para além disso,
os três apresentam obras extensas e diversificadas, assim como destacadas atuações
públicas. As obras citadas referentes a cada autor nos permitem refletir sobre a criação do
homem, estando implícito neste caso, como o corpo foi formulado por Deus e qual seu
lugar na criação, na vida cotidiana e na salvação. As duas obras de autoria de Agostinho,
que são de caráter exegético, expõem sua interpretação sobre a criação do Universo por
Deus, fazendo emergir como temática a criação do corpo, a discussão sobre a hierarquia
estabelecida entre este e a alma, a relação do homem com sua sexualidade e a
diferenciação dos corpos feminino e masculino. Quanto a Ambrósio, a escolha das três
documentações citadas acima nos é útil porque traz sua visão sobre as questões
dogmáticas, tais como o baptismo e a eucaristia. Como ficará mais evidente, tais rituais
9

colocam o corpo numa situação de protagonismo (a eucaristia porque os fiéis comungam


o “corpo e sangue de Cristo” e o baptismo porque ele próprio representa a liberação do
pecado original) e, por esse motivo, nos possibilitam acessar a representação que esse
religioso construiu do corpo cristão. Por fim, a obra apologética de Jerônimo nos auxilia
em dois aspectos principais: primeiro, porque demonstra o diálogo existente entre o
cristianismo e a cultura helênica (um aspecto que será ainda bem explorado nesse
trabalho). Sendo uma obra motivada por uma polêmica com relação a um autor cristão
grego, Orígenes, muito traduzido por Jerônimo, esse livro demonstra a heterogeneidade
do pensamento cristão e sua relação com algumas correntes filosóficas gregas e orientais.
O outro ponto é que nesta obra, Jerônimo se ocupa de firmar questões de ortodoxia,
impedindo os fiéis de “caírem” na heresia. Ao definir essas fronteiras, o autor formula
sua ideia sobre o corpo nas perspectivas que pretendemos trabalhar.
Quanto aos afrescos encontrados nas catacumbas, que representam também o
primeiro esboço de uma arte cristã, nosso critério de seleção levou em consideração
aqueles que traziam figuras humanas e representavam cenas ou personagens reincidentes.
Ou seja, optou-se, após um levantamento desse material, analisar alguns exemplos de
representações ou temáticas comuns e que possibilitassem uma reflexão a partir da nossa
problemática. Também estamos delimitados a cidade de Roma, visto que foi ali que esse
tipo de arte começou a se desenvolver e porque estamos analisando aqui apenas uma
tradição ocidental.
O contexto histórico no qual essa pesquisa se insere abarca a transição entre o
Cristianismo Primitivo e seu movimento de consolidação e ascensão, em especial após a
“Paz da Igreja” em 313 d.C.5. Por esse motivo, nos deparamos com um cenário
culturalmente efervescente, do qual surgem uma pluralidade de narrativas que buscam
seu espaço e uma hegemonia perante as demais. Esses discursos estabelecem valores que
se desdobram nos mais diversos setores, dentre estes, o próprio corpo. Como bem
apontado acima por Mauss, a vivência corporal de uma sociedade está sempre sujeita a
sua respectiva cultura, e, portanto, é imposta; porém, complementando essa reflexão,
julgamos que períodos como a Antiguidade Tardia, marcados por transições,
ressignificações e adaptações, possibilitam uma visualização mais clara desses controles
em função dos embates dos quais são palco.

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Esse momento será melhor delineado logo em seguida, porém, em síntese, a “Paz da Igreja” é uma
designação dada ao período após o Edito de Milão, na qual o cristianismo ganha um status legal e a
liberdade de culto é estabelecida.
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Por fim, esse trabalho se divide em três capítulos: no primeiro, abordaremos a


mobilização do cristianismo para formular sua visão sobre o corpo, localizando nossas
documentações neste processo e debatendo as interseções culturais estabelecidas entre
este e a cultura tradicional romana politeísta; no segundo, discutiremos de forma mais
aprofundada nossa perspectiva teórico-metodológica, detalhando como essa nos auxilia a
desdobrar nossa problemática. Por fim, no terceiro capítulo, já tendo sido debatida nosso
arcabouço teórico e os contextos do qual nossas documentações estão envolvidas,
partiremos para a discussão da nossa problemática, apresentando nossas reflexões a partir
da análise comparativa das fontes com relação a representação do corpo.
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1. Delimitação espacial, temporal e fontes


1.1 Ascenção cristã e a formulação de um novo paradigma corporal
A história do Cristianismo pode ser claramente dividida em dois momentos
fundamentais: o período de perseguição, martírio e ilegalidade; e o de ascensão,
codificação e, formulação da doutrina (o que posteriormente, inclui, inclusive,
perseguição aos grupos que faziam frente a fé oficial, sendo ou não cristãos). Tais etapas
tem como ponto de inflexão o ano de 313 d.C, no qual o Imperador Constantino se
converte ao cristianismo e é estabelecido o Édito de Milão, um documento proclamatório
no qual se determina que o Império Romano seria neutro em relação ao credo religioso e
acabando oficialmente com toda perseguição sancionada, especialmente aos cristãos.
Essa nova configuração do mundo romano, que é gestada dentro do cenário da “Paz da
Igreja”, possibilita a entrada do cristianismo na esfera pública, assim como a construção
mais refinada de seu discurso em termos de ortodoxia e dogmas.
Ainda assim, as transformações no mundo romano são anteriores a mudança de
legislação com relação ao cristianismo e não se restringiram apenas ao campo religioso.
Desde o reinado de Marco Aurélio (161-180 d.C.), o Mediterrâneo passa por lentas e
profundas desestabilizações, que irão conferir aos séculos do que se denomina
Antiguidade Tardia (IV e VII) uma grande originalidade. Vários são os elementos que
contribuem para que o período ganhe uma configuração bem diversa do mundo antigo
clássico, podemos citar: a entrada dos povos germânicos, as progressivas reformas do
Estado Imperial6 e a própria ascensão do cristianismo. A moral cristã chega a todos os
níveis da sociedade romana, que assimila novos hábitos e ideias: a família, a moral, o
corpo, a nudez, a vestimenta, tudo é ressignificado7. Já a conturbação política tem seu
ponto mais visível na divisão do Império em 395 d.C. e na dificuldade de conter os povos
germânicos nos limes da porção Ocidental. Estes, por sua vez, realizaram saques e
invasões durante o período, do qual os mais significativos foram o saque de Roma, em
410, empreendido pelo rei visigodo, Alarico; e o de 476, também a Roma, dessa vez
liderado pelo líder Germano, Odoacro. Esse último episódio, inclusive, resultaria no

6
Gradativamente, o Estado Imperial Romano foi se tornando mais centralizado, uma nova burocracia
emerge e, por fim, também se assiste uma maior valorização do exército. Nesse sentido, as cidades foram
se enfraquecendo, em contraste com uma nova corte que emergia. Importante lembrar também que desde
286 d. C., com a instituição da Tetrarquia, inaugura-se também a divisão do Império em Ocidente e
Oriente. Situação esta, que permaneceu bem instável até seu estabelecimento definitivo em 395 d.C., com
Teodósio I. Ver: GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Editora Contexto. 1 ed.,
2013.
7
MARROU, Henri. Decadência romana ou antiguidade tardia? Trad. Herique Barrilaros Ruas. Lisboa:
Editora Aster, 1979, p. 11-16.
12

“fim” do Império Romano do Ocidente, com o destronamento do Imperador Rômulo


Augusto.
Ainda assim, segundo Peter Brown “a principal mudança durante esse período da
Antiguidade tardia é a lenta evolução de uma forma de comunidade pública a outra, da
cidade antiga à Igreja cristã8”. Por meio dessa reflexão, Peter Brown busca demonstrar
que por mais divergentes que sejam o período clássico, marcado pela modelo do homem
cívico, e o Tempora Cristiana, que molda o homem cristão do final da Antiguidade,
ambos podem ser analisados através de uma preocupação chave: a comunidade pública.
Nos dois períodos pode-se notar, segundo o historiador, que a vida pública exerce um
controle desmedido sobre a existência do indivíduo privado e, o ideal a ser seguido seria
de uma completa transparência da vida individual que fizesse referências aos valores
públicos. Como afirmam Marguerite Johnson e Terry Ryan, a sociedade romana, assim
como também a grega, tinham como uma característica fundamental a ênfase na questão
da reputação. A vergonha e a preocupação com a imagem pública conduziam as relações
e as escolhas dos indivíduos9. Nesse sentido, a vigilância sob quaisquer traços
comportamentais (gestos, olhares e etc) é uma constante muito significativa durante a
Antiguidade. Esse controle, no entanto, costumava ser exercido essencialmente sob as
classes mais altas, os “bem-nascidos”, pois estes precisavam se manter de acordo com as
normas morais exigidas por sua posição social, evitando o “contágio moral10”. Enquanto
isso, menos era exigido das classes desfavorecidas.
Para as elites, ainda no período antonino, o corpo era o “indicador mais sensível e
evidente de um comportamento correto, e o controle harmonioso desse corpo pelos
métodos gregos tradicionais (exercício, regime alimentar e banhos) constitui(a) sua mais
íntima garantia11”. Marcada pela obra de grandes médicos, dentre os quais um dos mais
significativos é Galeano (129-199), o período assistiu à formulação de um código moral
que deveria ter no corpo sua sede fisiológica. Nesse sentido, saúde e postura pública eram
inseparáveis. Segundo esse modelo, os “bem-nascidos” deveriam evitar os excessos de
qualquer natureza, como explosões emocionais e vida sexual desregrada.

8
BROWN, Peter. Antiguidade Tardia. In: DUBY, G.; ÀRIES, P. (Orgs.) História da Vida Privada: Do
Império Romano ao ano mil. Vol. 1 São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.226.
9
JOHNSON, Marguerite; RYAN, Terry. Sexuality in Greek and Rome Society and Literature: a
Sourcebook. London and New York: Routledge, 2005, p.60.
10
BROWN. Peter. Antiguidade Tardia. op. cit., p. 232-233.
11
Ibid.
13

Sobre esse último aspecto, é interessante citar a moral austera das elites romanas
do período antonino com relação ao sexo. O prazer sexual em si não era um problema.
Distinção com relação as práticas heterossexuais e homossexuais também não existiam.
No entanto, os membros das altas classes deveriam respeitar certos códigos morais, pois
o prazer poderia exercer uma influência significativa sobre o comportamento público. A
restrição fundamental era não se relacionar com alguém de posição social inferior, pois
isso já configurava o “contágio moral” citado anteriormente. Para além disso, a
passividade também não era bem vista, pois denotava inferioridade. Desse modo, homens
de classes superiores não poderiam submeter-se a uma função passiva no ato sexual com
homens de estratos sociais mais baixos. As relações heterossexuais seguiam a mesma
lógica e qualquer forma de inversão da hierarquia era condenada, a exemplo a prática da
sexualidade oral com uma mulher. Fisiologicamente inferior12, a relação excessiva com
uma mulher poderia trazer prejuízos a vida pública do homem - as mulheres eram
inferiores aos homens de forma naturalmente irrefutável. Nesse sentido, certa abstinência
sexual era recomendada. Sobre essa questão, Peter Brown afirma:
O puritanismo bem real das morais tradicionais das classes superiores nos
mundos grego e latino pesa muito sobre aqueles que as adotaram. Não
depende da sexualidade em si, mas baseia-se, antes, na sexualidade como
fonte possível de “contágio moral”. Através da efeminação,
supostamente resultante de prazeres sexuais excessivos com parceiros de
ambos os sexos, a complacência sexual pode com efeito corroer a
superioridade incontestada do ‘bem-nascido’13

Ou seja, a vigilância e austeridade eram já uma realidade no período antonino,


porém, eram restritas as elites, que mesmo conservando os códigos rigorosos, não se
furtavam em oferecer para o “povo” os prazeres do qual se abstinham ou deveriam se
abster. A vida pública exigia aos notáveis o cultivo da popularitas (vontade de agradar o
povo) e, portanto, carnificinas e espetáculos “vulgares” eram ofertados aqueles que por
sua inferioridade não precisavam se sujeitar a uma vida moralmente correta14.

12
A explicação para a hierarquia existente entre homens e mulheres era irrefutável porque era formulada
pela própria natureza. Os homens, segundo os médicos da época, foram fetos que realizaram seu potencial
pleno, tendo reunido a quantidade suficiente de “calor” ao se instalar no ventre. As mulheres, nesse caso,
não tinham uma outra biologia, mas eram “homens imperfeitos”. Elas não teriam recebido quantidade
suficiente de calor no ventre materno. Essa “falta” era a explicação para a flacidez e menor tonicidade do
corpo feminino. Ainda assim, essa polaridade era essencial na geração de filhos. Ver: BROWN. Peter.
Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1990, p. 19 – 20.
13
BROWN. Peter, Antiguidade Tardia. op. cit., p. 234.
14
Ibid.
14

Outro aspecto marcante da vida romana com relação ao corpo era o cultivo de
certa indiferença com relação a nudez pública. Uma das razões para essa indiferença era,
sem dúvida, o fato de que a nudez para aquela sociedade, como afirma Peter Brown, não
se relaciona sempre e unicamente a sexualidade15. Para as mulheres, a nudez só seria uma
preocupação se se realizasse de modo inconveniente. A nudez diante dos escravos é
insignificante e a exibição de mulheres dos baixos estratos também não cria polêmicas,
pois é apenas um traço de sua inferioridade – as restrições morais das classes
aristocráticas não devem lhe ser exigidas. Quanto a nudez pública masculina, era
totalmente naturalizada e incontornável para a vida social das elites, afinal os banhos
públicos era um dos pontos de encontro de grande relevância para a vida cívica. Do
mesmo modo, a nudez do atleta era uma reafirmação da sua posição superior16. Por esse
motivo, a vestimenta, mesmo entre a aristocracia, não exercia um papel fundamental: “A
postura de um homem, nu ou vestido, é a verdadeira marca de sua condição17”
Henri Marrou também discute a questão da vestimenta nesse período transitório,
atestando mudanças significativas18. Sem entrar em detalhes, o que o historiador percebe
é que as alterações da forma das costuras, dos modelos das roupas e da ornamentação
destas produz mudanças psicológicas e, eventualmente, morais. Afinal, a roupa determina
o modo de andar e se portar e é reveladora no sentido de demonstrar que imagem as
pessoas desejam passar. Como o historiador demonstra, o tipo de vestuário que emergiu
na Antiguidade tardia dava mais liberdade aos movimentos, possibilitando, inclusive, ao
trabalhador manual ou escravo que costumavam trabalhar nus, utilizar roupas. Desse
modo, ocorre um gradativo abandono do ideal que relacionava nudez com civilização19e,
consequentemente, passam a emergir algumas reservas diante da nudez total. Como
citado anteriormente essa transição não se deu de forma abrupta, entretanto, aos poucos
foi se impondo uma nova forma de relação com o próprio corpo que reformulava as

15
Ibid., p. 235.
16
Ibid.
17
Ibid.
18
O princípio condutor do vestuário durante a primeira Antiguidade consistia, como indica Henri Marrou,
na utilização de uma peça de tecido flexível – himation, dos gregos; ou toga romana. Já para roupagem de
baixo ou interior era característico o uso Khiton, túnica. A utilizada pelas mulheres era designada peplos, e
não se distinguia da dos homens a não ser pelo tamanho. A partir da Antiguidade Tardia, a toga passa a ser
usada apenas em ocasiões específicas e cerimoniais. Enquanto isso, a túnica interior passa a ser cosida. O
traje desse período já é um prenúcio do traje moderno: unido por costuras, fixado ao corpo e bem menos
amplo que a antiga roupagem Ver: MARROU, Henri. Decadência romana ou Antiguidade tardia?. op. cit.,
p. 17-22.
19
A nudez para os antigos era uma marca de sua civilidade, em oposição aos povos considerados “bárbaros”
que andavam vestidos
15

definições de pudor, vergonha, sexualidade e erotismo – que segundo Marrou é uma das
origens longínquas do que viria a ser o amor cortês. Por fim, apesar de reconhecer a
longevidade desse processo ligado ao vestuário, Marrou atesta seu caráter radical,
afirmando que, ainda hoje, vivemos de certo modo sob influência dessa sensibilidade,
herdando diversos tabus dos quais, mesmo nos considerando já muito libertos,
enfrentamos na contemporaneidade20.
A ascensão e “oficialização” do cristianismo aprofundam mais ainda essas
transformações. A afirmação feita com relação a importância da correspondência entre a
vida privada e a pública é ainda uma verdade; porém, um dado muda todo o sentido desta
vida pública: abandona-se a moralidade seletiva. Ou seja, os filósofos cristãos não
escrevem mais apenas para um grupo ou classe social, suas restrições e códigos morais
englobam a todos. Nas palavras de Peter Brown: “A ‘democratização’
surpreendentemente rápida da contracultura dos filósofos da classe superior pelos
dirigentes da Igreja é a mais profunda revolução do período clássico tardio21”. Nesse
sentido, o advento da filosofia cristã rompe o padrão de distância social tão crucial no
período anterior, trazendo importantes consequências e desdobramentos nos corpos
romanos. O mais importante desse dado para a pesquisa que se desenvolve aqui é que
quando tratarmos das narrativas sobre o corpo, estamos falando de obras que se destinam
a um público muito amplo, que ao seu modo, ignora as classes sociais e outras divisões
essencialmente “terrenas”.
Em Efésios, Paulo enumera: “Um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus
e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos, e em todos22”. Essa citação é só um dos
exemplos que podem ser verificados com relação a esse ponto. Em termos teóricos, ao
menos, o cristianismo tende a “igualar” todos a condição de filhos de Deus, “diluindo”
toda categoria de grupos antagônicos. Ainda de acordo com Paulo de Tarso, o batismo
seria o caminho para selar essa origem em comum de todos os homens. Segundo o
religioso, o banho purificador resultaria num despojamento total de todas as categorias
terrenas anteriores – sejam religiosas, sociais, econômicas, de gênero, dentre outras.
Desse modo, o indivíduo estaria sendo iniciado como membro de uma nova comunidade,
assumindo uma identidade “única e não estanque23”.

20
MARROU, Henri. Decadência romana ou Antiguidade tardia?. op. cit., p. 20.
21
BROWN. Peter. Antiguidade Tardia. op. cit., p. 240.
22
Efésios 4: 5-6
23
BROWN. Peter. Antiguidade Tardia. op. cit., p. 246.
16

Podemos perceber que a mutação impulsionada pelo cristianismo na sociedade


romana tardia trouxe menos novidades morais do que talvez costuma se julgar – pagãos
moralistas e judeus já eram adeptos de certas práticas apregoadas pela nova religião.
Inclusive, é preciso atentar para não assumir uma postura anacrônica, como bem apontou
Henri Marrou, ao declarar o perigo de introduzir no cristianismo primitivo o aspecto
revolucionário visto do nosso tempo. Por mais que os valores cristãos apresentassem uma
novidade para o período, o historiador reitera que estes se infiltraram de forma discreta
na sociedade antiga e se expandiram entre algum sentimento de desconfiança e, por vezes,
hostilidade24. Desse modo, o que inicialmente e de forma prática (ou seja, dentro da vida
mais cotidiana da população romana) se apresentou como excepcional no cristianismo foi
fundamentalmente a criação de um grupo mais amplo, interligado por uma forte rede de
solidariedade, no qual estipulou-se uma maior rigidez na aplicação dessa moral, que se
tornou mais íntima em sua interferência na vida dos crentes25.
Podemos inferir que esse fenômeno é o desdobramento de uma peculiaridade do
cristianismo frente ao politeísmo, muito bem demarcada por John Scheid. Para o
historiador, a religiosidade romana tradicional funciona a partir da lógica da ortopráxis,
enquanto o cristianismo, se estabelece como ortodoxia26. Ou seja, no primeiro caso,
importava a observância e execução correta dos ritos determinados pela tradição; por
outro lado, para o cristianismo e as demais religiões monoteístas, a observância se
estendia não apenas as atitudes, mas também aos pensamentos, sentimentos e omissões27.
Desse modo, o ato religioso dentro da estrutura politeísta tendia ao âmbito comunitário,
só interessando ao indivíduo na medida de seu pertencimento a ela. Carregando esse
aspecto majoritariamente público, nota-se uma dissociação entre crença explícita e prática
religiosa28. O cristianismo, diferentemente, tem uma abordagem essencialmente
individual, comportando um código moral que engloba, inclusive, a vida mais íntima.
No entanto, não podemos confundir esse aprofundamento da vigilância com a
existência de uma moral cristã bem delineada e unificada. A entrada da Igreja no âmbito

24
MARROU, Henri. Decadência romana ou Antiguidade tardia?. op. cit., p. 55.
25
BROWN. Peter. Antiguidade Tardia. op. cit., p. 252.
26
SCHEID, J. Définitions, notions, difficultés. In : _______ . La religion des Romains. Paris: Armand
Colin, 1998, p. 22-28 Apud BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha. Festa das Lemuria: os mortos e a
religiosidade na Roma Antiga. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho
2011.
27
"Pois é do coração que vêm as más intenções: crimes, adultério, imoralidade, roubos, falsos testemunhos,
calúnias. Essas coisas é que tornam o homem impuro; mas comer sem lavar as mãos não torna o homem
impuro" (Mateus 15,19-20).
28
BUSTAMANTE. Festa das Lemuria: os mortos e a religiosidade na Roma Antiga. op. cit., p. 2.
17

legal com o Tratado de Milão e, posteriormente seu estabelecimento como religião oficial
do Império, não seriam suficientes para consolidar uma doutrina única. Inúmeros
concílios se sucederam para formatar da forma mais clara possível o conjunto de valores
cristãos e, consequentemente, os heréticos, e esse processo se estendeu por muito tempo.
Nesse sentido, inclusive, mais apropriado seria usar o termo “cristianismo” no plural,
fazendo jus a diversidade de manifestações e disputas internas dentro do cristianismo(s)
primitivo que impossibilitam alegar a existência de uma religião consolidada 29. Afinal,
este (o cristianismo) em seus séculos iniciais foi, no geral: “(...) um conjunto pouco
harmônico, confuso e informal de diferentes grupos religiosos seguidores de Jesus de
Nazaré(...). Com frequência esses grupos mantinham doutrinas teológicas e práxis
cotidianas, não apenas diferentes, mas frontalmente opostas30”.
Essa “falta de harmonia” do cristianismo em seu estado primitivo pode ser
compreendida através de seu contexto de nascimento e gestação. Cercado por uma série
de influências filosóficas que movimentavam o mundo antigo, a doutrina cristã e suas
diversas manifestações não poderiam ascender sem absorver ou se apropriar de algum
aspecto já corrente entre os romanos. O diálogo mais profícuo e relevante para o tema
dessa pesquisa se deu entre cristianismo e helenismo, aspecto fundamental para a análise
da representação dos corpos nas fontes que serão investigadas.

1.1.1 Helenismo e Cristianismo


O helenismo se inicia historicamente a partir das conquistas de Alexandre, O Grande
(356–323 a.C.), e representou a difusão da cultura grega desde o Ocidente até o Egito e
Oriente Médio, tornando viável trocas culturais em dimensões inéditas até então31. O
sucesso desse fenômeno e o que permitiu que as trocas culturais fossem tão abrangentes
e sistemáticas foi o fato de servirem como estratégia de dominação. Alexandre, o Grande,
foi perspicaz ao compreender que a força apenas, não era suficiente ou era pouco eficaz
no momento de consolidar o domínio sobre o outro. Desse modo, ao conquistar as regiões,

29
CHEVITARESE. André Leonardo. Cristianismos: questões e debates metodológicos. Rio de Janeiro:
Editora Kline, 2016, p. 9-10.
30
DUCH, Lluís e MÈLIEH, Joans-Carles. Escenarios de la corpereidad: antropologia de la vida cotidiana.
Trad. Enrique Anrubia Apapici. Madrid: Editora Trota, 2005, p.86: “este, al menos durante um par de
siglos, fue um conjunto poco armónico, confuso e informal de diferentes grupos religiosos seguidores de
Jesus de Nazaré (...) Com frecuencia, estos grupos(...) mantenian doctrinas teológicas y práxis cotidianas
no solo diferentes, sino incluso frontalmente opuestas” (tradução nossa)
31
Não queremos com isso afirmar que essas trocas não ocorriam no período anterior. Evidências
arqueológicas provam, inclusive, o contrário. A “novidade” do helenismo foi tornar essa movimentação
mais intensa.
18

estimulava-se a criação de laços e correspondências que fossem capazes de unir


conquistador e conquistado no âmbito da cultura. Evidente que para ser aceito, dever-se-
ia evitar imposições muito severas, de modo que os dois lados fossem “beneficiados”. Ou
seja, o que ocorria eram negociações nas quais se estabelecia uma via de mão dupla: tanto
conquistador, quanto subjugado deveriam estar dispostos a “agregar” e “doar” elementos
culturais. O historiador Norberto Luiz Guarinello32 chama a atenção para esse aspecto
pouco impositivo do processo, sugerindo cautela a referência de um fenômeno
“helenizador” que chegou até o Oriente, no sentido de que apenas a cultura grega foi
difundida. Se opondo a isso, ele se mostra adepto do termo hibridização cultural, que
seria mais fiel a dinâmica dessas trocas culturais. Somando-se a isso, Guarinello atesta
que a força desse processo se deu sobretudo sob as elites das grandes cidades e menos
sobre a população como um todo:
“(...) a maior parte das regiões conquistadas manteve sua língua e cultura
local, integrando-se ao mundo dos conquistadores. O Egito, por exemplo,
ao sul de Alexandria, continuou sendo uma terra de camponeses e de seus
templos(...). O que chamamos de helenismo diz respeito, sobretudo, à
expansão da cultura grega entre as elites citadinas33.”

Essa perspectiva de relativização da simplicidade e homogeneidade desse processo é


essencial, em especial porque evidencia que os encontros culturais não ocorrem a partir
de uma via de mão única (tal perspectiva estará diretamente ligada com o quadro teórico
que será desenvolvido nesta pesquisa que envolve o conceito de transculturação, de
Marshall Sahlins). Ainda assim, mesmo não sendo uma verdade que a cultura grega tenha
sido “absorvida” sem critério por uma massa de indivíduos de diferentes classes sociais,
sem ser alterada ou readaptada, é importante demarcar seu espaço como a cultura
referencial da civilidade para a época. E como bem expressou Guarinello, as elites
citadinas terão um papel fundamental na manutenção e profusão desse topos. Mesmo não
tendo um impacto revolucionário em todas as regiões que alcançou e não tendo
necessariamente uma atuação muito relevante no cotidiano das pessoas comuns, o
helenismo tem um papel muito importante no âmbito filosófico (e por esse motivo mais
restrito às elites) e, consequentemente, religioso.
A morte de Alexandre e a conquista dos territórios gregos em 146 a.C. por Roma
marca o início do “helenismo romano”. Ou seja, a era helenística marcou a transição da
sociedade grega para a sociedade romana. Marquemos aqui configurações características

32
GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Editora Contexto. 1 ed., 2013.
33
Ibid., p. 121.
19

do período helenístico em termos filosóficos e religiosos – que configuram os âmbitos


essenciais para essa pesquisa. Com relação ao primeiro, nota-se a continuidade das
escolas filosóficas (Platão, Pitágoras e Aristóteles) e, simultaneamente, o surgimento de
novas correntes, como os epicuristas e os estoicos, que se voltam mais para a reflexão do
indivíduo em detrimento de sua atuação pública. Religiosamente, nota-se a profusão de
tendências agnósticas e alguns misticismos.
Com a conquista do Império Persa, esse processo, agora levado a cabo pelos romanos,
se expande por cidades que incluem Jerusalém. Ainda na época de Jesus na Palestina, o
período helenístico vigorava significativamente na região e, durante muito tempo, a
influência grega se manteve dominante; prova disso é o Novo Testamento ter sido escrito
pela primeira vez em grego. Desse modo, percebe-se que a investigação do cristianismo
está descolada da compreensão do movimento helenístico: os seus laços são muito
estreitos e isso vai se tornando mais evidente a partir da análise das fontes. Surgindo como
uma seita judaica, o cristianismo já nasceu imerso na realidade helenística e o próprio
judaísmo particularmente já havia sofrido a influência desta em seu pensamento.
Buscando compreender a fertilidade desse diálogo entre cristianismo e helenismo,
Arnold Toynbee formula alguns argumentos capazes de justificar sua excepcionalidade.
Para isso, o autor faz uma comparação entre a interação helênica com o cristianismo e
com o judaísmo, investigando as razões que fizeram com que essas duas manifestações
religiosas, mesmo tão próximas em seus princípios, tivessem trajetórias e adquirissem
status tão distintos no mundo antigo. Primeiramente, é importante marcar que é
característico da religiosidade romana tradicional, a tolerância com relação a outras
manifestações – tal como já comentado ao tratarmos de hibridização cultural. No próprio
curso da assimilação do helenismo pelos romanos, o panteão olímpico foi adotado pelos
etruscos e amalgamados com cultos de origem latina34.
Dentro desse cenário, pode parecer curioso o fato de que em 64 d.C. o cristianismo
foi posto na ilegalidade, provocando uma reação mais extrema do que a que tinha sido
colocada em prática com os judeus, absolutamente helênica. A tática do governo romano
era a não tolerância aos judeus fanáticos (entendidos aqui por aqueles crentes militantes
que defendiam ser fundamental o estabelecimento de um Estado Judaico), e a adoção de
uma atitude pacífica diante daqueles grupos que abrissem mão do uso da força. Ou
seja, mesmo com conflitos, aos judeus foi concedida alguma liberdade de culto e prática.

34
TOYNBEE. Arnold J. Helenismo: história de uma civilização. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1960, p. 200.
20

Suposto herdeiro natural dessa política, o cristianismo não foi, porém, “agraciado” com
a mesma legislação. A causa para esse temor da expansão cristã pelos romanos encontra
uma resposta, segundo Toynbee, na afinidade que se estabeleceu entre esses “opostos”.
O governo Imperial teria sabido compreender as divergências fundamentais entre os dois
casos.
Ao abrir mão da consolidação de um Estado judaico, os judeus deixavam de
representar uma ameaça. Além disso, o judaísmo não representava nem mesmo um
concorrente com força suficiente para confrontar a religião tradicional romana. Nada no
judaísmo deveria despertar interesse naquela sociedade helênica: um “monoteísmo
intransigente” e a obrigação de seguir as Leis de Moisés eram incompatíveis com os
valores dos cidadãos romanos. Ao contrário, o cristianismo sabia fazer exceções ao
helenismo “o que do ponto de vista judaico, era um escândalo, e do ponto de vista romano
é um perigo35”. De acordo com Toynbee, essa sedução que o cristianismo lançou nos
helenos e que o afastou do judaísmo, estava ligada a não observância dos dois primeiros
dos Dez Mandamentos36: a primeira grande infração nesse sentido teria sido o
“endeusamento” de um homem, ou seja, a associação da divindade a um homem comum,
Cristo. Tal “erro” já carrega em si o aspecto helenizante. A segunda infração foi o fato da
Igreja cristã se apropriar dos meios de propaganda tipicamente “pagãos”, tais como as
artes visuais helênicas.
As concessões ao helenismo, fizeram com que o cristianismo se tornasse algo além
de uma seita judaica e despertasse a desconfiança do governo imperial. Ou seja, o
cristianismo assumiu um aspecto dúbio: pernicioso e tentador para os helenos. Era
simultaneamente excludente em relação a religião oficial e eficiente em cooptar para si
seus eventuais seguidores desgarrados. A postura do governo imperial foi, portanto,
coerente com as potencialidades que a religião recém-nascida do seio do judaísmo
apresentava. Toynbee resume a questão do seguinte modo:
(...) ao mesmo tempo que abria seus braços ao helenismo, tentando as
famintas almas helênicas a procurarem apoio espiritual no seio da Igreja,
o cristianismo mostrava a mesma intransigência judaica na rejeição de
todos os aspectos do modo de vida romano que não lhe pareciam dignos
de serem adotados37.

35
TOYNBEE. Arnold J. Helenismo: história de uma civilização. Op. cit., p.201.
36
Êxodo 20: 1-5: “E Deus falou todas estas palavras: Eu sou o Senhor, o teu Deus, que te tirou do Egito,
da terra da escravidão. Não terás outros deuses além de mim. Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma
imagem de qualquer coisa no céu, na terra, ou nas águas debaixo da terra. Não te prostrarás diante deles
nem lhes prestarás culto, porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que castigo os filhos pelos
pecados de seus pais até a terceira e quarta geração daqueles que me desprezam”
37
TOYNBEE. Arnold J. Helenismo: história de uma civilização. Op. cit., p. 202.
21

Mantendo esse “espírito de intolerância” judaico, o cristianismo se configurava


aos moldes gregos. Em contrapartida, encontrou um helenismo já desgastado, uma
sociedade que aos poucos via a decadência dos autogovernos municipais que contrastava
com um autogoverno eclesiástico (de modelo helênico) pulsante e emergente nas
comunidades cristãs. A profusão do evangelho e o movimento de ascensão do
cristianismo estreitaram ainda mais esses laços. O mais evidente desafio dos mais novos
conversos que desejavam espalhar a “palavra de deus” se traduz basicamente em
reformular uma mensagem que nasceu semita (e que por isso, já continha algum “gene”
helênico) para um mundo formado por categorias gregas. O exemplo mais evidente desse
esforço foi o Novo Testamento, como já citado, que em sua primeira versão foi escrito
em grego. Nesse processo, a mensagem “original” precisa passar por adaptações e, por
vezes, incorporar conceitos não muito equivalentes à sua “primeira versão” e isso pode
acontecer simplesmente por impasse de tradução de certos vocábulos. Em segundo lugar,
é importante citar que os cristãos lançaram mão de muitas estratégias discursivas já
existentes, usando tanto historietas, metáforas e parábolas já conhecidas pelos romanos,
assim como o gênero literário essencialmente grego: as epístolas38. Aproximadamente
nos anos trinta do século I d.C., André Chevitaresse aponta para a possível formação de
três grupos distintos que se desmembraram após a morte de Jesus, seriam eles:
(a) Jesus restrito a um judaísmo de língua aramaica (...); (b) Jesus
inserido em um judaísmo de língua grega, visto como um profeta,
que dá a sua vida ao buscar reformar a religião de Israel; (c) Jesus
inserido em um judaísmo de língua grega, que após sua morte
ressuscita. Este é o caso dos judeus que fogem de Jerusalém e se
espalham pela diáspora judaica39(...).

Desses três grupos estipulados de forma hipotética, não há muitos dados sobre o
primeiro e a tendência é que ele tenha sido rapidamente posto de lado pelos outros dois,
que, por sua vez, estão inseridos em um judaísmo mais helenizado. Desse modo, foram
“vitoriosos” os grupos que cultivavam uma percepção mais inclusiva sobre a Igreja,
aberta às “conversões” e às “aderências” de grupos gregos politeístas. Para além disso, as
pesquisas veem mostrando a existência de um intenso diálogo entre “b” e “c” com os
diferentes gêneros literários gregos, a exemplo do já citado, a epístola40.

38
CHEVITARESE. Cristianismos: questões e debates metodológicos. op. cit., p. 102-103.
39
Ibid., p. 103.
40
Ibid.
22

No campo da educação, os cristãos fazem uso e se apropriam do ideal de Paidéia


grega, que, segundo o historiador Werner Jaeger, pesquisador do conceito grego de
educação, “embora
fosse mais associada à cultura grega, foi um elemento chave para a expansão inicial do
cristianismo41”. Incluindo esse princípio, a educação cristã, visando o desenvolvimento
da personalidade humana fez uso de textos da cultura grega clássica, do ensino das artes
liberais; enfim, se utilizou dos mais diversos elementos helênicos para conquistar seus
adeptos. Isso não quer dizer, no entanto, que o cristianismo não exerceu suas alterações
no conceito grego: segundo Jaeger, o cristianismo tendeu a priorizar a moralidade e os
valores, dos quais Cristo seria o modelo. Nesse sentido, o historiador aponta o processo
de inculturação, que se resume basicamente, por uma influência mútua42.
A partir dessas explanações, nota-se que o fenômeno helenístico é dotado de
complexidade e permeia praticamente todas as transformações e movimentações do
mundo antigo, nas esferas religiosa, moral, econômica, política e outras tantas. Do mesmo
modo, os valores e correntes filosóficas que estavam sendo gestadas não só tiveram que
se utilizar de algum elemento daquela linguagem vigente (helenismo), como também
ofereceram a ela suas inovações. Em especial na Antiguidade tardia, esse embate ou
casamento teve seu momento auge, o que imprimiu em suas narrativas riquezas e
ambiguidades.
Devido a esse misto de influências, Alain Cugno demonstra a dificuldade de o
cristianismo pensar o corpo de forma de forma coerente e unitária43. Ainda assim, o
pensamento cristão é dotado, como demonstra o mesmo autor, de uma perspectiva
absolutamente original com relação ao corpo: este, ganha centralidade dentro da vida
humana e religiosa. Esse protagonismo se manifesta no mais relevante episódio da saga
cristã: a encarnação do filho de Deus. De forma inédita, no cristianismo o divino é
“corporificado” e colocado sob as mesmas amarras humanas e a Antiguidade Tardia serve
de palco para a emergência dessa perspectiva44. Ao assumir aquilo que é mais

41
JAEGER, Werner. Cristianismo primitivo y Paidéia grega. México: FCE, 1985. p. 107-129 apud
GRAGERSSEIN, Gabriela. A Paideia dos Pais da Igreja. Revista Caminhando, vol. 9, n. 1, jan/jun,, p. 71–
84, 2005, p. 76.
42
Ibid., p.77
43
Cugno, A., Biblie et philosophies contemporaines du corps, en D. Bourg y A. Lion (eds.), La Biblie em
Philosophie. Approches contemporaines, Paris, Cerf, 1993, p. 145-163 Apud DUCH, Lluís e MÈLIEH,
Joans-Carles. Escenarios de la corpereidad: antropologia de la vida cotidiana 2/1. Trad. Enrique Anrubia
Apapici. Madrid: Editora Trota, 2005.
44
SCHIMITT, Jean-Claude. O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo: ensaios de antropologia medieval. Trad.
Maria Ferreira. Petrópolis: Editora Vozes, 2014, p. 311: “Se o cristianismo introduziu uma ruptura na
história ocidental, se por essa razão a Antiguidade tardia é o momento de uma verdadeira revolução,
23

característico da vida do homem do ponto de vista religioso, a ambiguidade; o Deus


cristão inaugura uma nova relação entre divino e humano. Como colocado por Jean-
Claude Schmitt “(...) a partir do momento em que a crença – ou, mais exatamente, o
dogma afirma que o filho de Deus tomou corpo de homem, o homem torna-se lugar da
realização do divino. Na figura de Cristo, o homem e Deus são indissociáveis45”
Outro ponto importante que reafirma o protagonismo do corporal dentro da
religiosidade cristã é a ressurreição de Jesus. Juntamente com a alma, o corpo retorna a
vida e é a corporeidade de cristo que constitui a própria esfera da revelação46. Sobre essa
questão da valorização da ressurreição da carne e não apenas da alma, Agostinho afirma
em sua obra A Cidade de Deus que a carne e todos os membros, sofrendo qualquer tipo
de desintegração, serão reestabelecidos na ressurreição, retomando sua integridade.
Segundo o bispo “(...) nem as feras devoradoras impedirão a ressurreição dos corpos
daqueles de quem nem sequer um dos cabelos se perderá47.” Ou seja, nesse caso, o corpo
não é um elemento descartável ou representado aqui de forma pejorativa. A carne
participa do processo da salvação e em certa situação de igualdade com a alma, pois se
manterá intacta.
Nessa mesma linha, Tertuliano escreve que “a carne é o gonzo da salvação48”,
demonstrando que do mesmo modo que o corpo constitui, em alguma medida, uma prisão
para a alma, ele também é uma porta para a salvação. Esta, por sua vez, se realiza por
meio dos rituais de Baptismo e Eucaristia. Reafirmando essa união entre carne e espírito,
Tertuliano completa: “É por ela (a carne) que a alma se une a Deus, pois é ela que permite
que a alma possa estar unida. (...) a carne se alimenta do sangue e do corpo de Cristo para
que a alma se farte de Deus49”. Schmitt, ao comentar essas passagens evidencia que o
cristianismo nunca se satisfez com um dualismo rigoroso, muito mais visível nas
correntes heréticas como os maniqueus dos primeiros séculos50.

certamente é porque, em primeiro lugar, o corpo em cristandade acabou adquirindo uma dignidade que
nunca tivera então”
45
Ibid., p. 22
46
DUCH, Lluís e MÈLIEH, Joans-Carles. Escenarios de la corpereidad: antropologia de la vida
cotidiana. Op. cit., p. 89
47
AGOSTINHO, Cidade de Deus, I- 13.
48
TERTULIANO. De resurrectiones carnis, 8 apud SCHIMITT, Jean-Claude. O corpo, os ritos, os sonhos,
o tempo: ensaios de antropologia medieval. Op. cit., p. 307
49
Ibid.
50
SCHIMITT, Jean-Claude. O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo: ensaios de antropologia medieval. Op.
cit., p. 307
24

Lluís Duch e Joans-Carles Mèlieh chamam atenção para um descompasso existente


entre um caráter “anticorporal” designado ao cristianismo e as atitudes de Cristo,
presentes nos evangelhos. Eles argumentam que as ações mais significativas de Jesus de
Nazaré, que traziam a eminência do Reino de Deus, tinham uma dimensão somática; por
exemplo, a cura de enfermos, a ressurreição de mortos e a multiplicação de pães e peixes.
Afirmam ainda que a tradição evangélica estabelece critérios de divisão entre justos e
injustos a partir de julgamentos que envolvem o cuidado com o corpo do próximo como
visto em Mateus: “Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de
beber; era estrangeiro, e hospedastes-me; estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-
me; estive na prisão, e foste me ver51”. Sobre isso, os mesmos autores afirmam que: “O
pensamento órfico-platônico, que considera o corpo como a prisão ou a sepultura da alma,
é estranho e completamente contrário à mensagem do Novo Testamento e, pelo menos
teoricamente, à tradição cristã posterior52”.
Mesmo assim, o que é possível notar com frequência a partir, tanto de obras do
período, como das configurações históricas do cristianismo, é a focalização de posições
dualistas, que inferiorizam o corpo. A explicação para isso estaria justamente na
influência de elementos helenísticos na formulação da doutrina cristã e sua constante
necessidade de se adaptar e se fazer ouvir em mundo dominado por essas categorias. As
tendências diversas e, em especial advindas das tradições grega e judaica, teriam sido
responsáveis, não apenas por introduzir as noções dualistas no pensamento cristão, como
também por tornar mais difícil uma conciliação em torno das questões da corporeidade.
A influência grega teria feito com que os grupos cristãos ignorassem a novidade que
estava sendo “anunciada”. Nesse sentido:
(...) apesar da afirmação absolutamente positiva do corpo humano, muitas
vezes o mesmo Novo Testamento e, muito mais, a história posterior do
Cristianismo são cruzadas - diríamos" anti-cristianamente"- pela tensão
entre “acima” (espírito) e "abaixo" (corpo), entre "céu" e "terra", entre o
"princípio espiritual" e o "princípio corporal53.

51
Mt 25: 35-36
52
DUCH, Lluís e MÈLIEH, Joans-Carles. Escenarios de la corpereidad: antropologia de la vida cotidiana.
Op. cit., p. 90 :“el pensamiento órfico- platônico, que considera el cuerpo como la prision o la tumba del
alma (soma-sema), es extraño e, incluso, completamente contrario al mensaje del Nuevo Testamento y, al
menos teoricamente, a la posterior tradición Cristiana” (tradução nossa)
53
Ibid.: “(...) a pesar de la afirmacion absolutamente positiva del cuerpo humano, a menudo el mismo
Nuevo Testamento y, mucho más aún, la historia posterior del cristianismo se encuentran atravessados –
diríamos ‘anticristianamente’ – por la tension entre arriba(espíritu) y “abajo” (cuerpo), entre el “cielo” y la
“tierra”, entre el ‘principio espiritual’ y el ‘principio corporal’” (tradução nossa)
25

De acordo com essa leitura, nem corpo, nem alma eram pensados como princípios
essencialmente e inteiramente negativos. Ainda assim, é inegável que por meio do
cristianismo o mundo romano redefine sua forma de lidar com o corpo e essa redefinição,
construída a partir do cotidiano dos indivíduos, não conduz a um comportamento liberal
diante deste. Em geral, o movimento se deu de forma contrária. O surgimento do
movimento monástico, por exemplo, desestabiliza as noções de casamento e,
fundamentalmente, de sexualidade; somando-se a isso, os controles tornam-se mais
efetivos e íntimos. Afinal, neste momento, não são apenas os filhos da elite que devem
apresentar o comportamento “ideal”, mas sim, todos que vivem em sociedade. Porém, de
algum modo, aquela bem definida divisão social que marcava o período clássico, tem
continuidade.
O crescimento da Igreja a partir do século III d.C. é significativo: “em 248, a Igreja
de Roma dispõe de um clero de 155 membros e mantém cerca de 1500 viúvas e pobres.
Tal grupo, independentemente dos religiosos regulares, tão numeroso como a mais
importante corporação da cidade54”. Esse cenário, em especial a partir da conversão de
Constantino em 312 d.C., põe o clero e os bispos em protagonismo e o traço distintivo
que carregam, o celibato, o “desligamento do mundo”, faz com que se tornem uma elite
análoga à elite dos notáveis citadinos – os “bem-nascidos”55.
Por fim, para além da compreensão de que o corpo é um elemento rico de informações
e aspectos culturais de uma sociedade, ele parece ser singularmente central dentro do
pensamento cristão e uma de suas mais importantes chaves de interpretação, visto que é
presente no ponto auge da realização de qualquer cristão: a salvação. No entanto, o
protagonismo do corpo não resultou em um consenso sobre ele: seus usos ideais, sua
função, seus benefícios ou malefícios ao desenvolvimento da alma humana são, assim
como o cristianismo neste estado de consolidação, bombardeados por uma série de
influências filosóficas de um período conturbado em todos os âmbitos da vida humana
(político, social, econômico e cultural). A tensão e o diálogo mais paradigmáticos se dão
entre cristianismo e helenismo, e a intensidade destes faz com que seja impossível
compreender e interpretar o universo cristão, sem recorrer ao mundo Helênico.
As representações do corpo formuladas pelo cristianismo e que serão analisadas nas
documentações estão inseridas neste quadro maior que amalgama originalidade e
continuidade, consenso e conflito – mesmo que estejamos nos detendo apenas na tradição

54
BROWN, Peter. Antiguidade Tardia. op.cit., p. 260.
55
Ibid.
26

Ocidental. Ainda assim, o cristianismo é o grande “vencedor” dessa “disputa” e entender


algumas peças de seu discurso sobre o corpo é abrir um caminho para acessar um dos
aspectos mais naturalizados da vida humana e que, no entanto, é carregado de significação
e simbologia.

1.2 Os Pais da Igreja e a Tradição Ocidental


O século III d.C., como pudemos notar, é uma inflexão dentro da História da Igreja
Cristã. Seu estabelecimento como instituição legal, teve como consequência o aumento
do número de seguidores (o que não significa exatamente que para este período a Igreja
já fosse uma instituição popular, com mais adeptos do que seguidores das religiões
romanas), a afirmação de uma hierarquia eclesiástica e, por fim, a formulação de
discursos mais refinados sobre os valores e princípios cristãos. Nesse contexto, portanto,
a figura dos “Pais da Igreja”, ou seja, aqueles pioneiros em discorrer sobre as crenças,
valores e demandas cristãs, emerge e ganha maior relevância frente aquela sociedade. É
o caso dos autores dos documentos utilizados nesta pesquisa: Agostinho, bispo de Hipona
(354-430 d.C.); Ambrósio, bispo de Milão (340- 397 d.C.) e Jerônimo de Estridão (347-
420 d.C.). O enfraquecimento das cidades-estados coincidiu com o desenvolvimento
gradativo das comunidades cristãs, que assistiu seus líderes crescerem e ganharem cada
vez mais credibilidade56. Diante de um “esvaziamento de poder” da sociedade helênica,
a comunidade cristã e seus respectivos representantes se fortalecem. Esse fenômeno é
visto especialmente na figura dos bispos.
Apoiados fundamentalmente por mulheres celibatárias donas de grandes fortunas,
essas figuras ganham prestígio fundamentando seu trabalho na “(...) capacidade de
“alimentar” uma nova categoria de pessoas, a categoria anônima e profundamente
anticívica dos pobres sem raízes e abandonados57”. O cristianismo, que foi capaz de
desenvolver um novo tipo de cerimônias públicas através de uma redefinição do espaço
público do período clássico, também permitiu que esse outro tipo de liderança pública (o
bispo), se destacasse58. Dois dos autores que serão mobilizados nesta pesquisa (Agostinho
e Ambrósio) exerceram a função de bispo, produzindo as obras estudas neste trabalho
durante o bispado. Seus trabalhos, tendo ecos até os dias de hoje, ajudaram a construir os
princípios e dogmas da Igreja Ocidental. Jerônimo, diferentemente, nunca foi bispo, mas

56
TOYNBEE, Arnold. Helenismo: história de uma civilização. op. cit., p. 202
57
BROWN, Peter. Antiguidade Tardia. op.cit., p.270
58
Ibid.
27

por meio de sua singular erudição, produziu muitas obras, além de ter tido uma atuação
muito relevante como tradutor. “Patrocinado” por algumas mulheres celibatárias, das
quais era uma espécie de mestre espiritual, suas ideias se expandiram e com ajuda de
Paula (uma dessas importantes mulheres celibatárias) Jerônimo construiu três conventos
para mulheres e um para homens, em Belém. Um albergue para peregrinos, com uma
escola ligada ao mosteiro no qual Jerônimo ministrava aulas sobre os clássicos também
foi feita. Compreendendo esse panorama geral, é importante trazer ainda informações
mais detalhadas sobre cada religioso, o que será fundamental para interpretar suas
respectivas obras.
Aurelius Augustinos Augustine nasceu em Tagaste, em 354, no seio de uma
família que pertencia à pequena elite local. Sua mãe, Mônica, era uma católica fervorosa
enquanto seu pai, Patrício, era um funcionário municipal praticante da religiosidade
romana que se converteu ao cristianismo pouco antes de morrer. A formação de
Agostinho se iniciou naturalmente em Tagaste, porém com 17 anos e o pai já falecido,
Agostinho mudou-se para Cartago, onde completaria seus estudos superiores. Essa
transferência só foi possível graças ao apoio de Romaniano, um conterrâneo seu de grande
fortuna que optou ajuda-lo. E foi justamente em Cartago que Agostinho conheceu a vida
urbana, se aproximando da efusão filosófica e intelectual. Também durante esse período,
Agostinho começou a viver com concubina, com a qual teve um filho, Adeodato, em 372,
que faleceu precocemente. Ao final de seus estudos, em 375, Agostinho abriu uma escola
de gramática em sua cidade natal, porém, em pouco tempo retornou a Cartago para
assumir o cargo de professor de retórica. Sua estadia em Cartago termina apenas em 383,
quando vai para Roma, assumindo um ano depois, por indicação do prefeito da cidade,
um lugar como professor de retórica e como orador oficial, em Milão.
Sendo filho de mãe cristã, Agostinho já havia tido um contato significativo com
alguns dos ensinamentos cristãos, porém, sua primeira vinculação religiosa mais séria foi
com a doutrina maniqueia, quando esteve em Cartago pela primeira vez. Tal doutrina,
fundada pelo persa Manes (216-277), postulava a existência de um mundo dual, no qual
o bem e o mal estariam sempre se confrontando. No entanto, Agostinho se desiludiu com
o pensamento maniqueu logo na sua segunda passagem por Cartago. Já em Milão,
Agostinho aproximou-se do neoplatonismo e passou a presenciar os sermões de
Ambrósio, bispo de Milão, se abrindo gradativamente a aceitação do cristianismo em
28

termos filosóficos e intelectuais59. Diferentemente da tradução latina da Bíblia que não se


adequava a seu refinado gosto literário60, a argumentação de Ambrósio, marcada pela
retórica, chamava sua atenção.
Sua conversão propriamente verificou-se em 386, tendo recebido o baptismo pelas
mãos de Ambrósio. O objetivo de Agostinho, porém, não era aparentemente adentrar a
alta hierarquia eclesiástica; seu desejo era seguir uma vida monástica de estudo em sua
cidade natal61. Porém, em 391, em visita à Hipona, foi aclamado bispo pela multidão,
sucedendo o bispo Valério. Sua trajetória no bispado tinha como cerne a busca pela
unidade da Igreja na África, ameaçada pela diversidade de correntes heréticas que
incluíam seus antigos correligionários, os maniqueus. Mesmo nesse contexto turbulento
para a unidade da Igreja, Agostinho foi capaz de produzir uma vasta obra não apenas de
tratados, mas epistolografia e sermões. Quanto a sua morte, se deu em 430, momento em
que Hipona estava sendo assediada pelos Vândalos.
Quanto a Ambrósio, além de ser uma figura de extrema importância no âmbito
literário; ou seja, produziu muitas obras de grande repercussão, teve uma atuação
determinante na configuração do papel da Igreja, tanto no sentido religioso, quanto no
sentido mais prático e político, ligado principalmente a definição da relação Igreja-
Império. Por esse motivo, Ambrósio foi um dos bispos mais prestigiosos de seu tempo
(século IV d.C.). Para além da sua atuação marcante no bispado, Ambrósio sobressaiu-se
pela ênfase dada a vida ascética, que se desdobrava também no combate a todo tipo de
corrente pagã ou herética62. As informações sobre sua vida podem ser encontradas tanto
em seus próprios escritos, quanto na Vita Ambrosii, uma biografia escrita por Paulino de
Milão, a pedido de Agostinho, nosso primeiro autor citado.
O nascimento de Aurélio Ambrósio se deu por volta do ano 340, em Tréveros, no
seio de uma família da elite romana, sendo seu pai na época prefeito do pretório das
Gálias. Em Roma, vivendo com sua mãe e outros dois irmãos, Marcelina e Sátiro (seu pai
faleceu pouco depois de seu nascimento), Ambrósio construiu sua formação intelectual,
frequentando as mais ricas e nobres famílias e, assim como Agostinho, estudando
gramática, literatura grega e romana, retórica e direito. Conjuntamente com essa
formação, Ambrósio recebeu, também, educação religiosa, destinada aos catecúmenos,

59
CITRIONI, M. Literatura de Roma Antiga. Portugal: Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, p. 1162.
60
Ibid., p.1161.
61
Ibid., p. 1162.
62
Ibid., p. 1135.
29

ministrada pelo sacerdote Simpliciano, seu futuro sucessor na sede de Milão, pelo qual
Ambrósio nutria uma admiração especial63.
Terminados seus estudos, Ambrósio iniciou uma carreira de advogado do tribunal
da prefeitura, em Sírmio, e em pouco tempo foi ganhando importância: em 370 d.C.,
Sexto Petrônio Probo, prefeito do pretório, o nomeou como membro de seu conselho e
anos depois, como govenador da província da Emília e Ligúria, com sede em Milão64,
uma das cidades mais importantes da Itália. Sua entrada para o serviço episcopal, teria se
dado de forma espontânea a partir de uma atuação eficaz no processo de eleição para novo
bispo, após a morte do bispo Auxêncio. A morte desse religioso, adepto da corrente
ariana, fez acirrar as disputas entre estes e católicos pela vaga disponível. Com habilidade
para interver no apaziguamento dessa disputa, Ambrósio teria sido eleito bispo por
aqueles envolvidos no conflito, recebendo as ordens e consagração como bispo dia 7 de
dezembro de 37465.
Não à toa, Ambrósio se consolidou como um “político da Igreja66”. Devido a sua
capacidade de colocar e impor suas diretrizes aos Imperadores, o bispo deu uma nova
configuração a relação Igreja-Império que resultou, no Ocidente, em um usual
favorecimento da Igreja. Também como bispo, interveio em diversas controvérsias
dogmáticas. Mesmo atuando de forma ativa nas questões políticas e se dedicando a
atividade pastoral, Ambrósio produziu uma série de obras em diversas áreas: exegese,
ética, oratória, epistolar, dentre outras. Destaca-se seus escritos ascéticos, voltados
essencialmente para o público feminino e tendo como “inspiradora” sua irmã, Marcelina
– superiora de uma comunidade de donzelas, em Milão. A partir desse interesse,
Ambrósio fez duas contribuições importantes para a espiritualidade cristã: “primeiro,
elevou Maria a modelo de uma vida de virgindade na vida de todos os dias. A segunda,
foi a leitura alegórica do Cântico dos Cânticos como a prefiguração da Virgem
consagrada e o próprio Cristo67”.
Dentre as mais relevantes contribuições de Ambrósio está o “resgaste” da cultura
chamada “pagã”. Possuidor de uma grande erudição, o bispo possibilitou o acesso ao
Ocidente da exegese em língua grega, bem como ao neoplatonismo cristão. Desse modo,

63
AGOSTINHO. Confissões VIII, 2.
64
AMBRÓSIO DE MILÃO. Explicação do símbolo. Sobre os sacramentos. Sobre os mistérios. Sobre a
penitência. Introdução e notas por Roque Frangiotti e tradução por Célia Mariana Franchi Fernandes da
Silva. São Paulo: Paulus, 2005, p.8.
65
Epist. 63,65.
66
CITRIONI, M. Literatura de Roma Antiga. op.cit., p. 1143.
67
Ibid., p.1138.
30

o religioso contribuiu para “dar ao cristianismo um alto estatuto intelectual, que facilitou
a Agostinho a superação de tantas resistências no seu caminho para a conversão 68”.
Ambrósio morreu no ano de 397 d.C.
Por fim, Sofrônio Eusébio Jerônimo foi um personagem fundamental da História
da Igreja, sendo reconhecido por sua divulgação de uma vida ascética e por seus trabalhos
de interpretação da Bíblia. Mesmo não havendo nenhuma obra biográfica ou mesmo
hagiográfica sobre sua vida, podemos nos reportar a seus diversos escritos, assim como
suas cartas para entendermos sua trajetória. Jerônimo nasceu por volta de 347, em
Estridão, na Dalmácia, no seio de uma família rica e cristã. Sua formação intelectual,
assim como de Ambrósio e Agostinho, seguiu a cultura clássica romana; em meados do
ano 354, Jerônimo foi para Roma estudar e lá se familiarizou com as disciplinas liberais
(gramática, retórica e filosofia) e com os clássicos latinos. Em especial, suas mais
significativas referências foram Cícero e Virgílio69 . Desse modo, Jerônimo recepcionou
desde muito cedo tanto a crença e as práticas cristãs, quanto a herança intelectual do
período clássico.
Além da vivência em Roma, Jerônimo passou tempos na Gália, uma região rica
culturalmente, efervescente em ideias religiosas e filosóficas. Porém, o anseio de
Jerônimo de conhecer mais profundamente a experiência religiosa dos padres do deserto,
fez com que ele se voltasse ao Oriente, mais especificamente, a cidade de Tréveros
(residência habitual do Imperador Valentiniano), aonde se envolveu com as práticas
Orientais de ascese e com a vida monástica70. Ou seja, a passagem por Tréveros despertou
no religioso a inclinação a vida ascética, traço que se manteve substancial em toda sua
trajetória a partir de então.
Jerônimo era um erudito, dominando três línguas (grego, latim e aramaico) e, para
além disso, adquiriu prestígio frente aos fiéis devido tanto a sua oratória, quanto sua
postura severa, disciplinada e “arcaica”, contaminada pelos preceitos do monasticismo.
Seu temperamento, porém, era bastante polêmico, por isso, se tornou um personagem que
atraia com certa facilidade inimizades e adversários. Do mesmo modo, seu
posicionamento religioso lhe rendeu algumas críticas; a obra estudada nesse trabalho
(Apologia contra os livros de Rufino), inclusive, é fruto de uma reação a essas críticas,

68
CITRIONI, M. Literatura de Roma Antiga. Op.cit., p. 1143.
69
JERÔNIMO. Apologia contra os livros de Rufino. Introdução e notas por Roque Frangiotti e tradução
por Célia Mariana Franchi Fernandes da Silva. São Paulo: Paulus, 2005, p.8.
70
COELHO, Fabiano de Souza. Jerônimo de Estridão: asceta, exegeta e controverso. Revista Alétheia de
Estudos sobre Antiguidade e Medievo. n. 1, p. 13-28, 2018, p. 19.
31

que, grosso modo, atacavam a influência grega e oriental em sua obra, em especial de um
religioso chamado Orígenes.
Após sua experiência como monge, em Tréveros, entre os anos 374 e 380,
Jerônimo esteve em Aquileia, Antioquia e Constantinopla, e, nesse período, foi ordenado
sacerdote, porém, abandonou o cargo romano para se juntar a um grupo monástico em
Aquiléia. Tal grupo incluía: Rufino, Bonoso, Eusébio e Cromácio, futuro bispo da cidade.
Não tendo o aceite esperado da comunidade cristã local, o grupo se dispersou e Jerônimo
voltou a Roma, no ano 382 d.C., aonde foi acolhido por mulheres cristãs da alta
sociedade71. Desse modo, além de se dedicar a exegese e a tradução do texto bíblico, junto
com o bispo de Roma, Dâmaso, Jerônimo foi um grande líder espiritual das mulheres
cristãs – em especial, viúvas e virgens. Essas personagens foram fundamentais para a
divulgação das suas ideias e, por meio delas, Jerônimo conseguiu difundir sua experiência
religiosa e seus ideais ascéticos, adquiridos durante sua experiência monástica.
A morte de Dâmaso, porém, representou uma ruptura na vida de Jerônimo, pois
sem sua proteção era muito difícil permanecer em Roma: seu trabalho com as mulheres
cristãs, assim como alguns de seus escritos não eram bem aceitos e, por isso, ele foi muito
atacado. Na realidade, tanto Jerônimo como outros ascetas instalados em Roma não foram
vistos com bons olhos, pois praticavam de forma rigorosa a mensagem cristã72. Ainda
assim, a personalidade de Jerônimo e suas reações a esses ataques, não tendo mais a
proteção de Dâmaso, resultou no processo de sua expulsão da cidade de Roma.
O exílio de Jerônimo o levou novamente ao Oriente. Ali, pode aprofundar ainda
mais seus conhecimentos sobre os textos sagrados e a vida ascética. Acompanhando essa
jornada estavam a viúva Paula, sua filha Eustóquia e um grupo de mulheres religiosas,
que puderam, do mesmo modo, estudar os textos cristãos sob sua tutela. O destino último
desse trajeto foi Belém, aonde Jerônimo, por meio dos investimentos de Paula,
estabeleceu uma comunidade monástica: construiu três mosteiros de mulheres e outro de
homens, do qual ele mesmo dirigiu. Foi durante essa estadia em Belém que a apologia
contra Rufino foi escrita, sendo resultado da primeira controvérsia origenista – que será
melhor explicada a frente. Jerônimo foi um dos escritores mais destacados da literatura
cristã e faleceu por volta de 419 ou 420 d.C.

71
COELHO, Fabiano de Souza. Jerônimo de Estridão: asceta, exegeta e controverso. Op. cit., p. 23.
72
Ibid.
32

1.2.1 Documentação textual


Igualmente importante ao conhecimento da trajetória de vida dos autores, suas
formações intelectuais, aproximações filosóficas e posições sociais, é conhecer os
contextos específicos das obras sob estudo, assim como suas motivações de escrita. Em
decorrência disto, faremos neste item uma breve apresentação dessas obras.
Comecemos por Agostinho de Hipona. As duas obras que serão investigadas neste
trabalho, Sobre o Gênesis, contra os Maniqueus e Comentário Literal ao Gênesis são de
caráter exegético e são resultado de um esforço de longa data de Agostinho, que se
dedicou a temática da interpretação do Gênesis desde de sua conversão, até o final da sua
vida, quando trabalhou na revisão de toda sua obra (Retratações). A primeira obra citada,
como o próprio título já indica, é uma defesa do cristianismo diante das críticas
maniqueístas e o esforço de Agostinho é aplicado no sentido de legitimar e reafirmar a
coerência da cosmogonia bíblica. O bispo de Hipona, portanto, lista os argumentos
maniqueus contrários aos relatos bíblicos e rebate-os individualmente. Característica
dessa obra é a ênfase num sentido alegórico com o qual Agostinho questiona a pertinência
das dúvidas de seus adversários, que remetem ao sentido literal do texto.
Essa abordagem alegórica, no entanto, não teria deixado Agostinho absolutamente
satisfeito e daí teria vindo seu desejo de prosseguir no tema, com um enfoque
diferenciado, dando espaço a interpretação literal73. Neste outro trabalho as narrativas
são tomadas como objetivas de fatos materiais. Por meio de perguntas e lacunas deixadas
no texto bíblico, Agostinho desenvolve seu texto, por vezes, retomando críticas
maniqueias e as respondendo. O que irá nos interessar nessas obras é, especificamente, a
narrativa e interpretação de Agostinho sobre a criação do homem, buscando indícios e
explanações sobre as questões relativas ao corpo nos prismas citados na introdução.
As obras de Ambrósio que serão mobilizadas - Sobre os sacramentos; Sobre os
mistérios e Sobre a penitência - são de gêneros diferentes. Os dois primeiros escritos são
essencialmente dogmáticos. Neles, o bispo de Milão trata dos sacramentos de iniciação
cristã: baptismo, confirmação e eucaristia, possibilitando nossa compreensão sobre o
lugar do corpo nesses rituais, até porque ele próprio é o protagonista destes. As duas
obras, evidenciando o espírito pastoral de Ambrósio, são fruto de sermões dominicais que
se dirigiam aos neófitos. A obra Sobre a penitência apresenta um teor marcadamente
moral, na qual o religioso se dedica a tecer comentários sobre a necessidade e função da

73
AGOSTINHO. Comentário ao Gênesis. Introdução e notas por Roque Frangiotti e tradução por Célia
Mariana Franchi Fernandes da Silva. São Paulo: Paulus, 2005, p.22.
33

penitência, abordando sua “correta” utilização. Complementando as obras anteriormente


citadas, as considerações de Ambrósio sobre o tema das penitências são capazes de
colocar luz a um tópico não abordado nas obras anteriores e de indicar a relação entre
corpo e castigo para o cristianismo. Para além disso, esse trabalho contribui no sentido de
explicitar as motivações do pecado
Quanto a obra de Jerônimo de Estridão, intitulada Apologia contra os livros de Rufino
nasce de uma polêmica com um antigo amigo seu, Rufino, e está muito ligada ao contexto
da época. Já no século IV d.C., uma grande quantidade de heresias coexiste com a religião
“oficial”, estimulando a reunião de vários concílios em torno de questões dogmáticas. A
heresia que se associa diretamente com a discussão que gerou essa obra foi o
‘origenismo’, a corrente considerada herética que seguia o pensamento de Orígenes, um
padre grego do qual Jerônimo traduziu grande parte das obras.
Por realizar essas traduções e ainda por abrir uma escola de Gramática em Belém,
Jerônimo foi acusado por Rufino de contradição e de não compactuar com os dogmas da
religião oficial, propagando a cultura profana. Além disso, Rufino põe em dúvida a
reputação de Jerônimo como um seguidor da ortodoxia religiosa, insistindo que suas
traduções modificam expressões que podem possuir alguma ambiguidade doutrinária. A
reação de Jerônimo frente a essa situação foi a publicação da obra em questão, que
apresenta os conteúdos considerados heréticos de uma das obras mais relevantes de
Orígenes - que havia sido traduzida por ele mesmo - o Perì Archôn. Nesse movimento
de defesa e de exposição do que seria considerado contra a ortodoxia recomendada,
Jerônimo nos oferece dados interessantes para trabalhar o tema desta pesquisa.

1.3 Catacumbas e o surgimento da arte cristã


Assim como demonstrou Toynbee, uma das concessões mais relevantes que o
cristianismo fez ao helenismo foi a absorção de seu veículo de propaganda mais
importante: as imagens. A partir de então, o discurso cristão se distancia mais ainda do
judaísmo e enfrenta o desafio de transmitir uma mensagem nova por meio de velhas e
tradicionais estruturas que embasam seu “rival” politeísta. Na ilegalidade, essa arte se
manteve silenciosa, quase inexistente; porém, com a permissão da prática cristã, essa arte
ganha a possibilidade de se expandir e se formatar melhor. A legalidade permitiu ao
cristianismo não apenas se expressar livremente, mas refletir mais detalhadamente sobre
seus discursos. Isso não implica necessariamente homogeneidade, mas indica um
momento importante para a formação identitária da arte cristã. Desse modo,
34

apresentaremos aqui um panorama do nascimento da arte paleocristã que é inseparável


do fenômeno do surgimento das catacumbas – o primeiro suporte dessas manifestações
artísticas.
Em tese de mestrado defendida em 2014, o historiador e arqueólogo Alessandro
Mortaio Gregori trata da construção do discurso imagético na Antiguidade Tardia,
trazendo um panorama do período. Como o mesmo busca demonstrar, as imagens
paleocristãs tem sua origem na arte funerária, sendo esse gênero “o grande útero que
gestou a expressão imagética, absorvendo modelos do entorno e concebendo formas de
representar essencialmente cristãs74”.
As catacumbas eram câmaras subterrâneas, onde se efetuava o enterramento dos defuntos.
O seu surgimento no Ocidente data do século II d. C., porém a prática já existia no
Oriente, tendo sido importada pelos primeiros judeus e cristãos convertidos. Nas fases em
que as perseguições eram mais intensas foram também utilizadas para a celebração da
eucarística sem levantar suspeitas. Com o ímpeto de seguir a trajetória de Jesus, esses
primeiros fiéis abandonaram o costume “pagão” da cremação, optando por preservar o
corpo para a ressurreição75. Após a liberdade do cristianismo, esses lugares de
enterramento tornaram-se santuários de mártires ali sepultados e os enterramentos em
necrópoles subterrâneas diminui progressivamente, sendo o século V – em especial o ano
537 d. C. na qual ocorre a devastação de Roma pelos godos76- o século que marca a
definitiva desaparição das catacumbas.
Com relação ao nome dos complexos funerários, estes eram transmitidos por fontes
literárias e epigráficas que informam sobre a doação do terreno por um particular. Desse
modo, o terreno assumia a denominação do proprietário original; tais como Priscila (na
qual se localiza um dos afrescos sob estudo), Domitila, Pretextato e Comodila. Outras
catacumbas passaram a corresponder a indicações topográficas e as mais tardias passaram
a carregar o nome de mártires ali enterrados, como Agnes, Laurêncio, São Pedro e
Marcelino (onde também se encontram alguns dos afrescos que investigaremos neste
trabalho).

74
GREGORI, Alessandro Mortaio. Comunicação Visual na Antiguidade Cristã: a construção de um
discurso imagético cristão do Ante Pacem ao Tempora Christiana (s. III ao VI). Dissertação (Mestrado em
Arqueologia) - Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia,
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014, p. 131.
75
EUSÉBIO, Maria de Fátima. Apropriação cristã da iconografia greco-latina: o Bom Pastor. Màthesis
(UCP – Universidade Católica Portuguesa): Lisboa, v.14, 2005, p. 9-28, p. 12.
76
GARCÍA Y BELLIDO, A. Arte Romano. 2ª ed. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones cintíficas,
1972 apud GREGORI, Alessandro Mortaio. Comunicação Visual na Antiguidade Cristã: a construção de
um discurso imagético cristão do Ante Pacem ao Tempora Christiana (s. III ao VI). Op. Cit., p. 132.
35

Como já comentado acima, a utilização de imagens pelo cristianismo já representa


uma apropriação deste da cultura greco-romana tradicional, e tais apropriações
dificilmente podem ser feitas apenas na forma e não no conteúdo. No princípio, a arte
cristã se expressa majoritariamente por símbolos não muito elaborados, mas pequenos
desenhos carregados de significados dentro do universo cristão: o peixe, a pomba, a
âncora e as uvas e, em fins do século II o cristianismo se abre também para o uso de temas
mais complexos. Sendo que, todos os primeiros símbolos que comentamos acima já
faziam parte do universo imagético pagão: dos mais simples aos mais elaborados. Por
exemplo, a imagem de Jesus Bom Pastor nas catacumbas é uma ressemantização da
imagem do pagão que transportava o cordeiro para o sacrifício, e da representação típica
de Hermes77.
Por meio de um corpus documental imagético bem amplo, que inclui também os
documentos desse estudo, Gregori percebe que a institucionalização do credo cristão não
é acompanhada de uma conversão rápida do cotidiano romano. Esse aspecto é reforçado
por Henri Marrou, quando argumenta que que:
(...)a primeira arte cristã adotou com naturalidade temas
iconográficos pagãos de seu tempo, exprimindo ideias religiosas
ou sentimentos praticamente idênticos ao meio análogo a eles. A
esperança na vida futura por meio de uma paisagem paradisíaca
expressa o sentimento bastante popular na época: uma atmosfera
de sonho e de esperança em que a alma do falecido atinja a alegria
eterna78.

Gilvan Ventura da Silva, em artigo publicado em 201379 também discute, através


dos mosaicos de Antioquia,80 a coexistência de elementos helenizantes e cristãos na
produção desse período. Por meio de sua análise e interpretação das fontes, Ventura
desconstrói uma ideia corrente entre alguns historiadores que reconhecendo a cidade de
Antioquia como um dos berços ancestrais do cristianismo, entendem que na época tardia,
tal religião já era um credo consolidado naquela sociedade. Essas interpretações, como
afirmará o historiador, são embasadas a partir de fontes como os escritos de João
Crisóstomo, mas ignoram um aspecto fundamental, em especial tratando-se do mundo
antigo: as imagens. Colocando luz sobre esse universo, Ventura demonstra que a

77
CITRIONI, M. Literatura de Roma Antiga. Op. cit., p. 1044.
78
MARROU, Henri. Decadência Romana ou Antiguidade Tardia? Op. cit., p. 54.
79
DA SILVA. Gilvan Ventura. Cristianismo e Helenismo na Antiguidade Tardia: uma abordagem a luz
dos mosaicos de Antioquia. Revista Diálogos Mediterrânicos, Paraná, n°5, p. 64 – 80, novembro, 2013.
80
Apesar desse artigo analisar a cultura visual de uma outra localidade do Império Romano, acreditamos
que ele traz questões análogas às documentações utilizadas nesse projeto, que se encontram na cidade de
Roma.
36

cristianização da cidade de Antioquia “não representou o confronto entre um credo novo


e dinâmico e um sistema religioso obsoleto e decadente81”. Mas, pelo contrário, a
cristianização teria sido um processo altamente complexo em virtude justamente do apego
de parte da população ao “modus vivendi greco-romano”. O autor, portanto, se opõe a
reproduzir uma lógica que coloca em embate uma “Eclesia triunfante” e um “paganismo
combalido”, mas ainda não de todo superado. Mesmo o artigo tratando de uma realidade
Oriental, percebemos a partir de nossas fontes que com relação a este ponto as realidades
Oriental e Ocidental são análogas.
Ainda assim, é inegável que as especificidades dessas imagens existem e, estas,
se constroem a partir do momento em que o cristianismo tem liberdade para formular seu
discurso. Para elucidar brevemente esse ponto, trazemos a conclusão formulada no artigo
intitulado Arte Paleocristã: espelho da visão de mundo dos primeiros cristãos (2013):
As temáticas das pinturas agora seriam “mais espiritualizadas, mais
afastadas da vida da terra”. É por isto que a Arte Paleocristã se afasta dos
padrões de estética clássicos, pois quer mais expressividade de emoções.
O objetivo das pinturas, não era mais o de fixar um episódio num tempo
específico, ou algum local real. Os detalhes eram retirados para deixar
apenas o essencial (...) ao remover qualquer excedente desnecessário,
seria possível alcançar a máxima compreensão e espiritualização82

A convivência “harmônica” entre paganismo e cristianismo no mundo imagético


tardo-antigo não se dá apenas na forma de sobreposições ou “misturas”. Essa tolerância
veio acompanhada de uma nova visão de mundo, na qual os homens deveriam priorizar
a “Cidade de Deus” em detrimento de suas “Cidades Terrestres”83.

1.3.1 Documentação imagética


A documentação a ser analisada é composta de seis afrescos, presentes nas
catacumbas de Priscila (s. II – IV d. C.); Pedro e Marcelino (s. III e IV d.C.) e da Via
Latina (s. IV-V d.C.). Os temas incluem A Orante, Hercules no jardim de Hespérides,

81
DA SILVA, Gilvan Ventura. Cristianismo e Helenismo na Antiguidade Tardia: uma abordagem a luz
dos mosaicos de Antioquia, op. Cit. p. 64.
82
CEDILHO, Rosa Maria Blanca; SOUSA, Ana Paula Bernardo de. Arte Paleocristã: espelho da visão de
mundo dos primeiros cristãos. Mirabília Journal, n. 17, jul., 2013, p. 602 – 614, p. 612. Disponível em:
<https://www.revistamirabilia.com/issues/mirabilia-17-2013-2> Acesso em 20 de outubro de 2018.
83
Na obra A Cidade de Deus, Agostinho reivindica a superioridade desta sobre as cidades terrestres. Na
tentativa inocentar os cristãos dos males que acometiam Roma (em especial, o saque de 410 pelos
Visigodos) e dos quais eram acusados, ele argumenta que as cidades terrestres oferecem, de fato, glória
aos homens, mas a cidade celeste é aquela que oferta a vida eterna: “ (...) olhem com atenção e com tino
para aqueles exemplos e vejam quão grande amor se deve à pátria celeste por causa da vida eterna —
quando a cidade terrena é tão amada pelos seus cidadãos por causa da glória dos homens.” (L. V, cap.
XVI)
37

Adão e Eva (dois afrescos têm esse mesmo tema: o presente na catacumba de Pedro e
Marcelino e outro, nas catacumbas da Via Latina), Noé na Arca e Jonas e a Baleia.
Seguem abaixo as respectivas imagens:

AFRESCO 1 (A1): A Orante

Disponível em: <http://www.catacombepriscilla.com/visita_catacomba_en.html> Acesso 07 de maio de 2019.

AFRESCO 2 (A2): Hércules nos Jardins de Hesperídes

Disponível em: < https://br.pinterest.com/pin/31454897367075719/> Acesso 07 de maio de 2019


38

AFRESCO 4 (A4): Adão e Eva vestidos com


AFRESCO 3 (A3): Adão e Eva sendo túnicas de pele de animais (a esquerda) e Caim e
expulsos do Paraíso Abel fazendo suas oferendas a Deus
Disponível em Disponível em
<https://www.college.columbia.edu/core/conte <https://br.pinterest.com/pin/5976418130258172
nt/genesis> Acesso 07 de maio de 2019 53/> Acesso 07 de maio de 2019

AFRESCO 5(A5): Noé na Arca AFRESCO 6 (A6): Jonas sendo vomitado pela baleia
Disponível em < Disponível em <
http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/ http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/apol
apologetica/imagens/541-o-uso-das-imagens-no- ogetica/imagens/541-o-uso-das-imagens-no-
cristianismo-primitivo > Acesso em 07 de maio de cristianismo-primitivo > Acesso em 07 de maio de 2019
2019
39

A1 A2 A3 A4 A5 A6

Período II – IV d. C IV-V d. C. III e IV d. C. IV-V d. C. III e IV d. C. III e IV d. C.

Local/ Catacumba Catacumba Catacumba Catacumba Catacumba Catacumba


Catacumba de Priscila da Via Latina de Pedro e da Via Latina de Pedro e de Pedro e
Marcelino Marcelino Marcelino
Cena A Orante Hércules no Adão e Eva Adão e Eva Noé na Arca Jonas sendo
Jardins de expulsos do vestidos com vomitado
Hesperídes paraíso pele de pela Baleia
animais e
Caim e Abel
fazendo
oferendas
Autoria Desconhecida Desconhecida Desconhecida Desconhecida Desconhecida Desconhecida

Inscrições Inexistente Inexistente Inexistente Inexistente Inexistente Inexistente


40

2. Aspectos Teóricos e Metodológicos


2.1 Corpo, Representação, Transculturação e Iconologia: instrumental teórico

Percebe-se a partir do que já foi exposto que a temática central desse trabalho são os
encontros culturais. Caracterizado pela formatação do cristianismo e “desgaste” do modo
de vida clássico tradicional, a Antiguidade Tardia é uma rica fonte de descobertas e
pesquisa sobre essas dinâmicas que envolvem apropriações, ressemantizações e
silenciamentos nos âmbitos filosófico, intelectual e cultural como um todo. Nas páginas
anteriores, discorremos sobre a profusão de elementos culturais distintos que conviviam
entre si, citando alguns conceitos cunhados por diferentes intelectuais, tais como
Hibridização Cultural (Norberto Guarinello) e Inculturação (Werner Jaeger). Todas
essas interpretações são meios de pôr luz a um processo que envolve a emergência de
uma novidade sociocultural, pelo menos aparente, que foi o cristianismo; porém, cabe
aqui delimitarmos nossa perspectiva diante da análise da documentação que se revela um
reflexo dessa movimentação. Nesse sentido, optamos por mobilizar os conceitos de
transculturação e ressignificação, delineados pelo antropólogo Marshall Sahlins, para
conduzir nossa análise do diálogo entre cultura “pagã” e cristã. Do mesmo modo, nosso
quadro teórico abrange uma reflexão sobre outras categorias fundamentais: cultura,
representação, imagem e função da imagem – próprias do campo da História Cultural
que tem como desdobramento a História da Imagem. Para contemplar essas categorias
mobilizaremos as considerações de Roger Chartier, no que tange à representação, e de
Erwin Panofsky, relacionado ao estudo das imagens.
No entanto, anterior a essas questões, deve ser uma discussão que defina claramente
nosso posicionamento diante do objeto dessa pesquisa: o corpo. A História do Corpo é
um campo que começou a se desenvolver, fundamentalmente, a partir do século XX,
impulsionado pelos estudos antropológicos, mas também pela emergência da psicanálise
com Sigmund Freud. Franz Boas – antropólogo- foi um dos pioneiros dos estudos que
faziam do corpo um objeto sociocultural, demonstrando em seu Relatório sobre as
mudanças da forma corporal dos descendentes de imigrantes (1911), que transformações
físicas eram operadas ou, pelo menos, sofriam algum grau significativo de influência do
ambiente social84. Seu trabalho foi muito significativo pois trouxe como objeto de análise
índices cefálicos, que eram considerados traços praticamente imutáveis das sociedades

84
RODRIGUES, José Carlos. Os Corpos na Antropologia In: BUSTAMANTE, Regina M. da C.;
LESSA, Fábio de Souza (Orgs.). Olhares do Corpo. Rio de Janeiro: Faperj/ Mauad, p. 72-98, 2003, p.73.
41

humanas. No entanto, por meio de seu trabalho, Boas observou que o formato do crânio
dos descendentes de europeus que se transferiram para solo americano sofria algumas
alterações85. As razões claras para isso não foram desenvolvidas pelo antropólogo, mas o
substrato dessa investigação é: os corpos não são um elemento imutável, mas ganham sua
configuração a partir de códigos constituídos por sua respectiva sociedade e suas
condições socioambientais. Conjuntamente com ele, nomes importantes se dedicaram a
temática do corpo com esse viés cultural, tal como Emile Durkheim, Michel Foucault,
Marcel Mauss, entre outros. No final do século, Freud chama a atenção para o lugar do
corpo dentro da elaboração do aparelho psíquico, afirmando que o corpo é o lugar no qual
“emerge o pulsional e seu meio de chegar à satisfação, seja ela no prazer ou no
desprazer86”. Seu trabalho e prática clínica com a histeria promoveram um rompimento
com o corpo da medicina e da anatomia e abriram espaço para a compreensão do corpo
psicanalítico. Os desdobramentos mais detalhados desse conceito não nos interessam
aqui, apenas o fato de que a emergência da psicanálise impulsionou a reflexão a partir do
corpo de forma que este não poderia ser definido apenas pelo conceito de organismo, nem
de puro somático87. Por fim, todos esses trabalhos convergiam para a ideia fundamental
de que não somos “imobilizados” pela imutabilidade de nossa natureza biológica; pelo
contrário, ela se adapta ao caráter dinâmico das culturas.
Patrimônio comum a toda humanidade, o corpo assume as feições mais diversas e,
por esse motivo, entendemos que investigar esse objeto é acessar uma série de aspectos
de uma sociedade no tempo, percebendo também as mutações que esta sofre. O estudo da
corporeidade pode nos indicar mecanismos de controle social, nos permitindo conhecer
os grupos que operam esses controles e sobre que bases. Michael Foucault, em sua obra
Vigiar e Punir desenvolve essa questão e afirma que “(...) em qualquer sociedade, o corpo
está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições
ou obrigações 88.” Exemplo disso é o que Norbert Elias chamou de Processo Civilizador.
Desnaturalizando o comportamento humano na longa duração, Elias refletiu sobre os
mecanismos de controle social e corporal (nesse caso, relacionados especialmente com a
emergência dos fenômenos de vergonha e nojo), concluindo que a formatação dos

85
RODRIGUES, José Carlos. Os Corpos na Antropologia. Op. cit., p. 73.
86
LINDENMEYER, Cristina. Qual o estatuto do corpo na Psicanálise?. Tempo Psicanalítico, Rio de
Janeiro, v. 44. n. 2, p. 341-359, 2012, p. 342
87
LAZZARINI, Eliana Rigotto; VIANA, Terezinha de Camargo. O corpo em Psicologia. Psicologia:
Teoria e Pesquisa, Brasília, Vol. 22 n. 2, pp. 241-250, Mai-Ago 2006, p. 243.
88
FOUCALT. M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis,
Vozes, 1987, p. 163.
42

comportamentos é inseparável das condições sociais. E que estes constroem uma relação
de reciprocidade89.
Percebemos, então, que o corpo não é um elemento isento e imune das condições
socioculturais, mas é moldado por elas. Ainda assim é importante marcar que os
indivíduos e a sociedade como um todo, não existem apenas como elementos passivos,
como repositores. O corpo assume o papel tanto de receptor quanto de emissor: é alvo
dos controles sociais, moldado por meio de sua cultura; mas, simultaneamente, produz a
partir desta recepção, seus próprios sentidos90 .
O ponto mais fundamental, portanto, já está bem estabelecido: o corpo não é uma
realidade biológica estática que abriga um indivíduo imerso em um ambiente ordenado
pela cultura, mas ele próprio é um elemento de diferenciação cultural. Ele sofre o processo
de socialização na mesma medida que reelabora as mensagens recepcionadas. Dentro
dessa perspectiva, ainda existem algumas opções de abordagem. Ao discorrer sobre o
assunto, Roy Poter indica que a História do Corpo deve incorporar a história de suas
percepções91, afinal é apenas por meio dela que os corpos se fazem presente para nós.
Mas, ele indica também a necessidade de se tomar cuidado com uma História do Corpo
desconexa da realidade, que se debruça sobre a explicação de suas ‘representações’ nos
‘discursos’92”, produzindo uma investigação demasiadamente teórica. Sobre essa questão
ele afirma:
Algumas das explorações mais brilhantes da anatomia do corpo têm sido
os trabalhos de críticos literários e estudiosos afins, engajados na análise
do discurso e na “desconstrução” textual, desprezando as
“representações” alteradas pelo ego incorporado. Mas o abandono
irresponsável do empirismo em prol da teoria e da hermenêutica tem suas
próprias ciladas, em especial, o risco de extrapolações
descontextualizadas, derivadas do uso acrítico de matérias não
representativas de evidência93.

É evidente que para o estudo da Antiguidade, ou para qualquer período mais afastado
temporalmente, esse tipo de proposta se torna bem mais complexa e quase inviável, afinal,
não temos acesso a esses corpos cotidianos. Nesse sentido, o estudo da representação, que

89
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Vol I. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2°
ed., 1994
90
LE BRETON, D. A Sociologia do Corpo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.; MARZANO-PARISOLI, M.M.
Pensar o corpo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004 apud LESSA, F.; NETO. E. M. G. Atletas na Imagética Ática
do século V a. C. PHOÎNIX, Rio de Janeiro, n. 15, p. 26-41, 2009, p. 36.
91
PORTER, Roy. História do Corpo In: BURKE, Peter (Org.). A Escrita da História: Novas Perspectivas.
São Paulo: Editora Unesp, 1992, p. 291-326, p.295.
92
Ibid., p. 296.
93
Ibid.
43

se mantém no âmbito das mentalidades ou das ideias, é muito mais acessível. Ainda
assim, sem desvalidar o ponto discutido e desenvolvido por Roy Porter, acreditamos que
o estudo dessas representações, não deve ser ignorado ou inferiorizado. No entanto, é
evidente que quaisquer análises dessas representações devem compreender sua natureza
representativa; ou seja, como um código que não necessariamente encontra um eco
equivalente na realidade. Para além disso, o contexto, as motivações sociais, culturais e
políticas que levaram a criação dessas representações também devem ser consideradas,
pois se esse cenário não existir a interpretação é inacessível.
Nesse sentido, o que se pretende estudar não é exatamente como o homem tardo-
antigo utilizava ou percebia seu corpo e, sim, como o cristianismo construiu seu ideal a
ser seguido – reflexões que ficarão mais claras quando tratarmos de nossa perspectiva
diante da categoria de representação. Compreendendo isso, estamos cientes de que
exigências muito rigorosas tendem a coexistir com práticas contrárias recorrentes, ou seja,
só existe necessidade de censura quando o ato “censurado” é sistemático a tal ponto de
demandar esta reação. Para além disso, não pretendemos fazer do pensamento dos autores
estudados, ou dos afrescos sob análise uma metonímia do pensamento cristão sobre o
corpo. Por fim, importante colocar que essas representações não serão analisadas
descoladas de seu contexto e de outros tipos de representação, como a do poder, a de
gênero, entre outras. Por esse motivo, acreditamos que não corremos o risco de
“abandonar irresponsavelmente o empirismo”, validamente comentado por Roy Poter,
mas estamos fazendo uma opção a partir das possibilidades oferecidas para o período. E
afinal, se as representações não são um retrato fidedigno da realidade, elas são um meio
essencial de compreender os meios de funcionamento e códigos que regem essa.
Acreditamos também que quando consideramos a análise de duas tipologias de fontes
diferentes, tornamos mais eficiente a apreensão de um processo envolto de complexidade.
Tendo em vista esses pressupostos acerca do corpo, podemos adentrar no campo de
nossa problemática em si que se inicia com uma redefinição do conceito de cultura, que
consequentemente alterou as formas de se pensar a História Cultural. A partir do século
XX, tendo como clímax a década de 1980, esse campo – e a disciplina histórica como um
todo – sofrem desestabilizações. O contexto mundial impulsionou uma problematização
epistemológica, visível, em especial, no desgaste dos grandes modelos explicativos.
Como produto das discussões emergentes, nasce uma nova compreensão de “cultura”,
que se beneficia também de um diálogo interdisciplinar, em especial com a Antropologia.
A partir de então, a História Cultural se amplia e deixa de abarcar apenas uma produção
44

artística oficialmente reconhecida, que se restringia ao exame de exemplares do que seria


a “grande” Arte ou à “grande” Literatura por um viés estilístico, característico, por
exemplo da obra de Jacob Burckhardt. Sem se recusar a investigar as expressões culturais
das elites, a História Cultural, passa a considerar e com especial apreço, as manifestações
populares e informais como objeto. Para além disso, cultura adquire um caráter dinâmico,
plural e não idealizado, ao mesmo tempo em que se valoriza suas possibilidades como
chave de análise para os problemas das ciências humanas e sociais. Tal redefinição – que
será melhor disposta mais adiante- é formulada e defendida por dois dos estudiosos que
serão mobilizados nesse capítulo: Roger Chartier e Marshall Sahlins.
A História Cultural aos moldes de Chartier, leva em consideração um conceito de
cultura que rejeita a antítese cultura popular/erudita, agregando à categoria uma
abrangência, ao mesmo tempo que sem conferir-lhe homogeneidade94. Para além disso,
Chartier entende cultura como uma prática, que é apreendida por meio dos conceitos de
representação e apropriação; e a explanação desses conceitos é a principal colaboração
de Chartier dentro desta pesquisa, visto a necessidade de um instrumental teórico que
comporte nosso objeto: as representações do corpo. As principais diretrizes de seu
pensamento teórico com relação a esse tópico estão em sua obra: História Cultural: entre
práticas e representações, publicada pela primeira vez em 1988.
Primeiramente, é relevante compreender que, assim como a História Cultural nasce
como uma opção mais “coerente” à História das Mentalidades, assim também o conceito
de representação formulado por esse historiador se apresenta como um caminho
alternativo à esta. A História Cultural serviu, de algum modo, de refúgio para a História
das Mentalidades e seus diversos campos (tais como, “História da Vida Privada”,
“História da Sexualidade”, “História de Gênero”, entre outros), se apropriando e
retrabalhando seus temas, buscando aperfeiçoar suas diretrizes teóricas que, segundo as
críticas, se baseavam num conceito (mentalidade) “excessivamente vago, ambíguo e
impreciso quanto as relações entre o mental e o todo social95”. Como demonstra Chartier,
representação é uma categoria mais “útil”, na medida que permite articular três
modalidades de relação com o mundo social:
(...)em primeiro lugar, o trabalho de classificação e delimitação que
produz as configurações intelectuais múltiplas, através das quais a
realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos;

94
VAINFAS, Ronaldo. História das Mentalidades e História Cultural In: CARDOSO, Ciro Flamarion;
VAINFAS, Ronaldo (Orgs). Domínios da História: ensaios de metodologia e teoria. 5º ed. Rio de Janeiro:
Editora Campus, 1997, p. 189 - 241, p. 224.
95
VAINFAS, Ronaldo. História das Mentalidades e História Cultural. Op. cit., p. 220.
45

seguidamente, as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade


social (...) por fim, as formas institucionalizadas e objetivadas graças as
quais uns ‘representantes’ marcam de forma visível e perpetuada a
existência do grupo, da classe ou da comunidade96.

Percebe-se por meio dessa citação que a proposta de Chartier é imbuída de uma
grande preocupação com o aspecto social que, de acordo com o mesmo, era secundarizado
dentro do campo das mentalidades. E é a apreensão desse mundo social que a as
categorias de percepção e apreciação do real, tais como representação, prática e
apropriação, visam acessar. Elas seriam capazes de demonstrar e refletir simultaneamente
a organização social; afinal, as representações e os respectivos discursos de uma dada
realidade se relacionam com a posição de quem ou do grupo que os utiliza/enuncia. Por
esse motivo, o estudo das representações está sempre inserido no campo das
concorrências e competições que envolvem relações de poder, disputa e hegemonia97.
Somando-se a isso, Chartier apresenta uma leitura mais alargada do próprio mundo social,
reconhecendo que este é constituído de algo mais do que “materialidade” e que, nesse
sentido, o estudo das lutas de representações é tão elucidativo para a interpretação do
social, quanto as disputas econômicas98. Portanto, há uma desconstrução que opera no
sentido de desmistificar uma antítese entre “a objetividade das estruturas e a subjetividade
das representações99”. A primeira referindo-se a um manuseio de documentação
quantificável e documentos seriados, e a outra, a discursos supostamente descolados da
realidade.
Voltando-nos mais especificamente à representação, Chartier expõe dois sentidos
possíveis para o termo: o primeiro, parte da diferenciação entre o que representa e o que
é representado e, nesse sentido, a representação é a visualização de algo ausente; por outro
lado, é também a exposição pública de algo ou alguém. O primeiro sentido, nesse caso, é
mais relevante e se manifesta de duas formas fundamentais: como uma “reconstituição”
do original, servindo de mediação ao objeto ausente, ou como signos, carregados de um
sentido simbólico. Por exemplo, “o leão é o símbolo do valor; a esfera, o da inconstância;
o do pelicano, o amor paternal100”. A apreensão desse significado, evidentemente, é fruto
de um contexto cultural e social e, por isso, é importante reafirmar que, de acordo com

96
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo.
2° ed. Alés (Portugal): Difel, 2002, p. 23.
97
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Op. cit., p. 17.
98
Ibid.
99
Ibid., p. 17-18.
100
Ibid., p.20.
46

Chartier prática cultural e hierarquia social são fenômenos indivisíveis. Para além disso,
a categoria de representação ganha aqui uma autonomia, no sentido de ser um meio, por
si só, de interpretação do real; e não apêndices do estudo daquilo que é verdadeiramente
“real”. Ou seja, a proposição de Chartier critica uma “relação tradicionalmente postulada
entre o social, identificado com um real, bem real, existindo por si próprio, e as
representações, supostas como refletindo-o ou dele se desviando101”.
Derivando do conceito de representação, as categorias de prática e apropriação
constituem os dois eixos restantes do pensamento de Chartier. A noção de apropriação
deve ser mobilizada, de acordo com o historiador, de modo a tornar possível a
constituição de uma “História das interpretações”, sejam de qualquer natureza,
institucional, cultural e social. Muito significativo nesse ponto é a sua renúncia ao que
chama de “tirania do social”, ou seja, a uma ideia de que as clivagens sociais precedem e
determinam a apropriação de bens culturais102. Tal interpretação está presente nas
formulações foucaultianas, para o qual “apropriação” seria como um confisco que
colocava os discursos fora do alcance dos que os produziam103. No entanto, para Chartier
o termo demanda uma perspectiva aberta a pluralidade, que parta dos códigos e não das
classes sociais104.
Enquanto isso, as categorias de representação e prática guardam uma relação mais
próxima ainda entre si. Isso porque, como demonstra o autor, nada se desenvolve apenas
no plano representacional. Há uma relação de circularidade entre representação e prática,
horizonte com o qual a cultura pode ser examinada no âmbito produzido pela interação
entre esses dois elementos. Desse modo, como já brevemente exposto, não existe relação
de casualidade entre os dois fenômenos - tal seria uma simplificação - mas um
intercruzamento, no qual não há um direcionamento único, nem preestabelecido. Reforça-
se também que a cultura não existe apenas no plano abstrato, das ideias, mas se demonstra
tanto nas práticas, quanto nas representações, não sendo nenhum dos dois termos
dedicados apenas a propagação ou a função de receptáculo.
Nesse sentido, propomos por meio do quadro teórico desenvolvido por Roger
Chartier que as representações do corpo, formuladas tanto pelos Padres da Igreja
Ocidental, quanto presente nos afrescos sob estudo, não são elementos descolados da

101
Ibid., p. 27.
102
CHARTIER. Roger. A beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed.
Universidade/ UFRGS, 2002., p.66-67.
103
VAINFAS, Ronaldo. História das Mentalidades e História Cultural. Op. cit, p. 229
104
CHARTIER. Roger. A beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Op. cit., p. 69.
47

realidade, mas que pelo contrário mantém um diálogo intenso com esta. As
representações vistas a partir de uma perspectiva de não passividade e de diálogo profícuo
com as práticas culturais, são um meio de alcançar, em algum nível, uma verossimilhança
do contexto de uma época ou sociedade. Na realidade, nenhum tipo de investigação
histórica poderia oferecer um retrato fidedigno de uma época ou de um aspecto de uma
sociedade, e nem deve ser esse nosso objetivo. Porém, a contribuição de Chartier se dá
na medida que legitima o estudo das representações, antes consideradas demasiadamente
abstratas para serem conclusivas na resolução das questões que se colocavam; alertando
que essas são também elementos constitutivos da existência cultural do homem. As
representações, assim como define Chartier, representam um rico caminho para
desvendar os vários grupos sociais que compõe uma sociedade, como se viam e
desejavam ser vistos; como viviam e como desejavam viver. Por esse motivo, mais do
que uma análise intrínseca e hermética deve ser aplicada as documentações. Afinal, como
postula Chartier, essa predisposição se torna necessária para assimilar também a realidade
social que comporta, ao mesmo tempo: prática, representação e apropriação.
Em síntese, as indicações de Chartier que serão instrumentalizadas nesse trabalho
derivam do seu entendimento sobre o próprio objeto da História Cultural, que segundo o
mesmo é “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma realidade
social é construída, pensada, dada a ler105”. As representações, aspirantes à
universalidade, são, porém, delineadas pelos interesses dos grupos que as forjam: poder
e disputa são, portanto, rudimentos inseparáveis da análise destas. Compreendendo que a
neutralidade é uma ilusão, é importante “treinar o olhar” para enxergar as possíveis
estratégias utilizadas pelo(s) autor(s) do(s) discurso(s) que, ao demonstrarem seus
interesses, abrem uma brecha para a apreensão do mundo social que compreende aquela
representação. Ainda central em toda essa discussão é a vinculação entre esta última e as
chamadas “práticas culturais”, que se dá de forma circular e não hierárquica. Como
consequência disso, reconhece-se que prática e representação são elementos igualmente
relevantes na construção de uma realidade ou contexto social e cultural.
Assim como Chartier, Marshall Sahlins em seu livro de ensaios “Ilhas de História”,
publicado na década de 1980, também compartilha de uma perspectiva dinâmica da
cultura e propõe uma abordagem antropológica que não se desassocia de um enfoque
histórico. Conjugando História/diacronia com estrutura/sincronia, o antropólogo oferece

105
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Op. cit, p. 16-17.
48

uma abordagem muito rica para o estudo do encontro de sociedade e culturas diferentes106
. Na obra citada, Sahlins trata do encontro cultural entre havaianos e ingleses, no contexto
imperialista, e propõe que suas reflexões a partir desse encontro ajam no sentido de
desconstruir algumas categorias acadêmicas que adotam um caráter binário, radical e
contrastante, característico das reflexões acerca de cultura e história. Estas, por sua vez,
incluem certos “pares”, como: passado e presente; sistema e evento, entre outros. Tais
categorias, quando mobilizadas de forma engessada, como “tipos ideais”, tendem a ser,
como demonstra Sahlins, analiticamente debilitantes. Por esse motivo, Sahlins define
como síntese para esse livro de ensaios a afirmação: “(...) o que os antropólogos chamam
de ‘estrutura’ – as relações simbólicas de ordem cultural – é um objeto histórico107”. É a
partir desse princípio e dos conceitos formulados a partir dele que essa pesquisa se
beneficia da abordagem de Sahlins, pois ela oferece uma possibilidade de ler a colisão
entre cristianismo e politeísmo por uma chave mais complexa do que a rasa dualidade
absoluta.
Para abarcar esse pressuposto, Sahlins define cultura como um conjunto de
simbolismos que agrega uma série de elementos interdependentes entre si - o que significa
que a quebra de qualquer um destes, reverbera em todos os outros. No entanto, essas
alterações não contradizem a estrutura; pelo contrário, Sahlins notou por meio da
investigação da cultura havaiana, que a ordem cultural também se reproduz na mudança.
Ou seja, a estrutura diacrônica é dotada de lógica própria. Nesse sentido, o antropólogo
não pretende aqui desvalidar a estrutura como chave de análise ou provar que essa se
contradiz a partir de um acontecimento inesperado, mas sim que a estrutura já abarca em
si a potencialidade do evento. Tais reflexões podem ser resumidas na citação abaixo:
(...) a história havaiana certamente não é a única em demonstrar
que a cultura funciona como uma síntese de estabilidade e
mudança, de passado e presente, de diacronia e sincronia. (...)
toda mudança prática é também uma reprodução cultural108.

Desse modo, Sahlins reconhece a validade de integrar as estruturas performativas,


ou seja, àquelas que se relacionam ao contingente; com as prescritivas, negadoras do
caráter eventual, criticando as chamadas interpretações recuperativas. Estas, tendo como
referência apenas o modelo prescritivo, projetam a ordem existente mesmo em casos sem

106
HERMANN, Jaqueline. História das Religiões e Religiosidades In: VAINFAS, Ronaldo; CARDOSO,
Ciro Flamarion (Orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. 5 ed. Rio de Janeiro:
Campus, 1997, p. 474 – 679, p. 497.
107
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Trad. Barbara Sette. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 8.
108
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História, Op. cit., p. 180.
49

precedentes – é o caso do modelo Radcliffe-browniano. Considerando que qualquer


sociedade comporta os dois aspectos em diferentes graus, esse tratamento se mostra pouco
válido para a compreensão de uma dinâmica cultural do ponto de vista prático. A proposta
de Sahlins parte, portanto, de dois pressupostos: o primeiro é o entendimento do evento
como a “relação entre um acontecimento e a estrutura (ou estruturas): o fechamento do
fenômeno em si mesmo enquanto valor significativo, ao qual se segue sua eficácia
histórica específica109”. Nesse sentido, fica claro que o acontecimento ou acidente só
adquire significância histórica quando sobreposto ao esquema cultural ao qual está
inserido. Seu outro ponto é a criação de um termo que se coloca entre a estrutura e o
evento, uma síntese situacional dos dois em uma “estrutura da conjuntura110”, no qual tem
como objetivo evidenciar uma lógica interna dentro da mutação da estrutura. A
instrumentalização desse conceito possibilita a apreensão dos riscos empíricos e
simbólicos, considerando a realização prática das categorias culturais em um contexto
histórico específico.
Ao construir esse arcabouço teórico, Sahlins formula as categorias que mais
diretamente nos interessam aqui: transculturação e ressignificação. Ambas reforçam a
existência de processos de recepção e apropriação cultural em casos de encontros de
sociedades distintas, pondo em xeque a ideia de que determinada cultura sofre
“influência” de outra. Desse modo, postula-se que quando há uma colisão de sistemas
culturais distintos, ambos se alteram mutuamente. Com isso, Sahlins não ignora que esses
encontros são intermediados também por hierarquias que resultam em alguma dessimetria
no grau de mudança de cada sociedade. Considerando o caso havaiano, por exemplo, esse
fenômeno fica bem claro devido ao contexto do imperialismo que foi, inclusive, o motor
que possibilitou essas aproximações. Ainda assim, qualquer leitura a partir desse
princípio, descarta uma perspectiva unilateral, mesmo quando há uma relação de poder
muito significativa.
Nesse sentido, entendemos que a cultura tradicional romana ofereceu as bases para
a construção do dogma cristão e, do mesmo modo, o cristianismo estimulou e promoveu
um movimento de readaptação no interior da sociedade romana, que tinha como traço
constitutivo o envolvimento em práticas politeístas. É por meio da ressignificação que
ocorre o processo de transculturação que resulta na modificação e recriação de todas as
partes envolvidas, a exemplo do que já demonstramos ter ocorrido entre cristianismo e

109
Ibid., p.15.
110
Ibid.
50

helenismo. Entretanto, a incorporação de um signo só se dá a partir de sua


ressemantização; sendo sempre alvo de readaptações, o signo permanece. Portanto, a
emergência da novidade que representou o cristianismo para o mundo antigo – mesmo
sendo uma vertente muito próxima do Judaísmo- interferiu nas categorias “pagãs”
vigentes, mesmo antes de ascender a legalidade. O “evento” do cristianismo, movimentou
as estruturas da religiosidade tradicional romana. A colisão dos dois sistemas
desencadeou, consequentemente, uma necessidade de reavaliação e adequação das
categorias dos dois lados. O grupo de novos cristãos, em sua maioria politeístas
conversos, se empenhou no sentido de enquadrar as categorias clássicas a sua nova
realidade, ao mesmo tempo que pressionavam a adequação das categorias cristãs àquelas
que lhes eram familiares.
Nesse sentido, ao notarmos semelhanças e apropriações de imagens “pagãs” no
contexto cristão, não as interpretamos como cópias ou ‘disfarces’ para cooptar os
politeístas desavisados e esconder o conteúdo cristão. Cada imagem ou mesmo cada obra
literária proveniente da cultura tradicional romana ao ser incorporada ao universo cristão
é ressignificada, mesmo que, por vezes, passe a representar um sentido muito similar ao
anterior. Por exemplo, a representação de cachos de uva, que dentro da cultura politeísta
romana estava ligada aos cultos dionisíacos; e do trigo, relacionado à fertilidade; sendo
“cristianizados”, se tornam símbolo, respectivamente, do sangue e do corpo de Cristo111.
Desse modo, infere-se que essas mensagens, provavelmente, não seriam decifradas em
sua totalidade por aqueles indivíduos que não estivessem inseridos nos grupos cristãos;
porém, ao mesmo tempo, serviriam de um elemento facilitador da conversão, caso ela
ocorresse. O reconhecimento dessas imagens, ou das argumentações e autores
reconhecidos promoveria uma sensação de familiaridade e se conectaria facilmente com
as estruturas emocionais, intelectuais e culturais já constituintes do sujeito.
Portanto, a cultura tem um caráter transitório que é inacessível a partir de uma
perspectiva que impõe uma oposição corolária entre História (ou evento) e estrutura.
Alimentando-se de elementos helênicos, romanos, o cristianismo foi tolerado e,
gradativamente, buscado pelos romanos. A mutação da sociedade romana que teve no
cristianismo um importante fator foi, então, reproduzindo a cultura antes vigente,
comprovando a afirmação de Sahlins de que “(...) toda mudança prática é uma reprodução

111
MARTINS, Angelina Carr Ribeiro. A religio no cristianismo primitivo. Revista Último Andar, n. 25, p.
77-102, 2015, p. 94.
51

cultural112”. Desse modo, as alterações operadas no âmbito cultural não indicam declínio
ou morte de uma cultura, mas um processo de ressignificação: as sociedades estão
expostas e carregam em si a potencialidade da mudança. Nesse sentido, Marshall Sahlins
compreende o evento histórico – de natureza diacrônica – como uma “conjuntura na
estrutura”, uma “brecha” que possibilita o acesso a própria estrutura. Interessante citar
também que Roger Chartier tem proposições análogas e através da crítica a hegemonia
da longa duração, compreende o evento histórico como “contingência histórica” - fazendo
oposição a uma formulação teleológica113. Nesse sentido, ambos os autores que
constituem o instrumental teórico desta pesquisa têm uma postura de contrariedade às
relações simplistas de causa e efeito quando a questão é encontro cultural.
Por fim, como nosso corpus documental é constituído por imagens, é essencial
expormos nosso posicionamento diante da análise destas, e para tal, empregaremos a
Teoria Iconológica de Erwin Panofsky. Segundo Giulio Carlo Argan, “o grande mérito
de Erwin Panofsky consiste em ter entendido que, apesar da aparência confusa, o mundo
das imagens é um mundo ordenado e que é possível fazer a história da arte como história
das imagens114”. Com essa reflexão, Argan expõe a proposta fundamental da Teoria de
Panofsky, que se revela em sua postura crítica diante das concepções tradicionais da
História da Arte, análogas ao próprio modo de se fazer História no século XIX.
Marcada pelos ideais positivistas, as Ciências Humanas e, consequentemente, a
História, objetivando se legitimarem como conhecimento científico, se apropriaram no
século XIX dos procedimentos característicos das chamadas “Ciências Exatas”. Nesse
sentido, ao historiador cabia descortinar a “verdade”, “recriar” o passado como de fato
aconteceu a partir de um material empírico; naturalmente, as fontes escritas e oficiais. Ou
seja, a historiografia do século XIX privilegiava o documento escrito, conferindo a este o
status de comprovação, de prova sobre os acontecimentos passados. A História, portanto,
adotava como primeiro passo de seu procedimento a constatação da autenticidade da
documentação recolhida; depois, a partir dos dados coletados da mesma, o historiador
reconstituía o passado. Questão emblemática dentro dessa tradição, também conhecida

112
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Op. Cit., p. 180.
113
CHARTIER. Roger. Origens culturais da Revolução Francesa. São Paulo: Unesp, 2009.
114
ARGAN, Giulio Carlo. A História da Arte. In: ______. História da Arte como História da Cidade. São
Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 51 Apud PIFANO, Raquel Quinet. História da Arte como História das
Imagens: Iconologia e Erwin Panofsky. Revista de História e Estudos Culturais: v. 7, ano VII, n° 3, p. 1 -
21, 2010, p. 1.
52

como método erudito, é a denúncia da falsidade do documento da doação de Constantino,


no século XV, por Lorenzo de Valla115.
Por meio da adoção dessa postura, é possível especular sobre o lugar da imagem
e da arte dentro da ciência histórica da época. A busca pela institucionalização da área
das Humanidades por meio de sua adequação aos métodos das ciências mais tradicionais,
as ciências “duras”, representava uma ruptura da História em relação a Arte, à Literatura
e à Filosofia – produtos não da realidade, mas daquilo que é abstrato, idealista, criativo e,
portanto, a-histórico. Como afirma Paulo Knauss em artigo:
O caráter probatório da pesquisa histórica definiu a noção de
documento como sinônimo de fonte histórica, demarcando assim
seu universo à hegemonia da fonte escrita e oficial. Este modelo
foi validado pela concepção cientificista de documento e traduziu
a afirmação da objetividade do conhecimento como dado (...). É
nesse sentido que as imagens foram desprezadas116.

Desse modo, as imagens até poderiam ser utilizadas para a busca de uma
comprovação. Porém, isso só ocorria em situações que as fontes escritas eram escassas,
por exemplo, no caso do estudo da Antiguidade117. Ou seja, as diferentes modalidades
narrativas não eram respeitadas em sua especificidade: o mesmo procedimento era
adotado a diferentes tipologias de fontes. Quanto ao estudo da Arte, este se restringia a
identificação dos motivos artísticos e a classificação das obras em modelos estilísticos. A
crítica contemporânea, porém, que teve como um de seus protagonistas a Escola dos
Annales em fins da década de 1920, redefiniu essa visão cientificista, promovendo a
revalorização das imagens como fontes que trazem à tona os mundos social e cultural.
Para além disso, se evidencia a “não inocência” da documentação, a impossibilidade de
isenção das representações e discursos, sejam eles de qualquer natureza. E é neste cenário
renovado que Panofsky se insere, reconhecendo que Arte e História não são campos que
divergem, mas que apresentam um laço estreito. Nesse sentido, abandona-se o aspecto
essencialmente formalista da História da Arte construída até então, e o foco é transferido
para o estudo das funções da imagem e a relação entre essas e suas formas. Por esse

115
A “Doação de Constantino” foi um documento forjado, supostamente datado de 337 d.C., no qual o
Imperador Romano de mesmo nome “doava” o Império Romano do Ocidente à Igreja Cristã. Esse
documento falso, que meados de 476 d.C., com o “fim” do Império Romano do Ocidente, teve grande força
política, foi desmentido por Lorenzo de Valla, que apresentou uma série de outros documentos que
comprovavam sua falsidade
116
KNAUSS, Paulo. Aproximações disciplinares: história, arte e imagem. Anos 90: Revista do Programa
de Pós-graduação em História da UFRGS, Porto Alegre, v. 15, n. 28, p. 151-168, dez. 2008, p. 152.
Disponível em <http://seer.ufrgs.br/Anos90/article/view/7964>
117
Ibid.
53

motivo, para Panofsky, o estudo da Arte apresenta complexidades que não podem ser
ignoradas na pesquisa, pois
(...) a esfera em que o campo dos objetos práticos termina e o da arte
começa, depende da ‘intenção’ de seus criadores. Essa ‘intenção’ não
pode ser absolutamente determinada. Em primeiro lugar, é impossível
definir as ‘intenções’, per se, com precisão científica. Em segundo, as
‘intenções’ daqueles que produzem os objetos são condicionadas pelos
padrões da época e meio ambiente em que vivem118.

Diante dessa irredutibilidade, a verdadeira busca deve ser pelos significados da


imagem. Aspecto esse que emerge visualmente como expressão das funções
socioculturais atribuídas ao objeto artístico, de sua época. Mescla-se, nesse caso, a
compreensão do nível da estrutura e das formas, assim como da dimensão exterior à obra:
seu autor, tempo histórico e utilidade. Nesse sentido, forma e função/motivação são duas
instâncias profundamente relacionadas.
Ao propor esse posicionamento, é importante que algumas “barreiras” que fazem
com que, eventualmente, a análise ou interpretação de imagens provoquem algumas
reticências sejam superadas. Tais pontos são expostos por Martine Jolly em seu livro
Introdução à Análise da Imagem (1994). O primeiro deles é a crença da imagem como
linguagem universal, da qual supostamente seríamos capazes de ler natural e
instantaneamente; o segundo, diz respeito a uma atitude de contestação da riqueza da
mensagem das imagens, traduzida na pergunta “O autor quis tudo isso?”; por fim, a
terceira reticência se refere à imagem considerada “artística”, “que seria desnaturada pela
análise porque a arte não seria de ordem do intelecto, mas do afetivo e do emotivo119”.
Como demonstra a autora, o primeiro equívoco abordado confunde operações que
apesar de complementares são bem distintas: percepção e interpretação 120. Decerto,
atestamos a existência de arquétipos comuns aos homens e símbolos representativos para
uma ou mais sociedades, no entanto, “reconhecer este ou aquele motivo nem por isso
significa que se esteja compreendendo a mensagem da imagem na qual o motivo pode ter
uma interpretação bem particular (...)121”. A segunda reticência apresenta uma tensão de
longa data que envolve a tríade autor-obra-público e sua resolução da consciência de que
não temos domínio sobre o que, de fato, o autor objetivava ou sentia no momento de

118
PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: uma introdução aos estudos da Renascença. In:
_______. Significado das Artes Visuais. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 47-65, p.32.
119
JOLLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. 2 ed. Trad. Marina Appenzeller. Campinas, São
Paulo: Papirus, 1996, p. 41.
120
JOLLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. Op. cit., p. 42.
121
Ibid.
54

produção; o próprio não domina todo o conjunto de significações que produz. Ainda
assim, a análise das imagens deve se voltar para o que determinada mensagem produz de
significação em sua respectiva circunstância, atentando para o que dela é pessoal e o que
é coletivo122. Finalmente, cabe-nos também não forjar uma oposição entre arte e ciência,
que embasa a última proposição colocada por Jolly e que trava a reflexão a partir da
experiência estética. Do mesmo modo, é necessário analisar os objetos artísticos para
além de sua veiculação ao artista – o que para o nosso tempo é particularmente difícil. Ou
seja, é evidente que existe uma particularidade, uma assinatura em cada obra, ligada a seu
criador. Todavia, o artista não vive em estado de isolamento e sua obra evidenciará isto a
partir da predisposição do estudioso em de lê-la123.
A Teoria de Panofsky, apresentando diversas interfaces com a análise de Jolly
sobre a interpretação das imagens, enfatiza a singularidade já comentada das operações
de percepção e interpretação, reconhecendo que a expressão tem um caráter cultural não
universal. Os motivos, os temas e os demais aspectos formais de uma obra só podem ser
interpretados e compreendidos em sua totalidade considerando sua subordinação aos
padrões da época em que foi materializada. Portanto:
Não se poderia esperar que um bosquímano australiano ou um grego
antigo compreendessem que o ato de tirar o chapéu fosse, não só um
acontecimento prático com algumas conotações expressivas, como
também um signo de polidez. Para entender o que o gesto do
cavalheiro significa, preciso não somente estar familiarizado com o
mundo prático dos objetos e fatos, mas além disso com o mundo mais
do que prático dos costumes e das tradições culturais peculiares a uma
dada civilização124

Ou seja, baseando-nos nas proposições de Panofsky, analisaremos nossa


documentação visual partindo de sua historicidade, buscando o mundo de sentidos e
significados de determinada opção estética e temática para a própria época. Indo um
pouco mais além daquilo que é proposto por Panofsky, Michael Baxandall investiga de
forma mais aprofundada a historicidade da própria recepção da cultura visual, sugerindo
o termo “period eye” ou, aproximadamente, “olhar da época”, que postula que até mesmo
os modos de ver são históricos125. Nesse sentido, para se adequar a demanda dos modos

122
Ibid. p. 44.
123
Ibid., p. 46.
124
PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: uma introdução aos estudos da Renascença. In: _______.
Significado das Artes Visuais. Op. cit., p. 49.
125
BAXANDALL, Michael. O olhar renascente: pintura e experiência social na Itália da Renascença. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1991 Apud KNAUSS, Paulo. Aproximações disciplinares: história, arte e imagem.
Op. cit, p. 158.
55

cognitivos de percepção em um determinado contexto é necessário que as obras sustentem


determinado padrão visual. Estabelecendo essa relação circular, a produção artística e os
padrões visuais se influenciam mutuamente. Mesmo este trabalho não tendo como
ambição estudar especificamente a recepção dos romanos diante da produção visual
construída nas catacumbas no final da Antiguidade, o pensamento de Baxandall é, de
certo modo, complementar ao que é postulado por Panofsky e reafirma sua relevância no
sentido que de frisa o quão primordial é ler os elementos estéticos por meio de sua
localização histórica e, consequentemente, simbólica.

2.2 Metodologia e análise das fontes


Consideramos que a adoção de uma perspectiva comparativa e que considera a
documentação imagética, assim como a textual, como narrativas singulares é muito
importante. Segundo Cláudia Beltrão e Patrícia Vivian von Benkö Havat126, que em
artigo datado de 2014 fazem uma análise comparativa entre uma tragédia ateniense
(Hipólito, de Eurípedes – s. V a.C.) e uma representação pictórica (calyx-krater de figuras
vermelhas – s. IV a.C.):
Imagens e discursos constituem-se, de certo modo, como ‘prismas
perceptivos’ pelos quais os seres humanos concebem sua existência, seu
lugar, seu papel no mundo, agindo de acordo – ou contra – eles,
construindo assim seus corpos e suas experiências sensíveis e
cognitivas127.

Compreender e investigar esses “prismas”, portanto, pode possibilitar uma percepção


ou estudo mais profundo e global de determinada temática, assumindo a existência de
padrões, assimetrias e correspondências entre os variados discursos. Com isso, não
queremos dizer que esgotaremos as narrativas existentes com relação ao corpo para este
período ou para o cristianismo. Nem ao menos, estamos personificando o pensamento
cristão sobre o assunto na figura dos três religiosos estudados aqui, como se estes
servissem como uma metonímia dos valores cristãos; mas sim, que buscar diferentes
gêneros de documentação pode trazer com mais clareza a complexidade sobre a qual esse
objeto está envolvido. Como já foi desenvolvido, para esse período especialmente, a
aceitação dessa complexidade deve ser o ponto de partida.

126
DA ROSA, Cláudia Beltrão; HORVAT, Patricia Vivian Von Benkö. Fedra: cena trágica, gênero e
aniquilamento da pintura. In: LIMA, Alexandre Carneiro Cerqueira (Org.). Imagem, gênero e espaço:
representações da Antiguidade. Niterói: Alternativa Editora, 2014, p?
127
Ibid., p. 124.
56

Sabemos que cada modalidade narrativa tem suas especificidades e precisam ser lidas
a partir de suas próprias referências. Como essa pesquisa conjuga a análise de duas
tipologias de documentação (textual e imagética), mobilizaremos duas propostas
metodológicas, que serão explicitadas mais cuidadosamente neste capítulo.

2.2.1 Análise do Discurso


Utilizaremos como método de análise de nossas fontes escritas a Análise do Discurso
(AD) proveniente da escola francesa, mais especificamente, conforme formulada por
Dominique Maingueneau na obra Novas tendências em análise do discurso128. Porém,
acreditamos que algumas considerações postuladas por Michel Foucault em seu livro
Arqueologia do Saber sobre sua leitura da Análise do Discurso trazem contribuições para
a investigação que pretendemos fazer - considerando, em especial, que o autor está
diretamente ligado ao campo da História do Corpo. Por esse motivo, exporemos,
primeiramente, algumas formulações foulcaultianas que se relacionam tanto com nossa
problemática quanto com aquilo postulado por Maingueneau – que será melhor explicado
adiante, justificando sua utilidade para essa pesquisa. Importante dizer que, mesmo o
estudo de Foucault tendo um caráter essencialmente teórico, abordaremos seu trabalho
buscando desdobrar essa teoria em um viés metodológico.
Segundo Foucault, o discurso pode ser dotado de propriedades linguísticas, mas não
é o elemento linguístico que confere propriedade e unidade ao discurso. Para possuir essa
unidade, o discurso deve apresentar propriedades discursivas. Ou seja, discurso não é
sinônimo de texto. Nesse sentido, é possível encontrar indícios de discursos, no sentido
colocado por Foucault, em representações não linguísticas: imagens, na tradição
iconográfica e, até mesmo, nos gestos e expressões. A míriade de enunciados, que
constituem pequenas unidades dos discursos, se revelam nas mais diversas fontes, e a
partir deles várias ligações podem ser evidenciadas. Essas ligações que atravessam
enunciados dispersos, Jean-Jaques Courtine chama de “fio interdiscursivo”. Por este ‘fio’,
tomamos consciência de uma série de paradigmas que atravessam imagem e textualidade.
Encontrar essa unidade, porém, exige um exercício arqueológico que investiga texto a
texto, e vai acessando diferentes locutores.

128
MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. 3° ed. Campinas: Ed.
Unicamp, 1997.
57

A partir daí, podemos concluir algumas coisas. A primeira delas é que o discurso
presente no texto escrito não está deslocado da cultura e da tradição imagética. A segunda
é que, mesmo sendo essencialmente linguístico, nossa documentação, fruto do trabalho
desses Pais da Igreja do mundo Ocidental, extrapola esse aspecto. Dessa característica da
compreensão de Foucault sobre o discurso, podemos estabelecer relações com
Maingueneau. Pois assim como o primeiro, Maingueneau reconhece esse caráter
abrangente e, não desprezando uma análise hermética (entendida aqui como linguística),
não se priva de buscar o “não dito” e o que extrapola o textual (sendo esse presente na
materialidade da construção textual, a própria língua; ou nas diversas interseções entre os
discursos, no contexto histórico, entre outros fatores). Ou seja, como se demonstrará a
análise do Discurso, de Foucault, se mostra complementar aquela estabelecida por
Maingueneau. Para além disso, ainda cria um diálogo com o outro gênero de fontes
(imagético) utilizadas nessa pesquisa, através do reconhecimento de sua inserção na
formulação do discurso.
Partindo dessa “introdução” e de um enquadramento superficial sobre o
pensamento de Maingueneau a partir de suas relações com Foucault, é necessário,
primeiro, entendermos de forma mais clara sua definição de discurso para prosseguirmos.
Afinal, inúmeros sentidos já foram atribuídos ao termo, que serve de categoria conceitual
em vários campos do saber. Portanto, segundo o linguista, o discurso é “uma dispersão
de textos cujo modo de inscrição histórica permite definir como um espaço de
regularidades enunciativas129”. Nesse sentido, o discurso é uma construção semântica e
enunciativa localizada historicamente, por conseguinte, seu emissor também. Esse
sujeito, como produto das condições que o cercam e dos outros discursos que o cindem
por meio de sua época, formula seus enunciados de forma específica. Nesta perspectiva,
toda a qualidade de documentação produzida, não é fruto apenas da reflexão ou projeção
de ideias de um sujeito singular, pois sua própria enunciação é correlata de uma posição
socio-histórica. Ou seja, os enunciadores são, em certo sentido, substituíveis130.
Porém, todos esses componentes: o contexto da obra e informações acerca do
autor e sobre as relações com outras obras, não são entendidos aqui como elementos que
apenas precedem a escrita. Todos esses itens são intrínsecos a língua escrita e fazem parte

129
MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. Trad. Sírio Possenti. Curitiba: Criar, 2005 Apud
DE MELO, Iran Ferreira. Análise do Discurso e Análise crítica do Discurso: desdobramentos e
intersecções. Revista Eletrônica de Divulgação Científica em Língua Portuguesa, Lingüística e Literatura.
n.11, ano 5, p. 1-18, 2º Semestre de 2009, p.3.
130
MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. Op. cit., p. 105-106.
58

da estrutura textual131. A AD, portanto, compreende que uma obra literária deve ser
interpretada considerando tanto sua estrutura interna, como também aquilo que lhe é
exterior, afirmando que este acaba emergindo dentro da própria estrutura linguística. O
objetivo é identificar as construções ideológicas presentes em um texto a partir da não
desvinculação entre estrutura linguística e contexto social no qual o texto é
concebido/desenvolvido, sendo este último crucial para justificar as ideologias presentes
em um discurso. A experiência histórica e social do autor, as condições de escrita,
acrescidas de um diálogo estabelecido com outras obras e a percepção de elementos
implícitos dentro do texto, terão um reflexo direto na materialidade do discurso e, por
isso, devem ser apreendidas para interpretar um texto. Ou seja, a AD, como postula
Maingueneau trabalha fundamentalmente com a fusão entre Linguística e História, sendo
que a primeira já carrega em si o primeiro acesso à outra. Exemplificamos isso através do
trecho abaixo:
(...) a linguagem considerada como uma forma de ação; cada ato
de fala (batizar, permitir, mas também prometer, afirmar,
interrogar, etc.) inseparável de uma instituição, aquela que este
ato pressupõe pelo simples fato de ser realizado. Ao dar uma
ordem, por exemplo, coloco-me na posição daquele que está
habilitado a fazê-lo e coloco meu interlocutor na posição daquele
que deve obedecer; não precise, pois, perguntar se estou
habilitado para isto: ao ordenar, ajo como se as condições
exigidas para realizar este ato de fala estivessem efetivamente
reunidas132.

Considerando esses pressupostos apresentados, instrumentalizaremos para a


análise de nossas fontes escritas os seguintes conceitos apresentados por Maingueneau:
lugar e cena, gêneros literários, cenografia e deixis discursiva. Para a compreensão das
duas primeiras categorias, que são intrinsecamente correlatas, é necessário ter a priori a
noção de que “cada um alcança sua identidade a partir de um sistema de lugares que o
ultrapassa133”. Esses dois elementos reafirmam, portanto, uma ideia já explicitada
anteriormente: o discurso constitui um espaço no qual se desenvolvem relações sociais
das mais diversas naturezas, sendo essas, por sua vez, mediadas pela linguagem. O outro
aspecto que deve ser buscado no texto são seus gêneros; afinal, todos os enunciados são
também “amostras” de um certo gênero de discurso. Tal categoria traz também a tona a
ideia de “contrato”, pois cada gênero demanda um formato ou ritual específica. O gênero

131
MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. Op. cit., p. 20-30.
132
Ibid., p. 29.
133
Ibid., p. 33.
59

de uma obra não é de fácil identificação, pois, um mesmo gênero encontra-se na


interseção de muitos outros134. Para identifica-lo é necessário avaliar tanto as
características formais, e, fundamentalmente, seu caráter “institucional”. Este último
item, a partir das contribuições do que Maingueneau chamou de “Pragmática”, ganha
maior relevância, pois uma separação entre forma e condições de enunciação seria, no
mínimo, ilusória e não verificável135. Somando-se a isso, um gênero de discurso engloba
condições de diferentes ordens, a saber: comunicacional e estatuário136. A primeira
condição está relacionada ao meio de difusão do discurso, pois “a cada gênero associam-
se momentos e lugares de enunciação específicos e um ritual apropriado137. A segunda
condição, como o nome indica, se relaciona com o status tanto de seu enunciador, quanto
de seu co-enunciador. É o gênero que garante a legitimidade de cada um no processo
enunciativo. A partir deste elemento, outra categoria importante emerge: a autoridade,
que traz uma compreensão de que para ter validade, o discurso deve ser reconhecido, ou
seja, autorizado.
O último conceito pontuado por Maingueneau foi a deixis, termo pertencente ao
universo da linguística e que tem como definição uma “referência verbal à situação, ao
contexto e aos interlocutores da enunciação138” - nesse sentido, sua relação com seu “par”,
cenografia, fica bem evidente. A deixis discursiva possui a mesma essência, como
desenvolve Maingueneau; porém, se revela num nível diferente, que engloba os sentidos
da formação discursiva por meio de sua enunciação. Desse modo, três instâncias
fundamentais são requisitadas e precisam ser distinguidas: o locutor e o destinatário
discursivos, a cronografia e a topografia139. A percepção da deixis é fundamental porque
demonstra que “uma formação discursiva não enuncia a partir de um sujeito, de uma
conjuntura histórica e de um espago objetivamente determináveis do exterior, mas por
atribuir-se a cena que sua enunciação ao mesmo tempo produz e pressupõe para se
legitimar140”. A cenografia da formação discursiva, por sua vez, tem como primeira porta
de acesso a identificação da deixis. Também é possível acessá-la por meio da deixis
fundadora, outra categoria essencial para identificar a validação dos discursos, que se

134
Ibid., p. 35.
135
MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. Op. cit., p. 36.
136
Ibid.
137
Ibid.
138
"deixis", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-
2013, https://dicionario.priberam.org/deixis [consultado em 30-03-2019].
139
MAINGUENEAU. Dominique. Novas tendências em Análise do Discurso. Op. cit., p.41.
140
Ibid., p. 42.
60

refere a todo um universo de situações de enunciados anteriores, do qual a deixis atual se


apropria, reutiliza e recria. A legitimidade da deixis atual é, portanto, devedora da dexis
fundadora, pois só é considerada legitima na medida que estabelece relações e analogias
e certa continuidade com esta última141.
A partir do que foi tratado, percebe-se que as análises embasadas pela
Metodologia da AD, do modo como disposta pela escola francesa, que tem Maingueneau
como grande referência, devem incluir duas etapas fundamentais. Inicialmente, deve ser
dado algum espaço para uma exposição dos conceitos linguísticos; a seguir, a explicação
de como estes podem ser explorados, trazendo à tona aquilo que, sendo intrínseco a
textualidade, não costuma se mostrar facilmente: o lugar de fala do autor, a relação de seu
enunciado com os que lhe antecederam, entre outros elementos já brevemente expostos
acima. Ainda assim, considerando a multiplicidades de abordagens a partir da AD é mister
colocar que apesar da investigação linguística ser um meio de acesso com muitas
possibilidades para a apreensão do discurso, não é apenas e nem essencialmente sobre o
funcionamento desta que a AD se debruça. Nesse sentido:
(...) há em comum entre todas as correntes que analisam o
discurso (obviamente excetuando-se as perspectivas
estruturalistas) o ideário de análise não focalizada no
funcionamento linguístico, e sim na relação que o sujeito e esse
funcionamento estabelecem reciprocamente. Ou seja, o objeto de
estudo de qualquer análise do discurso não se trata tão somente
da língua, mas o que há por meio dela: relações de poder,
institucionalização de identidades sociais, processos de
inconsciência ideológica, enfim, diversas manifestações
humanas142.

Portanto, o que é imprescindível na AD é, essencialmente, utilizar o contexto


coadunado com alguns rastros mais concretos do discurso. Unidas, essas “pistas” são um
tipo de acesso ao “não visto” ou “não escrito”. Isso ocorre porque a enunciação estará
sujeita ao quadro de instituições que a modelam e restringem; aos conflitos históricos,
sociais; ao lugar de fala do autor; e ao seu público. Pois cada variação da combinação de
tempo e espaço produzirá condições específicas para o exercício da função enunciativa.
Corroborando com essa elucidação, apresentamos no capítulo anterior a trajetória
dos autores mobilizados nesta pesquisa, assim como suas respectivas obras que serão
discutidas mais adiante; do mesmo modo, no capítulo seguinte, buscaremos embasar

141
Ibid.
142
DE MELO, Iran Ferreira. Análise do Discurso e Análise crítica do Discurso: desdobramentos e
intersecções. Op. cit, p.3.
61

nossa análise da problemática nos utilizando desses dados. Ou seja, nossa proposta, a
partir desse exercício metodológico é compreender que a documentação textual está
imersa num cenário maior e, por isso, não pose ser apreendida por meio de uma análise
hermética; mas deve ser considerada como uma peça ou vestígio de um autor (com suas
característica sociais, econômicas, políticas e, inclusive, individuais) em sua época, com
suas tensões inerentes.

2.2.2 Método Iconológico


Nossa abordagem a partir dos afrescos presentes em catacumbas da cidade de Roma
trará desdobramentos metodológicos da perspectiva teórica desenvolvida por Erwin
Panofsky e exposta em título anterior. Como já demonstrado, o grande mérito desse
estudioso das artes foi
a ênfase numa perspectiva que “historiciza” as imagens e a produção artística,
compreendendo que elas precisam estar inseridas em seu contexto para serem lidas e
interpretadas. Exploraremos aqui neste capítulo como esse processo deve funcionar e
quais são suas etapas. Partindo do princípio de que o objetivo de Panofsky era estudar o
significado aliado a forma das obras de arte, precisamos ter clareza na diferenciação
dessas duas categorias e como apreendê-las ao analisar uma documentação.
O primeiro aspecto que deve ser notado é o que Panofsky chama de significado
fatual, que corresponde a significação de natureza mais elementar. Sua apreensão se dá
pela identificação das formas visíveis, podendo estar com objetos e referências já
conhecidas. Para explicar tanto esse procedimento, como os demais, o autor se utiliza de
uma metáfora: um amigo que ao lhe cumprimentar na rua, retira levemente seu chapéu.
O próximo passo é a busca do significado expressional. Por meio deste, poderíamos
acessar se esse conhecido “está de bom ou mal humor, ou se seus sentimentos a meu
respeito são de amizade, indiferença ou hostilidade143”. Esse aspecto, diferente do fatual,
não pode ser apreendido por simples identificação, mas exige ‘empatia’144. Apesar dessa
segunda operação exigir um olhar um pouco mais aguçado e maior sensibilidade, tanto
esse significado, quanto o primeiro, ainda fazem parte da experiência prática, sendo
classificados, portanto, de primários ou naturais – pois, ainda se encontram no âmbito da
familiaridade.

143
PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: uma introdução aos estudos da Renascença. Op. cit.,
p.48.
144
Ibid.
62

Por outro lado, o entendimento que relaciona o “tirar o chapéu” a um ato de


cumprimento, pertence a outro campo. Essa operação que confere sentido ao ato e/ou a
visualidade, se enquadra no chamado significado secundário ou significado
convencional. Esse aspecto difere do primário por duas razões: em primeiro lugar, por ser
inteligível ao invés de sensível e, em seguida, “por ter sido conscientemente conferido a
ação prática pela qual é veiculado145”.
Em seguida a esses aspectos, temos ainda um último e mais complexo elemento a
ser identificado. Este, por sua vez, agregando a percepção dos significados primário e
secundário é o ponto chave do método de Panofsky, sendo o meio intransponível para a
interpretação da imagem/obra de arte. Voltemos a metáfora utilizada pelo historiador da
arte:
(...)além de constituir um acontecimento natural no tempo e espaço, além
de indicar, naturalmente, disposições de âmbito e sentimentos, além de
comunicar uma saudação convencional, a ação do meu conhecido pode
revelar a um observador experimentado tudo aquilo que entra na
composição de sua personalidade146.

Nesse caso, a “personalidade” carrega os traços de sua época, sua formação


educacional, origem cultural, suas circunstâncias atuais e; igualmente, é visível aquilo
que lhe é particular, “seu modo individual de encarar as coisas147”. Esse homem,
praticando um ato que representa um cumprimento, ao levantar seu chapéu é, portanto,
um produto de sua nacionalidade, posição social e assim por diante.
Revertendo essas considerações para uma obra de arte, temos o seguinte esquema: o
tema primário ou natural, que se subdivide em fatual e expressional, abarca a identificação
das “formas puras”, desvendando o mundo dos motivos artísticos. O tema secundário ou
convencional se distingue na medida que coloca a necessidade da identificação das
estórias e alegorias, possibilitando encadear os motivos artísticos com assuntos e
conceitos. Essa etapa, portanto, envolve o exercício da iconografia. Esta não pressupõe,
porém, apenas familiaridade com os objetos, como descrito na situação hipotética criada
por Panofsky para explicar seu método, mas familiaridade com temas específicos e
conceitos transmitidos tanto por outras fontes imagéticas, literárias ou pela tradição oral.
Ou seja, esse momento de análise engloba também a história do estilo, que segundo

145
Ibid., p. 49.
146
PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: uma introdução aos estudos da Renascença. Op. cit, p.
49.
147
Ibid.
63

Panofsky, agiria como um princípio corretivo148 – um mecanismo que permite que


relativizemos nossa experiência prática diante da análise da obra, impedindo-nos de
ocorrer no erro, por exemplo, do anacronismo e da supervalorização da individualidade
do autor em detrimento dos sintomas culturais gerais que circulam o contexto.
De algum modo podemos dizer que essa operação também lida com arquétipos, mas
é preciso ter consciência de que a identificação não é necessariamente de fácil acesso e
que esse processo é bem mais complexo. Um dos possíveis entraves nessa etapa é o
próprio alcance da experiência pessoal prática do “leitor”, isso ocorre quando nos
deparamos com a representação de um objeto, um personagem, animal ou planta do qual
não conhecemos. Essa barreira deve ser transpassada com o aumento dessa experiência,
ou seja, estudo e pesquisa. Retomemos um exemplo próximo aquele transcrito em nosso
capítulo teórico: sendo facilmente identificável na tradição ocidental, “um bosquímano
australiano não seria capaz de reconhecer o assunto da Última Ceia149”. Para isso, seria
necessário ter conhecimento sobre os Evangelhos. Do mesmo modo, não podemos ser
inocentes ao achar que essa operação deveria ser mais fácil para nós “civilizados”, pois
tratando-se de muitos temas podemos ser nós os bosquímanos australianos150.
O último procedimento, que se debruça sobre o significado intrínseco ou conteúdo de
determinada obra, tem por objetivo a apreensão de seus valores simbólicos, envolvendo
o estudo iconológico. Em contraste com a iconografia, uma atividade de caráter descritivo
e classificatório; a iconologia denota um procedimento interpretativo – derivada de logos,
que quer dizer ‘pensamento’, ´razão´151. Com essa delimitação, não pretendemos marcar
aqui uma hierarquização entre as duas: como irá demonstrar Panofsky, as duas operações
são complementares e interdependentes. Ainda assim, a interpretação iconológica é
dependente de uma faculdade mental que o autor chama de intuição sintética, que,
segundo o mesmo, “pode ser mais desenvolvida em um leigo talentoso que em um
estudioso erudito152”. Esse exercício, portanto, exige ir além da familiaridade tanto de
conceito como temas artísticos, porque na maioria dos casos, não encontraremos os
princípios básicos de uma obra em fontes de outra natureza, literárias, por exemplo. A
tensão que deve existir para garantir o sucesso de uma interpretação iconológica se dá

148
Ibid., p.58.
149
PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: uma introdução aos estudos da Renascença. Op. cit., p.
58
150
Ibid., p. 59.
151
Ibid., p. 54.
152
Ibid. p. 62.
64

entre a intuição e a aplicação dos “corretivos” – estes, sendo interpretados aqui como um
‘controle’ para o subjetivo e irracional, que corre o risco de ser despertado em uma análise
intuitiva. Nesse sentido, reafirma-se aqui o entrelaçamento e co-dependência das
operações propostas no Método Iconológico. Essa relação fica bem expressa na passagem
abaixo:
Em qualquer camada que nos movamos, nossas identificações e
interpretações dependerão de nosso equipamento subjetivo e, por essa
mesma razão, terão de ser suplementados e corrigidos por uma
compreensão dos processos históricos cuja soma total pode denominar-
se tradição153

Sintetizando, nossa análise das fontes imagéticas partirá das três etapas estabelecidas
no Método Iconológico, de Erwin Panofsky. Primeiro, é feita a descrição pré-
iconográfica, na qual são observadas as “formas puras” ou “naturais”, sendo apenas
explicitados os elementos presentes na imagem. Na segunda etapa, fazemos a análise
iconográfica, que consiste em identificar os elementos da imagem. É nesse momento
também que os motivos artísticos são relacionados com o contexto histórico e com
determinados conceitos relacionados aos próprios motivos. Por fim, é feita a interpretação
iconológica, onde atentamos aos valores simbólicos da obra de arte; ou seja, neste
momento a arte é entendida como um documento que expõe características de uma época,
a personalidade de um autor e uma série de princípios fundamentais.

153
PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: uma introdução aos estudos da Renascença. Op. cit, p.
63-64.
65

3. As Representações do Corpo Cristão


Finalmente, adentraremos neste capítulo a problemática desta pesquisa, discutindo o
conteúdo da nossa documentação com relação a representação do corpo, a partir das duas
temáticas levantas: a relação corpo-alma e a sexualidade. O primeiro tópico terá como
ponto de partida a concepção cristã da criação do corpo humano, que nos direciona ao
episódio bíblico da criação de Adão e Eva e, igualmente, à expulsão do Paraíso: ambos
os eventos são peças chave na interpretação dos cristãos sobre o corpo e sobre a
composição da hierarquia que este deve estabelecer com a alma. Do mesmo modo, esses
episódios servem de justificativa para o tratamento do corpo, pois são mobilizados como
alegação para as perspectivas cristãs sobre o mesmo. A sexualidade, por sua vez, acaba
também surgindo como um possível desdobramento das interpretações sobre o primeiro
tema; ainda abordaremos, neste caso, as diferenciações existentes entre os corpos
masculino e feminino com relação a própria concepção e o nível de controle exercido
sobre ambos. Nesse sentido, percebe-se que os dois focos a serem estudados guardam
uma profunda relação, sendo permeáveis entre si. Por fim, toda essa discussão será
desenvolvida por meio de comparações e interpretações que partirão do quadro teórico e
metodológico exposto no capítulo anterior.
Primeiramente, é importante demarcar qual tipo de interpretação buscamos a partir
das temáticas já explicitadas, pois a representação do corpo nos discursos cristãos pode
ser estudada por vários ângulos, mais ou menos “beneficiados” pelo estilo e gênero da
obra. No geral, podemos citar os seguintes olhares, apontados por Ricardo Pereira Santos
Lima:

teológico, pois o corpo, assim como todas as coisas, é criação de Deus;


moral, pois o corpo tem sua função na ordem do mundo enquanto uma
criatura; antropológica, pois o corpo é peça indispensável na constituição
do ser humano; e ontológica, pois o corpo é uma substância154.

Nessa pesquisa nos atentaremos, tanto em função do nosso interesse quanto pela
natureza das obras sob investigação, a três das quatro perspectivas citadas: teológica,
moral e ontológica. O ponto de vista ontológico será abordado ao discutirmos a
vinculação e conexão estabelecida entre corpo e alma, comparando as naturezas dessas
duas substâncias. Já as duas primeiras acepções – que são, inclusive, as mais estudadas,

154
LIMA, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual da relação entre corpo e Psique em Agostinho:
Os rudimentos do problema mente-corpo. 2015. 84f. Dissertação (Mestrado)- Instituto de Filosofia da
Universidade Federal de Uberlândia (IFILU-UFO). Instituto de Filosofia, Universidade Federal de
Uberlândia, Uberlândia, 2015, p. 46.
66

apesar de terem sua especificidade, são, como demonstra Ricardo Pereira Santos Lima,
indissociáveis155. Afinal, a moralidade religiosa só é formulada tendo como embasamento
uma interpretação teológica do mundo e da sociedade. Por possuírem essa
interdependência, diferenciar ou separar claramente no decorrer de nossa análise qual
aspecto específico está sendo trabalhado, não é uma tarefa fácil e nem mesmo, produtiva.
Nesse sentido, concordamos com Lima ao trabalhar essas duas categorias de forma
unitária, como aspecto teológico-moral. Tal abordagem será instrumentalizada em nossa
discussão sobre a criação do corpo – que faz parte da apreensão da exegese dos autores
mobilizados neste trabalho sobre uma narrativa bíblica - e sobre a sexualidade – talvez
um dos aspectos protagonistas da moralidade de grande parte das correntes religiosas.
Com relação, especificamente, às imagens, podemos extrair elementos que nos
servem de material para formular interpretações tanto sobre a relação corpo-alma, quanto
sobre a sexualidade. Isso será feito, como já foi exposto no capítulo anterior, por meio da
contextualização da obra, da identificação dos motivos artísticos e personagens
envolvidos na representação e, finalmente, da conferência de sentindo a imagem, que só
se faz possível por meio dos processos anteriores. Daremos ênfase nas interpretações com
relação as temáticas das pinturas, a qualidade do traço e o estilo utilizado. Como
consequência, buscamos propor um modo de leitura da imagem na qual consigamos
abordar as mensagens que esta pretendia transmitir com relação ao nosso objeto, o corpo;
pressupondo também que, apesar de serem narrativas autônomas, podem guardar relações
e/ou analogias com as narrativas literárias, assim como, oposições significativas. Desse
modo, nossa documentação será relacionada, sem, porém, estabelecer entre elas uma
condição de confirmação ou complementariedade rasa.

3.1 Corpo e Alma


Pode-se dizer que é impossível estudar nossa estrutura psíquica fora do corpo, em
especial considerando-se o ponto de vista das experiências religiosas que tendem a
postular uma crença para além da materialidade e um sentido da morte e da vida após
dela. Não sendo via de regra, mas sendo muito comum, os argumentos que definem a
imaterialidade e espiritualidade – que seriam categorias relacionadas a alma – são
formuladas a partir de uma contraposição com o aspecto físico e corporal. Apesar de
existirem graus diversos de diferenciação, hierarquias mais ou menos discrepantes e

155
Ibid.
67

visões plurais sobre serem essas duas substâncias boas ou ruins, o cristianismo imprime
o dualismo alma/corpo em seus discursos e nosso objetivo nesse tópico é explicitar as
possibilidades de interpretação sobre a convivência e/ou conflito entre essas duas
substâncias nos discursos cristãos previamente apresentados, afinal esse conflito nos
parece definidor da relação do homem com seu corpo, tendo desdobramentos relevantes,
inclusive, na vida mais cotidiana.
A fim de não tornar essa discussão por demais densa, ou de deslocar a atenção para
uma discussão detalhada sobre conceitos, não faremos aqui uma distinção entre alma,
espírito e mente. Até porque o que interessa para esse trabalho não é detalhar uma possível
diferenciação entre essas categorias, mas sim apreender a natureza de uma dimensão
extracorpórea (a alma) relatada em nossa documentação e o modo como esta, se relaciona
com a corporeidade do indivíduo, ajudando a construir determinados hábitos,
comportamentos e possíveis censuras. Portanto, tomaremos “alma” como descrito por
Agostinho, que a iguala à mente e ao espírito, e estenderemos esse entendimento para a
análise dos demais autores (visto que, estes não chegam a da nenhuma definição precisa
em suas obras):
Denomina-se também espírito à alma, seja do animal, seja do homem,
como está escrito: Quem sabe se o espírito dos filhos do homem sobe
para o alto e se o espírito do animal desce para baixo, para a terra?
Denomina-se outrossim alma à mente racional, onde está como que um
certo olho da alma, à qual dizem respeito a imagem e o conhecimento de
Deus156.

Como todo o elo estabelecido entre essas duas substâncias (corpo e


alma/espírito/mente) começa a ser moldado na própria criação do homem por Deus, ainda
no Paraíso, e se delineia após a expulsão de Adão e Eva do mesmo, ao comerem o fruto
proibido, torna-se interessante e necessário debater sobre as representações e
interpretações que nossas fontes oferecem deste momento. Pois, tal, será crucial para
compreender as demais divagações e representações cristãs sobre o tema.

3.1.1 Sobre a criação do corpo


A obra de Agostinho que integra os corpora documental desta pesquisa se dedica
exclusivamente, como já apresentado, a debater e interpretar a criação do mundo por
Deus, por meio da discussão do Gênesis, buscando afirmar também a fé católica frente as
correntes consideradas heréticas, como os maniqueísmo. Por esse motivo, daremos início

156
AGOSTINHO. Comentário Literal sobre o Gênesis XII, 7
68

a essa discussão a partir de sua perspectiva. Como bem frisa o bispo de Hipona, Deus
criou todas as coisas Ex nihilo: “Acredita-se com toda razão que Deus criou todas as
coisas do nada, pois, embora todas as coisas dotadas de forma tenham sido feitas desta
matéria, contudo, esta matéria foi feita do nada absoluto157”. Nesse sentido, a cosmologia
descrita por Agostinho e que é, em geral, adotada pela tradição cristã, coloca que nenhum
ser é pré-existente a Deus e, portanto, nenhum ser é independente deste.
Apesar desse mesmo princípio se estender a tudo o que existe e a tudo o que é
vivo, a criação do homem tem um lugar especial na criação pois, o homem foi criado à
imagem de Deus158. Essa imagem, no entanto, não é a imagem física ou corporal. A
semelhança com o divino foi proporcionada por Deus ao homem, na medida que o
primeiro dotou o homem de uma alma intelectual, pela qual se avantaja aos animais. Ou
seja, “o homem foi criado à imagem de Deus, porque não foi nas linhas corporais, mas
em certa forma inteligível da mente iluminada159”. Nesse sentido, já podemos considerar
um primeiro ponto fundamental da percepção agostiniana: o homem é um item especial
e singular na criação, sob o qual Deus conferiu mais cuidado e atenção, mas não é sua
corporeidade que o torna especial; pois, nesse aspecto, ele se iguala ao restante dos
animais. Seu diferencial, portanto, e, consequentemente, seu valor, está necessariamente
ligado à sua mente racional. Desse modo, duas substâncias opostas formam o homem:
uma aparentemente comum e banal, considerando que quaisquer “criaturas corporais e
irracionais” possuem, e a outra que se assemelha a Deus e torna o homem superior ao
restante do que foi criado. Duas faces são criadas, então, mas não de forma simultânea.
Primeiramente, Deus forneceu ao homem o que é corpóreo e, em seguida, conferiu o
corpo espiritual:
Primeiro foi feito o que não é espiritual, mas o que é animal; o
que é espiritual, vem depois. O primeiro homem, tirado da terra,
é terrestre. O segundo homem vem do céu, é celeste. Qual foi o
homem terrestre, tais são também os terrestres. Qual foi o homem
celeste, tais serão os celestes. E, assim como vestimos a imagem
do homem terrestre, assim também vestiremos a imagem do
homem celeste. O que se pode dizer a respeito? Levamos agora
pela fé a imagem do homem celeste para possuir na ressurreição
o que acreditamos; mas vestimos a imagem do homem terreno
desde o começo da geração humana160.

157
Idem, Sobre o Gênesis, contra os Maniqueus I, 6
158
AGOSTINHO, Comentário Literal sobre o Gênesis VI, 12
159
AGOSTINHO, Comentário Literal sobre o Gênesis III, 20
160
AGOSTINHO, Comentário Literal sobre o Gênesis VI, 19
69

Na citação acima, Agostinho busca frisar a ordem da criação do ser humano e, ao


mesmo tempo, já demarca uma diferenciação entre os que descendem de Adão e Cristo,
que descende diretamente de Deus. Desse modo, “o segundo homem” ao qual se refere é
interpretado aqui de duas formas: significando tanto a ideia de que, primeiramente há o
controle do mundo corpóreo e, depois, do mundo espiritual; e também, que nossa natureza
é essencialmente terrena, enquanto a de Cristo (o segundo homem) é celeste, divina e,
portanto, espiritual. A evolução do homem pressupõe, nesse sentido, a mutação da
substância terrestre para a substância espiritual. Mas, mesmo obtendo primeiro a natureza
corporal e sendo dominado por ela, Agostinho coloca que a alma, como substância que
dá a vida a tudo, foi criada antes do corpo, no primeiro dia da criação, apenas não havia
sido “soprada” no limo do qual Deus formou o homem. Nesse sentido, ele afirma:
o homem foi feito de tal modo no sexto dia que a razão causal do
corpo humano foi criada entre os elementos do mundo; mas a
alma já seria criada quando foi criado o primeiro dia e, uma vez
criada, permanecia oculta entre as obras de Deus, até que a
inserisse no devido tempo no corpo formado do limo insuflando
ou soprando161.

Percebe-se com essas reflexões que Adão, mesmo como primeiro homem e livre
do pecado, era marcado pelo mundo corporal, que não era superior à substância de seus
descendentes. O que lhe era característico e diferencial era a imortalidade que detinha
antes da expulsão do Paraíso. Mas essa imortalidade era conferida não pela natureza do
corpo do homem, mas pela Árvore da Vida, que proporcionava o “poder não morrer”162.
Ou seja, não havia diferença entre o corpo de Adão e de outro animal mortal do paraíso,
o que lhe garantia a singularidade era outro fator. O pecado, ou seja, comer do fruto da
árvore da vida, é que transformou essa realidade, fazendo com que o homem-Adão se
tornasse finalmente, mortal163.
Os descendentes de Adão, que “herdaram” seu pecado, existem, ainda numa
condição inferior a este, mesmo ambos possuindo uma carne animal. Pois, para Adão a
morte nunca foi uma necessidade, para sua “prole”, porém, ela é condição para alcançar

161
AGOSTINHO, Comentário Literal sobre o Gênesis VII, 24
162
AGOSTINHO, Comentário Literal sobre o Gênesis VII, 25
163
AGOSTINHO, Comentário Literal sobre o Gênesis VI, 25: “Podia dizer-se antes daquele primeiro
pecado que era mortal segundo uma causa e imortal segundo outra, a saber, mortal porque podia morrer,
imortal porque podia não morrer. Uma coisa é não poder morrer, como algumas naturezas criadas
imortais por Deus. Outra coisa é poder não morrer, deste modo o primeiro homem foi criado imortal. Isso
lhe era dado pela árvore da vida e não pela constituição da natureza. Dessa árvore foi separado quando
pecou e assim pôde morrer. Se não tivesse pecado poderia não morrer (...) pelo pecado não se tornou
mortal, pois já o era antes, mas morto, o que poderia não ter acontecido se o homem não pecasse”.
70

o paraíso164. O primeiro homem não era perfeito, pois precisaria passar por
transformações até alcançar a condição puramente espiritual, recebendo a plena
imortalidade; mas, ainda assim, não precisaria da morte caso se mantivesse incorruptível.
Sendo espiritual na mente e animal no corpo, deveria Adão para ascender as necessidades
corporais, viver, pelo menos internamente, conforme o espírito. Não tendo feito isso, mas
cultivando, mesmo internamente, seu aspecto animal, pecando, este, não se renovou para
um corpo espiritual165. Para nós, porém, a postura correta não resulta na ascensão do
espírito sobre a carne: “Mas em nós, mesmo vivendo na justiça, nosso corpo morrerá166”.
Nesse sentido, Agostinho recorre a Paulo, quando afirma que nosso corpo não é mortal,
mas é um corpo morto, “porque todos morremos em Adão167”. Essa questão será melhor
desenvolvida mais adiante.
A corporeidade de Adão e Eva, apesar de “tão animal” quanto a dos que
originaram depois, não se manifestava, no entanto, da mesma forma estando os dois no
Paraíso. Agostinho afirma, por exemplo, que apesar de receberem alimento, jamais
morreriam pela fome e, outro aspecto mais relevante em nossa análise, é que o religioso
especulou que a multiplicação dos seres humanos a partir do primeiro casal, antes do
pecado – “Crescei e multiplicai-vos, enchei a terra” – não ocorreria pela união carnal
entre homem e mulher. O bispo de Hipona supõe, nesse caso, que os corpos imortais do
primeiro casal deveriam gerar filhos de uma forma diferenciada, “(...) de tal maneira que
os filhos nascessem apenas por um sentimento de piedoso amor, sem alguma
concupiscência corrompida168”. Do mesmo modo, os filhos também não precisariam
suceder os pais, pois todos seriam imortais e a criação de uma comunidade humana justa
e santa, prevê um novo modo de nascer169.
Indo mais além, para Agostinho, antes do pecado, o homem era capaz de mandar
em seu corpo e membros, no sentido de que Adão e Eva “não sentiam o apetite do prazer
carnal, como agora sentem estes corpos que vieram da linhagem da morte”. Porém, o
pecado fez o homem perder esse controle sobre o corpo, originando a separação entre este
e a alma. A transgressão do mandamento de não se alimentar do fruto da árvore do
conhecimento fez com que Deus abandonasse sua criação, fazendo nasce a vergonha da

164
Id., Comentário Literal sobre o Gênesis VI, 26
165
Id., Comentário Literal sobre o Gênesis VI, 28
166
Id., Comentário Literal sobre o Gênesis VI, 26
167
Ibid.
168
AGOSTINHO, Comentário Literal sobre o Gênesis III, 21
169
Ibid.
71

nudez dos corpos e, mais que isso, fazendo com que a relação corpo-alma fosse travada
como uma luta. O pecado original trouxe um novo impulso de desobediência da carne. A
alma quando submetida a Deus, tinha o corpo como escravo; porém, Adão e Eva ao
optarem pela corrupção, perderam o direito de ter a carne submetida a alma. Sobre esse
ponto, Agostinho recorre a Paulo que afirmava: “Eu me comprazo na lei de Deus segundo
o homem interior, mas percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da
minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que existe em meus membros. Infeliz de
mim! Quem me libertará deste corpo de morte?170”.
Era nesse sentido que, Ambrósio defendeu que o único que assumiu a carne
humana com alma racional perfeita foi Cristo. Decorrente, fundamentalmente, da
singularidade de sua gestação, Jesus adquiriu esse privilégio que, nem mesmo o primeiro
homem criado por Deus pode usufruir. Por isso, inclusive, a penitência se torna um meio
indispensável:
Não sabemos em que hora vem o ladrão (cf. Lc 12,39), não
sabemos se na própria noite será exigida a nossa alma (cf. Lc
12,20). Depois da culpa, Deus imediatamente expulsou Adão do
paraíso; não protelou, mas imediatamente o separou das delícias
para que fizesse penitência (cf. Gn 3,23-24)171

Tal necessidade é um resquício da luta que se estabeleceu e se estabelece entre


mente e corpo. A carne, para Ambrósio, é considerada uma “terra estrangeira que não foi
subjugada pelo trabalho do agricultor e por isso não pode produzir frutos de caridade,
paciência e paz172”. O espírito deve ser, portanto, trabalhado, para que consiga governar
e subjugar o corpo. Esse trabalho exige afastamento, pois não seria correto, estando em
pecado, fazer uso dos sacramentos; além disso, a própria penitência exige reflexão, para
que “não se faça como penitência alguma coisa que depois terá necessidade de
penitência173”. Essas reflexões são importantes também porque são embasadas no
episódio da expulsão do primeiro casal de homens do paraíso
É assim que vês Adão: escondeu-se quando percebeu a presença
de Deus; ao ser procurado, tentou ocultar-se (cf. Gn 3,8); foi
chamado por Deus com aquela palavra que fere o coração de
quem se esconde: “Adão, onde estás” (Gn 3,9)? Quer dizer: “Por
que te escondes, por que te ocultas, por que foges daquele que
gostavas de ver?” Tão pesada é a culpa de sua consciência que
ela mesma se pune, sem juiz; deseja cobrir-se e no entanto está
nua diante de Deus (cf. Gn 3,7.10-11). Por isso ninguém que se

170
AGOSTINHO, Comentário Literal sobre o Gênesis IX, 10.
171
AMBRÓSIO. Sobre a Penitência II, 11, 99.
172
AMBRÓSIO. Sobre a Penitência II, 11, 104.
173
AMBRÓSIO. Sobre a Penitência II, 11, 104.
72

encontre em pecado deve reivindicar para si o direito de usar os


sacramentos, porque está escrito: “Pecaste? Repousa” (Gn
4,7)!174

Jerônimo de Estridão, na obra analisada nesta pesquisa não faz muitas referências
a criação do homem e sobre sua interpretação sobre o Gênesis, ainda assim, buscando se
defender das acusações a que estava sendo exposto, o religioso apresenta um
posicionamento análogo ao de Ambrósio, afirmando que como descendentes de Adão,
somos também inevitavelmente, herdeiros do pecado e o único que possuiu um corpo
livre dessa mancha foi o próprio Cristo. Para além disso, indica que a forma de abandonar
esse corpo é através do baptismo: por meio deste sacramento, o corpo de pecado se dissipa
e o que há de divino renasce. Ou seja, aqui subentende-se que o corpo ganha, desde muito
cedo, através da desobediência dos primeiros homens, um aspecto aprisionador, do qual
o homem deve buscar se libertar: “o velho Adão morre inteiro neste banho e o batismo o
faz reerguer-se novo com Cristo; morre o que é terrestre e nasce o que é supra celeste175”
Descortinando algumas dessas vertentes do pensamento cristão, a frequência das
representações de Adão e Eva nas catacumbas pode parecer agora mais clara. A
iconografia deve ser interpretada a partir do ambiente que foi empregada; sendo as
catacumbas áreas sepulcrais, entendemos que o aparecimento do primeiro casal de
homens que viveu no Paraíso, em especial o momento de sua expulsão, atuam como uma
lembrança da mortalidade humana, sobretudo a mortalidade do corpo, inaugurada com o
Pecado Original.
Nos AFRESCO 3 e AFRESCO 4, podemos notar a representação de Adão e Eva,
sendo que, no primeiro, aparecem logo após comerem da árvore do fruto proibido, dando-
se conta de sua própria nudez e, no segundo, são representados já vestidos com as túnicas
de pele de animais, fora do paraíso. Logo ao lado, temos a representação de Caim e Abel,
filhos de Adão e Eva, levando suas oferendas pessoais a Deus, respectivamente, os frutos
da terra cultivada e uma ovelha176. Como demonstra Gregori177, as imagens de Adão e
Eva, apesar de emblemáticas, não são as mais comuns para o período, sendo representadas
basicamente entre os séculos IV e V (no caso deste afresco, século IV). Segundo o mesmo

174
AMBRÓSIO. Sobre a Penitência II, 11, 103-104.
175
JERÔNIMO. Apologia contra os livros de Rufino I, 32
176
Gênesis, 4, 1-5.
177
GREGORI, Alessandro Mortaio. Comunicação Visual na Antiguidade Cristã: a construção de um
discurso imagético cristão do Ante Pacem ao Tempora Christiana (s. III ao VI). Op. Cit., p. 122-123.
73

autor, essas primeiras representações de Adão e Eva não costumam retratar a serpente,
que seria o próprio pecado178.

O AFRESCO 3 é bem representativo no sentido de demonstrar o incômodo com


o corpo que o primeiro casal teria sentido após comer do fruto proibido. Ambos estão
com o olhar para baixo e cobrindo suas genitais em frente ao que seria a Árvore da vida.
Estando representando o início da trajetória humana como mortais, em seu contexto
funerário pode estar indicando o já referido “corpo de morte”, adquirido pelo homem após
a desobediência de Adão e Eva. Pode indicar também a própria trajetória de luta contra o
corpo que, a partir de então, a alma humana adquiriu: o corpo só é “notado” após o pecado,
ele é a causa da imortalidade humana e fonte, portanto, de vergonha.
O AFRESCO 4 já mostra uma situação posterior, na qual já havendo pecado, Deus
veste o primeiro casal de homens com túnicas de pele de animal. Interessante citar aqui
que Agostinho faz comentários sobre esse episódio em “Sobre o Gênesis, contra os
Maniqueus” e afirma que “essa morte (a morte que os nascidos de Adão foram
condenados após sua desobediência) está figurada nas túnicas feitas de peles179”. O
próprio casal primeiramente se vestiu de folhas, mas, como indica Agostinho, Deus os
ofereceu túnicas de pele para passar uma mensagem específica de censura da soberba
humana de querer se igualar a Deus por caminhos não corretos, ou seja, aqueles que não

178
Ibid., p. 123.
179
AGOSTINHO. Sobre o Gênesis, contra os maniqueus XI, 39
74

constituem uma imitação legítima. A pele de animal serviria como uma lembrança ao
homem de seu rebaixamento ao nível dos animais mortais:
Adão e Eva permaneceram no paraíso, ainda que sentenciados
pela condenação de Deus, até que chegaram às túnicas feitas de
peles, ou seja, à mortalidade desta vida. Com que melhor indício
se pode significar a morte, que experimentamos no corpo, do que
pelas peles que se costuma retirar dos animais mortos?180

Logo ao lado da imagem do casal com as túnicas de pele, vemos sua prole, Caim
e Abel, fazendo suas oferendas a Deus: evento que deu início a ira de Caim contra seu
irmão, Abel, e contra Deus e, que gerou, consequentemente, o assassinato deste primeiro.
A simbologia desse episódio pode reforçar o que já foi citado. O nascimento de Caim e
Abel, assim como o conflito entre eles, a emergência dos sentimentos de inveja, raiva,
dentre outros, representam a emergência de um mundo marcado pelo pecado, do qual a
morte tem o poder de libertar.
Percebe-se a partir dessa leitura que há uma tendência muito maior, pelo menos
no caso das catacumbas, de se representar a expulsão do paraíso do que o próprio processo
da criação, pois o primeiro é uma lembrança do porquê da imortalidade humana e um
alerta para a fuga do pecado e a importância da obediência durante a vida. Nos atendo
agora especificamente na questão do corpo, podemos perceber que, em linhas gerais,
todos os afrescos, nos quais se incluem os dois trabalhados acima, expõe uma arte pouco
preocupada com o detalhe em termos estilísticos e estéticos. Os traços corporais, assim
como aqueles expressionais são um tanto quanto vagos, demonstrando que o realismo ou
uma estética bem delineada não tinha centralidade no processo de confecção dessas obras.
No afresco que simboliza a expulsão de Adão e Eva do Paraíso, percebemos que não há
nem mesmo uma diferenciação muito delineada com relação aos corpos de ambos, do
homem e da mulher; pois o que deseja se retratar não exige, nem mesmo esta
diferenciação clara. Dessa característica podemos inferir que nem o corpo, nem mesmo o
mundo, no sentido daquilo que se opõe ao divino, são protagonistas dessas
representações. Ou seja, aliando a temática da expulsão do paraíso, na qual os homens se
envergonham de seus corpos, recebendo túnicas “marcadoras de sua imortalidade” e
dando início a um mundo onde não é mais tão fácil viver (representado pelo
desdobramento da estória de Caim e Abel), com esse estilo artístico, percebemos um
corpo representado de forma pejorativa. Em detrimento, a morte, apesar de ser uma marca

180
Id. Sobre o Gênesis, contra os maniqueus II, 21
75

do pecado, pode significar a entrada em uma nova vida. Outros desdobramentos desta
leitura serão melhor explicitados mais adiante.

3.1.2. A interação corpo-alma no “mundo”

Após apresentarmos um panorama da criação do homem, na qual se definiu as causas


e intenções na formulação de sua substância, assim como um desdobramento inicial do
pecado para esta, pretendemos agora focalizar as vinculações entre alma e corpo
propostas por nossas fontes. Nesse sentido, por estar diretamente ligado ao título anterior,
as considerações feitas nessa seção serão permeadas por muitas reflexões desenvolvidas
anteriormente, porém aqui, apresentaremos um quadro mais detalhado.
Primeiramente, comecemos por analisar a perspectiva de Agostinho de Hipona, para
o qual o compósito alma-corpo era o fundamento do ser humano. Buscando seu
embasamento nas narrativas neotestamentárias, o mesmo reivindicou que o homem não
pode ser constituído apenas de alma, nem só de corpo - aspecto que já pode indicar um
posicionamento pouco alarmista com relação a interação entre essas duas dimensões que,
segundo ele, são intrinsecamente humanas. Antes de desenvolver melhor este ponto,
importante citar que, logo após sua conversão, Agostinho adota uma postura de dualista
ontológico 181, abandonando o materialismo antidualista182 e defendendo a natureza “não
corpórea” de algumas entidades, tais como Deus e a própria alma, das quais cultivou
singular interesse em desvendar.
Para firmar sua posição que apregoava a alma humana como uma entidade imaterial,
Agostinho enfrentou muitos materialistas contemporâneos seus, em especial, aqueles
filósofos pré-socráticos que afirmavam que “a alma ou a mente é idêntica ao sangue ou
ao cérebro, ou ao coração físico”183 ou que “a alma é uma espécie de harmonia do corpo,
ou conexão dos elementos”184. Mas não foi apenas fora do pensamento cristão que essa
corrente foi combatida pelo bispo de Hipona. Em “Comentário Literal sobre o Gênesis”,
Agostinho dedica um capítulo a crítica a Tertuliano, importante teólogo cristão que

181
NIEDERBACHER, Bruno. A alma humana: o caso de Agostinho para o dualismo corpo-alma. In:
MECONI, David Vincent; STUMP, Eleonore (Orgs.). Agostinho. São Paulo: Editora Ideias e Letras,
2017, p.161-180, p. 161.
182
O materialismo é uma posição segunda a qual todas as entidades são materiais, por isso, é uma postura
antidualista, pois não assume a coexistência de outra natureza que não a material
183
Trin. 10.7.9 apud NIEDERBACHER, Bruno. A alma humana: o caso de Agostinho para o dualismo
corpo-alma. In: MECONI, David Vincent; STUMP, Eleonore (Orgs.). Agostinho. Op. cit. p.167.
184
Ibid.
76

partilhava dessas ideias, buscando demonstrar sua incoerência. Com relação a isso,
escreve:
Falemos, finalmente, de Tertuliano, o qual, porque acreditou que a alma
seja um corpo, não por outra razão senão porque não conseguiu pensá-la
como incorpórea, por isso teve receio de que fosse nada, se não fosse um
corpo, e não conseguiu pensar outra coisa sobre Deus. Mas porque era de
inteligência penetrante, ao perceber a verdade, é vencido às vezes contra
sua própria opinião185.

Tendo a imaterialidade como pressuposto, o principal triunfo da alma, de acordo


com Agostinho, era sua capacidade de tornar as coisas corpóreas vivas, e de dominar o
corpo por meio de uma determinação não corpórea. Comparando a convivência entre o
corpo e a alma com o fenômeno que ocorre quando adicionamos água a uma esponja ou
odre, Agostinho propõe uma visualização dessa relação, na qual a alma – imaterial -
impregna, integra e preenche um corpo material, sem alterar sua forma186. Reafirmando
sempre, porém, que a vida só é oferecida pela alma e, esta, por sua vez, necessita de um
meio para se manifestar. Desenvolvendo esse ponto de vista teológico-moral, o bispo de
Hipona passa a fazer frente a doutrina platônica, por “considerar o par corpo-alma como
substância coesa numa só unidade187. Para Platão, o corpo era uma limitação natural, que
encarcerava a alma188, enquanto para Agostinho tal perspectiva seria improvável já que a
natureza do corpo, sendo construção divina, era essencialmente boa. Seu raciocínio segue
a lógica de que sendo parte da criação de Deus, o corpo não poderia ser jamais uma
substância má, pois Deus é perfeição. Desse modo,

Se as primeiras obras de Deus, quando criou todas as coisas


juntas, não fossem perfeitas de acordo com seu modo de ser, sem
dúvida lhes seria acrescentado depois o que lhes faltou para se
tornarem perfeitas(...) Estão certamente concluídas, porque não
possuem em suas naturezas próprias, pelas quais agem no
decorrer dos tempos, nada do que nelas não foi feito
causalmente189.

185
AGOSTINHO. Comentário Literal sobre o Gênesis X, 25.
186
Id. Comentário Literal sobre o Gênesis VIII, 21: “Como a alma não é natureza corpórea, nem enche o
corpo quanto ao espaço local, como acontece com a água em relação ao odre ou à esponja, mas está unida
à vontade incorpórea por meios admiráveis, dando vida ao corpo, pela qual ela domina o corpo por uma
determinação não corpórea, quanto mais, repito, o ato de sua vontade é movido não quanto ao lugar, para
mover o corpo de um lugar para outro, quando move o todo por meio das partes, e não move outras partes
quanto ao lugar a não ser por meio daquelas que ela fixa no lugar?”
187
LIMA, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual da relação entre corpo e Psique em Agostinho:
Os rudimentos do problema mente-corpo, Op. cit., p. 46.
188
SILVA, Nilo Cesar B. A antropologia de Agostinho de Hipona, Fortitudo Corporis na Hierarquia dos
Bens Criados de Platão. Dissertatio, Pelotas, n° 44, p. 170-186, 2016, p.174.
189
AGOSTINHO. Comentário Literal sobre o Gênesis VI, 11.
77

Ainda assim, apesar do caráter positivo conferido ao corpo até então e, inclusive,
sua complementariedade com relação a alma, essas duas substâncias não terão, como
postula Agostinho, a mesma natureza. Sua lógica complementar não pressupõe que corpo
e alma estão em situação de igualdade quanto sua grandiosidade ou respeitabilidade.
Nesse sentido, uma hierarquia é estabelecida, na qual entende-se que “(...) o espírito é
mais excelente que o corpo de modo eminente190”. Para exemplificar, Agostinho compara
a preeminência da alma sobre as entidades corpóreas com a supremacia de Deus com
relação à qualquer matéria física: “Quando se pergunta de onde procede a alma, ou seja,
de que quase-matéria Deus efetuou o sopro, que se denomina alma, não se há de pensar
em nada corpóreo. Assim como Deus sobressai em dignidade a toda criatura, assim a
alma, em relação a toda matéria corpórea191”.
A analogia, no entanto, não pode enganar quanto a natureza da alma ser diferente
da substância que é Deus. Como já exposto em tópico anterior, as Sagradas Escrituras
cristãs afirmam que Deus “insuflou” ou “soprou” no homem sua alma, dando-lhe a vida.
Esse termo, erroneamente, de acordo com o bispo de Hipona, pode criar a ilusão de que
Deus lançou algo de si mesmo nesta ação192; opinião reprovável e que contraria a fé
católica. Propagar que a natureza da alma humana é a mesma de Deus seria ir contra a
incomutabilidade deste último, um princípio essencial na construção de Agostinho.
Destoando dessa substância, a alma humana, como define o religioso, está sujeita a
mudança, para melhor e para pior. Nesse sentido: “(...) a fé ortodoxa o sustenta, que a
alma procede de Deus como uma coisa que ele criou, não como proveniente da natureza
que dele possui, ou a tenha gerado ou produzido de qualquer modo193”. A justificativa
para ser a alma humana de uma substância divergente da de Deus seria sua mutabilidade
inerente. Sobre essa questão, Agostinho tece longas críticas aos maniqueus que propagam
que a alma humana nada mais é do que a substância de Deus e, consequentemente,
concluem que a natureza divina é mutável194. Porém, de acordo com Agostinho, a
mutabilidade é uma marca das deformidades causadas pelos vícios mundanos195: o
homem muda porque “precisa” mudar, pois sua natureza foi corrompida com o pecado

190
Id. Comentário Literal sobre o Gênesis XII, 16
191
Id. Comentário Literal sobre o Gênesis VII. 19.
192
Id. Comentário Literal sobre o Gênesis VII, 2.
193
Ibid.
194
AGOSTINHO. Sobre o Gênesis, contra os maniqueus VII, 6.
195
Ibid.
78

original e agora, tem a liberdade de escolher “se aproximar” de Deus ou continuar e


insistir na vida do pecado.
Sendo mutável, a alma - vista como superior ao corpo - não é perfeita. A sugestão
do pecado pode acontecer, desse modo, tanto pelo pensamento, quanto pelos sentidos
corporais196, pois a concupiscência carnal reside tanto no corpo como na alma: a carne
tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito, contrárias à carne197; afinal, como o
corpo inferior poderia aspirar algo sem a substância responsável por lhe conferir a
vida?198. Desse modo, o pecado carnal é de “responsabilidade” do corpo e da alma, tendo
sua origem em ambas: não existe prazer sem alma e nem prazer carnal sem corpo:
Quando o Apóstolo diz: A carne tem aspirações, refere-se à
carne no tocante ao que faz a alma segundo a carne, do mesmo
modo que se diz: “O ouvido ouve, os olhos veem”. Pois, quem
duvida que a alma ouve pelo ouvido e vê pelos olhos? E não
está em seu poder não aspirar, enquanto o pecado estiver
inserido nos membros(...)199.

A partir do que já foi exposto, podemos entender como síntese dessa tese
agostiniana, os seguintes pressupostos: tudo o que Deus criou, incluindo alma e corpo,
carregam naturezas essencialmente boas; o corpo, nesse sentido, não apresenta um
sentido necessariamente pejorativo, apesar da alma, lhe ser superior. Esta, por sua vez é
incorpórea sem, por isso, ser da mesma natureza de Deus. Ainda sobre a alma, nas
palavras do próprio Agostinho:
nada confirmo sobre a alma que Deus insuflou no homem em sua face, a
não ser que de tal modo ela procede de Deus que não é substância de
Deus, que é incorpórea, ou seja, não é corpo, mas espírito, não gerado da
substância de Deus, nem procedente da substância de Deus, mas feita por
Deus; não feita de tal modo que em sua natureza se convertesse em
natureza de um corpo ou de alma irracional, e, por isso, foi criada do
nada; e que é imortal de acordo com certo modo de vida, que de forma
alguma pode perder; mas segundo certa mutabilidade, pela qual se pode
tornar pior ou melhor(...)200

O relato mais significativo para esta pesquisa é, porém, a relação de


complementariedade que o bispo de Hipona constrói entre alma e corpo, pois ele define
um panorama no qual, mesmo compreendendo que a corporeidade pode, em certos
momentos, impedir o vislumbre e conhecimento de Deus, não lhe confere um sentido

196
AGOSTINHO. Sobre o Gênesis, contra os maniqueus II, 14.
197
AGOSTINHO. Sobre o Gênesis, contra os maniqueus X, 12.
198
AGOSTINHO. Sobre o Gênesis, contra os maniqueus X, 12: “Penso que toda pessoa douta ou indouta
não duvida que a carne a nada pode aspirar sem a alma.”
199
AGOSTINHO. Sobre o Gênesis, contra os maniqueus X, 12
200
AGOSTINHO. Comentário literal sobre o Gênesis VI, 28
79

essencialmente negativo. Sobre isso, Lima201 nos alerta que o pensamento de Agostinho
pode ser enquadrado em três doutrinas filosóficas: (1) Dualismo de substâncias; (2)
Monoísmo Idealista; e (3) psicossomatismo. Nas quais só nos interessa essa última que,
que como demostra o autor e conforme compartilhamos, seria o melhor enquadramento
para o pensamento do bispo de Hipona. Por meio dessa teoria, Agostinho pretendia
demonstrar que “o corpo desempenha um importante papel na constituição marcada pela
união entre espiritual e material202”. Por conferir a própria vida ao corpo, a alma, sem
dúvidas, adquire uma posição mais prestigiosa; no entanto, ainda que ela seja superior ao
corpo, não notamos em Agostinho o desprezo pelo corporal visto, por exemplo, em
Platão. A defesa de uma ressurreição corporal é um exemplo do compromisso com a
valorização da psicossomática humana, que mesmo se submetendo a alma, tem seu valor
reconhecido nesse processo que é o mais significativo da fé cristã. Portanto, ainda que
hierarquizada, o quadro que Agostinho apresenta a partir do elo entre corpo e alma é bem
harmônico. O processo de criação do homem, o material do qual é feito, já discutido
anteriormente, serve como metáfora para esse vínculo:
(...)repito, que o homem foi feito com corpo e alma, não é
absurdo que tenha recebido o nome de limo devido à sua
composição. Pois, assim como a água se une, se aglutina e se
junta à terra, quando dela se faz o limo pela mistura de ambos,
assim a alma, comunicando a vida à matéria do corpo, conforma-
se numa unidade harmônica e não permite que se corrompa e se
destrua203.

Assim como Agostinho, Ambrósio defendia a preeminência da alma sobre o corpo,


porém em níveis mais extremos, sem postular exatamente uma harmonia entre esses dois
pólos. Contrariamente ao bispo de Hipona, o bispo de Milão, que foi fundamental na
conversão de Agostinho, absorveu muito mais da influência grega: as ideias de Platão,
Plotino, Fílon de Alexandria e Orígenes, por exemplo, exerceram um grande controle em
sua obra, sendo bem visíveis em alguns argumentos. Do mesmo modo, suas formulações
são marcadas pela teoria paulina sobre o corpo, cujo a principal ideia é a de que o cristão
deve transformar seu corpo, transmutando seu estado carnal em um estado espiritual. Por
esse motivo, a principal relação estabelecida entre corpo e alma na obra de Ambrósio será

201
LIMA, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual da relação entre corpo e Psique em Agostinho:
Os rudimentos do problema mente-corpo. Op. cit., p. 3
202
LIMA, Ricardo Pereira Santos. Uma análise conceitual da relação entre corpo e Psique em Agostinho:
Os rudimentos do problema mente-corpo. Op. cit., p. 52.
203
AGOSTINHO. Sobre o Gênesis, contra os maniqueus II, 7.
80

de conflito de interesses e de “guerra”204. Tal guerra, para o cristão, deveria ter a alma
como vencedora, pois ela guarda o verdadeiro sentido da vida, que é a vida eterna. Nesse
sentido, Ambrósio indica: “Não queiras preferir esta vida à vida eterna205”. Essa postura,
inclusive, não o afasta de Agostinho, pois este também acreditava na preeminência da
vida na cidade celeste em detrimento da cidade “terrena”, porém, em Agostinho, o corpo
é interpretado de forma valorativa dentro do fenômeno da ressurreição de Jesus, que seria
extensivo a toda a humanidade.
Em sua obra “Sobre a Penitência”, ao discorrer sobre as formas de se purificar do
pecado, Ambrósio deixa evidente seu posicionamento diante da hierarquia corpo-alma. O
corpo, em sua teoria, assume quase que uma posição de mediador entre a alma e o pecado
ou o próprio diabo. Desse modo, torna-se importante e até essencial “mortificá-lo”, tanto
por meio de ações mais extremas de dor corporal ou por ignorância dos desejos e/ou
motivações carnais, que envolvem, desejo, luxuria e quaisquer outros sentimentos que
não advenham de uma busca por Deus. Ou seja, aqui, como em Platão, a alma se torna
refém de uma realidade corpórea e a libertação da alma depende da sua emancipação
diante do corpo:
Oxalá eu veja enfraquecer a minha carne, para que não seja mais
arrastado como cativo na lei do pecado (cf. Rm 7,23), para que
já não viva na carne, mas na fé de Cristo (cf. Gl 2,20)! É por
causa disso que existe maior graça na fraqueza do corpo do que
na saúde. Afinal nem a Paulo, a quem muito amou, quis o Senhor
libertar de uma fraqueza da carne; quando ele lhe pediu para
afastar de si esta fraqueza, respondeu-lhe: “Basta-te a minha
graça, pois é na fraqueza que a força se torna perfeita” (2Cor
12,9). E Paulo se compraz em suas fraquezas, dizendo: “Quando
sou fraco, então é que sou forte” (2Cor 12,10). Torna-se, pois,
perfeita a força da alma por meio das fraquezas da carne206.

Além de reforçar a necessidade de libertação do corpo, concorrente dos interesses


mais superiores da alma, o trecho acima traz outra discussão: a prisão proporcionada pelo
corpo ganha seu espaço na lógica de salvação. Por mais que seja inferior, é por meio do
sofrimento corporal que o homem deve ir lapidando sua alma. Ou seja, o sofrimento físico
ganha um status particular e passa a ser valorizado como prática. Para além disso, se
expõe um elo entre as duas substâncias formativas do homem, no qual o desenvolvimento

204
DIAS, Larissa Rodrigues Sathler, Larissa. Virgens, viúvas e casadas: representações do feminino no
discurso ambrosiano (séc. IV). Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 11, p. 111-132, 2018 p.
117-118.
205
AMBRÓSIO. Penitencia II, 13
206
AMBRÓSIO. Penitencia I, 11
81

de uma é inversamente proporcional ao cuidado com a outra: a ascensão do espírito não


ocorre sem mortificação do corpo, por outo lado, uma vida centrada nos aspectos da
corporeidade está fadada a ter seu espírito mal desenvolvido. Alguns exemplos nesse
sentido, são oferecidos por Ambrósio. O diabo, provocador dos pecados, busca tentar o
homem a todo o tempo, atuando na realidade física/corporal. Deus, porém, como frisou
Ambrósio, aconselha permitir a “destruição” do corpo, porque esse embate, por si só, já
enfraquece o diabo ao fortalecer a alma.

Afinal ele (o diabo) abateu o santo Jó com uma ferida maligna


dos pés à cabeça (cf. Jó 2,7), porque recebeu poder de causar a
perda da carne, quando Deus disse: “Eis que o entrego a ti,
preserva somente a sua alma” (Jó 2,6). O Apóstolo transcreveu
isto com as mesmas palavras, dizendo que entregaria “tal homem
a satanás para a perda da carne, para que o espírito seja salvo no
dia de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Cor 5,5).207
Ou seja, em Ambrósio, o sofrimento do corpo é uma etapa da ascensão, pois a
capacidade de superar e/ou ignorar o sofrimento físico, desperta a alma para o mundo
espiritual, que é aquele que o homem deve buscar. Nesse sentido, a relação estabelecida
com o corpo é de certa negligência, pois ele é apenas uma ‘morada’ para algo mais digno:
o espírito. E justamente, sua mortificação por meio da penitência ou de uma vida ascética
não constitui um problema, mas uma oportunidade de libertação, de se voltar para o
âmbito espiritual, por vezes adormecido. “Libertado” o espírito, o homem ganha força
para resistir as tentações: “Grande poder, grande graça, que ordena ao diabo destruir-se a
si mesmo! Pois ele se destrói quando, de fraco, faz mais forte o homem que procura
derrubar pela tentação, porque, enquanto lhe enfraquece a carne, enche-lhe o espírito de
vigor208”.
Portanto, a visão de Ambrósio apreendida por meio de nossa documentação é a
do incentivo da negligência para com o corpo e da valorização de seu sofrimento:
“Portanto, que a serpente coma a minha terra, enfie o dente na minha carne, triture o meu
corpo209”. Propagando essas ideias, o bispo de Milão vai apresentando várias
aproximações com os escritos de Paulo, para quem o aspecto físico deveria ser suplantado
pela preeminência da alma e, por esse motivo que “um veneno para a perda da carne,
torna-se um remédio para a saúde do espírito; aquilo, pois, que prejudica o corpo, ajuda

207
AMBROSIO. Sobre a Penitência I, 12
208
Id. Sobre a Penitência I, 12
209
Id. Sobre a Penitência I, 13
82

o espírito210”. Enquanto isso, como afirma Peter Brown, Ambrósio não apenas encarava
o corpo como um espaço perigoso para a alma, mas considerava que somente por meio
de Cristo os fiéis poderiam “trocar a carne enfraquecida pela carne ‘reformada’, uma
carne aperfeiçoada por ter sido tomada, em Cristo, pelo próprio Deus”211. A carne seria
tomada por Cristo por meio do envolvimento e participação dos sacramentos da Igreja,
tais como, o baptismo e a comunhão. Segundo o bispo de Milão: “(...) pelo sacramento
do baptismo, quando nós estamos mortos pelo pecado, renascemos para Deus e somos
transformados212”. Todavia, mesmo sendo a purificação possível através dos
sacramentos, o celibato e a virgindade tem no pensamento de Ambrósio um caráter central
e em sua concepção, somente as virgens, que praticavam um sacrifício diário de seu
corpo, passavam por uma transformação que as possibilitava gozar de um estado sacro
mesmo na vida terrena213- mas isso será abordado de forma detalhada mais à frente.
A busca do homem cristão deveria envolver, para o bispo de Milão, se livrar da
mancha do pecado impressa no corpo: todos os homens nasceram sob o pecado, por isso,
assim como defende Paulo, Ambrósio afirmava que nossa carne era um corpo de morte214.
Apenas Cristo, nascido não da união comum entre um homem e uma mulher, mas do
Espírito Santo e de uma virgem, recebeu um corpo imaculado, um corpo que não foi
manchado por nenhum vício e, que por esse motivo, condenou os nossos pecados e ao ser
crucificado também os (os pecados) fez morrer. A partir de então, como afirma Ambrósio,
é como que “em nossa carne passasse a existir a justificação pela graça, onde antes só
existia um amontoado de impurezas, por causa da culpa215”. Nesse sentido, retomamos a
importância na participação dos sacramentos que recriam a trajetória de Cristo e,
inclusive, seu corpo e sangue no ritual da eucaristia.
Por fim, para Ambrósio, o corpo deveria ser um aspecto morto, sujeito a servidão
e obediente da lei do espírito. Quanto mais desenvolvida essa relação e mais sábia se torna
a alma, a tendência é a carne “morrer”216. Ainda assim, o corpo poderia ter sua utilidade,
pois “tudo convém quando é dedicado à religião, de modo que não nos envergonhemos

210
Id. Sobre a Penitência I, 13
211
DIAS, Larissa Rodrigues Sathler, Larissa. Virgens, viúvas e casadas: representações do feminino no
discurso ambrosiano (séc. IV). Op. cit., p. 118.
212
De Sacramentis (II, 2, 8) apud DIAS, Larissa Rodrigues Sathler. Virgens, viúvas e casadas:
representações do feminino no discurso ambrosiano (séc. IV). Op. cit., p. 119.
213
Ibid.
214
AMBRÓSIO. Sobre a Penitencia I, 3
215
Ibid.
216
AMBRÓSIO. Sobre a Penitencia I, 9
83

de nenhum serviço que possa ser útil ao culto e à observância de Cristo217”. E o corpo
poderia atuar a serviço de Deus: por exemplo, através da dança. Mesmo reconhecendo a
prática como “pouco elevada”, Ambrósio demonstra que o mistério que se opera por meio
dela não o é. Alertando a necessidade de prudência com qualquer tipo de interpretação
vulgar sobre essa manifestação, o bispo mobiliza como exemplo o episódio no qual “Davi
dança diante da arca do Senhor” (cf. 2Sm 6,12-23). Ou seja, apesar de seu caráter de
prisão da alma, o corpo pode se manifestar para entrar em comunicação com o divino,
fazendo parte da ascensão do espirito.
Não é, portanto, a dança, companheira dos prazeres e da luxúria,
que se recomenda, mas aquela em que cada um levanta o corpo
com agilidade e não deixa os membros jazerem indolentemente
por terra, ou ficarem entorpecidos pela lassidão dos passos. Paulo
dançava espiritualmente quando se desdobrava em nosso favor
(...) Tu também, quando vens ao batismo, és exortado a erguer as
mãos, a ter pés mais velozes, para poderes subir até as realidades
eternas. Esta é a dança que é sócia da fé, companheira da graça218.

No entanto, mesmo “abrindo brechas” para que o corpo seja lido de uma
perspectiva amistosa e harmônica com relação a alma, o que sintetiza o pensamento de
Ambrósio é, pelo contrário, uma luta constante entre esses dois polos opostos. O corpo
limita e torna o pensamento mais estreito. A libertação do corpo por meio da resistência
a tentação ou da própria penitência é o que permite a expansão da alma e sua mudança
para luz. Apenas assim, de acordo com Ambrósio, o pecado pode se encerrar dentro da
consciência do homem219.
Ponto comum entre os autores latinos do cristianismo deste período é o “resgaste”
de Paulo de Tarso; desse modo, certo desprezo pelo corpo – em diferentes níveis -
apareceu em Agostinho, em Ambrósio e se mostrará significativamente também, em
Jerônimo. Pois como bem indicou o bispo de Milão, Paulo deveria ser “(...) o hábil
condutor de nossa vida moral, o juiz das nossas emoções mais íntimas220”. A defesa de
uma vida ascética, de privações também marca o lugar de fala de Jerônimo, determinante
em sua interpretação sobre o elo estabelecido entre o corpo e alma. Apesar da obra tratada
nesta pesquisa ter sido formulada como uma defesa e, por vezes, não apresentar uma

217
AMBRÓSIO. Sobre a Penitencia II, 6
218
AMBRÓSIO. Sobre a penitência II, 6
219
Id. Sobre a penitência II, 8: “Assim meus pensamentos não ficarão mais encerrados na estreiteza deste
corpo, mas sairão para Cristo, serão mudados em luz, de modo que eu não mais cogite as obras das trevas,
mas as obras da luz (cf. Rm 13,12). Pois aquele que cogita o pecado, esforça-se por encerrar a si mesmo
dentro de sua consciência.”
220
BROWN, Peter. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo.
Op. cit., p. 309.
84

exposição linear de suas concepções, é possível perceber em seus argumentos combativos


e de suas justificativas muitos aspectos de suas percepções ligadas a temática discutida.
Criticando Rufino com relação a seu não posicionamento claro e o que pode ser
resumido por postura desonesta, o religioso discorre a respeito das almas, criando, para
expor suas concepções e suas críticas a Rufino, uma discussão hipotética entre os dois.
As afirmações de Jerônimo sobre o tópico demonstram uma percepção que contrapõe a
alma, pura, e o corpo como lugar do pecado: utilizando uma linguagem metafórica,
Jerônimo dá a entender que a alma disponibilizada por Deus a cada corpo não vem,
necessariamente, com “falhas”, mas ao encontrar o corpo ou não levar uma vida correta,
pode sofrer as transgressões. Segue o “diálogo”:

Tu me perguntas qual é a minha posição a respeito das almas,


para que, quando eu a tiver pronunciado, tu me ataques logo e, se
eu tiver dito esta resposta da Igreja: “A cada dia Deus cria almas
e as envia aos corpos dos que nascem”, tu me estenderás logo
uma armadilha de professor: “E onde está a justiça de Deus, que
prodigaliza almas aos que nascem do adultério e do incesto?
Assim ele coopera com os maus homens e, enquanto os adúlteros
geram os corpos, ele forjará as almas? Como se o defeito da
semeadura estivesse no grão que por furto se diz ter sido retirado
e não naquele que roubou o trigo, e se a terra não devesse aquecer
em seu seio as sementes porque o semeador as teria lançado com
uma mão sórdida!221

Reafirmando essa visão pejorativa do corpo em contraposição a alma, logo em


seguida Jerônimo se explica melhor através de um exemplo: a morte de recém-nascidos.
Citando Dídimo, em obra que dedicou ao próprio opositor de Jerônimo, o sacerdote
explicita que, por vezes, os pecados são tão numerosos, que para certas almas basta apenas
“ter tocado em suas prisões corporais222”. Mesmo recorrendo a outro autor, o fato de
denotar ao corpo o sentido de prisão, evidencia, primeiramente, sua forte influência grega
e também uma hierarquia bem delimitada na qual a alma se apresenta como naturalmente
boa, apesar de passível de ser corrompida, e o corpo como um elemento concorrente a
evolução da alma, pois a aprisiona numa determinada realidade contrária a sua natureza.
Enquanto isso, os afrescos mobilizados parecem, de certo modo, concordar com
essa perspectiva pessimista do corpo, optando, inclusive, por não marcar o corpo dos
personagens representados com muito realismo. A arte apresentada nesse contexto não

221
BROWN, Peter. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo.
Op. cit., p. 106.
222
Ibid.
85

parece ter uma preocupação central com a estética, mas sim com a mensagem de cada
cena – grande parte delas pertencentes ao livro sagrado dos cristãos. Segundo o
historiador da arte Jàs Elsner223, a arte paleocristã foi gradualmente suprimindo o realismo
e o naturalismo, pois seus objetivos não exigiam mimese. Em uma doutrina que apresenta
certa aversão a materialidade esse aspecto perde espaço. O desdobramento dessa nova
visão é perceptível na representação dos corpos: as imagens foram sendo exauridas de
sua “visão corporal”, pois não eram mais destinadas a ser objeto de idolatria224. Como já
explicado anteriormente, os afrescos encontrados nas catacumbas romanas são
representações muito simples, que buscam transmitir uma mensagem espiritual e não
promover uma valorização do elemento estético. Nesse sentido, se torna muito comum a
existência de “abreviações imagéticas”225, que deslocadas de seu cenário e época perdem
seu sentido. Fazendo parte de um ambiente marcado pela morte, é importante destacar
que, naturalmente, a função dessas imagens é devocional e é mobilizada, basicamente,
para instruir os familiares do falecido, inspirar e confortar os visitantes como um todo.
Para além disso, compreendemos que no contexto funerário, portanto da morte do corpo
físico e, para os cristãos, de ressurreição da alma, um tipo de representação que
“despreza” as linhas corporais bem definidas, não dando atenção aos traços dos corpos
dos personagens, tem muito sentido226.
Existe ainda um questionamento com relação, fundamentalmente, a essas imagens-
símbolo e/ou as abreviaturas imagéticas, que especula que sua existência não está ligada
a uma modificação de estilo, mas sim, a uma falta de recursos 227. Ou seja, os esquemas
decorativos das catacumbas teriam assumido um caráter menos vistoso e definido por
serem executadas por oficinas de baixa qualidade, por falta de tempo, de financiamento
e de qualificação dos artistas/autores. No entanto, concordamos com Gregori quando este
defende que é mais provável que o resultado visto nos afrescos das catacumbas era, de
fato, o que se pretendia atingir. Nesse sentido, desejava-se comunicar alguns aspectos da
fé por meio do mínimo detalhe narrativo. Porém, como veremos adiante, o afastamento

223
ELSNER, J. Art and the Roman Viewer: The Transformation of Art from Augustus to Justinian.
Cambridge (UK): Cambridge University Press, 1990 apud GREGORI, Alessandro Mortaio.
Comunicação Visual na Antiguidade Cristã: a construção de um discurso imagético cristão do Ante
Pacem ao Tempora Christiana (s. III ao VI). Op. Cit., p. 40.
224
GREGORI Alessandro Mortaio. Comunicação Visual na Antiguidade Cristã: a construção de um
discurso imagético cristão do Ante Pacem ao Tempora Christiana (s. III ao VI). Op. Cit., p. 76.
225
Ibid., p. 119.
226
Ibid., p. 109: “A imagem representa uma expectativa, uma inspiração cristã para que o falecido atinja o
paraíso idílico.”
227
Ibid.
86

do “naturalismo helênico” é compensado pela apropriação, reutilização e ressignificação


dos temas e representações tradicionais da cultura politeísta romana.
Embora a configuração exposta acima possa ser percebida, em diferentes níveis, em
todos os afrescos mobilizados nesta pesquisa, as três imagens que coadunam de forma
mais significativa essas duas referências - uma supressão do naturalismo, aliada a
utilização de elementos helênicos e tradicionais da religiosidade romana - são: Noé, Jonas
e a Baleia e Hécules nos jardins de Hesperíades. As duas primeiras representações fazem
referência ao texto sagrado para os cristãos, temática muito comum. Dentre as narrativas
mais recorrentes e que, por isso, já adquiriram um esquema consagrado, estão os dois
episódios ou personagens representados nesses dois primeiros afrescos (A história de
Jonas e a Baleia e a representação de Noé). Suas apresentações quase que primitivas
corroboram a exposição dos parágrafos anteriores, na qual essas imagens servem como
forma de transmissão de um valor simbólico e não de uma visualização de uma narrativa
bíblica. Enquanto isso, a representação do mito de Hércules nas catacumbas é a maior
evidência do processo de transculturação, ainda mais considerando que esse afresco faz
parte de um dos conjuntos de catacumbas mais tardias, a da Via Latina.
Comecemos a analisar os afrescos referentes a narrativa bíblica:

Primeiramente, importante citar que, apesar de menos evidente, esses elementos


trazem uma herança da cultura tradicional romana, tanto quanto a representação do mito
de Hércules. Considerando o antecedente “pagão”, por exemplo, a barca, na qual Noé é
representado, é um meio pelo qual o falecido chega ao outro mundo 228. No cristianismo
esse sentido sofre mutações: “Nos textos sagrados judaico-cristãos, a barca é o meio de

228
GREGORI Alessandro Mortaio. Comunicação Visual na Antiguidade Cristã: a construção de um
discurso imagético cristão do Ante Pacem ao Tempora Christiana (s. III ao VI). Op. Cit., p. 115.
87

escape, de trânsito do antigo para o novo229”, no qual a estória de Noé é o principal


modelo. Metaforicamente, a barca representa uma comunidade guiada pela “Boa Nova”,
por Cristo, e, uma chance para seguir o caminho “certo”, assim como o é na narrativa
bíblica. A narrativa de Jonas e a Baleia também tem suas ligações com a temática da
morte e da ressurreição esperada pelos cristãos. Segundo Gregori:
A história do peixe, que tradicionalmente interpreta-se como uma
baleia, embora o texto bíblico não assim a afirme (Jn. 2, 1-2), é
celebrada no Novo Testamento, compreendida pelo evangelista
como sinal da morte e da ressurreição: como Jonas ficou três dias
e três noites no ventre do grande peixe, Jesus ficará três dias no
ventre da terra, depois ressuscitando (Mt. 12, 39-41)230.

Como demonstra Jensen Elsner231, o tema marítimo é bastante usual na


iconografia da Antiguidade Tardia: marinheiros, barcas e criaturas marinhas são temas
recorrentes desde o paleocristianismo e, até mesmo antes, na cultura romana tradicional
- o golfinho, por exemplo, poderia estar associado a Apolo, Afrodite e Poseidon. Sendo a
água um elemento relevante quando se trata de elementos religiosos ou rituais sagrados,
os temas aquáticos tendem a ganhar muita visibilidade. Na visão de mundo cristã a água
está ligada a redenção e a remissão dos pecados, pois, é por meio dela que se opera, por
exemplo, o ritual de baptismo232. Ou seja, evidencia-se aqui a relevância da simbologia
dessas duas referências presentes nas catacumbas.
Quanto a representação de Hércules, atentamos aqui que o afresco sob estudo faz
parte de um conjunto maior233, presente nas paredes de um cubiculum de uma catacumba
da Via Latina. O contexto do conjunto faz com que identifiquemos o personagem greco-
romano facilmente. No afresco selecionado, Hércules está identificado, além de pela cena
em si, pelo porte de sua clava. Optamos por trabalhar com apenas uma cena deste conjunto
porque julgamos que o restante dos esquemas apresenta uma mensagem análoga e manter
o foco em uma imagem seria, nesse caso, mais produtivo. O afresco em questão foi
selecionado porque nos pareceu o mais frutífero para a interpretação do corpo, pois além

229
Ibid.
230
GREGORI Alessandro Mortaio. Comunicação Visual na Antiguidade Cristã: a construção de um
discurso imagético cristão do Ante Pacem ao Tempora Christiana (s. III ao VI). Op. Cit., p. 120.
231
ELSNER, J. Art and the Roman Viewer: The Transformation of Art from Augustus to Justinian. Op. cit.
apud GREGORI Alessandro Mortaio. Comunicação Visual na Antiguidade Cristã: a construção de um
discurso imagético cristão do Ante Pacem ao Tempora Christiana (s. III ao VI). Op. Cit., p. 115.
232
GREGORI Alessandro Mortaio. Comunicação Visual na Antiguidade Cristã: a construção de um
discurso imagético cristão do Ante Pacem ao Tempora Christiana (s. III ao VI). Op. Cit, p.114-115.
233
Esse conjunto “possui um arcosolium ricamente decorado com cena de Alceste em frente a Hércules e a
Cérbero. Pequenos pavões e amores seguram guirlandas no teto do recinto. Alceste é resgatada do mundo
infernal por Hércules. Cenas de Hércules nos jardins das Hespérides, assim como o herói enfrentando a
Hidra estão presentes na mesma área.” Ver: Ibid., p. 132.
88

de contar com a figura de Hércules, não traz um excesso de elementos que demandariam
que nos voltássemos para outras questões, perdendo o foco.
A cena representada neste afresco é a de um dos Doze Trabalhos de Hércules,
narrados por Higino, em sua obra Fabulae: “Ele matou o enorme dragão, filho de Typhon,
pela montanha Atlas, que costumava guardar as maçãs douradas das Hespérides, e ele
trouxe as maçãs para o rei Eurystheus234”. Apesar de não pertencer ao repertório cristão,
a conclusão dos Doze Trabalhos de Hércules, dos quais a cena expõe o décimo-primeiro,
tem como desfecho a imortalidade, concedida pelos Deuses. Desse modo, a narrativa
greco-romana é mobilizada, mas adquirindo um viés cristão: assim como a representação
da expulsão do paraíso age como uma lembrança da imortalidade humana; os trabalhos
de Hércules, neste caso, evidenciam a conquista da imortalidade, o fim da jornada através
do esforço e um triunfo diante da morte.

Portanto, aliadas ao contexto funerário, a mensagem dessas imagens com relação


a interação corpo e alma, nos parece ser a de libertação da vida corporal, e a entrada em
uma nova vida que será conduzida pela alma. O corpo seria um resquício do pecado e
uma vida de provações poderia conduzir a uma vitória diante dessa realidade, após a
morte do corpo.

234
HIGINO, Fabulae, XXX: Mató al enorme Dragón, hijo de Tifón, junto al monte Atlas, que solía
custodiarlas manzanas de oro de las Hespérides, y le llevó las manzanas al rey Euristeo. (tradução nossa).
89

3.2 Sexualidade
Ao discorrer sobre a ascensão do celibato e seu peso como diferenciação social no
final da Antiguidade, Peter Brown discute o universo de inquietações relacionadas ao
corpo humano e, para guiar sua análise, formula um questionamento menos usual que o
do porquê do corpo ter sido considerando, durante a Antiguidade tardia, um campo de
desassossegos e agitações. Ao invés disto, formula a seguinte pergunta:

(...) por que o corpo foi escolhido e apresentado como lugar recôndito de
motivações especificamente sexuais e como centro de estruturas sociais
que são apresentadas em termos sexuais, quer dizer, como sendo formado
sobretudo de uma energia fatal e especificamente sexual, orientada para
o casamento e a gestação?235”.

A partir dessa formulação cabe-nos o entendimento de que as inovações com


relação as percepções do corpo são produto menos de seu significado essencialmente
negativo na época, e mais de seu peso desproporcional e intenso sob os primeiros grupos
cristãos. Nota-se emergir juntamente com o crescimento do cristianismo primitivo um
sentimento violentamente negativo de intimidade236. Mesmo aquilo que é mais pessoal e
privado passa a ser alvo de exame, pois as transgressões mais silenciosas podem
desestabilizar a solidariedade estabelecida entre a comunidade religiosa237. Nesse sentido,
que alguns autores, incluindo Peter Brown, buscam demonstrar que a moral sexual austera
estimulada pelo cristianismo era reconhecível e passível de aceitação pelos romanos
politeístas, mas buscando tornarem- se singulares, os cristãos executavam sua
excepcionalidade na rigidez238. Também segundo o mesmo historiador, a mensagem dos
apologistas com relação a renúncia sexual, é semelhante ao que invocaram os admiradores
do celibato clerical, tal como Nietzsche: “a crença segundo a qual uma pessoa que
constitui uma exceção nesse ponto igualmente constituirá uma exceção em outros
aspectos239”.
Por sua vez, para a organização que gerou o cristianismo, o judaísmo, a
sexualidade era vista como um “complemento permanente da personalidade”, ou seja, era
um fenômeno necessário a existência humana, mesmo sendo também propulsora de
alguns incômodos. A estratégia do judaísmo para lidar com a sexualidade se baseava,

235
BROWN, Peter. Antiguidade Tardia. In: DUBY, G.; ÀRIES, P. (Orgs.) História da Vida Privada: Do
Império Romano ao ano mil. Op. cit., p. 256.
236
Ibid., p. 244.
237
Ibid.
238
Ibid., p. 254.
239
Ibid., p. 260
90

portanto, no controle, pois embora de natureza impulsiva era possível alcançar a


moderação e a firmeza240. Para o cristianismo, porém, as medidas eram outras, pois
julgava-se ser possível o desparecimento desse traço no indivíduo, de modo que sua
sexualidade fosse absolutamente suprimida em prol de possibilitar uma disponibilidade
total a Deus e ao outro241.
Pouco antes das viagens missionárias de Paulo, nas décadas de 40 e 50 d.C. até
pouco depois da morte de Agostinho em 430 d.C., observa-se a prática da renúncia sexual
permanente entre homens e mulheres dos círculos cristãos (em contraste com a
observância de períodos temporários de abstinência sexual)242. O médico Galeano,
observando as comunidades cristãs em fins do século II se espanta de sua postura com
relação a vida sexual, colocando: “Seu desprezo pela morte a cada dia nos é evidente,
assim como sua moderação em matéria de coabitação. Pois elas se constituem não só de
homens como também de mulheres que durante toda a vida se abstêm de coabitar243”. Por
fim, esse tema da sexualidade, que envolve continência, o celibato e a virgindade é uma
constante nos discursos cristãos, que ganham mais visibilidade ainda com a ascensão do
monasticismo que se confunde com o próprio crescimento da Igreja, meados do século
III d.C. Sua expressão muito recorrente e que se dá essencialmente nos escritos morais,
não é, porém, uniforme e homogênea dentro das documentações literárias, nem mesmo,
as imagéticas. A relação com a sexualidade, devedora da percepção do corpo como um
todo, guarda estreitas relações com o entendimento do vínculo e da hierarquização corpo-
alma, que por sua vez, é produto do entendimento dos autores sobre a criação do homem
por Deus. Nesse sentido, esse tópico terá a necessidade de, eventualmente, retomar,
temáticas já discutidas nos títulos anteriores.
Nos detendo às nossas fontes com relação a sexualidade, Agostinho é um dos que
expõe uma opinião mais moderada, pelo menos considerando seus escritos mais
“maduros”, formulados durante seus últimos anos de bispado e vida – o que inclusive
corrobora com seu posicionamento menos alarmista sobre a relação corpo e alma. Para
esse religioso, a união carnal não era, por si só, um pecado; pelo contrário, quando tinha
por objetivo a geração de filhos, era essencialmente boa. Ele justifica essa posição
recorrendo ao pedido de Deus ao primeiro casal de homens: “Crescei e multiplicai-vos,

240
Ibid., p. 257
241
Ibid.
242
Id. Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Op. cit., p. 7.
243
BROWN, Peter. Antiguidade Tardia. In: DUBY, G.; ÀRIES, P. (Orgs.) História da Vida Privada: Do
Império Romano ao ano mil. Op. cit., p.254
91

enchei a terra244”. Como já foi comentado, Agostinho faz especulações e relativiza o


modo como seriam gerados filhos no paraíso, inferindo que a união carnal não fosse
necessária aos corpos imortais de Adão e Eva, mas mesmo relativizando a prática sexual
nesse contexto, Agostinho deixa claro que, mesmo para os corpos mortais, o encontro
carnal não é um problema por si só; nem é a sexualidade sozinha condenável, mas sim a
forma de praticá-la. Nesse sentido, o bispo de Hipona intitula um dos capítulos de
Comentário Literal sobre o Gênesis como: “A procriação foi independente da existência
do pecado245”. Essa ideia, é interessante, pois demonstra que, a sexualidade, pelo menos
objetivando a reprodução da espécie, não é a força geradora do pecado, mas foi uma
criação de Deus, que nasceu junto com o homem.
Agostinho valoriza muito, nesse caso, essa visão moderada, alertando, inclusive
que insistir em fugir dessa natureza humana ou negá-la pode ter um efeito reverso; de
modo que, a fuga de determinados vícios seja um ponto de partida para fazer emergir os
vícios contrários. Exemplificando esse perigo, Agostinho afirma:
Agora perguntamos: para que espécie de ajuda a mulher foi
criada para o homem, se no paraíso não lhes era lícito se unirem
para gerar filhos? Os que assim pensam, julgam ser pecado toda
união carnal. Com efeito, é difícil que essas pessoas, quando
evitam perversamente os pecados, não venham a cair
rapidamente em seus contrários. Assim, o que aborrece a avareza
se torna pródigo, ou o que tem horror à luxúria torna-se avarento,
ou se torna inquieto aquele cuja indolência repreendes, ou se
torna indolente aquele cuja inquietude censuras, como o que é
repreendido pela sua audácia foge para a timidez, ou o que se
esforça para não ser tímido torna-se temerário, como se lhe
tivessem rompido as cadeias246.

Ambrósio, pelo contrário, recomenda que o homem fuja do envolvimento sexual,


estimulando a virgindade e o celibato. Sobre esse tópico, o religioso mobiliza por diversas
vezes Paulo para exemplificar seu posicionamento, ao enfatizar a necessidade de
atravessar o “fogo da paixão”: “‘Fugi da fornicação’ (1Cor 9,27), nos diz ele. Fujamos,
então, como se ela nos perseguisse, porque ela não está atrás de nós, mas persegue-nos
dentro de nós mesmos247”. Para o bispo de Milão, portanto, o corpo faz nascer o conflito
e a “paixão”, despertando a sexualidade que é, por si só, uma expressão do pecado. Por

244
Gênesis 9, 1
245
AGOSTINHO. Comentário Literal sobre o Gênesis IX, 9
246
AGOSTINHO. Comentário Literal sobre o Gênesis IX, 8.
247
AMBRÓSIO. Sobre a penitencia I, 14
92

isso, Ambrósio demonstra, como já apresentado anteriormente, um desdém com relação


ao próprio bem-estar do corpo.
Porém, mais do que censurar o próprio corpo ou o ato sexual, Ambrósio coloca
uma censura anterior: ao desejo, ou seja, ao sentimento. Como demonstra, muitas vezes
a carne é inocente, mas é escravizada pelo pecado e para fugir dessa escravidão é
necessário se fechar a qualquer tipo de concupiscência, que inclui o pensamento, a visão
ou qualquer fantasia, mesmo que esta não se concretize. Esse controle cabe ao espírito,
pois, se esse se mantiver na recusa, a natureza corporal perde força. Discorrendo sobre o
pecado do adultério, Ambrósio faz a seguinte reflexão:
(...)é bom o pudor que costuma cobrir os próprios olhos do corpo,
para que muitas vezes não enxerguemos nem aquilo que vemos.
Com efeito, o pudor costuma ver só pela aparência o que se lhe
apresenta; entretanto, sem a aplicação do espírito, até esse nosso
olhar segundo a carne desvanece. Assim, pois, nós vemos mais
com o espírito do que com o corpo. Ainda que a carne tenha visto
o fogo, não abriguemos no peito este fogo, isto é, no oculto da
mente e no segredo do espírito. Não deixemos penetrar nos ossos
este fogo, não preparemos laços para nós mesmos, não
troquemos palavra alguma com esta espécie de pessoa de onde
flameja o fogo do adultério. A conversa de uma moça é um laço
para os jovens, as palavras de um jovem são correntes do amor248.

Quanto ao polêmico Jerônimo, sua percepção da sexualidade coadunava com seus


ideais de vida ascética e com a própria influência que as culturas Oriental e Grega
exerceram sob sua formação intelectual – o que, inclusive, torna a comunicação desse
autor mais singular diante das outras obras cristãs do mundo latino249. O resultado desse
processo foi uma percepção da sexualidade como algo que se deveria abafar, sufocar, até
que todos os impulsos carnais cessassem e o homem pudesse viver como um “anjo de
Deus”, abandonando o terreno e alcançando o celeste. Nesse sentido, Jerônimo foi um
pertinaz defensor da renúncia sexual cristã. Podemos mobilizar como exemplo para
demonstrar sua posição e a radicalidade, um comentário publicado em 393 d.C. em um
panfleto pelo religioso em resposta a Joviniano que afirmou serem os casais unidos pelo
matrimônio tão dignos quanto as virgens consagradas da Igreja250. Jerônimo reclama que
“até os casamentos realizados em primeiras núpcias eram lastimáveis, embora perdoáveis,

248
AMBRÓSIO. Sobre a penitencia I, 14
249
COELHO, Fabiano de Souza. Jerônimo de Estridão: asceta, exegeta e controverso. Op. cit., p. 16.
250
BROWN, Peter. Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo.
Op. cit., p. 309 – 310.
93

diante da carne, e que as uniões em segundas núpcias ficavam apenas a um passo do


bordel251”. No mesmo panfleto, o religioso critica os padres que não vivem a castidade252.
Evidente que, temos consciência de que certas estratégicas retóricas são usadas
para provocar maior impacto ou perturbação e que, em especial a passagem acima, mostra
um pensamento de uma radicalidade que não encontra eco em muitos de outros escritos
seus. Ainda assim, o asserto traz como contribuição uma noção de o quão longe poderiam
ser os comentários deste autor, defensor dos ideais ascéticos, polêmico e, por vezes,
contraditório.
Com relação a nossa documentação imagética, alguns vestígios que já foram
trabalhados nos subtítulos anteriores servem igualmente para discutir a questão da
sexualidade. Isso ocorre porque o estilo das pinturas, que tende a representar os corpos
com certo “descuido”, buscando priorizar uma mensagem espiritual/emocional; assim
como o episódio de Adão e Eva e sua expulsão do paraíso, que inaugura uma nova relação
com a corporeidade, indicam um posicionamento diante da sexualidade humana. Sendo
uma manifestação muito mais afeita ao corporal, a sexualidade toma para si o mesmo
valor que o corpo adquire diante da alma: de notória inferioridade - apesar de os autores
divergirem em algum grau. No próximo tópico aprofundaremos um pouco essa discussão,
trazendo o questionamento da diferenciação feita entre os corpos feminino e masculino.

3.2.1 Corpo feminino e corpo masculino

Embora já tenhamos apresentado questões gerais relativas a sexualidade dentro da


nossa documentação, não podemos ignorar que há especificidades e diferentes normas de
conduta prescritas para homens e para mulheres e que quaisquer questões dogmáticas que
sejam levarão em conta essa diferenciação sexual. Não pretendemos fazer aqui uma
investigação densa sobre as questões de gênero que promovem uma diferenciação entre
a disciplina sexual masculina e feminina, ainda assim, seria incoerente abordar o tema,
desconsiderando que os corpos femininos e masculinos não são tratados da mesma forma.
Desse modo, continuaremos abordando aqui a temática da sexualidade, porém daremos
ênfase a diferenciação estabelecida entre os gêneros e, nesse sentido, esse tópico trará

251
Ibid.
252
Na época, existia um contingente do clero que era casado. Em sua maioria eram iniciantes, recrutas, que
eram chamados em função da escassez temporária de veteranos. Ver: Ibid.
94

algumas relações com a própria criação dos corpos feminino e masculino, já discutido
anteriormente.
Nosso ponto de partida para discutir essa questão pode ser uma reflexão de
Michelle Perrot, feita na obra As mulheres ou os silêncios da história, publicada em 2005,
na qual afirma: “O corpo está no centro de toda relação de poder. Mas o corpo das
mulheres é o centro, de maneira imediata e específica253”. Ou seja, a vigilância, a rigidez
e a “necessidade” de controle dos corpos é exercida de forma assimétrica e, por mais que
o enquadramento de um gênero, resulte como consequência do enquadramento do outro
que lhe é correspondente, o pensamento cristão devotou especial atenção a disciplina
sexual e corporal das mulheres, que em geral eram tidas como inferiores. Considerando
o contexto da Antiguidade, na qual a esfera religiosa não pode ser entendida de forma
autônoma, os discursos formulados dentro desse âmbito exerciam um forte impacto na
sociedade, determinando lugares sociais e políticos para homens e mulheres e impondo
aos corpos sexuados uma identidade específica e, supostamente natural. Afinal, a lógica
da cristandade que se relaciona com essa adequação das identidades feminina e masculina
se constitui por meio de fortes vínculos com as interpretações do Gênesis e do Pecado
Original, que teve como consequência a expulsão de Adão e Eva do paraíso.
Em “La condition feminine et les Pères de l´Eglise latine (1982)254, podemos
perceber como a condição da mulher foi definida por alguns representantes da Igreja, em
especial Tertuliano, Ambrósio, Jerônimo e Agostinho. Todos esses autores foram
profundamente influenciados, em menor ou maior grau, pelas correntes filosóficas que se
disseminavam na época, tais quais: estoicismo, platonismo e epicurismo. Todas essas
correntes, aliadas também aos escritos paulinos que discorrem sobre divórcio, casamento
e virgindade, serão o terreno para a definição do lugar da mulher no cristianismo tardo-
antigo. Antes de adentrar a análise da documentação alertamos que as interpretações
propostas pelos Pais da Igreja são formuladas em um ambiente profundamente
androcêntrico255, ou seja, todos partiam de um universo de referências essencialmente
masculinas. Tal, segundo F. Dupriez, levou a Igreja a permitir que a mulher pudesse
transcender sua natureza, voltada unicamente e tradicionalmente, ao casamento a

253
PERROT, M. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru-SP, Edusc, 2005, p.447.
254
DUPRIEZ, F. La condition féminine et les Pères de l’Église latine. Montréal: Editions Paulines, 1982
Apud SIQUEIRA, S. M. A. A mulher na visão de Tertuliano, Jerônimo e Agostinho séc. II-V d. C. Tese
(Doutorado em História) - Programa de Pós-graduação em História, Universidade Estadual Paulista, Assis,
2004, p. 48.
255
Ibid.
95

procriação e a continuidade de uma linhagem. Ou seja, em sua leitura, o universo


dominado por homens possibilitava que as mulheres acessassem o divino apenas abrindo
mão daquilo que, para a época “as tornava mulheres”. Sem querer conferir um caráter
raso a nossa análise, consideramos que, apesar de considerar o lugar da mulher no interior
das sociedades cristãs e a própria discussão em torno da virgindade, um assunto mais
complexo e com mais questões que a autora não considera, entendemos sua análise como
uma reflexão produtiva para interpretar e explicar o pensamento cristão do período.
Dentre os Padres da Igreja da tradição Ocidental analisados neste trabalho, nota-
se que todos são unânimes ao conferir a mulher um lugar de inferioridade, de
“complemento necessário” ao homem. O discurso religioso de Ambrósio, por exemplo,
apresenta a natureza feminina como algo moralmente débil, o que exigia que sua relação
com o homem fosse de subserviência. Ainda para o bispo de Milão, a disciplina
relacionada ao corpo feminino deveria ser mais rígida e direcionada, pois foi Eva que, a
partir de seu mau comportamento, levou a si e ao homem (Adão) para fora do paraíso. Ou
seja, Ambrósio responsabiliza, em especial, Eva pelo processo que culminou no
afastamento do homem de Deus. Partilhando essa herança, cabe a mulher agora se
redimir, apresentando um comportamento que a desvincule da postura assumida por Eva:
A morte entrou pela janela, isto é, pela porta de Eva. A morte
entra por tua porta, se falas com falsidade, se falas de modo torpe,
atrevida, enfim, se falas quando não convém. Assim pois,
estejam fechadas as portas de teus lábios e fechado o vestíbulo
de tua voz. Então, talvez deverás reabrir, quando ouvir a voz de
Deus, quando escutar ao Verbo de Deus256

Ao deixar clara essa visão, Ambrósio faz analogias entre os estados conjugal e a
escravidão257. Para ele, a mulher, que por princípio é, a esposa, deveria estar submetida
ao domínio de seu marido, vivendo como seu “complemento”, para agradá-lo. As únicas
que poderiam sair desse caminho eram as virgens devotas que suprimiam sua debilidade
natural em prol de uma vida espiritual. Mas, mesmo assim, essas mulheres estariam, no
caso, sob controle de Deus.
Agostinho corrobora com essa posição de submissão da mulher, afirmando que a
tarefa do primeiro casal era serem complemento um do outro, sendo que, “aquele
aconselhando (homem), esta (mulher), obedecendo258”. Como expõe o religioso, Deus

256
AMBRÓSIO, Virgt., 81 apud DIAS, Larissa Rodrigues Sathler. Virgens, viúvas e casadas:
representações do feminino no discurso ambrosiano (séc. IV). Op. cit., p. 124.
257
Ibid., p. 129.
258
AGOSTINHO. Comentário Literal sobre o Gênesis III, 22.
96

teria criado a mulher a partir da necessidade de Adão de uma auxiliar que lhe fosse
correspondente, pois, mesmo após conhecer e nomear todos os animais e feras do campo,
nenhum deles foi reconhecido por Adão como um semelhante259. A partir disso, Deus
utilizou uma costela do homem para edificar a mulher e, esta nascida do homem, deveria
ser-lhe obediente, servindo de auxiliar, não podendo se governar por si só. Desse modo,
Agostinho afirma que: “(...) quando aquele governa, esta obedece; aquele é dirigido pela
sabedoria, esta pelo homem, Cristo é a cabeça do homem, e o homem é a cabeça da
mulher260”. É interessante notar, nesse caso, que a necessidade de controle da mulher pelo
homem é algo anterior ao Pecado Original e não se mostrou como necessário apenas
porque teria sido Eva a primeira a comer do fruto proibido e oferecê-lo a Adão. Ou seja,
“(...) a mulher, mesmo antes do pecado, não foi feita senão para que o homem a dominasse
e ela se voltasse para ele servindo-o261”.
A mulher, sendo forjada como uma auxiliar, tinha um papel muito específico,
consequentemente, seu corpo também. Tanto Agostinho quanto Ambrósio são
categóricos ao especificar a função da mulher dentro do “plano” de Deus: a procriação.
Como afirmará Agostinho:
Se surgir a pergunta: para que foi conveniente que fosse feita esta
ajuda, em nada mais se deve pensar senão para procriar filhos,
assim como a terra é ajuda para a semente e a fim de que de
ambos possam nascer os rebentos, pois isto fora dito na primeira
criação das coisas: Homem e mulher ele os criou. Deus o
abençoou e lhes disse: “Crescei e multiplicai-vos, enchei a terra
e submetei-a”262

O bispo de Hipona ainda enfatiza seu pensamento justificando que a função de


gerar é a única viável considerando o contexto do paraíso. não havia, por exemplo,
trabalho que justificasse a necessidade de ajudante e, como demarca o religioso, se
realmente o houvesse, melhor seria que Deus fizesse outro homem263. O mesmo é
reivindicado por Agostinho quando se trata da solidão, tédio e necessidade de conforto;
um outro “exemplar” do sexo masculino poderia suprir todas essas necessidades;

259
Id. Comentário Literal sobre o Gênesis VI, 5: “Depois, da costela que tirara de Adão, Deus a edificou
em uma mulher. Se, consequentemente, ao não encontrar a auxiliar semelhante ao homem entre os animais
e feras do campo e as aves do céu, Deus fez a auxiliar de uma costela do costado de Adão, isso foi feito
depois de ter modelado da terra os referidos animais do campo e as aves do céu e de os ter conduzido a
ele”.
260
Id. Sobre o Gênesis, contra os maniqueus II, 11.
261
Id. Comentário Literal sobre o Gênesis XI, 27.
262
Id. Comentário Literal sobre o Gênesis IX, 3.
263
Id. Comentário Literal sobre o Gênesis IX, 5.
97

inclusive, nesse caso, a amizade masculina era muita mais recomendável 264. Por fim, se
era imprescindível que houvesse uma hierarquia, na qual um deveria mandar e o outro
obedecer para se evitar conflitos entre vontades contrárias, era essencial que um fosse
criado em primeiro lugar e o outro, depois e, também, que o segundo fosse feito a partir
do primeiro, tal como Eva foi criada de Adão. Em síntese, Agostinho afirma que “(...) não
descubro para que a mulher foi feita para o homem como auxiliar, se se prescinde do
motivo de dar à luz265”.
Destaca-se que do mesmo modo que a necessidade de submissão da mulher é
intrínseca a sua natureza, também sua função como geradora já lhe havia sido dada antes
da expulsão do paraíso, ou seja, “Esta razão da criação e da união do homem e da mulher
e a bênção não foram suprimidos depois do pecado e do castigo 266”. Nesse sentido,
Agostinho critica aqueles que afirmam que a união e possibilidade de gerar filhos só
ocorreu entre Adão e Eva depois destes terem sido expulsos do paraíso. Reafirmando o
que já foi comentado no subtítulo anterior, a união carnal ocorria no paraíso, porém como
especula Agostinho, sem concupiscência; mas eram “núpcias honrosas”, nas quais o leito
conjugal não era manchado. A geração de filhos no paraíso era, portanto, na visão desse
religioso, sem qualquer resquício de sensualidade e, do mesmo modo, o parto deveria se
dar sem dores267.
Apesar de reconhecer a necessidade e a vocação da mulher para a procriação da
espécie, Agostinho também devota sua admiração aquelas que optam por seguir o
caminho da virgindade:
De onde procede para a fiel e piedosa virgindade o grande mérito
e merecedor de grande honra junto de Deus, senão porque nestes
tempos os que se abstêm do comércio carnal são supridos pela
enorme abundância de pessoas de todos os povos que completam
o número de santos (...)268

Porém, o casamento ainda é um caminho muito importante, como demonstra


Agostinho, para o aperfeiçoamento do homem e da mulher. Os dois sexos são frágeis e
tendem à ruína da pureza e o casamento pode servir para conter essa fraqueza causadora
de impulsos, pois, dentro dessa estrutura, ambos podem aprender a se controlar. Desse
modo, o casamento, além de um acontecimento esperado, pode representar para aqueles

264
Id. Comentário Literal sobre o Gênesis IX, 5: “Com efeito, quanto mais apropriado é para a convivência
e a conversação a existência de dois amigos do que a de um homem e de uma mulher?”
265
Id. Comentário Literal sobre o Gênesis IX, 5
266
Id. Comentário Literal sobre o Gênesis IX, 3
267
Id. Comentário Literal sobre o Gênesis IX, 3
268
Id. Comentário Literal sobre o Gênesis IX, 7
98

que vivem no pecado uma saída do vício: “(...)a fim de que o que pode ser obrigação para
os sãos, seja remédio para os fracos269”.
Por fim, corroborando a inferioridade feminina, Agostinho mobiliza alguns
escritos paulinos e, em especial, demarcamos seu comentário que afirma que somente o
homem é imagem e glória de Deus; a mulher, por outro lado, não é glória de Deus, mas
do próprio homem pela qual foi formada. Ainda assim, Agostinho demarca que sua
inferioridade com relação ao corpo/ao sexo não encontra eco na mente, que é única para
o ser humano. Desse modo, a mulher é mulher só no corpo, mas tanto quanto o homem,
é capaz de se renovar no espírito de sua mente no conhecimento de Deus, resgatando a
imagem daquele que a criou na qual não faz diferenciação entre homem e mulher:
Assim como as mulheres não estão excluídas desta graça de
renovação e de restauração da imagem de Deus, ainda que no
sexo do corpo delas esteja figurada outra coisa, pela qual se diz
que apenas o homem é imagem e glória de Deus, assim também
naquela primeira criação do homem, segundo a qual a mulher era
também homem, ela também foi feita à imagem de Deus, pois
tinha mente própria e do mesmo modo racional270.

O mais relevante nessa passagem, é a percepção de que a marca da inferioridade


feminina não está na sua alma, mas no seu corpo. O corpo feminino e, consequentemente,
a expressão de sua sexualidade, constituem um impecílio para a sua evolução e
representam sua inferioridade em relação ao homem. Essa suposta inferioridade do corpo,
porém, já é suficiente para conceder a mulher um outro estatuto diante da Igreja, sendo
necessário cercear mais sua corporeidade do que a corporeidade masculina. No entanto,
apesar do discurso de interdições, nota-se nesse período ascendente do cristianismo, uma
atuação significativa de mulheres cristãs e ricas que ganham destaque na divulgação e
patrocínio dos empreendimentos cristãos. Essa movimentação fica evidente a partir do
estudo das concepções jeronimianas, assim como de sua própria trajetória de vida. Além
de ser o mais interessado na vida ascética, Jerônimo de Estridão foi também o que mais
se aproximou do público cristão feminino (mulheres, virgens e viúvas, com muitas
riquezas e que na condição de suas pupilas espirituais, patrocinavam suas iniciativas).
Por esse motivo, o religioso é um autor essencial para descortinar esse lugar do corpo
feminino dentro do contexto cristão, assim como acessar as discussões em torno dessa
questão que estavam em voga na época.

269
AGOSTINHO. Comentário Literal sobre o Gênesis IX, 7
270
Id. Comentário Literal sobre o Gênesis III, 22
99

Profundamente influenciado por Orígenes - religioso cristão de origem grega que


apregoava uma noção extremamente espiritual do mundo, na qual a divisão do homem
entre os sexos masculino e feminino seria totalmente suprida após a ressurreição ou,
mesmo em vida, caso haja interesse e perseverança - Jerônimo seguiu, a princípio, um
caminho que afirmava a superação da diferenciação entre os sexos. Ou seja, a fé cristã e
a ascese seriam meios de “silenciar” o desejo sexual que partia de ambos os sexos,
deixando de existir homens ou mulheres, mas apenas espíritos. Como consequência dessa
percepção, que “igualava” homens e mulheres, Jerônimo “(...) Não via razão para que o
ideal origenista de um trabalho inflexível da mente, associado a meditação cotidiana dos
cristãos sobre os “prazeres da Lei”, não devesse estender em todo o seu rigor a mulheres
maduras e bem-educadas, como Manuela e Paula271. Ou seja, as práticas cristãs e, mesmo
o conhecimento não deveria ser na perspectiva de Jerônimo, algo restrito aos homens. A
cultura propagada por ele presumia que uma mulher da aristocracia (pois, a mulher
“comum” nesse caso, não teria as mesmas oportunidades) poderia/deveria acessar os
escritos afora, estudando com afinco, sempre trazendo em si “um coração em que se
armazena uma tal biblioteca272”. Ou seja, embasado fundamentalmente em Orígenes,
Jerônimo, estimulando a vida ascética, adotou uma perspectiva bem espiritual com
relação ao corpo: sem ignorar as diferenças e especificidades dos dois sexos, ele aponta
a necessidade de transpassá-las e a partir de então entrar em outro nível de existência,
onde ninguém seja homem ou mulher, mas sejam todos anjos.

Maridos, afaguemos, pois, nossas mulheres, como também as almas


afagam nossos corpos, para que as mulheres sejam assimiladas a seus
maridos e os corpos, às almas, e que não haja de modo algum nenhuma
diferença de sexos; mas, como entre os anjos, não há homem ou mulher,
assim nós também que haveremos de ser semelhantes aos anjos,
comecemos desde já a ser aquilo que nos foi prometido para nossa vida
celestial (...) E, na verdade, quando a castidade existe entre um homem e
uma mulher, eles não começam a ser nem homem nem mulher, mas –
ainda que retidos até o momento presente no corpo – eles se transformam
em anjos, nos quais não há homem nem mulher273.

O autor, ainda completa defendendo ser o melhor caminho, antecipar essa


ascensão e mobilizando uma citação de Paulo, afirma: “(...) eu não suprimo a natureza
dos sexos, mas suprimo a sensualidade e a união carnal de marido e mulher, enquanto o

271
BROWN, Peter. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo.
Op. cit., p. 303.
272
Ibid., p. 304
273
JERÔNIMO. Apologia contra os livros de Rufino II, 28
100

Apóstolo diz: ‘O tempo é breve. Resta que aqueles que têm mulher devem se comportar
como se não tivessem’ 274
”. Desse modo, os corpos naturalmente dotados de
características sexuais de homens e mulheres eram por princípio, efêmeros, nos quais as
almas eram incutidas por um breve momento. Nesse sentido, não seria impossível, visto
que o próprio Jerônimo era adepto de tal “prática”, construir uma amizade ou parceria
entre homens e mulheres. Mesmo não negando a impulsão e paixão do corpo, Jerônimo
afirmava ser possível por meio de determinadas práticas, viver e agir como que as
ameaças do corpo não fossem sentidas ou não o afetassem: construindo um belo encontro
de mentes275. Para além disso, o autor afirma que na ressurreição, tal indistinção entre
homens e mulheres será, em especial, uma verdade.
Percebe-se a partir dessas primeiras reflexões que havia dentro da prática de
Jerônimo uma intenção de trazer a mulher para um papel mais atuante na comunidade
cristã. Certamente, essa postura vem também da percepção de que essas mulheres da
aristocracia eram aliadas essenciais devido a suas propriedades e riquezas e poderiam não
apenas divulgar a fé cristã, como conferir prestígio e abrir possibilidades aos seus
respectivos mestres espirituais, sempre homens, diga-se de passagem. Essa relação,
porém, a partir de 386 d.C. se vê um pouco abalada, quando a amizade entre homens e
mulheres dos círculos cristãos foi rotulada como uma forma de “subversão
clandestina”276. Tal situação coloca Jerônimo num dilema, o obrigando a adequar seu
discurso e repensar suas estratégias relacionadas a sua produção e aceitação nos círculos
cristãos. Toda essa questão é, certamente, um dos motivos pelos quais podemos notar
certas controvérsias em suas discussões sobre a temática feminina.
Jerônimo nunca teve, considerando em especial sua aproximação com a tradição
Oriental ascética, uma visão moderada e/ou harmoniosa sobre a sexualidade; no entanto,
o contexto no qual o final do século II d.C. o levou, como já citado, a fazer algumas novas
considerações, relacionadas ao contexto que o cercava. Nesta época, por exemplo, os
grupos de estudos nos quais participavam homens e mulheres, reunidos como iguais, e
imbuídos da esperança da transcendência das diferenças sexuais associadas ao estado do
corpo na ressurreição, foram sendo abandonados. O objetivo de grupos como esses era
permitir um “ensaio” e, principalmente, uma antecipação do momento da dor da divisão

274
JERÔNIMO. Apologia contra as obras de Rufino II, 29
275
BROWN, Peter. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo.
Op. cit., p. 380
276
Ibid., p. 305.
101

sexual; porém, como essa ideia foi perdendo força e apoio da Igreja, houve uma
dissipação gradual. Jerônimo, especificamente, demonstrará esse tom acentuado de
angústia sexual e de ênfase nas singularidades irredutíveis das características sexuais de
homens e mulheres em sua produção epistolar277, se tornando gradativamente um
interlocutor de um discurso alarmista nos perigos que circundavam a convivência entre
tais diferenças. Escrevendo a alguns amigos que se encontravam em Roma, Jerônimo
criticou firmemente, por exemplo, um entendimento da mulher como um ser privado das
características sexuais que as diferenciariam dos homens – opinião esta, ligada a Rufino
e a Orígenes278. Nota-se na seguinte passagem: “Assim, agora as mocinhas erguem o
busto, batem na barriga, na virilha e nas coxas, e alisam os rostos imberbes. ‘De que nos
servem”, dizem elas, ‘se é este corpo frágil que se eleva dos mortos’279”.
Desse modo, apesar de ser natural e esperado que o autor altere alguns de seus
julgamentos ao longo de sua produção, em especial, para aqueles que tem um vasto
conjunto de obras, Jerônimo evidencia isto de forma bastante evidente. Após alguns
ataques, críticas e movimentações que diziam respeito ao contexto da Igreja naquele
momento, Jerônimo voltou-se contra si, pois “era importante para os leitores de Jerônimo
no Ocidente que os homens permanecessem homens e que as mulheres permanecessem
mulheres280”. Relacionando esse religioso com Ambrósio de Milão (que também
“flertava” com a erudição grega e as práticas ascéticas), ambos foram, por exemplo,
exaltadores do corpo virginal, com foco para o corpo feminino, apesar de não se excluir
o masculino neste caso. Os dois religiosos encheram de sentido o esforço em prol da
castidade, conferindo-lhe um peso simbólico sem precedentes. Desse modo:
A virgindade implicava a defesa heroica da integridade um corpo
especificamente masculino ou feminino(...). Esses corpos,
defendidos com tamanho cuidado, não estavam fadados a se
desfazer numa transformação remota. Longe de serem uma
camada superficial e transitória do ser humano, as diferenças
sexuais, bem como o comportamento que lhes era apropriado,
foram validadas por toda a eternidade281.

277
Apesar de não constituir parte de nossa documentação central, mobilizaremos informações sobre alguns
desses escritos como documentos satélites. Tal será feito para complementar nossa argumentação, assim
como, nos ajudar na apreensão de uma perspectiva mais panorâmica desse autor, fazendo-nos entender sua
argumentação dentro de uma trajetória específica.
278
BROWN, Peter. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo.
Op. cit., p. 314.
279
JERÔNIMO, Epist. 74.6:748 apud BROWN, Peter. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia
sexual no início do cristianismo. Op. cit., p. 314.
280
Ibid.
281
Ibid.
102

Desse modo, todo um cenário de acusações, do qual, inclusive, nossa


documentação (“Apologia contra as obras de Rufino”) faz parte, obrigou Jerônimo a
explorar uma narrativa para além da origenista, caracterizada por um espiritualismo
excessivo, assim como certa instabilidade. A partir de então, o religioso enfatiza as
diferenças sexuais e restringe os corpos tanto feminino como masculino aos seus limites
observáveis, ou seja, mundanos e temporais. Como consequência, Jerônimo propõe uma
nova “forma” para a ressurreição, na qual os homens não perderiam absolutamente suas
características físicas, assim como poderiam manter suas relações de modo análogo, pois
haveria uma manutenção dos traços costumeiros de cada indivíduo, tanto físicos, como
de personalidade282.
O paraíso a partir dessa nova interpretação, como bem delimita Peter Brown, não
seria um lugar de resguardo da perfeição inteiramente espiritual, na qual os homens
seriam “despidos” de sua “capa” mundana, tornando-se irreconhecíveis e desconectados
com a vida terrena que levavam e com o corpo que viviam. A ressurreição abriria as portas
para de uma sociedade análoga a sociedade romana, porém, “da qual as falhas corrosivas
introduzidas pelo desejo pessoal tenham sido eliminadas283”. É possível exemplificar essa
perspectiva por meio do caso de Teodora, uma viúva espanhola que viveu em
contingência com o marido nos últimos dias de vida deste e pediu conselhos a Jerônimo.
Segundo o religioso, “as diferenças sexuais cujos perigos ela e o marido haviam superado
persistiriam no outro mundo284”; porém, “Ela seria recompensada, no paraíso, com a
ligação a um homem reconhecível, num amor finalmente liberto da mácula do desejo”.
Esse episódio é interessante porque se contrasta totalmente com o que o autor
argumenta em Apologia contra a obra de Rufino, demonstrando sua flutuação com
relação ao tema. Na obra em questão, ele demonstra, como já foi exposto, que as
divergências sexuais são passíveis de superação mesmo nessa vida, e que na ressurreição,
quaisquer diferenciações entre os sexos não existirão, pois não existirá, se quer, homem
e mulher. Esse pensamento fica bem exemplificado a partir do trecho abaixo, na qual
Jerônimo recorre a uma passagem do Evangelho:
E o senhor, a quem se perguntava, no Evangelho, de qual dos sete
irmãos a mulher devia ser esposa na ressurreição, respondeu:
“Vocês estão errados, desconhecendo as Escrituras e o poder de
Deus. Na Ressurreição, com efeito, não se tomará marido nem

282
BROWN, Peter. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo.
Op. cit., p. 315
283
Ibid.
284
Ibid.
103

mulher, mas serão como anjos de Deus no céu”. E, na verdade,


quando a castidade existe entre um homem e uma mulher, eles
não começam a ser nem homem nem mulher, mas – ainda que
retidos até o momento presente no corpo – eles se transformam
em anjos, nos quais não há homem nem mulher285.

Por fim, optamos por analisar o afresco denominado “A Orante” para concluir
nossa análise sobre a sexualidade com relação ao seu pressuposto de dualidade entre os
gêneros. Partindo de uma origem que remonta a cultura tradicional romana, a imagem da
Orante foi escolhida porque é uma das mais recorrentes nas catacumbas romanas, a partir
do século III d. C.286, ou seja, é um dos modos mais comuns de se representar a mulher
neste contexto (inclusive, raramente se encontram exemplares masculinos desta cena). O
exemplar a ser analisado aqui, chamado também de “donna Velata”, é um dos exemplares
mais característicos desse “personagem”. A figura central do afresco, assim como é usual
no tema, está de braços estendidos, em posição de oração, e suas vestes são muito
recatadas. Para a cultura politeísta uma representação análoga estaria ligada a uma virtude
muito importante para os romanos: a pietas287. Porém, após ser cristianizada e,
considerando o contexto funerário, entendemos que esta imagem, não deixando de
simbolizar um pedido de piedade a Deus, expõe um momento de conexão com o divino,
de súplica no momento da morte e/ou após dela. Em termos estilísticos, ao analisar essa
imagem Silvia M. A. Siqueira enfatiza o caráter “espiritual da obra: “A figura alude o
momento da passagem e evoca para a forte expressividade da alma da oradora. As
pinturas demonstram por meio da construção dos rostos, da intensidade do olhar, do
desenho da boca e os seus traços(...)288”.
A imagem central, porém, conta com outros elementos que a ladeiam e que, no
caso, são representações da mesma personagem em diferentes momentos da vida. No
primeiro quadrante (da esquerda para a direita), a presença de um homem mais velho e,
igualmente, de um jovem nos sugere a ideia de casamento, na qual o pai passa a tutela da
filha para o marido. Nos braços, ela carrega um filho. O outro extremo do afresco mostra

285
JERÔNIMO. Apologia contra as obras de Rufino II, 29
286
GREGORI, Alessandro Mortaio. Comunicação Visual na Antiguidade Cristã: a construção de um
discurso imagético cristão do Ante Pacem ao Tempora Christiana (s. III ao VI). Op. cit. p. 110
287
Ibid., p. 113: “(...) a Orante não é uma criação genuinamente cristã, uma vez que se associa de modo
prévio ao mundo romano.”
288
SIQUEIRA, Sílvia M. A. As Efígies femininas em catacumbas romanas: uma análise da figuração
paleocristã. In: LEITE, Leni Ribeiro; DA SILVA, Gilvan Ventura; CARVALHO, Raimundo Nonato
Barbosa; FRANCALANCI, Carla (Orgs.). Figurações do Masculino e do Feminino na Antiguidade.
Vitória: PPGL, p. 87-103, 2011, p. 100.
104

a mesma mulher, vestida com roupa vistosa num papel mais evidente da maternidade.
Portanto, esse afresco é muito elucidativo quanto a questão do papel da mulher nesta
sociedade, que vai de encontro com o que é demarcado pelos Pais da Igreja latina, ligando
a atuação feminina ao ser mãe, esposa e, com o cristianismo, também, devota.
Representada com um olhar bem expressivo, a “orante” parece pedir a piedade de Deus
após a morte, tendo cumprindo com o papel que lhe cabia enquanto mulher: mãe e esposa.
Importante também, é o fato de estar a “orante” vestida de forma diferente que em outras
fases da vida; a figura central apresenta uma indumentária ainda luxuosa, mas sua cabeça
se encontra coberta.

Sabemos que, além de registros com mensagens relativas a memória, os


monumentos funerários abrigam também conselhos, advertências e visões de mundo - em
especial da morte ou vida após esta - aos visitantes289. Desse modo, essas imagens
também traduzem regras de conduta, no caso, sobre o comportamento das mulheres
cristãs. Por meio desse entendimento, é possível notar a mulher deve assumir o papel de
mãe e esposa e que deve cultivar a simplicidade e humildade, assim como a “orante”. O
corpo da mulher, não mais evidente como o corpo de Eva no episódio da Expulsão do
Paraíso, precisa agora ser escondido, pois apenas assumindo essa postura recatada, a
“orante” parece conseguir alcançar a ressurreição.
Evidente que o que analisamos aqui não esgota as possibilidades de representação
do feminino nas catacumbas romanas, porém, considerando que essa imagem (A Orante)
aparece com muita frequência nessas estruturas, parece existir um discurso mais ou menos
hegemônico dentro desse contexto; discurso que, inclusive, possui analogias
significativas com o texto escrito. A recorrência dessa figura feminina em postura de

289
SIQUEIRA, Sílvia M. A. As Efígies femininas em catacumbas romanas: uma análise da figuração
paleocristã. Op. cit., p. 101.
105

oração contrasta ainda, como já foi citado, com poucos exemplares masculinos na mesma
situação, o que também parece corroborar com nossa reflexão no início desse subtítulo:
o controle sob o corpo feminino, sua função e designação parece se dar de forma muito
mais enfática do que sob o corpo masculino. As razões e os mecanismos pelos quais essa
estrutura foi formulada e se reproduz não são um objeto desta pesquisa; mas é
imprescindível a compreensão, ainda que primária, que os discursos sobre o corpo
formulados por cada sociedade tendem a respeitar as respectivas segmentações sociais,
políticas, de gênero e dentre outras vigentes. Ou seja, os diferentes grupos de uma
sociedade tendem a apresentar suas respectivas singularidades com relação ao seu corpo.

Conclusão

A partir das discussões feitas acima, nota-se que o corpo não foi, de nenhum modo,
um aspecto secundarizado na literatura cristã; mas, pelo contrário, seu controle e
definição surgem como preocupações constantes. Isso se dá, essencialmente, porque as
representações do corpo, assim como as leis que lhe deveriam reger, servem de
fundamento para uma moral religiosa e contribuem para todo um universo teológico. Do
mesmo modo, os afrescos trabalhados a partir dos métodos propostos são capazes de
fornecer valiosas informações, dando um aspecto palpável às imagens mentais de um
indivíduo ou grupo; afinal, como já afirmou Peter Burke “embora os textos também
ofereçam indícios valiosos, imagens constituem-se no melhor guia para o poder de
representações visuais nas vidas religiosa e política de culturas passadas290”
Para além disso, podemos colocar algumas importantes considerações finais: (1)
O cristianismo não foi uma doutrina absolutamente revolucionária em seu período de
formação e, nem mesmo, em seu momento de ascensão e consolidação, mas se alastrou
por meio do processo de transculturação e ressignificação da cultura helênica; (2) Apesar
de alguns lugares comuns, não há uma visão unitária sobre o corpo, mesmo considerando
a mesma tipologia de fonte; (3) O controle sobre o corpo é exercido de forma diferente,
sendo condicionado por sua classe social, posicionamento político e, no caso específico
da investigação deste trabalho, pelo gênero.
Primeiramente, como ficou evidente, o discurso cristão foi construído assentado
nas bases da cultura helênica, reinventando-a e ressignificando-a de acordo com seus

290
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru, SP: EDUSC, 2004, p.17.
106

interesses. Nesse sentido, percebe-se que o dualismo corpo e alma, por exemplo, não foi
uma “invenção” cristã e nem foi este que inaugurou uma visão pessimista da
corporeidade, como tende a postular certo senso comum. O aspecto físico/ “carnal” do
homem não era realmente alvo de uma especial devoção ou valorização dentro do
cristianismo - como se pode perceber, com suas respectivas singularidades, os três
religiosos mobilizados tenderam a valorizar mais a alma em detrimento do corpo. Ao
mesmo tempo, a arte cristã nas catacumbas por meio de seus traços e representações
reafirma esse lugar de exaltação do que é espiritual. Porém, muito desse pensamento se
desenvolve como uma herança das formulações filosóficas bem anteriores ao Deus
cristão, fazendo com que o cristianismo traga em sua essência diversas referências
clássicas. Henri Marrou, por exemplo, demonstra um estranhamento com relação a arte
cristã, no sentido de que esta demorou a ter uma linguagem que realmente a diferenciasse
do trabalho anterior: “o cristianismo, destinado a transformar tão profundamente a
civilização do mundo ocidental, se haja introduzido na arte tão discretamente e como que
subrepticamente291”.
Trazendo essa afirmação para a realidade dessa pesquisa, percebemos que, apesar
de encontrarmos muitas referências aos textos bíblicos e temáticas novas, é evidente
também a mobilização de temas muito conhecidos do mundo politeísta, com um viés ou
sentido que, apesar de próximo ao “original”, passa por uma cristianização. Os casos mais
evidentes sobre isso neste trabalho são os afrescos, “A Orante”, que pode ser considerada
uma releitura da pietas romana e “Hércules no jardim de Hesperídes”, a representação de
um episódio da mitologia greco-romana. Ainda assim, é importante frisar o que podemos
considerar como a grande “novidade292” do cristianismo com relação ao corpo, que é
apresentada na medida em que propõem seu protagonismo dentro dos rituais de maior
destaque para a Igreja, como é o caso do baptismo e da eucaristia. Somando-se a isso, a
própria ideia de ressurreição evoca o corpo como peça fundamental. Afinal, a narrativa
chave do cristianismo gira em torno da ressurreição de um Deus que possuiu um corpo

291
MARROU, Henri. Decadência Romana ou Antiguidade Tardia?. Trad. Trad. Herique Barrilaros Ruas.
Lisboa: Editora Aester, 1979, p. 55.
292
Com isto, não estamos querendo afirmar que este aspecto da concepção cristã sobre o corpo emerge de
forma inata ou que não teve influência alguma de outras filosofias já existentes. Como já foi amplamente
discutido neste trabalho por meio de nossa perspectiva teórico-metodológica, as manifestações culturais,
religiosas, dentre outras, são sempre produto de um processo muito mais complexo de trocas, apropriações
e ressemantizações. O que buscamos frisar aqui é que o cristianismo constrói uma relação diferenciada com
o corpo, fundamentalmente, na medida que possui como referência um ser divino que encarnou um corpo
humano, Cristo.
107

humano. Como já demonstrado, Agostinho é um dos autores que mais enfatiza a


participação do corporal nesse fenômeno que é a marca da fé cristã.
Sobre nossa segunda reflexão, fica evidente que ao tangenciar esse processo que
demonstra que o cristianismo foi gestado em meio a uma pluralidade de correntes
filosóficas e religiosas, torna-se também justificável a diversidade análoga de opiniões e
perspectivas dos religiosos sobre o assunto, mesmo em um período no qual o cristianismo
já tinha sua oficialidade e certa hegemonia (que começa a se desenrolar meados do século
IV d.C.). Como é possível notar, os autores mobilizados nesta pesquisa, que são
contemporâneos entre si e se estabelecem como figuras centrais na construção do
cristianismo dentro da tradição Ocidental, não apresentam concepções idênticas. Como
exemplificação desse argumento, temos as perspectivas de hierarquização corpo-alma, na
qual para os três religiosos, a alma é superior; porém em níveis diferentes. Amostra disso
é o descompasso existente entre a perspectiva de Agostinho, mais harmoniosa com
relação a esta convivência, e a de Ambrósio e Jerônimo, que já representam o corpo com
maiores reservas, indicando, por vezes, processos de mortificação deste. O mesmo ocorre
com relação a aceitação do aspecto sexual do corpo: a virgindade e o celibato são posturas
elogiadas em todos os casos, mas Jerônimo e Ambrósio apresentam um discurso mais
enfático nesse sentido; por vezes, em especial no caso de Jerônimo, não vendo com bons
olhos, nem mesmo, o casamento.
Possuindo influências diversas, cada autor construiu seu pensamento de forma
diferenciada, se “unindo” apenas com relação as suas formações intelectuais iniciais,
pautada nos referenciais clássicos. Tal característica confirma o que foi falado acima:
apesar de ser um dos elementos que dá corpo a uma nova sociedade, que vai
gradativamente se distanciando da cultura da Antiguidade Clássica, o cristianismo, de
forma inegável, foi edificado sobre bases da cultura tradicional romana e soube se utilizar
disto para ganhar seu espaço. Os autores cristãos, assim como todas as formas de
manifestação cristãs, incluindo aqui os afrescos estudados, se erigiram sob uma constante
tensão entre negação e apropriação.
Com relação ao nosso último tópico a ser destacado, notamos por meio das fontes
literárias e imagéticas que existe uma dedicação maior em representar, descrever e
codificar o comportamento corporal feminino que o masculino. Tal preocupação parece
nascer da ideia unânime entre os três religiosos de inferioridade da mulher; compreendida,
até mesmo em função da narrativa da criação do primeiro casal de humanos, como um
complemento do homem. Nesse sentido, marca-se a função reprodutora da mulher e sua
108

posição como esposa. Sua sexualidade, como consequência disso, parece merecer maior
monitoramento. O autor que, por vezes, se distancia dessa visão é Jerônimo que,
profundamente influenciado por Orígenes e possuindo um trabalho específico com as
mulheres cristãs e virgens consagradas, apregoa uma visão essencialmente espiritual do
mundo, que prevê uma indistinção entre os sexos. Por esse motivo, Jerônimo defendeu
que as leis cristãs, suas práticas e seu estudo poderiam se estender as mulheres da
aristocracia.
Ainda sobre essa questão, o AFRESCO 1 (A Orante) nos possibilita um outro
meio de acesso a representação do corpo feminino e reafirmando as interpretações, em
especial, de Agostinho e Ambrósio, demonstra as etapas “naturais” da vida de uma
mulher. A tumba, certamente, é um espaço onde o falecido ou sua família desejam deixar
uma marca, um retrato de seus feitos e de sua trajetória em vida. O desejo de se representar
como esposa e mãe é revelador no sentido de demonstrar o prestígio que isso deveria
significar para uma mulher da época, pois tais cenas só seriam representadas sendo ideais
a serem almejados e seguidos.
Por fim, podemos afirmar que todas essas construções simbólicas,
representacionais e arquetípicas sobre o corpo, apesar de não se apresentarem de forma
sempre evidente e serem, por vezes, muito abstratas, são agentes relevantes na construção
de uma sociedade. O movimento inverso também é real, no sentido que quaisquer
fenômenos culturais terão seu impacto no modo como os homens percebem e se
relacionam com seu corpo e com o corpo do outro. O cristianismo, como um dos
elementos responsáveis por reorganizar e reformular o mundo Mediterrânico no período
tardo-antigo, conjuntamente com uma série de outros acontecimentos e fenômenos
político-sociais, promoveu uma mutação gradativa e significativa relacionada a
convivência dos homens com seus corpos e, por esse motivo, se apresenta como um ponto
de partida muito frutífero para o estudo dessa relação. Desse modo, reconhecemos o corpo
como um objeto histórico, que ocupa diferentes lugares na vida cotidiana e no imaginário
de cada sociedade e atentar para as suas formas de representação é também uma forma de
acessar os seus outros múltiplos aspectos, afinal todos eles são, de alguma forma,
mediados pelo corpo.

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